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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

EDISON RIUITIRO OYAMA

LENIN, EDUCAÇÃO E REVOLUÇÃO NA CONSTRUÇÃO DA


REPÚBLICA DOS SOVIETES

NITERÓI
2010
2

EDISON RIUITIRO OYAMA

LENIN, EDUCAÇÃO E REVOLUÇÃO NA CONSTRUÇÃO DA


REPÚBLICA DOS SOVIETES

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para obtenção
do grau de Doutor em Educação.

Orientador: Prof. Dr. JOSÉ DOS SANTOS RODRIGUES

Niterói
2010
3

SUMÁRIO

Página

DEDICATÓRIA .............................................................................................. 1

AGRADECIMENTOS .................................................................................... 2

RESUMO ....................................................................................................... 3

INTRODUÇÃO: PROBLEMATIZAÇÃO E ASPECTOS METODOLÓGICOS 5


Problematização: considerações preliminares .......................................... 5
Revisão da bibliografia ........................................................................ 11
Questão de pesquisa e hipótese de trabalho ...................................... 20
Objetivos e justificativas ...................................................................... 21
Aspectos metodológicos ............................................................................ 22
Caracterização da pesquisa, fontes e limitações ................................ 22
Critérios de organização e análise das fontes de informação ............. 23

1 OUTUBRO DE 1917: ELEMENTOS HISTÓRICOS, POLÍTICOS E


SOCIOLÓGICOS ........................................................................................ 26
1.1 Elementos históricos ............................................................................ 26
1.1.1 Apontamentos sobre a história da revolução russa ..................... 26
1.1.2 A consolidação da revolução ....................................................... 33
1.1.3 O comunismo de guerra .............................................................. 40
1.1.4 A Nova Política Econômica e a adoção do
modelo de Partido Único ............................................................. 44
1.2 Elementos políticos .............................................................................. 47
1.2.1 O papel e a importância de Lenin para a
Revolução Bolchevique de Outubro de 1917 .............................. 47
1.2.2 O pensamento político de Lenin .................................................. 52
1.2.3 Socialismo, comunismo, ditadura do proletariado,
revolução em Lenin ..................................................................... 55
1.2.4 A classe trabalhadora .................................................................. 59
4

1.3 Elementos sociológicos ....................................................................... 61


1.3.1 A Rússia imperial ........................................................................ 61
1.3.2 Questões referentes à burguesia ............................................... 64
1.3.3 Sobre a educação czarista/burguesa ......................................... 67

2 LENIN E A EDUCAÇÃO ANTES DE OUTUBRO DE 1917 ........................ 70


2.1 Lenin e a educação: aspectos biográficos ........................................... 70
2.2 Elementos subjacentes à investigação do tema Lenin e a educação:
política, luta de classes, revolução ...................................................... 73
2.3 Lenin e a educação antes de Outubro de 1917 ................................... 77
2.3.1 As disputas com os populistas .................................................... 78
2.3.2 A educação política do proletariado e as
críticas à educação czarista ........................................................ 80
2.3.3 Educação revolucionária antes da revolução? ............................ 90

3 LENIN E A EDUCAÇÃO APÓS OUTUBRO DE 1917 ................................ 93


3.1 A luta contra o analfabetismo .............................................................. 94
3.2 O programa do Partido de 1919 para a educação ............................... 99
3.3 “Confirmação” da hipótese de trabalho ...............................................101
3.4 A dimensão política da educação leninista ..........................................102
3.4.1 Acabar com o poder da burguesia...............................................102
3.4.2 Implantar as bases para construção da sociedade
socialista / comunista ..................................................................106
3.5 A dimensão econômica da educação leninista ....................................108
3.5.1 A politecnia: tarefas imediatas e mediatas ..................................108

4 LENIN E A EDUCAÇÃO NA CONSTRUÇÃO DA REPÚBLICA DOS


SOVIETES E DA SOCIEDADE SOCIALISTA ...........................................115
4.1 Outubro de 1917: breve balanço .........................................................115
4.2 O problema da construção da sociedade socialista ............................119
4.3 Lenin e a educação: “conclusões” pontuais ........................................127
4.3.1 “Interlocução” com a revisão da bibliografia ...............................127
4.3.2 Para além da hipótese de trabalho..............................................128
4.3.3 Educação e política em Lenin .....................................................130
4.3.4 A politecnia ..................................................................................132
4.3.5 Contrarrevolução burocrática, carência,
escassez e educação ..................................................................133
5

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................138

REFERÊNCIAS .............................................................................................143

ANEXO I ........................................................................................................153

ANEXO II .......................................................................................................156
6

Aos da classe trabalhadora que lutaram pela


construção da República dos Sovietes.
7

AGRADECIMENTOS

Ao José dos Santos Rodrigues, pela competência,


rigor, seriedade e amizade.
Aos Membros das Bancas de Qualificação e Defesa:
Dermeval Saviani, Eunice Trein, Kátia Lima, Roberto Leher,
Ronaldo Rosas Reis e Virgínia Fontes.
A todos do Campo Trabalho e Educação e do
Programa de Pós Graduação da FEUFF.
Às Funcionárias da Secretaria de Pós-Graduação da
FEUFF.
Aos Colegas do Centro de Educação da UFRR.
A todos os Profissionais e Amigos da Creche UFF e do
Colégio Universitário Geraldo Reis.
Ao grupo de difusão da cultura afro-brasileira Gingas, o
qual desenvolve um belo trabalho educativo junto à
comunidade do Bairro São Domingos, em Niterói.
A todos do Intervenção Comunista.
Aos meus familiares.
À Maria Helena, Liamar e André Luiz.
Com muito carinho e gratidão, a todos que, direta ou
indiretamente, contribuíram para a realização deste trabalho.
8

RESUMO
OYAMA, Edison Riuitiro. Lenin, educação e revolução na construção da
República dos Sovietes. Orientador: José dos Santos Rodrigues. Niterói-RJ/UFF,
26/01/2010. Tese (Doutorado em Educação), 165 páginas. Campo de Confluência:
Trabalho e educação; Linha de Pesquisa: O mundo do trabalho e a formação
humana.
Nosso propósito com a presente tese foi investigar o tema educação escolar
e revolução social num contexto histórico determinado, qual seja, o período
imediatamente posterior à eclosão da Revolução Russa de Outubro de 1917,
examinando quais eram os objetivos e as ações de Vladimir Ilich Ulianov (Lenin) no
campo da educação. Para tanto, empreendemos uma pesquisa de natureza
bibliográfica, sendo que as fontes empíricas compulsadas foram os textos e obras
de Lenin referentes à educação. Além destas, também recorremos a informações
pertinentes à história da revolução russa, ao período do “comunismo de guerra” e da
Nova Política Econômica, bem como a biografias e estudos de especialistas em
Lenin. Por sua vez, o conteúdo do trabalho trata: dos aspectos natureza histórica,
política e sociológica relacionados ao Outubro de 1917 e da análise propriamente
dita do tema Lenin e a educação – antes e depois de 1917. Mas, se em seu
delineamento inicial, o estudo se restringia aos anos de 1917-1924, com o
desenvolvimento da pesquisa percebemos que excluir uma análise referente ao
período anterior a 1917 comprometeria o entendimento mais abrangente do que
significou a educação para Lenin. Desse modo, no período anterior à insurreição de
1917, investigamos a questão da educação política das massas e as disputas com
os “populistas” russos. Após o Outubro de 1917, pesquisamos sobre os esforços da
República dos Sovietes na erradicação do analfabetismo; o Programa do Partido
Comunista Russo de 1919 para a educação e a politecnia. Ao final, deduzimos que:
a educação assumiu grande importância e papel de destaque no que se refere à
educação política das massas e na preparação da revolução bolchevique; no
processo de consolidação da revolução; de (re) construção econômica e
implantação das bases para construção da futura sociedade comunista. Concluímos
também que: a educação e a educação escolar participam necessariamente da luta
de classes em vários níveis e dimensões da realidade; a derrubada do poder político
na Rússia foi uma premissa para as transformações revolucionárias ocorridas
posteriormente no campo da educação soviética; educação e política são
9

indissociáveis. Finalmente, declaramos que todos que se proponham a pensar em


assuntos como a revolução social ou o problema da construção do socialismo, não
podem deixar de investigar, refletir, prever e planejar o papel e a importância que a
educação e a educação escolar têm a desempenhar nesses processos históricos.

Palavras-chave: Lenin e a educação; revolução russa e educação; educação


e revolução
10

INTRODUÇÃO: PROBLEMATIZAÇÃO E ASPECTOS METODOLÓGICOS


Problematização: considerações preliminares
Um tema importante e que é discutido de forma recorrente no campo
educacional se refere às relações que se estabelecem entre a
mudança/transformação social e a escola. Em outras palavras, é muito comum haver
dúvidas, reflexões, afirmações categóricas, relativas à questão de que a educação
escolar é ou poderia ser um instrumento tanto de mudança quanto de transformação
social. Mas, independentemente das concepções sobre o que se entende por mudar
ou transformar, para nós o essencial é saber até onde se pretende chegar com
ambas. Ou seja, a mudança e a transformação se restringem aos limites da ordem
burguesa ou se referem à superação do modo de produção capitalista?
Assim, nosso objetivo foi tratar do tema revolução social e educação escolar
e o que nos moveu, fundamentalmente, foi a reflexão a respeito da eclosão da
revolução socialista como um fato concreto e quais relações o processo
revolucionário estabelece com a educação escolarizada.
Sobre a revolução social, recorremos ao Manifesto do Partido Comunista1
(MARX; ENGELS, 2007b), enfatizando dois elementos essenciais da parte II desta
obra (item Proletários e comunistas): a abolição tanto do poder econômico da
burguesia (mediante a extinção da propriedade privada dos meios de produção e
consequentemente da apropriação privada da riqueza produzida social e
coletivamente)2, quanto do seu poder político, por intermédio da derrubada do
Estado burguês.
No tocante à educação escolar, o princípio geral que a fundamenta é a
concepção segundo a qual a produção material da existência do ser humano
condiciona todas as outras esferas da realidade. Com base nessa premissa,
entendemos que a humanidade instaura modos distintos de sociabilidade que
tendem a ser fixados “[...] em instituições determinadas (família, condições de
trabalho, relações políticas, instituições religiosas, tipos de educação, formas de
arte, [...])” (CHAUÍ, 2001, p.23).

1
Segundo Coggiola (2007, p.9), a primeira edição do Manifesto ocorreu em fins de fevereiro / início
de março de 1848, em Londres. Para este trabalho, nós consultamos a edição de março de 1998 da
Boitempo Editorial, atualmente em sua 5ª reimpressão.
2
Marx e Engels (2007a, p.52) escreveram no Manifesto: “[...] os comunistas podem resumir sua teoria
numa única expressão: supressão da propriedade privada.”
11

Todavia, enquanto a educação se refere a um processo social de maior


amplitude, cujo objetivo é o de “[...] produzir, direta e intencionalmente, em cada
indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo
conjunto dos homens [...]” (Saviani, 2003b, p.13), a escola consubstancia o modo
pelo qual uma instituição em particular assumiu a forma principal e dominante do
processo educativo (Idem, ibidem, p. 7-8).
E à medida que se sucedem formas de organização social, a cada uma
delas correspondem tipos de educação, educação escolar e teoria educativa. No
caso do modo de produção capitalista, existiram modelos de educação
consentâneos às formas pré-capitalistas, ao artesanato, às manufaturas, aos
monopólios etc. (BOWLES; GINTIS, 1985). Isto é, existe uma correspondência
estrutural entre o sistema produtivo e o sistema educacional, o que não quer dizer
necessariamente que a relação entre ambos seja mecânica, unidirecional e linear,
mas mediada.
A nosso ver a educação escolar apresenta a tendência a reproduzir as
relações dominantes, sob o ponto de vista econômico e político, de acordo com o
raciocínio segundo o qual

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias


dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade
é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua
disposição os meios da produção material dispõe também dos meios da
produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente
ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da
3
produção espiritual. (MARX; ENGELS, 2007a , p.47, grifos dos autores).

