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XV CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA

26 A 29 DE JULHO – CURITIBA/PR
GRUPO DE TRABALHO:
CULTURA GLOBAL E IDENTIDADES LOCAIS: conflitos culturais na
interface da globalização
LI-CHANG SHUEN CRISTINA SILVA SOUSA
DOUTORANDA DO CENTRO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO SOBRE
AS AMÉRICAS DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. PROFESSORA
ASSISTENTE DO CURSO DE JORNALISMO DA UNIVERSIDADE FEDERAL
DO MARANHÃO
CULTURA GLOBAL E IDENTIDADES LOCAIS: conflitos culturais na
interface da globalização
Li-Chang Shuen Cristina Silva Sousa

Resumo: A proposta deste trabalho é discutir o problema da cultura na era da


globalização e da formação de uma suposta cultura global, que perpassa as
culturas locais e se relaciona com elas de forma assimétrica. Sustentamos que
os fluxos globais de informação e entretenimento não são capazes de impor
uma cultura global capaz de suplantar as culturas locais fortemente
estabelecidas e que a força cultural de determinadas comunidades interfere
diretamente no processo de assimilação. Introduzimos a noção de transregião
como o local de intersecção de vários locais culturais onde os fluxos da cultura
global se diluem mais facilmente na realidade local, produzindo assim tais
fluxos uma interferência mais difusa e menos determinista nos processos
culturais já regionalmente estabelecidos. O artigo discute ainda o próprio
conceito de globalização, assim como os de cultura e cultura global, discussão
essa assentada na interface entre perspectivas teóricas derivadas da
Economia, das Ciências Sociais e dos Estudos Culturais.

Palavras-chaves: Globalização – Cultura – Conflitos culturais – Cultura global

Introdução

Quinta-feira, 16 de julho de 2009. É noite. Pessoas estão


confortavelmente sentadas na calçada de um bar, conversando, bebendo,
ouvindo a música ambiente ou simplesmente vendo o tempo passar. O bar é
também um restaurante e serve comida oriental. Sushi e Yakisoba são os
principais atrativos do menu. De repente, um jovem com traços indígenas
aparece vestido e maquiado como Michael Jackson e logo repete no meio da
rua os passos que fizeram a fama do cantor morto recentemente e chama para
si todas as atenções.
A cena aconteceu em Imperatriz, uma cidade do interior do
Maranhão, mas poderia acontecer em qualquer cidade do mundo. Certamente
cenas parecidas estavam acontecendo em locais tão diversos quanto grandes
centros urbanos e cidades pequenas e médias em todos os continentes. A
comoção global pela morte de um ídolo internacional era mais do que
esperada. Na era da globalização, a um indígena brasileiro, tanto quanto a um
jovem asiático ou hindu, a despeito das diferenças econômicas, sociais e

2
inclusive étnicas, é lícito se apropriar da imagem de um personagem que só foi
possível existir em tal escala justamente por causa da globalização.
Em tempos de globalização não há surpresa em tais cenas. Há,
contudo, dúvidas se as culturas regionais e locais irão sobreviver à hegemonia
de fluxos culturais globais que podem estar em vias de se transformar em uma
cultura global. A dúvida torna-se preocupação quando se coloca na equação a
probabilidade dessa cultura global submeter as manifestações locais a um
processo de estandardização e homogeneização a tal ponto de já não se
reconhecerem as culturas tradicionais, em um futuro onde elas poderiam ser
completamente suplantadas pelo global.
Alguns questionamentos surgem da observação da paisagem cultural
ao redor de qualquer cidadão de um mundo cada vez mais econômica e
tecnologicamente integrado. Um deles é a própria possibilidade de estarmos
diante da constituição de uma cultura global. Discutimos essa possibilidade no
segundo tópico deste trabalho, após um exercício de problematização e
questionamento do conceito – ou conceitos – de globalização oferecido por
perspectivas teóricas derivadas da Economia, das Ciências Sociais e dos
Estudos Culturais. De antemão é possível afirmar que, assim como não há
consenso sobre a natureza da globalização, não há consenso sequer sobre o
termo a ser usado para designar o processo de uniformização e encolhimento
do mundo que estamos presenciando, muito menos sobre o conceito em si.
Ao lado das preocupações econômicas, tecnológicas e sociais
levantadas por este processo, existe a discussão sobre o que a globalização
faz com a cultura quando leva às mais diferentes comunidades fragmentos de
outras culturas e, mais ainda, blocos inteiros de produções culturais midiáticas,
homogêneas e, à primeira vista, conflitantes com aquilo que é identificado
como o mais representativo de uma comunidade: as suas tradições históricas
ou em construção. Neste trabalho problematizamos o conceito de cultura,
analisamos o papel das identidades locais para que haja ou não
permeabilidade do local ao global e introduzimos o conceito de transregião na
discussão sobre as estratégias e alternativas de resistência a uma suposta
dominação do global em relação ao local.
Levantamos, ainda, o questionamento a respeito da inevitabilidade
de conflitos entre o local e o global na arena das manifestações culturais. Não

3
há consenso sobre se essa interpenetração é maléfica ou benéfica a um dos
lados da relação: as comunidades locais. Recentemente, entrou em vigor a
Convenção sobre a Proteção da Diversidade Cultural, negociada no âmbito da
Organização das Nações Unidas, com o objetivo de estreitar os vínculos entre
desenvolvimento sustentável e o respeito às culturas por meio do diálogo1.
Enquanto ativistas pela preservação de culturas ameaçadas pela globalização
vêem no texto da convenção pelo menos uma intenção de deter o que
consideram como avanço predatório da globalização e da cultura-mercadoria,
outros, como o filósofo naturalizado norte-americano Kwame Anthony Appiah,
vêem contradição no patrocínio da ONU a tal iniciativa2.

