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Um livro para ler — e entender

Por Rafael Falcón

Apresentação à reedição dos comentários de


Francisco de Sales Lencastre pela Editora Concreta

Quando eu tinha quinze anos, abri uma edição “com notas”


de Os Lusíadas. Li o poema inteiro — isto é, fiz aquilo que,
à época, eu chamava de “ler” — e, para além de captar o
sentido superficial da maioria das estrofes e algo da
entonação épica, não entendi bulhufas.

Camões é um clássico; é o clássico da língua portuguesa.


Nele estão os sentimentos morais, as virtudes, a dignidade
da civilização lusa. Camões é o fundamento da nossa
cultura, é o herói dos nossos escritores.

Mas como arranhar as intuições poéticas, a elevação


moral, os arroubos sobrenaturais de um poeta, quando não
se consegue juntar sujeito com predicado em seus longos
períodos? Quando suas expressões figuradas parecem
enigmáticas e até incompreensíveis? Quando não se sabe
ao menos do que está ele a falar: quem é Pacheco, em que
ponto da Terra os heróis se encontram, que diabos é um
mauritano?

Os abecedários medievais começavam com os


dizeres: legere et non intellegere, neglegere est — ler, e
não entender, é negligenciar. Na raiz etimológica
de intellegere, segundo uma tradição antiga, estavam as
palavras intus legere (“ler dentro”); na
de neglegere, nec legere (“nem ler”); e a mesma frase, lida
etimologicamente, assim se traduz: ler, e não ler dentro,
não é nem mesmo ler. Passar os olhos pelas letras, apenas
pressentindo seu significado, não é leitura de forma
alguma. Só lê de fato aquele que domina o campo
semântico das palavras, sabe distingui-las de suas
parentas, ligá-las a suas amantes, apreciá-las em sua força
específica.

E como se aprende a ler, senão com o guiamento de um


mestre? Como qualquer arte, a leitura passa pela
memorização de alguns dados, e pela prática disciplinada
de certos movimentos mecânicos; e, como toda arte, ela só
se realiza de fato na articulação de palavras, movimentos e
hábitos segundo uma razão complexa, cujo registro
completo em livro seria provavelmente impossível — em
todo caso, certamente nada prático — e que só pode ser
transmitida apropriadamente por um ser humano treinado e
dedicado: um mestre de leitura, o grammaticus.

O grammaticus conhece todos os passos para ler


adequadamente o gênero textual mais exigente de todos —
a poesia — e por isso lê bem tudo o mais. Sabe decodificar
os sons sem erro; sabe entonar e pausar; ler e interpretar.
Identifica as figuras, quando aparecem, e deduz sua função
e sentido; estuda as referências e alusões, reconstrói a
sintaxe dos versos, domina-os como a palma de sua mão.
Quanto disso pode ser posto em livro? Muito pouco. Mas já
nos primeiros séculos da nossa era, quando a barbárie
ameaçava as instituições do Império Romano, alguns
mestres se puseram a registrar o que podiam. Fizeram-no
da maneira mais apropriada, mais rica e mais útil:
simulando por escrito suas aulas, explicando um poema
verso a verso, e criando assim o único gênero de material
didático aceitável para aquele modelo de ensino. A tradição
de comentários didáticos se estendeu durante mais de mil
anos, até desfalecer subitamente em meados do século
XX.

Hoje é segredo e mistério, mas um século atrás ainda se


publicavam edições comentadas de clássicos como Os
Lusíadas. Eram belos livros escolares, com paráfrases em
prosa de cada estrofe, para garantir a compreensão da
sintaxe; com notas explicativas que, diferentemente das
atuais, explicavam de verdade as referências do texto e as
figuras de linguagem; com introduções ricas e eruditas que
fundamentavam e aprofundavam a leitura. Não
dispensavam o estudo disciplinado e a presença do mestre,
nem procuravam substituí-lo, como hoje se faz por meio de
“métodos” e “livros didáticos”, pretensas máquinas de
educar que convertem os professores em meros fiscais de
sala — negando aos alunos, sob pretexto de evitar os
defeitos humanos, o privilégio de aprender o que só um ser
humano pode ensinar: a apreciação real e vital da poesia.
Separado o domínio técnico da contemplação poética,
perde-se o sentido de todo o estudo, agora tornado mero
formalismo; e o vocabulário da arte, esvaziado da
experiência estética integral, vira palavreado oco.

Os comentários, portanto, não visavam a substituir as


aulas, mas a servir de apoio para o estudo; preenchiam os
vãos da ignorância histórica e lingüística, possibilitando a
discussão do poema em níveis mais altos; dispensavam o
professor de literatura de tornar-se um filólogo ou
historiador, o que lhe tiraria, talvez, o tempo e a disposição
de estudar o poema enquanto poema, que é seu aspecto
mais interessante e útil; davam aos alunos os meios de ler
e entender sozinhos, em casa, o que de outro modo exigiria
longas pesquisas, e na prática os tornaria dependentes do
professor para tudo.

Por que pararam de editar esses ótimos instrumentos do


estudo? Por que, num país em que 92% da população
geral e 84% dos profissionais da educação são incapazes
de ler, os intelectuais e eruditos crêem que essas edições
se tornaram dispensáveis?

Talvez porque não lhes interesse divulgar Os Lusíadas. Os


milhões de livros didáticos despejados nas escolas públicas
todos os anos, à custa — é bom lembrar — de exorbitantes
impostos, preferem analisar revistas em quadrinhos e
obscenas letras de “funk”. As publicações de divulgação
científica, feitas por acadêmicos que se doutoram na
França e nos EUA — mais uma vez, com dinheiro público
— insistem em materiais semelhantes aos sobreditos e, se
mencionam o nome de Camões, é para equipará-lo a
algum sambista pretensioso. Não é exagero dizer que as
tirinhas, letras de música — com o perdão da palavra —
popular e crônicas de jornalistas semiletrados bloqueiam
eficazmente qualquer contato com a cultura tradicional do
nosso povo e civilização, para não falar do uso correto,
expressivo e belo da língua portuguesa.

Quem sabe qual é o interesse de toda uma classe letrada


— nas atuais condições seria mais justo chamá-
la pseudoletrada — em tornar inacessível a obra mais
importante do nosso idioma? Quem sabe por que razões se
investe tanto tempo e dinheiro em desensinar a língua
portuguesa e privar as crianças de todo contato com
valores morais básicos? Terá sido tudo isto feito
conscientemente, ou será fruto de um longo e paulatino
processo de emburrecimento? Seja qual for a resposta, a
prudência aconselhará a mesma atitude: correr de volta ao
passado e recuperar os instrumentos didáticos que
formaram nossos grandes homens. A edição de Francisco
de Sales Lencastre representa muito honradamente as
virtudes da tradição de comentadores escolares aos quais
deveram tanto nossos antepassados. Endividemo-nos
também nós, para nosso bem, e das futuras gerações.

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