Desse modo, uma das formas pelas quais se mantém o poder político e
econômico é por meio da educação, dado seu caráter de mútua influência e relação
com os processos econômicos e políticos e sua vinculação com a luta de classes.
Em acréscimo às análises de Marx, Engels e Lenin, outros também já haviam
constatado: a educação na sociedade burguesa é uma educação burguesa. Em
outras palavras, “Enquanto existir uma sociedade de classes, a escola
inevitavelmente será uma escola de classes [...].” (SNYDERS, s.d., p.32).
Por conseguinte, é preciso reconhecer que o modo de produção capitalista
impõe determinações de natureza econômica e política à escola. Nesse sentido, é

3
Considerada uma obra inacabada, A ideologia alemã foi escrita durante os anos de 1845-1846 e
submetida para publicação. Contudo, diante da recusa para publicação do manuscrito, o texto foi
deixado de lado, sendo publicadas partes do texto original apenas na década de 20-30 do século XX,
por David Riazanov (ENDERLE, 2007).
12

forçoso admitir que, mesmo consideradas outras mediações, a escola se torna um


instrumento de classe, na medida em que os “[...] processos educacionais e os
processos sociais mais abrangentes de reprodução estão intimamente ligados.”
(MÉSZÁROS, 2005, p.25).
Contudo, a submissão da educação escolar aos imperativos do capital seria
absoluta, ou ela poderia encerrar elementos revolucionários? Para Ponce (2001,
p.162-163), a educação e a revolução andam juntas, na medida em que a primeira
“[...] tem sempre estado a serviço das classes dominantes, até o momento em que
outra classe revolucionária consegue desalojá-las do poder e impor à sociedade a
sua própria educação”. Em outros termos, significa que à medida que se alteram os
domínios de classe, modifica-se também o sistema educacional, pois quando uma
nova classe dominante ascende ao poder, ascende um novo tipo de educação.
Ademais, “Nenhuma reforma pedagógica fundamental pode impor-se antes do
triunfo da classe revolucionária que a reclama [...]” (Idem, Ibidem, p.169, grifos do
autor).
Mas a dificuldade em lidar com a relação entre a instrução4 e a
transformação (ou revolução) social persiste, conforme depreendemos do que
escreveu Manacorda (2006, p.304):

O problema estava no ar: qual das duas coisas é mais importante? Qual o
primeiro a ser resolvido? Exatamente em 1869, [...] Marx, falando no
Conselho Geral da I Internacional, onde este problema já surgira,
reconhecia a particular dificuldade em abordá-lo:
“Exige-se, de um lado, uma mudança das condições sociais para
criar um sistema de instrução adequado e, do outro lado, um adequado
sistema de instrução para poder mudar as condições sociais”.

De maneira diversa, a revolução social e a educação seriam elementos


conjugados e imbricados, em que ambos fazem parte de um único e mesmo
processo? Foi o que sugeriu Marx, em sua III Tese sobre Feuerbach5:

A doutrina materialista que pretende que os homens sejam


produtos das circunstâncias e da educação, e que, consequentemente,
homens transformados sejam produtos de outras circunstâncias e de uma
educação modificada, esquece que são precisamente os homens que
transformam as circunstâncias e que o próprio educador precisa ser
educado. É por isso que ela tende inevitavelmente a dividir a sociedade em
duas partes, uma das quais está acima da sociedade. A coincidência da
mudança das circunstâncias e da atividade humana ou automudança só

4
Supomos que o termo instrução pode ser tomado como sinônimo de educação escolar.
5
Nesta edição de A Ideologia Alemã, As Teses sobre Feuerbach foram publicadas como Anexo.
13

pode ser considerada e compreendida racionalmente como práxis


6
revolucionária. (MARX; ENGELS, 1989, p.94, grifo dos autores).

Outro ponto polêmico sobre o assunto relaciona-se com a existência de


concepções distintas a respeito da participação e da importância da instituição
escolar quando da ocorrência de um processo revolucionário. Dito de outra forma,
existem aqueles que atestam que a escola, por si só, não é capaz de assumir um
papel revolucionário, sendo que tudo o que se faça no seu interior nesse sentido
seria reformismo. Desse modo, o papel da educação escolar seria basicamente
instrumental, cabendo a um partido revolucionário a tarefa de fazer a revolução, para
quem a escola apenas forneceria militantes (CARVALHO, F. M. de 2005b;
CERVETTO, s.d.; INTERVENÇÃO COMUNISTA, s.d.).
Por outro lado, há aqueles que julgam que a escola desempenha um papel
de destaque na construção do socialismo e da revolução. Por exemplo, muitas
experiências autoproclamadas revolucionárias no campo da educação, algumas
delas associadas a movimentos sociais, ONGs, populações e comunidades que se
diferenciam em termos étnicos, sociais, políticos etc.7
Contudo, mesmo concordando que tais movimentos desenvolvam uma
atividade pedagógica coerente com a constituição de uma sociedade socialista, é
patente que no seu conjunto, tais propostas não lograram obter força política
suficiente para transformar radicalmente o modo de produção capitalista e tampouco
conseguiram se generalizar ou multiplicar suas experiências. Em outros termos, o
capitalismo se mantém, a despeito muitas vezes da seriedade, do denodo e da
dedicação das pessoas envolvidas com tais movimentos, os quais, em última
instância, não fizeram a revolução e portanto, não concretizaram seu objetivo de
constituição do socialismo.
Mesmo considerando a complexidade e a abrangência relativas ao tema
educação escolar e revolução e as múltiplas possibilidades de abordá-lo, optamos
inicialmente8 por empreender uma análise tanto da denominada concepção
histórico-crítica da educação (SAVIANI 2003a; 2003b), quanto das chamadas teorias

6
Na transcrição do texto nós suprimos as notas da Editora.
7
A título de exemplo, em nível de Brasil, referimo-nos ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra. No exterior, aos movimentos sociais localizados nas regiões de Chiapas e Oaxaca, no México.
8
Referimo-nos ao projeto de tese apresentado em nosso Exame de Qualificação, em agosto de 2008.
14

crítico-reprodutivistas9 (ALTHUSSER, 1980; 1999; BAUDELOT; ESTABLET, 1980;


BOURDIEU; PASSERON, 1982; BOWLES; GINTIS, 1985).
Desse modo, com relação à concepção histórico-crítica da educação,
averiguamos a proposta de Saviani (2003a, p.65-66; p.76), no que se refere à
implantação de uma suposta pedagogia revolucionária. Quanto às teorias da
reprodução, investigamos uma das possíveis limitações dessas teorias, qual seja, a
exclusão de uma análise sobre a produção, de maneira que as teorias crítico-
reprodutivistas tendem a superestimar o papel da escola na reprodução das
relações sociais, dirigindo toda a carga do problema para a instituição escolar e para
a ideologia, desconsiderando o nível da produção (CUNHA, 1979, p.99-100;
LEFEVBRE, 1977, p.230-236; PETIT, 1982, p.48-50; SNYDERS, s.d., p.86).
Dessa forma, considerando-se o político e o econômico como esferas
preponderantes do modo de produção capitalista, dois elementos se sobressaíram
de forma conjunta em relação à educação escolar – a necessidade de um estudo
sobre economia política e as perspectivas para a ação política -, pois de acordo com
Ianni (1988, p.7):

Ao analisar o capitalismo, Marx apanha os fenômenos como fenômenos


sociais totais, nos quais [se] sobressaem o econômico e o político, como
duas manifestações combinadas e mais importantes das relações entre
pessoas, grupos e classes sociais. Por isso é que a sua análise apanha
sempre as estruturas de apropriação econômica e dominação política [...].

Assim, com base nas limitações identificadas tanto na concepção histórico-


crítica da educação quanto nas teorias da reprodução, na ocasião, o problema a ser
investigado foi formulado nos seguintes termos: quais são as perspectivas
revolucionárias ligadas à educação escolar, considerando-se um estudo conjugado
sobre economia política da educação e uma teoria da revolução?
Porém, esta abordagem inicial do tema apresentou uma série de
dificuldades de natureza epistemológica. Isto é, quais são os limites e as
possibilidades impostos à teoria, em relação à apreensão, compreensão, explicação
e transformação do real? Portanto, o delineamento inicial da investigação
apresentava grande limitação quanto às suas possibilidades explicativas para a
questão de pesquisa proposta.
9
Assim como Manacorda (2006, p.313), também achamos que as etiquetas repugnam, mas pela
necessidade de tornar a comunicação mais ágil, por vezes se torna difícil não empregá-las. Desse
modo, a expressão crítico-reprodutivista foi tomada de Saviani (2003a; 2003b), o qual se refere
genericamente aos estudos vinculados à teoria dos aparelhos ideológicos de Estado, à teoria da
escola dualista e à teoria do sistema de ensino como violência simbólica (SAVIANI, 2003a, p.15).
15

Outro percalço identificado foi que, pela própria natureza do processo


revolucionário, o problema a ser investigado não poderia limitar-se exclusivamente à
instituição escola, na medida em que a revolução ultrapassa e extrapola o nível das
relações escolares. Dessa forma, seria preciso identificar as articulações, as
mediações e as múltiplas determinações existentes entre a dinâmica da história, a
luta de classes, a emergência e atuação de agentes e organizações políticas
(partidos, líderes, dirigentes) e a escola. Por conseguinte, concluímos que o
problema fora colocado de modo ainda genérico, evidenciando a impossibilidade de
lidar com ele.
Logo, uma possível solução seria abordar o assunto articulando-o a um
processo histórico determinado. Desse modo, num desdobramento das questões
colocadas acima e em função das limitações relativas à questão de pesquisa
formulada inicialmente, optamos por investigar o tema educação e revolução social
num contexto histórico determinado – o período posterior à eclosão da Revolução de
Outubro de 1917, na recém criada República Soviética10. Especificamente, investigar
quais eram os objetivos de Vladimir Ilich Ulianov - Lenin - para a educação no
período de outubro de 191711 a janeiro de 192412.
Para tanto, nosso trabalho foi organizado da seguinte forma: na Introdução
expusemos o percurso trilhado até a elaboração final de nossa questão de pesquisa;
empreendemos a revisão da bibliografia pertinente ao tema Lenin e a educação;
apresentamos nossa questão de pesquisa, os objetivos e as justificativas. Ainda na
Introdução mencionamos os aspectos metodológicos relativos à execução da
pesquisa. No capítulo 1, tratamos dos elementos históricos, políticos e sociológicos,
com o intuito de expor os aspectos necessários à contextualização e melhor
compreensão do assunto Lenin e a educação. Nos capítulos 2 e 3 desenvolvemos a
investigação do objeto de nossa tese, no que se refere à análise do tema Lenin e a

10
De acordo com Carr (1981, p.43 et seq), a promulgação da Constituição da República Soviética
Federal Socialista Russa (RSFSR) ocorreu em julho de 1918. Ao longo dos anos, foram incorporados
à RSFSR Azerbaijão e Ucrânia (1920), Bielo-Rússia, Armênia e Geórgia (1921). Em dezembro de
1922, os congressos das quatro repúblicas da RSFSR, da Ucrânia, Bielo-Rússia e Transcaucásia
reuniram-se separadamente e aprovaram a criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(URSS).
11
Na época, vigorava na Rússia o calendário juliano, com uma defasagem de treze dias em relação
ao calendário gregoriano, vigente nos países de capitalismo avançado, em suas áreas de influência e
respectivas colônias. Portanto, a insurreição bolchevique ocorreu em 25 de outubro de 1917, pelo
calendário juliano e a 07 de novembro, pelo calendário gregoriano. A República Soviética ajustou-se
ao calendário gregoriano a partir de 1º de fevereiro de 1918 (REIS FILHO, 2003, p.58).
12
Lenin faleceu em janeiro de 1924 e o seu último texto de que se tem notícia foi Melhor menos, mas
melhor, publicado em março de 1923.
16

educação: antes de Outubro de 1917 e após Outubro de 1917, respectivamente. No


capítulo 4 apresentamos a discussão dos assuntos, seguida das Considerações
finais, na forma de uma reflexão sobre as implicações e consequências do que foi
tratado nos capítulos anteriores, com destaque para o papel e a importância que a
educação assumiu para Lenin.

