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Publicado em 02/2001
A base da discussão sobre o direito adquirido e o ato jurídico perfeito situa-se sobre a
temática da estabilidade dos direitos subjetivos e consequentemente a garantia
constitucional da segurança dessas relações, que corresponde a um valor de ordem, de
paz e de respeito inatos à consciência e desejo dos cidadãos. Vê-se, pois, que o tema
transcende o direito positivo, fincando raízes no direito natural. Pois, se é verdade que o
direito é dinâmico e muitas vezes deve mudar, não é menos verdade que as relações
constituídas sob o império de uma norma devem perdurar ainda que tal norma seja
substituída.
No decorrer dessa resenha traremos à lume os conceitos técnicos jurídicos dos institutos
e a distinção entre o direito adquirido e o ato jurídico perfeito. Trata-se de conceitos
técnicos, os quais devem ser bem compreendidos pelo operador do direito em face da
relevância em que apresentam ao sistema jurídico.
A distinção preliminar básica que devemos perfazer entre direito adquirido e ato
jurídico perfeito consiste na própria idéia semântica de um e de outro. O primeiro nada
mais é do que uma espécie de direito subjetivo definitivamente incorporado ao
patrimônio jurídico do titular, mas ainda não consumado, sendo, pois, exigível na via
jurisdicional se não cumprido pelo obrigado voluntariamente. O titular do direito
adquirido está protegido de futuras mudanças legislativas que regulem o ato pelo qual
fez surgir seu direito, precisamente porque tal direito já se encontra incorporado ao
patrimônio jurídico do titular – plano/mundo do dever-ser ou das normas jurídicas – só
não fora exercitado, gozado – plano/mundo do ser, ontológico. O titular do direito
adquirido extrairá os efeitos jurídicos elencados pela norma que lhe conferiu o direito
mesmo que surja nova lei contrária a primeira. Continuará a gozar dos efeitos jurídicos
da primeira norma mesmo depois da revogação da norma. Eis o singelo entendimento
do direito adquirido.
Já o ato jurídico perfeito é o título ou fundamento que faz surgir o direito subjetivo, é
todo ato lícito que tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar ou
extinguir direitos (art. 81 do CC). Na lição de Limongi França, ato jurídico perfeito é
aquele que sob o regime de determinada lei tornou-se apto para produzir os seus efeitos
pela verificação de todos os requisitos a isso indispensável. Assim, o ato jurídico
perfeito deve ser analisado sob a ótica de forma.
Podemos dizer que o ato jurídico perfeito é um instituto irmão do direito adquirido,
algumas vezes aquele surge antes desse, como no caso do testamento válido, lavrado e
assinado, mas ainda vivo o testador, ou, um negócio jurídico sujeito a condição
suspensiva. Nesses exemplos há ato jurídico perfeito, pois tais atos foram constituídos
validamente sob a égide de uma lei válida, porém em ambos inexiste direito adquirido,
vez que, respectivamente, o testador ainda vive, e, a condição suspensiva ainda não
ocorreu, art. 118 do C.C. Logo não houve a completude do fato concreto gerador do
direito subjetivo. Nesse trabalho devemos enfocar o direito adquirido sob a ótica de
fundo, já o ato jurídico perfeito sob a ótica de forma.
José Afonso da Silva ainda distingue os institutos ao dizer que o direito adquirido
emana direitamente da lei em favor de um titular, enquanto que o ato jurídico perfeito é
negócio fundado na lei. Ou seja, o direito adquirido é uma espécie de direito subjetivo,
ao passo que o ato jurídico perfeito é um negócio jurídico ou o ato jurídico stricto sensu
segundo a visão civilista. Para nós tanto direta e imediatamente da lei como dos atos
jurídicos – os contratos, as declarações unilaterais de vontade – e portanto indireta e
mediatamente da lei, podem dar ensejo ao direito adquirido.
Atente-se para o fato que só surgirá direito adquirido quando houver a completude dos
seus requisitos e fatores de eficácia, elencados pelo regime jurídico peculiar do direito
positivo que rege o ato, incidindo por completo o direito objetivo fazendo assim nascer
o direito subjetivo, a partir daí adquirido.
