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DEUS

ABSCONDITUS

Z
NACHMAN FALBEL

Yossel Rakover
fala com Deus
Em memória dos
mártires do Levante de Zvi Kolitz
do Gueto de Varsóvia, NACHMAN FALBEL
é professor de História
Medieval da FFLCH-USP e
autor de, entre outros,

19 de abril de 1943 Os Espirituais Franciscanos


(Perspectiva).

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ria certo tempo até os inícios da Segunda

Guerra Mundial e, despedindo-se de sua

família, seguiria para Eretz Israel, onde pas-

saria a viver a partir de 1940. Na Palestina

ele ingressou nas fileiras do Movimento

Revisionista, inspirado por Jabotinski, e

passou a atuar no Etzel (Irgun Tzvai Leumi

– Organização Nacional Combatente), que

se empenhava na criação de um Estado ju-

Z
deu lutando contra a presença inglesa na

Palestina. Por sua participação na luta ar-

mada contra o mandato inglês foi, duas ve-

zes, feito prisioneiro pelos ingleses, enquan-

to seu irmão mais velho, Eliezer, que servia

na força aérea inglesa, cairia vítima em um

Zvi Kolitz é o autor de um texto inti- ataque contra um navio de guerra alemão As citações incluídas neste artigo,
bem como o título do texto de Kolitz,
tulado Yosl Rakovers vendung tzu Got es- na região de Brest, em julho de 1941. Em foram traduzidos por mim, a partir
das edições em hebraico, ídiche e
1942, quando israelenses alistaram-se no alemão.
crito e publicado originalmente em ídiche,

no Ydische Tzeitung (El Diario Israelita) exército britânico, Zvi Kolitz também se

de Buenos Aires, em 25 de setembro de encontrava entre os voluntários, exercen-

1946 (1). O que sabemos sobre o autor deve- do ao mesmo tempo a função de jornalista
1 Devo agradecer à profa. dra.
se em boa parte ao relato que fez para o e colaborando com o periódico Haboker. Berta Waldman, que gentilmen-
te presenteou-me com a cópia
jornalista Paul Badde, redator do Die Welt, Com o término da guerra, em 1945, ele, do texto original em ídiche jun-
tamente com a edição bilíngüe
assim como relata no depoimento ao jorna- preparada por Paul Badde em
em Jerusalém, que o entrevistou em Nova alemão e ídiche transliterado,
editado pela Verlag Volk & Welt
York, durante os anos 90. Tanto essa últi- lista Paul Badde, cairia novamente em uma de Berlim, em 1996, além de
um artigo, em espanhol, de
ma entrevista, como o texto do autor, e ou- prisão britânica e, ao ser solto, começaria a Helmut Galle, com o título
“…‘Verdadero como Sólo
tros textos aos quais nos referiremos a se- vagar pelo mundo quase sempre preenchen- Puede Serlo la Ficción’, un Fic-
tício Texto Testemonial en
do duas missões: a oficial, como represen- Yiddish y sus Implicaciones para
guir, foram publicados, em hebraico, no la Referencialidad de la Litera-
tura”.
ano de 2000 (2). Kolitz nasceu em Alitus, tante do Movimento Revisionista, e a se-
2 Yosl Rakover medaber el Elohim,
uma pequena cidadezinha da Lituânia. Seu creta, pelo grupo Etzel, o braço armado da- Misrad Habitakhon-Hotzaah
Laor, 2000, pp. 25-66. Paul
Badde começou a entrevistar o
pai falecera jovem, com apenas 44 anos de quele movimento, fundado em 1931. Paul autor em 1993 e terminou seu
escrito em 1996. Conforme o
idade, em 1930, e sete anos após sua mãe, Badde registra que em 1946, com 26 anos Newsletter I (outubro/2002) da
Casa Argentina em Jerusalém,
com quatro filhos, teve que abandonar aque- de idade, ele era enviado como delegado ao Zvi Kolitz viria a falecer em
Nova York, em 2002, com a
le país devido ao forte clima anti-semita Congresso Sionista Mundial, realizado na idade de 90 anos.
(O relato de Paul Badde e o
texto de Zvi Kolitz foram publi-
que se alastrara por toda a Europa sob a Basiléia, e que dali teria seguido “logo após cados recentemente em portu-
guês: Yossel Rakover Dirige-se
influência do nazi-fascismo. Zvi, então com a Buenos Aires. Em um avião do exército a Deus , tradução de Fábio
Landa, São Paulo, Perspectiva,
17 anos, chegaria à Itália onde permanece- britânico ele chega às margens do Rio de la 2003. N. do E.).

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Plata em uma viagem longa e aventuresca ao libertar-se do plano ficcional para se
passando por Cartum” (3). impor como uma realidade dramática, exis-
É o tempo da descoberta e revelação da tencial, como se fora um documento verda-
inimaginável dimensão da Shoá, tanto para deiro – entre muitos outros – encontrado
Zvi Kolitz quanto para as comunidades entre as ruínas impregnadas de sangue ju-
judaicas, assim como para todas as nações deu no Gueto de Varsóvia, escrito por seu
que não participaram diretamente do con- único e solitário personagem: Yossel
fronto militar em solo europeu e não ti- Rakover, último dos mártires, pouco antes
nham conhecimento do plano genocida de seguir o destino de seus irmãos de fé que
nazista. Em Buenos Aires, Zvi Kolitz, como decidiram enfrentar a besta nazista no le-
todo shaliach na época, atua como um vante iniciado em abril de 1943, e morrer “al
propugnador da criação de um Estado ju- Kidush HaShem”, santificando o Nome.
deu mantendo dias e noites contatos com Certamente, um texto que se inicia com as
pessoas e instituições, ocupando-se ao palavras “Nas ruínas do Gueto de Varsóvia,
mesmo tempo com palestras e conferên- entre montes de entulho calcinado, foi en-
cias sobre temas que se encontravam na contrado, dentro de uma garrafa, o seguinte
ordem do dia da política internacional e testamento, escrito durante as últimas horas
sionista. O judaísmo mundial ansiava por do gueto: Varsóvia, 28 de abril de 1943…”
um fim ao domínio britânico na Palestina e estaria fadado a ter um destino insólito…
possibilitar a partilha daquele território cuja O relato de Paul Badde sobre as etapas
decisão final, pelas Nações Unidas, dar-se- de alienação do texto de seu criador e o
ia na Assembléia Geral de 29 de novembro processo de difusão do mesmo devido ao
de 1947, e deveria levar à formação de dois impacto causado pelas traduções ao ale-
Estados, um judaico e outro árabe. Pode- mão, francês, inglês e espanhol, seu conta-
mos imaginar o clima reinante nas comuni- to e conhecimento pessoal tardio com Zvi
dades judias, nesse ano de 1946, frente a Kolitz a fim de descobrir sua trajetória de
essa milenar expectativa do retorno da sobe- vida e a identificação da autoria através da
rania política judaica em Eretz Israel, sob o prova incontestável do escrito publicado
contexto do Holocausto (4). Em uma das em 25 de setembro de 1946 no Ydische
múltiplas conferências de Zvi Kolitz, en- Tzeitung, não deixa de ser arrebatador e
contrava-se presente o diretor de um jornal nos prende até a sua última frase.
local, o Ydische Tzeitung, que no término da Porém, estranhamente, constatamos que
palestra dirigiu-se a ele solicitando que es- no relato de Paul Badde sobre a vida de Zvi
crevesse algo para o número de seu jornal Kolitz, escrito com base nas informações
que deveria sair próximo ao dia de Yom que este lhe havia fornecido durante as en-
Kipur. Zvi Kolitz prontamente acedeu ao trevistas pessoais, o nome Brasil não é men-
pedido e lhe disse: “Sim, tenho algo em mente cionado uma vez sequer, e nem tampouco
que há tempo quero livrar-me dele” (5). é lembrada a sua estadia como shaliach do
Assim começava uma história extraor- Movimento Revisionista em nosso país.
3 Idem, ibidem, p. 42. dinária de um texto que em sua misteriosa Quando, há cerca de um ano, recebi de
4 Em meu estudo biográfico trajetória se desvincularia de seu criador, amigos de Israel (6) o livro contendo a tra-
“Manasche, sua Vida e seu Tem-
po” (São Paulo, Perspectiva, em contrafação ao que teria acontecido com dução ao hebraico do texto de Zvi Kolitz,
1996, versão inglesa: os personagens do dramaturgo italiano acompanhada do relato de Paul Badde, da
“Menasche, his Life and his Ti-
mes”, Jerusalem, The Jerusalem Pirandello que se encontravam à procura reflexão de Emmanuel Levinas sobre o
Foundation, 1998), descrevo o
espírito reinante na época bem de seu autor. Aqui o texto, talvez por obra mesmo, além dos artigos de Leon Wizaltir
como o movimento de apoio à do acaso, mas certamente não somente e Norman Lam, de imediato me veio à
causa judaica no Brasil.
devido a ele, uma vez que a razão histórica memória o nome de Zvi Kolitz. Naqueles
5 Yosl Rakover medaber el
Elohim, op. cit., p. 43. poderá encontrar o rationale do que ocor- anos eu militava em um movimento juve-
6 São eles os queridos Shulamit reu, passará a ter vida própria, e em boa nil judaico sionista-socialista denominado
e Itzhaq Kaufman cuja longa parte inteiramente alienado de seu criador. Dror, de ideologia antagônica à do Partido
amizade se vincula a décadas
de vida e vivências em comum. Esse texto revelará um poder imprevisível Revisionista, que representava uma con-

