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dossier: multiculturalidade 45

A saúde dos imigrantes


em Portugal
Paulo Estrela*

RESUMO
Objectivo: Este artigo propõe-se apresentar os principais problemas de saúde de populações culturalmente distintas em Por-
tugal: trabalhadores imigrantes e as suas famílias, no contexto da prestação de cuidados de saúde.
Métodos: Foi consultada literatura de referência e artigos na Medline e Google, para além de um trabalho efectuado pelo au-
tor, referentes aos problemas de saúde dos imigrantes, bem como ao modo como acedem e utilizam os serviços de saúde. A
pesquisa incidiu sobre artigos publicados nos últimos oito anos em língua inglesa, francesa, espanhola e portuguesa.
Conclusões: A evidência mostra que os imigrantes, frequentemente, têm grande dificuldade em aceder e usar os serviços de
saúde disponíveis, o que os torna num grupo de risco acrescido. Revela, igualmente, que os problemas de saúde, na população
imigrante, resultam de condições físicas, psicológicas e, talvez mais importante que as anteriores, de condições sociais, que po-
tenciam o risco de adoecer.
Prestar cuidados à população imigrante pressupõe, não apenas reduzir os factores de risco e tratar a doença, mas, igualmente,
promover o suporte social necessário tanto a estes doentes como às suas famílias, de modo a que, efectivamente, se consigam
eliminar as disparidades encontradas quando se comparam os cuidados de saúde prestados a estas populações com os dis-
pensados à população autóctone. Deste modo, a melhor estratégia será a combinação de medidas que permitam, não apenas
reduzir as consequências da estigmatização e exclusão sociais desta população, fornecendo informação sobre as suas caraterís-
ticas culturais, as suas crenças e os seus valores, mas também a detecção e tratamento precoce dos seus problemas de saúde
e a promoção da educação para a saúde, através de programas que estimulem a aquisição de estilos de vida saudáveis, espe-
cialmente nos grupos etários mais jovens. Da mesma forma, a utilização de intérpretes, ou de mediadores culturais, servirá para
ultrapassar as barreiras linguísticas, permitindo uma melhor comunicação e relação entre médico e doente. Por fim, em virtude
do desconhecimento, pelos profissionais de saúde, dos padrões culturais e das necessidades específicas destas populações, tor-
na-se necessário que os médicos de família sejam sujeitos a um treino específico que os sensibilize para as diferenças culturais,
para ultrapassarem estereótipos e obterem informação e competências na comunicação intercultural, que se reflictam na qual-
idade de cuidados prestados a esta população.

Palavras-Chave: Imigrantes; Cuidados de Saúde; Problemas de Saúde.

INTRODUÇÃO ciadas a estes grupos, podendo condicionar, nos pro-


aumento da presença de imigrantes, em fissionais de saúde, atitudes e comportamentos desa-

O território português, conduziu a um con-


tacto mais frequente dos profissionais de
saúde com estas populações, culturalmen-
te distintas, e que apresentam expectativas diferentes
em relação à prestação de cuidados de saúde. Esta si-
justados em relação a estes indivíduos.
Por outro lado, o acto de imigrar constitui, só por si,
um fenómeno gerador de grande stress. O que coloca,
desde logo, os imigrantes e suas famílias em situação
de vulnerabilidade acrescida quando comparados com
tuação deu origem a problemas que, até então, nunca outros sectores da sociedade. Esta condição tenderá a
se tinham verificado, para o que muito contribuiu o agravar-se ao longo do tempo de permanência, no país
modo como está organizado o sistema de saúde portu- receptor, já que irão ser sujeitos a condições de vida que
guês, bem como o desconhecimento dos aspectos cul- potenciam o risco de adoecer, tornando-os utilizado-
turais e as representações sociais estereotipadas asso- res potenciais, ou regulares, do Serviço Nacional de Saú-
de português.
*Chefe de serviço de Medicina Geral e Familiar, Centro de Saúde de Loures Neste artigo pretende-se apresentar as principais di-

