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Da dúvida crédula

Olavo de Carvalho
14 de dezembro de 1999
O que leva um homem a duvidar é ou a percepção de um problema sugerido pelos dados de uma
realidade ao menos aparentemente contraditória, ou uma sugestão de sua própria imaginação
excitada pelo medo, pela suspeita, pela incompreensão, pela simples má vontade. Tal é a diferença
entre a dúvida filosófica e a dúvida ociosa.
A mente treinada não tem dificuldade em distinguir esses dois tipos de dúvidas e em rejeitar o
segundo como indigno de atenção filosófica. Quatro séculos de cultura céptica, porém, fizeram da
dúvida imaginária um hábito, um valor e um dogma do senso comum, tão difícil de desarraigar
quanto as mais toscas superstições e crendices, e igualmente danoso para a inteligência.
Num meio social desguarnecido de valores culturais consolidados, a dúvida ociosa pode alastrar-se
para todos os domínios da atividade pensante, paralisando as inteligências e tornando impossível o
aprendizado. Não hesito em dizer que, entre os jovens estudantes brasileiros, esse fenômeno é o
maior obstáculo à aquisição de uma cultura filosófica.
É da própria essência da dúvida filosófica articular-se racionalmente em vista de uma solução, ao
passo que a dúvida ociosa é, por natureza, obsessiva e proliferante. Enquanto o questionador
filosófico só rejeita uma afirmação quando os motivos de negá-la sejam patentemente mais razoáveis
que os de aceitá-la, o espírito acometido de dúvida ociosa não hesita em proceder como se simples
hipóteses inventadas, pelo simples fato de serem destrutivas, devessem ser mais confiáveis do que as
crenças do senso comum ou os dados dos sentidos. Ao velho prestígio romântico do negativo e do
macabro acrescenta-se a moda mais recente: a apologia geral da “independência” e da “rebeldia” faz
com que cada um se sinta um grande homem quando em nome de hipóteses artificiosas nega aquilo
que vê ou sente, sem notar que, ao fazê-lo, sacrifica suas percepções autênticas e pessoais no altar de
um cacoete coletivo, e que sua afetação de independência crítica não passa, assim, do mais puro
servilismo e espírito de rebanho.
Duas influências filosóficas remotas que, por estar incorporadas em correntes de opinião coletivas,
exercem facilmente sobre a mente dos principiantes uma autoridade tendente a legitimar o ceticismo
ocioso, são a filosofia analíticae o marxismo. A primeira oferece ao estudante a possibilidade de
viver imerso num mar de dúvidas paralisantes, das quais se sente ao mesmo tempo solidamente
abrigado sempre que foge para o recinto estreito do “método científico”, como se este não fosse
apenas um conjunto de procedimentos coletivos de verificação e prova que subentende, na mente
individual que o pratica, a capacidade para uma infinidade de certezas diretas que transcendem, em
muito, os dois critérios admitidos nesse mesmo método, isto é, os dados atomísticos dos sentidos e
as leis da lógica indutiva. Quanto ao segundo, oferecendo para as dúvidas filosóficas a falsa solução
de absorvê-las na praxisrevolucionária, o que no fim das contas não é senão mudar de assunto,
permite que na mente do estudante coexistam, sem choque aparente, a dúvida mais corrosiva ante os
valores e crenças do adversário e a mais sonsa credulidade ante as pretensões da sua própria
ideologia. Que ambas essas filosofias acabem sempre se fechando nas suas “tradições” próprias,
incapazes de dialogar com o que quer que não consinta em obedecer às regras de seus respectivos
“universos de discurso”, e que cada uma delas esteja inseparavelmente associada a um esquema de
poder – capitalista e comunista –, já deveria ser suficiente para mostrar que a mente que se pretenda
livre e independente não deve, desde logo, aceitar as premissas de uma ou de outra. Mas a dúvida
ociosa, sendo por natureza irracional e sentimental, não busca verdadeiro conhecimento, e sim
apenas o apoio prestigioso de uma coletividade que a estimule a duvidar seletivamente daquilo que
odeia e crer não menos seletivamente naquilo que adora. Por isto mesmo ela sente uma atração
irresistível por uma dessas ideologias, quando não pelas duas ao mesmo tempo, dizendo ante
Wittgenstein e Marx: Entre les deux, mon coeur balance.
A dúvida crítica é apenas uma dentre as muitas operações da inteligência discursiva, e seu exercício
fecundo subentende a inteligência íntegra, informada e culta, armada daquele senso das proporções
que só uma longa educação pode dar. Mas, precisamente, a dúvida prematuramente estimulada, seja
pela moda, seja por interesses políticos maldosos, faz com que o exercício dessa operação em
particular se antecipe e se substitua ao todo da inteligência, bloqueando qualquer aprendizado
possível.
Enquanto não libertarmos desse círculo vicioso a mente do estudante brasileiro, não haverá autêntica
filosofia entre nós.

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