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A MORTE ESTÁ GELANDO

Eles pareciam uma família feliz. Bem sucedidos, Afonso, 38 anos, 1,80 m,
branco, cabelos castanhos e olhos esverdeados, oficial de carreira da Marinha
e Fernanda, 35 anos, 1,60 m, branca, loura natural com expressivos olhos
azuis, médica, estavam casados há 15 anos e tinham um casal de filhos,
Marcelo de 12 anos e Letícia de 8 anos. Afonso fora criado e ainda morava na
Ilha, mas Fernanda viera de Porto Alegre para Ilha após o casamento.
Moravam no Paraíso, bairro de classe média e a casa ampla sempre estava
aberta para amigos e familiares. Formavam um casal muito bonito e todos
acreditavam que viviam muito bem.

Mas a portas fechadas já fazia muito tempo que o casal não se entendia.
Dormiam em quartos separados e só conversavam o estritamente necessário.
Cada um tinha a sua vida. Os filhos, a princípio, estranharam a vida dupla dos
pais, mas meses depois, já não davam mais importância ao fato. Fernanda
passou a trabalhar mais à noite, na emergência do HCI – Hospital Central da
Ilha. O casal só se via mesmo nos finais de semana quando estavam com os
filhos, ou com os amigos ou ainda quando iam à missa juntos aos domingos.
Mas quando estavam sozinhos se agrediam verbalmente e culpavam um ao
outro pelo desgaste conjugal. Sendo católicos devotos, divórcio era uma
palavra proibida para ambos. Fizeram um acordo para que cada um tivesse a
sua vida privada separada desde que os encontros com os amantes
acontecessem fora da Ilha. Se alguém observasse mais de perto o casal
perceberia claros sinais de desequilíbrio psicoemocional.

Durante muito tempo viveram uma relação aberta. Tinham seus


namorados, conviviam um com o outro dentro de casa, cuidavam dos filhos.
Parecia um casal, mas era mentira. Tudo parecia seguir bem até aquela noite
de sábado. As crianças estavam na casa dos avós paternos e só voltariam na
segunda-feira. Eles estavam sozinhos. Fernanda resolveu então pedir o
divórcio. Não queria mais viver aquela loucura. Encontrara o amor em um
colega de profissão, Jair, que também era divorciado. Estava apaixonada e
decidira viver sua vida. Ao ouvir a esposa pedir o divórcio, o rosto de Afonso se
transformou. Ficou pálido, olhos arregalados. – Então, você quer o divórcio, é
isso? – Como fica a Igreja? – Casamento é sacramento, para a vida inteira –
Afonso procurava aparentar calma. – Não me interessa a Igreja – disse ela com
rispidez – o que a gente tem vivido é doentio, não pode ser amor. Ela olhou-o
nos olhos, havia tristeza na voz quando falou – Outro dia, nosso filho perguntou
por que a gente dormia em quartos separados e por que você tinha uma
geladeira no seu quarto – Não quero mais isso para mim. – Já chega. Afonso
olhou a esposa e disse com voz estranhamente calma: - Tá bem, se é isso que
você quer, eu concordo. Abraçou-a e disse – Providencie tudo. Quero que você
seja feliz. Havia um brilho estranho nos olhos dele.
Nos dias que se seguiram, ninguém viu mais Fernanda. Os filhos
perguntavam pela mãe, mas Afonso dizia não saber onde ela estava, que ela
tinha ido embora. A empregada da casa, Doralice, estranhou a resposta. Como
tinha ido embora se o carro dela estava na garagem, a bolsa com a carteira e
os documentos estavam no quarto dela? E fazia dias que ela não aparecia no
hospital para atender os plantões. Perguntou ao patrão se ele não iria fazer um
boletim de ocorrência. Fernanda poderia ter sido sequestrada ou morta em
algum lugar. Com muita relutância, ele foi à delegacia comunicar o sumiço da
esposa. Doralice não se conformava. Alguma coisa estava muito errada
naquela casa.

Ela entrou no quarto de Afonso para fazer a limpeza habitual. Aquela


geladeira grande, de inox, preta sempre dera calafrios nela. Nunca tivera a
curiosidade de abrir. Afonso sempre brincava com o medo dela. – Doralice não
abra a geladeira do meu quarto. A morte está gelando – dizia ele rindo com o
pavor dela. Agora, ela percebia que ele colocara uma corrente em volta da
porta da geladeira. Viu alguns pingos vermelhos no tapete do quarto. Debaixo
da cama os brincos de pérola favoritos de Fernanda estavam jogados e
amassados como que arrancados da orelha dela à força. Teve medo. Os olhos
dela não conseguiam se desviar da geladeira porque também havia sangue. –
A morte está gelando – ela se lembrava das palavras de Afonso. Ligou para o
marido e pediu que ele viesse imediatamente à casa da patroa. Quando
Juvenal, esposo de Doralice, entrou no quarto, ela disse: – estou com um
pressentimento que tem alguma coisa horrível dentro dessa geladeira. Pode
arrombar e quebrar esse cadeado. – Vamos Juvenal, vai homem! – Valei-me,
Santo Expedito! Doralice estava nervosa e ansiosa.

Quando conseguiram abrir a geladeira viram pedaços de carne humana


enroladas em sacos plásticos. Na gaveta inferior da geladeira estava a cabeça
de Fernanda com os olhos azuis estampando o mais profundo terror. Passado
o horror inicial, chamaram a polícia e imediatamente a notícia se espalhou. O
casal modelo era uma farsa. A esposa fora esquartejada pelo marido e
colocada numa geladeira. O crime chocou a população pacata da Ilha. Afonso
foi preso ainda estando no quartel. As pessoas agora reconheciam que
demoraram muito a perceber que até o olhar esbugalhado de Afonso era olhar
de um homem louco.

Eles pareciam um casal feliz, mas era mentira. A portas fechadas já fazia
muito tempo que não se entendiam.

HISTÓRIAS DA ILHA

Dionildo Dantas

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