Revisão da bibliografia
Na revisão da bibliografia pertinente ao tema Lenin e a educação,
inicialmente, nossa investigação teve como base dois documentos: a dissertação
intitulada Origem e desenvolvimento da educação na Rússia leninista (1917-1924):
reconstituição de seus traços centrais, de autoria de Elisa Mainardi (MAINARDI,
2001) e a tese intitulada Lenin e a educação política: domesticação impossível,
resgate necessário, cujo autor é Francisco Mauri de Carvalho (CARVALHO, F. M. de
2005a). Por conseguinte, constatamos que a produção bibliográfica em nível
nacional, na forma de teses e dissertações é deveras escassa, pois até o segundo
semestre de 2008 foram localizados apenas esses dois trabalhos13.
O curioso é que, quando se compara a produção bibliográfica que trata do
tema educação/pedagogia associada a nomes como Marx, Gramsci e até
Makarenko e Pistrak, em termos quantitativos, esta é bastante superior à produção
bibliográfica referente ao tema Lenin e a educação.
A título de exemplo analisemos a situação em relação a Marx.
Em seu competente trabalho de investigação sobre a existência de um
pensamento pedagógico em Marx e Engels, no contexto em que tal pensamento foi
gestado e anunciado, Nogueira (1993), em algumas de suas considerações finais
concluiu que o tema da educação e do ensino não é central na obra de Marx e
Engels, cujo tratamento, quando comparado ao de O Capital, está longe de ser
minucioso e sistemático. Mas a autora ponderou que é incontestável que a
educação e o ensino encontram-se presentes no conjunto da obra desses autores,
se bem que apresentando certas descontinuidades, ambiguidades e limitações, tais
como a ausência de análise: a) em relação à aplicabilidade das propostas

13
Nessa pesquisa inicial baseamo-nos nas seguintes fontes de informação: Banco de teses e
dissertações do portal Capes; Education Resources Information Center (ERIC); Banco de dados
bibliográficos de Universidades Públicas Estaduais e Federais do eixo Rio-São Paulo, Minas Gerais,
Rio Grande do Sul e Santa Catarina; Banco de dados bibliográficos da Biblioteca Nacional.
17

pedagógicas apresentadas; e b) quanto ao desenvolvimento e aprofundamento em


relação aos conteúdos do ensino (Idem, ibidem, p.206 et seq).
Nosso objetivo com esta breve digressão não foi opor Marx e Engels de um
lado e Lenin de outro, mas apenas refletir: se consideramos o envolvimento, a
produção e principalmente a ação dos primeiros no campo da educação e do
ensino14, em princípio, talvez se justificasse a existência de uma produção
bibliográfica maior em favor de Lenin do que de Marx e Engels, mas o que
aconteceu no Brasil foi exatamente o contrário.
Nesse sentido, perguntamos: qual seria o motivo de tal fato?
Seria banal ressaltar o valor e a importância de Marx e Engels em suas
críticas ao sistema capitalista; no seu papel de destaque na organização do
movimento trabalhista e revolucionário do século XIX; na sua influência e inspiração
em revolucionários do mundo todo. Apenas por isso, a proeminência de Marx e
Engels já estaria justificada. Contudo, o vulto de Lenin não é menor.
Desse modo, a resposta à questão acima talvez se relacione com uma
possível “herança maldita” creditada a Lenin, se levarmos em conta uma série de
elementos: seu papel fundamental na organização do Partido Comunista da Rússia15
(PCR) e do governo soviético, que posteriormente serviram de sustentação para a
ditadura stalinista instaurada após a morte de Lenin; o modelo organizacional e
operacional do PCR, que serviu de exemplo para muitos partidos comunistas criados
após a eclosão da revolução de outubro; a crença segundo a qual Lenin seria o
responsável pela conspiração de Outubro de 1917, a qual teria dado origem a uma
ditadura cruel e violenta que se estenderia por décadas etc.
Bensaid (2000a) citou três ideias bastante aceitas, empregadas na tentativa
de se enterrar a revolução de outubro e às quais Lenin pode estar associado: 1) o
Outubro de 1917 não teria sido uma revolução na acepção plena da palavra, mas
um complô praticado por uma minoria, de cima para baixo, com uma concepção
autoritária de organização social em benefício de uma nova elite; 2) essa seria uma
deformação de gênese, que teria impregnado e determinado todo o desenvolvimento

14
De acordo com Nogueira (1993, p.13), o livro Textos sobre educação e ensino (MARX; ENGELS,
2004) foi organizado e comentado por Roger Dangeville e publicado originalmente em francês, pela
Maspéro em 1976. O livro também foi publicado em português pela Editora Centauro. Trata-se de
uma antologia dos textos de Marx e Engels sobre a educação e ensino. Porém, a antologia compõe-
se de textos em que na maioria das vezes a relação com o tema da educação e o do ensino é apenas
marginal.
15
Partido Comunista da Rússia (bolchevique), ou PCR (b): consultar a nota 53.
18

ulterior da revolução russa, de modo que a história se reduziria às consequências


dessa conspiração original; 3) a revolução russa foi um ato prematuro, uma tentativa
de forçar o curso da história, quando as condições objetivas do capitalismo ainda
não estavam dadas para sua superação.
A propósito, Salem (2008, p.22), mencionou o pensamento segundo o qual
Lenin encarnaria uma história da qual só se poderia sentir vergonha. Bensaid
(2000b, p.177), por sua vez, afirmou que após a onda de “antimarxismo” ocorrida
nos anos de 1980 até houve um retorno a Marx e a Trotski, mas “[...] Lenin! Seu
papel é sem dúvida o mais ingrato. O do vilão da história, morto cedo demais [...]”
para ver as condenações, os desterros e as arbitrariedades que viriam a acontecer.
Zizek (2005, p.7) foi ainda mais enfático:

A primeira reação pública à ideia de retomar Lenin é, obviamente,


uma risada sarcástica. Marx, tudo bem – hoje em dia, até mesmo em Wall
Street há gente que ainda o admira: o Marx poeta das mercadorias, que fez
descrições perfeitas da dinâmica capitalista; o Marx dos estudos culturais,
que retratou a alienação e a reificação de nossas vidas cotidianas. Mas
Lenin – não, você não pode estar falando sério! Lenin não é aquele que
representa justamente o fracasso na colocação em prática do marxismo? O
responsável pela grande catástrofe que deixou sua marca em toda a política
mundial do século XX? O responsável pelo experimento do socialismo real,
que culminou numa ditadura economicamente ineficiente? Então, se há um
consenso dentro da esquerda radical da atualidade (o que resta dela), é
que, para ressuscitar o projeto político radical, devemos deixar para trás o
legado leninista: o implacável enfoque na luta de classes; o partido como
forma privilegiada de organização; a tomada violenta e revolucionária do
poder; a consequente “ditadura do proletariado” [...]. (grifo do autor)

Para além das questões relacionadas à pessoa de Lenin, supomos também


existir resistência e hostilidade em relação à investigação dos estudos leninistas16 da
educação, posto que: a Revolução de Outubro não significou a origem da ditadura
stalinista, da derrocada da URSS e do socialismo real? Não foi ela (a Revolução de
Outubro) a inspiradora e financiadora de várias revoluções (socialistas, de libertação
colonial) e portanto, pelo malogro dessas revoluções? Ademais, existiria tema mais
démodé e tão pouco atrativo do ponto de vista dos financiamentos em pesquisa do
que a revolução social?
Contudo, optamos por seguir uma orientação diferente dessa possível
herança maldita creditada a Lenin. Logo, partindo da dissertação e da tese
supracitadas, fomos compondo uma bibliografia, com base nas informações sobre o
assunto Lenin e a educação. Desse modo, constatamos que o assunto é tratado, em

16
Os termos leninista e leniniano foram empregados como sinônimos ao longo de nossa tese e
significam tão somente relativos a Lenin.
19

linhas gerais, em livros e artigos relacionados a temas sobre história da educação;


educação e socialismo; educação soviética; revolução bolchevique e educação;
politecnia; trabalho e educação.
Para o conjunto das obras que tratam da história da educação russa /
educação soviética (ARANHA, 1989; CAMBI, 1999; GADOTTI, 1995; HUBERT,
1967; LARROYO, 1962; LUZURIAGA, 1967; MANACORDA, 2000; 2006; MORENO
et al, 1978), o tema Lenin e a educação é desenvolvido de forma breve na maioria
delas, nas quais se discorre sobre temáticas como trabalho produtivo; a associação
entre trabalho, escola e vida; ao ensino politécnico e a nomes como Makarenko e
Pistrak. Cambi (1999), por sua vez, expôs de forma um pouco mais aprofundada
elementos referentes aos modelos de educação socialista e liberal; aos tipos de
educação implantados em países totalitários17, incluindo-se a ex-URSS; às relações
entre a Guerra fria e a pedagogia.
Ainda numa abordagem histórica, mas sob uma perspectiva socialista,
destacaram-se Dietrich (1973), Dommanget (1970) e Rossi (1981). Dietrich (1973,
p.214), entre outros assuntos, tratou de questões referentes aos objetivos de Lenin
com relação à educação, dando destaque para o Programa do PCR de 1919.
Dommanget (1970, p.446 et seq) e Rossi (1981, p.168 et seq) abordaram de forma
similar o tema Lenin e a educação, segundo uma perspectiva cronológica,
descrevendo fatos e analisando algumas ações de Lenin no campo da educação.
Identificamos também estudos a respeito da caracterização geral da
denominada “pedagogia soviética”, correspondente ao período aproximado que vai
de 1917 a 1930, com destaque para Makarenko (CAPRILES, 1989; CARVALHO, J.
de O. et al, 2007; RODRIGUES, M. V., 2004).
Compulsamos ainda trabalhos em que se sobressaía uma análise a respeito
dos temas trabalho e educação; politecnia; escola única do trabalho; formação
omnilateral. Mas nestes casos, presumimos que o objetivo dos autores não era
desenvolver um estudo aprofundado sobre o tema Lenin e a educação (DORE,
2006; LAUDARES; QUARESMA, 2007; MACHADO, 1989; 1991; NOSELLA, 2007a;
2007b; RODRIGUES, J., 1998; SAVIANI, 2003c; 2007).
17
Cambi (1999, p.577) definiu Estado totalitário da seguinte forma: “Um Estado totalitário é um
Estado autoritário, burocraticamente organizado, dirigido por um partido único, capaz de controlar e
unificar num projeto de ação comum toda a sociedade [...]; é um Estado ideologicamente compacto,
rigidamente estruturado, empenhado em conformar as massas aos objetivos dos partidos-Estados.”
O autor associou tal tipo de Estado totalitário ao fascismo, ao nazismo e ao “comunismo soviético”, a
partir da época stalinista.
20

Com relação ao termo politecnia, Dore (2006), ao investigar a influência e a


forma como foi assimilado o pensamento de Gramsci na área educacional brasileira,
afirmou que o fato generalizado é que no Brasil associa-se a politecnia a uma certa
pedagogia marxista. Assim, com frequência, os estudos sobre a educação
politécnica são retomados a partir de Marx e Engels e os mesmos “atravessam” a
história, países e autores, passando por Lenin, Gramsci, Manacorda, chegando até
Nosella, Saviani e outros.
No caso de Manacorda (2000, p.40 et seq), este associou Lenin à educação
socialista por meio da questão da politecnia, de modo que Lenin seria um caudatário
de Marx. O que, a nosso ver, restringe a discussão do tema Lenin e a educação à
politecnia. Ademais, constatamos a influência determinante de Gramsci e
Manacorda em muitos autores brasileiros, a ponto de Nosella (2007a, p.139)
confessar que suas principais fontes de estudos a respeito da politecnia serem Marx,
Engels e Lenin, mas estudados por intermédio de Manacorda.
Assim, tratando-se do assunto de nosso interesse nos estudos examinados,
sobressaem-se pelo menos dois aspectos: a) muitas vezes o tema é abordado de
forma marginal, em que a ênfase da investigação é direcionada para tópicos como
politecnia, escola única do trabalho, associação entre vida, escola e trabalho; b) na
maioria das vezes os estudos carecem tanto de um aprofundamento sobre o
contexto histórico, quanto do estabelecimento de premissas interpretativas sobre o
posicionamento político de Lenin como elemento auxiliar da investigação.
Identificamos também opiniões daqueles que, de um lado, criticam
duramente a revolução bolchevique e o socialismo real e de outro, aqueles que
tecem loas à grande revolução de outubro e à implantação do socialismo em um só
país. Além dos que apresentaram uma posição aparentemente imparcial, como
Rumiántsev (1970).
Dessa forma, tratando-se dos supostos críticos ao sistema, o livro intitulado
Educação soviética, organizado por Kline (1959) merece destaque, pois se trata de
uma obra publicada fora da ex-URSS, contendo alguns artigos escritos por
dissidentes russos. Nesse sentido, em seu prefácio, Counts (1959, p.VIII) foi
assertivo ao afirmar que:

Qualquer noviço que pretenda penetrar no domínio dos negócios da URSS


bem sabe que, ao ler um artigo ou livro, ou ao consultar um quadro
estatístico trazendo a marca de Moscou, precisa sempre tomar cuidado
para distinguir o fato real da ficção. Tratando-se de uma terra onde a
21

narrativa verídica de fatos históricos bem documentados pode ser repudiada


pelo seu “objetivismo burguês”, onde as estatísticas podem ser manejadas
pelos mais altos órgãos escolares como “armas políticas”, onde o tradicional
significado das palavras pode ser banido do dicionário por ordem oficial, o
investigador pertencente ao mundo livre deve lembrar-se constantemente
de “Alice no País das Maravilhas” ou de “Mil novecentos e oitenta e quatro”.
(grifos do autor).

