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http://dx.doi.org/10.1590/1806-9584.

2017v25n1p379

Empoderamento e interdisciplinaridade
no combate às violências contra a mulher
Dicionário Feminino da Infâmia: da mulher hoje, como pertencente a uma cate-
goria múltipla, instigando reivindicações, bem
acolhimento e diagnóstico de como novas práticas e políticas públicas. Como
mulheres em situação de complementou no prefácio Nilcéa Freire (2015,
violência p. 9), representante da Fundação Ford no Rio
de Janeiro e ex-ministra da Secretaria de Políticas
FLEURY-TEIXEIRA, Elizabeth; MENEGHEL, para as Mulheres, o livro apresenta os temas em
sua dimensão histórica, considerando o con-
Stela Nazareth (Orgs.). texto de luta das mulheres por seus direitos, sendo
Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2015, leitura fundamental para quem trata de seus
direitos humanos. A obra, inclusive, homenageia
422p. a socióloga e pensadora feminista Heleieth
Saffioti, falecida em 2010, aos 76 anos, que ao
longo de toda a sua trajetória se dedicou a essas
causas.
No Brasil, 91 mil mulheres foram assassinadas É possível identificar, entre os eixos dos
entre 1980 e 2010, 43,5 mil só na última década. vocábulos do Dicionário, temáticas referentes
Em 81% dos casos os autores das agressões tive- a direitos civis e políticas públicas voltadas para
ram algum vínculo afetivo com as vítimas (Julio as mulheres; teoria feminista; atuação e origem
Jacobo WAISELFISZ, 2011, p. 5). Esses são alguns de movimentos sociais; esclarecimentos sobre
dados resgatados pelo Dicionário Feminino da as violências contra a mulher e suas formas de
Infâmia: acolhimento e diagnóstico de mulheres tratamento. Segundo as organizadoras, a
em situação de violência, organizado por Elizabeth intenção é fazer dialogar vários campos de
Fleury-Teixeira e Stela Nazareth Meneghel e lan- conhecimento relacionados à realidade das
çado pela Editora Fiocruz. Mas os números, por violências de maneira didática, acessível, para
si só, não dão conta das violências contra as consulta rápida. A obra pode ser uma referência
mulheres, multiplicadas em doméstica, sexual, até para leigas/os, apesar de alguns conceitos
obstétrica, psicológica, racial, sexual, simbólica, exigirem uma bagagem mais especializada, da
nem das muitas opressões que se escamoteiam área da saúde ou do direito, especialmente, a
nas situações cotidianas, nas instituições públicas exemplo de ‘imputabilidade’ ou ‘protocolos de
e que se disfarçam nos relacionamentos mais saúde mental e reprodutiva’. De qualquer modo,
celebrados. Por isso, o Dicionário vai além dos se nomear não deixa de ser um recurso para
números. escancarar relações de exploração e de
A obra elenca 187 verbetes, assinados por dominação, como também um ponto de
diversas/os especialistas da saúde, do direito, partida para a busca de rotas alternativas e
das ciências sociais e humanas, voltados aos processos de liberdade, torna-se indispensável
conceitos, às normas e para os procedimentos tratar de questões como delegacias de
relacionados ao atendimento a mulheres em mulheres, a Lei Maria da Penha ou as diversas
situação de violência. Acima de tudo, as páginas violências que recaem sobre os ombros
fazem com que se pense na própria condição femininos.

