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O livro imperfeito
da viagem:
o problema da
objetividade
e a “redação”
do imenso na
LUCIA RICOTTA
VILELA PINTO
é professora da
representação
naturalista
Universidade
Estadual do
Sudoeste da Bahia
(Uesb).
uito já se falou da viagem de viagens e narrativas, é que se trata de uma
Humboldt à América, populari- ciência comprometida com um “gênero de
zada, aliás, em função dos múlti- escrita” apto a configurar uma “descrição
plos interesses a ela conferidos, física da terra”, como o próprio subtítulo de
seja no âmbito da geografia, da seu Cosmos (1845-62) nos indica3.
botânica, da geologia, da vulca- O que acho realmente intrigante nessa
nologia, do ensaio político, seja “Introdução” é que nela Humboldt nos diz
no âmbito das representações sobre o quão preocupado está em como
culturais das civilizações asteca escrever os “resultados gerais” de suas
e maia. Restam, no entanto, viagens à América (sublinho esse “como”
várias questões que se ligam à para dizer que o problema da ciência em
importância da representação Humboldt não está ligado à pergunta sobre
naturalista a partir dela figura- o que é a ciência, mas como se faz ciência,
da e que, contudo, teve várias implicações ou, o que se faz quando se quer representar
para o destino do literário e da própria noção naturalisticamente algo)4. Sua preocupação
de ciência na passagem do século XVIII ao em como traduzir suas viagens em escrita
XIX no Brasil. leva-o a se confrontar com dois horizontes
1 A “Introdução”, datada de
1812, está na “Première
Vou falar do relato de viagem de Ale- contra os quais ele tenta insistentemente re-
Partie” do “Tome Premier” xander von Humboldt (1769-1859). Mais sistir: por um lado, o perigo de cair em uma
da Relation Historique, publi-
especificamente, vou falar da “Introdução”1 “superficialidade enciclopédica” (Humbol-
cado em 1814.
que Humboldt escreveu, em 1812, para a dt, 1827, p. 1) e, por outro, a impossibilidade
2 A Relation Historique corres-
ponde à “primeira parte” e Relation Historique du Voyage aux Régions de “apresentar os resultados na forma usual
aos três primeiros volumes Équinoxiales du Nouveau Continent, fait de um diário” (Humboldt, 1812, p. 2). Ele
(publicados respectivamen-
te em 1814, 1819 e 1825) en 1799, 1800, 1801, 1802, 1803 et 1804, fala também, na “Introdução”, que quando
de um conjunto de 29 par Al. de Humboldt et A. Bonpland, rédi- retornou à Europa experimentou muitas
volumes da monumental
gé par Alexandre de Humboldt2. Por que “dificuldades” em “escrever um número
obra intitulada: Voyage aux
Régions Équinoxiales du Nou- falar da “Introdução”, esse paratexto do considerável de memórias” (Humboldt,
veau Continent, fait en 1799, trabalho americanista de Humboldt? Porque 1812, p. 29). “Dificuldades” essas que o
1800, 1801, 1802, 1803 et
1804, par Al. de Humboldt et lá somos capazes de observar Humboldt fizeram, em suas próprias palavras, “vencer
A. Bonpland. A obra consiste construindo a estrutura arquitetônica de insensivelmente” sua própria “repugnância
em 29 volumes na edição
francesa em folio/quarto seu trabalho sobre as viagens pela América. em escrever [o] relato de viagem” (Hum-
e 34 volumes, incluindo a Também podemos observar, a partir dela, boldt, 1812, p. 29)
Synopsis plantatrum por
K. S. Kunth. Foi publicada o processo de feitura de uma descrição da Portanto, meu ponto aqui é tentar pensar
principalmente durante a gênese e do “plano geral” de sua opus. qual é a relação entre o forte incômodo de
estadia de Humboldt em
Humboldt lista aí os procedimentos que Humboldt com a escrita e a objetividade do
Paris, que começou em
1807. O subtítulo dos três adota para conduzir seu trabalho científico seu trabalho americanista. É possível pensar
volumes referidos é: Relation e sua representação naturalista. E o que é que a “Física do Mundo”, seu principal
Historique du Voyage aux
Régions équinoxiales du Nou- especialmente importante nessa “Introdu- intento durante toda a sua viagem, é um
veau Continent, fait em 1799, ção” é a referência de Humboldt a um tipo modo de revelar seus propósitos ocultos de
1800, 1801, 1802, 1803 et
1804 par Al. de Humboldt de ciência, o qual exige um “gênero de criar um trabalho científico que seja infini-
et A. Bonpland, rédigé par escrita” específico, como ele mesmo anota. to como a natureza? Isso me lembra uma
Alexandre de Humboldt.
Nesse sentido, a “Introdução” é o gesto peça de Jorge Luis Borges em que conta
3 Cabe um desenvolvimento,
inicial que permite claramente apresentar sobre uma “relíquia geográfica” criada por
em artigo posterior, sobre
a relação entre escrita ou que ele, como naturalista-viajante, realiza alguns cartógrafos – um mapa do Império
representação naturalista e uma coleta científica de “fatos” através da que era do tamanho do próprio Império e,
geografia física. Alexander
von Humboldt nos sugere prática das viagens e da sua narrativa. E portanto, tornou-se o próprio Império (Bor-
que podemos entender que essa coleção científica de “fatos” irá ges, 1954, p. 89). Isso também me lembra
a cultura da América nos
termos de seu espaço geo- desenvolver o que ele vagamente chama o Em Busca do Tempo Perdido de Proust.
gráfico e não através de seus de “Física do Mundo”, “Teoria da Terra” Ler seu romance nos leva a experimentar
“começos” historicamente
hipotéticos. Pode-se dizer
ou “Geografia Física” (Humboldt, 1812, p. efetivamente a duração da passagem do
que ele apresenta a ideia de 3). Contudo, o que é importante, em suas tempo, a densidade do tempo. Seu roman-
BIBLIOGRAFIA