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DEPARTAMENTO DE LETRAS
Natal – RN
2012
Edlena da Silva Pinheiro
Natal – RN
2012
Catalogação da Publicação na Fonte.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).
RN/BSE-CCHLA CDU
82.091
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem
Área de Concentração em Literatura Comparada
Banca Examinadora:
____________________________________________________________________
Prof. Dr. Marcos Falchero Falleiros
Orientador – UFRN
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Giorgio De Marchis
Examinador externo – Professor Associado de Literatura Portuguesa e Brasileira
Università degli Studi Roma III
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Roberto Papaterra Limongi Mariutti
Examinador externo – FAPESP/ Universidade de São Paulo
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Andrey Pereira de Oliveira
Examinador interno – UFRN
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Antônio Fernandes de Medeiros Júnior
Examinador interno – UFRN
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Manoel Freire Rodrigues
Examinador externo – Suplente – UERN/Pau dos Ferros
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Gerardo Andrés Godoy Fajardo
Examinador interno – Suplente – UFRN
Para Leonardo, Giuseppina e Eduardo.
AGRADECIMENTOS
RESUMO
RIASSUNTO
INTRODUÇÃO 11
I. LITERATURA E LIBERDADE 14
1.2. Cadeia 20
3. O nordestino e o sardo 37
1- Engajamento no século XX 41
2- O engajamento político de Gramsci 46
3- Uma literatura empenhada 51
1- Os intelectuais 60
2- A hegemonia cultural 65
3- A questão meridional 68
4- Literatura nacional-popular 71
5- Literatura é sentimento 74
6- Escrever para (sobre) viver 76
IV- EXPERIÊNCIA DA PRISÃO NA OBRA DE GRACILIANO RAMOS 80
1- Angústia 82
2- A Terra dos meninos pelados 87
3- Vidas Secas 94
4- Infância 100
5- Insônia 106
6- Viagem 110
7- Viventes das Alagoas 114
8- Linhas Tortas 119
REFERÊNCIAS 157
Se o capitalismo fosse um bruto, eu o toleraria.
Aflige-me é perceber nele uma inteligência,
uma inteligência safada que aluga outras
inteligências canalhas. Esforço-me por
alinhavar esta prosa lenta, sairá daí um lucro,
embora escasso – e este lucro fortalecerá
pessoas que tentam oprimir-me. É o que me
atormenta. Não é o fato de ser oprimido: é
saber que a opressão se erigiu um sistema.
(RAMOS, Graciliano. Memórias do Cárcere,
vol. 1, p. 111).
INTRODUÇÃO
12
1
Gramsci falece em abril de 1937, poucos meses depois de Graciliano ser libertado.
13
Por fim, o último capítulo compara Memórias do cárcere com dois livros
memorialísticos da prisão da Literatura Italiana – Le mie prigioni e Se questo è
un uomo – para demonstrar que o pensamento de Gramsci coincide muito mais
com o autor brasileiro que com o corpus escolhido. Daí, então, confirmar a
importância de Gramsci não somente para os estudos políticos e sociológicos,
mas também para os estudos literários no Brasil.
14
Capítulo I
LITERATURA E LIBERDADE
15
2
Cf. LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP: UNICAMP, 1994, p. 438.
3
Cultura como tradição. In: Tradição/contradição. Rio de Janeiro: Zahar, Funarte, 1987, p. 54.
4
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e política – Obras escolhidas I (Trad. Sérgio Paulo
Rouanet), São Paulo: Brasiliense, 1996..
16
5
BARTHES, Roland. Aula. 9ª ed. São Paulo: Cultrix, 1978.
6
RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. São Paulo: Record. 2002, vol. 1, p. 33.
17
Naquele momento a idéia de prisão dava-me quase prazer: via ali um princípio
de liberdade. Eximira-me do parecer do ofício, da estampilha, dos horríveis
cumprimentos ao deputado e ao senador; iria escapar a outras maçadas, gotas
espessas, amargas, corrosivas. Na verdade suponho que me revelei covarde e
egoísta: várias crianças exigiam sustento, a minha obrigação era permanecer
junto a elas, arranjar-lhes por qualquer meio o indispensável. [...]
A cadeia era o único lugar que me proporcionaria o mínimo de tranqüilidade
necessária para corrigir o livro. O meu protagonista se enleara nesta obsessão:
escrever um romance além das grades úmidas e pretas (MC, vol. 1, p. 45). 7
7
Daqui em diante, devido ao amplo uso de Memórias do cárcere, usaremos apenas a sigla MC, citação do
volume e página.
18
Assumindo o governo, Getúlio Vargas tentava cada vez mais aumentar o seu
poder pessoal, justificado como uma necessidade de reconstrução nacional. O
confronto ideológico entre a Ação Integralista Brasileira, grupo de orientação
fascista liderada por Plínio Salgado, e a Aliança Nacional Libertadora (ANL),
fortemente dominada pelo Partido Comunista, liderado por Luís Carlos Prestes,
forneceu a Vargas um clima de instabilidade. Para Vargas, era necessária uma
maior repressão ao Comunismo.
8
Cf. RAMOS, Ricardo. Graciliano Ramos: retrato fragmentado. São Paulo: Siciliano, 1992. p. 46.
20
Logo que cheguei à prefeitura, proibi animais soltos na cidade. Palmeira era um
pasto de bois, cavalos, porcos e cabras, uma sujeira grossa. Na primeira
infração o dono pagava a multa; se reincidisse, os bichos iam a leilão. Foi
aquele escarcéu. Eu agüentei firme, praça pública não é fazenda de ninguém.
A maioria meteu o rabo entre as pernas, diminuiu muito a invasão, mas não
terminou. Muritiba chegava todo santo dia com o maço de multas. Uma ocasião
ficou-me rondando, meio sem jeito. “Que aconteceu, homem?” Ele me informou
que achara umas vacas de meu pai, juntas das amigas, zanzando à toa. “E
você?” Respondeu: “Não fiz nada não”. Então eu mandei: “Pois faça, lavre a
multa. Prefeito não tem pai.” Dito e feito. Eu paguei a multa, peguei o recibo, de
noite falei com seu Sebastião: “Olhe aqui, veja, hoje encontramos umas vacas
suas fazendo footing. Se mandasse lhe entregar a multa o senhor ia ter um
ataque do coração. Por isso eu mesmo paguei. O velho impou, estourou
esbravejando, subiu nas tamancas. E terminou me devolvendo o dinheiro.
Depois, vaca dele nunca mais visitou o centro.9
1.2 - Cadeia
9
Ibidem, p. 33-34.
21
10
RAMOS, Heloisa apud MORAES, Dênis de. O velho Graça. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992. p.
110.
11
Cf. RAMOS, Clara. Cadeia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992.
22
Nessa época, o autor ainda não era filiado ao Partido Comunista, logo
então, o motivo da prisão não seria pela militância, mas pela posição assumida
em benefício dos mais fracos tanto na literatura quanto na vida política. Mas
essa posição não era arquitetada, e, sim, fruto da coerência pessoal, o que
resultou na prisão sem acusação formal e sem processo. São dez meses entre
os cárceres de Maceió e Recife, do porão do navio Manaus até o Rio de
Janeiro, passando pelo Pavilhão dos Primários até a Colônia Correcional, para
finalizar na Casa de Detenção.
12
Nelson W. Sodré lembra que o decênio de hesitação em relação ao lançamento das MC era também o
período conturbado dos anos fascistas, o que inviabilizava sua publicação. Cf. SODRÉ, Nelson Werneck.
As Memórias do cárcere. In: GARBUGLIO, J. C. et alii. Graciliano Ramos. São Paulo: Ática, 1987.
(Escritores Brasileiros), p. 283.
13
Cf. RAMOS, Clara. Elementos de biografia. In: GARBUGLIO, J. C. et alii. Op. cit., p. 332.
14
SODRÉ, Nelson Werneck. As Memórias do cárcere. In: GARBUGLIO, J. C. et alii. Op. cit.. p. 280.
23
a autorização dos personagens: não tenho o direito de utilizar gente viva num
livro de memórias que encerrará talvez inconveniências. Preciso falar sério com
os meus companheiros de cadeia. 15
15
RAMOS, Graciliano. Cartas. 3ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1982. p. 207.
16
Cf. RAMOS, Clara. Elementos de biografia. In: Cf. GARBUGLIO, J. C. et alii.. Op. cit., p. 332.
17
Astrojildo Pereira, dirigente máximo para assuntos literários do Partido Comunista.
18
RAMOS, Ricardo. Op. cit. p. 195.
19
Um dos fundadores do PC do B
20
RAMOS, Ricardo. Op. cit. p. 196.
24
21
FACIOLI, Valentim. Um homem bruto da terra. (Biografia intelectual). In: GARBUGLIO, J. C. et alii.
Op. cit., p. 100.
22
In: GARBUGLIO, J. C. et alii. Op. cit., p. 289.
25
23
Sobre esse contexto político cf. L´Italia fascista. In: COLARIZZI, Simona. Storia del Novecento
Italiano. Cento anni de entusiasmo, de paura, di speranza. Milano: Bur Storia, 2000. p. 146-245.
24
DE FELICE, Renzo. (Org.). Il Fascismo: le interpretazioni dei contemporanei e dei storici. Milano:
Mondolibri, 1998. p. 29.
27
25
Cf. FERRONI, Giulio. Guerre e Fascismo (1910-1945). In: Storia della Letteratura Italiana. Il
Novecento. Milano: Einaudi, 2000. p. 35.
28
mamãe, e as tuas mãos sempre ocupadas para nós, para nos aliviar as penas
e para tirar alguma utilidade de cada coisa.26
Sua ligação com a mãe foi sempre muito forte27, enquanto que com o pai
sempre bem áspera. Antonio aos 11 anos foi trabalhar no registro civil de
Ghilarza, juntamente com o irmão Mario. Trabalhavam dez horas por dia e
desde então já iniciava a observar e odiar as desigualdades sociais, pois não
podia continuar a estudar como os filhos dos ricos. Apesar da saúde frágil,
carregava processos mais pesados que ele.
26
GRAMSCI, Antonio. Cartas do cárcere. 2a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 53-54.
27
A família oculta a morte de sua mãe (30 de dezembro de 1932) quando Gramsci estava no cárcere e ele
continua escrever-lhe ainda até 1934. Cf. GRAMSCI, Antonio. Cartas do cárcere. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira,1966. p. 363.
28
Turim era o grande centro industrial – cidade da FIAT, indústria automobilística italiana mais
importante, símbolo do capitalismo e maior grupo de operários do país. Também do ponto de vista
cultural era uma cidade importante, pois na Universidade de Turim ensinavam professores como Luigi
Einaudi (grande economista que em 1948 foi o primeiro Presidente da República Italiana).
29
GRAMSCI, Antonio apud LEPRE Aurélio. O prisioneiro: a vida de Antonio Gramsci. Rio de Janeiro,
Record, 2001, p. 41.
29
30
Cf. LEPRE, Aurélio. O prisioneiro. Op. cit. , p. 103.
30
31
Cf. MAESTRI, Mario, CANDREVA, Luigi. Antonio Gramsci – vida e obra de um comunista
revolucionário. São Paulo: Expressão Popular, 2001. p. 128.
31
32
VACCA, Giuseppe. Togliatti e Gramsci. In: Foedus – Culture, economie e territori. Padova, nº 20,
2008. p. 3-19.
33
GRAMSCI, Antonio. Cartas. ed. cit., p. 323; Cf. DEL FRA, Lino. Antonio Gramsci: i giorni del
carcere (1977), [Filme-vídeo]. Produção de Lino Del Fra e Cecilia Mangini, direção de Lino Del Fra.
Italia, Cooperativa Nuovi Schermi C., 1977. 130 min. p/b. son.
34
Ainda sobre o assunto Cf. ROSSI, Angelo, VACCA, Giuseppe. Gramsci tra Mussolini e Stalin. Fazi
Editore: Roma, 2007.