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ficuldades, vividas por estes grupos, no acesso a cuida- mitido acederem aos serviços em situação de urgên-
dos de saúde, bem como os principais problemas de cia/emergência ou em casos específicos: vacinação, vi-
saúde com que se confrontam. gilância de saúde infantil e de saúde materna e trata-
mento de doenças infecciosas que constituam perigo
UTILIZAÇÃO DOS SERVIÇOS DE SAÚDE para a saúde pública. O acesso é, sobretudo, mais difí-
PELA POPULAÇÃO IMIGRANTE cil, no seguimento posterior à resolução das situações
De um modo geral, os imigrantes têm problemas de mais urgentes.2
saúde e necessitam de cuidados como todos os indiví- Contudo, os comportamentos perante os serviços
duos, mas a evidência mostra que, frequentemente, es- de saúde dependem, igualmente, de factores que po-
tes indivíduos têm grande dificuldade em aceder e usar dem favorecer a sua utilização, permitindo-lhes adqui-
os serviços de saúde disponíveis, o que os torna num rir as competências necessárias para ultrapassar as di-
grupo de risco acrescido. ficuldades com que se podem deparar3 (Quadro II).
No entanto, dado que, em Portugal, são escassos os Nalguns casos, os imigrantes recorrem a familiares
trabalhos científicos que abordem este tema, este as- ou amigos bilingues. No entanto, podem surgir cons-
pecto não é completamente conhecido. Aliás, para que trangimentos, tanto no doente como em quem lhe ser-
se possam delinear estratégias adequadas de interven- ve de intérprete, ou ser, mesmo, contraproducente, de-
ção em saúde nestas populações, será necessário que vido às relações de poder que estão geralmente presen-
se proceda a estudos de base populacional que identi- tes. O mesmo pode acontecer por interpretação defi-
fiquem, para além dos principais problemas de saúde, ciente do que lhes foi transmitido, resultante de
os determinantes do seu estado de saúde e as formas confusões linguísticas ou das próprias opiniões do in-
de responder às suas necessidades.1 térprete, fruto das suas crenças e representações de
Recorrendo, igualmente, à literatura internacional, saúde e do desconhecimento das características da me-
encontram-se vários factores que concorrem para o dicina ocidental.2,5
modo como os imigrantes se servem dos serviços de No caso dos imigrantes oriundos dos países euro-
saúde disponíveis, condicionando, pela negativa, a sua peus extra-comunitários, que possuem níveis de litera-
utilização2,3,4 (Quadro I). cia suficientes para utilizarem os recursos de saúde exis-
No caso específico da clandestinidade, só lhes é per- tentes, são a falta de domínio da língua portuguesa,
bem como a condição de clandestino (em que muitos
se encontram), que condicionam a utilização dos ser-
viços apenas em situação de urgência. Nas restantes si-
QUADRO I. Factores que dificultam a utilização tuações, recorrem à Farmácia ou a outros imigrantes
dos serviços de saúde pelos imigrantes
que sabem ter formação na área da saúde (adquirida
nos seus países de origem), estejam eles autorizados, ou
• Desconhecimento das formalidades burocráticas
não, a exercer a sua profissão em Portugal.2,6
(por falta de informação)
• Dificuldade na compreensão/utilização da língua do país
anfitrião (para ultrapassar as formalidades administrativas)
• Ausência de indivíduos com competências na área da QUADRO II. Factores que favorecem a utilização dos
língua materna destas populações para servirem de serviços de saúde pelos imigrantes
mediadores (para melhorar a comunicação com os
técnicos de saúde) • Elevado nível de escolaridade/qualificação profissional
• Falta de hábitos de utilização de serviços de saúde • Elevado estatuto socioeconómico
(porque inexistentes, escassos ou de má qualidade no • Posição geográfica do país de origem
país de origem) • Existência de relações históricas entre os países de origem
• Estabelecimento de uma má relação interpessoal com os e de acolhimento
profissionais de saúde (por dificuldades de comunicação) • Tempo de permanência mais elevado no país anfitrião
• Situação de clandestinidade (por temor de ser denunciado) • Maior grau de integração no país receptor
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À medida que a permanência no país se prolonga no co-socio-cultural permitir-lhes-ia perceber a impor-


tempo, ou obtêm a legalização, todas as comunidades, tância do contexto sociocultural na interpretação que
independentemente da sua origem étnica, se tornam cada indivíduo tem da doença, nas expectativas que
mais utilizadoras dos serviços de saúde.2,5 Porém, pe- tem em relação à actuação dos serviços e dos profissio-
rante uma situação de doença mais arrastada ou de nais de saúde e no modo como acede aos cuidados de
causa indefinida, recorrem aos serviços de saúde no saúde. Os profissionais dos Cuidados de Saúde Primá-
seu país de origem, devido ao maior conhecimento que rios, pela globalidade e continuidade dos cuidados que
detêm sobre o seu modo de funcionamento ou à maior prestam e pela maior proximidade em relação às popu-
confiança que depositam nos seus profissionais, ou lações, são os que reúnem melhores condições para
porque os serviços de saúde são gratuitos. Outros ain- implementar este modelo de actuação, já que se pode-
da, como os originários do sub-continente indiano mas rão aperceber mais facilmente das interacções comple-
também alguns africanos, procuram os serviços de saú- xas existentes entre os componentes físico, psicológi-
de de outros países comunitários (geralmente Reino co e social da doença e da importância que os aspectos
Unido, França, Holanda, Alemanha), alojando-se em culturais têm nas atitudes e comportamentos dos indi-
casa de familiares. víduos, como resposta à sua situação de saúde ou de
Pelo facto dos primeiros imigrantes a chegarem ao doença.5
país provirem dos antigos territórios ultramarinos, es-
tabelecendo níveis de comunicação razoáveis com as PROBLEMAS DE SAÚDE COMUNS NAS
comunidades autóctones, não se tinha feito sentir a ne- COMUNIDADES IMIGRANTES
cessidade de implementar as medidas necessárias à Saúde Materna
aquisição de um nível aceitável de competências lin- Nas sociedades de origem dos imigrantes, sobretudo
guísticas, não apenas às crianças e jovens destas popu- africanos e asiáticos, o papel da mulher está ainda mui-
lações mas, de igual forma, aos adultos.7 to centrado na maternidade e o seu estatuto na família
Mas a posterior entrada, em Portugal, de imigrantes muito dependente da sua capacidade de produzir fi-
provenientes de regiões onde não se fala português de- lhos. Como tal, o início da vida reprodutiva ocorre em
terminou a necessidade premente de se ensinar a lín- idades mais precoces, tornando a gravidez na adoles-
gua portuguesa a estes indivíduos, de modo a poderem cência uma situação muito comum e tradicionalmen-
ultrapassar este obstáculo na comunicação interpes- te aceite nestas comunidades.2,5
soal e a promover a sua participação efectiva na socie- Estas gestações em idade precoce, ou avançada
dade. (muitas vezes como resultado da reunificação familiar),
Porque os profissionais de saúde, em Portugal, não concorrem para a manutenção de uma maior natalida-
possuem formação específica na área da multicultura- de nas famílias de imigrantes de primeira e segunda
lidade, tendem a responder de forma inadequada às si- geração, a exemplo do que acontece nos países de ori-
tuações que se lhes deparam, decorrentes da heteroge- gem. Contudo, as profundas transformações sociais a
neidade na composição cultural e étnica das popula- que as mulheres são submetidas, durante a permanên-
ções a que prestam cuidados.4,5 cia no país de acolhimento, geram novas vulnerabilida-
Para uma actuação apropriada a estas característi- des e condicionam o modo e a qualidade dos cuidados
cas, necessitariam de aprender a integrar os factores que podem prestar aos filhos, pelo que a taxa de nata-
culturais na definição dos estados de saúde e de doen- lidade das gerações seguintes, destas comunidades, vai
ça, já que estes condicionam fortemente as atitudes e diminuindo, aproximando-se, progressivamente, da
os comportamentos dos indivíduos. Os próprios com- das populações autóctones.5,7
portamentos adoptados pelos indivíduos como respos- Devido à idade das gestantes existe um aumento do
ta à sensação de doença, (sickness ou sick-role dos au- risco materno-fetal, para o que também contribui o
tores anglo-saxónicos) são condicionados, de modo facto de poderem ser portadoras de patologia prévia
muito significativo, pelos seus contextos sociocultu- comum nos seus países de origem, como anemia, mal-
rais. Assim, a actuação com base num modelo bio-psi- nutrição, hemoglobinopatias, infecções sexualmente