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cepção de extrema direita, também adota- parágrafos inteiros deixaram de ser tradu-
da pelo movimento juvenil denominado zidos, reduzindo-o a um pouco mais de sua
Betar (Brith Trumpeldor). Nos finais dos metade. Seria resultado de uma decisão
anos 40 e inícios de 50 corria o rumor sobre irresponsável ou arbitrária do tradutor, ou
a história de um shaliach revisionista que então da redação, decorrente talvez da cos-
abandonara sua missão no Brasil e não mais tumeira falta de espaço? Dificilmente po-
voltara para Eretz Israel (7). Na época, tal deremos saber o que de fato ocorreu, pois
atitude era considerada uma espécie de a documentação e o arquivo da revista
imperdoável traição à causa. Além do mais, Aonde Vamos? desapareceram desde que a
a leitura do extraordinário texto, ao par de mesma encerrou suas atividades no final
um surpreendente detalhe biográfico sobre dos anos 70. Por ora, não entrarei nas pe-
o autor ter nascido em Alitus, pequena ripécias que acompanharam o texto e as
povoação da Lituânia cujo nome me era traduções pelas quais ficou conhecido no
bem conhecido pelo fato de ser o lugar de mundo não-judaico e judaico. O conscien-
origem da família de minha mulher, levou- cioso trabalho jornalístico-investigativo de
me a querer saber um pouco mais sobre o Paul Badde supre perfeitamente o interes-
tal shaliach (emissário) que agora se me se e a curiosidade dos leitores interessados
revelava como escritor do Yosl Rakovers nessa verdadeira odisséia do escrito. En-
vendung tzu Got (literalmente traduzimos tretanto, entre outras coisas, minha inten-
Yossel Rakover fala com Deus). De fato, ção é acrescentar uma informação adicio-
em busca de elementos sobre o autor, en- nal sobre o autor, que Badde demonstra
contrei a informação que comprovava sua desconhecer, e corrigir a lacuna relativa à
estadia no Brasil e, surpreendentemente, sua presença no Brasil, país em que primei-
também uma tradução de seu texto, ramente desembarcara para cumprir sua
publicada na revista Aonde Vamos?, de 12 missão, o que leva a modificar aspectos
e 19 de setembro de 1963, sob o título biográficos do autor assim como a crono-
“Apesar de tudo, meu Deus!” acrescido das logia relativa à vinda e à estadia de Kolitz
palavras “relatado [grifo nosso] por Zvi no continente sul-americano. Contudo, se
Kolitz”! Qual seria a origem dessa tradu- esse foi o motivo inicial para escrever este
ção, e por que o uso do termo “relatado”, artigo, confesso que o pequeno escrito de
em vez de “autoria”, passa a ser mais um Zvi Kolitz despertou-me para uma refle-
enigma – entre os muitos já existentes – xão que ultrapassou em muito o mero inte-
relativo à essa obra. Porém, ao confrontar- resse biográfico sobre seu autor uma vez
mos essa tradução ao vernáculo e o texto que o diálogo de Yossel Rakover com Deus 7 Ao enviar uma primeira versão
deste trabalho ao meu amigo
“original”, ou “originais”, já que o publica- tem um significado particular para toda uma de juventude e colega Oscar
Zimmermann, assim como eu,
do no periódico argentino em ídiche, em geração que viveu os anos do Holocausto, atuante no movimento Dror do
1946, não é exatamente o publicado no Di bem como para toda a “humanidade após setor de Porto Alegre, onde
nasceu e viveu durante sua ju-
Goldene Keit na primavera de 1954, cons- Auschwitz”. Examinemos, porém, antes de ventude, lembrou-se do mesmo
fato e desse modo transcrevo
tatamos que ele foi impresso de modo in- tudo, os elementos que comprovam a pas-
suas lembranças: “[…] quan-
completo. Sabemos que a revista literária sagem de Zvi Kolitz no Brasil. do tinha 11-12 anos (1945-
46), um certo capitão Kolitz
Di Goldene Keit já havia recebido o escrito Em 12 de julho de 1945, Aonde Vamos? veio a Porto Alegre, o maior
com a omissão do nome do autor, pois as- anunciava a vinda de Zvi Kolitz ao Brasil, reduto revisionista do Brasil –
e voaram as cadeiras do Cír-
sim fora enviado à sua redação cerca de um sob a notícia “Dr. Zvi Kolitz, Capitão da culo Social Israelita, nos altos
do Cine-Teatro Baltimore: as
ano antes por um anônimo de Buenos Aires, Marinha Judaica em Viagem para o Bra- cadeiras eram de vime, fáceis
manuscrito datilografado, sem o nome do sil”. O artigo mencionava que ele saíra de de serem lançadas. A platéia
era de prós e contras,
jornal Ydische Tzeitung, e faltando a pala- Eretz Israel e embarcara no Cairo, no dia revisionistas, poaleisionistas,
anarquistas, bundistas, algue-
vra-chave “dertzeilung” (conto), que cons- 29 do mês anterior, em missão da NZO, meiners (sionistas gerais). E o
tava no original. Do mesmo modo, consta- Nova Organização Sionista Mundial e do quebra-quebra: como um ofi-
cial abandonava a luta arma-
tamos que o texto publicado em Aonde Va- Keren Tel Hai. A NZO era a sigla da orga- da, deixando seus correligio-
mos? repete as mesmas omissões, além de nização sionista Revisionista, fundada em nários no campo de batalha,
para vir fazer propaganda
praticar uma verdadeira mutilação na qual 1935, e que decidira afastar-se da Organi- partidária no Brasil?”.

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zação Sionista Mundial devido a divergên- de dezembro de 1946, ele apareceria como
cias político-ideológicas com a mesma. O candidato representando o Movimento
Keren ou Fundo Tel Hai era o órgão Revisionista do Brasil. A propaganda da
mantenedor do Partido Revisionista e de Nova Organização Sionista e sua platafor-
sua NZO. A notícia informava que ele pro- ma política aparece por diversas vezes em
8 Publicação Isto é Betar!, São nunciaria várias conferências, em São Pau- Aonde Vamos? acompanhada de uma foto
Paulo, Netzivut Betar do Brasil,
1947, p. 69. O autor da bro- lo e Porto Alegre, sobre problemas judai- do jovem Zvi Kolitz. O Comitê Eleitoral
chura, em continuação, escre-
ve que Kolitz “falou-nos sobre a
cos e palestinenses. A seguir, no número Central, que havia fixado as eleições lo-
situação em Eretz, advertindo- datado de 2 de agosto, a Nova Organização cais, para indicar os candidatos ao Con-
nos que a Inglaterra, de modo
algum, cumpriria sua promes- Sionista do Brasil anunciava uma confe- gresso, para o dia 27 de outubro de 1946,
sa, e que nós próprios devería- rência, para o dia 5 daquele mês, no salão apuraria os resultados finais das três listas
mos tomar o nosso destino em
nossas mãos. Incitou especial- do Instituto Nacional de Música do Rio de partidárias e na chapa de número 4, dos
mente a juventude para organi-
zar-se e preparar-se para a Janeiro, já agora acrescido do título de mem- revisionistas, figuraria um único mandato,
grande tarefa, que cabe à nos- bro do conselho municipal de Jerusalém, em nome de Zvi Kolitz (9). Podemos cal-
sa geração, seja em Eretz Israel,
seja nos países da Diáspora: além dos lembrados acima. Dias antes, em cular que ele permaneceu no Brasil por
tornar uma realidade o Estado
Judeu”. Na mesma publicação
entrevista à imprensa, concedida no Palace aproximadamente um ano, com prováveis
consta a data oficial da funda- Hotel, publicada no mesmo número de viagens esporádicas a outros lugares ao
ção do Betar, ou seja, 28 de
agosto de 1945. Aonde Vamos?, Zvi Kolitz se reportaria à longo desse período, seguindo após para a
9 Não deixa de ser curiosa a Declaração Balfour, ao Holocausto e aos Argentina. Assim sendo, Paul Badde enga-
menção do nome de Zvi Kolitz distúrbios árabes na Palestina declarando na-se ao afirmar que “em 1946, com 26
em um relatório policial nos
arquivos do Deops (Relatório de que “nós iniciamos uma atividade para anos, foi enviado como delegado ao Con-
Investigação n. 165, de 29 de
outubro de 1947), no qual
mobilizar a opinião pública mundial favo- gresso Sionista Mundial na Basiléia, e pou-
consta um “histórico sobre as rável à constituição de uma Pátria indepen- co após a Buenos Aires.” Como já vimos,
atividades sionistas no Brasil”
sob o item “Organização Sio- dente para os judeus imediatamente, por- ele viria muito antes, em julho de 1945, ao
nista no Brasil”. Ver Taciana que qualquer demora poderá acarretar no- Brasil, seguindo, mais tarde, para a Argen-
Wiazovski, Bolchevismo e Ju-
daísmo, a Comunidade Judai- vas lutas. O Sionismo não é uma questão tina, após ser indicado como delegado para
ca sob o Olhar do Deops, Mó-
dulo VI-Comunistas, São Paulo, filantrópica, mas sim uma questão política o 22o Congresso Sionista Mundial, que
Arquivo do Estado/Imprensa mundial, cuja solução beneficiará não só deveria realizar-se em dezembro de 1946.
oficial, 2001, pp. 85-6. A au-
tora do livro escreve que “O os judeus, mas todos os povos”. No final da Ele deixaria Buenos Aires em direção à
relato [do relatório lembrado
antes] continua tratando da vin-
entrevista ele também se referia às pers- Europa, não sem antes, em setembro da-
da ao Brasil do líder sionista pectivas de realização do ideal que a vitória quele mesmo ano, escrever e publicar seu
Zwit Kollitz (sic), que chefiava
a ‘Esquerda Sionista’, represen- do Partido Trabalhista inglês abria para a texto no Ydische Tzeitung. Contudo, deve-
tada pela chamada ‘Nova constituição do Lar Nacional judeu na Pa- mos frisar que não temos elementos segu-
Organização Sionista’, ou ‘ex-
trema esquerda do movimento lestina. Uma publicação do movimento ros para afirmar que ele tenha efetivamente
hebraico internacional’. O re-
presentante dessa organização juvenil Betar que apresenta um pequeno participado do Congresso Sionista, apesar
era Salomão Rapaport”. A au- histórico da formação do movimento no de sua indicação como delegado para o
tora do livro, estranhamente,
não corrige e nem comenta as Brasil lembra que “já em 1930 foram for- mesmo, e a confirmação que Paul Badde
“pérolas” desse relatório, que
confunde revisionistas com “sio-
mados, por elementos vindos de diversos traz em seu escrito, certamente com base
nistas de esquerda” e assim, países europeus, alguns núcleos, em São na informação fornecida pelo próprio Zvi
mais uma vez, fica demonstra-
do que não basta ler documen- Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre”, Kolitz. Ainda no Brasil, encontramos um
tos para se fazer pesquisa his- mencionando também que “em agosto de artigo polêmico que Zvi Kolitz publicaria,
tórica, mas é necessário um co-
nhecimento prévio, mínimo e 1945, chegou ao Brasil o primeiro enviado, em julho de 1946, em um modesto boletim
básico, do tema que se quer
pesquisar. direto de Eretz Israel, Cap. Zwi Kolitz” (8). do Partido Revisionista de Curitiba, de
10 O redator desse boletim parti- Já no número de 9 de setembro de 1945 de nome Menorá, sob o título “Congresso
dário era Yoshua Auerbach, Aonde Vamos?, quando se anunciava a re- Trágico ou Congresso Heróico” (10). Mas,
ativista do Movimento
Revisionista no Brasil. Sobre ele organização do Betar no Brasil, em ato sob o aspecto biográfico, a narrativa de Paul
ver o meu artigo: “Meir Kucinski,
solene realizado em 29 de agosto, informa- Badde termina efetivamente em 1946, so-
Imigrantes, Mascates e Douto-
res”, in Boletim Informativo do va-se que nessa ocasião o capitão Zvi Kolitz frendo uma interrupção e concentrando-se
Arquivo Histórico Judaico Bra-
sileiro, no 25, 2o semestre de “proferiu brilhante discurso”. Nas eleições doravante no destino insólito do texto de
2002, pp. 13-6; e revista O para o 22o Congresso Sionista Mundial, que Zvi Kolitz, para saltar em seguida a um
Hebreu , n o 265, junho de
2002, pp. 8-11. deveria se realizar na Basiléia, entre 9 e 24 período bem posterior, quando Badde de-

