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2. Em primeiro lugar, gostaria de felicitá-los pela Pontifícia Academia das Ciências por ter
escolhido, para a sua sessão plenária, um problema muito importante e atual: a
emergência da complexidade em matemática, física e química e na biologia. O emergir do
tema da complexidade provavelmente marca um estágio importante na história das
ciências da natureza, uma etapa tão importante quanto aquela à qual o nome de Galileu
está vinculado, quando parecia dever-se impor um padrão de ordem único. A
complexidade indica precisamente que, para dar conta da riqueza da realidade, é
necessário recorrer a uma pluralidade de modelos. Esta observação levanta uma questão
que diz respeito aos homens de ciência, filósofos e teólogos: como conciliar a explicação
do mundo – e isso, do nível das entidades e dos fenômenos elementares – com o
reconhecimento do fato de que “o todo é mais do que a soma das partes”?
No esforço de uma descrição rigorosa e de formalização dos dados da
experiência, o homem de ciência é levado a recorrer a conceitos meta-científicos, cujo uso
é conforme exigido pela lógica de seu processo. Convém precisar com exatidão a
natureza desses conceitos, para evitar extrapolações indevidas que liguem as descobertas
estritamente científicas a uma visão de mundo ou afirmações ideológicas ou filosóficas
que não sejam corolários. Aqui está a importância da filosofia que considera fenômenos,
bem como sua interpretação.
5. Uma dupla questão está no cerne do debate, do qual Galileu foi o centro. A primeira é
ordem epistemológica e diz respeito à hermenêutica bíblica. A este respeito, dois pontos
têm de ser tomados. Em primeiro lugar, como a maioria dos seus adversários, Galileu não
faz distinção entre o que é a abordagem científica dos fenômenos naturais e a reflexão
sobre a natureza, de ordem filosófica, que geralmente invoca. É por isso que ele recusou
a sugestão que a ele havia sido apresentada como uma hipótese para o sistema de
Copérnico, ainda que não tivesse sido confirmada por evidências irrefutáveis. Essa era,
além disso, uma necessidade do método experimental do qual ele era o genial iniciador.
Além disso, a representação geocêntrica do mundo foi comumente aceita na cultura do
tempo como totalmente alinhada com o ensino da Bíblia, em que algumas expressões,
tratadas literalmente, pareciam ser afirmações do geocentrismo. O problema que os
teólogos da época se colocavam era aquele da compatibilidade entre o heliocentrismo e as
Escrituras. Assim, a nova ciência, com seus métodos e a liberdade de pesquisa que eles
supõem, obrigou os teólogos a questionar seus critérios de interpretação da Escritura. A
maior parte deles não soube como fazê-lo. Paradoxalmente, Galileu, sincero crente,
mostrou-se neste ponto mais perspicaz de que seus oponentes teólogos. “Se a Escritura
não pode errar”, ele escreve para Benedetto Castelli, “ela pode, no entanto, confundir
alguns de seus intérpretes e expositores de várias maneiras” (“Carta de 21 de dezembro
de 1613”, Edizione nazionale delle Opere di Galileo Galilei, dir. A. Favaro, riedizione del 1968,
vol. V, p. 282). Conhece-se também sua carta a Cristina de Lorena (1615), a qual é como
um pequeno tratado de hermenêutica bíblica (Ivi, pp. 307-348).
7. A crise que acabei de evocar não é o único fator que teve impacto na interpretação da
Bíblia. Nós tocamos aqui o segundo aspecto do problema, o aspecto pastoral. Em virtude
de sua missão, a Igreja tem o dever de estar atenta à incidência pastoral de sua palavra.
Seja claro, antes de tudo, que esta palavra deve corresponder à verdade. Mas se trata saber
como considerar um novo dado científico quando parece contrariar as verdades da fé. O
julgamento pastoral exigido pela teoria copernicana era difícil de expressar, na medida em
que o geocentrismo parecia ser parte do próprio ensino da Escritura. Teria sido
necessário, ao mesmo tempo, conquistar os hábitos de pensamento e inventar uma
pedagogia capaz de esclarecer o povo de Deus. Digamos, de modo geral, que o pastor
deve estar pronto para uma autêntica audácia, evitando a dupla via de atitude incerta e
julgamento precipitado, o que pode fazer muito mal.
8. Pode ser evocada aqui uma crise semelhante àquela de que falamos. No século passado
e no início do nosso, o avanço das ciências históricas nos permitiu adquirir novos
conhecimentos da Bíblia e do ambiente bíblico. O contexto racionalista em que, no mais
das vezes, as aquisições foram apresentadas pôde fazê-las parecerem ruinosas para a fé
cristã. Certamente, preocupados em defender a fé, alguns teólogos pensaram que
deveriam ser rejeitadas as conclusões históricas seriamente fundamentadas. Foi uma
decisão precipitada e infeliz. A obra de um pioneiro como o Padre Lagrange foi capaz de
fazer os discernimentos necessários com base em critérios seguros. Devemos repetir aqui
o que eu disse acima. É um dever para os teólogos serem regularmente informados sobre
as aquisições científicas para examinar, se necessário, a possibilidade ou não de considerá-
los em sua reflexão ou fazer revisões em seus ensinamentos.
