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OPINIÃO Sobre o regime preferencial de residência alternada

OPINIÃO

Sobre o regime preferencial de


residência alternada
Manter a ideia de que a criança deve conviver diariamente apenas com
uma figura parental, em detrimento da outra, a quem são permitidas
meras visitas é, antes de mais, a violação de um direito fundamental que
pode comprometer o seu bem-estar.

A hipótese de um regime de residência alternada para filhos de pais separados


ou divorciados poder vir a ser considerado um regime preferencial, em
detrimento de uma divisão mais assimétrica do tempo que é, ainda,
mais frequente no nosso país, tem feito correr rios de tinta e inflamado
discussões, a diferentes níveis. A nível político é certo mas, acima de
tudo, a nível técnico, ouvindo-se vozes divergentes provenientes de
várias áreas do saber. Perante as diferentes opiniões e também a
dificuldade em distinguir os diversos assuntos em causa, apresentamos
um conjunto de ideias objectivas que visam resumir os principais
dados da literatura.

1. Ter uma família e conviver com a mesma é um direito da criança,


consagrado na Declaração sobre os Direitos da Criança: “A
criança tem o direito de viver com os seus pais a menos que tal
seja considerado incompatível com o seu interesse superior. A
criança tem também o direito de manter contacto com ambos
os pais se estiver separada de um ou de ambos” (Artigo 9.º).
2. Os maus-tratos físicos e emocionais, bem como a negligência, são
perpetrados, de acordo com os dados disponíveis (ver relatórios
anuais da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e
Protecção das Crianças e Jovens em Risco), acima de tudo pelas
mães biológicas. Também o filicídio é praticado, na maior parte
das situações, pelas mães. De entre as várias formas de maus-
tratos, o abuso sexual é a única categoria em que prevalecem os
agressores do sexo masculino. Podemos afirmar que o amor de
mãe não é inato. Assim, os argumentos da existência de violência
face às crianças (incluindo a exposição à violência interparental)
têm de ser sempre avaliados casuisticamente, na medida em que
podem ser cometidos por ambos os progenitores.
3. A ideia de uma figura primária de referência decorre de um
modelo familiar mais tradicional, em que a mãe assume os
cuidados da criança e o pai o sustento da casa. A evolução a que
temos assistido na nossa sociedade tem conduzido a um maior
equilíbrio em termos de participação de ambos os progenitores
na esfera privada e, por conseguinte, nos cuidados aos filhos.
4. A criança pode estabelecer relações de vinculação seguras quer
com a mãe, quer com o pai nos primeiros anos de vida,
precisando, para tal, de interacções continuadas e regulares com
ambos, que podem ocorrer em diversos contextos funcionais. O
mais importante é que as interações ocorram e sejam marcadas
pela sensibilidade e responsividade dos cuidadores.
5. São estes convívios regulares que permitem a criação de vínculos
afectivos e sentimentos de segurança que, ao serem
interiorizados, permitem que a criança explore o ambiente
envolvente sem medo de abandono.
6. A separação/divórcio é um dos acontecimentos de vida que mais
stress induz nas famílias, aumentando o risco de reacções
desajustadas nos pais. Envolve inúmeras alterações (a nível
emocional, social e económico), podendo ter um impacto
negativo na forma como os pais se relacionam com os filhos.
7. O ajustamento dos filhos ao divórcio é um processo influenciado
por diversos factores (stressores), a saber: redução do apoio
parental, perda de contacto com um dos pais e exposição ao
conflito interparental. Quer isto dizer que se o divórcio envolver
alguns (ou vários) destes factores, o stress tenderá a ser maior,
com impacto negativo no bem-estar da criança.
8. Existem outras variáveis que influenciam o ajustamento das
crianças: características demográficas (salienta-se a idade e o
nível de desenvolvimento), os recursos internos e externos da
criança (p. ex., auto-estima, resiliência, apoio dos amigos) e o
significado que a criança atribui ao divórcio. Ou seja, quanto
mais nova for a criança e menos recursos possuir, maior será a
dificuldade em lidar adequadamente com a separação parental.
Por outro lado, se a criança atribuir ao divórcio um significado
negativo, associado a sentimentos de culpa, vergonha ou perda,
maior será a sua dificuldade em ajustar-se.
9. Os estudos retrospectivos, realizados com adultos que cresceram
com pais separados e num regime tradicional de contactos
(residência com um dos pais, habitualmente a mãe, com visitas
quinzenais do outro progenitor) mostram que, enquanto
crianças, experienciaram sentimentos de abandono e rejeição.
Após um convívio regular com ambos os pais passaram, de um
momento para o outro, a receber meras visitas de um deles.
10.A criança tem o direito a conviver com ambos os progenitores de
uma forma equitativa, o que não significa necessariamente uma
divisão de tempo de 50/50. Quando a criança está com um dos
progenitores, pelo menos, durante 35% do tempo, esta
distribuição já é considerada equitativa. 
11. O conceito de residência alternada não pode ser confundido com
um regime de alternância semanal entre a casa da mãe e a casa
do pai. O regime de convívios deve ser definido em função da
idade da criança, mais concretamente da sua noção de tempo.
Crianças mais novas devem interagir com ambos os pais todos os
dias ou a cada dois ou três dias, evitando períodos mais extensos
de cinco a sete dias. As crianças em idade pré-escolar tendem a
experienciar stress quando a separação de cada um dos pais é
superior a três ou quatro dias. Chegada a idade escolar, já é
possível equacionar um regime que envolva transições a cada
cinco ou sete dias, bem como 15 dias nos períodos de férias. Com
os adolescentes, os regimes de contactos devem ter em conta as
suas necessidades, nomeadamente, em estar com os amigos.
12.Os regimes de convívios devem ser implementados de uma forma
gradual e faseada, ajudando a criança, quando necessário, a
ajustar-se a um modelo mais equitativo.
13.A transição entre duas casas não tem de ser um bicho-de-sete-
cabeças. A nossa casa, mais do que quatro paredes, é o local onde
estão os afectos, as pessoas de quem gostamos e que gostam de
nós.
14.Na definição de um regime de convívios há diversas variáveis que
devem ser tidas em conta, partindo do pressuposto de que cada
criança e família têm as suas especificidades: a idade da criança,
a sua vontade (ponderada em função da idade e maturidade), a
qualidade dos vínculos afectivos com os pais, o nível de conflito
entre estes e a distância geográfica entre ambas as casas. O peso
da vontade da criança depende também, em grande medida, da
genuinidade da mesma, ou seja, saber em que medida poderá ser
fruto de sugestionamento ou manipulação por parte de terceiros.
15. Na avaliação dos vínculos afectivos é importante ter em conta o
envolvimento parental pré e pós-divórcio. Quando um dos pais
se mostra desligado e não envolvido com a criança, isso deve ser
tido em conta na definição dos convívios.
16.Os conflitos parentais podem ser de nível baixo, moderado ou
elevado. Por elevado, entendam-se as situações em que existem
indicadores consistentes de algum tipo de violência e que exigem,
naturalmente, uma avaliação cuidada por parte dos serviços que
assessoram os tribunais.
17. Tendo em conta que qualquer regime de contactos deve ser
definido em função do superior interesse da criança, sempre que
dúvidas (consistentes) houver de que este possa ser
comprometido, cabe ao tribunal solicitar a devida a avaliação
técnica e pericial, por forma a assegurar a protecção da criança.
18.Sobre alegações de violência doméstica, maus-tratos e
negligência, não basta acusar, até porque temos também cada vez
mais situações em que os pais se acusam mutuamente. Porque,
se perante uma alegação de violência se impedem os contactos
com o progenitor acusado, o que fazer então nas situações em
que existem acusações mútuas? Afastam-se as crianças de ambos
os pais enquanto se avalia a situação?
19.Por fim, os tribunais não aplicam as leis de forma cega. Pensar
dessa forma mais não é do que passar-lhes um atestado de
incompetência. Os magistrados têm capacidade de reflexão e
análise crítica, para além de que não estão sozinhos e podem
contar com a ajuda de equipas multidisciplinares.