§ 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele,
possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou
condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.
§ 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba mais
recurso ."
O art. 6º, da LICC vem complementar o seu art. 2º, e portanto devem ser compreendidos
juntos. Por sua vez o art. 2º da LICC prescreve: "Não se destinando à vigência
temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
§ 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com
ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
§ 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes,
não revoga nem modifica a lei anterior.
§ 3º Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei
revogadora perdido a vigência".
Para a devida compreensão dos institutos do direito adquirido, ato jurídico perfeito
faremos um exame dos mesmos sob três planos sucessivos de projeção: o da existência,
o da validade e o da eficácia.
Deveras, o direito nasce dos fatos, já diziam os romanos ex facto ius oritur . Ou seja,
"do direito objetivo não surgem diretamente os direitos subjetivos; é necessário uma
força de propulsão ou causa, que se denomina fato jurídico"(4). Nesse sentido pontifica
Limongi França que o fato jurídico, estribado no direito objetivo, dá azo a que se crie a
relação jurídica, que submete certo objeto ao poder de determinado sujeito. A esse
poder se denomina direito subjetivo. Assim o direito subjetivo só nasce a partir dos
fatos do mundo real, pois somente a partir da concreção do suporte fático hipotético
(mundo do ser) é que a norma jurídica incide, estando até então abstrata, em estado
latente ou potencial imperando no mundo das normas (dever-ser), vindo à lume e
integrando o patrimônio jurídico da pessoa, titular do direito, quando surgir inteiramente
o fato contemplado pelo texto legal. Em terminologia apropriada há a subsunção do fato
ao texto legal, incidindo pois a norma jurídica, a qual confere direito subjetivo ao titular
do direito.
Nas palavras de Pontes de Miranda invocado por Eros Grau, "o fato deve ser
suficiente". Isto é, o fato ou o suporte fático concreto diz respeito ao plano da
existência, devendo ser exatamente o contemplado pelo texto legal, sob pena de não
existir o direito, vez que doutro modo não surge a norma.
Destaque-se que o fato deve vir por inteiro, assim como contemplado pelo texto legal,
com todas as suas partes. Se o fato for simples dispensa-se maiores explicações, pois
existe ou não. Já se for complexo exige maior ponderação, é aquele que surge com o
advento de múltiplos atos-partes que vão se cumprindo com intervalos de tempo. Só há
que se falar em direito adquirido quando o fato/ato (mundo do ser) for integralmente
realizado. Gabba, citado por Celso Bastos, admite, porém, o direito adquirido se não se
realizar todo o ato, mas somente quando a parte faltante seja ato infalível, isto é, deva
necessariamente realizar-se. Trata-se de um aspecto polêmico. Para nós a questão deve
ser enfocada sob o ponto de vista de aquisição ou incorporação do direito pelo seu
titular no momento em que for exigir esse direito, só tendo força jurígena essa exigência
se tal direito estiver nesse momento incorporado ao patrimônio jurídico do titular.
Temos que a lei nova produz efeito imediato sobre situações jurídicas em curso de
formação.
Superado o plano da existência passemos à análise da projeção dos atos sobre o plano
da validade.
Pontifica Junqueira de Azevedo que quando o direito "estabelece exigências para que o
ato entre no mundo jurídico com formação inteiramente regular, está determinando
requisitos de validade. A validade é, pois, a qualidade que o negócio/ato deve ter ao
entrar no mundo jurídico, consistente em estar de acordo com as regras jurídicas ("ser
regular"). Validade é, como o sufixo da palavra indica, qualidade de um negócio/ato
existente. Válido é o adjetivo com que se qualifica o ato/negócio jurídico formado de
acordo com as regras jurídicas.
