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Acolhimento em Saúde
Mental: Operando Mudanças
na Atenção Primária à Saúde
Fabiane Minozzo
Universidade de Brasília
http://dx.doi.org/10.1590/1982-3703001782013
Artigo
Abstract: The psychiatric reform movement highlights the need to transform mental health
care practices. Primary health care (PHC) was designed as a public policy strategy that seeks to
promote changes in the predominant model of care. The objective of this article is to describe
the implementation of the admission process for those who suffer from psychiatric distress
in a PHC unit, in the municipality of Porto Alegre/RS. A team of healthcare providers will
participate in this process. The implementation stages of the admission process are presented
and analyzed as well as the effects of this action in the work carried out by the team of
healthcare providers. Admission is discussed as a component of healthcare. The results of this
experience highlight the need to incorporate the entire team of health care providers in the
admission process and creation of a collective space designated for professional exchange
amongst team members to discuss complex cases. In conclusion, the needs of the PHC teams
pertaining to the mental health admission process will support the reorganization of the work
pertaining to mental health care, which is centered on the patient. This will enable the creation
of new methods of operation and intervention by the team, allowing for shared responsibility
across the different aspects of both physical and psychological care.
Keywords: User Embracement. Primary Health Care. Mental Health.
que apresentavam sofrimento psíquico eram pelo acolhimento em saúde mental passou
orientados a procurar a unidade no dia do a realizar apoio matricial, ou seja, a apoiar os
acolhimento em saúde mental. O objetivo demais profissionais na avaliação e condução
principal consistia em conhecer, acolher clínica dos casos. Para tal, discutia os casos
e atender uma demanda de pacientes de atendidos e realizava consultas conjuntas.
saúde mental. O objetivo consistia em apoiar a equipe de
saúde na ampliação de sua clínica, buscando
A partir de reflexões da primeira fase, aumentar seu grau de autonomia no enten-
chegou-se a algumas considerações em dimento e na condução dos casos. Também
relação à tarefa de acolher: a primeira con- se acreditava no poder do vínculo para o
sistiu na percepção de que o acolhimento alcance de melhorias no quadro clínico dos
deve ser integral e a criação de um acolhi- usuários e que este poderia estabelecer-se
mento específico em saúde mental gera uma com qualquer dos profissionais da equipe,
fragmentação e cisão dos sujeitos, que são bastava que estivessem dispostos a acolher as
acolhidos ou por “problemas do corpo” ou necessidades de saúde mental dos usuários.
por “problemas da mente”. A segunda con-
sistiu na reflexão de que a tarefa de acolher Qualquer abordagem assistencial de
é de responsabilidade de toda equipe. Na um trabalhador de saúde junto a um
forma como o acolhimento estava proposto, usuário-paciente produz-se através
a atenção estava centrada na psicóloga e em de um trabalho vivo em ato, em um
um dos médicos, uma vez que ninguém mais processo de relações, [...] criando-se
intersubjetivamente alguns momen-
na equipe se responsabilizava por acolher os
tos interessantes, como: momentos de
usuários portadores de sofrimento psíquico.
falas, escutas e interpretações, no que
Ainda, identificou-se que a organização há a produção de uma acolhida ou não
inicial proposta estava em contradição aos das intenções que as pessoas colocam
atributos da APS de acesso e integralidade, neste encontro; momentos de possíveis
uma vez que o acolhimento não deve ter hora cumplicidades, nos quais pode haver
e nem dia para realizar-se e sim deve acon- a produção de uma responsabiliza-
tecer a todo o momento e durante qualquer ção em torno do problema que vai ser
atendimento de saúde. A primeira fase de enfrentado, ou mesmo de momentos
implantação foi importante para conhecer os de confiabilidade e esperança, nos
usuários do território e as suas necessidades. quais se produzem relações de vínculo
A partir destas informações, estruturaram-se e aceitação (Merhy, 1999, p. 7).