Sobre a globalização

Harvey (2005) define a globalização como um eufemismo para o


novo imperialismo, que é norte-americano. O imperialismo americano
(globalização) está centrado na lógica do capital, que precisa se expandir para
se reproduzir. Assim, ao exportar seu modelo de consumo e de democracia, os
Estados Unidos exportam os movimentos do capital que dão sustentação ao
estado. Para os países importadores desse modelo, não haveria escolha. O
autor identifica o poder americano como uma hegemonia lastreada no
consentimento, na força e na combinação entre consentimento e coerção e
destaca o papel da liderança moral e intelectual para o exercício da hegemonia
americana na era do capitalismo global.
A produção cultural dos Estados Unidos seria, na perspectiva de
Harvey, uma ferramenta para a consolidação e manutenção da liderança do
país nos processos de redefinição do sistema mundial contemporâneo. A

1
A convenção entrou em vigor em 18 de março de 2007. Mais de 50 países haviam ratificado o texto até aquela data,
entre eles o Brasil e a União Européia. A convenção prevê ainda a criação de um fundo para a preservação da
diversidade cultural e exorta os países a adotar políticas de preservação do patrimônio cultural. Fonte:
www.unesco.org
2
Appiah afirma que “a convenção baseia-se no temor de que a cultura de massa ocidental ocupe o espaço das
diferentes formas culturais de outras partes do globo. Esse é o argumento para que os países defendam suas
expressões artísticas e costumes nacionais ou locais. É, no mínimo, uma contradição. A própria ONU defende a livre
circulação de idéias, a liberdade de pensamento e de expressão e os direitos humanos. A convenção para proteção
cultural pode ser usada para desrespeitar esses valores. O que, aliás, já vem acontecendo. Na China, o governo utiliza
a convenção da ONU como justificativa para impedir que a população tenha livre acesso à internet. Os burocratas
chineses estão preocupados em preservar a cultura local? Claro que não. Apenas querem impedir os cidadãos de ter
contato com idéias e informações que os levem a desafiar o governo” (entrevista à Revista Veja, 8 de março de
2006).

4
indústria do cinema de Hollywood, as grandes gravadoras, as redes de
televisão com alcance global que exportam não apenas modelo de ficção, mas
também de tratamento da realidade por meio do jornalismo, são elos de uma
cadeia inseparável da política e da economia.
Ao lado disso, há o importante papel das instituições globais para a
sustentação da hegemonia americana: ONU, FMI, OMC (que exerceria o papel
de legitimador do novo imperialismo ao tentar impor a liberalização dos fluxos
comerciais globais que, via de regra, são desiguais em favor das economias
mais fortes). De acordo com essa perspectiva oferecida por Harvey, a inclusão
de temas relacionados à propriedade intelectual e livre fluxo de mercadorias
culturais está consoante com os propósitos do novo imperialismo de manter a
produção simbólica que o sustenta sob seu domínio e vigilância, inclusive
quando feita por outros países-atores do sistema.
Mander e Goldsmith (1997) partem de uma postura militante contra a
globalização para analisá-la e propor alternativas a ela. A globalização,
enquanto processo, é caracterizada como o maior redimensionamento da
arquitetura política e econômica do mundo desde a Revolução Industrial. O fato
de que as descrições ou explicações midiáticas sobre o processo serem feitas
por agentes da globalização faz com que o discurso dominante seja o que de
trata-se de um processo inevitável e benéfico para todos.
Porém, todos aqui deve ser entendido como as parcelas de
população, políticos e empresários do primeiro mundo que se beneficiam dela.
É apenas uma pequena parte da população mundial. Para a grande maioria,
globalização significa a destruição dos modos de vida tradicionais, da auto-
suficiência alimentar de comunidades até então protegidas do fantasma da
fome, das culturas locais e, principalmente, da autonomia político-econômica.
Para essa maioria, globalização é subordinação a um modo de vida que não foi
escolhido: foi imposto.
Os autores argumentam que mesmo quando a mídia noticia algum
problema da globalização, não são feitas análises sobre as conexões entre as
crises eventualmente descritas e a raiz da causa dessas crises. Mais: a mídia
rotula aqueles que são contrários à globalização em curso colocando todos em
uma mesma categoria discursiva. Os termos usados para caracterizar essas

5
pessoas ou grupos assumem conotações pejorativas, como protecionistas,
nacionalistas e ambientalistas.
Além disso, a mídia não ajuda ninguém a compreender as questões
que envolvem o processo de globalização, porque ela não explica o que está
acontecendo, apenas relata. A principal falha da globalização em curso é o
distanciamento dos cidadãos dos processos decisórios. Eles estão virtualmente
excluídos da discussão sobre o que vai atingir diretamente sua vida cotidiana.
Logo, as pessoas que sofrem as conseqüências da globalização não
escolheram os caminhos que estão sendo obrigadas a seguir.
Canclini (2003), a partir de uma abordagem culturalista, chega a uma
crítica semelhante sobre o encurtamento e a homogeneização do mundo em
que vivemos. Ele escreve que
curioso é que essa disputa de todos contra todos, em que fábricas
vão falindo, empregos são destruídos e explodem as migrações em
massa e os conflitos étnicos e regionais, receba o nome de
globalização. Chama a atenção o fato de que empresários e políticos
interpretam a globalização como a convergência da humanidade
rumo a um futuro solidário, e que até muitos críticos do processo
entendam essa devastação como o processo por meio do qual todos
acabaremos homogeneizados.