32
Quando vejo agir e escuto falar homens que estão a 5, 8 e 10 anos presos, e
observo as deformações psíquicas que sofreram, verdadeiramente me arrepio,
e caio na dúvida quanto às previsões sobre mim mesmo. Creio que também os
outros pensaram (não todos, mas alguns pelo menos) em não se deixar
esmagar e ao contrário, sem nem sequer se dessem conta disso, tão lento e
molecular é o processo, encontram-se hoje transformados e não o sabem, não
podem julgar porque estão totalmente transformados. Por certo, eu resistirei.35
35
GRAMSCI, Antonio. Cartas. Op. cit. p.119.
36
Ibidem. p. 30.
37
COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci. Porto Alegre: L&PM, 1981. p. 62.
38
O Partido se encarregava de mandar livros, jornais e revistas ao prisioneiro, não deixando que nada lhe
faltasse materialmente para seus estudos.
33
penso) por esta idéia: que precisaria fazer alguma coisa für ewig39 [...] Em
resumo, pretenderia, segundo um plano preestabelecido, ocupar-me intensa e
sistematicamente de algum tema que me absorvesse e centralizasse a minha
vida interior. Pensei em quatro temas [...]: 1º uma pesquisa sobre a formação
do espírito público na Itália no século passado, em outras palavras, uma
pesquisa sobre os intelectuais italianos, suas origens, seus agrupamentos
segundo as correntes da cultura, os seus diferentes modos de pensar [...], 2º
Um estudo de lingüística comparada! Nada menos. [...] 3º Um estudo sobre o
teatro de Pirandello e sobre o gosto teatral italiano [...] 4º Um ensaio sobre os
romanzi di appendice40 e o gosto popular na literatura.41
39
Para sempre.
40
Romances publicados em folhetins. (Nota do tradutor)
41
GRAMSCI, Antonio. Cartas. Op. cit., p. 50-51.
42
Ibidem.
34
43
Lincoln Secco faz um estudo sobre a recepção das idéias de Gramsci no Brasil, no qual afirma que nos
anos 20 e 30 já se fazia referência a Gramsci pelos italianos, trotskistas e antifascistas, pois, enquanto o
PCB se enquadrava às diretrizes de Moscou, os trotskistas impulsionaram em São Paulo a Frente Única
Antifascista e o grupo Itália Libera. Entretanto, o boom gramsciano se deu em meados dos anos 70, sendo
Carlos Nelson Coutinho um dos pioneiros na tradução e edição dos textos. Cf. SECCO, Lincoln. Gramsci
e o Brasil: recepção e difusão de suas idéias. São Paulo: Cortez Editora, 2002.
44
COUTINHO, Carlos. La recezione di Gramsci in Brasile. In: Gramsci nel mondo. Formia: Fondazione
Istituto Gramsci, 1989.
35
45
Textos dos Cadernos e crônicas de jornais sobre crítica literária.
46
Cf. CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006, p. 21.
47
Cf. SECCO, Linconl. Op. cit., p. 51.
48
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2004. p. 497.
49
SAPEGNO, Natalino. Gramsci e i problemi della letteratura. In: Gramsci e la cultura contemporânea.
Atti del Convegno Internazionali de studi gramsciani tenuto a Cagliari il 23-27 aprile 1967. Roma:
Riuniti/ Istituto Gramsci, 1975. vol. 1, p. 265-277.
36
50
PETRONIO, Giuseppe. Gramsci e i problemi della letteratura. In: Gramsci e la cultura contemporânea.
Op. cit., vol. 1, p. 287-290.
37
3 - O nordestino e o sardo
51
CASES, Cesare. Gramsci e i problemi della letteratura. In: Gramsci e la cultura contemporânea. Op.
cit., vol. 1, p. 291-295.
52
BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 221- 237.
53
Ibidem. p. 221.
38
literatura, pois para os dois escritores escrever era sempre um ato político.
Embora não seja panfletário, algumas informações são muito claras sobre o
autor alagoano: é averso ao capitalismo; não tem religião; sente antipatia pelo
Estado autoritário, pela polícia prepotente, pelo proprietário burguês, mas não
se propõe a fazer parte do movimento militante, nem em termos práticos ou
teóricos – “Graciliano não formula planos políticos alternativos”, como afirma
Alfredo Bosi. Realmente sua resistência está imanente em sua escrita, e
também por isso ela apresenta muitos dos ideais políticos e artísticos do
filósofo italiano.
40
CAPITULO II
ARTE E ENGAJAMENTO
41
1- Engajamento no século XX
54
“Nosso tempo”. In: A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 1994. p. 30.
42
*
O texto literário compreende forma e conteúdo, e sua relação com a
realidade pode ser expressa tanto pelo trabalho com a linguagem como pelo
tema que desenvolve. Para os antigos, a arte era recriação do real. Entretanto,
na sociedade moderna, com tantas problemáticas, esse conceito não abarca
completamente a idéia de arte e ela não comporta a mera representação.
Nesse sentido, parece que o artista estaria diante das seguintes alternativas:
55
CANDIDO, Antonio. O socialismo é uma doutrina triunfante. Brasil de fato, São Paulo,
12/07/2011. Entrevista concedida a Joana Tavares. Disponível em:
http://www.brasildefato.com.br/node/6819
43
56
Ideologia, filosofia, política: da Croce a Gramsci. In: FERRONI, Giulio. Storia della Letteratura
Italiana. Milano: Einaudi, 2000. p. 47-89.
57
SARTRE, Jean Paul. Que é a literatura? Rio de Janeiro: Ática, 1993.
44
58
Ibidem., p. 37.
59
Ibidem., p.57.
45
escrever para um leitor universal. Para ele, o escritor fala para pessoas de sua
época, para os seus compatriotas e para sua classe, sendo, então um
mediador por excelência. Com isso, não pode deixar de escrever para o seu
povo, que tem seus mesmos sentimentos em determinado período da história.
Também é discutível a inexistência de valores eternos, pois se assim fosse,
nem mesmo o teatro grego nos ensinaria tanto até hoje. Ou ainda se
pensarmos na escrita intimista de Clarice Lispector, que tratou literariamente
problemas da experiência humana, independente de época ou lugar. Sem falar
em Guimarães Rosa, que extrapola o sertão para tratar do universo humano.
Con
trário ao modelo proposto por Sartre, Theodor Adorno (1903-1969), em seu
ensaio Engagement60, argumenta que o princípio social de um texto deve surgir
pela linguagem, pois de outro modo, o que se tem é tendência e propaganda.
Para esse estudioso, a literatura em si já é política e social. Portanto, ele rebate
o modelo de arte engajada destituída de elaboração formal, comprometida na
intenção do autor de dizer algo.
Adorno propõe a distinção entre engajamento e tendenciosismo: “a arte
engajada no seu sentido conciso não intenta instituir medidas, atos legislativos,
cerimônias práticas, como antigas obras tendenciosas contra a sífilis, o duelo, o
parágrafo do aborto, ou as casas de educação correcional, mas esforça-se por
uma atitude” (p. 54). É necessária a inovação artística no engajamento,
tornando o conteúdo plurissignificativo. Nas palavras do filósofo:
60
In: ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 1973. p. 51-
71.
46
homem”. Com relação à dualidade obra de arte engajada e arte autônoma nos
diz:
Criticando o teatro de Bertolt Brecht, Adorno diz que o ele não postula
identidade entre os indivíduos e a essência social. Restrito no ponto de vista
estético devido o amor à verdade política, esse escritor torna-se, em
determinadas situações, inverossímil por desprezar a dialética do mundo. A
mesma crítica em relação ao Grande Ditador, de Charles Chaplin, na cena em
que uma judia bate com uma caçarola na cabeça de soldados nazistas, sem
ser punida: “Em favor do engajamento político, dá-se pouco peso à realidade
política: isso reduz também o efeito político.” (p. 60). A alteração da realidade
exerce um efeito contrário daquele didático que se pretendia: “A inverdade
política mancha a configuração estética” (p. 61) e “O que mais pesa contra o
engajamento é que mesmo a intenção correta falseia quando é percebida e
mais ainda quando justo por essa razão ela se mascara.” (p. 63).
61
Daqui em diante, utilizo a sigla CC para os Cadernos do cárcere.
47
62
Cf. GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1978.
63
COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci. Porto Alegre: L&PM, 1981, p. 65.
49
Gramsci nos diz que os artistas não podem ser “criados” porque um
artista nasce a partir do seu modo de pensar sobre a vida. Para ele:
64
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Trad. org. e edição Carlos Nelson Coutinho, Marco
Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, vol.1, p. 105.
65
Cf. GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional. 2a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1978. p. 8.
50
Deve-se falar de luta por uma nova cultura, isto é, por uma nova vida moral que
não pode deixar de ser intimamente ligada a uma nova intuição da vida, que
chegue a se tornar um novo modo de sentir e de ver a realidade e,
conseqüentemente, um mundo intimamente relacionado com os artistas
possíveis. (CC, vol. 6, p. 64).
66
Ibidem, p. 90.
51
realmente, naquele caso concreto, um artista mas sim um criado que quer
agradar os patrões. 67
67
Ibidem, p. 11.
68
Ibidem, p. 65.
69
RAMOS, Graciliano apud MORAES, Dênis de. Op. cit. p. 264.
52
70
BOSI, Alfredo.Op. cit. p. 118.
71
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. v.1., 8ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1997. p.
26-28.
53
72
RAMOS, Graciliano Linhas tortas. 10ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1983. p. 95
73
MORAES, Dênis de. Op. cit., p. 259.
54
74
Ibidem. p. 262.
75
RAMOS, Graciliano apud MORAES, Dênis de. O imaginário vigiado: a imprensa comunista e o
realismo socialista no Brasil (1947-1953). Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. p. 206.
55
por quê. De qualquer modo, o romance social terá que ser sentido e é preciso
que o personagem seja o próprio autor. 76
76
RAMOS, Graciliano apud MORAES, 1996. O velho Graça. ed. cit., p. 202.
56
A simpatia por Rodolfo Ghioldi era muito mais pela sua resistência às
pressões dos interrogatórios que pelos seus discursos: “Rodolfo cresceu muito
aos meus olhos. A energia involutária deu-lhe maior prestígio que a inteligência
revelada nos discursos longos.” (MC, vol. 1, p. 263). A belíssima descrição do
professor Hermes Lima mostra que o valor das pessoas está muito além do
que aparentavam no vestir:
Hermes Lima foi a pessoa mais civilizada que já vi. Naquele ambiente, onde
nos movíamos de cuecas, meio nus, admitindo linguagem suja e desleixo,
vestia pijama — e parecia usar traje rigoroso. Amável, polido, correto, de
amabilidade, polidez e correção permanentes. (MC, vol. 1, p. 301).
77
Ibidem, p. 210.
78
RAMOS, Graciliano apud MORAES, Denis de. O velho Graça. ed. cit. , p. 264.
58
Capítulo III
79
RAMOS, Ricardo. Graciliano: retrato fragmentado. ed. cit., p.79.
80
CRISTÓVÃO, Fernando Alves. Graciliano Ramos: estrutura e valores de um modo de narrar, 2a ed.
Rio de Janeiro: Editora Brasília/Rio, 1977, p. 39.
60
1 - Os intelectuais
Cada grupo social produz de modo orgânico os seus intelectuais que lhe
dão homogeneidade e consciência da própria função, nos campos econômico,
social e político. Ele distingue os intelectuais em orgânicos e tradicionais. Os
intelectuais orgânicos são aqueles que pertencem a uma determinada classe
social e são porta-vozes dessa classe, sendo conscientes de representá-la no
campo cultural. Por exemplo, o empresário cria o técnico da indústria, o
cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo
direito.
81
RAMOS, Ricardo. Graciliano Ramos: retrato fragmentado. ed. cit., p. 79-80.
61
82
GRAMSCI, Antonio. Alcuni temi della questione meridionale. In: Pensare L´Italia. Profilo biográfico
e cura di Giuseppe Vacca. Milano, Roma: Fondazione Istituto Gramsci onlus, s.d.
62
83
GRAMSCI, Antonio. Escritos políticos. Rio de Janeiro: Civiização Brasileira, 2004. (vol. 1, p. 117).