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transmitidas ou parasitoses raras nos países de acolhi- do país de acolhimento. Não dispondo das referências
mento. Para além disto, existe a percepção que estas nem da experiência de como cuidar de crianças, não
mulheres solicitam e recebem menos cuidados de saú- descobrem, em si próprias, recursos para esta função,
de durante e após a gravidez.2 e também não são capazes de se socorrerem dos apoi-
os institucionais (sociais ou de saúde) do país onde re-
Saúde da Criança sidem.9 «São mães deprimidas que abandonam psico-
Após o nascimento, no que respeita aos cuidados que logicamente os filhos, desenvolvendo com eles formas de
são dispensados à criança, constata-se que, nas situa- interacção mais pobres, investindo menos na sua saúde,
ções em que a coesão do grupo familiar imigrante é fra- faltando às consultas, não cumprindo os planos de va-
ca ou existe uma rotura evidente com as tradições do cinação, o que pode conduzir a graves problemas de saú-
país de origem, as referências às práticas tradicionais de, tanto físicos como psicológicos, para estas crianças»
de educação e de prestação de cuidados às crianças es- (Ramos citada por Soares, 2003:100).5
tão muito atenuadas. Se, a isto, acrescer o facto de não Já nos casos em que as mães foram educadas de for-
terem sido ainda integrados, eficazmente, os aspectos ma tradicional, ou iniciadas nas práticas dos cuidados
culturais do modelo da sociedade de acolhimento, exis- às crianças no seio das suas famílias, ou em contacto
te a possibilidade de se gerar uma grande ansiedade e com outras mulheres da sua comunidade, assiste-se a
insegurança nos comportamentos das mães, podendo uma aliança harmoniosa entre as práticas tradicionais
verificar-se que «…um número importante de mães tem e os comportamentos modernos, adquiridos no país
dificuldade em encontrar e desempenhar com ‘seguran- de residência. Geralmente, só os comportamentos ex-
ça’ os gestos necessários a prestar aos seus filhos, dividi- teriores são modificados, mantendo-se os ligados às
das entre o saber e hábitos tradicionais de educação, tradições de origem: práticas mágico-religiosas, postu-
transmitidos no seio das suas famílias, de geração em ge- ra, gestualidade, memória quinestésica do corpo, que
ração, considerados como ‘ultrapassados’, e as práticas continuam a ser utilizadas dentro de casa.9
ditas ‘modernas’ que lhes são sugeridas ou impostas… Mais tarde, sobrecarregadas pelas suas múltiplas ta-
quando a mãe se encontra insegura e em conflito quan- refas profissionais e domésticas e dispondo de pouco
to aos comportamentos e práticas a adoptar, a ansieda- tempo para dedicar aos filhos, acabam por permitir que
de que daí resulta não deixará de ter influência na sua o convívio familiar seja substituído pela televisão ou
relação com a criança e no desenvolvimento da sua per- pelo meio extra-familiar, passando estes a constituir os
sonalidade» (Ramos, 1990:321).8 referenciais principais no desenvolvimento psico-social
Nesta situação de vulnerabilidade acrescida, a pres- das crianças. Esta situação é grave, porquanto se sabe
tação de cuidados à criança e as práticas educativas que é a família que representa o espaço sociocultural
passam a ser definidas pelos técnicos de saúde, e pela natural, e de eleição, para a construção da identidade
pressão do modelo cultural da sociedade receptora. individual e cultural, conferindo-lhe o equilíbrio psico-
Pode ocorrer uma imitação, voluntária e indiscrimina- dinâmico de que necessita e deixando traços marcan-
da, dos gestos e dos comportamentos sugeridos, como tes no indivíduo para o resto da sua vida.9,10
forma de atenuar as diferenças que separam estas mães Por outro lado, também o tipo de arranjos familiares
da população autóctone e promover a sua aceitação, nestas comunidades, com um número significativo de
pondo em causa, ou mesmo abandonando, os saberes famílias reconstruídas ou monoparentais, leva, fre-
tradicionais securizantes das gerações anteriores, con- quentemente, à deserção do papel parental por um dos
duzindo a um conflito intergeracional. A situação será, progenitores, o que pode condicionar dificuldades eco-
ainda, mais grave, caso estas mães sejam muito novas, nómicas, isolamento ou agravamento da situação so-
se encontrem sozinhas, não tenham sido iniciadas nas cial do restante agregado, originando graves situações
práticas tradicionais da sua comunidade ou não te- disfuncionais que irão constituir importantes factores
nham tido ocasião para as treinar, não estejam inseri- de risco na vida futura destas crianças.5
das num determinado tipo de cultura ou apresentem Do mesmo modo, o afastamento geográfico entre as
dificuldade em compreender ou exprimir-se na língua várias gerações, impedindo a coabitação ou os contac-