Os requisitos, por sua vez, são aqueles caracteres que a lei ou a C.F. exigem (requerem)
nos elementos do negócio/ato para que este seja válido. Há certo paralelismo entre o
plano da existência e o plano da validade: o primeiro é um plano de substâncias, no
sentido aristotélico do termo: o ato/negócio existe e os elementos são; o segundo,
grosso modo, um plano de adjetivos: o ato/negócio é válido e os requisitos são as
qualidades que os elementos devem ter. Há no primeiro plano: a existência, o
ato/negócio existente e os elementos sendo. Há, no segundo: a validade, o ato/negócio
válido e os requisitos como qualidades dos elementos"(5).
Para Eros Grau, o ato jurídico deve ser além de suficiente (o que implica sua conversão
em ato jurídico lato sensu vez que produz efeitos jurídicos) eficiente. Vale dizer: no
plano da validade questionamos a eficiência do suporte fático suficiente.
Finalmente o plano da eficácia, última projeção que deve ser feita pelo operador do
direito ao ato jurídico. Por tratar de planos sucessivos, só nos interessa a eficácia própria
ou típica do ato, conforme a terminologia de Junqueira de Azevedo, a qual propomos a
denominação de eficácia pura – pois o ato é existente, válido (superou-se regularmente
os planos anteriores) e eficaz – em contraposição à eficácia imprópria ou espúria, que
advém de um ato nulo ou anulável, os quais eventualmente produzem eficácia (em tese
não poderiam ter eficácia), apesar da contradição com o ordenamento jurídico.
Com efeito, a eficácia imprópria ou espúria deve ser eliminada do sistema, pois advém
de atos inválidos. Ocorre que muitas vezes essa invalidade só é percebida com a
manifestação judicial, pois certos atos como os administrativos e as decisões judiciais
presumem-se legais (válidos) – presunção relativa. E quanto aos atos privados inválidos
que produzem eficácia espúria, deve a parte ou terceiro prejudicado ou quando for o
caso o Ministério Público recorrer ao Judiciário e provar a invalidade dos invocados
atos.
Nesse sentido ensina Uadi Lammêgo Bulos, a eficácia da lei, da sentença ou do ato
inconstitucional subsistem até a decretação de sua nulidade. Enquanto não proferida a
decisão que declare o ato nulo, esse continuará eficaz, produzindo as mesmas
conseqüências do ato perfeito. Não obstante a decretação de nulidade produzir efeitos
ex tunc (retroativos), desamparando qualquer relação estabelecida sob a sua égide. Daí
porque inexistem direito adquirido ou ato jurídico perfeito com base em atos ilegais ou
inconstitucionais, apesar de produzirem eficácia enquanto não declarada a nulidade do
ato que lhe deu fulcro.
Do ângulo oposto, há outros atos que são existentes e válidos mas não são eficazes.
Podemos dizer que há direito adquirido ou ato juridicamente perfeito ? A questão é
complexa e devemos abordá-la segundo a doutrina aqui traçada.
Em relação ao ato jurídico perfeito a questão apresenta-se mais simples e linear, pois
esse instituto fora concebido pelo constituinte sob o aspecto formal. Ato jurídico
perfeito é aquele ato que nascera e se formara sob a égide de uma determinada lei,
contemplando todos os requisitos necessários exigidos pela norma então vigorante. O
constituinte assegura assim aos contratantes/partes lato sensu imunização contra
eventuais futuras exigências de forma referentes ao ato, para pôr a salvo o título ou
fundamento que dá e deu supedâneo ao direito subjetivo dos contratantes/partes.
Protege-se indiretamente o direito adquirido, ao passo que não se pode alegar a
invalidade do ato jurídico se advier lei nova mais rigorosa alterando dispositivos
referentes à forma do ato.
Conclui-se que quanto ao ato jurídico perfeito o constituinte ao insculpir essa garantia
no art. 5º, inciso XXXVI, da C.F. alberga, diante da própria função do instituto,
somente os planos da existência e da validade, não exigindo a eficácia jurídica do ato. É,
pois, considerado perfeito o ato jurídico, ainda que sujeito a termo ou condição. Nesse
sentido doutrina Eros Roberto Grau, Licitação e Contrato Administrativo, Ed.