63
Tolice reconhecer que a professora rural, doente e mulata, merecia ser trazida
para a cidade e dirigir um grupo escolar: fazendo isso, dávamos um salto
perigoso, descontentávamos capacidades abundantes. O emburramento era
necessário. Sem ele, como se poderiam agüentar os políticos safados e
generais analfabetos? (MC, vol. 1, p. 41).
A pobrezinha tem sofrido muito por causa da minha prisão e penso que sofrerá
mais ainda pelo fato de que em nossa terra é difícil compreender que se pode
acabar preso sem ser ladrão, nem trapaceiro, nem assassino; ela vive em
condições de apavoramento permanente desde a deflagração da guerra (três
dos meus irmãos estavam na frente de batalha) e tinha e tem uma maneira de
se expressar com esta frase: I miei figli li macelleranno,85 que em sardo é
terrivelmente mais expressiva que em italiano: faghere a pezza. Pezza é a
carne que se vende, enquanto para o homem utiliza-se o termo carre.
Nesse trecho, percebe-se inclusive seu respeito pela cultura sarda, pois
a frase dita em dialeto lhe é muito mais significativa que em italiano. Ele não se
coloca distante dessa cultura em nenhum momento. Em várias cartas à família,
utiliza expressões do sardo, principalmente quando se recorda da infância e
quando escreve aos parentes de origem.
84
GRAMSCI, Antonio. Cartas, ed. cit. p. 54.
85
Os meus filhos vão virar carne de açougue.
65
2- A hegemonia cultural
Naquele dia a comida veio muito ruim, de aspecto mais desagradável que o
ordinário. No caixão ao pé da grade, empilhavam-se os pratos – e o alimento
se comprimia formando uma pasta onde se misturavam carne, peixe, arroz e
batatas esmagadas. Entramos na fila, passo a passo nos avizinhamos dos
faxinas ocupados da distribuição, recebemos a bóia enjoativa e a sobremesa:
uma laranja murcha, uma banana preta, meio podre.
Afastei-me, pegando a louça imunda, a sentir nos dedos grãos machucados e
gordura, subi os degraus de ferro. Lá em cima iria repetir-se a dificuldade
comum nas refeições. À falta de mesa ou cadeira, forrávamos a cama com
jornais guardados para as tochas com que se queimavam os percevejos.
Evitávamos assim, o contato da coisa repugnante com as cobertas. Mas a
imprensa ali era clandestina, só tinha livre curso à noite, nos resumos
badalados pela Rádio Libertadora. Minguava o papel – e, depois da queima
dos insetos procedíamos como bichos, segurando a comida, num embaraço
horrível (MC, vol. 1, p. 277).
comando. A sua força era interior. Dizia a palavra necessária, fazia o gesto
preciso, na hora exata.” (MC, vol. 1, p. 278). Seguido por Graciliano e os
demais presos, o caos se espalha. No final do capítulo, o narrador confessa:
86
O partido brasileiro compreendeu essa descrição do líder comunista apenas como negativa, sem
perceber que justamente essa “falsa fraqueza” é que faz a diferença na luta entre força e ideologia. Cf.
RAMOS, Ricardo. Graciliano: retrato fragmentado. Op. cit., p.199;
87
O autor como produtor. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da
cultura. (Obras escolhidas, I). São Paulo: Brasiliense, 1993.
68
para receber uma correspondência, o autor conta que primeiro oferecem uma
cadeira e depois lhe dão o envelope. “Para que sentar-me, se apenas viera ali
receber correspondência?” (MC, vol. 1, p. 103). O pedido educado escondia
uma ordem, que o narrador realiza com obediência: “Desejei agradecer e
conservar-me de pé, mas a semana de permanência naquele meio já me havia
feito compreender que tais recusas significavam indisciplina. Executei o
movimento exigido [...]”. Achando que bastava obedecer com o gesto, ele
senta-se e guarda a carta no bolso. Mas o sistema totalitário não se contenta
somente com a ação; é preciso controlar a informação e o pensamento
também. Então, o guarda lhe dá uma segunda ordem: “– Sou forçado a pedir-
lhe que abra o envelope na minha presença”. A submissão à segunda ordem
também é executada. Finalmente, com a melhor educação possível, o policial
conclui: “ – Estou satisfeito. Desculpe. É uma formalidade.” Nesse diálogo,
percebe-se que a coerção por meio do discurso é a grande arma do estado
para controlar as massas e ainda tê-las em seu favor: “Quereriam apenas dar-
me a entender que poderiam obrigar a comportar-me desta ou daquela
maneira, sentar-me ou levantar-me, romper ou deixar intacto um sobrescrito?
Não, seria um jogo tolo de gato e rato.” (MC, vol. 1, p. 104).
3- A questão meridional
Ainda hoje o sul italiano é uma região muito mais agrícola e continua a
produzir profissionais para a Itália setentrional. Essa diferença, com o passar
dos anos, dividiu o país também economica e socialmente, pois, atualmente, a
Itália meridional forma intelectuais que, devido à falta de oportunidades,
acabam migrando para o norte. Se pensarmos no Brasil, vemos algumas
semelhanças, pois durante muito tempo, com o flagelo da seca e a falta de
políticas públicas voltadas para o Nordeste, foi imperioso a migração
nordestina e a maior parte do desenvolvimento econômico do país ficar
concentrado nas regiões Sudeste-Sul. Graciliano toca sutilmente a questão do
sonho nordestino de ganhar a vida no sul ironizando a si mesmo: ”Uma viagem
ao sul por conta do governo” (MC, vol. 1, p. 117).
88
GRAMSCI, Antonio. A questão meridional. Sao Paulo, Paz e Terra, 1987.
70
Franco mi pare molto vispo e intelligente: penso che parli già correntemente. In
che lingua parla? Spero che lo lascerete parlare in sardo e non gli
darete dei dispiaceri a questo proposito. È stato un errore, per me, non aver
lasciato che Edmea, da bambinetta, parlasse liberamente in sardo. Ciò ha
nociuto alla sua formazione intellettuale e ha messo una camicia di forza alla
sua fantasia. Non devi fare questo errore coi tuoi bambini. Intanto il sardo non è
un dialetto, ma una lingua a sé, quantunque non abbia una grande letteratura,
ed è bene che i bambini imparino piú lingue, se è possibile. Poi, l’italiano, che
voi gli insegnerete, sarà una lingua povera, monca, fatta solo di quelle poche
frasi e parole delle vostre conversazioni con lui, puramente infantile; egli non
avrà contatto con l’ambiente generale e finirà con l’apprendere due gerghi e
nessuna lingua: un gergo italiano per la conversazione ufficiale con voi e un
gergo sardo, appreso a pezzi e bocconi, per parlare con gli altri bambini e con
la gente che incontra per la strada o in piazza. Ti raccomando, proprio di cuore,
di non commettere un tale errore e di lasciare che i tuoi bambini succhino tutto il
sardismo che vogliono e si sviluppino spontaneamente nell’ambiente naturale in
cui sono nati: ciò non sarà un impaccio per il loro avvenire, tutt’altro (p. 43)90.
89
GRAMSCI, Antonio. Lettere dal cárcere. Org. de Antonio Santucci. Sellerio, Palermo, 1996. (A edição
organizada por Santucci possui novas cartas em relação à edição brasileira também utilizada neste
trabalho).
90
Franco me parece muito esperto e inteligente: acho que já fala fluentemente. Em que língua fala?
Espero que vocês o deixem falar em sardo e não lhes desagrade essa idéia. Foi um erro, para mim, não
terem deixado que Edmea, desde criança, falasse livremente em sardo. Isso prejudicou a sua formação
intelectual e colocou uma camisa de força na sua fantasia. Não deves cometer este erro com os teus
meninos. Entanto, o sardo não é um dialeto, mas uma língua em si, embora não tenha uma grande
literatura, e é bom que as crianças aprendam mais línguas, se é possível. Depois, o italiano que vocês
lhes ensinarão, será uma língua pobre, mutilada, feita somente daquelas poucas palavras e frases das
suas conversas com ele, puramente infantil; ele não terá contacto com o ambiente geral e acabará por
aprender dois jargões e nenhuma língua: um jargão italiano pela conversa oficial com vocês e um jargão
sardo, aprendido a pedaços e bocados, para falar com as outras crianças e com as pessoas que encontra
na rua ou na praça. Recomendo-te mesmo, de coração, de não cometer tal erro e de deixar que os teus
filhos suguem todo o sardismo que quiserem e se desenvolvam espontaneamente no ambiente natural em
que nasceram: isso não será um impedimento para o futuro deles, pelo contrário.
71
4 – Literatura nacional-popular
Os intelectuais não saem do povo, ainda que acidentalmente algum deles seja
de origem popular; não se sentem ligados ao povo (à parte a retórica), não o
conhecem e não sentem suas necessidades, suas aspirações e seus
sentimentos difusos; mas são, em face do povo, algo destacado, solto no ar, ou
seja, uma casta e não uma articulação (com funções orgânicas) do próprio
povo. (CC, vol. 6, p. 43).
Ele ainda observa que os escritores mais populares não são italianos,
mas estrangeiros, como: Zola, Balzac, Victor Hugo e Tolstoi. Contrário ao que
aconteceu na Itália, a burguesia francesa soube criar uma literatura nacional-
popular que chegou realmente até o povo. Porém, no seu país, a ausência
91
desse tipo de literatura não permitiu uma reforma intelectual e moral. No
máximo, existia um regionalismo apresentando o povo como pitoresco e
folclórico: “O que prejudicou os escritores italianos foi precisamente seu íntimo
91
Para Gramsci, o Renascimento italiano foi um movimento cultural essencialmente elitista. Diferente da
Reforma protestante, que envolveu todo o povo. A Igreja não contribuiu para promover qualquer reforma
popular, pelo contrário, coibiu com a Contra-Reforma.
72
92
GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional. ed. cit., p. 64.
73
93
Prisioneiro da Colônia Correcional. José teve uma infância difícil, rebelou-se das surras dos pais não
frequentando a escola, não procurando emprego para tornar-se ladrão.
94
O livro Gomorra (2006) descreve as várias formas de atuação da Camorra (máfia napoletana), desde o
tráfico de drogas, armas, o problema do lixo em toda a Campânia até a falsificação chinesa das grandes
marcas italianas, e seu escoamento através do porto de Nápoles. O autor conta ainda sobre a vida dos
Boss (chefes da máfia) e cita os principais nomes da Camorra. A princípio a idéia de um livro
denunciando a Camorra foi recebida como uma ameaça ao crime organizado, o autor Roberto Saviano94
precisou ser escoltado, mas conta que depois todos (mafiosos, familiares de Boss, inclusive jornalistas)
queriam aproveitar a situação e aparecer no livro. Alguns jovens até fingiam despachar pacotes de droga
para serem “filmados”. Depois da publicação do livro, em várias entrevistas, Saviano disse ter recebido
propostas de mafiosos para serem citados nos próximos livros do autor. Cf. SAVIANO, Roberto.
Gomorra: viaggio nell´impero econômico e nel sogno della Camorra. Milano: A. Mondadori, 2006. p.
105.
74
5- Literatura é sentimento
A visão do Mestre Graça sobre a literatura reflete o que fez com os seus
personagens na ficção e na autobiografia. João Valério, Luís da Silva, Fabiano
e Paulo Honório nos são mostrados através do que sentem e são tão humanos
quanto todos nós. A intensidade desses textos artísticos se prova por despertar
em nós os sentimentos mais cotidianos e mais profundos.
95
RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. 10ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1983. (p. 98-99).
96
CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão, ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Editora 34,
1992. p. 66.
75
Na segunda parte das Memórias, seu estilo pode ser sentido através do
caso narrado sobre o soldado Alfeu. O diretor da prisão aniversariava no dia
seguinte e o soldado gostaria de fazer-lhe um discurso, representando a
polícia. Como não sabia o que dizer, pede ajuda a Graciliano. As respostas ao
soldado demonstram bem o seu modo de escrever:
— Bem. Suponhamos que eu saiba fazer isso. Imagina que posso fazer? Não
adivinho seus sentimentos. Se eu escrevesse o discurso, toda a gente
compreenderia logo que ele não era seu. [...]