as primeiras ações planejadas para atender
grande parte das demandas de saúde mental Com o passar do tempo, passou-se para
na UBS, como o grupo de caminhada e o a terceira fase, que investiu na criação de
grupo de saúde mental. No que se refere ao um espaço coletivo de discussão dos casos
grupo de caminhada, cabe ressaltar que ini- clínicos, apostando no potencial do coletivo
cialmente tinha como público-alvo as pessoas como promotor de troca interdisciplinar e de
em sofrimento psíquico intenso, mas, com construção conjunta de projetos terapêuticos
o tempo, foi aberto para todos os usuários singulares. Buscou-se aproveitar estes encon-
interessados nesta ação de promoção de tros para discutir a atenção à saúde mental na
saúde. Este fato gerou maior socialização dos APS (atendimentos realizados, dificuldades
usuários portadores de sofrimento psíquico encontradas, rede de apoio). Procurou-se
com a comunidade. priorizar a discussão dos casos em grupo
e passou-se a apostar nas trocas entre os
Com o decorrer do tempo, o acolhimento diversos profissionais presentes nos grupos
em saúde mental sofreu reformulações e de discussão. Deste modo, o acolhimento
passou para a segunda fase, em que todos os do sofrimento psíquico colocou-se como um
profissionais da unidade se responsabilizaram dispositivo de transformação do processo de
por acolher os portadores de sofrimento psí- trabalho da equipe, potencializando novas
quico. Nesta fase, a equipe antes responsável formas de cuidar em saúde mental. Passou-se
A estratégia utilizada foi estabelecer uma Observa-se neste processo que o psicólogo
reunião semanal, com a presença da pre- no Sistema Único de Saúde desenvolve
ceptoria da Psicologia, para discussão dos ações de campo comum de conhecimento
casos acolhidos. O horário para este encontro e de núcleo específico de saber, ou seja,
foi acordado em reunião de planejamento, ações comuns e ações específicas. O núcleo
juntamente com a exposição dos objetivos demarca a identidade de uma área de saber
da proposta. Para potencializar a discussão e de prática profissional e o campo envolve
coletiva e a troca entre os profissionais, um espaço de limites imprecisos em que cada
procurou-se discutir os casos em grupo, apos- disciplina e profissão buscam em outras o
tando que cada profissional pudesse aprender apoio para cumprir suas tarefas teóricas e
com o outro. Para isso, foi necessário rever práticas (Campos, 1999).
o processo de trabalho da equipe e investir
no potencial de sua grupalidade. No relato de experiência descrito neste artigo,
observa-se que o processo de trabalho do
Cuidar e gerir os processos de trabalho psicólogo é baseado na lógica do apoio
em saúde compõem, na verdade, uma matricial. O apoio matricial em saúde mental
só realidade, de tal forma que não há é uma prática em que profissionais especia-
como mudar os modos de atender a listas em saúde mental oferecem suporte aos
população num serviço de saúde sem
demais profissionais que atuam na APS, com
que se alterem também a organização
o objetivo de ampliar a sua resolubilidade e
dos processos de trabalho, a dinâmica
de interação da equipe, os mecanis-
produzir maior responsabilização no acom-
mos de planejamento, de decisão, de panhamento e atendimento das pessoas em
avaliação e de participação. Para tanto sofrimento psíquico, rompendo com a lógica
são necessários arranjos e dispositivos dos encaminhamentos indiscriminados e
que interfiram nas formas de relaciona- ampliando a sua clínica.
mento nos serviços e nas outras esfe-
ras do sistema, garantindo práticas de O apoio matricial tem duas dimensões: a)
co-responsabilização, de co-gestão, dimensão assistencial, aquela que demanda
de grupalização (Benevides & Passos,
uma ação clínica direta com os usuários,
2005, pp. 392-393).
como por exemplo, realização de atendi-
mentos compartilhados e atendimentos
Cabe ressaltar que, no horário da reunião de específicos pelo psicólogo e b) dimensão
discussão de casos, a unidade permanecia técnico-pedagógico, aquela que demanda
aberta e muitos usuários a acessavam ou uma ação e apoio educativo com e para a
estavam em atendimento, o que dificultava a equipe, como por exemplo, debate de temas
presença dos profissionais médicos durante teóricos e discussão de casos clínicos, tal qual
todo o tempo das reuniões. Quanto a este o espaço coletivo de discussão dos casos
aspecto, salienta-se a surpresa com o fato elucidado na terceira fase de implantação do
de que a troca do horário da reunião de acolhimento em saúde mental descrito neste
discussão dos casos de saúde mental gerou estudo (Campos & Domitti, 2007).
mobilização dos médicos que demonstraram
interesse em manter um horário possível que
garantisse sua presença. Acolhimento em ato: um
caso clínico
Desse modo, procurou-se fazer com que
cada caso levado para discussão fosse dis- Para exemplificar os movimentos produzidos
cutido com o grupo. Percebeu-se que nesses na equipe a partir da implantação do acolhi-
espaços pode-se esboçar um processo de mento integral em saúde, apresenta-se um
interdisciplinaridade na medida em que se caso clínico. Trata-se de uma senhora de 73
anos, aqui identificada com o nome fictício conseguiu abordar a questão com o pai e
de Márcia, que procura a UBS para verificar dialogou sobre a importância dele contar
sua pressão arterial. Após verificar que sua para a filha, para que ela pudesse elaborar
pressão estava elevada, senta-se na sala de o ocorrido.
