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Lucia Ricotta Vilela Pinto

O livro imperfeito
da viagem:

o problema da
objetividade
e a “redação”
do imenso na
LUCIA RICOTTA
VILELA PINTO
é professora da
representação
naturalista
Universidade
Estadual do
Sudoeste da Bahia
(Uesb).
uito já se falou da viagem de viagens e narrativas, é que se trata de uma
Humboldt à América, populari- ciência comprometida com um “gênero de
zada, aliás, em função dos múlti- escrita” apto a configurar uma “descrição
plos interesses a ela conferidos, física da terra”, como o próprio subtítulo de
seja no âmbito da geografia, da seu Cosmos (1845-62) nos indica3.
botânica, da geologia, da vulca- O que acho realmente intrigante nessa
nologia, do ensaio político, seja “Introdução” é que nela Humboldt nos diz
no âmbito das representações sobre o quão preocupado está em como
culturais das civilizações asteca escrever os “resultados gerais” de suas
e maia. Restam, no entanto, viagens à América (sublinho esse “como”
várias questões que se ligam à para dizer que o problema da ciência em
importância da representação Humboldt não está ligado à pergunta sobre
naturalista a partir dela figura- o que é a ciência, mas como se faz ciência,
da e que, contudo, teve várias implicações ou, o que se faz quando se quer representar
para o destino do literário e da própria noção naturalisticamente algo)4. Sua preocupação
de ciência na passagem do século XVIII ao em como traduzir suas viagens em escrita
XIX no Brasil. leva-o a se confrontar com dois horizontes
1 A “Introdução”, datada de
1812, está na “Première
Vou falar do relato de viagem de Ale- contra os quais ele tenta insistentemente re-
Partie” do “Tome Premier” xander von Humboldt (1769-1859). Mais sistir: por um lado, o perigo de cair em uma
da Relation Historique, publi-
especificamente, vou falar da “Introdução”1 “superficialidade enciclopédica” (Humbol-
cado em 1814.
que Humboldt escreveu, em 1812, para a dt, 1827, p. 1) e, por outro, a impossibilidade
2 A Relation Historique corres-
ponde à “primeira parte” e Relation Historique du Voyage aux Régions de “apresentar os resultados na forma usual
aos três primeiros volumes Équinoxiales du Nouveau Continent, fait de um diário” (Humboldt, 1812, p. 2). Ele
(publicados respectivamen-
te em 1814, 1819 e 1825) en 1799, 1800, 1801, 1802, 1803 et 1804, fala também, na “Introdução”, que quando
de um conjunto de 29 par Al. de Humboldt et A. Bonpland, rédi- retornou à Europa experimentou muitas
volumes da monumental
gé par Alexandre de Humboldt2. Por que “dificuldades” em “escrever um número
obra intitulada: Voyage aux
Régions Équinoxiales du Nou- falar da “Introdução”, esse paratexto do considerável de memórias” (Humboldt,
veau Continent, fait en 1799, trabalho americanista de Humboldt? Porque 1812, p. 29). “Dificuldades” essas que o
1800, 1801, 1802, 1803 et
1804, par Al. de Humboldt et lá somos capazes de observar Humboldt fizeram, em suas próprias palavras, “vencer
A. Bonpland. A obra consiste construindo a estrutura arquitetônica de insensivelmente” sua própria “repugnância
em 29 volumes na edição
francesa em folio/quarto seu trabalho sobre as viagens pela América. em escrever [o] relato de viagem” (Hum-
e 34 volumes, incluindo a Também podemos observar, a partir dela, boldt, 1812, p. 29)
Synopsis plantatrum por
K. S. Kunth. Foi publicada o processo de feitura de uma descrição da Portanto, meu ponto aqui é tentar pensar
principalmente durante a gênese e do “plano geral” de sua opus. qual é a relação entre o forte incômodo de
estadia de Humboldt em
Humboldt lista aí os procedimentos que Humboldt com a escrita e a objetividade do
Paris, que começou em
1807. O subtítulo dos três adota para conduzir seu trabalho científico seu trabalho americanista. É possível pensar
volumes referidos é: Relation e sua representação naturalista. E o que é que a “Física do Mundo”, seu principal
Historique du Voyage aux
Régions équinoxiales du Nou- especialmente importante nessa “Introdu- intento durante toda a sua viagem, é um
veau Continent, fait em 1799, ção” é a referência de Humboldt a um tipo modo de revelar seus propósitos ocultos de
1800, 1801, 1802, 1803 et
1804 par Al. de Humboldt de ciência, o qual exige um “gênero de criar um trabalho científico que seja infini-
et A. Bonpland, rédigé par escrita” específico, como ele mesmo anota. to como a natureza? Isso me lembra uma
Alexandre de Humboldt.