— Use sua linguagem, tornei. Não adianta dizer frases bonitas, alheias. Mostre
com simplicidade o que tem dentro” (MC, vol. 2, p. 110).
76
E para terminar a conversa: “E depois não tenho motivo para ser amável
com o diretor. Você tem, é natural. Mas eu, acha que posso ser amigo dele?”
(MC, vol. 2, p. 110). O velho Graça, com sua sinceridade, arremata o diálogo
deixando claro que os dois estão em lados opostos. Não era preciso discurso
político, mas bastavam as perguntas finais para delimitar os espaços. Ele não
conseguiria escrever uma linha para o diretor do presídio, pois não saberia
escrever textos oportunistas. Sua preocupação era de se sentir prejudicado
consigo mesmo, com seus ideais, ao fazer discursos falsos de apoio ao
governo ditador que o mantinha atrás das grades por dizer o que pensava.
Essa liberdade para poder dizer “não” com muita dignidade demonstra o
quanto a palavra escrita tem importância na sociedade. Os fascistas detinham
o poder, mas não conseguiram controlar mentes como as do escritor alagoano.
Gramsci toca nessa questão, dizendo que o ócio do artista foi mal
interpretado pela sociedade que liga sempre à idéia dos mecenatos no
Renascimento. Na verdade, o não fazer nada não existia, pois mesmo Ariosto,
77
97
Cf. DOSTOIEVISKI, Fiodor. Recordações da casa dos mortos. São Paulo: Nova Alexandria, 1982. p.
65.
78
questiona: “Quem sabe se o estivador não tinha alguma razão?” Sua pergunta
é provocadora e inclui a importância desse aparente não-fazer nada do artista
para fazer tanto através da arte. O trabalho artístico que não produz algo
palpável é, na verdade, o fazer que pode mudar as pessoas, pode transformar
o mundo ou simplesmente não fazer nada – ser simplesmente prazer, emoção,
fruição – coisas que todo ser humano precisa para viver e não apenas
sobreviver.
80
Capítulo IV
98
CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão. Op. cit., p 13.
82
Nesta parte, não nos interessa saber o que é verdade ou ficção, mas
destacar os desdobramentos da experiência do cárcere no seu fazer literário e
que aproximação pode haver com as idéias de Gramsci. Utilizamos os
seguintes textos: Angústia, Terra dos meninos pelados, Infância, Vidas Secas,
Insônia, Viagem, Viventes das Alagoas e Linhas Tortas. Com exceção de
Angústia, todos esses textos foram escritos após a o período da prisão.
1- Angústia (1936)
99
Ficção e confissão. ed. cit. p. 62.
100
BASTIDE, Roger. Graciliano Ramos. Teresa. Revista de Literatura Brasileira. Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. USP, nº 2, Editora 34, 2001,
p. 136.
101
BASTOS, Hermenegildo. Memórias do cárcere: literatura e testemunho. Brasília: Editora UnB, 1998,
p.108.
83
102
FALLEIROS, Marcos Falchero. A figura da grade. In: Teresa, revista de literatura brasileira, nº 3,
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, FFLCHA – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 237-251.
84
103
Dante ingressa no sexto círculo do inferno, conduzido por Virgílio, onde estão os condenados por
heresia, e em particular, os epicuristas. Dante demonstra interesse em conversar com seu conterrâneo
Farinata, um líder gibelino, que, ouvindo o poeta falar em florentino, dirige-se a ele, sendo logo
informado de que Dante, um guelfo branco, é seu adversário político. Durante esse diálogo, ergue-se de
sua tumba incandescente outro florentino, Cavalcante, cujo filho, Guido, é um poeta ateu, amigo de
Dante. Surpreso por não ver Guido ao lado de Dante, Cavalcante pergunta: “Meu filho onde está? Por que
não está contigo?” E o poeta responde: “Não vim por vontade minha. Esse [Virgílio] que me espera é meu
guia, a quem vosso filho Guido desdenhou.” Diante dessa resposta, Cavalcante retruca: “Por que disseste
que meu filho ‘desdenhou’? Ele não vive mais? Não mais a doce luz solar ofusca seus olhos?” Tardando
a resposta de Dante, Cavalcante caiu de costas e não mais apareceu. Farinata, enquanto isso, não muda o
semblante, não abaixa a cabeça, não dobra a coluna. Informa a Dante sobre o exílio político do poeta e a
condição dos condenados: eles vêem o passado e o futuro, mas não vêem o presente. Isso explica o
sofrimento de Cavalcante. Cf. DANTE, Alighieri. La Divina Comedia. Milano: A. Mondadori, 1966. p.
40-43.
85
no passado, o pai subentende que o filho está morto. “Como Dante representa
este drama? Ele o sugere ao leitor, não o representa; fornece ao leitor os
elementos para que o drama seja reconstruído e estes elementos são dados
pela estrutura.” (CC, vol. 6, p. 18).
104
GRAMSCI, Antonio. Cartas do cárcere. Op. cit., p. 238.
86
O corpo de Julião Tavares ora tombava para frente, ora se inclinava pra trás e
queria cair em cima de mim. A obsessão ia desaparecer. Tive um
deslumbramento. O homenzinho da repartição e do jornal não era eu. Esta
convicção afastou qualquer receio de perigo. Uma alegria enorme encheu-me.
Pessoas que aparecessem ali seriam figurinhas insignificantes. Tinha-me
enganado. Em trinta e cinco anos haviam-me convencido de que só me podia
mexer pela vontade dos outros.105
105
RAMOS, Graciliano. Angústia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. p. 182-183.
87
Por falar em prêmio, o negócio do Ministério da Educação está sendo lido. [...]
Certamente os meus meninos pelados se enterram. É bom. Você ficaria
satisfeita se eles conseguissem o terceiro lugar. É melhor não terem coisa
nenhuma. Um terceiro lugar seria um desastre. E não acredito que paguem
estes prêmios. Convém não pensar nisso. (p. 197).
106
RAMOS, Graciliano. A terra dos meninos pelados. In: Alexandre e outros heróis. 19ª. ed. São Paulo:
Martins, 1980.
88
107
RAMOS, Clara. Cadeia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992, p. 164.
108
Ibidem, p. 112.
89
Uma das coisas que mais me interessaram na sua carta de 8/13 de agosto foi a
notícia que Delio e Giuliano se empenham em pegar rãs. Há alguns dias vi
citado num artigo de revista uma apreciação de lady Astor sobre o modo como
na Rússia são tratados os meninos. [...] Ao que parece pelo artigo, a única
crítica que lady Astor faz ao tratamento dado aos meninos é esta: que os
russos mostram-se de tal modo preocupados em manter limpas as crianças,
que nem sequer lhes dão tempo para se sujar.
Parece que ele pensa que uma vez tornada impossível a coerção, os meninos
não farão mais que se espojar programaticamente na lama como reação
individual-liberal ao autoritarismo de que são atualmente vítimas. De qualquer
modo, parece-me que Delio e Giuliano têm alguma oportunidade de se sujar
caçando rãs. Gostaria de saber se se trata ou não de rãs comestíveis, o que
daria à sua atividade um caráter prático e utilitário não desprezível. 111
109
Philippe Ariès explica que na Idade Média não havia distinção entre os trajes dos adultos e das
crianças e que as roupas somente demonstravam a classe social das pessoas. A partir do século XVII é
que surge a diferença no modo de se vestir, mas apenas para as crianças burguesas, pois as do povo
continuariam a se vestir como adultos. Isso ocorreu pela mudança de visão sobre a infância. Na verdade,
as crianças passaram a utilizar as roupas que caíram em desuso pelos adultos como forma de serem
adornadas, ou seja, os infantes tornaram-se uma espécie de bibelô para o mundo adulto, mesmo que as
vestimentas não fossem tão confortáveis e sufocassem os pequenos. (Cf. ARIÈS, Philippe. História
social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981); Walter Benjamin também comenta
sobre essa questão, pois somente no séc. XIX haverá a emancipação dos infantes no vestir, sem que sejam
tratados como adultos em miniaturas. (Cf. BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e
a educação. São Paulo: Duas Cidades, Ed.34, 2002. p. 86).
110
Gramsci teve dois filhos com Giulia Schucht: Delio (1924) e Giuliano (1926), o segundo ele não
chegou a conhecer.
111
GRAMSCI, Antonio. Cartas. ed. cit., p. 220.
90
112
Osman Lins vê em Tatipirun uma imagem do Nordeste e a linguagem regional no conto seria
responsável por essa representação. Cf. LINS, Osman. “O mundo recusado, o mundo aceito e o mundo
enfrentado”. In: RAMOS, Graciliano. Alexandre e outros heróis. São Paulo: Record, 1980. (Posfácio).
92
Mais uma vez a ironia de Graciliano Ramos é utilizada para mostrar que
a violência está relacionada às sociedades mais primitivas e menos
desenvolvidas. Lembrando as torturas aos presos capturados no Levante
Comunista, nos mostra o meio antigo e violento de resolver diferenças:
113
RAMOS, Graciliano. A Terra dos meninos pelados. In:Alexandre e outros heróis. São Paulo: Record,
1980, p. 106.
93
ausência de antes:
— Não posso, gemeu Raimundo. Eu queria ficar com vocês, mas preciso
estudar minha lição de geografia.
— É necessário?
— Sei lá! Dizem que é necessário. Parece que é necessário. Enfim... não sei.
(p.130).
114
Contrária à divisão da escola em clássica (destinada às classes dominantes) e profissional (para classes
instrumentais).
94
Caro Delio,
Creio que será sempre preciso levar os escolares a um caminho que permita o
desenvolvimento de uma cultura sólida e realista, depurada de quaisquer
elementos de ideologias antiquadas e estúpidas capaz, portanto, de permitir a
formação de uma geração que saiba construir a sua vida e a vida coletiva de
modo sóbrio. 116
Além disso, Gramsci trata o filho como um ser humano e não como um
bibelô, como demonstração de valor e estima :
Procurei obter estas informações dele mesmo, tratando-o como se tivesse uma
personalidade formada e nisto não creio ter me enganado; creio que um
menino fica mais contente por ser tratado como alguém de personalidade
formada do que como um eterno brinquedo para os grandes e que isto os
alegra muitíssimo por todos os pontos de vista.117
115
GRAMSCI, Antonio. Cartas. ed. cit., p. 372.
116
Ibidem, p. 380.
117
Idem.
95
Escrevi um conto sobre a morte de uma cachorra, um troço difícil, como você
vê: procurei adivinhar o que se passa na alma de uma cachorra. Será que há
mesmo alma em cachorro? Não me importo. O meu bicho morre desejando
acordar num mundo cheio de preás. Exatamente o que todos nós desejamos. A
diferença é que eu quero que eles apareçam antes do sono, e padre Zé Leite
pretende que eles nos venham em sonhos, mas no fundo todos somos como a
118
minha cachorra Baleia e esperamos preás.
Tento saber o que eles têm por dentro. Quando se trata de bípedes, nem por
isso, embora certos bípedes sejam ocos; mas estudar o interior de uma
cachorra é realmente uma dificuldade quase tão grande como sondar o espírito
de um literato alagoano. Referindo-me a animais de dois pés, jogo com as
mãos deles, com os ouvidos, com os olhos. Agora é diferente. O mundo
exterior revela-se a minha Baleia por intermédio do olfato, e eu sou um bicho
de péssimo faro. 119
118
RAMOS, Graciliano. Cartas. ed. cit., p. 201.
119
Ibidem.
120
RAMOS, Ricardo. Graciliano: retrato fragmentado. op. cit. p. 106.
96
Por que seria que seu Inácio botava água em tudo? — perguntou mentalmente.
Animou-se e interrogou o bodegueiro: — Por que é que vossemecê bota água
em tudo?
Seu Inácio fingiu não ouvir. E Fabiano foi sentar-se na calçada, resolvido a
conversar. (p. 14) 121
121
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 45. ed. Rio de Janeiro: Record, 1980.
122
Ibidem.