Malheiros, p.109 e 110 e José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional
Positivo, 10ª edição, Ed. Malheiros, 1995.
Assim, num singelo exemplo, ilustramos melhor o raciocínio: suponha que uma lei
válida e em vigor confira certo direito, como o de se aposentar depois de 30 anos de
trabalho para homens, trabalhado regularmente os 30 anos qualquer homem poderá se
aposentar. O direito tornar-se-á adquirido somente quando o trabalhador completar o
trigésimo ano de trabalho, pois somente assim haverá a incidência completa do suporte
fático exigido pela norma, e, por conseqüência, a incorporação do direito ao patrimônio
jurídico do trabalhador, independentemente de se pleitear a aposentadoria. Tanto que
com o advento de uma nova lei, que revogue a anterior, aumentando o prazo para 35
anos de trabalho para se obter a aposentadoria, todos aqueles que já tinham completado
30 anos de trabalho na vigência da primeira lei e ainda não se aposentaram, poderão se
aposentar normalmente, não obstante a nova lei requerer 35 anos de trabalho. Pois o
direito já era adquirido. Entretanto aqueles que não completaram os 30 anos de trabalho
na vigência da primeira lei não têm direito adquirido, mas mera expectativa de direito,
portanto não poderão se aposentar com apenas 30 anos de trabalho.
Ocorre que algumas vezes o direito exige certos fatores de eficácia, que são aqueles
definidos pelo direito positivo como atinentes a cada ato jurídico individualizadamente
considerado, para operar efeitos jurídicos em relação a terceiros repercutindo inclusive
sobre o direito adquirido.
I) "A" em face da sua idade avançada faz um testamento público às vésperas de uma
mudança legislativa que operará efeitos em todo o direito civil inclusive na seara dos
testamentos, como é o caso do Novo Código Civil em processo de aprovação no
Congresso Nacional. Supomos que a futura lei traga as seguintes alterações: i) nas
formalidades do testamento: exigindo seis testemunhas para a validade do ato, ao passo
que a presente lei exige apenas cinco testemunhas, art. 1.632, inciso I, do C.C. (na
realidade o Projeto do Novo Código Civil exige apenas duas testemunhas no testamento
público, mas para efeitos didáticos usaremos o presente exemplo fictício); ii) na
legítima dos herdeiros necessários, estendendo esse rol, incluindo o cônjuge
sobrevivente, independente do regime de bens, alterando, pois, o atual art. 1721 do C.C,
mas deixando intacto o art. 1572 do C.C. (que cuida do direito da saisine). No
testamento lavrado segundo a sistemática do atual Código Civil, em conformidade com
os arts. 1.626/1637 e 1664/1769 do C.C., "A", casado no regime da separação total de
bens com "C", contempla "B", seu amigo até as últimas horas, com a totalidade de seus
bens, nada dispondo para "C" sua legítima esposa. Após dez meses da elaboração do
testamento de "A" o Novo Código Civil é finalmente aprovado, entrando em vigor
imediatamente. Passado mais dois meses o testador vem a falecer. O falecimento do
testador ocorre depois de um ano da elaboração do seu primeiro e único testamento, mas
já em vigor há dois meses o Novo Código Civil. Indaga-se: 1º) O testamento é válido ?;
2º) Na ocasião da morte do testador somente "C", o cônjuge sobrevivente, encontra-se
vivo dentro do novo rol dos herdeiros necessários (inexistindo ascendentes ou
descendentes vivos do de cujus), preceituando o Novo Código Civil que o cônjuge
sobrevivente tem direito à legítima. "B", único herdeiro testamentário, encontra-se vivo.
Tera a viúva "C" direito à legítima segundo a nova lei, não se respeitando a última
vontade do testador, pois contemplou "B" com a totalidade de seus bens ?