espera e encontra com a nutricionista da
equipe. Ao perceber que a usuária precisava Neste caso, foi importante a percepção e
conversar, a nutricionista leva a senhora para escuta da nutricionista sobre a preocupação
uma sala. Neste momento, a paciente relata da avó. A profissional levou o caso para dis-
que há dois meses seu filho foi internado no cussão e, naquele momento, descobriu-se
hospital e, logo depois, sua nora também. que a família individualmente era atendida
Seu filho teve alta, porém sua nora faleceu. por outros profissionais da equipe e, na
Refere preocupação com sua neta, pois esta reunião, compartilharam-se impressões e
ainda não sabia sobre o falecimento de sua conjuntamente chegou-se à construção de
mãe. A nutricionista identifica que o filho uma estratégia de apoio à família.
de Márcia é atendido por um profissional da
equipe. O caso é levado para o espaço de
discussão coletiva e o profissional que atende Discussão e algumas análises
o filho refere que a menina é muito apegada
ao pai e que vai junto a todas as consultas Durante o processo de implantação do
na unidade. Explica que o pai apresenta acolhimento em saúde mental na UBS foi
preocupação em melhorar sua saúde, para possível perceber algumas falas e ações que
melhor cuidar da filha. chamam a atenção por apresentarem alguns
analisadores significativos que permeiam a
Neste caso, procurou-se entender as razões concepção acerca da atenção à saúde mental.
que levaram o pai a não falar do que havia Os analisadores são entendidos como eventos
acontecido, bem como perceber que a criança ou acontecimentos que, por condensarem
já sabia de alguma maneira da morte de questões políticas, afetivas, conflitivas do
sua mãe. Mas, o fato de não falar à criança, coletivo, trazem à tona dimensões de seu
não permitia o entendimento e a elaboração cotidiano dificilmente explorado. Os ana-
emocional sobre o ocorrido e, deste modo, lisadores tornam-se dispositivos quando
a criança apresentava sintomas, tais como conseguem produzir rupturas no instituído
a necessidade de estar sempre ‘grudada’ ao e brechas na homogeneidade dominante,
pai. Percebeu-se que estava difícil para o vislumbrando saídas (Barros, 1997).
pai falar sobre a morte da esposa e isto o
impedia de conversar com sua filha. Este só No que se refere ao caso clínico elucidado,
pensava em ‘ficar bem’ para poder cuidar da serão apresentados os seguintes analisado-
menina. Mas, a avó identificava problemas res: 1) Necessidade da conduta prescritiva;
nesta relação, porém não se sentia à vontade 2) Dificuldade de escuta dos aspectos sub-
para abordar estas questões com o filho. O jetivos; 3) Prioridade para o que é físico. Tais
profissional que atendia o filho também não analisadores auxiliam no entendimento de
sabia como abordar o caso, uma vez que algumas dificuldades dos profissionais que
a criança comparecia sempre às consultas atuam na APS e indicam caminhos possíveis
juntamente com o pai. para a efetivação do acolhimento a saúde
mental na APS.
Após a análise e discussão do caso em equipe,
foi proposto solicitar à avó comparecer junto No que se refere à necessidade da conduta
com eles na unidade, no dia da próxima prescritiva, percebeu-se que os profissio-
consulta, para que ficasse com a menina nais que atuavam nesta UBS, em geral,
e o profissional pudesse conversar com o apresentavam dificuldade em saber o que
pai sobre seu sofrimento pela morte de sua fazer com o que escutavam e, para dar uma
esposa, apontando a necessidade de abordar resposta imediata, ofereciam um conselho
esta questão com sua filha. O profissional ou faziam alguma prescrição. Demonstravam
dificuldade de suportar a espera por uma casos são priorizados em relação a outros
melhora e de compreender que é importante e, comumente, o acompanhamento das
potencializar a capacidade do usuário em questões de saúde mental é deixado de lado,
pensar e refletir sobre seus problemas de priorizando-se os aspectos orgânicos.