97
Não nos enganemos, porém: o convívio, com tudo que ele implica, a partilha do
pão, da esteira de dormir, do sofrimento comum, do destino comum, fabrica
companheiros, camaradas, mas não dissolve as diferenças. Vidas Secas,
narrado em terceira pessoa, respeita esse intervalo. 123
Mas essa estranha figura de apóstolo disponível tinha os olhos muito abertos,
examinava cuidadosamente a vida miserável das nossas populações rurais,
ignorada pelos estadistas capengas que nos dominavam. Defendia-se com
vigor, atacava de rijo; um magote de vagabundos em farrapos alvoroçava o
exército, obrigado a recorrer aos batalhões patrióticos de Floro Bartolomeu, ao
civismo de Lampião. Que significava aquilo? Um protesto, nada mais. Se por
milagre a coluna alcançasse vitória, seria um desastre, pois nem ela própria
sabia o que desejava. Sabia é que estava tudo errado e era indispensável fazer
qualquer coisa. Já não era pouco essa rebeldia sem objetivo, numa terra de
conformismo e usura, onde o funcionário se agarrava ao cargo como ostra, o
comerciante e o industrial roíam sem pena o consumidor esbrugado, o operário
se esfalfava à toa, o camponês agüentava todas as iniqüidades, fatalista,
sereno. (grifo meu) (MC, vol. 1, p. 82).
A descrição do apóstolo salvador do início do parágrafo se desfaz com o
tipo de organização social vigente, de exploração e individualismo, sem luta
preparada, que comprime cada vez mais o camponês. No trecho acima,
Fabiano já estava esboçado: fatalista e sereno, obediente e submisso. A sua
desumanização não é somente causada pelo sistema, mas também pela
experiência do autor com os seres desumanizados na prisão. Sem a adesão
123
REIS, Zenir Campos. In: DUARTE, Eduardo de. (Org.). Graciliano Revisitado. Natal:
UFRN/CCHLA, 1995. P. 41.
98
O escritor sabia de seu papel, então, por isso, sua voz é também a de
Fabiano. A sensação de inutilidade do trecho acima é mais uma contribuição à
causa do camponês, apesar de que seu trabalho não é físico, mas intelectual.
Gramsci criticou Alessandro Manzoni (1785-1873), em I promessi sposi (1841),
pela sua caricatura dos elementos populares.
Manzoni quis fazer um romance de humildes, mas isso tem um significado mais
complexo.[...] Entre Manzoni e os humildes, há distanciamento sentimental; os
humildes são para Manzoni um problema de historiografia, um problema teórico
que ele acredita poder resolver com o romance histórico, com o verossímil do
romance histórico. Por isso, os humildes são freqüentemente apresentados
como caricaturas populares, com benevolência irônica, mas irônica. E Manzoni
é demasiadamente católico para pensar que a voz do povo é a voz de Deus:
entre o povo e Deus, está a igreja, e Deus não se encarna no povo, mas na
Igreja. A crença que Deus se encarna no povo pode ser a de Tosltoi, não a de
Manzoni. (CC, vol. 6, p. 247).
Na briga com o soldado amarelo, mais uma vez o cárcere nos aparece
com a prisão de Fabiano sem motivo real:
4- Infância (1945)
124
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. ed. cit., p. 16.
101
A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio
de pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde o vi, quando o vi, e se
uma parte do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá-lo-ia sonho.
Talvez nem me recorde bem do vaso: é possível que a imagem, brilhante e
esguia, permaneça por eu a ter comunicado a pessoas que a confirmaram.
Assim, não conservo a lembrança de uma alfaia esquisita, mas a reprodução
dela, corroborada por indivíduos que lhe fixaram o conteúdo e a forma. De
qualquer modo a aparição deve ter sido real. Inculcaram-me nesse tempo a
noção de pitombas — e as pitombas me serviram para designar todos os
objetos esféricos. Depois me explicaram que a generalização era um erro, e
125
isto me perturbou. (grifo meu)
125
RAMOS, Graciliano. Infância. Rio, Record, 1981, p. 8.
126
Ibidem, Id.
102
Não consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas lembranças dela a fatos
que se deram depois, imagino os berros de meu pai, a zanga terrível, a minha
tremura infeliz. Provavelmente fui sacudido. 128
127
CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão. ed. cit. , p. 54.
128
RAMOS, Graciliano. Infância. ed. cit., p. 30.
103
O adulto Graciliano, após esse fato, já não podia mais ouvir alguém falar
alto, pois sentia bater forte o coração, comparando esse mal-estar a “pontas de
ferro que furam os tímpanos”. 130 E nas memórias da prisão escreve:
129
Ibidem, p. 32.
130
Ibidem. Id.
104
Esse adulto que já se formou num meio agreste, para completar desce
ao inferno da cadeia, então, só pode ter como conseqüência a permanente
desconfiança em relação ao mundo. Os pais eram torturadores, a escola foi a
primeira prisão, como bem disse em Infância. A surpresa em relação a
qualquer gesto de solidariedade aparece em Memórias do Cárcere muitas
vezes: no empréstimo oferecido pelo Capitão Lobo131, na cama que lhe
oferecem para repousar132, na insistência de Cubano que ele se alimente
adequadamente133, a simpatia de Nise da Silveira134. Essa dúvida no ser
humano não significa que tudo está perdido, mas expressa o quanto foi
esmagado desde o berço. Habituado à injustiça, o menino que apanha pelo
motivo fútil é o homem que vai duvidar até de um simples elogio.
131
Cf. MC, vol.1, p. 90 -93.
132
Cf. MC, vol.2, p. 171.
133
Cf. MC, vol.2, p. 139.
134
Cf. MC, vol.2, p. 228.
105
135
RAMOS, Graciliano. Infância. ed. cit., p. 229.
136
Ibidem, p. 235.
106
O lugar de estudo era isso. Os alunos se imobilizavam nos bancos: cinco horas
de suplício, uma crucificação. Certo dia vi moscas na cara de um, roendo o
canto do olho, entrando no olho. E o olho sem se mexer, como se o menino
estivesse morto. Não há prisão pior que uma escola primária do interior. A
imobilidade e a insensibilidade me aterraram. Abandonei os cadernos e as
auréolas, não deixei que as moscas me comessem. Assim, aos nove anos
ainda não sabia ler. (p.120)
5- Insônia (1947)
agonia o insone, bem como o jogo de luz e sombra na sua visão embaçada
entre o sonho e realidade. A noite que não termina é interrompida até pelo
silêncio e, dentre tantos pensamentos, está a espera do dia seguinte: “Amanhã
comportar-me-ei direito, amarrarei uma gravata ao pescoço, percorrerei as ruas
como bicho doméstico, um cidadão comum, arrastado para aqui, para acolá,
dizendo frases convenientes. Feliz, completamente feliz.”137
A insônia e outros distúrbios do sono são comuns aos presidiários. Tanto
Graciliano quanto Gramsci falam das dificuldades de repouso na prisão. O
escritor italiano conta que as constantes rondas noturnas interrompiam-lhe o
sono todos os dias, causando-lhe uma insônia crônica, que foi um dos fatores
de degeneração de sua saúde nos últimos anos do cárcere..
Transformando essa agonia dos insones em conto, Graciliano joga com
o tempo e os sentimentos no fluxo da consciência para tanto. Esse recurso vai
adiante também com outros contos do livro, como “Um ladrão” e “O relógio do
hospital”. No conto “Um ladrão”, temos a explícita referência do autor ao
criminoso conhecido na Colônia Correcional – Gaúcho. Na prisão, “As histórias
de Gaúcho afugentavam-me o sono, ser-me-ia agradável escutá-lo muitas
horas.” (MC, vol. 2, p. 118). Como as narrativas de Sherazade, separadas
apenas pelas noites e o cansaço físico que exigia o sono, Gaúcho aprisionava-
os também pelo contar de seus furtos, mas na prisão elas tem ruptura:
“Infelizmente quebravam-se: vinha o momento de recolher, éramos forçados a
calar-nos e o resto da narrativa se adiava para a noite seguinte.” (MC, vol. 2, p.
118).
O ladrão do conto entra numa casa para furtá-la, tramando sempre
mentalmente estratégias ensinadas pelo mestre Gaúcho. Sua desgraça é
encontrar uma moça bonita que dormia descoberta, pois na vontade de beijá-
la, o ladrão põe tudo a perder no seu intento. Nelly Novaes Coelho diz que foi o
próprio inconsciente que precipitou sua tragédia. Se não tivesse olhado para a
moça linda que dormia, não cairia na prisão, como anunciou desde o início do
conto: “Se não batessem nos móveis e não dirigissem a luz para os olhos das
137
RAMOS, Graciliano. Insônia. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1982, p. 17.
108
Convém saber mexer-se rapidamente e sem rumor, como um gato: o corpo não
pesa, ondula, parece querer voar, mal se firma nas pernas, que adquirem
elasticidade de borracha. (p.19);
Gaúcho tinha nervos de ferro. Tirar anéis de uma pessoa adormecida! Que
homem! Anos de prática, diversas entradas na Casa de Detenção. (p. 29);
138
In: BRAYNER, Sonia. Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 65.
139
RAMOS, Graciliano. Insônia. ed. cit., p. 20.
109
miudezas.”140 Esse tempo perdido nada mais é que o próprio fazer do autor em
escrever suas memórias – tentar lembrar, unir seqüência, sentimentos,
exatamente seu processo de recordação da cadeia.
Rolando Morel Pinto fala sobre o cuidado de Graciliano de fugir do estilo
extravagante, da frase de grande efeito, preferindo a concisão da frase ao
extremo. O uso preponderante de orações simples, períodos coordenados
assindéticos a que o crítico distingue como Veni-vidi-vici, segundo Helmut
Hatzfeld, o estilo de notas ou de diário e as frases nominais. Esse tipo de
construção está relacionado ao rasgo psicológico de quem precisa dizer muito
em pouco tempo. O crítico afirma que esse estilo aprimora-se em Vidas Secas,
“em que as palavras estão matematicamente contadas para que nada pareça
supérfluo ou luxuoso dentro da moldura agreste em que se encaixam aqueles
141
infelizes.” O estilo de notas ou diário caracteriza, então, a prosa do autor
depois da experiência da prisão, pois nesse tipo de construção aproxima-se à
linguagem oral e à reprodução espontânea das reações humanas. Além da
experiência jornalística do autor, conta também a condição precária, tendo de
escrever escondido em pedaços de papel. O estilo telegráfico de Graciliano
aparece nos contos de Insônia, quando faz pausa para se explicar, como quem
toma notas na prisão. As impressões desconexas em frases nominais dão a
sensação de vida real, através da simultaneidade de ações.
Essas mesmas impressões aparecem no conto “O relógio do hospital”,
no qual as badaladas do relógio cortam o pensamento do paciente. O som
repetido do relógio soa como tortura ao personagem e o pensamento
escorrega de um objeto para outro. Nas idéias diluídas confirmamos o estilo de
notas do ex-encarcerado:
140
Ibidem, p. 27.
141
PINTO, Rolando Morel. Estruturas frásicas. In: GARBUGLIO, J. C. et alii. Graciliano Ramos, Op.
cit., p. 254.
110
6- Viagem (1954)
142
RAMOS, Graciliano. Viagem. São Paulo: Record, 1983.
143
Dênis Moraes fala que o Partido não mandou as passagens de volta para Graciliano e que Sinval
Pereira organizou uma coleta de dinheiro com alguns militantes para comprá-las. Não se sabe se foi por
falta de organização ou porque o viajante não havia atendido às expectativas de Moscou. Nem Graciliano
nem Heloísa souberam desse fato. Cf.MORAES, Dênis. O velho Graça. Op. Cit., p. 289.
144
Cf. MORAES, Dênis de. O velho Graça. Op. cit., p. 283.
112
— Nem sei, Kaluguin. Talvez nenhum. Vocês é que devem examinar isso.
Tinha-me vindo o pensamento de que os meus romances nenhum interesse
despertariam àqueles homens: são narrativas de um mundo morto, as minhas
personagens comportam-se como duendes. Na sociedade nova ali patente,
alegre, de confiança ilimitada em si mesma, lembrava-me da minha gente
fusca, triste, e achava-me um anacronismo. Essa idéia, que iria assaltar-me
com freqüência, não me dava tristeza. Necessário conformar-me: não me havia
sido possível trabalhar de maneira diferente: vivendo em sepulturas, ocupara-
me em relatar cadáveres. (p. 57).