Nesse sentido, a “Introdução” é o gesto peça de Jorge Luis Borges em que conta
3 Cabe um desenvolvimento,
inicial que permite claramente apresentar sobre uma “relíquia geográfica” criada por
em artigo posterior, sobre
a relação entre escrita ou que ele, como naturalista-viajante, realiza alguns cartógrafos – um mapa do Império
representação naturalista e uma coleta científica de “fatos” através da que era do tamanho do próprio Império e,
geografia física. Alexander
von Humboldt nos sugere prática das viagens e da sua narrativa. E portanto, tornou-se o próprio Império (Bor-
que podemos entender que essa coleção científica de “fatos” irá ges, 1954, p. 89). Isso também me lembra
a cultura da América nos
termos de seu espaço geo- desenvolver o que ele vagamente chama o Em Busca do Tempo Perdido de Proust.
gráfico e não através de seus de “Física do Mundo”, “Teoria da Terra” Ler seu romance nos leva a experimentar
“começos” historicamente
hipotéticos. Pode-se dizer
ou “Geografia Física” (Humboldt, 1812, p. efetivamente a duração da passagem do
que ele apresenta a ideia de 3). Contudo, o que é importante, em suas tempo, a densidade do tempo. Seu roman-

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ce tornou-se, num certo sentido, o próprio que a América antes pode
ser definida pelo seu espaço
tempo. Pode-se sentir a duração do tempo, imenso, por sua natureza
ou sentir quanto tempo dura para se passar supostamente destituída de
história. Pela primeira vez,
pelas coisas ou por alguma coisa. então, emerge a tentativa
Portanto, se estamos certos de que a de escrever a história por
meio de uma geografia física,
“descrição física do mundo” é a forma marcando a constelação
que Humboldt escolhe para descrever a espacial do começo, do início
natureza de tal maneira que a escrita torne- e do que ocorreu antes
pelo apontamento do que
se a própria natureza, é possível perceber é distante e remoto no
uma analogia entre labor da escrita e seu espaço. Assinala-se o desen-
volvimento dessa questão
conceito de natureza. Esse é o ponto que na sugestiva interpretação
gostaria de discutir. de Ettore Finazzi-Agrò so-
bre o fracasso do projeto
Entretanto, antes de começar, deve-se historicista na historiografia
perguntar: qual é o conceito de natureza de literária brasileira, a partir da
leitura genealógica que ele vai
Humboldt? Natureza, para ele, ganha sua fazer da “Formação da Lite-
definição rigorosa com Schelling. Ele cita ratura Brasileira”, de Antonio
Candido.Ver nesse sentido: E.
a definição schellingiana de natureza em
Finazzi-Agrò, 2001.