saúde, trabalhando não somente com a
conduta prescritiva, mas auxiliando-o a ser Percebe-se, desta forma, que a longitudina-
corresponsável pelo seu tratamento e pela sua lidade e a integralidade, dois dos atributos
vida. No caso abordado foi a capacidade de essenciais da atenção primária à saúde são
escuta do profissional da APS, para além das negligenciados. O atributo da longitudina-
questões físicas do usuário, que possibilitou lidade requer a existência do aporte regular
a identificação de outras necessidades de de cuidados pela equipe de saúde e seu uso
saúde. O mesmo pode-se citar da relação consistente ao longo do tempo. Propõe que as
entre a avó e a nutricionista, em que o vín- pessoas recebam acompanhamento durante
culo construído entre ambas fez com que a todo o ciclo da vida: nascimento, infância,
avó tivesse a confiança de falar sobre suas adolescência e juventude, idade adulta e no
questões familiares. Caso contrário, a ação processo de envelhecimento (Starfield, 2002).
da equipe poderia ter se restringido a verificar
a pressão arterial da usuária e prescrever um A integralidade supõe a prestação, pela
medicamento anti-hipertensivo. equipe de saúde, de um conjunto de ações
que atendam as necessidades mais comuns
Quanto à dificuldade de escuta dos aspec- da população adscrita e a responsabilização
tos subjetivos, percebeu-se a angústia dos pela oferta de serviços em outros pontos de
profissionais diante do sofrimento alheio, atenção à saúde. Implica realizar a atenção
apresentando a necessidade de fazer algo integrando ações de promoção, prevenção,
para que o usuário pare de chorar, demons- assistência e reabilitação, promovendo acesso
trando dificuldade de acolher e de escutar. aos diferentes níveis de atenção e ofertando
Geralmente, os profissionais apresentam a respostas ao conjunto (Starfield, 2002).
necessidade de frear o sofrimento, frear o
choro. Não raro, a conduta mais utilizada A integralidade pressupõe, então, que as
é a prescrição de medicamentos. O caso pessoas recebam cuidados que atendam
apresentado exigiu da equipe a ampliação as suas necessidades de saúde, evitando-se
da clínica, ou seja, o olhar para além dos a fragmentação. Sendo assim, quando as
aspectos biológicos. A questão que se colocou questões subjetivas são ignoradas ou não
foi a de criar um espaço que permitisse que identificados, quando são priorizados aspectos
o sofrimento viesse a tona, para que a família orgânicos para a oferta de uma ação em saúde,
pudesse falar, chorar e elaborar. Apoiar o pai identifica-se que não há atenção integral,
para que se “autorizasse” a fazer o luto pela fomentando-se uma cisão entre físico e
morte de sua esposa e dar continência para psíquico. Desta forma, identifica-se a neces-
que pudesse superá-lo e cuidar de sua filha. sidade de investir em ações que promovam a
integralidade, sendo o acolhimento integral
Em relação à prioridade para o que é físico, em saúde um caminho a ser percorrido na APS.
identificou-se que no cotidiano desta UBS,
muitas vezes torna-se difícil realizar o acom- A integralidade é considerada por Mattos
panhamento familiar e longitudinal, devido (2001) como um valor e deve estar presente
ao grande número de pessoas adscritas e sob na atitude do profissional no encontro com
sua responsabilidade, o que é diferente em seus pacientes, buscando reconhecer suas
uma equipe de Saúde da Família que possui demandas e necessidades de saúde. A inte-
como número máximo recomendado pelo gralidade leva em consideração o sofrimento
Ministério da Saúde um total de quatro mil e outros aspectos envolvidos na qualidade de
pessoas. Desse modo, alguns profissionais vida dos sujeitos e da população, evitando
atuam sem se responsabilizar efetivamente a fragmentação e a redução do paciente ao
por seus usuários e suas famílias. Alguns sistema biológico. Além disso, uma pessoa
Benevides, R., & Passos, E. (2005) Merhy, E. E. (1999) O ato de governar as tensões
Humanização na saúde: um novo modismo? constitutivas do agir em saúde como desafio
Interface – comunicação, saúde, educação, permanente de algumas estratégias gerenciais.
9(17), 389-406. Ciência e Saúde Coletiva, 4(2), 305-314.
Fabiane Minozzo
Mestre em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB). Psicóloga
especialista em Saúde Mental pela mesma instituição. Especialista em Atenção Primária
à Saúde – modalidade residência multiprofissional pela Escola de Saúde Pública do
Rio Grande do Sul (ESP/RS).
E-mail: fabiminozzo@yahoo.com.br