Zélins acha excelente a nossa desorganização, que faz com que o sujeito
esteja na Colônia hoje e fale com ministros amanhã; eu acho ruim a
mencionada desorganização, que pode mandar para a Colônia o sujeito que
falou com o ministro.145
145
RAMOS, Graciliano. Cartas. Op. cit., p. 178.
146
RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1983, p. 100.
116
147
RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas, op. cit., p. 103.
117
148
Ibidem, p. 129.
149
Ibidem, p. 132.
150
Ibidem, p. 137.
118
151
Ibidem, p. 154.
152
Ibidem, p. 153.
119
153
RAMOS, Graciliano. Linhas tortas, ed. cit. p. 129.
154
Ibidem, p. 130.
120
Seria ótimo que todos os romancistas do Brasil tivessem passado uns meses
na Colônia Correcional de Dois Rios, houvessem conhecido as figuras
admiráveis de Cubano e Gaúcho. Podem tomar isto como perversidade. Não é.
Eu acharia bom que meus melhores amigos demorassem um pouco naquela
barracão medonho. É verdade que eles sofreriam bastante, mas talvez isso
155
Ibidem, p. 132.
121
minorasse outras dores complicadas que eles inventam. Existe ali uma
razoável amostra de inferno — e, em contato com ela, o ficcionista ganharia.156
156
Ibidem, p. 98.
157
Cf. GRAMSCI, A. Literatura e vida nacional. Op. cit.
158
RAMOS, Graciliano. Linhas tortas, Op. cit.
122
Assim como fazia nas reuniões do Coletivo na prisão, com seu caráter
discreto, estando longe das polêmicas sem fim. Seu embaraço com os
discursos orais era inversamente proporcional à sua disposição natural para a
escrita. O caráter contido contribuiu como um elemento dosador para sua obra,
pois a partir dele filtrava o dizer essencial: “Realmente não me abria: era-me
impossível qualquer revelação, pois me faltavam segredos. E em geral as
conversas me chateavam. Se tentava explicar-me, envolvia-me num cipoal de
equívocos.” (MC, vol. 2, p. 219).
Se essa pobre figura histórica nos humilha, que dirão em Paris vendo os pretos
e os farrapos que há nos livros do Sr. Jorge Amado? Naturalmente dirão que
vivemos numa terra de percevejos e moleques.
Jubiabá é, pois, uma espécie de contrabando literário — e está ai o maior
elogio que podemos fazer-lhe; tem de impor-se por suas virtudes. Infelizmente
foi publicado pela N.R.F. e custa vinte e oito francos, que, traduzidos no Brasil,
significam aí uns vinte e dois mil-réis. Seria melhor ter saído numa dessas
brochuras de capa amarela que se vendem a três francos e meio. Melhor para
o público europeu, é claro. Entre nós o livro ganha por estar em língua
estrangeira e ser caro. Pessoas finas que desprezaram o volume da José
Olímpio ilustrado por Santa Rosa vão achar excelente mercadoria importada. O
159
Ibidem.
123
que será muito bom: o romance de Jorge Amado conquistará mais alguns
leitores indígenas.160
“As jibóias aqui são animais domésticos e têm grande utilidade — vigiam as
casas, comem os ratos, brincam com as crianças, enfim substituem
perfeitamente os cães, os gatos e as amas-secas. À noite, quando o cidadão
vai deitar-se, encontra às vezes no meio das cobertas uma rodilha enorme.
Está acostumado: empurra-a com os pés, enrosca-se junto dela, cobre-se,
pega no sono e tem bons sonhos. Nunca nenhuma dessas serpentes
camaradas fez mal a ninguém.”
Francamente, é demais. A intenção da moça foi boa: com certeza ela
pretendeu ser-nos agradável, se bem que não tenhamos o direito de receber
para nós os elogios feitos às jibóias.162
160
Ibidem, p. 118.
161
Ibidem, p. 145.
162
Ibidem, p. 170.
163
Cf. CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, vol. 1, p. 181-
212.
124
164
Ibidem. p. 146.
125
Sendo assim, escrever seria dizer uma verdade, não a verdade que
todos já vêem, mas os reais sentimentos e o que eles podem suscitar em cada
leitura. Talvez por isso, consideram-no objetivo, realista ou seco. No entanto,
ele mesmo argumenta: “Mas a obrigação do romancista não é condenar nem
perdoar a malvadez: é analisá-la, explicá-la. Sem ódios, sem idéias
preconcebidas, que não somos moralistas”.166 Ainda sobre essa verdade que o
artista não pode deixar de dizer, na crônica “Norte e Sul”, podemos
compreender claramente sua opinião, a de quem já viveu atrás das grades e
passou por tanto caminho imundo:
165
Ibidem, p. 257.
166
Ibidem, p. 259.
167
Ibidem. p. 136.
126
Capítulo V
OUTRAS MEMÓRIAS
127
168
In: FALLEIROS, Marcos Falchero. Scriptoria II: ensaios de literatura. Natal: EDUFRN, 2000.
128
169
RAMOS, Graciliano. Viagem. Rio, São Paulo, Record, 1983. p.14
170
RAMOS, Graciliano. Infância. ed. cit., p. 126.
171
RAMOS, Graciliano. Cartas. ed. cit., p. 19.
172
LIMA, Valdemar de Souza. Graciliano Ramos em Palmeira dos Índios. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1980. p. 118.
129
Não pretendo consertar nada. O que Deus Nosso Senhor fez, ou alguém por
ele, deve estar certo. Limito-me a expor um fato. E para que me acreditem,
confesso, com vergonha, que sou suspeito.
Por motivo de ordem econômica, resolvi um dia, a exemplo de toda gente,
ministrar aos outros alguns conhecimentos proveitosos a mim. Não me
arrisquei a preparar oleiros ou sapateiros pois ninguém tomaria a sério sapato
ou panela que eu fizesse. Procurei matéria exótica, de verificação difícil.
Imaginando, sem grande esforço, que na Itália existia uma língua, pedi
catálogos ao Garnier e dispus-me resolutamente a estropiar o italiano com a
173
RAMOS, Ricardo. Graciliano: retrato fragmentado. Op. cit, p. 111.
174
RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas. ed. cit. p. 138.
130
ajuda de Deus. Anunciei: “Italiano rápido e barato a cinco mil-réis por cabeça,
mensalmente. Aproveitem. Lições em todos os dias úteis e inúteis. Tempo é
dinheiro, como diz o gringo.
Isto deve ser fácil, pensei. É só arrumar no fim das palavras ONE ou INE. De
estrangeiro cá na terra ninguém entende. E se aparecer por aí um carcamano,
adoeço e perco a fala.
Pois, senhores, não me dei mal. Matricularam-se cerca de trinta idiotas:
comecei a trabalhar com energia e confiança. Ainda estaria trabalhando, se
dois alunos, finda a primeira quinzena, não entrassem em concorrência
comigo, deslealmente, fundando escolas que italianizaram toda a localidade.
(p. 140).
Le mie prigioni, de Silvio Pellico, foi um dos livros mais lidos na Europa
na época de sua publicação. O autor foi preso em 13 de outubro de 1820 no
Convento Santa Margherita, em Milão, para ser interrogado sobre a sociedade
secreta Carboneria, que havia fundado com Pietro Maroncelli. Essa sociedade
tinha ideais de liberdade contra a dominação austríaca na Lombardia e devido
a uma correspondência entre os dois, deu-se início à investigação de seu
comprometimento com os “carbonarios”. Nesse livro de memórias, Silvio Pellico
131
175
Cf. Portale del Risorgimento italiano, Ministero dell'Istruzione dell'Università e della Ricerca e
nell'ambito delle celebrazioni per il 150° anniversario dell'Unità d'Italia. Acesso em 12-10-2011.
Disponível em: http://www.150anni.it/webi/index.php?s=22&wid=132
176
Presídio na República Tcheca para os crimininosos mais perigosos como também prisioneiros
políticos contra o Império Austríaco.
177
“Nenhum filho recebeu mais do que eu as benesses do pai e da mãe. Oh! Como me comovia pensar
nos meus venerados velhos”.
132
178
Uma mente agitada não raciocina mais: às vezes entre um turbilhão de idéias exageradas se forma
uma lógica boba, sem sentido, maligna: é um estado absolutamente anti-filosófico, anticristão.
179
Aquele foi o primeiro momento que a religião venceu do meu coração; e ao amor filial devo esse
benefício.
180
O Inquisitor leu para mim a sentença: “Condenado à morte”. Depois leu a reescrita imperial: “ A
pena é comutada em quinze anos de cárcere duro, a ser paga no Presídio de Spielberg.
Respondi: “Seja feita a vontade de Deus!” Minha intenção era realmente de receber como cristão esse
horrível golpe, e não mostrar nem nutrir ressentimento contra quem quer que seja.
181
Essa leitura nunca me deu a mínima disposição para a subserviência, isto é, aquela devoção nociva
que torna o fanático pusilânime. Se bem que me ensinava a amar a Deus e aos homens, a pedir sempre
pelo reino da justiça, abolir a inqüidade perdoando aos pecadores. O Cristianismo invés de desfazer em
mim o que a filosofia tinha feito de bom, confirmava e valorizava com razões mais fortes, mais potentes.
133
Cosa strana! Vivere in luoghi simili sembra il colmo dell'infortunio, eppure quel
fanciullo avea certamente tanta felicità quanta possa averne a quell'età il figlio
d'un principe. Io facea questa riflessione, ed imparava che puossi rendere
l'umore indipendente dal luogo. Governiamo l'immaginativa, e staremo bene
quasi dappertutto. Un giorno è presto passato, e quando la sera uno si mette a
letto senza fame e senza acuti dolori, che importa se quel letto è piuttosto fra
mura che si chiamino prigione, o fra mura che si chiamino casa o palazzo?
Ottimo ragionamento! Ma come si fa a governare l'immaginativa? Io mi vi
provava, e bem pareami talvolta di riuscirvi a meraviglia: ma altre volte la
tirannia trionfava, ed io indispettito stupiva della mia debolezza (p. 8).183
182
Depois vinha comer seu pedacinho perto da minha janela, expressando sua gratidão com o sorriso
dos seus belos olhos.
183
Coisa estranha! Viver em um lugar como esse parece o cúmulo do azar, mas certamente aquele
menino tinha tanta felicidade quanto se pode ter na sua idade o filho de um príncipe. Eu fazia essa
reflexão e aprendia que o humor pode ser independente do lugar onde estamos. Um dia passa rápido e
basta que à noite a pessoa se deite sem fome e sem nenhuma dor, que importa se aquela cama está entre
as grades que podem ser chamadas de prisão, ou entre os muros que se chamam casa ou prédio?
Ótimo raciocínio! Mas como se faz para governar a imaginação? Eu tentava, e às vezes conseguia essa
maravilha; mas outras vezes a tirania triunfava e eu, despeitado, admirava-me da minha fraqueza.
184
FERRONI, Giulio. Storia della Letteratura Italiana. Dall´Ottocento ao Novecento. Milano: Einaudi,
1991. p. 130-131.
134
cristã da própria sorte. Seu sofrimento é o de uma vítima como tantas outras
em um mundo dominado pelo mal, pela falta de Deus. Na opinião desse crítico:
O que mais me surpreendia no caso de Paulo Turco era ele obter recursos
para realizar gastos, anos a fio, num ambiente diverso, onde as nossas
migalhas de pecúnia se desvalorizam. Ignoramos o que somos, até onde
podemos ir. Cercados, confinados, precisamos ver qualquer coisa além das
grades. A imaginação vai longe; coisas externas crescem, desenvolvem-se: um
barraco erguido na favela toma cores vivas, e duas mulatinhas pestanejam em
cima de livros, na véspera de exame, à luz do querosene; na cozinha de tábua
e lata uma negra velha cochila. Vive para resguardar essas três
insignificâncias, entrega-se a elas inteiramente, fabricando gaiolas, um homem
duro, mãos tintas de sangue, dedos hábeis de manejo de instrumentos ilegais.
(MC, vol. 2, p. 242).