O autor chama a atenção, porém, a um fato paradoxal que deve ser


percebido mesmo pelo mais consciente e convicto crítico da globalização: por
mais que seus efeitos sejam devastadores para a maior parte das economias e
modos de vida tradicionais, nem os pobres nem os marginalizados podem
prescindir dos fluxos globais. A circulação de mercadorias, tecnologias e idéias
pode ser algo benéfico se bem conduzido. Devido a esse caráter contraditório
do processo, Canclini classifica a globalização como “objeto cultural não
identificado”, querendo dizer com isso que qualquer definição seria imprecisa
pela imensa dificuldade em se dimensionar em um conceito todos os aspectos
que devem ser levados em consideração ao se analisar o que vem a ser a tal
globalização. Nesse sentido, ele afirma:
muito do que se diz sobre a globalização é falso. Por exemplo, que
ela uniformiza todo o mundo. Ela nem sequer conseguiu estabelecer
um consenso quanto ao que significa ‘globalizar-se’, nem quanto ao
momento histórico em que seu processo começou, nem quanto a
sua capacidade de reorganizar ou decompor a ordem social. (ibdem:
p.41)

6
Mesmo sabendo da dificuldade em oferecer um conceito
incontroverso, Canclini (ibdem: 42-42) arrisca uma definição que tenta incluir
dois dos mais contraditórios aspectos do processo: “o que se costuma chamar
de ‘globalização’ apresenta-se como um conjunto de processos de
homogeneização e, ao mesmo tempo, de fragmentação articulada do mundo
que reordenam as diferenças e desigualdades sem suprimi-las.” Por ser a
globalização algo tão controverso e de difícil conceituação, Robertson (1990:
p.17-18) evita, inclusive, usar o termo corrente para designar o processo atual
e prefere chamar a globalização de processo de transformação das realidades
nacionais e regionais em mundo-como-um-todo. Ele afirma que “any attempt to
theorize the general field of globalization must lay the grounds for relatively
patterned discussion of the politics of the global-human condition, by attempting
to indicate the structure of any viable discourse about the shape and the
‘meaning’ of the world-as-a-whole.”
Outro autor que prefere não usar o termo globalização é Mato (2005,
mimeo), que prefere usar ‘processos de globalização’, como uma relação que
se estabelece a partir de “significativas interrelaciones e interdependencias
entre actores sociales a niveles tendencialmente planetarios”. Ele chama
atenção para o fato de que a maior parte das abordagens são deficientes em
oferecer uma visão mais acurada a respeito do que está acontecendo sem as
amarras da militância pró ou anti-globalização:
en estos días se habla y escribe demasiado sobre algo que se da en
llamar “globalización”. Pero en general se lo hace de maneras poco
precisas, reduccionistas y fetichizadoras, que no sirven de mucho
para orientar las acciones de los actores sociales. Dependiendo de
quién habla o escribe, resulta que eso que nombran “globalización”
es señalado como causa de todos nuestros males o,
alternativamente, como la panacea que resolverá todos nuestros
problemas. (ibdem:p.1)

A fetichização de que fala Mato tem a ver com o fato de que a


maioria, tanto de seus críticos quanto de seus detratores, parece esquecer que
a globalização não é algo supra-humano. Pelo contrário: ela é um construto
humano tanto quanto o é a tecnologia que a possibilita ou a economia que se
sustenta e fortalece por meio dela. Assim como qualquer obra humana, é
passível de falhas e acertos. O autor (idbem: p.4) sugere que devemos evitar

7
fetichizar a idéia de “globalização” e uma das maneiras de fazê-lo é, conforme
suas palavras,
no hablar de “globalización” en singular y casi como si se tratara de
un nombre propio (en este caso presumiblemente de una suerte de
demiurgo), y hablar en cambio de procesos de globalización, así en
plural. La expresión procesos de globalización nos sirve para
designar de manera genérica a los numerosos procesos que resultan
de las interrelaciones que establecen entre sí actores sociales a lo
ancho y largo del globo y que producen globalización, es decir,
interrelaciones complejas de alcance crecientemente planetario. Este
conjunto de interrelaciones es resultado de muy diversos tipos de
procesos sociales en los que intervienen en la actualidad, y han
venido interviniendo históricamente, incontables actores sociales en
los más variados ámbitos de la experiencia humana, desde los más
variados rincones del globo.

Ao incluir na problemática a discussão sobre o papel dos atores


sociais, Mato conduz a nossa análise para um aspecto sem dúvida alguma
relevante em todo o processo: os encaminhamentos globais que levam ao
encurtamento das distâncias e à compressão do tempo também nos
direcionam a um novo espectro cultural, espectro esse onde os atores sociais
sentem com mais força, ao lado do campo econômico, o peso da globalização
em curso: a cultura.