Quanto ao 1º) item, a questão repercute sobre os diferentes planos de projeção do ato
jurídico perfeito. Com efeito, trata-se de um ato jurídico perfeito, pois o testamento fora
lavrado e assinado (plano da existência), segundo os requisitos vigentes na época de sua
elaboração (plano da validade), só adquirindo eficácia com a morte do testador. De
qualquer modo o ato jurídico perfeito para ser considerado como tal prescinde do plano
da eficácia. E como ato jurídico perfeito, o testamento, está imune de futuras alterações
legislativas relativas à sua forma. Conclui-se, portanto, que sob o ângulo de forma, o ato
é perfeitamente válido, não havendo que se falar em nulidade do ato, sob o argumento
de que o Novo Código Civil exige seis e não mais cinco testemunhas para se elaborar o
ato.
Já em relação ao 2º) item a questão é mais complexa e deve ser analisada sob a ótica de
fundo, a teor do disposto no art. 1.572 do C.C. (que fora resguardado inteiramente pelo
Novo Código Civil) – que estabelece o direito da "saisine": "Aberta a sucessão, o
domínio e a posse da herança transmitem-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e
testamentários". Assim os bens não ficam em momento algum sem titularidade, até a
morte do de cujus os bens permanecem ligados à sua pessoa, no instante de sua morte
transmite-se os bens aos seus herdeiros legítimos e testamentários, mas tal transmissão
segue o que dispõe a lei em vigor no momento do falecimento do de cujus, lei essa de
ordem pública, não comportando derrogação. Observe que é o fato do mundo real, a
morte do de cujus, que faz incidir o direito, o art. 1.572 do C.C. Logo deve ser regido
pelo direito em vigor nesse momento, incide a máxima tempus regit actum.
Dessa forma, aplica-se a lei nova que alberga o cônjuge sobrevivente como herdeiro
necessário, apesar do testador não contemplá-la em seu testamento. Por força do
princípio da conservação e do art. 1.727 do C.C. o testamento só prevalecerá em relação
à metade dos bens do de cujus – metade disponível – respeitando-se assim a legítima
que pela nova lei contempla também a mulher do de cujus.
Resta inadmissível por parte de "B" (herdeiro testamentário) invocar direito adquirido,
porque antes da morte do testador ele só possuía expectativa de direito, que é uma
probabilidade de adquirir um direito, e como tal não encontra qualquer proteção no
ordenamento jurídico. O fato gerador do direito de "B" foi a morte de "A" que o
contemplou em testamento, porém o regime jurídico aplicável é a lei em vigor no
momento da morte do testador que preserva, por sua vez, a legítima de "C", cônjuge do
de cujus, portanto, herdeira necessária, segundo o disposto no Novo Código Civil.
Arremate-se que o ato jurídico perfeito diz respeito aos requisitos formais do título, o
testamento, não dando azo a direito adquirido para "B". Simplesmente imuniza o ato
contra eventuais futuras exigências de forma, protegendo a validade formal do título,
mas não ensejando eficácia de suas disposições vez que essas estão em
desconformidade com as normas jurídicas no momento de sua subsunção legal –
momento da morte de "B". Ademais, o ato só se projeta legitimamente no plano da
eficácia se anteriormente tenha se projetado nos planos de existência e da validade.
Possuindo apenas parcial validade (metade dos bens vale), em prol do princípio da
conservação do ato, só essa metade irá atingir o plano da eficácia, isto é, somente
metade dos bens do de cujus transmitir-se-á para "B".
II) O próximo exemplo pertine somente ao plano da validade e da eficácia sem sucessão
de leis, mas de situações. Vale frisá-lo em atenção aos fatores de eficácia exigidos pelo
direito positivo como atinentes a cada ato jurídico individualizadamente considerado
para assim operar efeitos jurídicos em relação a terceiros.
Imagine a seguinte situação: "A" tem uma edificação próxima de um belo lago, nas
montanhas, propiciando uma fantástica vista da natureza, porém "B" tem um terreno nu
logo a sua frente e se edificado irá desvirtuar a vista de "A". Por isso "A" procura "B" e
elaboram um singelo contrato consistente numa obrigação de não fazer por parte de "B",
de não construir acima de determinada altura em seu terreno, mediante uma
contraprestação em pecúnia por parte de "A". Tanto "B" como "A" são solteiros. Ambos
assinam e cumprem o contrato, nada mais se operando. Um ano mais tarde, "B" vende
seu terreno para "C", através de uma venda pura e simples sem nada mencionar a
respeito do contrato que fizera com "A". "C" registra a escritura pública de compra do
imóvel e, em seguida, começa a construir um elegante chalé no terreno. "B"
inconformado tenta embargar (a rigor trata-se de ação de nunciação de obra nova, art.