185
Pellico exclui das próprias memórias qualquer razão política, fazendo do livro uma espécie de livro
religioso de salvação e de redenção espiritual. [...] O verdadeiro valor do livro está mesmo na intensidade
com que, sob o sinal do conformismo, se delineia o encontro do intelectual burguês com uma humilde
religiosidade popular, situada como além da história.
135
criança por não compreender ainda a dureza da vida, Graciliano não consegue
sequer nos dar essa ilusão, nem mesmo com a imaginação: “Afinal a virtude
me escapava. Quem me provava que os indivíduos surpresos faziam falta num
mundo cheio de excrescências? Talvez não fizessem.” (MC, vol. 2, p. 242).
Em Le mie prigioni, Silvio Pellico fala sobre a paixão por uma moça,
que se chamava Maddalena. Embora faça referência como um grande amor, o
autor se convence de que foi perda de tempo e esse sentimento era criancice.
O nome talvez seja alusivo ao personagem bíblico, e muitas referências
dialogam com elementos religiosos:
Ah! delle mie passate sciagure e della contentezza presente, come di tutto il
bene e il male che mi sarà ancora serbato, sia benedetta la Provvidenza, della
186
A inocência é respeitável, mas o arrependimento também! O melhor dos homens, o homem-Deus,
desdenhava de pôr o seu piedoso olhar sobre as pecadoras, de respeitar as suas confusões, de agregar-
lhes entre as almas que ele mais honrava?
Pensando assim, fui mil vezes tentado a levantar a voz e fazer uma declaração de amor fraterno a
Madalena. Uma vez tinha já começado a primeira sílaba vocativa “Mad!...”. Coisa estranha! O meu
coração batia como de um rapaz de quinze anos apaixonado; e eu já tinha trinta e um, que não é mais
idade de palpitações infantis.
Não podia continuar. Recomecei: “Mad!... Mad!...” E foi inútil. Achei-me ridículo e gritei de raiva:
“Maluco! E não Mad!” Assim terminei o meu romance com aquela pobrezinha. Se é que não lhe fiquei
devendo os docíssimos sentimentos por muitas semanas.
136
quale gli uomini e le cose, si voglia o non si voglia, sono mirabili stromenti
ch'ella sa adoprare a fini degni di sé.
Depois Pellico conta de sua afeição pela moça que lhe levava o café
todos os dias. Zanze passa, então a ser sua “namorada”, mas na verdade a
moça via naquele homem um ser digno de admiração, um conselheiro e lhe
fazia confidências afetivas. Aceitando a condição de “amante” de Zanze, o
narrador assume que a moça funcionava como uma janela para o mundo lá
fora. Graciliano também nos fala da importância das esposas naquele
momento da prisão, que funcionavam como agentes de ligação, trazendo
notícias, levando relatórios, cartas e recados (Cf. MC, vol. 1, p. 286). Em
Gramsci, essa ligação com o mundo exterior somente foi possível através da
cunhada, Tatiana Schucht, que, morando em Roma, era a principal visita e
destinatária de suas cartas.
Mi diceva: “Signore, ella è tanto buona, ch'io la guardo come potrebbe una figlia
guardare suo padre”.
“Voi mi fate un brutto complimento;” rispondeva io, respingendo la sua mano
“ho appena trentadue anni, e già mi guardate come vostro padre.”
“Via, signore, dirò: come fratello.” (p. 84).187
187
Dizia-me: “O senhor é tão bom, que eu o vejo como uma filha olha para o pai.”
“A senhora me faz um grande elogio.” Eu respondi, afastando a sua mão: “Tenho apenas trinta e dois
anos e a senhora já me vê como seu pai.”
“Esqueça, senhor, direi: como um irmão.”
137
188
Graciliano tinha 43 anos quando foi preso.
189
Cf. Le mie prigioni. ed. cit., p. 26.
190
Cf. Le mie prigioni. ed. cit., p. 58.
138
191
“Honesto velho”, disse, “o senhor vê em que estado estou; é pouco provável que eu saia vivo daqui:
não poderei nunca recompensá-lo de nada.”
139
o ser humano é possível ser intelectual orgânico, que não significa somente
utilizar nos livros os sentimentos populares, mas ser capaz de gerar no povo
consciência e conhecimento de si mesmo.
192
Aquela visão me encantava. Oh quanto seria feliz, se pudesse dividi-la com Maroncelli!
193
A minha companhia foi permitida. O abade Wrba, nosso confessor (substituindo Paulowich), veio
administrar os sacramentos ao infeliz. Cumprindo esse ato religioso, esperávamos os cirurgiões que não
chegavam. Maroncelli ainda se meteu a cantar um hino. Ao terminar, chegaram os cirurgiões: eram
dois. Um, aquele já conhecido de casa, isto é, o nosso barbeiro, este quando fazia operações, tinha o
140
direito de fazê-las com suas mãos apenas e não cedia honras aos outros. O outro era um jovem
cirurgião, aluno da escola de Viena, e já tinha fama de ter muita habilidade. Este, mandado pelo
governador para assistir a operação e coordená-la, teria feito ele mesmo, mas lhe convinha contentar-se
de observar a execução.
O doente foi sentado na ponta da cama, com as pernas para baixo: eu o tinha entre os meus braços.
Acima do joelho, onde a coxa começava e ser sadia foi amarrado um garrote, sinal do percurso que
deveria fazer a faca. O velho cirurgião cortou tudo em torno, a profundidade de um dedo; depois puxou a
pele cortada, e continuou a cortar sobre os músculos. O sangue jorrava a torrentes das artérias, mas
foram estancadas com um retalho de seda. Por último serrou-se o osso.
Maroncelli não deu um grito. Quando viu que levava embora a perna cortada, deu uma olhada de
compaixão, depois voltou-se para o cirurgião que operou e disse:
“O senhor me liberou de um inimigo e não tenho como pagá-lo.”
Havia um copo na janela com uma rosa dentro.
“Por favor, dá-me aquela rosa”, me disse. Levei-a e ele ofereceu-a ao cirurgião, dizendo-lhe: “Não
tenho outra coisa para presenteá-lo como prova da minha gratidão.”
O médico recebeu a rosa e chorou.
141
Minha posição moral é ótima: aqui, julgam que eu seja um satanás, ali, pensam
que eu seja quase um santo. Eu não quero fazer nem o papel de mártir, nem o
de herói. Creio ser simplesmente um homem médio, que tem suas convicções
profundas e que não as troca por nada no mundo. 194
194
GRAMSCI, Antonio. Cartas do cárcere, ed. cit, p.81.
195
Cf MOLA, Aldo. Le mie prigioni. Memorie di Silvio Pellico da Saluzzo, Foggia: Bastoni Editrice
Italiana, 2004, p. 27-28.
142
196
Mario Barenghi também associa o poema ao modelo das orações judias “Shemá”, que em hebraico
significa “ouve”. Cf BARENGHI, Mario. A memória da ofensa. Recordar, narrar, compreender. Trad.
Maurício Santana Dias. In: NOVOS ESTUDOS CEBRAP, 73, novembro 2005. p. 175-191.
197
Vocês que vivem seguros/ nas suas casas quentes/ que tornando de noite encontram /a comida quente
e os rostos dos amigos: Consideram isso um homem/ que trabalha na lama/ que não conhece paz/ que
luta pela metade de um pão/ que morre por um sim ou por um não.
198
Vocês não fariam igualmente? Se devessem morrer amanhã com seu filho, não lhe dariam hoje de
comer?
199
CC, vol. 6, p. 252.
144
200
A primeira edição do livro foi editada com uma tiragem de 2.500 cópias por uma pequena editora, De
Silva, depois que algumas grandes editoras rejeitaram a proposta. A obra teve uma recepção
entusiasmante , principalmente com o depoimento de Italo Calvino, que definiu o livro como a mais bela
experiência do campo de concentração. Somente em 1958, Se questo è un uomo foi reeditado pela editora
Einaudi, na coleção «Saggi», com algumas modificações, dentre elas, um capítulo novo – “Iniziazione”.
Após essa edição, o livro foi traduzindo em várias linguas e hoje é considerado uma das obras mais
importantes sobre o extermínio judaico. Cf. Centro Internazionali di Studi Primo Levi. Disponível em:
http://www.primolevi.it/Web/Italiano/Contenuti/Opera/110_Edizioni_italiane/Se_questo_%C3%A8_un_u
omo
201
BARENGHI, Marcos. A memória da ofensa. op. cit.
145
fala das divisões para a câmara de gás, Levi se lembra de um senhor que
agradecia por não ter sido escolhido.
Na sua última frase, coloca-se no lugar de Deus para julgar o velho que
agradecia por se salvar. Diferentemente, Graciliano Ramos, presidiário, mostra-
se nos mais diversos ângulos, sem receio de expor até mesmo seus
preconceitos. Quando fala de negros, ele usa exatamente essa palavra, sem
medo de ser taxado de racista. Quando compra a cama a Cubano, apesar das
reclamações de outros presos com a saúde debilitada, ele se assume um
proprietário e mostra o lado humano de ser egoísta às vezes para sobreviver,
principalmente na cadeia. Seu realismo é tão verdadeiro que, quando fala do
homossexualismo na prisão, ele se despe da falsa aceitação, para assumir que
tinha nojo dessa prática, e até discute se não foi a própria formação rude que
lhe levou a pensar assim. Levi é bem mais comedido, não há rancor na sua
voz, mas também não há perdão. A informação por si é bastante como
denúncia.
202
Agora todo mundo está raspando com a colher o fundo da gamela para aproveitar as últimas
partículas de sopa, e surge uma barulheira metálica indicando que o dia acabou. Pouco a pouco faz-se
silêncio. Do meu beliche, no terceiro andar, vejo e ouço o velho Kuhn rezando em voz alta, com o boné
na mão, balançando o busto violentamente. Kuhn agradece a Deus porque não foi escolhido. Kuhn é um
Insensato. Não vê, na cama ao lado, Beppo, o grego, que tem vinte anos e depois de amanhã vai para o
gás e sabe disso, e fica deitado olhando fixamente a lâmpada sem falar nada, sem pensar em nada? Não
sabe Kuhn, que da próxima vez será a sua vez? Não compreende que aconteceu, hoje, uma abominação
que nenhuma oração propiciatória, nenhum perdão, nenhuma expiação, nada que o homem possa fazer,
chegará nunca a reparar?
Se eu fosse Deus, cuspiria fora a reza de Kuhn.
146
203
LEVI, Primo. Entrevista concedida a Lucia Borgia. In: Rifarsi una vita. Rai 2, 1984. Programa de TV.
204
A comunidade hebraica prefere utilizar o termo shoah, ao invés de holocausto. Enquanto o primeiro
significa extermínio, o segundo representa sacrifício de uma vítima para receber perdão ou livrar-se de
uma culpa.
205
Falamos de muitas coisas naquelas horas; fizemos muitas coisas; mas é melhor que não permaneçam
na memória
206
O nascer do dia foi como uma traição; como se o novo sol se associasse com os homens na tarefa de
nos destruir.
207
Aquilo que acontece aos outros, as mulheres, as crianças, os velhos, nós não pudemos saber naquele
momento nem depois: a noite os engoliu, puramente e simplesmente. Hoje, porém, sabemos.
208
Para minha sorte, fui deportado para Auschwitz só em 1944.
147
Levi fala da sua partida com a certeza de quem se dirigia para a morte:
“Cada um se despediu da vida da maneira que lhe era mais convincente.”
(p.13). O cárcere não era somente isolamento social, mas a perda de toda e
qualquer certeza sobre o futuro. A perplexidade com a violência do nazismo é
seu modo de superar as agressões, pois a única certeza da condição humana
é a de não ser infinita: “Qui ricevemmo i primi colpi: e la cosa fu così nuova e
insensata che non provammo dolore, nel corpo né nell’anima. Soltanto uno
stupore profondo: come si può percuotere um uomo senza collera?” 209
Na chegada, Levi relembra a chegada de Dante ao Inferno. A voz de
Caronte que recebe as almas no rio Aqueronte repete-se:
209
Aqui recebemos os primeiros golpes: e isso foi assim novo e insensato que não sentimos dor, nem no
corpo nem na alma. Apenas um profundo assombro: como é que pode-se bater num homem sem raiva?