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tos frequentes entre avós e crianças, priva-as do equi- européens sont malthusiens jusque dans leur rédaction
líbrio emocional que advém dessa convivência. A pre- (…) on n`y trouvera rigoureusement rien concernant la
sença destes avós significaria, ainda, um enorme apoio démographie, la famille et l`enfant (…) L`Europe s`en
para as mães. Ao ajudar a cuidar das crianças e nas ta- désintéresse. Elle ne s`occupe que de la génération pré-
refas domésticas, permitiria aliviá-las de algumas das sente et de leur bien-être immédiat. » Laulun (2001:13)12
suas múltiplas obrigações, ao mesmo tempo que pos- Devido às condições apontadas anteriormente, as
sibilitava a transmissão de práticas culturais e valores crianças de algumas comunidades imigrantes têm
tradicionais aos mais novos (que podem estar pouco fa- maior probabilidade de adoecer com gravidade e de
miliarizados com a cultura de origem da família), faci- necessitarem de internamento hospitalar quando estão
litando o desenvolvimento do sentimento de continui- doentes, e esse internamento estende-se por um perío-
dade familiar e pertença cultural.2,5 do de tempo superior ao que se verifica nas crianças da
Não menos importantes são as condições de vida mesma idade da população autóctone. Como causas
nos locais onde reside a maioria destas crianças, qua- mais habituais são referidas as doenças infecto-conta-
se sempre bairros da periferia das grandes cidades ou giosas, as infecções respiratórias e parasitárias e os aci-
bairros de génese ilegal. Zonas desordenadas, degrada- dentes domésticos, para além dos problemas nutricio-
das e desqualificadas do ponto de vista urbanístico, nais.3,4,5
conduzindo à estigmatização e segregação social e es- Vários factores contribuem para a necessidade de
pacial dos seus habitantes, são marcadas por deficien- actuação em meio hospitalar. Provavelmente, o mais
tes condições de habitabilidade e de vivência social (fal- importante será a dificuldade em assegurar, no domi-
ta de conforto, espaço exíguo, sobrepovoamento con- cílio, as condições necessárias ao correcto tratamento
dicionando promiscuidade e falta de higiene), e graves da patologia em causa, como resultado das deficientes
carências em termos de infra-estruturas e de equipa- condições da habitação, da necessidade das mães man-
mentos sociais de apoio à população residente. Estas terem os seus horários de trabalho habituais (perma-
circunstâncias constituem factores adicionais de dete- necendo a criança sozinha ou entregue a outros meno-
rioração da vida das crianças, influindo negativamen- res) e da dificuldade dos cuidadores compreenderem
te na sua saúde.5,9,11 as instruções que lhes são transmitidas. Por outro lado,
Estes cenários urbanos, desequilibrados e desinte- no momento em que recorrem ao serviço de urgência
gradores, que favorecem o estabelecimento de um cli- a situação clínica reveste-se sempre de maior gravida-
ma de insegurança e de práticas anti-sociais, ou mes- de. Os factores que concorrem para tal estão indicados
mo de criminalidade, são, frequentemente, os únicos de no Quadro III.5
que estas crianças dispõem para a sua socialização, e No que se refere às doenças infecto-contagiosas ou
onde são submetidas às pressões dos seus pares e a ou- parasitárias, elas decorrem, na maioria das vezes, das
tras influências negativas. Porque são estes os contex- deficientes condições de habitabilidade das residên-
tos físicos e sociais em que a criança vive o seu quoti- cias, onde as condições de higiene não são muito fo-
diano, vai sentir maiores dificuldades e entraves à sua mentadas nem muito exequíveis (dada a promiscuida-
futura integração e participação na vida pública do país de e o sobrepovoamento dos espaços exíguos de que
de acolhimento.5,7 dispõem para morar), e da permanência destas crian-
Para minorar o impacto destas condições adversas, ças nos espaços exteriores, durante longos períodos do
deveriam promover-se políticas de alojamento e de re- dia (por vezes sob condições meteorológicas adversas),
abilitação urbanística, bem como políticas sociais que em virtude da ausência prolongada, por motivos labo-
ajudassem as famílias, para que as mães pudessem con- rais, dos seus progenitores, principal razão, também,
ciliar maternidade e trabalho. Mas estas medidas são di- para a ocorrência mais frequente de acidentes domés-
fíceis de implementar devido aos enormes custos so- ticos nestas comunidades.5
ciais e económicos que acarretariam, o que a socieda- Quanto à alimentação verifica-se que, em alguns ca-
de actual não está na disposição de pagar. «C`est, com- sos, existe uma insuficiente ingestão alimentar no ge-
me on va voir, l`euro contre l`enfant (…) les traités ral, mas sobretudo proteica, em consequência dos