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cide ir a procura e encontro do autor nos di menshen tzu zaiere vilde ietzorim” (p. 14
Estados Unidos, durante os anos 90. O que da edição em ídiche) (12). Aqui nos depa-
aconteceu com a pessoa do autor, Zvi Kolitz, ramos com a expressão hebraica “hastarat
após o ano de 1946, não é objeto de uma panim”, que significa “Deus escondeu sua
inquirição maior, e pouco ou quase nada se face”, e assim traduzimos: “as primeiras
informa a seu respeito, a não ser algumas vítimas são aqueles que representam o di-
vagas observações pessoais sobre os moti- vino e o puro” (“reprezentiren mit zich dos
vos que o levaram a abandonar Eretz Israel getliche un raine”). Mas é um orgulho ser
e fixar-se definitivamente nos Estados judeu e não pertencer aos povos que agora
Unidos. Nesse país, ele nos informa, sem cometem os crimes contra os filhos de Is-
qualquer ordenamento cronológico e pre- rael (“ich bin schtoltz vos ich bin a id nit
cisão de detalhes, que Zvi Kolitz atuou trotz der batziung fun der velt tzu undz, nor
como produtor de filmes, no teatro, dedi- dafke tzulib derdoziguer batziung. Ich volt
cando-se a escrever e lecionar. Porém, o mich geschemt tzu zain an ongeheriguer
objetivo principal do jornalista era, como tzu iener felker, vos hoben geboiren un
já vimos, narrar a fascinante saga do texto dertzoigen iene reschoim vos zenen
e não exatamente a de seu autor propria- farhantvortlich far di maasim vos veren
mente dito. Habent sua fata libelli! opgetun gegen undz”) (p. 27). E em conti-
O fato de ter sido considerado, e como nuação ele dirá que, entretanto, não é fácil
tal difundido, a partir de certo momento, ser judeu, pois sê-lo é verdadeiramente uma
isto é, desde 1954, como um “documento arte que exige ser um lutador, um nadador
autêntico” encontrado nas ruínas do Gueto permanentemente nadando contra a corren-
de Varsóvia é o que deu maior dramati- te de águas turvas da criminalidade huma-
cidade ao seu conteúdo, que trata da rela- na. Daí o judeu ser herói, vítima e santo (p.
ção entre o judeu, seu povo, e o Deus de 28) (13). “Tenho a felicidade de pertencer
Israel, cuja profundidade e debate teológi- a este povo, o mais infeliz de todos os po-
co, talvez, o próprio autor do texto não vos do mundo, cuja Torá representa o que
chegara inteiramente a vislumbrar. Ainda há de mais elevado nas leis e o mais subli-
em 1989 podemos encontrar em um livro me na ética, e agora essa Torá se fez mais
que trata da teologia do Holocausto a men- santa e eterna porque os inimigos de Deus
11 Dan Cohn-Sherbok, Holocaust
ção do “documento-testemunho do gueto a profanaram e a desprezaram.” Ser judeu Theology, London, Lamp Press,
de Varsóvia” como sendo verdadeiro e de é uma situação de nascimento, assim como 1989, p. 126. O autor do li-
vro escreve que “In the rubble
autoria de “Yossel Rakover” (11). Sem um homem nasce artista, ninguém pode of the Warsaw ghetto was
discovered a jar containing a
dúvida Kolitz captou com extraordinária e livrar-se de sua condição judaica. É uma letter by Yossel Rakover, one of
sensível intuição artística o cerne de um qualidade divina que nos classifica como those who died in the onslaught
bearing witness to such
tema crucial presente nas religiões mono- povo eleito, e o caráter de povo eleito – faith…”.
teístas de um modo geral e mais especifica- para o autor – adquire seu significado pelos 12 “Pois maiores e melhores do
mente na teologia judaica que, de uma for- sofrimentos (p. 29) (14). Essa concepção que eu estão plenamente con-
victos de que novamente não
ma ou outra, implica uma reflexão sobre a sobre a natureza do judeu determinada por é uma questão de castigo por
pecados, mas algo inteiramen-
singularidade da trajetória e do destino his- seu ser “natural” aproxima-se de certa te singular ocorre agora no
tórico do povo judeu. A questão teológica maneira à concepção do poeta e pensador mundo, ou seja: é um tempo
em que Deus esconde sua face.
central encontra-se em várias passagens do judeu medieval Yehuda Halevi que tam- Deus ocultou sua face e entre-
gou, desse modo, os homens
texto, e queiramos ou não, impossível bém via no judaísmo uma formação histó- como vítimas de seus instintos
desconhecê-la quando atinge sua expres- rica – desde o Monte Sinai – transmitida selvagens.”

são maior no trecho: “Vail gressere un como herança biológica de geração em 13 “Ich gloib az zain a id haist
zain a kemfer, an aibiger
bessere fun mir zenen fest ibertzaigt , az geração através da história. schvimer gegen brudigen,
atzind iz es nit kain frage fun shtrof far Mas, se o Deus de Israel “esconde o seu farbrecherischen menschlechen
schtrom. Der id iz a held, a
chatoim, nor epes gantz bazunders kumt rosto” e se torna ausente em momentos martirer, a heiliger.”
for oif der velt, nemlich: es iz a tzait fun cruciais para a sobrevivência de seu povo, 14 “Ich gloib az zain a id iz an
aingeboirener tugend. Men
hastarat panim. Got hot farshtelt zain ponim assim mesmo Yossel Rakover não encon- vert geboiren a id punkt vi men
fun der velt un hot, azoi arum, makriv geven trará motivo para descrer: vert geboiren a kinstler.”