Segue o mesmo raciocínio em outra passagem do texto:


O verdadeiro Bolchevista ri sarcasticamente ao ouvir falar em “liberdade de
educação” em qualquer “estado burguês”. Aplicando sem discussão este
dogma, ao assumir o poder em 1917, os Bolchevistas estabeleceram uma
aberta e confessada ditadura em nome do “proletariado” e agiram no
sentido de converter todo o sistema educacional em um instrumento total e
militantemente empenhado na conquista dos seus objetivos.(Idem, ibidem,
p.IX)

Ainda, de acordo com o autor, na ex-URSS do período stalinista, existia um


controle ideológico em todas as formas de manifestação cultural e educacional:
escolas; meios de comunicação escrita e audiovisual; teatro; cinema; museus;
música; artes plásticas etc., sendo que o controle político e cultural abrangia todas
as organizações, particularmente aquelas ligadas à infância e à juventude. Outra
marca característica do ensino na ex-URSS seria a existência de uma orientação
monolítica controlada pela Comissão Central (CC) do Partido Comunista da União
Soviética (PCUS), de modo que o Partido é quem ditava as regras que deveriam ser
cumpridas.
Sobre a perseguição política à qual foram submetidos professores,
pensadores e aqueles que se mostravam contrários ao sistema, o autor mencionou
que:

A história da educação soviética está assinalada pelo sacrifício da


vida de ilustres professores e de eminentes educadores que, por um motivo
qualquer, foram julgados culpados ou suspeitos de esposarem doutrinas
“antirrevolucionárias” ou por deixarem de seguir, com visível entusiasmo, as
reformas propagadas pelo Partido. Assim, um professor pode ter revogado
o seu diploma de doutor, porque a posição por ele tomada em suas
preleções, em anos anteriores, foi declarada errônea pela Comissão
Central. Nestas condições, não é de admirar que o autor de um compêndio
de História Moderna, ou mesmo de Psicologia Educacional, limite suas
citações de autoridades aos escritos de Marx, Engels e Lenin ou Stalin.
(Idem, ibidem, p.XII)

Já autores como Gapotchka (1987), Kuzine (1977) e Monoszon (1998)


notabilizam-se por sua posição francamente favorável ao sucesso da revolução
bolchevique, ao socialismo soviético e à concepção do socialismo num só país, ao
proferir um discurso doutrinário e apologético, conforme segue:
22

Com base na comunidade de interesses fundamentais dos


trabalhadores fortaleceu-se o vínculo da classe operária com o
campesinato, firmou-se a fraternidade socialista inquebrantável dos povos
da URSS e formou-se a unidade política e moral do povo soviético, coeso à
volta do seu chefe provado: o Partido Comunista. O socialismo trouxe aos
cidadãos soviéticos uma instrução de fato e enriqueceu muitíssimo a vida
espiritual da sociedade. (KUZINE, 1977, p.9)

Ainda, para o autor, “[...] na União Soviética, a sociedade se compõe de


classes amigas [...]” (Idem, ibidem, p.13), onde “[...] impera a amizade fraterna e a
confiança entre os povos, as línguas nacionais desenvolvem-se com base na
igualdade de direitos e enriquecimento recíproco.” (Idem, ibidem, p.17).
Ou seja, supomos que na maioria dos textos publicados pelos órgãos do
governo da ex-URSS, seus autores assumem uma posição dogmática e
propagandista em favor do socialismo num só país e uma submissão ao Partido
como guia maior da sociedade e detentor inconteste das verdades relativas ao
socialismo e ao comunismo.
A despeito dos ganhos e avanços reais obtidos no campo educacional na
ex-URSS (CARR, 1981, p. 167 et seq; DEUTSCHER, 1968a, p.93 et seq.),
identificamos que no posicionamento daqueles autores: 1) a evolução e os ganhos
no campo social e na educação socialista são tomados como absolutos, como se
não tivesse ocorrido avanços e retrocessos; imensas dificuldades e resistências na
implantação da nova educação soviética; dúvidas e acirradas disputas internas
sobre a questão da educação (MACHADO, 1991); 2) não há nenhuma alusão,
reflexão ou crítica sobre as mudanças e problemas enfrentados pela república
soviética no mesmo período; 3) afirma-se categoricamente que Lenin teria
implantado uma educação socialista no período imediatamente posterior a outubro
de 1917.
Portanto, considerando-se o período imediatamente posterior a outubro de
1917, é comum identificar informações de que Lenin teria implantado uma
“verdadeira” educação socialista. A propósito, atentemos para o que escreveu
Mainardi (2001, p.8):

Diante dos acontecimentos que abalaram a Rússia em 1917, a


URSS leninista se tornou o berço em que nasceria, definitivamente, a tão
sonhada e idealizada educação socialista [...].
Lenin foi o primeiro revolucionário socialista a assumir o controle
de um governo e, confiante de que a educação seria um importante e
indispensável elemento na transformação social, pôs em prática, na
educação, juntamente com seus colaboradores, as ideias socialistas.
23

Na mesma linha de pensamento, Gadotti (1995, p.121) afirmou:

Lenin atribuiu grande importância à educação no processo de


transformação social. Como primeiro revolucionário a assumir o controle de
um governo, pôde experimentar na prática a implantação das ideias
socialistas na educação. (grifos do autor).

Já em Carvalho, F. M. de (2005a; 2005b), Dommanget (1970), o mesmo


raciocínio nos pareceu sugerido. Analisemos também o que escreveram os autores
a seguir:
Desde os primeiros dias da educação socialista, a escola
destacou-se como guia da política do Partido Comunista de transformação
socialista da sociedade, incluindo a formação do homem novo.
(GAPOTCHKA, 1987, p.143).

O sistema soviético de instrução é obra da Grande Revolução


Socialista de Outubro. O resultado mais importante das transformações
revolucionárias realizadas na URSS sob a direção do Partido Comunista é o
triunfo completo e definitivo do socialismo e a transição para a edificação do
comunismo; é a formação do homem novo, soviético. (KUZINE, 1977, p.9).

Somente com o triunfo da Grande Revolução Socialista de


Outubro se tornou possível o exercício de uma genuína pedagogia científica
[isto é, baseada nos princípios do marxismo-leninismo], transformando as
escolas num veículo das ideias revolucionárias, num instrumento de
reestruturação da velha sociedade para uma nova sociedade, a sociedade
socialista. (MONOSZON, 1998, p.30).

Ressalte-se que em seus posicionamentos, os autores acima não


explicitaram suas concepções sobre socialismo e educação socialista, ou mesmo a
concepção de socialismo e de educação socialista para Lenin.
De modo diferente dos autores supracitados, nossa suposição é a de que
Lenin não objetivava implantar imediatamente o socialismo e por conseguinte, ele
não objetivava implantar imediatamente uma educação socialista na República
Soviética, de acordo com o que ele mesmo teria escrito numa de suas Teses de abril
(LENIN [publicada em 7 de abril de 1917], 2005, p.66): “[Tese] 8. Não ‘introdução’ do
socialismo como nossa tarefa imediata, mas apenas passar imediatamente ao
controle da produção social e da distribuição dos produtos por parte dos SDO18.”
(grifos do autor).
Zizek (2005, p.13), por seu turno, se referiu a não introdução imediata do
socialismo como um projeto mais realista de Lenin para o poder bolchevique nos
seguintes termos:

Por causa do subdesenvolvimento econômico e do atraso cultural das


massas russas, não há como a Rússia “passar imediatamente ao

18
Sovietes dos Deputados Operários.
24

socialismo”; tudo o que o poder soviético pode fazer é combinar a política


moderada do “capitalismo de Estado” com uma intensa educação cultural
das massas camponesas inertes – não a lavagem cerebral da “propaganda
comunista”, mas simplesmente uma imposição paciente e gradual de
padrões desenvolvidos de civilização. Fatos e números revelam “que ainda
há muito trabalho braçal a ser feito urgentemente, antes que se atinja o
padrão de um país qualquer da Europa ocidental... Devemos ter em mente
19
a ignorância semiasiática da qual ainda não nos livramos”.

Ainda, no artigo escrito em novembro de 1919, intitulado A economia e a


política na época da ditadura do proletariado, Lenin declarou que, se por um lado, a
burguesia fora alijada do poder político, os grandes proprietários destituídos dos
meios de produção e os grandes latifundiários de suas terras com o sucesso da
Revolução de Outubro, por outro lado, a classe burguesa não tinha sido
completamente aniquilada. Portanto, a burguesia enquanto classe social ainda
existia, tornando-se mais encarniçada no seu desejo de derrubar a revolução
bolchevique (LENINE [escrito em 30 de outubro de 1919], 1980c).
Desse modo, o socialismo como sendo a “[...] supressão das classes [...]”
(Idem, ibidem, p.206) não poderia ser implantado. Assim, consciente de que não
existiam condições objetivas para implantação de uma sociedade socialista, Lenin
vai defender de forma veemente o fortalecimento do Estado proletário instaurado
após a revolução de outubro de 1917.
De acordo com Getzler (1985, p.35), a tarefa imediata dos bolcheviques
após a tomada do poder político na Rússia não era a instauração do socialismo, mas
sim do “Estado-Comuna”, que já existia em germe nos sovietes20 dos operários e
dos soldados, desde que fosse possível livrá-los de seus dirigentes pequeno-
burgueses. Nesse sentido, após o término da guerra civil (1918-1920), com o país
arrasado economicamente, a fome, as epidemias e outros problemas, além do
fracasso da tentativa de se passar imediatamente ao comunismo21, Lenin defendeu
como tarefa prioritária do governo o desenvolvimento de um capitalismo de Estado.
Tal seria a forma tanto de garantir as condições imediatas de sobrevivência

19
De acordo com Zizek, os trechos entre aspas foram extraídos do texto de Lenin Páginas de um
diário.
20
Sovietes: os conselhos dos sovietes surgiram pela primeira vez em outubro de 1905, em São
Petersburgo. Sua representação era constituída com base nas unidades de produção. Elegia-se um
delegado para cada quinhentos operários e seu mandato era revogável. Garantiu na prática a
liberdade de imprensa, organizou patrulhas para a proteção dos cidadãos, apoderou-se em parte dos
correios, dos telégrafos e dos trens e buscou estabelecer de fato a jornada de trabalho de oito horas.
Foi a organização mais adequada para a classe operária em sua luta independente, mostrando sua
potencialidade como organismo de poder operário e como alicerce para um novo tipo de Estado
(TROTSKI, 2007, p.23, nota 5).
21
Consultar o item 1.1.3 O comunismo de guerra.
25

da República Soviética, quanto de implantar as bases para a construção da futura


sociedade socialista, materializando-se na concepção da ditadura do proletariado,
como um período de transição entre a dissolução do capitalismo e a construção do
socialismo.
No plano externo, o fortalecimento do Estado proletário se relacionava com o
isolamento da República Soviética. De acordo com a concepção de desenvolvimento
desigual e combinado do capitalismo, a Rússia era o elo mais fraco do capitalismo
na Europa e portanto a tarefa de se empreender uma revolução nesse país era uma
necessidade colocada historicamente. Contudo, os líderes da Revolução de Outubro
acreditaram que o triunfo pleno da revolução dependeria da internacionalização da
revolução para os países da Europa, de modo que a Rússia fosse o estopim da
revolução mundial.
Como isso não aconteceu, a República Soviética ficou isolada e restou a
dificílima tarefa de como sobreviver em meio a um mundo hostil. Assim, no plano
interno, uma das saídas encontradas por Lenin e seus correligionários foi o
fortalecimento e a consolidação da revolução e a construção de um capitalismo de
Estado, até que eclodissem as revoluções na Europa ocidental e no oriente.

Questão de pesquisa e hipótese de trabalho


Nossa questão de pesquisa foi formulada mediante uma especificação em
dois níveis. No primeiro nível, tomamos algumas das limitações e lacunas
encontradas nos estudos analisados na revisão da bibliografia. Também nos
baseamos em Nogueira (1993), a qual procurou investigar as formulações de Marx e
Engels para a educação, na conjuntura histórica em que ocorreram.
Foi assim que transpusemos algumas indagações da autora para uma
investigação sobre a educação leninista. Ou seja, procurar entender as
preocupações e ações de Lenin no campo educacional, no contexto em que foram
gestadas e implementadas. Nesse sentido, tornou-se imprescindível estipular as
premissas necessárias para interpretação das preocupações e proposições de Lenin
para a educação, com destaque para os elementos históricos, políticos e
sociológicos.
No outro nível de especificação, consideramos que, após o Outubro de
1917, a proposição de Lenin (pelo menos em seu plano geral) não era instaurar
imediatamente o socialismo. Portanto, supomos que com relação à educação sua
26

proposta também não era a de implantar imediatamente uma educação socialista.


Sendo assim, o problema a ser investigado (GIL, 2002; SALOMON, 2001), na
condição de uma questão de pesquisa (TRIVIÑOS, 1987, p.107) foi formulado nos
seguintes termos: se o objetivo de Lenin para a educação não era implantar
imediatamente uma educação socialista após outubro de 1917, quais eram seus
objetivos para a educação, durante os anos de 1917 – 1924?
Nossa hipótese de trabalho (Idem, ibidem, p.105-106) foi a de que os
objetivos de Lenin para o campo da educação, no período compreendido entre os
anos de 1917-1924, se relacionavam fundamentalmente com uma necessidade de
natureza tanto política quanto econômica, conforme considerou Hubert (1967,
p.136), para quem a revolução pedagógica ocorrida na república dos sovietes
correspondeu a uma necessidade econômica e tecnológica e a uma disposição
política.