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Na obra, Latif Antonia Cassab (2015, p. 376- ao Dicionário, que converge essas perspectivas,
378), ao tratar de violência de gênero, explica, tratando de questões teóricas e práticas refe-
em referência a diversos autores, que o rentes à vitimização, nas situações em que as
fenômeno é complexo e está relacionado a mulheres são alvo de violência, e ao empode-
diversas formas de violência. No entanto, de ramento, destacando-se a tomada de consci-
modo geral, violência de gênero ocorre com ência e o poder de ação feminina.
base em relações assimétricas e hierarquizadas, Mesmo assim, como o próprio Dicionário
ou seja, insere-se em uma relação desigual e/ coloca, não se pode perder de vista a categoria
ou de subordinação, “interferindo de forma ‘mulheres’ como complexa, heterogênea e
negativa no desenvolvimento pleno do sujeito atravessada por múltiplos aspectos identitários,
agredido” (Silvia KOLLER, 2000 apud CASSAB, como classe e raça. Nesse sentido, torna-se
2015, p. 377). Portanto, firma-se no contexto de indispensável não apenas associar diferentes
sociedades patriarcais, que estabelecem perspectivas nas discussões como também con-
socialmente o homem como superior. Mesmo ferir espaço a “outras vozes”, como propuseram
assim, a autora observa que se trata de uma em outro artigo publicado naquela mesma
relação de poder que não é absoluta nem edição da REF, Claudia Andréa Mayorga Borges,
estática, porém, dinâmica e relacional. Nesse Alba Coura, Nerea Miralles e Vivane Martins
sentido, mesmo quando se encontra em Cunha (2013). Ou seja, segundo estas autoras, é
situação de vítima, a mulher tem possibilidade preciso também olhar para as feministas que
para ter autonomia e poder de superação dessa abordam a crítica de gênero a partir do racis-
condição, lembra Cassab ao citar o trabalho mo, do colonialismo, da política heterossexual.
de Cecília MacDowell Santos e Wânia Pasinato Essas diferentes leituras podem promover rup-
Izumino (2005 apud CASSAB, 2015, p. 378). turas epistemológicas e deslocamentos no femi-
Desse modo, é possível notar, no livro, que nismo, saindo de uma teoria linear que tem ape-
há uma preocupação não apenas em fornecer nas a Europa e os Estados Unidos como referên-
um panorama sobre as violências contra a mulher cia (MAYORGA; COURA; MIRALLES; CUNHA, 2013,
mas também discussões e proposições de p. 470).
mudanças nos contextos sociais. Portanto, A promoção a essas “outras vozes”, embora
verbetes como ‘culpabilização’ e ‘invisibilidade apareça de forma tímida em outros vocábulos
da violência’ fazem pensar em como as culpas relacionados ao feminismo no Dicionário, são
atribuídas às mulheres são antigas, tendo apoio marcantes no verbete ‘interseccionalidade’,
nas religiões e até na filosofia, sendo fundamental assinado por Mayorga (2015, p. 184-187) e que
desnaturalizar, por meio de uma atitude crítica, sugere como bibliografia, inclusive, trabalhos de
os processos de legitimação dessa suposta Ochy Curiel, Gloria Anzaldúa e Monique Wittig,
inferiorização feminina. pensadoras conhecidas por abordar as críticas
Também há espaço, no Dicionário, para de gênero a partir de propostas diferenciadas.
problematizações quanto à saúde pública. Assim, Como explica Mayorga (2015, p. 184), remeten-
ao tratar de ‘aborto’, as estudiosas Claudia Bonan do a pesquisadores como Cristiano Rodrigues,
Jannotti e Gilberta Santos Soares (2015, p. 17-20) o conceito de interseccionalidade foi elaborado
apontaram a necessidade de se contornar a pelas feministas negras dos anos de 1980, na
desinformação, os tabus e estigmas relacionados proposição de um pensamento relacional e
ao procedimento, inclusive entre os profissionais articulado das categorias de classificação dos
de saúde, para uma assistência plena às mulheres sujeitos. Seria uma forma de responder à neces-
em situação de abortamento. sidade de compreender formas de opressão
Quanto à abordagem de conceitos da teo- articuladamente, bem como de construir
ria feminista, vale lembrar Sandra Regina Goulart enfrentamentos que contemplem as demandas
Almeida (2013) que, em edição da Revista de diversas mulheres, como resume a autora.
Estudos Feministas, apontou sobre a importância Propondo, então, o debate à condição
de se desestabilizar as matrizes de poder, te- das mulheres na sociedade brasileira sob uma
cendo-se uma narrativa crítica dos constructos série de sentidos, o Dicionário parece ser um
sociais e culturais. Assim, visando esse posiciona- aliado na busca por transformações sociais. A
mento desestabilizador e intervencionista, a própria trajetória das organizadoras do livro
estudiosa defende a associação da teoria contribui para esse viés. Stela Nazareth
feminista com o pós-colonialismo, pensando-se Meneghel, além de doutora em medicina/
nas condições materiais e existenciais das ciências médicas, com pós-doutorado em
mulheres. Nesse sentido, pode-se creditar mérito psicologia social e ampla trajetória profissional,