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15 No livro Etz Avot, Kidush “Eu creio no Deus de Israel, mesmo que ele “Devido a que Tu és tão grande e eu tão
HaShem baShoah BeHagut
BaHalacha UbeHagada (Árvo- tenha feito tudo para que não devesse crer pequeno, peço, te advirto: cesse de acentu-
re dos Antepassados, Kidush
HaShem no Pensamento Religi-
nele (15). Eu creio em suas leis mesmo que ar Tua grandeza através de conceder o der-
oso, na Halacha e na Agadá), não possa justificar seus atos. Minha rela- ramamento de sangue dos inocentes! Eu
Jerusalém, Machon leerkei Isra-
el, 1993, pp. 15-27, o rabino ção para com ele não é como a relação do também não peço que castigues os culpa-
Shear-Ishuv Cohen, em seu arti- escravo para com seu senhor mas como a dos. Pela terrível lógica dos acontecimen-
go “Hester panim baShoah mul
hanissim bedoreino” (“Hester do discípulo ao seu mestre. Inclino minha tos inevitáveis, seu fim será que eles casti-
Panim no Holocausto Frente aos
Milagres em Nossa Geração”), cabeça para sua grandeza mas não beijarei garão a eles mesmos por suas próprias mãos,
traz dois exemplos próximos ao o bastão com o qual ele me castiga. Eu o uma vez que com nossa morte foi morta a
que Yossel Rakover afirma ilus-
trando o esforço da divindade amo, mas amo mais ainda sua Torá. E consciência do mundo, uma vez que o as-
para decepcionar o judeu que
Nele crê. O primeiro se refere a
mesmo se eu me decepcionasse com ele eu sassinato do povo de Israel foi também o
um judeu da Turquia Otomana cumpriria sua Torá. Deus é religião, mas assassinato do mundo” (pp. 36-7) (20).
que sofreu o assassinato de toda
sua família e foi levado em um sua Torá é modo de vida, e quanto mais nós
navio para ser vendido em ou- morremos por este modo de viver mais ela E quanto àqueles que se desiludiram
tro lugar. Porém o navio afun-
dou e ele veio parar num lugar se eterniza” (pp. 30-1) (16). com a divindade devido a sua ausência pe-
ermo sem que pudesse encon-
trar qualquer ser humano. E o rante essas atrocidades difíceis de suportar
náufrago ao orar, apesar de ter Esta última expressão do texto de Kolitz e voltaram suas costas a Ele, a esses deve-
perdido tudo, confirmava que
ele continuaria a ser judeu, a motivou a reflexão de Emmanuel Levinas, se perdoar. Porém jamais Ele deve perdoar
despeito da vontade de Deus.
Outro caso lhe foi narrado pelo
que repete, assim como outros, ser um tex- aqueles que silenciaram perante o crime,
rabino Schlomo Zalman Shragai to encontrado entre as ruínas do gueto de temendo pelo que diriam os homens e não
que, em sua viagem à Polônia,
após o Holocausto, se encontra- Varsóvia, mas cuja sensível intuição o leva levantaram um dedo para salvá-los.
va em um trem e ao colocar os a escrever: “Nous venons de lire un texte Yossel Rakover dialoga frontalmente
seus filactérios percebeu que um
judeu o observara e se pôs a beau et vrai, vrai comme seule la fiction peut com a divindade seguindo um exemplo do
chorar pedindo-lhe para também
pôr os filactérios. O judeu con- l’être” (17). A reflexão de Levinas também mundo dos sábios de Israel, como Honi ha-
tou-lhe o milagre de sua sobrevi- se faz ao redor do conceito do “Deus ausen- Meagel (o que traça círculos), conhecido
vência e antes de dizer a prece
para colocar os filactérios levan- te” que, por ser tal, isto é, ausente, se revela por desafiar a divindade, conforme o relato
tou a voz e disse: “Senhor do
Universo, nada Lhe adiantará,
presente e íntimo: esse Deus absconditus, do Talmud, exigindo que Deus socorresse
Tu não quer que eu permaneça afastado e oculto, se torna “interior”, pró- seu povo desesperado devido a uma seca
judeu, mas eu permanecerei
judeu”. prio do judaísmo, pelo sofrimento, ainda que prolongada e lhe enviasse chuva. Em tom
16 “Ich gloib in got fun Israel oib isso possa parecer paradoxal. Levinas dirá desafiador o sábio disse a Deus que en-
afile er hot altz getun az ich zol que “é aqui que se manifesta a fisionomia quanto não atendesse ao seu pedido ele se
in ihm nit gloiben. Ich gloib in
zeine gezetzen oib afile ich ken particular do judaísmo: a relação entre Deus negaria a sair de dentro do círculo que ha-
nit mazdik zain zaine maasim.
Main batziung tzu ihm iz mehr
e o homem não é uma comunhão sentimen- via traçado ao seu redor (21). O exegeta por
nit vi fun a knecht tzu zain her tal no amor de um Deus encarnado, mas uma excelência, Rabi Schlomo Itzchaqi, conhe-
nor vi fun a talmid tzum rebin.
Ich boig main kop far zein relação entre espíritos, por intermédio de um cido como Rashi, ao interpretar 2:1 de
groiskait , ober ich vel nischt ensinamento, pela Torá” (18). É assim que Habacuc nos diz: “Habacuc traçou um cír-
kushen di rot mit velche er schlogt
mir. Ich hob ihm lieb , ober zain Levinas interpreta a frase de Yossel Rakover culo e se postou em seu centro e disse: não
Toire hob ich liber, un ven ich
volt zich in ihm antoischt volt ich que reproduzimos acima: “Eu o amo, mas sairei daqui até que ouça dizer para esta
zain Toire gehit. Got haist religie amo mais ainda sua Torá”. Levinas observa minha (queixa) pergunta: por que Ele ob-
, ober zain Toire haist a leibens
schtaiger, un vos mer mir que é precisamente uma palavra, não encar- serva e vê o sucesso do ímpio, pois que
schtarben faren dozigen
schtaiger altz mer umschterblech
nada de Deus, que assegura um Deus vivo direi eu aos que vêem questionar perante
vert er.” entre nós, e que inspira a confiança em um mim”. O genial exegeta Rashi em seu es-
17 “Aimer la Thora plus que Dieu”, Deus que não se manifesta por nenhuma au- forço de interpretação utiliza-se do exem-
in Difficile Liberté, p. 201.
toridade terrestre e que somente pode re- plo de Honi ha-Meagel dando o mesmo
18 Idem, ibidem, p. 204.
pousar sobre a evidência interior e o valor de significado ao versículo: “Vou ficar de pé
19 Idem, ibidem.
um ensinamento (19). em meu posto de guarda, vou colocar-me
20 “Ober dafke veil du bist azoi
grois un ich azoi klein bet ich
Vemos que Yossel Rakover não é um sobre minha muralha e espreitar para ver o
dir, voren ich dir, in dein nomen ser que se sujeita à resignação frente à gran- que ele me dirá e o que responderá à minha
vegen: her oif tzu aktzentiren
dain groiskeit durchn lozen deza e às excessivas exigências da divinda- queixa” (22). No final Yossel Rakover tam-
schlogen di umschildige. Ich bet de. Nesse sentido advertirá que Ele não deve bém espera que o Deus ausente revele Sua
dir oich nit du zolst schlogen di
schuldige. Es ligt in der esticar em demasia a corda! face, não para castigar os criminosos –

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schreklicher logic fun di
quanto a isso não se pode duvidar – mas Senhor que esconde sua face da casa de umfarmeidliche gescheenischen
para algo mais significativo, ou seja, mos- Jacob”), e também no TB, Hagiga 5a, que az zai zolen zich tzum sof alien
schlogen, veil in undzer toit iz
trar que “Tzadik Ata Adonai veiashar repete o versículo do Deuteronômio 31:18, getoit gevoren der gevisen fun
mishpateicha” (“Justo És Tu, Deus, e cor- der velt.”
no contexto de uma discussão rabínica, na
retas são Tuas sentenças”). E isso Yossel qual o significado final resulta na interpre- 21 A história é contada no Talmud
Bavli (TB), Taanit 3:8 e em 23a,
Rakover exige, porque agora “não poderei tação de que Deus esconde sua face, porém bem como no Talmud
Yerushalmi (TJ, de Jerusalém),
dizer que minha relação com Deus não daquele que não é de Israel. Teriam os sá- Taanit 3:10-12, 66d. A narra-
mudou após tudo o que se passou comi- bios do Talmud a convicção segura de que tiva talmúdica é extraordinária
e o sábio, que viveu no primei-
go… porém minha fé Nele em nada abso- Deus não pode em hipótese alguma escon- ro século antes da era atual,
apesar de ser reconhecido
lutamente mudou… mas agora eu me rela- der a sua face de Israel? Certamente que como grande estudioso,
ciono com Ele como quem deve também a sim, se considerarmos que para os sábios fazedor de milagres e
carismático, não deixou nenhu-
mim, e me deve muito. E pelo fato de sentir do Talmud a auto-revelação do Deus de ma “halachá”. O texto
que Ele também me deve, penso que tenho Israel a Moisés no Êxodo 33:19, 34:9 im- talmúdico narra o feito do sá-
bio assim: “Aconteceu certa vez
o direito de vir a Ele com exigências” (pp. plica que Deus é “El rachum ve chanun” que o povo dirigiu-se a Honi
ha-Meagel e lhe pediu para orar
13-4) (23). (“misericordioso e compassivo”). Em um por chuva. Ele orou, mas a
Contudo creio que a pergunta dramáti- artigo intitulado “Sobre o Eclipse de Deus” chuva não caiu. Que fez ele?
Desenhou um círculo e se pos-
ca do texto de Zvi Kolitz reside no parágra- o filósofo Emil L. Fackenheim, que refle- tou no meio dele e disse: ‘Se-
nhor do Universo, Teus filhos
fo seguinte: tiu em vários de seus estudos uma preo- vieram a mim porque acredi-
cupação sobre a própria fé judaica após tam que eu sou um membro de
tua residência. Eu juro pelo Teu
“Talvez dirás que agora não é uma questão Auschwitz, escreve que “a fé bíblica – e excelso nome que não sairei
de pecado e castigo, mas que nos encontra- refiro-me tanto à judia quanto à cristã – daqui até que tenhas misericór-
dia de teus filhos’. Então a chu-
mos numa situação de ‘hester panim’, na jamais é destruída pela tragédia, mas ape- va começou a cair. Ele disse:
‘Não é por isto que orei mas
qual abandonastes os homens aos seus ins- nas por ela submetida à prova; e na prova- para encher cisternas, fossos e
tintos. Porém, se é assim, Deus, quero Te ção ela tanto esclarece o seu próprio senti- reservatórios’. Então a chuva
começou a cair com grande for-
perguntar – e essa questão me atormenta do como vence a tragédia. Aqui, precisa- ça. Ele exclamou: ‘Não é por
isso que orei porém para chuva
como fogo abrasador: que mais, oh, que mais mente, reside o segredo da sua força” (26). de benevolência, bênção e
deverá acontecer, para que voltes e reveles Corretamente ele lembra que Jeremias, no generosidade’. A chuva, então,
caiu de modo normal”.
teu rosto ao mundo?” (pp. 32-3) (24). momento da destruição do Templo, e Jó, A narrativa talmúdica continua
em sua desgraça pessoal, não concebem o com o que se segue: “Logo após
Simão b. Shetach enviou a ele
Não se trata, portanto da questão que afastamento de Deus. Jeremias vê na des- uma mensagem: ‘Se não fosses
Honi eu teria colocado você sob
atormentou a Jó, ou seja, a de que pecados truição do Templo uma manifestação da anátema, porém o que posso
teria cometido para receber tal castigo? Mas justiça divina e Jó se encontra atormentado fazer com você, que perturba a
Deus e Ele concede ao teu
se trata de algo mais profundo e nada indi- porque não compreende a razão de seus pedido, como um filho que
importuna o pai e ele [no entan-
vidual senão que tange a todo o “povo elei- sofrimentos. Mesmo o salmista que em- to] concede ao seu pedido’”.
to”, que nessa mesma condição de “eleito” prega a expressão “Deus escondeu a Sua 22 Ver Torá, Neviim, Ketubim, ed.
viu esconder a Sua face durante o face” parece considerar que esse ocul- científica de Abraham Kahana,
Neviim-Sefer Tarei Assar, p. 2,
Holocausto (25). A expressão “hester tamento é apenas provisório e, portanto, Tel-Aviv, Mekorot, 1930, p. 80.
panim” aparece no Deuteronômio 31:18 sua fé Nele não pode estar abalada ou posta Novamente lembramos que
aqui Deus não está ausente, mas
(“Eu, porém, ocultarei completamente a mi- em dúvida. O “eclipse de Deus” – expres- o profeta, sob a pressão das
circunstâncias, exige uma ma-
nha face naquele dia, por causa do mal que são de Martin Buber – para o homem de fé nifestação divina porém na qual
fez o povo, seguindo a outros deuses”); é exatamente como o eclipse do Sol ou da ele não duvida que virá.