934, inciso I, do C.P.C.) a obra, indaga-se: "B" tem direito adquirido consistente em
impedir a construção de "C" ? A resposta vai depender dos efeitos do contrato que "A"
fizera com "B". Como sabido os contratos são pessoais, obrigam tão somente os
contratantes que nele intervieram, consoante o princípio da relatividade dos efeitos do
contrato. Em princípio terceiros não se submetem a relação contratual, a não ser que a
lei o imponha ou a própria pessoa assim consinta. Portanto, se o contrato fora apenas
entre os contraentes "A" e "B", para "C" tal contrato representa res inter alios, não
opera, pois, efeitos jurídicos em relação a "C", ainda que esse compre o imóvel de "B",
pois são relações jurídicas autônomas e distintas. Em síntese, se o contrato for pessoal,
pois assim se presume sendo a regra, só vincula "A" e "B". Não havendo que se falar em
direito adquirido de "A", pois esse direito só vincula "B" e mais ninguém. Só se admite
efeitos erga omnes se tratado fosse como direito real, exigindo o registro do referido
contrato no Registro de Imóveis competente, havendo assim a prévia publicidade do ato,
a qual vincula a todos. E tal contrato encontra-se regulado em lei, – trata-se de servidão
predial, arts. 695 e 697 do C.C. - pois se não fosse resguardado em lei não seria direito
real, vez que em sede de direitos reais vige o princípio da tipicidade. Acrescente-se que
a servidão predial de não construir acima de determinada altura, servidão altius non
tollendi, é tida como contínua e não aparente, consiste numa oneração real ao imóvel, e,
como tal se exige escritura pública, a teor do disposto no art. 134, II, do C. C. e outorga
uxória se o proprietário do prédio serviente for casado.
E se "B" consulta um advogado e esse recomenda que se registre o contrato feito entre
"A" e "B", o qual tem firma reconhecida com data anterior a venda do imóvel de "B"
para "C" para assim embargar a construção do chalé de "C", isso é possível ? Evidente
que não. Primeiramente o título não seria aceito pelo Oficial de Registros Públicos, vez
que não fora lavrado por escritura pública (art. 134, II, do C. C.). E ainda que fosse,
estaria se usurpando os princípios da continuidade e da prioridade do registro
imobiliário inerentes ao sistema registrário brasileiro, positivado respectivamente nos
arts. 195 e 182/186 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), além do próprio
princípio da segurança jurídica, pois o registro público confere publicidade e presunção
de que todos têm conhecimento do direito real evidentemente só a partir do registro.
Ademais, conforme estipula o art. 676 do C.C., a eficácia dos registros em nosso
sistema é, via de regra, constitutiva (só produz efeitos ex nunc, isto é, a partir do registro
independentemente da data expressa no título) para os atos de oneração e transmissão de
direitos reais inter vivos. A eficácia declaratória dos registros restringe-se às aquisições
originárias (usucapião) e causa mortis devido nesse último caso a saisine. Só teria os
efeitos almejados pelo advogado de "B" se "C" ainda não tivesse registrado a escritura
pública de compra do imóvel, daí sim "B" poderia registrar o contrato, pois aqueles
princípios atuariam seu favor nessa hipótese.
As mesmas regras aplicariam, mutatis mutandis se fosse "A" quem vendesse seu imóvel
para um terceiro, sem registrar previamente o contrato que fizera com "B". Nesse caso
inexistindo o registro, inexiste servidão predial, e o próprio "B" poderia edificar acima
da altura antes convencionada com "A", pois fizera o contrato apenas com esse e não
com terceiros.