seu Cosmos (1827) para expressar o seu
4 Acredito que a relação entre
próprio conceito dela. Então, de acordo com a escrita do“relato histórico”
Humboldt, a natureza “não é um agregado da viagem e a viagem natu-
ralista propriamente tam-
morto […], é a força originária do mundo, bém é salutar, porque foi o
divina e eternamente criadora, que engendra movimento descontínuo da
viagem que pôs Humboldt
todas as coisas a partir de si mesma e as numa relação específica com
produz já ativas” (Humboldt, 1827, p. 18). a escrita, ou, com a compo-
Para ele, portanto, a natureza é um absoluto sição do relato, a “redação
de um número considerá-
e o protótipo de atividade e produtividade. vel de memórias”, como
Sendo infinita, a natureza pode ser repre- ele próprio anota. Quero
dizer que foi o contínuo
sentada fisicamente, porque na “Física do movimento por cinco anos
Mundo” humboldtiana o infinito está ou na América, o amplo con-
tato com o “exterior” que
é o finito, como Schelling diria. E para a favoreceu uma expansão
“Física do Mundo” humboldtiana a natureza desmedida de “memórias
de fenômenos observados”
é um “todo vivo” (lebendiges Ganze) ou a e uma simultânea resistência
“unidade na diversidade” (Einheit in der à escrita pessoal do “relato
Vielheit) (Humboldt, 1827, p. 4). E, quando histórico”. Pensemos, por-
tanto, aqui, a ideia de que
é questionada racionalmente, a natureza a escrita da viagem se dá
revela o “constante da lei” através da “mu- num difícil equilíbrio entre
uma “penosa acumulação
dança eternamente recorrente das feições do de conhecimento” e um
mundo” (Humboldt, 1827, p. 3) extravasamento ligado a
um “extravagar” (termo
Então, se a natureza tem, como sua ca- cunhado por Bento Prado),
racterística essencial, a autoprodutividade “errar displicentemente
pelos bosques e pelo cam-
criadora, que não aceita nenhum tipo de po”, como o Rousseau das
limitação, como Humboldt irá representar Confissões. No contexto
a natureza cientificamente? Considerando rousseauniano, o extravagar
está ligado à atividade de her-
que o propósito básico de seu relato natura- borizar e, portanto, segundo
lista era o de “contribuir para o progresso das Bento Prado, a uma “lógica
inscrita no sensível” em que
ciências físicas” através de “observações” o pensamento precede o
que utilizam os “instrumentos de fácil e sujeito. Leiamos suas pala-
vras: “a extravagância não
pronto uso”, Humboldt encara um impasse liberta […] a genialidade ou
(Humboldt, 1812, p. 1). Esse impasse tem a a selvageria da subjetividade,
sujeitando-a ao contrário
ver com limites. O infinito absoluto, que é a a uma coerência que é da
natureza, tem um poder que excede qualquer ordem do objeto” (Prado Jr.,

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horizonte de precisão instrumental. Como
alguém pode ser puramente científico em
relação à natureza física se ela estimula
nossa imaginação e provoca em nós a ex-
periência de diferentes sentimentos? Esse
é o dilema que Humboldt tem de encarar.
Dilema esse que, a meu ver, ele não foi ca-
paz de resolver. No entanto, suas tentativas
para encontrar soluções naturalistas ao seu
impasse tornaram seu trabalho único. É uma
excelente representação da ambiguidade
entre literatura e escrita científica, embora
Humboldt, ele mesmo, não estivesse ten-
tando produzir nenhum trabalho literário.
Ele viu a si mesmo como um cientista que
apenas queria comunicar a seu leitor uma
descrição a mais vívida e verdadeira possível
do que viu, do que contemplou.
Portanto, todo o problema da objetivida-
de no relato naturalista humboldtiano está
circunscrito ao método da escrita que é, em
certo sentido, um modo de medir, calcular ou
mensurar – tanto a ampla interação entre os
distintos fenômenos quanto as incontáveis
espécies de animais e plantas existentes
na natureza terrestre. Não é surpreendente
que ele tenha anotado, em seu Quadros da
2008, p. 323). O problema Natureza (1807), a “aplicação da aritmética
da escrita de Humboldt, a à geografia das plantas”, a fim de tentar
meu ver, guarda uma tensão
entre o propósito científico responder à questão sobre “quantos tipos
de registrar objetivamente de plantas existem na terra” (Humboldt,
os fatos – seguindo um
ajuizamento que é da ordem
1987, p. 231). Trata-se, é preciso notar, de
do entendimento – e o uma questão sobre quantidades, números,
encontro efetivo com “os
cálculos, “relações matemáticas”. E a es-
fenômenos que ela [a na-
tureza imponente] oferece crita se constrói para dar conta disso. Nesse
a cada passo” (Humboldt, sentido, escrever ou compor uma narrativa,
1814, p. 28). Entre a ciência
do entendimento e uma para Humboldt, significa a possibilidade de
“lógica inscrita no sensível”, aí mensurar numericamente a grandeza de seu
estaria centrado o problema
da escrita do relato, bem objeto, num esforço de “matematização” do
como todo o problema da real. E a escrita então guarda dois modos de
objetividade da represen-
tação em Humboldt, pois
mensuração: medindo a natureza fisicamen-
que o viajante “vivamente te, ela mede a extensão infinita da natureza
ocupado”,“no meio de uma
usando a unidade de medida numérica, en-
natureza imponente”, não
quer ceder ao prestígio da quanto medindo a natureza simbolicamente
sinceridade normalmente representa-a esteticamente, com a unidade
associada ao propósito tra-
dicional do diário íntimo. de medida dinâmica. O curioso ainda é que
Concorre aqui a debilidade Humboldt não figura um “gênero de escri-
de uma autorrepresentação
do viajante por meio de sua ta” desde um anseio literário. O “gênero
obra, o relato da viagem, de escrita” emerge desde o empréstimo
face ao reino dos objetos
que se avoluma diante do
de pressuposições das “ciências físicas e
naturalista. matemáticas”, daí a convergência da escrita

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naturalista com o número e a serialização com o infinito que é a natureza. Método esse
numérica: medindo, simultaneamente, as configurado desde um pleno acordo com
5 Seria interessante contrapor
séries numéricas das espécies, de acordo as “ciências físicas e matemáticas”, pois essa ideia do apagamento do
com um método empírico, e medindo “as através dele é possível contar as espécies sujeito científico à excessiva
objetividade de seu objeto.