Isaías 59:2 (“e vossos pecados são a causa Lua, um fenômeno temporário, que não 23 “[…] atzind iz main batziung
tzu ihm vi tzu ainem vos iz oich
para que a Face se oculta…”); Salmos 27:8- pode abalar sua fé (27). Buber interpretará mir epes schuldig, um asach
9 (“Meu coração diz a teu respeito: ‘Procu- o versículo 28:21 de Isaías, “… a fim de schuldig. Un vail ich fil az er iz
mir oich schuldig, derfar halt
ra sua face!’ É tua face, Deus, que eu pro- realizar a sua obra, a sua obra estranha, a ich az ich hob dos recht ihm
tzu monen.”
curo, não me escondas a tua face”); Salmos fim de executar a sua tarefa insólita”: como
24 “Du zogst efschar az atzind iz
30:8 (“…mas escondeste tua face e eu fi- que os feitos de Deus parecessem, aos olhos es nit kain frage fun zind un
quei perturbado”); Salmos 42:3 (“…quan- do homem, tão estranhos, que ele, o ho- schtrof, nor s’iz a tzuschtand
aza fun ‘ester panim’ in velchen
do voltarei a ver a face de Deus?”); Salmos mem, não pode reconhecer neles feitos de du host mafkir geven di
51:11 (“esconda tua face de meus peca- Deus. E mais adiante, ao se referir aos menschen tzu zaiere ietzorim?
Vil ich dir fregen, Got, un di
dos…”); Isaías 8:17 (“terei confiança no versículo 45:11, “pedem-me sinais a res- dozige frage brent in mir vi a

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fartzerender faier: vos noch , peito dos meus filhos, querem dar-me or- apenas valores humanos e nada no mundo
oh, vos noch darf passiren
bichdei du zolst dain ponim
dens a respeito da obra das minhas mãos”, se pode comparar a eles, mundo dos fatos
vider antpleken far der velt?” e 45:15, “Entretanto tu és um Deus que se puros que é destituído de qualquer propó-
25 A “ausência de Deus” durante esconde…”, Buber concluirá que os povos sito. Independentemente da questão com-
o Holocausto pôde levar ao
grito de desespero radical de sabem que Ele é um Deus não visto, e são plexa da relação entre ciência e fé, que
um judeu ortodoxo, um rabino, exatos em sua descrição: Deus que se es- permanece aberta devido às múltiplas pos-
em Auschwitz, ao ver crianças
serem mortas barbaramente conde e se descobre (28). Poderíamos, tal- sibilidades de análise e abordagem sob o
pelos nazistas: “Senhor do
Universo, onde estás?!…Como
vez, estender essa interpretação de Buber aspecto filosófico, boa parte da reflexão
podes ver e calar!… Não… ao que encontramos nas orações do sobre o tema na modernidade desemboca-
Não… judeus!… Não há um
Deus!…” (V. K. Charmatz, O “Schmoné Esre” quando lemos “e faze que rá no que foi definido como reducionismo
Novo Momento, São Paulo, os nossos olhos vejam a Tua volta a Sião subjetivista (30). Em última análise a preo-
1976, pp. 134-5). Menasche
Unger, em seu livro Sefer com misericórdia” (“ve techezena eineinu cupação medieval da harmonização da Fé
Kedoshim, Raboiim oif Kidush
haShem (Livro dos Mártires, Ra- beshuvecha´letzion berachamim”) e logo a e da Razão sofrerá um novo questionamen-
binos e seu Martirológio ), Nova seguir: “Bendito sejas Tu, Senhor, que res- to que, para o homem religioso, porém, com
York, Shulsinger Brothers,
1967, p. 318, em ídiche, ao tituirás a tua Divina Presença a Sião” uma formação humanista contemporânea,
falar do rabino de Piasetchna
R’ Kalonimos Kalman Shapiro,
(“Baruch ata Adonai hamachzir Shechinato levará a separar a ciência da fé como perten-
que se encontrava no Gueto de letzion”). As palavras “Tua volta” indicam centes a dois domínios diferentes e autôno-
Varsóvia, menciona que este
via diariamente as pessoas se- ausência provisória enfatizada, mais ain- mos. Para o pensador Samuel H. Bergman,
rem levadas aos vagões para da, com as palavras “restituirás a tua Divi- no mundo moderno não há qualquer possi-
os campos de extermínio até
que certo dia os nazistas toma- na Presença”. Mas o questionamento de bilidade de haver interferência ou intromis-
ram centenas de crianças das
ruas de Varsóvia e as coloca- Emil Fackenheim é de outra natureza, pois são entre um domínio e outro uma vez que
ram nos vagões da morte. se reporta à crise religiosa que se manifesta possuem fundamentos diferentes e opostos
Nesse dia ele deixou seu tra-
balho de lado e gritou: “Como no século XX e que, no seu entender, não (31). Contudo, devemos lembrar que o per-
o mundo pode-se ainda manter
e não se transformar no caos
está diretamente associada às catástrofes sonagem do diálogo, Yossel Rakover, é um
[tohu vavohu]? Quando foram desse mesmo século, uma vez que parte do homem de fé, fé inabalável e a toda prova, a
sacrificados os ‘Dez mártires do
reino’ [assará haruguei malchut, pressuposto de que para o homem de fé não ponto de desafiar a própria divindade, sendo
no tempo do domínio romano seria motivo suficiente para a descrença, que essa fé não se vincula às dúvidas e às
na terra de Israel, quando sá-
bios famosos como R’Akiba e que deve ter causas mais profundas (29). O crises do homem contemporâneo em rela-
outros preferiram o ‘ kidush
haShem’ do que abandonar sua que na verdade mudou se elas, as catástro- ção à divindade e sua existência. A fé de
fé] os anjos choraram amarga- fes, não são a causa da crise contemporâ- Yossel Rakover é a do judeu ortodoxo de
mente e disseram: ‘Esta é a Torá
e esta é a recompensa?’. E nea da fé religiosa? Segundo Fackenheim todos os tempos e possui a mesma força e
agora estão sendo dizimadas
crianças inocentes, anjos sem
a resposta mais comum é que a crença já convicção dos rabinos que escreveram as
mácula e mártires de Israel são estava minada, e nada menos do que pela crônicas hebraicas sobre as Cruzadas, nas
mortos e sacrificados simples-
mente porque são judeus. Eles ciência moderna. Copérnico, que demons- quais o martirológio, assim como o futuro
são superiores aos anjos. O trou que a Terra não é o centro do Universo, castigo dos criminosos, é parte integrante
grande vazio do mundo está
tomado pelo seu terrível grito mas apenas um astro entre incontáveis as- do destino judaico, que um Deus justo, mas
que rompe e atravessa paredes
de ferro: Acudam, acudam, eles tros; Darwin, que entendeu o desenvolvi- misericordioso (que se manifesta com
gritam! Esta é a Torá e esta é a mento da Criação pelas leis naturais da evo- “midat hadin” e “midat harachamim”) –
recompensa? E o mundo não
desmorona e permanece como lução das espécies configurando o homem desde o sacrifício de Isaac –, sempre tem
ele é, assim como se nada es-
tivesse acontecendo!…”.
apenas como um animal superior; Freud,
26 O artigo foi adaptado de uma
que abriu o caminho para o questionamen-
conferência pronunciada no to da racionalidade e sua relativização, to-
University College, em Toron-
to, e publicado em português dos eles ajudaram a deslocar o homem, con-
na revista Comentário (Rio de siderado centro do universo, para a perife-
Janeiro, ano V, vol. 5, n. 3,
1964, pp. 273-81). ria. Além do mais, pensadores vêem como
27 A expressão é usada por Martin fator adicional a dicotomia existente entre
Buber em um artigo intitulado
“Diálogo entre Deus e o Ho-
o mundo pré-moderno pleno de valores em
mem na Bíblia” (in Comentá- contraposição ao da ciência moderna, que
rio, vol. 8, n. 4, 1967, pp.
445-50). A tradução ao portu- “é um universo de fatos sem propósitos”.
guês adota a expressão “Deus Nesse sentido, o “fato” e o “valor” se en-
encoberto” e a elaboração de
Buber, vinculada à sua visão contram em extremos opostos. Valores são