Objetivos e justificativas
Em termos genéricos, nosso objetivo foi investigar o tema educação escolar
e revolução social, com relação às seguintes questões: quem vem antes, a
revolução ou a educação? Pode existir uma “educação revolucionária” antes da
revolução? A educação escolar participa da luta de classes? Em caso positivo, de
que forma? Ao vincularmos tais questões ao contexto da Revolução Russa de 1917,
propusemo-nos então a pesquisar: sobre a Revolução de Outubro, bem como refletir
a respeito das suas implicações, consequências e legado; sobre Lenin e os “estudos
leninistas da educação”.
Especificamente, nosso objetivo foi verificar o duplo e indissociável caráter
atribuído à educação por Lenin - as dimensões política e econômica -, considerando-
se a necessidade de consolidação do poder político do Estado proletário e de
reconstrução econômica da República Soviética, bem como a implantação das
bases materiais e culturais para a construção da futura sociedade comunista.
No plano político, em linhas gerais, tratava-se de consolidar o poder do
Estado proletário, mediante a destruição dos vestígios do poder czarista22 e burguês
e ao mesmo tempo, construir os fundamentos de uma futura sociedade comunista.
Assim, à educação caberia a tarefa de destruir os fundamentos da educação

22
Czarista, czarismo: regime caracterizado pelo poder absoluto do czar (TROTSKI, 2007, p.22, nota
4).
27

czarista e burguesa e ao mesmo tempo: a) incorporar e aproveitar os mais elevados


conhecimentos da ciência, da tecnologia e da cultura produzidos até então pela
humanidade e necessários à construção do socialismo / comunismo; b) educar o
povo de acordo com os princípios do comunismo.
Segundo Gurley (1976, p.97), Lenin previu que o sucesso dos planos
econômicos dependeria fundamentalmente da aplicação de instrumentos por meio
dos quais ocorreria um aumento da produtividade do trabalho, sendo que tais
instrumentos seriam: a) a imposição de uma rígida disciplina de trabalho; b) a
introdução da gerência científica (aplicação dos princípios tayloristas na produção);
c) a elevação do nível educacional e cultural da classe trabalhadora.
Assim, no plano econômico, Lenin defendia a necessidade do
desenvolvimento de um capitalismo de Estado, com o objetivo de superar a ruína
econômica e material decorrente dos anos de guerra e ao mesmo tempo, implantar
as bases para construção da futura sociedade socialista / comunista. Portanto, à
educação caberia a tarefa de formar a força de trabalho necessária ao
desenvolvimento das forças produtivas e ao mesmo tempo elevar o nível cultural,
técnico e científico da população.
Em sentido amplo, nosso trabalho justificou-se pela necessidade de: a)
resgatar uma discussão antiga, mas a nosso ver ainda não resolvida, sobre as
relações que se estabelecem entre a educação e a revolução; b) desenvolver um
estudo mais aprofundado a respeito do tema educação leninista.
Em termos específicos, impôs-se a necessidade de se pesquisar um tema
ainda pouco explorado da vasta obra de Lenin, qual seja, a educação no período
correspondente aos anos posteriores à instauração da República Soviética, nos
quais se sobressaem as tarefas da construção de uma sociedade socialista.

Aspectos metodológicos
Caracterização da pesquisa, fontes e limitações
Nosso trabalho pode ser caracterizado como sendo uma pesquisa
bibliográfica (GIL, 2002) e as fontes empíricas investigadas foram os textos e obras
de Lenin sobre a educação.
Quanto às limitações da pesquisa, referimo-nos à impossibilidade de
consulta à totalidade da obra de Lenin em russo, em função do tempo disponível
para realização de nosso trabalho e pelo desconhecimento do idioma russo. Quando
28

necessário, recorremos às Obras completas de Lenin disponíveis em inglês no Lenin


internet archive. Também consultamos uma série de livros resultantes da
organização e compilação das obras de Lenin, a saber: A instrução pública
(LENINE, 1981); Cultura e revolução cultural (LENIN, 1968); Sobre a educação
(LENINE, 1977); além das Obras escolhidas (LENINE, 1980a; LENINE, 1980b;
LENINE, 1980c) em português.
Para além das questões propriamente técnicas, considere-se também uma
limitação relacionada talvez a um certo “aparelhamento” do Estado. Em outras
palavras, significa que após a morte de Lenin, sua obra tornou-se patrimônio do
Estado Soviético23. Nesse sentido, quem pode nos garantir que não houve algum
tipo de interferência, por meio dos órgãos especializados da ex-URSS no processo
de coleta, organização e publicação (e em alguns casos, tradução) dos textos
leninianos?24

Critérios de organização e análise das fontes de informação


Nós selecionamos os textos leninianos de acordo com a indicação dos
comentadores e especialistas em Lenin, bem como dos textos selecionados nas
compilações, quais sejam, A instrução pública, Cultura e revolução cultural e Sobre
a educação. Após a seleção dos textos que deveriam ser lidos, estes foram
organizados de acordo com um critério temático e cronológico. Assim,
primeiramente, os textos de Lenin foram ordenados com base nos seguintes temas:
1) Obras econômicas; 2) Obras políticas, subdivididas nos subtemas Às portas da
revolução; Clássicos; Consolidação da revolução; Construção do socialismo; 3)
Lenin e a educação, subdivido nos subtemas Antes de 1917; Após 1917. Em
seguida, os textos foram lidos e fichados de acordo com os temas/subtemas

23
A título de ilustração, cite-se que Foster (2005, p.311 et seq) mencionou alguns acontecimentos
relacionados à prisão de Bukharin entre os anos de 1937-1938. Assim, de acordo com Foster,
Bukharin escreveu quatro manuscritos, que eram conhecidos apenas por Stalin e alguns carcereiros.
Os manuscritos não foram destruídos porque Stalin resolveu poupá-los (mas não poupou Bukharin,
nem a “velha guarda” do partido bolchevique, nem os que podem ser considerados verdadeiros
heróis da revolução), consignando-os ao seu arquivo pessoal. Tais documentos só foram
redescobertos no final da década de 1980, por meio de um assessor de Mikhail Gorbachev, sendo
publicados apenas em 1992, originalmente em russo (How it all began e Philosophical arabesques,
numa tradução em inglês).
24
A nosso ver sobre esta questão abrem-se muitas possibilidades de pesquisa historiográficas e
filológicas interessantíssimas. Contudo, os desafios são imensos: dominar o idioma russo; obter
acesso às fontes originais e de primeiríssima mão (os textos originais do próprio Lenin); obter acesso
às fontes do Instituto Marxismo-Leninismo da ex-URSS etc.
29

estipulados, mas dentro de uma ordem cronológica para cada tema/subtema


específico.
Também foram consultadas várias obras sobre a história da revolução russa
(com destaque para a insurreição de Outubro de 1917, o período da guerra civil e da
implantação da Nova Política Econômica), educação na Rússia e comentadores de
Lenin.
Seria oportuno mencionar que o pesquisador sempre enfrenta muitas
dificuldades ao investigar temas a respeito da Rússia, Revolução de Outubro, União
Soviética, Lenin, Trotski, entre outros. Algumas dessas dificuldades referem-se à
língua e à grafia dos nomes russos. Sobre este assunto, infelizmente não foi
possível empreender uma pesquisa profunda relacionada à transliteração dos
termos russos. Nesse sentido, a escolha da grafia deu-se em função dos nomes e
termos que são empregados com mais frequência na literatura.
Ou seja, optamos por grafar Lenin (sem acento circunflexo), ao invés de
Lenine (forma aportuguesada de Lénine, do francês), ou Lênin. Ainda: Trotski e não
Trotsky. Krupskaia e não Kroupskaia, Krupskaja, ou Krupskaya. Lunacharski e não
Lunatcharski. Bolchevique e não bolchevista. Czarismo e czar e não tzarismo e tzar,
respectivamente. Kronstadt e não Cronstadt. Contudo, no caso das Referências, não
alteramos os nomes com grafias diferentes daquelas adotadas por nós. Esse foi o
caso de LENINE, KROUPSKAIA, LUNATCHARSKI e TROTSKY.
No caso das citações bibliográficas, optamos pelo sistema autor-data. E
tratando-se dos textos e livros de autoria de Lenin e Krupskaia, informamos a data
em que os textos foram escritos, publicados ou proferidos (no caso dos discursos)
entre colchetes. Ademais, é de nossa autoria a versão para o português dos textos
escritos originalmente em inglês, francês e italiano.
Devido à referência constante aos textos de Lenin, optamos sempre por
informar o leitor de qual texto ou livro estávamos tratando a fim de facilitar o acesso
às Referências. Assim, sempre deixamos explícitos o título do texto ou o livro de
Lenin ao qual nos referíamos, seja no corpo do trabalho, seja na forma de notas de
rodapé.
Considerando as peculiaridades relativas à execução de uma pesquisa
bibliográfica, na medida do possível, tentamos recorrer a paráfrases e resumos na
composição do texto. Mas, num estudo em que predomina o trabalho de
interpretação, como é o nosso caso, não foi possível fugir completamente da
30

transcrição literal de trechos dos textos de Lenin ou de outros autores, que


ocorreram em grande quantidade.
Finalmente, a nosso ver, um autor nunca é imparcial ao escrever. Sobre o
assunto, recorremos a Löwy (2003, passim) e Schaff (1991, passim), os quais
analisaram a questão de se é possível alcançar um conhecimento objetivo, seja nas
ciências sociais, seja na história, respectivamente. Uma resposta possível a esta
questão é a de que a objetividade é construída social e historicamente, posto que: a)
o próprio “objeto” investigado é indeterminado, imprevisível e inacabado; b) o “sujeito
observador” é determinado por condições de classe, psíquicas, de raça,
nacionalidade, sobre as quais ele não tem total nem absoluto controle de como tais
elementos impregnam e influenciam a produção do seu conhecimento; c) a
construção do conhecimento objetivo não é neutra aos condicionantes políticos,
econômicos e de classe e tampouco é estático historicamente.
Foi assim que John Reed e Victor Serge, na introdução de seus célebres
livros, declararam que: “Na luta, as minhas simpatias não eram neutras. Mas ao
contar a história dessas grandes jornadas tentei ver os acontecimentos com os olhos
de um repórter consciencioso, interessado em expor a verdade.” (REED, 1977,
p.33). E “A imparcialidade do historiador não passa de uma lenda destinada a
corroborar convicções de interesse. [...] O historiador é sempre ‘de seu tempo’, isto
é, de sua classe social, de seu país, de seu meio político.” (SERGE, 2007, p.31).
Conosco não foi diferente, posto que ao empreendermos a tarefa de
construir uma objetividade científica procuramos deixar explícita nossa condição de
classe e simpatias políticas.
Por último, declaramos que em sua totalidade, o nosso trabalho é de
interpretação. E assim como Nogueira (1993) (no caso de Marx), procuramos evitar
a adesão incondicional, a rejeição sistemática, cultuar, fetichizar ou mitificar a
pessoa de Lenin, ou dogmatizar seus escritos.
31

1 OUTUBRO DE 1917: ELEMENTOS HISTÓRICOS, POLÍTICOS E


SOCIOLÓGICOS
1.1 Elementos históricos
1.1.1 Apontamentos sobre a história da revolução russa
A revolução russa representa um dos acontecimentos mais importantes do
século XX, a primeira grande ruptura e talvez o principal ato de confronto ao
capitalismo coroado de sucesso (CARR, 1981, p.11; HOBSBAWM, 1995, p.62;
REED, 1977, p.33). Parker (1995, p.254) por sua vez, declarou que nenhum “[...] fato
isolado teve impacto tão decisivo sobre o mundo moderno do que a Revolução
Russa de 1917 [...]” - ela transformou um país pobre, atrasado e subdesenvolvido
em uma potência industrial e militar e influenciou de forma decisiva o padrão das
relações internacionais.
Não há registro de nenhuma insurreição revolucionária moderna comparável
à Revolução russa (DEUTSCHER, 1968a, p.2) e de acordo com Hobsbawm (1995,
p.62), a “[...] Revolução de Outubro produziu de longe o mais formidável movimento
revolucionário organizado na história moderna.” Ainda, para o autor, ela influenciou e
contribuiu para a organização de partidos comunistas no mundo todo, de modo que
apenas trinta ou quarenta anos depois de abril de 1917, aproximadamente um terço
da humanidade se achava vivendo sob regimes inspirados ou derivados da
República Soviética ou do modelo organizacional do Partido Comunista da União
Soviética. De fato, o bolchevismo transformou a revolução de 1917 em um
fenômeno mundial (REIMAN, 1985, p.75).
A URSS também teve importância fundamental nos destinos da segunda
guerra mundial, quando, ironicamente, ela foi a salvadora do capitalismo liberal,
possibilitando a vitória do ocidente contra a Alemanha de Hitler (HOBSBAWM, 1995,
p.89). Ademais, com o advento da Guerra Fria, a União Soviética participou de
forma decisiva na dinâmica da geopolítica mundial do século XX.
Porém, é necessário tornar preciso o que entendemos pela expressão
Revolução Russa.
Reis Filho (2003, p.41 et seq) e Serge (2007) mencionaram a ocorrência de
pelo menos três revoluções na Rússia25: a) a de 1905, cujos principais