Várias outras situações jurídicas assemelham-se com o exemplo acima, como por
exemplo a situação do locatário que no curso do contrato por prazo determinado e com
cláusula de vigência no caso de alienação da coisa locada, é obrigado a se retirar do
imóvel se esse for alienado a um terceiro, não obstante o contrato que fizera com o
antigo proprietário. Só poderá opor a eficácia desse contrato ao novo proprietário se o
contrato de locação contiver a aludida cláusula, estiver dentro do prazo em curso e
previamente averbado no Registro de Imóvel competente, segundo o disposto no art.
167, I nº 3) da Lei de Registros Públicos. Sem o registro do contrato de locação com
esses requisitos inexiste direito adquirido para o locatário oponível erga omnes. Destarte
o registro representa um fator de eficácia perante terceiros, vez que através desse há
uma ficção legal consistente na presunção de que todos têm conhecimento do contrato, e
por conseqüência é oponível erga omnes.
Tomamos como pressuposto que quando o Estado atua através de suas ramificações
privadas – sociedade de economia mista, empresas públicas e fundações (criadas
segundo o Código Civil) – age como particular, art. 173, § 1º, inc. II, da C. F. Quando
atua através de suas pessoas jurídicas de direito público age como ente soberano
(relação vertical Estado versus indivíduo, dotado de potestade), submetido portanto ao
regime publicístico, salvo se praticar atos essencialmente de direito privado como uma
compra e venda. Nesse último caso, referente a exceção, e no primeiro caso surgem o
direito adquirido tal qual abordamos acima, isto é, conforme o regime de direito privado
sem maiores especificidades. Já a abordagem que desenhamos a respeito do ato jurídico
perfeito, em virtude da sua natureza que diz respeito aos requisitos de forma do ato,
observada as considerações acima, deve sempre ser respeitada pelo Estado
independentemente da seara em que atuar. Posto isso, arriscaremos algumas linhas de
abordagem sobre o tema do direito adquirido no campo do direito público.
Antes de mais nada deve-se ter em foco o regime jurídico que rege o ato, se se tratar de
um ato precário, como uma autorização, advinda de atos discricionários – os quais se
pautam por critérios de conveniência e oportunidade do agente administrativo, baseados
nos princípios constitucionais e no interesse público – inexiste qualquer direito de
permanência daquela situação pelo particular, não tendo direito sequer à indenização se
cassado o ato. Ex: autorização de porte de arma ou de caça. Já em relação aos atos
vinculados, o agente administrativo atua vinculado aos critérios minuciados na lei, sem
margem de liberdade na escolha dos atos, pois a lei o vincula se presentes tais critérios a
praticar o ato e se ausentes a não pratica-lo. Nesses atos se o particular gozar
regularmente de determinada vantagem chancelada pela Administração, essa só poderá
cassá-lo se houver motivos legítimos, isto é, se provier mudança no interesse público,
quer seja por alteração fática, social ou até mesmo política, desde que fundada no
interesse público, pois o agente administrativo sempre atua em busca do interesse
público e não pessoal – não se tolerando desvio de finalidade - mediante indenização ao
particular, como forma de recompor seus prejuízos. Eis o que ocorre, grosso modo, em
sede de supressão dos atos administrativos. Toda pretensão contra a Administração
Pública transforma-se em indenização, vez que o particular sempre cede aos interesses
da Administração, pois são, em tese, públicos (de todos), e, como tal, superiores ao do
particular.
A questão do direito adquirido também na seara pública deve ser apreciada sob a forma
de incorporação desse direito ao patrimônio do cidadão. A dificuldade é estabelecer
quando é possível essa incorporação, pois na maioria das vezes, os bens e interesses
públicos que dão supedâneo ao direito do particular são indisponíveis. Logo
insuscetíveis de incorporação. Celso Bastos doutrina que só surgirá direito adquirido
quando a própria lei preceituar tal incorporação, ou usar terminologia que conclua nesse
sentido. O ilustre constitucionalista invoca também o critério teleológico de
interpretação, com base no isolamento de tais fatos pela norma, contrapondo-se ao
interesse de perdurabilidade do direito do particular e do próprio Estado ao legislar
concedendo um direito ao cidadão se ele preencher determinados requisitos elencados
na lei, denotando franco propósito de permanência e solidez daquele direito. Nesse
sentido, traçado está as estruturas do direito adquirido e como tal deve ser tratado.