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colocado à “prova”. Nas crônicas também rá e não o aceitará e voltar-se-á para a di-
filosófica, nos impele a uma
se insinua a ausência de Deus e se questi- vindade com a interrogante existencial reflexão adicional – que não
fazemos nos limites deste arti-
ona o “abandono” do povo santo Seu eleito como o faz Baruch ben Samuel de Mo- go – porém que é parte da
(32) do mesmo modo que na poesia litúr- gúncia (c.1150-1221) em seu poema sobre mesma interrogação fundamen-
tal: “Há ainda lugar para a
gica, gerada nessa mesma época, se implo- os mártires de Blois (1171) “Esh ochla vida com Deus na época de
ra para que a divindade “não silencie” pe- esh”(“Fogo que devora fogo”): “Tu proíbes Auschwitz?… ainda podemos
‘crer’ em Deus que permitiu que
rante tanta iniqüidade (33). Muitos são os os incircuncisos de Te oferecer até carnei- fossem realizados os horrores,
mas podemos nós ainda falar
textos poéticos que apelam para a vingança ros. Por que escondes Tua face quando eles com Ele? Podemos nós ainda
do sangue injustamente derramado por destroem o povo santo, os indefesos judeus, invocá-lo? Podemos nós ousar
dizer aos que sobreviveram de
Edom, isto é, o mundo cristão, e por Ismael, que colocam sua confiança em Ti?” (35). Auschwitz, ao Jó das câmaras
de gás: ‘Agradecei a Deus
o mundo muçulmano, nos quais viviam co- Nesse sentido – em nossos dias – é no míni- porque Ele é bom, porque sua
munidades judias sob tensão e sofrendo mo chocante, falso e inaceitável, o bizarro generosidade é eterna?’”. O
texto alemão foi escrito em
muitas vezes as conseqüências de seus con- raciocínio e a “argumentação teológica” de 1951e publicado um ano após
flitos internos e externos. Entre muitos dois autores contemporâneos, Bernard Maza na coletânea An der Wende:
Reden über das Judentum (Köln
outros de mesmo teor, um poema conheci- e Ignaz Maybaum (desse último: The Face und Olten, 1952, pp. 85-
107), sendo que em hebraico
do de Abraham ibn Ezra (1092-1167), of God After Auschwitz, Amsterdam,1965) se encontra sob o título
“Onde Está teu Poder?”, passa a ser um no livro, lembrado anteriormente, intitulado “Hadusiach bein Elohim
laadam baMikra” no livro de
grito inconformado em direção aos céus Holocaust Theology (36), no qual o primei- Martin Buber, Teudá veieud
(Kerech Rishon): Maamarim al
para que a divindade intervenha, em dado ro, no capítulo que resume seu pensamento inianei iahadut (Yerushalaim,
momento, em favor de seu povo. Por outro sob o título “God’s Fury Poured Out”, afir- 1963, pp. 244-52). Devo a
Oscar Zimmermann, estudioso
lado, Yehuda Halevi (1075-1161), em seu ma que a fúria divina levou a revitalizar o da filosofia de Martin Buber, a
famoso poema “Kol atzmotai” (“Todos os judaísmo da Torá enquanto o segundo au- indicação e o recebimento de
uma cópia da edição em
Meus Ossos…”), dirá: “… pois não Te tor, na síntese “God’s Providence and Death hebraico.
ocultas aos que Te procuram. Do alcance Camps”, acredita que os seis milhões que 28 M. Buber, “Diálogo entre Deus
e Homem na Bíblia”, p. 449;
dos meus olhos só Te têm ocultado os meus morreram nos campos de extermínio fo- na versão hebraica lembrada
pecados…”. E mesmo nos séculos XVI- ram escolhidos por Deus para serem as na nota anterior, p. 250. A
exegese tradicional do
XVII um judeu perseguido pela Inquisição vítimas sacrificadas com o objetivo de re- versículo em questão visa de-
como David Abenatar Melo (f.c.1646), em alizar os propósitos da divindade para o monstrar que o Deus de Israel
não pode ser “visto” como os
um dramático poema, “Salmo XXX”, es- mundo moderno e seu progresso. Essa vi- ídolos feitos de pedra , barro
ou de matéria.
creverá: “… mostrastes-me a Tua face des- são teológica que radicaliza a concepção
29 Idem, ibidem, p. 274.
truindo os que estavam a atacar-me…” do “castigo divino” em relação ao Holo-
30 Fackenheim se debruça sobre
(34). O que evidencia a certeza e confiança causto não está afastada da que encontra- o conceito, no texto em ques-
do judeu medieval, e mesmo nos séculos mos na ultra-ortodoxia anti-sionista ilus- tão, para apontar as suas di-
versas facetas.
próximos a esse período, no zelo protetor trada pelo pensamento do líder da seita dos
31 O autor expõe a questão em
do Deus de Israel que não deixará de casti- Naturei Karta, o Satmar Rebe Joel seu livro, Faith and Reason, an
gar a iniqüidade praticada contra seu povo. Teitelbaum, que no seu VaYoel Moshe en- Introduction to Modern Jewish
Thought. Utilizei-me da tradu-
Mesmo assim, em certas circunstâncias, o dossa e argumenta que o sionismo, pelo ção espanhola Fe y Razón
(Buenos Aires, Paidós, 1967).
poeta medieval, convicto de que o castigo fato de transgredir a “espera da redenção Bergman também aborda, sob
é resultante dos pecados, não se conforma- divina através do Messias” e provocar atra- outro ângulo, a crise da fé e
da razão na filosofia contem-
vés da ação humana e com as próprias for- porânea em um ensaio intitu-
ças o ato de redenção do povo de Israel para lado “Deus e o Homem Peran-
te o Pensamento Moderno” que
criar um Estado Judeu, sofreu o terrível foi publicado em português na
revista Aonde Vamos? (núme-
castigo “pelos nossos pecados” (37). No ros 856-860, novembro-de-
final, ambos tentam demonstrar que o zembro/1959).

Holocausto foi resultado da providência 32 Ver A. M. Habermann, Sefer


Gzeirot Ashkenaz veTzarfat (O
divina, ainda que por caminhos e razões Livro das Perseguições na Ale-
manha e França), Jerusalém,
opostas. Ofir, 1971, p. 55, no qual se
No entanto, o autor da citada coletâ- descreve a atitude de um justo
e piedoso, Avraham bar Yom
nea, ao expor o pensamento de Emil Tov, que, ao se prostrar e con-
Fackenheim, baseado na leitura das obras fessar seus pecados, clamou
aos céus: “Deus, por que
desse filósofo, em especial no God’s abandonastes teu povo Israel