25
Sugerimos consultar o ANEXO I, no qual constam datas e informações resumidas sobre a biografia
de Lenin e sobre a história da Rússia referente ao período analisado por nós.
32

acontecimentos foram o “domingo sangrento”26 e a revolta dos marinheiros do


encouraçado Potemkim27; b) a de fevereiro de 1917, cuja principal consequência foi
a abdicação do czar; c) a de outubro de 1917, com a destituição do governo
provisório instalado em março de 1917 e a constituição de um Estado proletário28. A
estas, Reis Filho (2003, p.41) acrescentou uma quarta (sempre esquecida) – a de
1921. Foi a insurreição dos marinheiros da base naval de Kronstadt29, à qual se
somaram as greves nas cidades e as revoltas no campo, na época, todas contra o
poder bolchevique30.
Portanto, o que muitos denominam de revolução russa, Hobsbawm (1995,
p.62) especificou: a “[...] Revolução Bolchevique de outubro de 1917 [...]”31.
Contudo, a importância da Revolução de Outubro para a história é
proporcional à complexidade tanto dos elementos e processos mais gerais aos quais
ela está vinculada, quanto das especificidades da Rússia, que, combinados, estão
envolvidos com suas causas e eclosão. Em outras palavras, o Outubro de 1917 é o
resultado da imbricação existente entre processos globais e a realidade específica
da Rússia – foram conjunturas que se entrelaçaram (REIS FILHO, 2003, p.41) -, de

26
O domingo sangrento (ocorrido em 9 de junho de 1905, pelo calendário gregoriano) foi o estopim
da revolução de 1905. Tendo em mãos uma petição dos operários de São Petersburgo ao czar
Nicolau II – chamado de “o paizinho” - (jornada de trabalho de oito horas; reconhecimento dos direitos
dos operários; promulgação de uma Constituição que garantisse a separação entre Igreja e Estado;
mais democracia etc.), uma multidão de pessoas dirigiu-se pacificamente ao palácio do governo.
Foram recebidos a tiros e massacrados, com centenas de mortos e feridos. Ao massacre, somou-se o
descontentamento com a guerra russo-japonesa, deflagrando uma onda de greves e revoltas pelo
país (SERGE, 2007, p.54).
27
Referimo-nos ao motim do encouraçado Kniaz-Potemkim, ocorrido em 15 de junho de 1905, na
base naval de Kronstadt, a qual pertencia à frota russa do mar Báltico. O acontecimento inspirou a
realização do filme que se tornaria um clássico - O encouraçado Potemkim -, de Sergei Eisenstein.
Ver a Nota 29.
28
Carvalho, F. M. de (2005a) mencionou que as duas primeiras revoluções foram de caráter
democrático-burguês e a terceira, socialista.
29
O levante dos marinheiros de Kronstadt foi sufocado pela República Soviética à custa de muitas
vidas de ambos os lados e provocou profunda comoção tanto entre os bolcheviques quanto entre os
opositores da República Soviética. A revolta também tinha um sentido simbólico, posto que Kronstadt
tornou-se famosa na campanha contra o czarismo, quando da insurreição dos marinheiros do
encouraçado Potemkim em 1905.
30
Reis Filho (2003, p.41) mencionou que ocorreram verdadeiras “batalhas historiográficas”, a
propósito da natureza dessas revoluções. Foge ao escopo de nosso estudo penetrar em tal
discussão, porém, é oportuno citar que Reis Filho não compartilha da tese segundo a qual haveria um
encadeamento entre as revoluções, as quais ocorreram, até certo ponto, de forma espontânea e sem
qualquer determinação ou ação de partidos ou facções revolucionárias. Mas nem todos compartilham
dessa interpretação. No caso, citamos Deutscher (A revolução inacabada) Lenin (Cartas de longe e
Por ocasião do IV aniversário da Revolução de Outubro), Serge (O ano I da revolução russa) e
Trotski (A história da revolução russa).
31
Ao longo de nosso trabalho nos referimos à Revolução Bolchevique de Outubro de 1917 também
pelas expressões Revolução Russa de Outubro de 1917, Revolução de Outubro, Revolução de
Outubro de 1917, Outubro de 1917, O Outubro de 1917.
33

modo que “[...] seus traços característicos só podiam ser apontados em relação ao
curso mais amplo da história mundial [...]” (REIMAN, 1985, p.75).
Concordamos com Deutscher e Trotski, para quem o Outubro de 1917 foi,
genericamente, o resultado da contradição entre o desenvolvimento das forças
produtivas e suas correspondentes relações de produção, conforme o que fora
propugnado por Marx no seu famoso Prefácio de Para a Crítica da Economia
Política. Desse modo, para Deutscher (1968a, p.9), assim como nos antigos regimes
francês e inglês, foi o desenvolvimento do capitalismo na Rússia que gerou
contradições insanáveis numa estrutura social incapaz de contê-las. Por
conseguinte, as “[...] forças do progresso estavam de tal modo comprimidas no
espartilho da antiga ordem que teriam faltamente de explodir.” (Idem, ibidem, p.9).
A propósito, a concepção de Trotski se fundamenta naquilo que ele
denominou de lei do desenvolvimento desigual e combinado, a qual se aplicaria aos
países atrasados, quando ocorre uma combinação original dos elementos obsoletos
de uma sociedade com os mais avançados (TROTSKY, 1978a, p. 62). Tal lei “[...]
significa aproximação das diversas etapas [de desenvolvimento], combinação das
fases diferenciadas, amálgama das formas arcaicas com as mais modernas.” (Idem,
ibidem, p.25). Portanto, no caso da Rússia, seria a combinação de um país com “[...]
uma economia atrasada, uma estrutura social primitiva e [de] baixo nível cultural [...]”
(Idem, ibidem, p.23), que convivia com a penetração de uma industrialização
avançada, própria da Europa ocidental, nas grandes cidades russas.
Com relação ao contexto da Europa ocidental, a Revolução de Outubro é o
resultado das crises e do processo de desagregação que corroía o sistema
capitalista desde meados do século XIX, conforme escreveu Hobsbawm (1995,
p.62): “Parecia óbvio que o velho mundo estava condenado. A velha sociedade, a
velha economia, os velhos sistemas políticos tinham, como diz o provérbio chinês,
‘perdido o mandato do céu’. A humanidade estava à espera de uma alternativa.”
Porém, por que essa alternativa ao capitalismo ocorreu na Rússia e não em
outro país da Europa ou do mundo?
Porque, internamente, a Revolução Russa de outubro de 1917 foi o
resultado da confluência de uma série de aspectos: a existência de uma autocracia
violenta, cruel e repressiva, que garantia privilégios para a burocracia, a Igreja e
para si própria; uma sociedade baseada fundamentalmente numa economia rural e
estagnada; um campesinato pobre, faminto e inquieto; a emergência de
34

contradições insanáveis decorrentes da convivência contraditória entre o capitalismo


e um sistema fundado no feudalismo, no qual ainda persistiam profundos traços da
servidão; o passado político da Rússia czarista, marcado por convulsões sociais e
pela ação de grupos terroristas que atuavam desde 1860, com ocorrência de surtos
de violência e repressão (BENSAID, 2000a, p.169; CARR, 1981, p.11).
Greves nos núcleos urbanos industrializados (Petrogrado32, Moscou); revolta
no campo; deserção no exército; fome; colapso no sistema de transportes;
desorganização econômica; vacilações e conluios do governo provisório com
setores da burguesia e da autocracia; iminência de uma invasão alemã e da
contrarrevolução - a Rússia às vésperas de outubro de 1917 era um caldeirão
prestes a explodir. Acrescente-se a esse contexto a deflagração da primeira guerra
mundial (1914-1918), a qual trouxe “[...] à superfície essas condições latentes e
precipitou uma situação que parecia esperar apenas um impulso para se
desagregar.” (STRADA, 1987, p.110).
Destaque-se que não é possível explicar o levante revolucionário de outubro
de 1917 com base em apenas um desses fatores isolados. Ao ser acusado de
subestimar os elementos econômicos no transcorrer da revolução russa, Trotski
replicou ter consciência do agravamento das condições econômicas, nos momentos
que precederam o Outubro de 1917. Porém, para ele seria simplificar ao extremo, se
a explicação para a eclosão da revolução tivesse apenas como fundamento o
aumento do preço do pão (TROTSKY, 1978b, p.416).
Concordamos com Trotski, para quem a ocorrência da explosão
revolucionária só se explica quando consideramos a combinação de uma série de
fatores, entre eles as causas estruturais e históricas com as causas conjunturais.
Ora, se o raciocínio dos críticos de Trotski estivesse correto as revoluções
aconteceriam sempre. De modo diferente, uma revolução é o resultado da
sublevação incontrolável e explosiva das massas, ao que os seus líderes aproveitam
com argúcia e habilidade, de modo que “[...] é preciso que a incapacidade
definitivamente manifesta do regime social tenha tornado intoleráveis as privações e

32
Petrogrado: desde 1703, data em que foi fundada, Petrogrado tinha o nome de São Petersburgo.
Seu nome foi mudado para Petrogrado (1914-1924), em função da guerra, posto que São
Petersburgo foi considerado muito germanizado. Teve o nome mudado para Leningrado (1924-1991)
e em 1991 voltou a ser São Petersburgo. São Petersburgo está localizada às margens do Rio Neva,
no Golfo da Finlândia, às margens do mar Báltico. Foi capital da Rússia por mais de duzentos anos e
deixou de sê-lo em 1918, após a Revolução de Outubro.
35

que novas condições e novas ideias tenham deixado entrever a perspectiva de uma
saída revolucionária [...].” (Idem, ibidem, p.416).
É sob tal perspectiva que a atuação do Partido Bolchevique33 foi crucial no
desenrolar da Revolução de Outubro. Segundo Serge (2007, p.76), as massas
populares russas tinham “[...] milhões de rostos; não são nada homogêneas; são
dominadas por interesses de classe, diversos e contraditórios; só alcançam a
consciência verdadeira – sem a qual nenhuma ação fecunda é possível – mediante
a organização.”
O que o Partido Bolchevique fez, ao longo dos anos, por meio de sua
inteligência coletiva, organização, disciplina, dedicação, ação entre o povo, foi
interpretar e dar vazão aos anseios e às necessidades dessa massa disforme e
anárquica. Ainda, nas palavras de Serge (ibidem, p.76):

[...] o que todos eles querem [o povo], o partido o exprime em termos claros
e o faz. O partido lhes revela aquilo que pensam. O partido é o vínculo que
os une a todos, de ponta a ponta do país. O partido é sua consciência, sua
inteligência, sua organização.

Graças à compreensão precisa e rigorosa da dinâmica dos


acontecimentos e do movimento da história, os bolcheviques foram capazes de se
identificar ao mesmo tempo com o operariado em geral e com a necessidade
histórica colocada naquele momento tão particular. É por isso que distinguir as
massas do Partido era impossível. Eles formavam um todo coletivo. Foi assim que
em fevereiro de 1917, quando os bolcheviques ainda eram uma minoria e uma força
política inexpressiva, em outubro de 1917 eles se tornam maioria e a única
esperança de salvação para o povo (Idem, ibidem, p.77).
O Outubro de 1917 foi uma irrupção violenta e incontrolável, uma
radicalização vinda de baixo que a tudo engolfava, marcada pela participação ativa
do povo no processo revolucionário (BENSAID, 2000a, p.169-170; TROTSKY,
1978a, p.15-16). A desintegração da velha ordem social traduziu-se subjetivamente
nas massas, a ponto de impulsioná-las à ação e intervir diretamente nos
acontecimentos. Ou seja,

A grande massa do povo foi avassalada pela mais intensa e premente


consciência de desintegração e apodrecimento na ordem estabelecida. A
percepção veio súbita. A consciência teve um sobressalto que a colocou a
par da existência e impulsionou a transformação desta. Mas também esse

33
Partido bolchevique: consultar a nota 53.
36

sobressalto, essa mudança súbita na psicologia das massas não proveio do


nada. (DEUTSCHER, 1968a, p.11).