Sobre a cultura, identidades locais e a cultura global

Uma crítica comum à globalização é a suposta capacidade que ela


tem em suplantar as manifestações culturais locais, substituindo tradições e
criando novas demandas culturais ao mudar o gosto das pessoas ao redor do
mundo, gosto este que se deslocaria do tradicional, identificado com a vida
cotidiana palpável, vivida em um determinado espaço-tempo, para um em que
as formas culturais preferidas seriam, a partir de então, aquelas desenraizadas
e produzidas em larga escala sem identificação alguma com qualquer
comunidade. Surge então a preocupação com uma nova forma de cultura que
estaria destinada a tomar o lugar daquela que conhecemos e com a qual nos
reconhecemos. Uma possível cultura global seria a próxima fronteira da
humanidade.
Antes, contudo, de analisar a possibilidade de a globalização
efetivamente forjar algo parecido a uma cultura global, cabe discutir, em linhas

8
gerais, o que entendemos por cultura em uma era de redefinições e incertezas
conceituais. Wallerstein (1991: 184) resume toda a problemática que se
esconde por trás de um termo tão corrente e tão internalizado (e externalizado)
em nosso discurso cotidiano. Para ele,
the very concept of ‘culture’ poses us with a gigantic paradox. On the
one hand, culture is by definition particularistic. Culture is the set of
values or practices of some part smaller than some whole. This is
true whether one is using culture in the anthropological sense to
mean the values and/or the practices of one group at the same level
of discourse (French vs. Italian culture, proletarian vs. bourgeois
culture, Christian vs. Islamic culture), or whether one is using culture
in the belles-lettres sense to mean the ‘higher’ rather than the ‘basis’
values and/or practices within any group, a meaning which generally
encompasses culture as representation, culture as the production of
art-forms. In either usage, culture (or a culture) is what some persons
feel or do, unlike others that do not feel or do the same thing.

Anthony Smith (1990: 171) trabalha no mesmo nível de análise de


Wallerstein ao se questionar a existência de uma cultura global quando nem ao
menos sabemos o que vem a ser cultura tal como a conhecemos hoje. Nas
palavras do autor:
can we speak of ‘culture’ in the singular? If by ‘culture’ is meant a
collective mode of life, or a repertoire of beliefs, styles, values and
symbols, then we can only speak of cultures, never just culture; for a
collective mode of life, or a repertoire of beliefs, etc., presupposes
different modes and repertoires in a universe of modes and
repertoires. Hence, the idea of a ‘global culture’ is a practical
impossibility, except in interplanetary terms. Even if the concept is
predicated of homo sapiens , as opposed to other species, the
differences between segments of humanity in terms of lifestyle and
belief repertoire are too great, and the common elements too
generalized, to permit us to even conceive of a globalized culture.

Posto nestes termos, o problema da cultura no mundo globalizado é,


com efeito, o problema da cultura em si. Ela não pode ser completamente
absolutizada – não existe uma cultura universal per se –, nem completamente
relativizada – cultura, ou suas manifestações, não é algo que pertence, de
determinadas formas e sob perspectivas circunscritas, a apenas uma
comunidade humana, sem a existência de intercâmbios e bases comuns
identificáveis. Ribeiro (2007: 6), problematiza a questão em termos
antropológicos, afirmando que
a noção antropológica de “cultura” significa atributos universais
compartilhados por todos os seres humanos. O termo “culturas”
refere-se às variações concretas de tais atributos em incontáveis
contextos históricos e geográficos. Cultura, no singular, também
pode ser usada na descrição de uma forma única da experiência
humana, como na expressão “cultura Yanomami”. Assim, o mesmo

9
substantivo pode expressar um universal e os seus particulares,
aspectos comuns a todos os seres humanos, assim como
experiências vivenciadas por apenas uma parte da humanidade. Sob
o guarda-chuva de um único atributo humano (cultura), as diferentes
culturas precisam ser compreendidas em sua pluralidade e em sua
capacidade de comunicar-se entre si. Cultura existe apenas através
de culturas. Cultura(s) pode(m), portanto, ser associada(s) a
entidades universais, particulares ou mistas.

Ribeiro trabalha com a noção de particularismos e universalismos


para problematizar a noção de diversidade cultural – tributária da noção de
cultura – como forma de chegar a uma explicação do que seria hoje o mais
próximo de uma cultura global, ou seja, fluxos culturais atravessados por e que
atravessam diversas culturas em um processo de construção mais do que de
imposição cultural. O imperialismo cultural norte-americano, para o qual a
alguns a palavra globalização é um mero eufemismo, é um particularismo local
universalizado através de efeitos de poder. Tais efeitos são conseguidos por
meio da hegemonia da indústria cultural norte-americana, aliada ao alcance de
sua hegemonia política, econômica e militar.
A globalização da cultura norte-americana seria a forma mais perfeita
de soft power de que falam os teóricos da Teoria das Relações Internacionais.
Ao mesmo tempo, apresenta-se como um paradoxo, especialmente se
enquadramos a cultura estadunidense no conceito de particularismo local de
que nos fala Ribeiro (ibdem:8):
Particularismos locais são o conjunto de práticas e discursos
mantidos por certas pessoas em uma dada localidade, de tal
maneira que eles parecem ser social e espacialmente delimitados.
Em virtude de seu forte apego à originalidade e à autenticidade, os
particularismos locais parecem ser idiossincráticos. Tal tipo de
particularismo é relevante especialmente quando se associa à
crença de que se refere a expressões e modos de vida únicos a um
certo povo. Assim, ele é imediatamente relacionado a diferenças e
diversidades culturais. Oferece um forte sentido de coesão, de
unidade e de identidade, sendo uma poderosa fonte para a
construção de coletividades.