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Saúde do Adolescente
QUADRO III. Factores agravantes da situação clínica
Em relação aos jovens descendentes das comunidades
das crianças imigrantes quando doentes em contexto
de urgência imigrantes que já nasceram no país de acolhimento, o
facto de serem colocados perante dois códigos de con-
• Situação socioeconómica desfavorecida do agregado duta, frequentemente contraditórios ou mesmo confli-
familiar tuosos (o que lhes é fornecido pela sociedade anfitriã,
• Indisponibilidade dos adultos para acompanhar, ou não e a que eles se procuram adaptar, e o da sociedade de
valorização dos cuidados preventivos a prestar à criança origem dos seus progenitores, com que são confronta-
(vacinação, consulta de vigilância de saúde) dos na vida familiar), pode levar ao aparecimento de
• Não reconhecimento da gravidade da situação ou efeitos desorganizadores sobre o seu comportamento,
indisponibilidade dos adultos para procurarem cuidados condicionando problemas psíquicos como: sentimen-
curativos em fase precoce de doença tos de insegurança, perda de auto-estima e manifesta-
• Incumprimento/cumprimento parcial de terapêutica
ções depressivas ou de ansiedade.9
instituída anteriormente
Contudo, embora seja altamente provável a ocorrên-
• Incapacidade para ler/compreender instruções fornecidas
cia desta patologia, ela não é, de todo, um fenómeno
em língua portuguesa
inevitável, dependendo dos vários factores em presen-
ça e do tipo de estratégia de adaptação que é adoptado
a nível individual ou familiar. O que introduz, também,
constrangimentos económicos da família, enquanto o conceito de resiliência individual e familiar, já que
noutros se constata uma alimentação desequilibrada, cada família é única no modo como desenvolve as suas
muito rica em snacks açucarados e com alto teor de estratégias de sobrevivência, na sua estrutura norma-
gordura, porque as mães estão ausentes durante todo tiva e comportamental, na capacidade de resposta e de
o dia e não dispõem de outro alimento para deixar decisão de cada um dos seus elementos para resolver
às crianças. Esta alimentação deficiente vai condicio- os problemas que o afecta e no tipo de interacções que
nar défices nutricionais, que conduzem a uma diminui- estabelece com os outros subsistemas sociais. Estes di-
ção do estado imunológico das crianças, contribuindo ferentes comportamentos das famílias vão influenciar
para agravar o seu estado de saúde. A dispensa de os percursos individuais dos seus elementos.2,9,14
refeições escolares, nestas situações, apenas permite Um factor que tem fortes repercussões na estabili-
uma resposta a curto prazo para problemas que são dade e no bem-estar familiar é a alteração que se pode
crónicos.5 verificar nos papéis desempenhados, tradicionalmen-
Outro problema, a que é preciso estar atento, embo- te, pelos vários elementos do agregado familiar, tradu-
ra pouco frequente porque, geralmente, confinado a zida, não raramente, por uma inversão de papéis entre
grupos africanos muçulmanos, é a prática da mutilação pais e filhos.10
genital feminina. Esta prática cultural é atentatória da Com efeito, se é frequente as crianças pequenas te-
saúde e bem-estar físico e psicológico, pondo em risco rem dificuldade na aprendizagem da língua do país de
a saúde sexual e reprodutiva das futuras mulheres, pe- acolhimento, porque continuam a ouvir os seus fami-
las alterações que determina no desejo e satisfação se- liares exprimirem-se na sua língua materna no domi-
xual e pelas complicações obstétricas e morte peri-na- cílio, verifica-se, geralmente, o oposto nos jovens, em
tal. Não deve, contudo, ser dissociada do contexto cul- consequência da maior facilidade na aprendizagem da
tural e ritual que a justifica, enquanto prática inerente língua e da mais rápida adaptação ao novo meio social
à identidade de género, à condição de mulher e ao re- envolvente, fruto das interacções frequentes com jo-
conhecimento social, pois corre-se o risco de, devido à vens autóctones, na escola ou no local de habitação. As
estigmatização social da comunidade que a pratica, competências que desenvolvem permitem-lhes um
esta passar a utilizar um maior secretismo na sua exe- controlo mais efectivo sobre este ambiente duplo, ser-
cução, podendo levar a problemas de saúde ainda mais vindo, habitualmente, como intérpretes, ou ajudando
graves.11,13 os mais velhos nas formalidades burocráticas. Confe-

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rem-lhes, igualmente, aptidões que os tornam mais ca- Noutros casos, consegue arranjar trabalho antes e
pazes para desempenhar certas funções, normalmen- mesmo com remuneração superior à do marido. Apro-
te reservadas aos adultos da família, o que lhes propor- veitando as actividades que lhes estão, tradicionalmen-
ciona uma falsa noção de independência e de desobri- te, reservadas pela sociedade de acolhimento - o traba-
gação em relação ao cumprimento das regras de con- lho doméstico que as introduz nos espaços domésticos
duta vigentes na sua família. Como consequência, das famílias autóctones (confrontando-as com outros
podem surgir graves problemas no seu relacionamen- tipos de relações e modos de vivência familiar) e o tra-
to com os progenitores (sobretudo o pai) que, assim, balho de limpeza, mais fragmentado no tempo e no es-
vêem questionada a sua autoridade no ambiente fami- paço, que lhes proporciona um contacto mais estreito
liar.5,9 com a sociedade envolvente, estabelecem uma rede de
Outra situação que ocorre nestas populações inseri- relações sociais com pessoas de outra condição. Que se-
das numa economia de mercado, em que a satisfação rão utilizadas, no futuro, como relevante fonte de infor-
das necessidades através da aquisição de bens e servi- mação, sempre que necessitarem de aceder a certos
ços é assegurada pelo rendimento da família, é serem bens ou serviços, ou quando for preciso ultrapassar al-
os jovens quem mais reage às campanhas publicitárias, gum obstáculo que se coloque a algum elemento do
que incitam ao consumo desenfreado, como marca de agregado familiar, o que as transforma em importantes
prestígio social e de sucesso. Em famílias caracteriza- mediadoras em relação a problemas inerentes ao seu
das pela pobreza e exclusão social, e marcadas por uma estatuto sociocultural ou decorrentes da sua condição
situação de grande disfuncionalidade e de enfraqueci- de imigrantes.5
mento dos laços de solidariedade intrafamiliar, é habi- Esta valorização da mulher pode ser vivenciada de
tual que cada um dos elementos tenda a procurar, in- forma pacífica, assente numa relação de respeito mú-
dividualmente, a resolução dos seus problemas. Con- tuo (porque longe dos constrangimentos impostos pe-
frontados com os fracos recursos económicos de que a los usos e costumes do seu país natal), ou então indu-
família dispõe, e estimulados pelos ímpetos consumis- zir mudanças de comportamento no marido/compa-
tas que lhes são incutidos pelo marketing agressivo, nheiro, como consequência da perda das prerrogativas
muitos enveredam por caminhos marginais, de delin- que detinha de acordo com as tradições do seu país de
quência e tráfico de droga, como forma de obterem os origem. Podem, assim, surgir situações de depressão e
meios necessários para acederem ao que desejam. Ou- abuso de ingestão de álcool, que se acompanham, fre-
tros desencadeiam perturbações mentais e comporta- quentemente, de comportamentos violentos e maus
mentos aditivos com recurso ao álcool ou a alucinogé- tratos sobre as mulheres, dando origem a situações po-
nios.2,5,11 tencialmente perigosas.2,5
Contudo, estas mulheres não pedem ajuda, não
Alteração dos papéis conjugais apresentam queixa por violência doméstica, nem se se-
No percurso migratório pode ocorrer, igualmente, uma param dos seus maridos, porque o seu estatuto legal, e
inversão de papéis entre os elementos do casal, resul- o dos seus filhos, no país de acolhimento depende do
tante da valorização social da mulher imigrante neste elemento da família que solicitou a reunificação. Nes-
novo ambiente, em relação ao marido/companheiro e tes casos, se ocorrer separação, divórcio ou repúdio pelo
ao padrão social de conduta que lhe era atribuído no marido, são forçadas a regressar ao país de origem, ou
seu país de origem. Apesar de, regra geral, possuir qua- a entrar em situação de estadia ilegal, se quiserem per-
lificação igual ou inferior à do marido/companheiro, o manecer no país de acolhimento, acentuando ainda
facto de ter um emprego remunerado permite-lhe ex- mais a sua situação de vulnerabilidade.2
perienciar a sensação de uma certa realização indivi-
dual e alguma autonomia financeira, já que no seu lo- Saúde dos adultos
cal de origem estava, frequentemente, confinada à lide Quanto ao estado de saúde dos adultos, verifica-se que,
doméstica ou a trabalho em contexto familiar, não re- no momento da chegada ao país de acolhimento, de-
munerado.5 têm, geralmente, condições físicas e psíquicas superio-