Para que a revolução eclodisse foram necessários muitos anos de


preparação, por meio: da atuação de grupos que disseminaram as ideias
revolucionárias; de partidos políticos das mais variadas índoles; da opressão da
autocracia; do terrorismo; das contradições decorrentes do desenvolvimento das
forças produtivas versus relações de produção. “Pouco ou nada houve de fortuito em
tudo isso. Subentendido neste meio século de Revolução, avulta todo um século de
esforços revolucionários.” (Idem, ibidem, p.11-12).
Logo após a destituição do governo provisório, num relato dos
acontecimentos relativos aos primeiros dias do poder bolchevique, Reed (1977,
p.165-166) descreveu um fato muito significativo. Trata-se da votação do
grupamento blindado brunoviki34, crucial naquele momento, posto que as forças
contra revolucionárias começavam a atuar para tentar destituir o governo proletário.
Assim, o autor narrou os discursos inflamados e emocionados - contra e a
favor do poder bolchevique -, a dúvida atroz dos soldados e a decisão tomada. A
descrição do momento decisivo da votação é tocante:
35
Khanjunov tentou falar de novo, mas a multidão gritou: “Votação!
Votação! Votação!” Cedeu, por fim, e leu a resolução que ia ser submetida a
voto: Os brunoviki retiravam o seu representante do Comitê Revolucionário
Militar e declaravam a sua neutralidade na presente guerra civil. Todos os
que fossem a favor deviam ir para a direita; os que fossem contra, para a
esquerda. Houve um momento de hesitação, uma expectativa parada, e
depois a turba começou a movimentar-se, cada vez mais depressa e aos
tropeções, para a esquerda: centenas de corpulentos soldados numa massa
sólida que corria pelo chão sujo, sob a luz fraca... [...]
Imaginem esta luta repetida em todos os quartéis da cidade, do
distrito, de toda a Frente [de combate], de toda a Rússia. Imaginem os
36
Krilenkos a cair de sono vigiando os regimentos, correndo de um lugar
para outro, argumentando, ameaçando, implorando. E depois imaginem o
mesmo em todos os sindicatos de operários, nas fábricas, nas aldeias, nos
couraçados das dispersas esquadras russas; imaginem as centenas de
milhares de russos de olhos postos em oradores através de todo imenso
país – operários, camponeses, soldados e marinheiros tentando tão
esforçadamente compreender e escolher, pensando tão intensamente e, no
fim, decidindo tão unanimemente. Foi assim a Revolução Russa.

34
Brunoviki: tropas de blindados. Era um regimento chave na consolidação da revolução, dias após a
insurreição de Outubro e antes da invasão de Petrogrado por Kerenski. Na prática, quem controlasse
os brunoviki controlaria Petrogrado.
35
Khanjunov: oficial que defendia a neutralidade do regimento brunoviki e consequentemente não
apoiava os bolcheviques.
36
Krilenko: Comissário do Povo para Assuntos Militares do governo revolucionário. Orador que pedia
o apoio dos brunoviki à causa revolucionária.
37

Mas o Outubro de 1917 teria sido um golpe de Estado, uma conspiração ou


uma revolução?
De fato, a insurreição assumiu as características de um golpe, posto que o
acontecimento de 25 de outubro realizou-se como uma operação militar, sem
conhecimento e anuência de qualquer organização soviética. Na verdade, a
insurreição fora planejada e organizada pelo comitê militar do soviete de Petrogrado,
com Trotski37 na presidência e a ordem para sua execução fora dada pelo Comitê
Central do Partido Bolchevique, com Lenin à frente (REIS FILHO, 2003, p.66). Frise-
se, porém, que os bolcheviques planejaram, organizaram e executaram a
insurreição, derrubando o governo provisório, mas posteriormente eles “entregaram”
o poder ao II Congresso dos Sovietes, mediante a submissão ao voto e à aprovação
do ato insurrecional, conforme fora planejado antecipadamente pelo Comitê Central
do Partido Bolchevique.
Contudo, para além disso, foi uma síntese entre golpe e revolução: golpe no
planejamento, organização e execução. E revolução

[...] nos decretos, aprovados pelos sovietes, reconhecendo e consagrando


juridicamente as aspirações dos movimentos sociais, que passaram
imediatamente a ver no novo governo – o Conselho dos Comissariados do
Povo, dirigido por Lênin – o intérprete e a garantia das reivindicações
populares. (Idem, ibidem, p.67)

Portanto, foi uma revolução no sentido pleno da palavra, que afetou


praticamente todos os setores da sociedade. Foi um élan vindo de baixo, como uma
manifestação dos anseios das massas (BENSAID, 2000a, p.169-170). Tal é o
sentido dos primeiros decretos legislativos38, os quais determinaram o fim da guerra;
a expropriação dos grandes latifúndios e a correspondente distribuição da
propriedade da terra entre os milhões de camponeses; e a constituição do poder dos
soldados, trabalhadores e operários – o Conselho dos Comissários do Povo39.

37
Para uma visão detalhada dos momentos decisivos que antecederam a insurreição, sugerimos
consultar A história da revolução russa (TROTSKY, 1978b), Capítulo IX – A insurreição de outubro,
no qual Trotski revelou as dificuldades de organização política e militar relativas à insurreição; a
posição contrária de Kamenev e Zinoviev; as exortações desesperadas de Lenin; as dúvidas atrozes
e as vacilações que dilaceravam os líderes da insurreição; os detalhes da logística e da organização
da insurreição etc.
38
Para mais detalhes, consultar no ANEXO II, onde reproduzimos integral ou parcialmente alguns
dos principais Decretos promulgados pelo Conselho dos Comissários do Povo.
39
O Conselho dos Comissários do Povo representou o primeiro governo da República Soviética e foi
instituído na sessão do II Congresso dos Sovietes de toda a Rússia, no dia 08 de novembro de 1917
(pelo calendário gregoriano), portanto, um dia após a derrubada do governo provisório de Kerenski
pelos bolcheviques. O nome Comissários do Povo foi sugestão de Trotski, em função do desgaste
relacionado aos termos governo e ministro.
38

Fundamentalmente, mediante a promulgação destes decretos, é que o poder


revolucionário garantiu o apoio dos soldados, dos trabalhadores e dos camponeses,
essencial para o sucesso da revolução e consolidação do governo proletário.

1.1.2 A consolidação da revolução


No tocante ao desenrolar dos acontecimentos ligados à revolução russa,
Serge (2007, p.32) propôs uma cronologia para o período que vai de outubro de
1917 ao início de 1926.
Desse modo, a primeira fase da revolução russa correspondeu ao período
de 25 de outubro de 1917 (pelo calendário juliano) e acaba em 7 de novembro de
1918, no momento em que explode a revolução na Alemanha. Neste primeiro ano
apresentaram-se os problemas imediatos que a ditadura do proletariado precisava
resolver: organização da produção e do abastecimento; defesa interna e externa;
ações perante os intelectuais e a classe média. Esta fase Serge denominou de
conquista proletária: tomada do poder, conquista do território, organização da
produção, criação do Estado proletário e do exército etc.
Segunda fase, que vai de novembro de 1918 a novembro / dezembro de
1920 (fim da guerra civil). A revolução alemã abre esta fase, que o autor denominou
de fase da luta internacional, ou da defesa armada. Foi o período em que se forma
uma primeira coalizão contra a República dos Sovietes; explode a guerra civil;
ocorre a intervenção externa e a adoção do comunismo de guerra.
Terceira fase, a da reconstrução econômica. Inicia-se em 1921, com a
adoção da Nova Política Econômica (Novaia Ekonomitcheskaia Politika, a NEP) e
termina em 1925-1926, com o retorno do nível de produção àquele do período
anterior à grande guerra (muito embora em 1926 a população russa fosse maior).
Quarta fase da história da revolução proletária da Rússia: final de 1925 ao
início de 1926. Completa-se a reconstrução econômica cinco anos após o término
da guerra civil (o que constituiu um grande êxito para um país duramente castigado
e dependente de seus próprios recursos). Portanto, em sua totalidade, a República
proletária conseguiu vencer a contrarrevolução, exercer o poder, organizar a
produção, resistir e vencer os inimigos internos e externos.
Mas, para os fins de nosso trabalho, adotamos uma periodização que abarca
o período de 1917 a janeiro de 1924, marcada por uma série de acontecimentos.
Assim, de outubro de 1917 a junho de 1918, destacamos o momento da
39

consolidação da revolução. De junho de 1918 ao final de 1920: guerra civil russa e


intervenção estrangeira, com a adoção do comunismo de guerra. Final de 1920 a
janeiro de 1924: construção do socialismo, com destaque para a adoção da NEP,
em março de 1921.
Dessa forma, de outubro de 1917 a junho de 1918, corresponde à fase em
que o poder bolchevique obtém as primeiras vitórias no campo militar sobre os
contra revolucionários: na revolta dos junkers40 e na ofensiva contra Kerenski e os
cossacos41. Vitórias também contra a burguesia e as classes médias, que aderiram
à contrarrevolução, por meio da sabotagem, greves gerais no governo, telégrafos,
correios, bancos, abastecimento etc. (REED, 1977, p.189 et seq; SERGE, 2007, p.
121 et seq).
Portanto, o que estava em pauta nesse período era, mediante a ofensiva
militar e os decretos legislativos, a aniquilação política e econômica dos latifundiários
e da burguesia. No campo da educação, o poder soviético tinha como objetivos
oferecer uma educação pública, gratuita, laica e de qualidade para o povo e para os
trabalhadores sem distinção de classes, condições dignas de trabalho e vida para os
professores.
É importante destacar que muito do que foi decretado pelo poder
bolchevique vinha sendo pensado e planejado muito antes da tomada do poder
político. Foram os temas relativos ao direito de autodeterminação dos povos, das
minorias e grupos étnicos russos, a condição da mulher, o programa agrário, a
educação, a reorganização do exército, dentre outros.
Durante todo o período que antecedeu o Outubro de 1917, Lenin tratou dos
mais variados assuntos, incluindo-se a cultura, a literatura, a arte, a educação, a
questão da autodeterminação dos povos, de modo que ele submetia suas análises,
críticas e ações a respeito desses temas, sempre iluminados sob a perspectiva do
derrube do czarismo; da preparação e da eclosão da revolução; da tomada do
poder; da construção da sociedade socialista. Ou seja, o político sempre projetava e
determinava as análises de Lenin, que apesar da prioridade dada à dimensão
40
Junkers: estudantes das escolas militares de formação de oficiais.
41
Cossacos: povos nômades ou seminômades eslavos das regiões do Dnieper, Don e Volga.
Pertenciam ao exército czarista, e assim eram isentos de pagar impostos. Participaram de ataques
contra judeus e operários. Após Outubro de 1917 muitos apoiaram o governo dos sovietes e lutaram
no Exército Vermelho contra os adversários da revolução (Adaptado de TROTSKI, 2007, p.31, nota
4). A propósito da campanha do Exército Vermelho na frente polonesa, com destaque para a
descrição dos destacamentos cossacos, sugerimos a consulta ao belo livro de contos de Isaac Babel
intitulado A cavalaria vermelha (BABEL, 1969).
40

política, tinha grande capacidade de transitar entre todos esses tópicos,


considerados de grande importância no conjunto de suas ações e reflexões.
Dessa forma, das muitas ações praticadas pelo Conselho dos Comissários
do Povo, destacamos a questão das declarações e decretos legislativos42 do
governo soviético, os quais tiveram importância fundamental no processo de
consolidação do poder proletário. Das dezenas de decretos instituídos43,
destacamos:
Os decretos de 26 de outubro (8 de novembro) de 1917:
1) decreto sobre a paz: declaração de uma paz justa, imediata e
democrática, sem anexações e indenizações;
2) decreto sobre a terra: abolição da propriedade privada da terra sem
qualquer indenização. Todas as terras pertencentes aos latifundiários, Coroa,
mosteiros, igreja, bem como o gado, dependências físicas e instrumentos de
trabalho passavam para o domínio dos Comitês da Terra e dos Sovietes Distritais de
Deputados Camponeses;
3) decreto da Constituição do Poder. Instituía um Governo Provisório de
Operários e Camponeses, denominado de Conselho dos Comissários do Povo, ao
qual caberia a administração dos diferentes setores da atividade estatal, mediante
atuação de diferentes comissões, baseadas nas organizações de operários,
camponeses e soldados, que no seu conjunto formava um colegiado. O controle das
atividades dos Comissários do Povo e o poder de os substituir, caberia ao
Congresso dos Sovietes e do seu Comitê Executivo Central. Na ocasião foram
nomeados, entre outros: o Presidente do Conselho dos Comissários: Lenin;
Educação popular: Lunacharski; Negócios estrangeiros: Trotski.
Decretos de novembro de 1917:
1) decreto abolindo as classes e títulos: abolição de todas as classes e
divisões de classes, privilégios, limitações de classe, organizações e instituições de
classe, títulos de nobreza e categorias civis. Todas as propriedades das