As “expressões e modos de vida únicos” ao povo norte-americano


acabaram por transformar-se, pelo menos essa parece ser a lógica da
globalização a partir da perspectiva da cultura, em expressões e modos de vida
quase universalmente adotados. Das formas de alimentação (fast food),
passando pela forma de vestir (street wear), passando pela forma de expressar
sentimentos e concepções estéticas (formas musicais como rock, blues, jazz,

10
country) e modos de vida (cinema), aspectos particulares da vida norte-
americana deixaram de ser particulares e tornaram-se amplamente difundidos.
Podem não ser universais – já que imensas regiões do globo resistem a elas –
mas estão mais próximas disso do que qualquer outro particularismo local. O
próprio Ribeiro (ibdem) condensa esse aparente paradoxo:

Ainda que os particularismos locais sejam meios simbólicos à


disposição das populações locais, também podem disseminar-se
para outras pessoas. Isso é especialmente verdade em uma era de
globalização caracterizada pela existência de diversos fluxos
desterritorializados de bens, informações e pessoas. Porém, nem
todos os particularismos fluem com a mesma intensidade e
visibilidade.

Ou seja, apenas os particularismos que têm a seu dispor uma rede


de comunicações tecnologicamente avançada, ao lado de um poder político,
econômico e militar capaz de dar sustentação – ao mesmo tempo em que o
particularismo sustenta de volta tal poder – às investidas em direção à
universalização de tais particularismos. É o que a globalização estaria
permitindo hoje em quase todos os aspectos da vida cotidiana3.

Mato (2005) oferece uma visão integrada de cultura, na qual põe em


relevo os aspectos simbólicos de todas as práticas humanas. Essas práticas
acabam por criar identidades que se fragmentam em muitas e sedimentam-se
como próprias a determinadas comunidades. O mal estar da globalização é a
falta de identificação dos sujeitos – tanto os produtores quanto os
consumidores – com comunidades identitárias identificáveis e delimitadas. No
caso dos produtores culturais, Canclini (2003:25) escreve:

Na época do imperialismo, podia-se experimentar a síndrome de


Davi ante Golias, mesmo sabendo que o Golias político estava, em
parte, na capital do próprio país e, em parte, em Washington ou em
Londres; o Golias da comunicação em Hollywood, e assim por
diante. Hoje, cada um desses gigantes se desdobra em trinta
cenários, com ágil flexibilidade para se mover de um país para o
outro, de uma cultura a muitas, pelas redes de um mercado
polimorfo.

3
Ribeiro trabalha ainda a noção de particularismos translocais – aqueles que se proliferam por meio dos fluxos de
informação, de pessoas e de serviços – e os particularismos cosmopolitas, capazes de sintetizar os particularismos
anteriores em uma arena na qual a tolerância e a convivência formam o cadinho no qual uma cultura permeada ao
mesmo tempo por muitas outras se desenvolve.

11
Essas redes enfraquecem as identidades locais ao ponto de novas
identidades serem forjadas tendo como base as anteriores que, ao mesmo
tempo, tornam-se irreconhecíveis quando reelaboradas por meio dos
processos globais. Em tempos de globalização, as identidades podem ser
construídas por meio de percursos tão distintos quanto inusitados. Canclini
(1989) propõe pensar tais percursos por meio do conceito de hibridização. O
autor (1997: 111), defendendo-se das críticas recebidas, afirma que o conceito
de culturas híbridas tem maior capacidade de

abarcar diversas mezclas interculturales que con el de mestizage,


limitado a las que ocurren entre razas, o sincretismo, fórmula referida
casi siempre a funciones religiosas o de movimientos simbólicos
tradicionales. Pensé que necesitábamos uma palabra más versátil
para dar cuenta tanto de esas mezclas ‘clásicas” como de los
entrelazamientos entre lo tradicional y lo moderno, y entre lo culto, lo
popular y lo masivo. Una característica de nuestro siglo, que
complica la búsqueda de un concepto más incluyente, es que todas
esas clases de fusión multicultural se entremezclan y se potencian
entre si.

O que Canclini comenta põe em relevo a dificuldade em sair do


conceito de cultura ao de identidade em uma era de aceleradas mudanças e
crescentes incertezas que influenciam diretamente na percepção que as
comunidades – sejam elas locais, regionais, nacionais ou transnacionais – têm
em estabelecer um parâmetro minimamente aceitável e incontroverso a
respeito de suas marcas identitárias para além daquilo que dá sentido de
unidade e pertencimento a um povo, conforme Castells (2000). Daniel Mato
(1994) caminha na direção de conceituar identidade cultural como
representações socialmente construídas, construção esta operada por diversos
atores que se situam nos planos local, nacional e mesmo global.

Como produtos de ações sociais e não de fenômenos sociais, as


identidades são construídas a partir de lutas travadas entre diversos atores
sociais e por isso sustenta que não pode existir nem identidade única nem
homogeneidade mesmo dentro de uma sociedade geográfica e culturalmente
delimitada. Daí a dificuldade em afirmar que existe, por conseqüência, tanto
uma cultura quanto uma identidade globais no atual estágio da globalização.
Talvez atingi-las seja uma impossibilidade prática por mais que a tecnologia
sugira que isso seria possível.

12
Smith (1990:178) retoma a discussão sobre a possibilidade de uma
cultura e de uma identidade globais como uma invenção feita possível apenas
no plano discursivo. O autor sustenta que

there can in practice be no such thing as ‘culture’, only specific,


historical cultures possessing strong emotional connotations for those
who share in the particular culture. It is, of course, possible to ‘invent’,
even manufacture, traditions as commodities to serve particular class
or ethnic interests. But they will only survive and flourish as part of
the repertoire of national culture, if they can be made continuous with
a much longer past that members of that community presume to
constitute their ‘heritage’. In other words, ‘grafting’ extraneous
elements must always be a delicate operation; the new traditions
must evoke a popular if they are to survive, and that means to
vernacular motifs and styles.