leis da distribuição geográfica” dos animais de animais e plantas até o infinito, numa Nesse sentido, poderíamos
e vegetais, de acordo com um método intui- operação de adição sucessiva. Se o exces- pensar na relação entre uma
tivo. Em suma: para Humboldt, embora a so é um método de escrita, ele o é porque, epistemologia da objetivi-
dade científica em face do
natureza tenha a propriedade da grandeza, em última análise, é a unidade de medida ethos da objetividade cien-
ela é, antes de tudo, grande. Trata-se de uma escolhida para medir a grandeza como tífica, num texto em que há
uma espécie de resistência à
fina distinção entre quantidade e qualidade propriedade da natureza. Em suma: é um dimensão pessoal da escrita
do grande ou da grandeza que vai estar, por método que tenta dar conta das quantidades como responsabilidade pelo
excesso de neutralidade
exemplo, nas considerações matemáticas e incalculáveis de grandeza da natureza, des- científica. Porque, em última
dinâmicas do sublime kantiano, por exem- de uma forma paratática, parataticamente instância, são as próprias
pressuposições epistemo-
plo (Kant, 1993, p. 93)5. trabalhando através da adição exaustiva de
lógicas da natureza, por
Mas como Humboldt resolve prag- informação de “tudo que foi observado em Humboldt, que transfor-
maticamente o problema da escrita como um único lugar do globo”. Aqui, temos a mam a natureza em sujeito.
Portanto, epistemologia e
medida, se o poder de criação da natureza solução que Humboldt encontra para lidar ethos seriam convergentes
é imensurável e ilimitado? Pelo excesso, com a imensidão que é a natureza e aqui em Humboldt, desde que
se tome a natureza como
pela desmedida, ou através da “excessiva também temos a sua solução científica para parâmetro formal da criação.
extensão” de seu trabalho. Essa é a mi- evitar a “forma usual do diário”. No século de disciplinari-
zação da ciência histórica,
nha hipótese. A presença do excesso, ou Vocês poderiam me perguntar: o que o excesso de neutralidade
a “excessiva extensão”, é digna de nota pretendo ao definir isso como paratático? O científica transformou a
ciência, como vai afirmar
no Voyage aux Régions Équinoxiales du que não pode ser representado na natureza, o Nietzsche, em “exercícios
Nouveau Continent e é decisiva porque é que excede os limites das “ciências físicas e […] de dissecação” do “ho-
ela que convoca uma forma específica de matemáticas” faz com que Humboldt adote mem histórico”, presumida-
mente isento de vontade
escrita para representar, ou melhor, para um método quantitativo, o único capaz de e pronto a confundir seu
apresentar a natureza extensiva. Somente dar a ver a medida da natureza, mais especi- saber com uma“observação
desinteressada”.A crítica de
através da “extensão excessiva” de sua ficamente, o quantum da natureza. O relato Nietzsche à objetividade
obra, e do processo laborioso da escrita, de viagem é, desse modo, parataticamente científica denuncia por isso
a negação da subjetividade
que Humboldt pode apresentar a natureza composto da soma exaustiva de “obras pelo sujeito do conhecimen-
tal como ele a vê e a sente. O excesso da puramente descritivas” que, embora apre- to e pelo “homem culto”,
“personalidades [que] de-
obra, ou do trabalho gasto com a obra, é sentem a “imperfeição dos livros parciais”, vem se tornar, antes de tudo,
matematicamente proporcional à autopro- é apropriada, de acordo com Humboldt, como sem subjetividade, ou,
dutividade inerente à natureza, porque a para “tudo o que tem alguma relação com como se diz, objetividades”
(Nietzsche, 2003, p. 46).