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res à da população autóctone. Na opinião do Rui Mar- prego. Muitos também não dispõem de recursos eco-
ques, ex-presidente do ACIME, esta situação decorre da nómicos que lhes permitam custear, por meios pró-
selecção natural que se faz sentir ao longo de todo o prios, certas despesas de saúde: consultas ou exames
processo migratório, que só permite o êxito aos mais de diagnóstico. Desta forma, vão relegando a sua saú-
saudáveis e capazes de ultrapassar os obstáculos que se de para segundo plano, até já não poderem aguentar
apresentam no seu trajecto.15 mais, pelo que apenas procuram os cuidados de saúde
Porém, ao longo do tempo de permanência no país em situações de urgência, em ambiente hospitalar.11,13,15
de acolhimento, vão sendo expostos a um conjunto de Outros problemas importantes com que se confron-
riscos superior ao dos nacionais, já que se ocupam em tam os imigrantes europeus extra-comunitários, na
trabalhos mais desqualificados, mais sujos e perigosos quinta e sexta década de vida, são a alta incidência de
e com horários violentos. Como consequência, os imi- neoplasias, de doenças cardiovasculares e de doenças
grantes apresentam índices elevados de doenças pro- respiratórias crónicas, devido às condições ambientais
fissionais e de acidentes de trabalho (sobretudo na a que estiveram longamente expostos nos seus países
construção civil) que podem ser fatais, ou deixar o tra- de origem e a estilos de vida não saudáveis: malnutri-
balhador em situação de grande vulnerabilidade, por ção, ingestão excessiva de álcool e tabagismo acentua-
não poder trabalhar nem ter acesso a prestações soci- do. Com efeito, embora dispusessem, nos seus países
ais que o apoiem nesse período, caso esteja em posição de origem, de uma cobertura de saúde gratuita e gene-
irregular.2 ralizada a toda a população, até recentemente não era
Outra situação frequente diz respeito às condições dado o realce devido a acções de prevenção, nem de
de vida de alguns imigrantes, que se encontram a resi- promoção de estilos de vida saudável ou de comporta-
dir sozinhos no país. Com o intuito de enviarem o má- mentos de vigilância de saúde.2,6,11
ximo de dinheiro possível para os familiares que fica- De igual modo, a ausência da família, e a separação
ram no país de origem, despendem o mínimo com as do seu contexto sociocultural natal, podem conduzir a
suas necessidades, num enorme esforço de poupança, comportamentos desviantes, tanto a nível sexual (o que
o que se traduz em alimentação deficiente. Porque tam- os torna mais propensos a sofrer de infecções sexual-
bém não existe alojamento de qualidade a preços aces- mente transmitidas) como a problemas do foro psíqui-
síveis, sujeitam-se a residir em quartos de pensão so- co ou ao alcoolismo.1,11,15
brelotados, em condições promíscuas e pouco higiéni- Entre as infecções sexualmente transmitidas que
cas, favorecendo o aparecimento de doenças.15 afectam a população imigrante, a infecção por HIV tem
Estes constituem, por regra, o primeiro local no “per- incidência significativa e ocorre, maioritariamente, nas
curso residencial” dos imigrantes, já que, de início, pro- populações de origem africana, por transmissão sexual
curam apenas uma habitação para utilização temporá- através do recurso à prostituição ou via endovenosa por
ria: quarto de pensão, alojamentos pertencentes aos consumo de drogas. Nestes casos verifica-se, também,
patrões ou alugados em comum com familiares, com- uma alta incidência de tuberculose e hepatites.1,2,11
patriotas ou colegas de trabalho. Só procuram habita- Quanto aos problemas do foro psíquico, em especial
ção mais condigna quando se procede à reunificação a depressão, constata-se que são frequentes, sobretu-
familiar, numa sequência de prioridades bem estabe- do nos primeiros anos de permanência no país, en-
lecida: mais privacidade, mais espaço, melhor estado de quanto os indivíduos se encontram sozinhos, acompa-
habitabilidade e melhor localização.2 nhando-se, geralmente, pelo abuso da ingestão de ál-
Como o corpo é utilizado como a principal ferra- cool. Alguns casos evoluem mesmo para situações de
menta de trabalho, estar doente corresponde a não po- incapacidade laboral total, com a consequente perda do
der ir trabalhar, correndo o risco de poder ser despedi- emprego e de salário, e incapacidade ou vergonha de
do. Assim, muitos destes migrantes, sobretudo os que regressarem ao país de origem, o que os conduz à con-
se encontram em situação irregular ou em maior pre- dição de “sem abrigo” nos espaços urbanos. Este modo
caridade laboral, não se permitem faltar ao trabalho de vida, caracterizado pela ausência de condições mí-
para ir a uma consulta, pelo medo de perderem o em- nimas de habitabilidade, falta de cuidados básicos de