É possível argumentar, então, que a cultura global é essa ‘invenção’


possível, na verdade fabricada, produzida como a mercadoria que realmente é,
com as características de toda mercadoria tecnológica no mundo moderno:
instantaneidade, tendência à rápida obsolescência e conseqüente substituição
por outra de acordo com as conveniências do “fabricante”. Para que elementos
dessa mercadoria sejam incorporados às culturas locais, é preciso haver um
processo de hibridização e ressignificação operado por meio do discurso de
forma a fazer com que as comunidades locais encontrem elos entre o global,
que é novo e estranho às suas realidades, e a cultura local, nem sempre
permeável a novidades que vêm de fora.

A força da “cultura global” reside no fato de que existe todo um


aparato midiático-discursivo capaz de penetrar nas mais resistentes
comunidades e infiltrar novos elementos de forma massiva e repetitiva no
cotidiano das pessoas até o ponto em que o global pareça tão natural a essas
pessoas quanto o local. Isso não significa, porém, que o global substitua por
completo o local, ou o torne totalmente obsoleto a ponto de as pessoas
desejarem substituí-lo pela novidade global, elaborando uma nova identidade
cultural.

Smith (idbem: 179) esclarece o que ele tem em mente quando fala
em identidade:

the concept of ‘identity’ is here used, not of a common denominator


of patterns of life and activity, much less some average, but rather of
the subjective feelings and valuations of any population which

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possesses common experiences and one or more shared cultural
characteristics (usually customs, language and religion). These
feelings and values refer to three components of their shared
experiences: 1) a sense of continuity between the experiences of
succeeding generations of the unity of population; 2) shared
memories of specific events and personages which have been
turning-points of a collective history; and 3) a sense of common
destiny on the part of collectivity sharing those experiences

O autor afirma ainda que a cultura global é uma cultura sem


memória, que não se relaciona com qualquer identidade histórica. Por isso, a
cultura global é “painfully put together, artificially, out of the many existing folk
and national identities into which humanity has been so long divided. There are
no ‘world memories’ that can be used to unite humanity; the most global
experience to date – colonialism and World Wars – can only serve to remind us
of our historic cleavages” (Ibdem: p.180).

O local e o global como arenas de conflito na era da cultura globalizada

As tensões entre culturas e identidades locais e globais constituem


hoje um notável ponto de conflito permeando as relações entre as diversas
sociedades. O principal ponto de alimentação desse conflito é a
homogeneização que impõe a substituição de manifestações locais por
manifestações culturais globais. Canclini (2003:22) coloca o problema nos
seguintes termos:
A globalização, que acirra a concorrência internacional e
desestrutura a produção cultural endógena, favorece a expansão de
indústrias culturais com capacidade de homogeneizar e ao mesmo
tempo contemplar de forma articulada as diversidades setoriais e
regionais. Destrói ou enfraquece os produtores pouco eficientes e
concede às culturas periféricas a possibilidade de se encapsularem
em suas tradições locais. Em uns poucos casos, dá a essas culturas
a possibilidade de estilizar-se e difundir sua música, suas festas e
sua gastronomia por meio de empresas transnacionais.

Podemos citar como exemplo desse processo de difusão dentro dos


parâmetros permitidos pelos processos de industrialização cultural global o que
acontece com a música árabe, a qual, a partir dos anos 90, foi estilizada e
reelaborada pela indústria fonográfica e ganhou as pistas de dança do mundo
inteiro, com a criação de uma música híbrida: cantada em árabe, com temas
universais como o amor, com sonoridade básica identificada com as músicas

14
tradicionais árabes, mas com a junção de elementos sonoros ocidentais como
a batida do hip-hop e de outros ritmos dançantes que dominam as boates do
mundo.
Na esfera da gastronomia, o exotismo de cozinhas orientais foi
matizado para que o paladar ocidental se acostumasse a iguarias tailandesas,
por exemplo, tendo a comida popular chinesa chegado ao ponto de constituir-
se em um novo padrão de fast-food com pratos universalmente consumidos
como o yakisoba, o shop suei e os rolinhos primavera. Assim, o local se
beneficia do global especialmente quando consegue produzir uma troca que
apara as arestas mais excludentes de suas características para que possa
haver uma adequação bidirecional: do local em direção ao global e do global
em direção ao local.
Mesmo com essa possibilidade, conflitos são verificados com
freqüência. Barnet e Cavanagh (1997) afirmam que os satélites, a música, o
cinema e outras formas de difusão da cultura dominante são como as “artérias”
através das quais os conglomerados da indústria do entretenimento
homogeneízam os gostos para a formação de uma cultura global. Eles
sustentam que o impacto dessa homogeneização nas até então ricas culturas
locais tem sido imenso e as conseqüências disso começam a emergir na forma
de conflitos culturais que se refletem nos nacionalismos culturais e nas políticas
de valorização do local: “musicians, social critics, and politicians in poor
countries of Asia, Africa, and Latin America worry that the massive penetration
of transnational sound will not only foreclose employment opportunities for local
artists but will doom the traditional music for their local culture” (ibdem: p.74).
Indubitavelmente, a música pop penetra em praticamente todas as
comunidades do mundo, mesmo as mais isoladas. Não é possível afirmar,
porém, que apenas a música local sofre a influência da música pop – e de
forma negativa – já que para ser aceita, uma expressão cultural alheia a um
determinado grupo deve conter elementos que possibilitem uma identificação
por mínima que seja. Assim, a música pop, assim como a cultura pop em si
(cultura da globalização) deve constantemente reelaborar-se, incorporando
elementos locais e transformando-se em algo menos “alheio” às tais
audiências.