natureza como “a força originária do mundo, as ciências físicas e matemáticas” (Hum- Assim como ele zomba dos
divina e eternamente criadora”, excede os boldt, 1812, p. 2). cientistas eruditos, para ele,
uma “geração de eunucos”,
limites do que pode ser representado; ela é Podemos, portanto, afirmar que, na “In- esses guardiões da “cons-
sublime matematicamente falando. trodução”, é exposta a emergência de novas ciência histórica” são, “eles
próprios […] nem homens
Vejamos suas palavras na “Introdução” categorias ligadas aos procedimentos de nem mulheres, nem mesmo
para ver como a “extensão excessiva” de apropriação das “ciências físicas” que não ainda uma comunhão dos
dois, mas sempre apenas
sua obra emerge da forma numérica que apenas implicam viradas epistemológicas na neutros, ou, expresso de
Humboldt encontra para traduzir em pa- ciência (tal como a interação fundamental maneira mais culta, apenas
lavras a natureza. Ele diz: “Ao adotar um entre o físico e o mental), mas igualmente os eternamente objetivos”
(Nietzsche, 2003, p. 46).
gênero de escrita que une, em um mesmo em questões sobre como escrever uma obra É interessante retomar o
capítulo, tudo o que foi observado em um científica que irá contribuir para um “sólido rendimento desse debate
a partir do livro Objectivity
lugar específico do globo, compus uma aprendizado” dos leitores (Humboldt, 1812, de Lorraine Daston e Pe-
obra de extensão excessiva” (Humboldt, p. 31). É então dos modelos das “ciências ter Galison, em que está
tematizada a emergência
1812, p. 14). A extensão infinita é parte da físicas e matemáticas” que o seu “gênero da objetividade científica
decisão humboldtiana de adotar um “gênero de escrita” emerge, bem como a sua repre- em face da emergência do
“self” científico. A história
de escrita”. Nesse sentido, o excesso é um sentação naturalista é configurada. A escrita da objetividade prevista por
tipo de método, retórico e textual, para lidar numérica, descritiva, serial guarda em si ambos visa a comprovar

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Reprodução
Retrato de o estatuto epistemológico das ciências da
natureza, tal como Humboldt as entende,
Alexander von
que, posteriormente, penetrará nas repre-
Humboldt sentações naturalistas da literatura. Pense
em José de Alencar, Euclides da Cunha,
Mário de Andrade, João Guimarães Rosa,
entre outros. Neles, é notável a presença de
uma sensibilidade etnográfica, bem como
de uma preocupação geográfica que concor-
rem na construção do processo de criação
literária. Preocupação e sensibilidades essas
amparadas por diversos saberes científicos
que, ao longo do século XIX, ganham
estatuto de legitimidade disciplinar. Daí
cair muito bem para a literatura brasileira
a consideração humboldtiana do tempo
americano como espaço a ser perscrutado
cientificamente, dos “quadros da natureza”
como conteúdo e forma de determinadas
configurações literárias do Brasil, prontas
a substituir a hipotética questão sobre a
origem do conteúdo e forma da literatura
brasileira pela constelação espacial do iní-
cio, do originário, do natural naturalizado,
etc. A apresentação naturalista, portanto,
tem validade cognitiva e configura-se desde
o amplo argumento que um paradigma estrutural das ciências apto
subjaz ao livro, a saber, o
de que epistemologia e a medir a natureza extensiva e quantitativa
ethos se fundem. No capí- da América.
tulo “The Scientific Self ”,
especialmente, interessaria Humboldt sabe que, se seus livros forem
aqui que “a emergência da excessivamente científicos, tornar-se-ão
objetividade científica na
metade do século XIX ne-
cansativos para os leitores não familiari-
cessariamente é simultânea à zados com tal tipo de linguagem científica.