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higiene, má nutrição e manutenção do excesso de in- o destino que lhes está reservado.16
gestão alcoólica, vai condicionar o aparecimento de As práticas de coacção sobre as mulheres, com o in-
problemas graves de saúde.2,11 tuito de as manter dependentes e submissas, compor-
Em algumas situações, observadas transversalmen- tam, para além da retenção dos seus documentos, as
te entre imigrantes de todas as origens, depressão e al- ofensas à sua integridade física e ameaças de morte,
coolismo estão associados à violência doméstica. Na bem como ameaças de prática de actos violentos con-
maioria das vezes, as mulheres maltratadas permane- tra familiares no seu país de origem. Noutros casos, a
cem com os seus maridos/parceiros, pelas razões apre- sujeição e dependência são conseguidas recorrendo a
sentadas anteriormente, embora existam casos docu- práticas de feitiçaria (vodoo) num processo de intimi-
mentados de tentativa de suicídio, por dificuldade em dação e pressão psicológica. Vivendo num ambiente de
continuar a suportar estes comportamentos.2 medo permanente, estão, ainda, sujeitas à pressão de
Quanto às situações de violência intra-comunitária, conservarem o seu aspecto exterior (beleza e equilíbrio
de que podem resultar ferimentos graves ou mesmo a psicológico) o melhor possível, de forma a poderem
morte, parecem estar associadas a confrontos entre manter-se a trabalhar em ambientes mais selecciona-
grupos do crime organizado pelo controlo do território dos, onde a clientela é mais educada e respeitadora. Se
ou de certos tipos de tráfico, e afectam, sobretudo, as perderem valor, são relegadas para locais mais degra-
comunidades de europeus de Leste ou os chineses.2 dados, onde ganham menos e são sujeitas a práticas se-
No que se refere ao tráfico de mulheres, para traba- xuais mais aviltantes.16
lho de alterne ou prostituição, é um fenómeno que tem Sob estas ameaças, as mulheres exercem as suas ac-
vindo a crescer em Portugal, envolvendo mulheres com tividades em horários e condições violentas e mesmo
idades, preferencialmente, entre os vinte e os trinta quando portadoras de doenças infecciosas, ou outros
anos. Ao longo do trajecto migratório, desde o país de problemas do foro ginecológico.16
origem até ao seu destino, estas mulheres são sucessi- É sobre as mulheres europeias e africanas subsaaria-
vamente violadas (para treino e experimentação) e de- nas que parece haver níveis de controlo e violência mais
pois revendidas, várias vezes, até serem colocadas nos elevados, em oposição às brasileiras, onde o grau de
estabelecimentos em que vão ficar a trabalhar.16 coacção aparenta ser menor.16
Algumas são angariadas mediante indução em erro,
como promessas de trabalho na restauração ou hote- Saúde dos idosos
laria, ou recorrendo ao rapto e ameaça física, quer à No que respeita à população mais idosa, como conse-
própria mulher, quer à respectiva família. No entanto, quência do reagrupamento familiar e da longa perma-
outras vêm por vontade própria, até porque já estavam nência de algumas comunidades imigrantes em Portu-
inseridas nos circuitos de prostituição nos seus países gal, o país vê-se, actualmente, confrontado com a pre-
de origem. Outras, ainda, chegam sozinhas e, já em ter- sença de um número significativo de estrangeiros de
ritório português, contactam directamente os locais de idade avançada, portadores de doença crónica e dege-
alterne com o intuito que lhes seja facultado trabalhar nerativa e com graus de incapacidade física semelhan-
nesses estabelecimentos. Isto porque se encontram de- tes, ou mesmo superiores (devido ao tipo de profissão
sesperadas, sem conseguirem arranjar outro trabalho, que exerceram), aos da população autóctone. A esta si-
ou quando pretendem ganhar a maior quantidade de tuação não é alheio o facto de doentes e/ou familiares
dinheiro possível no menor período de tempo, para de- idosos de imigrantes se deslocarem, definitiva ou tran-
pois retornarem ao país de origem onde poderão fazer sitoriamente, para território português, para beneficia-
uma «vida limpa». Porém, também estas acabam por rem de cuidados sociais e/ou de saúde, na área da pre-
ser vitimizadas, porque não esperavam tanta violência venção, ou para acederem a cuidados curativos, inexis-
e exploração por parte dos traficantes. No que se refe- tentes ou menos diferenciados nos seus países de ori-
re à prostituição mais recente, com origem na África gem. Outros chegam, também, ao abrigo de acordos
subsaariana, é a própria família que vende as raparigas e convenções bilaterais, em matéria de saúde, cele-
a uma rede de traficantes, pelo que desde logo sabem brados entre o Estado português e os seus países de ori-