Neste contexto, manter a ideia de que a criança deve conviver


diariamente apenas com uma figura parental, em detrimento da outra,
a quem são permitidas meras visitas é, antes de mais, a violação de um
direito fundamental que pode comprometer o seu bem-estar.

Sobre a sistemática argumentação que é feita com base nas situações


de violência doméstica e abuso sexual, como forma de rejeitar a
hipótese de um regime preferencial de residência alternada, mais não é
do que criar ruído numa discussão que se pretende construtiva.
Naturalmente que estas situações existem, são muito graves e têm um
claro impacto negativo na criança e na família. E quando se
comprovam, entendemos todos que constituem um impedimento a um
regime de residência alternada. Não podem, contudo, ser
generalizadas. De acordo com a nossa experiência, a maior parte das
situações de conflito parental pós-divórcio que avaliamos ou em que
intervimos não envolve este tipo de dinâmica. 

Em jeito de conclusão, dizer apenas que a existência de um regime


preferencial não é incompatível com a necessária adequação em função
das características únicas de cada criança e de cada família.

Psicóloga especialista em Psicologia Clínica e da Saúde, Psicoterapia e


Psicologia da Justiça; docente e investigadora no ISCTE-IUL
Psicóloga especialista em Psicologia Clínica e da Saúde e em Psicologia da
Justiça; perita forense e formadora na Ordem dos Psicólogos Portugueses

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