emergência da subjetividade Isso significa que ele necessita medir o labor
científica”. Subjetividade era
o inimigo a partir do qual as da escrita, calibrando os “detalhes” verti-
ensaio político sobre a América Hispâni-
medidas extraordinárias da ginosos de suas “observações puramente
mecânica objetividade foram ca, entre outras, que encobrem uma soma
científicas”, para encontrar a estratégia
inventadas e mobilizadas
total de 29 volumes para compreender os
para combatê-lo. Não é textual que mantenha o interesse do público
acidental que essas medidas “resultados gerais” da viagem. Embora a
enquanto o educa nesse processo (Humbol-
frequentemente apelavam “extensão excessiva” torne seu trabalho im-
para a autolimitação, auto- dt, 1812, p. 15). Não é anacronismo pensar
disciplina, autocontrole: não perfeito, a “imperfeição dos livros parciais”
que Humboldt estava escrevendo para que
era mais a natureza variável é não somente a solução da apresentação da
ou o ar tista inconstante, fosse lido por um público mais amplo que
multiplicidade de seus interesses de viagem,
mas o eu científico que o dos sábios dos círculos acadêmicos.
impôs o maior perigo, epis- mas também uma estratégia retórica para
temologicamente falando. Humboldt está consciente da organiza-
não se tornar cansativo e árido quando es-
O inconfiável eu científico ção do texto e, por causa dessa consciência,
foi tão novo quanto a ob- tiver discutindo, por exemplo, observações
teme “a imperfeição dos livros parciais”,
jetividade científica; de fato,
astronômicas.
ele era seu anverso, seu ne- embora essa “imperfeição” seja o único
gativo fotográfico. “Por que Antes de terminar, gostaria de acrescen-
meio que ele pode usar para descrever seu
objetividade?” torna-se “Por tar algo sobre a objetividade. A impossibili-
que subjetividade?”, mais múltiplo interesse no Novo Mundo – exis-
especificamente, “Quem é dade de ser totalmente objetivo não nos leva,
tem obras de zoologia, geologia, geografia
o sujeito científico” (Daston como se poderia pensar, a uma subjetivação
& Galison, 2007, p. 198) das plantas, observações astronômicas,

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da ciência ou da narrativa naturalista. Não. à neutralidade e à fidedignidade objetiva da
Humboldt não torna o conhecimento subje- narrativa, é antes a propriedade do imenso 6 A referência aqui são os
tivo. Ele silencia ou ao menos tenta silenciar da natureza que torna impossível representar parágrafos 25 e 26 da Ana-
suas objeções pessoais a fim de garantir a objetivamente o que o viajante viu com seus lítica do Sublime de Kant. E
é interessante o comentário
objetividade científica como um princípio próprios olhos. A grandeza e a majestade da do capítulo IV, “O sublime
das “ciências físicas e matemáticas”. Na natureza silenciam a voz pessoal, e a repre- como síntese matemática”,
do Lições sobre a Analítica
prática, nenhuma subjetividade pode estar sentação naturalista transforma a dimensão do Sublime de Jean-François
incluída na Relation Historique. Ele afirma: autoprodutiva da natureza em um trabalho Lyotard. A medida matemá-
tica do sublime refere-se à
“Suprimi a maior parte desses incidentes de “extensão excessiva” e nos informa que, representação da grandeza
pessoais”. Portanto, ele tenta ao máximo na narrativa naturalista, a natureza não é do objeto. Refere-se, por-
tanto, à mensuração da
tornar sua representação naturalista o mais naturalmente dada. Ela é primeiro o parâ- grandeza do objeto. Repro-
perto possível da natureza, tão enorme e metro formal da criação, seja quando esta duzo um trecho destacado
grande quanto a natureza, produzindo um se relaciona ao objeto, seja quando ela se de Lyotard: “A conjugação
das duas faculdades [ima-
analogon à natureza de forma que ele, como relaciona ao sujeito. Ela se constitui como ginação e entendimento] é
sujeito, desapareça, para que a natureza o sujeito, por excelência, de toda criação. E, finalizada na determinação
cognitiva, não é estética em
possa aparecer como inquebrantável. E, desse modo, o sujeito científico6 que falha nada, não traz ao pensa-
fazendo isso, ele favorece a emergência da em representar objetivamente a natureza mento que procede a essa
recorrência nenhum prazer
própria natureza como sublime, diante da produz um analogon – seguindo sempre o imediato,‘nada que seja final
qual o sujeito infinitamente falha. fio borgiano – da natureza, desaparecendo e agradável, Gefallendes,
para a faculdade estética
Portanto, não é tanto a voz pessoal e nos interstícios de sua finitude para que a de julgar’” (Lyotard, 1993,
vívida do viajante-escritor que se contrapõe natureza apareça. p. 103).

BIBLIOGRAFIA

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