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gem, alojando-se em casa de familiares. Assim, tornam- blemas expostos anteriormente passa, em primeiro lu-
-se utilizadores regulares, ou potenciais, dos cuidados gar, pela implementação de medidas que promovam a
dispensados pelo Sistema Nacional de Saúde Por- inclusão social. Com base em parcerias entre o gover-
tuguês.5 no e organizações na comunidade, deverão desenvol-
Frequentemente estes idosos permanecem sozinhos ver-se estratégias preventivas e de efectiva integração,
a maior parte do dia, apresentando, muitas vezes, gra- de forma a combater a estigmatização, discriminação
ves carências alimentares e não dispondo do acompa- e vulnerabilidade associadas a estas populações.5,11,17
nhamento necessário. Na sua maioria são de origem É urgente, e necessário, melhorar o acesso aos cui-
africana ou asiática, provenientes das antigas colónias dados de saúde para todos os indivíduos, independen-
portuguesas. Muitos não falam português, o que cons- temente do seu estado legal. De igual modo, uma maior
titui mais um obstáculo a uma clara e eficaz comuni- participação de pessoas de diferentes origens étnicas
cação interpessoal, para além das dificuldades decor- nos serviços de saúde poderia contribuir para prevenir
rentes da diversidade cultural e étnica, particularmen- a discriminação e facilitar a utilização dos mesmos.5,17
te marcadas nestas populações mais idosas, que só re- Deve ser dada, também, especial atenção às acções
centemente chegaram a Portugal.5 de educação para a saúde, direccionadas para a preven-
Nestes indivíduos é importante compreender a im- ção, de modo a mudar atitudes e comportamentos de
portância das práticas tradicionais, a que recorreram risco, promovendo hábitos de vida saudável, com um
durante toda a vida, e dos curandeiros que consultam. enfoque especial na população mais jovem.11
Estes, profundamente conhecedores do uso das plan- Por fim, porque o desconhecimento dos aspectos
tas para fins terapêuticos, são, frequentemente, consi- culturais destes imigrantes, em conjunto com as repre-
derados pelas suas comunidades, no país de origem, sentações estereotipadas que lhe estão associadas, con-
como os únicos detentores do poder de cura.2,5,11 duz a atitudes e comportamentos desadequados por
Como tal, desconfiam da competência dos profis- parte dos prestadores de cuidados de saúde, traduzidos
sionais de saúde e estranham os métodos utilizados num relacionamento difícil, torna-se necessário imple-
pela medicina ocidental, para além de que os tabus mentar a formação e educação dos prestadores dos cui-
com o seu próprio corpo os impede de efectuar certos dados de saúde na área da multiculturalidade, dando-
procedimentos técnicos, porque são considerados in- -lhes a conhecer a importância que os aspectos cultu-
vasivos da sua intimidade.4 rais têm nas atitudes e comportamentos dos indivíduos
Finalmente, resta salientar a escassa investigação, em situação de saúde ou de doença.5,18
realizada em Portugal, sobre problemas de saúde e uti-
lização de serviços de saúde nos imigrantes de origem REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
oriental, sobretudo nos que chegaram mais recente- 1. Saúde e migrações na UE [online]. 2007. Disponível em: http://
www.portaldasaude.pt/portal/conteudos/a+saude+em+portugal/pre-
mente ao país: indianos, paquistaneses e chineses, pre-
sidencia+ue/documentacao/conclusoes+conf+saude+ue.htm [acedi-
sumindo-se que recorram, frequentemente, a terapias do em 06/11/2008].
orientais.2,11 2. Fonseca ML, Ormond M, Malheiros J, Patrício M, Martins F. Reunifica-
Para além disso, acresce, ainda, mencionar a falta de ção familiar e imigração em Portugal: relatório final. Lisboa: Alto Co-
conhecimentos, por parte de alguns profissionais de missariado para a Imigração e Minorias Étnicas; 2005.
3. Péchevis M. Les enfants de migrants. In: Lebovici IS, Diatrkine R, Soulé
saúde, sobre certas doenças que são raras nos países de
M. Nouveau Traité de Psychiatrie de l’Enfant et de l’Adolescent. Paris:
acolhimento e, como tal, difíceis de diagnosticar, o que PUF; 1995. p. 2287-301.
pode conduzir a situações potencialmente graves se 4. Ramos MN. Comunicação e saúde em contexto multicultural. In: Ac-
não forem atempadamente reconhecidas.17 tas IV Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura; 2008 Maio
28-30; Bahia, Brasil; 2008. Disponível em: http://www.projetora-
CONCLUSÃO dix.com.br/arq_artigo/textos/14556-02.pdf [acedido em 06/11/2008].
5. Soares P. A promoção de saúde na infância em contexto multicultural
Em conclusão, importa compreender que os ganhos
[dissertação]. Lisboa: Universidade Aberta; 2003
em saúde dependem, fortemente, de políticas sociais 6. Monteiro AP. Imigração e Saúde - imigrantes da Europa de Leste em
adequadas, pelo que a solução para a maioria dos pro- Portugal [online]. 2006. Disponível em: URL:http://www.esenfc.pt/es-

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p.135-45. Aceite para publicação em 05/02/09

ABSTRACT
Objective: The purpose of this article is to present the major health problems of cultural diverse populations in Portugal, im-
migrant workers and their families, in the context of providing health services.
Methods: A literature review was made, using relevant literature and online database, combined with the own researches, con-
cerning health problems of immigrants, and their access to and their consumption of health care. Searches were limited to En-
glish, French, Spanish and Portuguese language-published research in the last eight years.
Conclusions: Evidence shows that immigrants often experience many difficulties in accessing and using available health ser-
vices, what makes them a group of health risk. Evidence also demonstrates that health problems, in immigrants, are the con-
sequence of many different conditions: physical, psychological and, perhaps, above all, social conditions, which increase the risk
of becoming ill. Care of immigrants involves not only, reducing risk and treating illness, but also providing social support to both
patients and their families, in order to effectively reduce health disparities. So, the best approach would be the combination of
measures that could, not only, reduce the consequences of the social stigmatization and exclusion of these population, pro-
viding information about their cultural characteristics, beliefs and values, but also implementing early identification and treat-
ment of their health problems and promoting patient education, through programs that stimulate an healthier life style, espe-
cially in younger people. In the same way, to bridge the language barrier, the use of interpreters, or cultural mediators, appears
to be important in promoting an effective doctor-patient communication and relationship. Finally, because health professio-
nals still lack adequate knowledge of the cultural patterns and specific needs of this population, family physicians should un-
dergo a specific training program to become aware of the relevance of patient’s different cultural background, to overcome
stereotypes and to acquire information and competences on intercultural communication, to improve the quality of care of
this population.

Keywords: Immigrants; Health Care; Health Problems.

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