REVISTA USP, São Paulo, n.57, p. 196-209, março/maio 2003 205


Presence in History: Jewish Affirmations Mesmo porque tal postura se mostra pre-
and Philosophical Reflections (London, sente desde o início da história judaica, a
Harper Collins Pub., 1978), parte de um começar de Abraão, que disputa com Deus
pressuposto inteiramente diferente cuja sobre o destino de Sodoma e Gomorra.
ao escárnio, à vergonha e à chave para desvendar o Holocausto é que Deus, contudo, não deixou de estar presen-
perdição nas mãos dos povos
impuros?…”. Ver a tradução ao
Deus revelou ao povo de Israel, nos cam- te no Holocausto pois os que morreram para
português em meu livro Kidush pos da morte, um mandamento adicional, o santificar o Nome nos campos de extermí-
HaShem, Crônicas Hebraicas
sobre as Cruzadas (São Paulo, 614, dirigido também à geração pós- nio sentiam sua presença durante seu sofri-
Edusp/Imprensa do Estado, Holocausto, que se resume em: mento, presença que se revelava ao morre-
2001).
rem por sua fé. A interpretação que ele dará
33 Idem, ibidem, p. 69. Título do
piut (poema litúrgico) “Elohim “aos judeus é proibido ajudar a Hitler em à expressão “hester panim” é de que Deus
al-domi ledami” (“Deus, não
silencie por meu sangue derra-
vitórias póstumas; a eles é ordenado sobre- se esconde para não assistir ao mal huma-
mado”) de R’ David bar viver como judeus para que o povo judeu no, e silencia não por ser indiferente, mas
Meshulam.
não pereça; a eles é ordenado lembrar as para deixar espaço para a liberdade huma-
34 Ele foi aprisionado pela
Inquisição e torturado. Após vítimas de Auschwitz para que sua memó- na, e ter a oportunidade de ser um agente
figurar como penitente em um ria não pereça; a eles é proibido perder a moral em face do mundo. Ele acredita que,
auto-de-fé conseguiu fugir para
Amsterdã e voltar ao judaísmo. esperança na humanidade e seu mundo, e apesar do silêncio, Deus está presente em
Em 1626 traduziu ao espanhol
o livro dos Salmos que, na ver- se refugiar no cinismo ou no falso misticis- todos os momentos da história de Israel, e
dade, constitui mais uma pará- mo, para que não se entregue o mundo isso é que explica sua sobrevivência atra-
frase do que uma tradução lite-
ral. Ver, sobre ele, o verbete na novamente às forças de Auschwitz; e final- vés do tempo. Em outra obra, With God in
Encyclopaedia Judaica (Jerusa- Hell (New York, Sanhedrin Press, 1979)
mente, a eles é proibido perder a esperança
lém, Keter Pub. House, 1971,
vol. 2, p. 65, com respectiva e a fé no Deus de Israel, para que o judaís- ele voltará ao tema da presença de Deus
bibliografia).
mo não pereça… Um judeu não deve aten- nos campos de extermínio quando milha-
35 T. Carmi, The Penguin Book of
Hebrew Verse, New York, The der à tentativa de Hitler destruir o judaísmo res de judeus mantiveram sua dignidade
Viking Press, 1982, p. 387. cooperando ele mesmo em sua destruição. perante a morte porque acreditavam em Sua
36 Ver nota 10. Na verdade o Nos tempos antigos, o pecado judaico presença e procuravam cumprir os manda-
organizador do livro compila e
resume as concepções dos inimaginável era a idolatria. Atualmente, é mentos de sua religião mesmo quando sabi-
mencionados autores em seus atender a Hitler indo de encontro ao seu am que se fossem pegos seriam mortos
escritos sobre o tema do Holo-
causto. propósito” (38). de imediato. Muitos relatos pessoais tes-
37 Ver “Etz Avot”, citado acima, temunham a atitude de rabinos que não
pp. 66-7. O historiador Amos
Funkenstein, em seu livro Tadmit De fato, o judaísmo pós-Holocausto in- duvidavam em mostrar sua fé na conti-
vetodaá historit beyahadut corporou em sua consciência a necessida- nuidade do povo de Israel como Povo
uvesvivatá hatarbutit (Am Oved,
Tel Aviv, 1991, o título em in- de de sobreviver a despeito da irreparável eleito e estavam certos da derrota dos
glês, Perceptions of Jewish nazistas. Mas o mistério de tão grande
History from the Antiquity to the
perda de um terço de seu povo durante os
Present não corresponde literal- anos da Segunda Guerra Mundial. A maior sacrifício encontra uma resposta por parte
mente ao hebraico), traz um
estudo fecundo sobre o tema expressão dessa consciência manifestou- desse teólogo ao confirmar que o resulta-
intitulado “Al camá peirushim se na criação de um Estado Judeu que, em do final do Holocausto foi a criação do
theologiim lemashmaut haShoá”
(“Acerca de Algumas Interpre- grande parte, absorveu o “sheerit hapleita”, Estado de Israel, assim como no passado
tações Teológicas sobre o Sig-
nificado do Holocausto – pp. os sobreviventes da catástrofe que assolou as desgraças acometidas ao povo judeu
243-78), no qual se detém so- o continente europeu durante aqueles anos. estavam previstas num plano divino mais
bre a concepção “messiânico-
passiva” de Joel Teitelbaum, que Porém, a necessidade de um confronto amplo que resultaram em sua sobrevivên-
explica o “castigo” pelo fato cia histórica (39).
de o sionismo transgredir o com-
com Deus aparece na obra de um teólogo
promisso jurado pelos judeus, ortodoxo, Eliezer Berkovits, que, em seu Entretanto, nem todos os pensadores
conforme o ensinamento dos
sábios do Talmud, de “shelo livro Faith After the Holocaust (New York, pendem para uma fundamentação teológica
iaalú bechomá” “velo idcheku Ktav, 1973), afirma a possibilidade da cren- da “presença de Deus” durante o Holocaus-
et haketz”, ou seja, não toma-
rem o próprio destino em suas ça religiosa apesar do pesadelo dos campos to, e um teólogo como Richard Rubinstein
mãos e apressar a vinda do
Messias. de extermínio. Mais do que isso, após o não esconde sua discordância da posição
38 Holocaust Theology, op. cit.,
Holocausto judeus religiosos têm a respon- tradicional que representa a divindade em
pp. 45-6. sabilidade de discutir com Deus, e se ne- Israel como onipotente com o atributo do
39 Idem, ibidem, pp. 56-67. cessário disputar com Ele, pois não se pode bem infinito e condutor da história, que cas-
40 Idem, ibidem, p. 82. passar em silêncio tal dimensão do horror. tiga Israel por seus pecados (40). Para o autor

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do livro After Auschwitz (London, John do extraordinário conteúdo do ensaio, é a
Hopkins Univ. Press, 1992) adotar a con- menção de um discurso que nosso autor
cepção tradicional em relação ao Holocaus- recorda, proferido pelo presidente da Uni-
to é inaceitável, e assim ele o expressa: versidade Hebraica de Jerusalém, prof.
Yehuda Leib Magnes, na abertura de um
“A agonia do judaísmo europeu não pode ano letivo, no qual cita uma passagem do
ser comparada à prova sofrida por Jó. Não rabi Levi Isaac de Berdichev: “Não peço,
se pode vislumbrar qualquer finalidade nos Senhor do Universo, que me reveles os
campos de morte, e o crente tradicional é segredos de Teus caminhos – eu não os
forçado a considerar de que é a mais de- compreenderia. Não desejo saber por que
moníaca, anti-humana explosão da histó- sofro, mas apenas isso: – É por Ti que eu
ria, uma expressão sem sentido dos obje- sofro?”. E no final de seu discurso, Leib
tivos da divindade. A idéia é simplesmen- Magnes ainda enfatizou: “Ensina-nos ape-
te muito obscena para que eu possa aceita- nas isto: É por Tua causa que o homem
lá” (41). sofre, ó Senhor?”.
Daí que uma inquirição sobre o poder
Ele é enfático ao afirmar que de Deus, assim como o faz o eminente pen-
sador e estudioso do gnosticismo Hans
“quando eu digo que vivemos em um tem- Jonas em seu escrito Le Concept de Dieu
po da morte de Deus, quero dizer que o fio après Auschwitz, não é de nos surpreen-
que unia Deus e o homem, Céus e terra, foi der. Hans Jonas repete o que os estudiosos
rompido. Vivemos em um frio, silencioso, do judaísmo já sabem, ou seja, que na teo-
insensível cosmos, sem qualquer ajuda de logia judaica o dualismo maniqueu é im-
uma força poderosa senão com nossos pró- possível e inaceitável e o mal tem lugar
prios recursos. Após Auschwitz, que mais apenas no coração do ser humano. Ele
um judeu poderá dizer sobre Deus?” (42). lembrará que

Porém, para ele, quando o judeu rejeita “o judeu conhece uma situação mais difí-
a concepção tradicional de Deus não signi- cil, sob o aspecto teológico, que o cristão.
fica, necessariamente, que não encontre sua Pois para o cristão, que espera a verdadeira
vital espiritualidade com o judaísmo atra- salvação do além, este mundo daqui, em
vés da observação de seus preceitos. Aos todo caso, ameaçado sempre pelo diabo,
autores e teólogos lembrados até aqui, mui- permanece sempre um objeto de desconfi-
tos outros poderiam ser acrescidos pois ança, em especial o mundo dos homens
expressam em suas reflexões a profunda devido ao pecado original. Mas para o ju- 41 Idem, ibidem.

crise teológica que se respalda no “silêncio deu, que vê na imanência o lugar da cria- 42 Idem, ibidem. O mesmo autor,
em outra obra, Approaches to
de Deus”, na “ausência de Deus”, no “hester ção, da justiça e da redenção divina, Deus Auschwitz, mudou sua concep-
ção em certos aspectos,
panim” no tempo do Holocausto. Mas, é eminentemente o senhor da História, e redefinindo diferentemente sua
como lembrou Emil Fackenheim, no sécu- nesse sentido é que Auschwitz coloca em apreensão de Deus, aproxi-
mando-se de uma postura
lo XX despontou um pensamento filosófi- questão para todo crente o conceito tradi- mística ao utilizar-se da expres-
co que, certamente, lhe forneceu subsídios cional de Deus. Sob a experiência judaica são o “Nada Sagrado”.

intelectuais. Em um rico ensaio intitulado da História, Auschwitz vem acrescentar, 43 O ensaio foi publicado na re-
vista Aonde Vamos?, de 26/
“Deus e o Homem perante o Pensamento como já foi mencionado, algo inédito, 11/1959 a 24/12/1959.
Moderno” o notável pensador Samuel H. donde não podem vir à tona as velhas ca- 44 Le Concept de Dieu après
Auschwitz , Une voix juive ,
Bergman (43) desenvolve a idéia central tegorias teológicas. E ainda que não quei-
Paris, Rivages poche-Petite Bi-
definida em seu título começando por Des- ramos nos separar do conceito de Deus – bliothèque, 1994, pp. 13-4.
Devo agradecer ao meu filho,
cartes, passando por Kant e a religião como o filósofo, como tal, tem o direito – prof. Elisha Falbel, da Univer-
humanista, Fichte e o idealismo filosófico, somos obrigados, para não o abandonar- sidade de Paris, pela aquisi-
ção desse denso e importante
Comte, Kierkegaard, Herman Cohen, além mos, a repensá-lo novamente e a procurar texto traduzido por Phillippe
Ivernel do original alemão Der
de outros pensadores de nosso tempo. Po- uma resposta, ela também nova, à velha Gottesbegriff nach Auschwitz.
rém, o que me parece digno de nota, além questão de Job” (44). Eine jüdische Stimme.