10. Desde o Século das Luzes até nossos dias, o caso Galileu tem sido uma espécie de
mito, na qual a imagem dos eventos que foram construídos estava longe da realidade.
Nesta perspectiva, o caso de Galileu era o símbolo da suposta negação pela Igreja do
progresso científico, ou do obscurantismo “dogmático” oposto à livre busca da verdade.
Este mito desempenhou um papel cultural considerável; contribuiu para ancorar muitos
homens da ciência de boa fé à ideia de que havia incompatibilidade entre o espírito da
ciência e sua ética de pesquisa, por um lado, e a fé cristã, por outro. Um trágico mal-
entendido mútuo foi interpretado como o reflexo de uma oposição constitutiva entre
ciência e fé. Os esclarecimentos feitos por estudos históricos recentes nos permitem dizer
que esse mal-entendido doloroso pertence ao passado.
11. Do caso Galileu, é possível tirar uma lição que permanece atual em relação a situações
semelhantes que ocorrem hoje e podem ocorrer no futuro. Na época de Galileu, era
inconcebível representar um mundo que fosse desprovido de um ponto de referência
físico absoluto. E como o cosmos que se conhecia era, por assim dizer, contido apenas
no sistema solar, só se poderia localizar este ponto de referência na Terra ou no Sol.
Hoje, depois de Einstein e sob a perspectiva da cosmologia contemporânea, nenhum
desses dois pontos de referência diz respeito à importância que ele tinha naquele
momento. Esta observação, é claro, não diz respeito à validade da posição da Galileu no
debate; prefere indicar que muitas vezes, além de duas visões parciais e contrastantes, há
uma visão mais ampla que inclui e as excede.
12. Outra lição que se tira é o fato de que as diversas disciplinas do saber exigem uma
diversidade de métodos. Galileu, que praticamente inventou o método experimental,
entendeu, com sua intuição de físico genial e apoiando-se em diversos argumentos, que
apenas o Sol poderia servir como o centro do mundo, como então era entendido, como
um sistema planetário. O erro dos teólogos daquele tempo, em apoiar a centralidade da
Terra, era pensar que nosso conhecimento da estrutura do mundo físico era, de certa
forma, imposto pelo significado literal da Sagrada Escritura. Mas é necessário recordar o
famoso julgamento atribuído a Baronius: “Spiritui Sancto mentem fuisse nos docere quomodo ad
coelum eatur, non quomodo coelum gradiatur.” Na verdade, a Escritura não lida com os detalhes
do mundo físico, cujo conhecimento é confiado à experiência e ao raciocínio humano.
Existem dois campos de saber, aquele que tem sua fonte na Revelação e aquele que a
razão pode descobrir apenas com suas forças. Este último pertence às ciências
experimentais e à filosofia. A distinção entre os dois campos do saber não deve ser
entendida como uma oposição. Os dois setores não são totalmente estranhos um ao
outro, mas têm pontos de encontro. As metodologias próprias de cada um permitem
destacar diferentes aspectos da realidade.
13. A vossa Academia leva adiante seus trabalhos com tal atitude de espírito. Sua tarefa
principal é promover o desenvolvimento dos conhecimentos de acordo com a legítima
autonomia da ciência (Concilio Vaticano II, Cost. past. Gaudium et spes, 36, 2), que a Sé
Apostólica reconhece explicitamente nos Estatutos da sua instituição. Aquilo que importa
é, em uma teoria científica ou filosófica, antes de tudo, é verdade, ou pelo menos que seja
séria e firmemente fundada. E o fim da Academia é precisamente discernir e divulgar, no
estado atual da ciência e em seu próprio campo, aquilo que pode ser considerado como
uma verdade adquirida ou, pelo menos, dotada de tal probabilidade que seria imprudente
e irracional rejeitá-la. Desta forma, poderão ser evitados conflitos desnecessários.
A seriedade da informação científica será, portanto, a melhor contribuição que a
Academia poderá fazer para a formulação exata e solução dos problemas angustiantes que
a Igreja, em virtude de sua missão específica, tem o dever de prestar atenção: problemas
que não dizem respeito mais do que apenas astronomia, física e matemática, mas também
disciplinas relativamente novas como a biologia e a biogenética. Muitas descobertas
científicas recentes e suas possíveis aplicações têm uma incidência mais do que nunca
dirigida ao próprio homem, seu pensamento e suas ações até o ponto em que parece
ameaçar os próprios alicerces da humanidade.