(p.20)
210
“Ai de vós, almas danadas” Perguntou gentilmente, um a um, em alemão e em língua franca, se
tínhamos relógios ou dinheiro para dar-lhe; de qualquer modo, não nos serviriam mais. Isso não era
uma ordem nem um regulamento, mas uma pequena iniciativa pessoal do nosso Caronte. (p.32)
211
Primo Levi suicidou-se em 1987, ano seguinte ao lançamento de I sommersi e i salvati.
148
stati battezzati, porteremo finché vivremo il marchio tatuato sul braccio sinistro”.
(p. 43).212
O tema da dignidade humana é recorrente e Primo Levi parece estar
sempre juntando os farrapos da miséria para escrever e sobreviver: “Pochi
sono gli uomini che sanno andare a morte com dignità, e spesso non quelli che
ti aspetteresti.”213 (p. 25). Sobreviver para testemunhar, testemunhar para
sobreviver – esse é o círculo de andamento da narração no livro. Obedecer as
regras não por submissão, mas com a convicção de recuperar-se como ser
humano:
Il Lager è una gran macchina per ridurci a bestie, noi bestie non dobbiamo
diventare; che anche in questo luogo si può sopravvivere, e perciò si deve voler
sopravvivere, per raccontare, per portare testimonianza; e che per vivere è
importante sforzarci di salvare almeno lo scheletro, l’impalcatura, la forma della
civiltà. Che siamo schiavi, privi di ogni diritto, esposti a ogni offesa, votati a
morte quasi certa, ma che una facoltà ci è rimasta, e dobbiamo difenderla con
ogni vigore perché è l’ultima: la facoltà di negare il nostro consenso. Dobbiamo
quindi, certamente, lavarci la faccia senza sapone, nell’acqua sporca, e
asciugarci nella giacca. Dobbiamo dare il Nero alle scarpe, non perché così
prescrive il regolamento, ma per dignità e per proprietà. Dobbiamo camminare
diritti, senza strascicare gli zoccoli, non già in omaggio alla disciplina prussiana,
ma per restare vivi, per non cominciare a morire. (p. 70).214
212
Häftling:aprendi que sou um häftling. Meu nome é 174.517; fomos batizados, levaremos enquanto
vivermos a marca tatuada no braço esquerdo.
213
São pouco os homens que sabem caminhar para morte com dignidade, e frequentemente são aqueles
que você menos espera.
214
O campo é uma grande engrenagem para nos transformar em animais, não devemos nos transformar
em animais; até num lugar como este, pode-se sobreviver, para relatar a verdade, para dar nosso
depoimento; e, para viver, é essencial esfoçar-nos por salvar ao menos o esqueleto, a estrutura, a fôrma
da civilidade. Somos escravos, privados de qualquer direito, expostos a cada ofensa, destinados a uma
morte quase certa, mas ainda nos resta uma opção. Devemos nos esforçar por defendê-la a todo custo,
justamente porque é a última: a opção de recusar nosso sentimento. Devemos, portanto, lavarmos o
rosto, certamente sem sabão, na água suja, e enxugando-nos com o casaco. Devemos engraxar os
sapatos, não porque assim prescrive o regulamento, e sim por dignidade e alinho. Devemos caminhar
eretos, sem arrastar os tamancos, não em homenagem à disciplina prussiana, mas para continuarmos
vivos, para não começarmos a morrer.
149
215
Os personagens destas páginas não são homens. A sua humanidade foi sepultada, ou eles mesmos a
sepultaram, sob a ofensa padecida ou infligida a outros. Os SS maus e brutos, os Kapos, os políticos, os
criminosos, os proeminentes grandes e pequenos, até os häftlinge indiscriminados e escravos, todos os
graus da hierarquia insensata criada pelos alemães estão, paradoxalmente, juntos numa única desolação
interna. Mas Lorenzo, não. Lorenzo era um homem; a sua humanidade era pura, incontaminada, ele
estava fora desse mundo de negação. Graças a Lourenço, não me esqueci de que eu também era um
homem.
216
Levi retoma esse personagem no conto “Il ritorno di Lorenzo”. In: Lilít e altri racconti. Torino:
Einaudi, 1981, p. 68-77.
217
LEVI, Primo. La Tregua. Milano: Einaudi, 1986.
150
amigo que estava ao lado, no dia seguinte já poderia não estar mais. Enfim,
numa teia de ameaças, não era possível construir representações porque a
visão do autor era imediata, voltada apenas para o lugar onde pisava e para
aquele instante. Todos esses fatores condicionavam os testemunhos dos
“afortunados” que conseguiram se salvar. Por isso o autor nos avisa: os que se
salvaram, como ele, não conseguiram contar profundamente, mas talvez os
privilegiados que conseguiriam fazê-lo melhor não voltaram para contar toda
aquele horror.
Allora per la prima volta ci siamo accorti che la nostra lingua manca di parole
per esprimere questa offesa, la demolizione di un uomo. In un attimo, con
intuizione quasi profetica, la realtà ci si è rivelata: siamo arrivati al fondo. Più giù
di così non si può andare: condizione umana più misera non c’è, e non è
pensabile. Nulla più è nostro: ci hanno tolto gli abiti, le scarpe, anche i capelli;
se parleremo, non ci ascolteranno, e se ci ascoltassero, non ci capirebbero. Ci
toglieranno anche il nome: e se vorremo conservarlo, dovremo trovare in noi la
forza di farlo, di fare sì che dietro al nome, qualcosa ancora di noi, di noi quali
eravamo, rimanga (p. 41-42).218
Oggi io penso che, se non altro per il fatto che un Auschwitz è esistito, nessuno
dovrebbe ai nostri giorni parlare di Provvidenza: ma è certo che in quell’ora il
ricordo dei salvamenti biblici nelle avversità estreme passò come un vento per
tutti gli animi. (p. 251).219
218
Então, pela primeira vez, nos damos conta de que na nossa língua faltam palavras para expressar
essa ofensa, a demolição de um homem. Num instante, por intuição quase profética, a realidade nos foi
revelada: chegamos ao fundo. Mais baixo do que isso nao é possível: condição humana mais miserável
não existe, e não é imaginável. Nada mais é nosso: tiraram-nos as roupas, os sapatos, até os cabelos; se
falarmos, não nos escutarão,e se nos escutassem, não nos compreenderiam. Tiraram-nos também o
nome: e se quisermos conservá-lo, deveremos encontrar dentro de nós a força para tanto, para que, além
do nome, sobre alguma coisa de nós, daquilo que éramos permaneça.
219
Hoje eu acho que, se não fosse o fato que existiu um Auschwitz, ninguém deveria falar de Divina
Providência nos nossos dias: mas é claro que naquela hora a lembrança das salvações bíblicas passou
como um vento pelo espírito de todas as almas.
151
Sem dúvida nos julgava animais perigosos enjaulados. Entrava na jaula, mas
sentia-se defendido, livre das nossas garras, e esfregava as mãos, satisfeito.
Indisfarçável aquele ar de triunfo e segurança. Ficou alguns minutos em
silêncio, o sorriso a espalhar-se em todo o rosto, em seguida iniciou a
catequese num discurso mastigado, cheio de erros pavorosos. Nunca ouvi
tanta besteira. Logo no princípio engasgou-se e recorreu atarantado a uma
poesia do Conde Afonso Celso: “Seria enorme crime não amar aqui a Deus”.
Atrapalhou-se muitas vezes, e sempre que isto acontecia largava a citação
maluca; se havia no mundo lugar onde o amor de Deus estava naturalmente
excluído, era aquele. Felizmente o orador não me via a cara, atrás de um
repórter volumoso bastante para esconder-me, e fazia em voz baixa
comentários ao sermão e à literatura do conde. (MC, vol. 2, p. 130-131).
Avançava, recuava, dava por paus e por pedras, como se tivesse o desígnio de
nos afastar do céu, a meter sempre no aranzel a cunha poética: — “Seria
enorme crime não amar aqui a Deus”. Encolhia-me para não ser visto e
alargava-me em elogios graves sussurrados na orelha do vizinho da frente.
Larguei um disparate cabeludo, o moço perdeu os estribos e pôs-se a rir. (MC,
vol. 2, p. 131).
É estranho um indivíduo perceber que não tem meio de ser digno. Mas relutava
em convencer-me disto, não via a exigência de comportamentos diversos em
condições diversas. Com efeito, lá dentro os melindres de consciência
embotoam-se, alteram-se os valores morais – e o nosso dever principal é
existir. (MC, vol. 2, p.132).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
154
O que me parece essencial no seu caso e que deve servir a todos vocês é
quanto à conduta que seguirão face à mesma [Edmea] é a necessidade de
fazê-la sentir que depende dela e de sua vontade saber ou não empregar esse
tempo para estudar por sua conta, além dos programas da escola, para estar
capacitada, caso mudem as condições, a dar um salto à frente e retomar uma
carreira escolar mais brilhante. Tudo está em que ela tenha boa vontade e
ambição, no sentido nobre da palavra. De resto o mundo não desabará se ela
terminar sua vida em Ghilarza fazendo meias por não ter desejado tentar fazer
algo melhor e mais brilhante. Não sei se ela está inscrita na juventude italiana.
Penso que sim, conquanto não tenham nunca me escrito, e imagino que se
tratando desses assuntos de parada ela tenha ambição. Deste modo, seguirá a
sorte das outras jovens italianas, a de se tornarem boas mães de família, como
se diz, dado que encontrem imbecis que as esposem, o que não é seguro,
porque os imbecis querem galinhas como mulheres, mas galinhas com
contornos de terra ao sol e economias na caixa.222
220
RAMOS, Clara. Elementos de biografia. In: GARBUGLIO, J. C. et alii. Graciliano Ramos. Op. cit.
p. 319.
221
Filha do irmão mais velho, Gennaro, também militante e exilado na França.
222
GRAMSCI, Antonio. Cartas. Op. cit., p. 265.
156
Como bem disse Aristóteles, a virtude está no meio. Esses dois homens
buscaram equalizar o trabalho intelectual e a luta social. Avessos à exploração
capitalista e aos equívocos stalinistas que inviabilizaram o comunismo, ambos
são ícones da resistência às ditaduras das duas partes no século XX.
Certamente suas lutas não foram em vão, e, por isso, eles não podem ser
esquecidos.
157
REFERÊNCIAS
158
I – De Graciliano Ramos
Insônia (1947). 18ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1982.
Memórias do cárcere (1953). 39ª. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2002.
2 vols.
Viagem (1954). 12ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1983.
Viventes das Alagoas (1962). 12ª. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record,
1983.
Alexandre e outros heróis (1962). 19ª. ed. São Paulo: Martins, 1980. (Inclui
Histórias de Alexandre, A terra dos meninos pelados e Pequena história da
República)
Linhas tortas (1962). 10ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1983.
Cartas. Graciliano Ramos (1980). 3ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record,
1982.
II – De Antonio Gramsci
MORAES, Dênis de. O velho Graça. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992.
____. La recezione di Gramsci in Brasile. In: Gramsci nel mondo. Atti del
Convegno Internazionale de studi gramsciani. Formia, 25-28 ottobre 1989.
Formia: Fondazione Istituto Gramsci, 1995.
DEL FRA, Lino. Antonio Gramsci: i giorni del carcere (1977), [Filme-vídeo].
Produção de Lino Del Fra e Cecilia Mangini, direção de Lino Del Fra. Italia,
Cooperativa Nuovi Schermi C., 1977. 130 min. p/b. son.
ROSSI, Angelo, VACCA, Giuseppe. Gramsci tra Mussolini e Stalin. Fazi: Roma,
2007.
Produção RAI. Itália, RAI, 1972. Documentário. 42 min. p/b. son. Disponível
em: http://www.sardegnadigitallibrary.it/index.php?xsl=626&id=190984
____. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. (edição
eletrônica)
____. Storia della Letteratura Italiana. Il Novecento. Milano: Einaudi, 1991. vol.
4.
____. Entrevista concedida a Lucia Borgia. In: Rifarsi una vita. Rai 2, 1984.
Programa de TV.