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Por outro lado, se Deus possui o atribu- rem demonstrado sua compaixão, sem te-
to do bem, Ele agora não o possui ou dei- merem o que poderia acontecer com eles
xou de possuir a um dado momento, o atri- mesmos, sofreram as conseqüências resul-
buto de todo-poderoso, onipotente, após a tantes de sua ação. Entre eles muitos diplo-
criação do mundo. O poder divino é restri- matas corajosos que se opuseram à orienta-
to por algo que Ele mesmo reconhece como ção de seus próprios governos. Se refleti-
existente, existência legitimada e com ca- mos sobre as ações desses “justos”, pode-
pacidade de agir por sua livre e própria mos dizer que eles perpetuaram a “imagem
vontade. Perante a monstruosidade e a fú- de Deus” (tzelem Elohim) e “suas faces bri-
ria de Auschwitz Deus se mostrou impo- lhavam” através das raras frestas que se
tente, e se não interveio foi porque Ele não abriam no céu coberto de nuvens negras…
pôde e não porque não queria. Hans Jonas Hans Jonas veio a falecer em 1993, ou seja,
dirá que no simples fato de admitir a liber- em nossos dias, ele com certeza tinha plena
dade humana reside a renúncia ao Seu po- consciência de que a “idéia de que nós
der. Ao mesmo tempo ele interpretará o podemos ajudar a Deus mais do que Deus
conceito cosmogônico de Tzimtzum do nos pode ajudar” se consubstanciava atra-
cabalista Isaac Lúria (1534-72) não somente vés dos atos trazidos a lume exercidos pe-
45 Ver Neal Ascherson, Helle New
York Review of Book, 31, n. como “contração”, “afastamento” mas los “justos das nações do mundo” (46). A
13, 19 de julho de 1984.
Aproveito o ensejo para agra-
como “autolimitação”. É um Deus destituí- mesma idéia parece ser expressa teologi-
decer a Marília Fiorillo, que do de todo poder de imiscuir-se no curso camente no judaísmo através de uma rela-
gentilmente forneceu-me uma
cópia da resenha do livro de físico das coisas do mundo, e que responde ção dinâmica entre Deus e o mundo, que
Hans Jonas. ao choque dos acontecimentos mundanos abole a concepção estática na qual Deus e
46 A mesma idéia é enunciada no contra Ele mesmo, não mais “com mão forte o mundo são encarados como algo defini-
livro de uma jovem judia holan-
desa, que foi vítima em e braço estendido”, “mas perseguindo seu tivamente dado, no sentido de que as cria-
Auschwitz e cujos diários foram
publicados sob o título An
objetivo inacabado com um mutismo pe- turas que nele habitam são como apartados
Interrupted Life. The Diaries of netrante” (45). De certa forma algo nessa de Deus. Samuel H. Bergman observa, em
Etty Hillesum, 1941-43, e em
francês Une Vie Bouleversée, concepção poderia nos levar à lembrança um artigo dedicado a um aspecto da religio-
Journal, 1941-43 (Paris, Éd. du de Maimonides, ainda que apenas na apa- sidade judaica, isto é, a Santificação do
Seuil, 1985), lembrada na re-
senha acima mencionada so- rência e nunca na essência, para o qual Deus, Nome (Kidush haShem), que “a concepção
bre o livro de Hans Jonas. Hans
Jonas escreve no Le Concept em sua transcendentalidade absoluta, não judaica também separa Deus e o mundo,
de Dieu après Auschwitz” (nota se imiscui no mundo da Criação, mas não mas entrelaça o destino de Deus e do mun-
12, p. 43) que “L’idée que c’est
nous qui pouvons aider Dieu porque não seja onipotente senão pela pró- do tão intimamente que não somente é o
plutôt que dieu nous aide, je
l’ai rencontrée depuis, exprimée
pria essência de sua transcendentalidade, mundo dependente de Deus como também
de façon émouvante, chez une deixando ao homem o dom do livre-arbí- – e isso é de importância central – o destino
des victimes d’Auschwitz elle-
même…” e cita, na mesma nota trio que o obriga a se defrontar perante a de Deus está suspenso à sorte do mundo”
(p. 44) um extrato desse diário: responsabilidade em seguir o caminho do (47). O princípio sobre o qual se assenta
“ J’essaierai de Vous aider, dieu,
à stopper le déclin de mes for- bem ou do mal. Mas voltemos a Hans Jonas essa concepção, do ponto de vista de suas
ces, bien que je ne puisse en
répondere à l’avance. Mais une que, em sua visão de um Deus “limitado”, criaturas, é a consideração de que Deus se
chose devient de plus en plus dá a entender que em relação a Auschwitz coloca como fim e obrigação na vida das
claire à mes yeux: à savoir, que
vous ne pouvez nous aides, que os milagres só poderiam advir da ação dos criaturas. Em outros termos, Deus é, para
nous devons Vous aider à nous
aider. Hélas, il ne semble guère
homens, dos homens justos, isolados, des- suas criaturas, uma tarefa a ser cumprida,
que Vous puissiez agor Vous- conhecidos. Não se trata apenas dos 36 um fim a ser atingido. A interpretação que
même sur les circonstances qui
nous entourent ,sur nos vies. Je justos anônimos que sustentam o universo se dá à expressão “yichud haShem” (unifi-
ne Vous tiens pas non plus dos homens, conforme a lenda talmúdica, cação do Nome), que denota a unidade de
responsables. Vous ne pouvez
nous aider, mais nous, nous mas fundamentalmente – assim devemos Deus e que também tem uma conotação
devons Vous aider, nous devons
défendre Votre lieu d’habitation interpretar – dos “justos das nações do com o martirológio (Kidush haShem), é de
en nous jusqu’à la fin.” mundo” (hassidei umot haolam) que tan- que a unidade de Deus depende da prece
47 “A Santificação do Nome” (ver- tos anos após o Holocausto foram identifi- dos homens. Deus passa a ser para as cria-
são portuguesa), in Aonde Va-
mos?, 23/9/1957. O ensaio cados e reconhecidos como tais e desco- turas uma tarefa e Seu destino depende,
foi extraído de uma coletânea
bertos para a humanidade. E alguns deles, nessa mesma razão, deles. Hugo Bergman
publicada em 1913 em Praga
intitulada Vom Judentum. por terem se revelado como “justos” e te- aduz a certas passagens do Midrash Raba

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(Vaikra Raba, cap. 30) e infere que “o des- identidade passaram a abranger uma gama
tino de Deus repousa na mão do justo”. Do diversificada de valores religiosos, nacio-
mesmo modo é interpretado o Salmo 68:29, nais e culturais. Na Antigüidade e no mun-
“Teu Deus comandou tua força (ou teu do medieval identificar-se como judeu e
poder)”, como indicando que a força do afirmar a pertinência ao povo de Israel não
justo é acrescentada ao poder do alto. Com oferecia maiores dificuldades, uma vez que
maior ênfase o “midrash” no Bereshit Raba os homens, ou povos, se diferenciavam por
dirá: “Os maus subsistem através de seu sua fé religiosa e em tudo que isso poderia
Deus; mas no que diz respeito aos justos, implicar sob o aspecto grupal. Passar a vi-
Deus subsiste através deles, pois foi dito: ver na sociedade contemporânea, aberta,
Veja, Deus confiou neles”. Do mesmo multicultural e multiétnica, na qual o
modo, há na mística judaica o reconheci- laicismo assegurou seu lugar no Estado
mento e a confirmação de que o homem politicamente organizado, ao menos na ci-
justo influencia o mundo do alto. No Zohar vilização ocidental, tornou a questão da
encontramos a referência ao nome divino identidade mais complexa. Com isso deve-
“Elohim” como sendo a junção de duas mos admitir que a abordagem teológica do
palavras “eleh” (“estes”) e “mi” (“quem”), Holocausto poderá não ter qualquer signi-
o que significa que o mundo subsiste atra- ficado para judeus cuja concepção de mun-
vés da união do revelado, do manifesto do está assentada sobre outros fundamen-
“estes” com o irrevelado “quem”. Desse tos e não os religiosos em que a “ausência
modo seres criados sustentam o mundo ou a presença de Deus” é irrelevante frente
tanto quanto o faz Deus (48). Portanto a à realidade histórica que, nesse caso, pode
concepção de Hans Jonas, em parte, pode- ser entendida e explicada unicamente com
ria encontrar apoio na tradição judaica as- os critérios exclusivos das ciências huma-
sim como é formulada no Midrash Raba e nas positivas. Nesse sentido, o Holocausto
também no Zohar. Contudo, devemos dis- poderá ser visto sob o prisma da “banalida-
tinguir que o “midrash” chega a esse resul- de do mal”, ou ainda como resultado de um
tado visando acima de tudo uma conduta processo decorrente de uma sociedade tec-
moral elevada dos justos que mantém a nológica que por sua própria natureza e efi-
ordem do cosmos através de sua união com ciência gerou regimes que puderam realizar
a divindade. Do contrário, pelos seus atos políticas de genocídio e “massenmorde”.
pecaminosos, ele provoca a humilhação de Sob esse contexto Deus já se encontrava
Deus. A idéia aceita é a de que os atos pe- exilado havia muito tempo – por mera de-
caminosos não somente abrem uma bre- cisão dos humanos – da própria humanida-
cha, uma falha (em hebraico, “peguimah”) de. Sabemos que o grito de alerta fora dado,
na alma dos pecadores, mas a glória divina ainda no século XIX, por Nietzsche, o filó-
é diminuída e submerge nas “camadas mais sofo alemão que preanunciava esses novos
baixas”. O Zohar menciona, em uma pas- tempos ao nos trazer a história de um louco
sagem, que Deus se dirigiu ao homem após que em plena manhã acendeu uma lanterna
o pecado e disse: “Ai de ti, enfraqueceste o e correu ao mercado, pondo-se a gritar in-
poder de cima e escureceste a luz de cima”, cessantemente: “Procuro Deus… Para onde
e em outro lugar a expulsão do Gan-Eden foi Deus?”. Grita ele: “Já lhes direi! Nós o
é interpretada de um modo surpreendente matamos – vocês e eu. Somos todos os seus
para significar que pelo pecado do homem assassinos!… Deus está morto!” (50). O
Deus também foi expulso do Paraíso (49). filósofo, notório por usar uma linguagem 48 Idem, ibidem, p. 76.
Mas devemos levar em conta que o pro- de quem se encontra em perene estado de 49 Idem, ibidem. Na verdade boa
cesso de inserção na modernidade fez com furiosa exaltação profética, iria terminar parte do Zohar expressa a per-
manente tensão e interde-
que o judaísmo não se apresentasse com seus dias no abismo da loucura – exata- pendência do “ mundo de cima”
uma rígida e única escala de valores que mente como o seu desvairado personagem, com o “mundo de abaixo”.

definia o vínculo e a identificação do indi- e outros que viriam a imitá-lo. Certamente 50 A Gaia Ciência, São Paulo,
Companhia das Letras, 2001,
víduo ao seu povo, porém os padrões de o nome do abismo era Auschwitz. pp. 147-8.

REVISTA USP, São Paulo, n.57, p. 196-209, março/maio 2003 209

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