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Da mesma forma, artistas locais reelaboram o global de acordo com
as suas perspectivas e as de seu público mais próximo. É o que acontece, por
exemplo, com o vasto mercado das “versões”, muitas vezes estilizadas em
ritmos como forró, folk, polca, tango, samba, etc. Nesses casos, muda-se a
letra, altera-se o ritmo, e mantém-se apenas uma semelhança com a melodia
original que circula ao redor do mundo. Quando ouvidas por estrangeiros de
passagem por essas comunidades, tais melodias são imediatamente
reconhecidas e as diferenças incorporadas localmente são objeto não apenas
de curiosidade mas de genuíno interesse comercial para esses viajantes, que
adquirem cópias e as levam para outros lugares.
Militantes anti-globalização sugerem que a única forma de reverter a
globalização e seus efeitos, inclusive no campo da cultura, seria um retorno ao
local, à valorização das formas tradicionais de economia e expressões
culturais. Eles não indicam, porém, como esse retorno deveria ser feito. Essa é,
aliás, uma das maiores falhas das críticas à globalização: indica-se o que se
deve fazer, mas não como fazer. De qualquer forma, o retorno ao local não
garante imunização contra a fragmentação cultural.
Existem comunidades locais, por exemplo, que são criadas
artificialmente, como as cidades planejadas construídas a partir do zero e
povoadas com deslocamento de diferentes populações originárias de diferentes
lugares. Como, nesses casos, a cultura local é criada e consolidada?
Possivelmente é a história comum o elemento de ligação entre povo e cultura,
conforme (1990) sugere, e esse elemento não se constrói e solidifica em um
curto lapso de tempo.
Outro problema com relação ao local é saber o que, exatamente,
queremos dizer com “local”. Devemos lembrar que os limites geográficos são
arbitrários e os mapas são artificialidades de conveniência. Populações
inseridas dentro de uma área geográfica, como um estado federado dentro de
uma república nos moldes da brasileira, podem ser consideradas “locais”,
dotadas assim de uma cultura “local” para efeitos de cartografia, mas que no
fundo a única coisa que as une é uma linha traçada sobre um papel e que se
traduz em uma realidade política, não necessariamente cultural. Nesses casos,
a fragilidade do elo “local” não pode ser explicada pela influência maléfica da
globalização, como querem seus críticos.

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Acreditamos que não seja apenas a cultura globalizada o que
enfraquece a cultura local, mas a interação entre várias culturas locais que se
entrecruzam em uma transregião e dão origem a culturas mais ou menos
fortes, mais ou menos permeáveis aos fluxos globais. Transregião aqui é
entendida como o lugar de intersecção entre vários locais, onde elementos
culturais desses vários locais transitam com mais facilidade e velocidade do
que a própria cultura global. As trocas são mais fluidas por ser um local de
fronteira. Esses pontos em que se articulam diversos “locais” produzem
elementos culturais que se diluem mais facilmente nos fluxos que chegam até
eles. A fronteira é ponto de constante reelaboração e por isso a cultura dita
local não consegue, no curto prazo, se estabelecer ao ponto de fazer emergir
conflitos com outras formas de cultura, mesmo a globalizada.
Na transregião os fluxos da cultura globalizada se diluem mais
facilmente na realidade imediata do que no “local”, entendido como lugar de
comunidades tradicionais e consolidadas. A transregião é, assim, o lugar
formado por fluxos migratórios e culturais em constante transformação. As
múltiplas influências que incidem sobre ela em curtos espaços de tempo
deixam a sensação de que se trata de um lugar sempre em expansão, inclusive
cultural, por isso mesmo aberto a influências até mesmo contraditórias mas que
se encaixam de alguma forma na realidade das pessoas a tal ponto que as
contradições não são percebidas. Contradições do tipo em que um
descendente indígena, ou um filho de aborígenes australianos ou mesmo
camponês nos confins da Ásia encarnam a figura de Michael Jackson com a
naturalidade que encarnariam os personagens e mitos de suas comunidades
de origem.
Nas comunidades “locais” ou tradicionais, o sentido de identidade
cultural é mais perceptível. Nelas, o risco da globalização está nos dois
sentidos: do local para o global e do global para o local. Tanto um pode
influenciar quanto ser influenciado pelo outro. E, de fato, muito das culturas
locais, embora reelaborado e muitas vezes fetichizado, acaba por ser absorvido
pela indústria do entretenimento globalizada e também se globaliza, como a
comida chinesa e a música árabe citadas anteriormente. Na transregião, a
aceitação do global muitas vezes é uma via de mão única por não se encontrar