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tem experiência na área de saúde coletiva em FREIRE, Nilcéa. “Prefácio”. In: Dicionário Feminino
vigilância da saúde, vulnerabilidades, gênero e da Infâmia: acolhimento e diagnóstico de
violências, enquanto Elizabeth Fleury Teixeira, mulheres em situação de violência. Rio de
mestra em sociologia, coordena o Comitê Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2015. p. 9-10.
Nacional Pró-Equidade de Gênero e Raça da JANNOTTI, Claudia Bonan; SOARES, Gilberta
Fundação Oswaldo Cruz, entre outras ações, foi Santos. “Aborto”. In: Dicionário Feminino da
também ativista nos grupos de resistência Infâmia: acolhimento e diagnóstico de
democrática e pelos direitos das mulheres. mulheres em situação de violência. Rio de
Elizabeth foi, inclusive, uma das líderes do Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2015. p. 17-20.
movimento “Quem ama não mata”, de 1980, MAYORGA, Claudia; COURA, Alba; MIRALLES,
que protestava contra o assassinato de mulheres Nerea; CUNHA, Vivane Martins. “As críticas ao
que se afirmavam como “crimes em defesa da gênero e a pluralização do feminismo: colo-
honra”. nialismo, racismo e política heterossexual”.
Esse é o sentido que relacionamos ao título Revista Estudos Feministas, v. 21, n. 2, p. 463-
do livro em questão. Infâmia denota má fama e 484, maio-ago. 2013.
desonra, não deixa de remeter a essa “honra” WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência
como padrão social que garantiu – e em muitos 2012: os novos padrões da violência
aspectos ainda garante – os privilégios mascu- homicida no Brasil. São Paulo: Instituto
linos e que, por vezes, torna-se justificativa dos Sangari, 2011. Caderno Complementar 11:
bárbaros índices de violência contra as mulhe- Homicídio de Mulheres no Brasil.
res. Infâmia, portanto, não deixa de ser uma for-
ma de resistência a esse padrão. Uma resistência [Recebida em 11/07/2016
que, assim como o substantivo, é intrinsecamente e aceita para publicação em 31/08/2016]
feminina.
Referências Gabrielle Vívian Bittelbrun
ALMEIDA, Sandra Regina Goulart. “Intervenções Universidade Federal de Santa Catarina,
feministas: pós-colonialismo, poder e Florianópolis, Santa Catarina, Brasil
subalternidade”. Revista Estudos Feministas,
v. 21, n. 2, p. 689-700, maio-ago. 2013.
CASSAB, Latif Antonia. “Violência de gênero”. In:
Dicionário Feminino da Infâmia: acolhi- Gabrielle Vívian Bittelbrun
mento e diagnóstico de mulheres em situa- (gabivibi@gmail.com). Doutoranda em Literatura
ção de violência. Rio de Janeiro: Editora pela Universidade Federal de Santa Catarina,
FIOCRUZ, 2015. p. 376-378. UFSC, é integrante do Núcleo Literatual - Estudos
FLEURY-TEIXEIRA, Elizabeth; MENEGHEL, Stela Feministas e Pós-coloniais de Narrativas da
Nazareth (Orgs.). Dicionário Feminino da Contemporaneidade. Mestre em Jornalismo
Infâmia: acolhimento e diagnóstico de também pela UFSC (2011) e jornalista pela
mulheres em situação de violência. Rio de Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2015. Filho, Unesp (2008).

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