Celso Antônio Bandeira de Mello também analisa essa problemática do direito público,
acrescentando científico e interessante critério, já adotado pela doutrina estrangeira.
Diferencia a situação jurídica (que é o complexo de direitos e deveres da pessoa) do
titular em geral ou impessoal, também denominada estatutária ou objetiva, da situação
jurídica individual ou subjetiva. Em relação a primeira " o conteúdo é o mesmo para
todos os indivíduos que delas são titulares, pois tal conteúdo é determinado por
disposição geral, lei ou ato normativo,...a aplicação das situações gerais aos indivíduos
depende da ocorrência de um fato ou de algum ato distintivo daquele que o gerou...Esse
fato jurídico simplesmente investe alguém em uma situação jurídica geral...Esse evento
é que incorporará ao sujeito a situação geral...pois o evento desencadeia o conjunto de
direitos e deveres que perfazem a situação jurídica de alguém...e por meio dele não se
cria direito novo...apenas implanta-se o necessário a fim de que um quadro normativo já
existente passe a vigorar em relação ao sujeito ou sujeitos. Seu alcance material é
precisamente este: inserir alguém no campo de incidência de um ato-geral. O ato
condição não cria situação subjetiva: tão só determina a incidência de uma situação
geral e objetiva sobre alguém que destarte ingressa em regime comum aos demais
indivíduos colhidos sobre essa situação geral. Por exemplo: o ato de aceitar cargo
público acarreta a inserção do sujeito na situação geral de funcionário, situação que é a
mesma para os funcionários em geral. (...)
Nesse sentido conclui o administrativista com os seguintes exemplos: " Teria sentido
alguém pretender opor à alteração das regras do imposto de renda, argüindo direito
adquirido àquelas normas que vigiam à época em que se tornou contribuinte pela
primeira vez ? " – referindo-se a mutabilidade das situações gerais, pois via de regra, as
alterações das normas jurídicas que regulam essa situação colhem de imediato os
sujeitos inclusos nas situações jurídicas gerais modificadas.
Por derradeiro, o art. 5º, XL, da C.F. afirma que a lei penal não retroagirá, salvo para
beneficiar o réu. Admite-se, pois, a retroatividade da lei benéfica, chamada lex mitior.
Perfilhamos o entendimento que esse dispositivo constitucional tem acepção ampla,
acolhendo também comportamentos tidos como ilícitos por norma punitiva
administrativa. Assim, se determinada lei pune, com uma sanção qualquer, quem
derrubar ou abater madeira com diâmetro menor que 55 cm. e se lei posterior diminuir
para 50 cm. o mínimo legal, tal lei deve retroagir para beneficiar aquele que cortou
madeira com 50 cm ou mais de diâmetro. O mesmo aplica-se em relação a mudanças
benéficas para o contribuinte ou responsável tributário, mas somente se se tratar de
infrações a obrigações tributárias acessórias. Não se estende evidentemente às
obrigações tributárias principais. Além disso, só retroage se o ato não fora totalmente
executado – preserva-se situações ocorridas no passado e já exauridas – se a Fazenda
Pública já executou o crédito e recebeu do contribuinte, com o advento posterior da lei
mais benéfica tal situação não se reverte.
Notas
1.DINIZ, Maria Helena, Lei de Introdução ao Código Civil Interpretada. 5ª edição, São
Paulo Saraiva, 1999, p. 03.
6.BASTOS, Celso, Comentários à Constituição do Brasil, São Paulo, Saraiva, 1989, v.2,
p. 192 e 198.
8.BARROS, Flávio Augusto Monteiro de, Direito penal, parte geral, vol. 01, São Paulo,
Saraiva, 1999, p. 44.
9.Idem, ibidem, p. 44
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