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ali, suficientemente desenvolvida, algum tipo de manifestação cultural que
ofereça resistência ao que vem de fora.
Acreditamos que é a resistência da tradição o que faz com que não
haja algo parecido com uma cultura global, universalizada, homogênea e
suficientemente forte para suplantar as culturas locais. O que existe são
símbolos globais, reconhecidos em qualquer parte, mas que ainda não
substituem os locais. Para que a completa substituição das culturas por uma
cultura global ocorra seria necessário o local, em toda parte, transformar-se em
transregional. Neste caso, estaríamos entrando em uma hipotética e
improvável era de migração total, de reconfiguração total do espaço por meio
do deslocamento completo de seus ocupantes para outros espaços, em uma
espiral sempre em movimento. Produzir-se-ia, desta forma, um espaço global
em constante criação em cada mínimo ambiente, dos bairros aos estados-
nação.
O que se vê, ao contrário, é a construção e a manutenção de
comunidades culturais cada vez mais fortemente ancorada na história comum,
que tem impedido ou dificultado a criação de transregiões totalmente novas e
desenraizadas de comunidades locais. Em suma, o local está se reforçando
cada vez mais. Mesmo os lugares de intersecção, permeáveis às
manifestações culturais globais em maior grau do que as comunidades
tradicionais, tendem a se consolidar como um “local” algum dia. Se é a história,
a tradição que dá coesão a uma cultura, nada impede que as transregiões
adquiram estabilidade suficiente para, algum dia, reconhecerem-se como
portadoras de uma história e, conseqüentemente, uma identidade que as
caracterize em contraposição ao outro positiva e não negativamente (no
sentido de que só se definem em relação ao outro negando serem igual ao
outro em questão).
Quando isso acontecer, e a transregião transformar-se em um “local”,
pode acontecer de essa nova cultura local ser tão identificada com o global que
não haja conflito nos moldes dos vivenciados pelos atuais locais. Pode ser
também que os conflitos se instalem da mesma forma, com a mesma
intensidade e com as mesmas características dos atuais. Então, mais uma vez,
não seria possível falar em cultura global.

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Considerações finais

Apesar da penetração da cultura espalhada pela globalização, ainda


não é possível falar em uma cultura global. O fato de, em uma cidade no
interior de um estado nordestino haver um clone de Michael Jackson atesta,
principalmente, o fato de que a cultura local é permeável ao global, mas não
que o global esteja em vias de substituir o local. Concordamos com Smith
(1990: p.188), para quem

we are still far from even mapping out the kind of global culture and
cosmopolitan ideal that can truly supersede a world of nations, each
cultivating its distinctive historical character and rediscovering its
national myths, memories and symbols in past golden ages and
sacred landscapes. A world of competing cultures, see to improve
their comparative status rans and enlarge their cultural resources,
affords little basis for global projects, despite the technical and
linguist infrastructural possibilities

Apesar da base tecnológica, da rapidez das trocas comerciais e da


fluidez com que elementos da cultura hegemônica cruzam o globo, o local
ainda resiste tanto em aspectos econômicos quanto culturais. Conforme
discutimos neste trabalho, o que chamamos de globalização é um movimento
que atinge parcelas, não toda a população mundial. Mesmo em países onde tal
processo é mais forte e difuso, apenas partes dos territórios estão integrados
aos fluxos globais. As outras partes tomam conhecimento deles, mas não se
pautam por eles. Diferentemente do que ocorre em lugares como São Paulo,
Ciudad de México, Buenos Aires ou Santiago.
Em pequenas comunidades tradicionais, e mesmo nas periferias das
grandes metrópoles cosmopolitas, a cultura local se impõe por ser tangível, por
estar diretamente relacionada e identificada com as práticas cotidianas. O
global coloca-se como mais uma forma de cultura à disposição das pessoas,
não como a forma de cultura, a única disponível porque suplantou as tradições
locais como se erradicasse todas as influências ancestrais.
A própria cultura da era da globalização não deve ser
encarada como algo a ser simplesmente combatido, de forma absoluta,
porque, como vimos, há um movimento de mão dupla nas relações
culturais. É isso o que pressupõe o termo “troca”. Nas trocas culturais,
global e local influenciam-se mutuamente. Isso vale para a esfera da

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cultura, mas também para a da economia, especialmente porque a
economia, muitas vezes, é culturalmente determinada. Não é à toa que a
rede de fastfood Mc Donalds vende hamburguer vegetariano na Índia e
inclui salmão naquele vendido no Chile, assim como churrasco no
comercializado nos países platinos.
Conforme procuramos mostrar, a própria globalização é algo
controverso: das origens ao conceito. Os autores com os quais
trabalhamos são enfáticos ao afirmar que o processo de encolhimento e
homogeneização do mundo é criação humana, portanto, deve ser
desfetichizado para que possa ser analisado sob a perspectiva de
criação humana e, como tal, passível de falhas e de acertos. Mostramos
ainda que um dos maiores problemas das críticas feitas a tal processo é
que se indica o que deve ser feito para parar e mesmo reverter a
globalização – o retorno ao local – mas não se indica o caminho que
deve ser percorrido para que tal retorno aconteça. Identifica-se o ponto
de chegada sem se oferecer um mapa.
De qualquer forma, nada garante que o retorno ao local faça
com que os efeitos da globalização sejam revertidos, nem que se deseja
que todos esses efeitos sejam revertidos. Por ser uma via de mão dupla,
como já dito, é possível que os dois lados dessa troca global-local se
beneficiem dela e que as comunidades de alguma forma atingidas pela
globalização sintam-se mais beneficiadas do que prejudicadas por ela.
Em outras palavras, além de desfetichizar, é preciso matizar a natureza
da globalização e de seus efeitos. Nem é a globalização algo
completamente bom, como querem nos fazer crer seus defensores, nem
completamente mau, como afirmam seus detratores, porque assim é a
natureza própria de seu agente: o homem.

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