42
Carr (1981) aludiu ao fato de que muitos decretos foram baixados, mas não cumpridos na prática.
Isso é previsível, posto que para uma lei ser cumprida não basta ela ser promulgada. Mas supomos
que havia dois propósitos relativos à promulgação dos decretos: 1) um propósito prático, qual seja, de
instituir uma ordem socialista, que foi alcançada em parte com os decretos e ações da República
Soviética; 2) um propósito simbólico: mostrar ao povo russo e ao mundo as ações e os rumos da
revolução.
43
Consultar Reed (1977), Serge (2007) e o ANEXO II.
41

organizações e instituições de classe foram transferidas para os governos


autônomos municipais;
2) promulgação da Declaração dos direitos dos povos da Rússia, que
poderia ser resumido assim: direito de igualdade e soberania dos povos; direito dos
povos a dispor de si mesmos, até a se separar para constituir Estados
independentes; abolição de todos os privilégios nacionais e religiosos e livre
desenvolvimento de todas as minorias nacionais e etnográficas (SERGE, 2007,
p.141-142).
Decretos de dezembro 1917:
1) decreto do controle operário sobre a produção. Além de legalizar a gestão
das empresas pelos trabalhadores, o decreto abolia o segredo comercial;
2) decreto da nacionalização dos bancos. Fusão de todos os bancos
privados num banco estatal. Expropriação do capital financeiro;
Decretos de janeiro de 1918:
1) decreto sobre a anulação dos empréstimos estrangeiros, expropriação do
crédito estrangeiro;
2) destaque especial para a Declaração dos direitos do povo trabalhador e
explorado;
3) proclamação da República Federativa dos Sovietes da Rússia;
Decreto de junho de 1918, referente à nacionalização da grande indústria,
com a expropriação do grande capital industrial.
Mas, logo após a tomada do poder pelos bolcheviques, quase ninguém,
interna e externamente à Rússia, acreditava que eles conseguiriam manter-se no
poder. Inclusive a própria cúpula do poder bolchevique tinha consciência de que a
revolução só obteria sucesso se ela se tornasse internacional. Foi assim que,
segundo Carr (1981, p.19), os países beligerantes fizeram “ouvidos moucos” à
declaração de paz dos bolcheviques. O mesmo ocorreu com os primeiros decretos e
atos do Conselho dos Comissários do Povo: eles enfrentaram sabotagens,
resistência e muitos não foram cumpridos.
Porém, com o passar do tempo, o improvável aconteceu: a República dos
Sovietes foi conseguindo debelar os focos internos da contrarrevolução e
posteriormente assinar um armistício com a Alemanha (Tratado de Brest-Litovsk44),

44
O Tratado de Brest-Litovsk foi assinado na cidade de Brest-Litovsk, que fica na fronteira da Rússia
com a Polônia, em 3 de março de 1918, entre a Rússia soviética e a Alemanha e continha condições
42

o que lhe deu condições de atuar em outros setores, inclusive na organização do


Estado e do exército. Por outro lado, a saída da República Soviética da guerra
imperialista provocou intensa ira dos países da Entente45, já que a partir de então a
Alemanha poderia concentrar todo o seu poderio militar apenas na frente ocidental
(Idem, ibidem, p.16-17).
Mas o crucial ocorreu quando houve a expropriação das grandes indústrias,
do capital financeiro e a anulação das dívidas do governo czarista com o exterior.
Trotski mencionou que a revolução de outubro de 1917 havia sido uma revolução
incruenta, porque o governo anterior estava esgotado e desacreditado. A luta
sangrenta só começou depois, quando as classes possuidoras, apoiadas pelos
governos da Entente, entram numa luta encarniçada pela conquista do que haviam
perdido. Ou seja, quando elas foram atingidas no mais sensível e importante dos
seus pontos: “[...] no bolso [...]” (TROTSKY, 1978a, p.384, grifos nossos).
Para se ter uma ideia da dependência da Rússia do capital externo, cite-se
que
O grande império era, no reinado dos últimos Romanovs, meio
império e meio colônia. Acionistas ocidentais detinham 90% das minas
russas, 50% da sua indústria química, mais de 40% das indústrias
metalúrgicas e 42% das ações de bancos. O capital doméstico era escasso.
(DEUTSCHER, 1968a, p.10)

Tal mecanismo fora explicado por Lenin (LENINE [escrito em janeiro-junho


de 1916] 1980a, p.621 et seq) em O imperialismo, fase superior do capitalismo, no
tocante à exportação de capitais. Assim, em geral, na exportação de capitais para
países atrasados, a obtenção de lucros é elevada, pois nesses países os capitais
são escassos e o preço da terra, os salários e as matérias primas são baratas.
Mas a exportação só se efetivava em nações que já haviam sido
incorporadas ao capitalismo mundial, detendo condições materiais mínimas para o

muito duras para a Rússia. Pelo Tratado, a Rússia abria mão do controle sobre a Finlândia, Países
bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia), Polônia, Bielorússia e Ucrânia, bem como dos distritos turcos de
Ardaham e Kars, e do distrito georgiano de Batumi. Estes territórios continham um terço da população
da Rússia, metade de sua indústria e nove décimos de suas minas de carvão. O governo soviético foi
obrigado a assiná-lo, posto que o exército czarista se desagregara e o exército vermelho apenas
começava a ser formado. A paz de Brest, apesar de suas condições leoninas, deu ao país dos
Sovietes o tempo necessário para acumular forças, derrotando depois a burguesia contra
revolucionária interna e a intervenção externa. Após a revolução de novembro de 1918 na Alemanha,
o Tratado de Paz de Brest-Litovsk foi anulado pelo Comitê Executivo Central de Toda Rússia.
(LENINE, 1980a, p.730, nota 354; LENIN, 1968, p.43, nota 42).
45
Na Primeira Guerra Mundial (agosto de 1914-novembro de 1918), lutaram de um lado as Potências
Centrais ou Tríplice Aliança (Impérios Alemão, Austro-Húngaro e Turco-Otomano) e de outro os
países da Entente (Grã-Bretanha, França e Império Russo, até 1917 e a partir de 1917 também
Estados Unidos) (PARKER, 1993, p.248-249).
43

desenvolvimento do capitalismo internamente (meios de transporte, matérias primas,


mão de obra). Lenin também apresentou os locais para onde, em 1910
aproximadamente, o capital estava sendo exportado. Capital inglês: nas suas
colônias. França: principalmente Europa e em primeiro lugar na Rússia, sobretudo
na forma de empréstimos públicos.
Assim, no plano externo, em fins de setembro de 1918 a janeiro de 1919 os
Impérios Centrais capitulam e a primeira guerra chega ao fim. Porém, a Europa
estava arrasada e à beira da revolução social: grassavam a fome, o
desabastecimento e o cansaço do povo em relação à guerra.
Com a derrota da Alemanha na guerra, inicia-se a sua revolução, o que é
saudado pela República Soviética. Em cartas, Lenin e Trotski exaltaram os
acontecimentos, oferecendo apoio aos trabalhadores alemães e evocaram a
necessidade da criação de um exército vermelho internacional de 1 a 3 milhões de
homens. Foi um momento decisivo na história da humanidade: se a revolução na
Alemanha fosse vitoriosa e o proletariado alemão e europeu tivessem aderido à
revolução russa, o que teria sido do mundo? Mas, como todos sabemos, isso não
aconteceu e, de acordo com o que Lenin já previra, nunca o mundo esteve tão perto
da revolução mundial e ao mesmo tempo a revolução russa tão ameaçada (SERGE,
2007, p.405 et seq).
Por conseguinte, muitos abandonaram a ideia de que os bolcheviques eram
apenas um bando de anarquistas ou espiões da Alemanha e que não durariam
muito tempo no poder. Em outras palavras, o bolchevismo foi considerado
efetivamente como um perigo concreto para o capitalismo e para a burguesia
mundial e por isso devia ser varrido do mapa. Portanto, a decomposição do
imperialismo alemão provocou indiretamente para a revolução russa um imenso
perigo, pois a partir daquele momento os aliados poderiam direcionar todas as suas
forças contra a República dos Sovietes e assim o fizeram.
Pior do que isso, a Alemanha e os aliados se uniram contra a República
Soviética, deixando claro que os interesses de classe e a sacrossanta propriedade
privada eram muito mais importantes do que os interesses do Estado. Formou-se
assim uma coalizão imperialista com o claro objetivo de aniquilar a República dos
Sovietes (Idem, ibidem, p.405 et seq). Desse modo, se antes os setores dominantes
e as classes possuidoras da Rússia (autocracia, burguesia, pequena burguesia) não
acreditavam no sucesso da revolução, eram hostis e contrários ao poder proletário,
44

foi preciso que acontecesse a expropriação da propriedade privada e dos meios de


produção e o apoio da coalizão imperialista para que a guerra civil efetivamente
começasse.
Assim, com o fim da primeira guerra, os países imperialistas e a
contrarrevolução interna se organizam e investem numa guerra civil sangrenta e
sem precedentes, cujo resultado, em termos de mortos, foi da ordem de 13 milhões
de pessoas, quando computadas as mortes decorrentes dos combates, da fome e
das doenças (PARKER, 1995).
Tal ferocidade é compreensível, posto que uma guerra entre nações é muito
diferente de uma guerra entre classes. No primeiro caso, ainda podem existir
códigos de ética e leis internacionais que garantam, pelo menos teoricamente,
regras de conduta entre os combatentes:

O que acontece é que as guerras entre Estados são,


habitualmente, guerras intestinas entre ricos, que professam uma mesma
ética de classes, uma mesma concepção do direito. Tem sido mesmo muito
forte, em certas épocas, a tendência a reduzir a arte da guerra a um jogo
46
bastante convencional. [...] Os europeus só se afastam das regras atuais
da guerra com respeito a povos que consideram inferiores, do mesmo
modo, na guerra entre as classes, as classes dirigentes, convencidas de
estar defendendo a “civilização” contra a “barbárie” operária, acreditam que
todos os meios são lícitos. Estão em jogo interesses demasiado grandes,
todas as convenções são abolidas e como a ética - não existe uma ética
humana, só existem éticas de classes ou de grupos sociais – deixa de
exercer sobre os combatentes sua ação moderadora, as classes exploradas
rebeladas são declaradas pela contrarrevolução “indignas da humanidade”.
(SERGE, 2007, p.139)

Desse modo, uma guerra entre classes é completamente diferente, pois o


extermínio é uma necessidade tanto histórica quanto de cálculo, já que do ponto de
vista quantitativo a classe trabalhadora é a mais numerosa. Portanto, as classes
dominantes sabem que só poderão garantir seu domínio após vencer e infligir à
classe trabalhadora uma sangria violenta que a debilite por muitos anos (Idem,
ibidem, p.241).
Por conseguinte, sabemos, “[...] desde a Antiguidade, que as guerras entre
as classes são as mais terríveis. Não há vitórias mais sangrentas e mais atrozes do
que as das classes reacionárias.” (Idem, ibidem, p.238-239). O autor se referia
também aos atos praticados pela burguesia francesa na Comuna de Paris e às
ações do terror branco na Finlândia, quando o proletariado foi praticamente
dizimado. Em resumo:

46
A primeira edição do livro de Victor Serge data de 1930.
45

O extermínio total de todos os elementos avançados e


consistentes do proletariado é, em suma, o objetivo racional do terror
branco. Nesse sentido, uma revolução vencida – independentemente de
suas tendências – sempre custará muito mais caro ao proletariado do que
uma revolução vitoriosa, sejam quais forem os sacrifícios que esta última
possa exigir. (Idem, ibidem, p.241, grifos do autor)

É por isso que a classe trabalhadora, os expropriados ou os explorados em


geral, quando envolvidos numa guerra civil, não podem se dar ao luxo de ser
derrotados.
Mas não podemos ser ingênuos: após alguns momentos iniciais de
hesitação e certa condescendência para com os contra revolucionários brancos47, o
poder proletário investiu tudo na aniquilação da contrarrevolução, dos guardas
brancos e de todos os opositores ao sistema. Logo, a ferocidade da guerra
contaminou ambos os lados.

1.1.3 O comunismo de guerra


Foi na época da guerra civil que foi implantado o “comunismo de guerra”, em
meados de 1918. De acordo com Carr (1981, p.27 et seq), o termo expressou um
sentido contraditório e na prática representou a prioridade máxima dada à guerra
para vencer a contrarrevolução, em que quase toda a produção foi direcionada para
abastecer, equipar e dar condições ao exército para combater.
Os alimentos eram a prioridade e assim foram emitidos decretos para
confisco e distribuição de víveres. Ocorreu também a nacionalização dos principais
ramos da indústria, o recrutamento para o serviço militar e os sindicatos foram
postos de lado e se tornaram braços do Estado. A partir de então, muitas posições
assumidas antes da revolução pelos bolcheviques foram abandonadas na prática (o
poder aos sovietes; a autonomia dos trabalhadores; a defesa da liberdade no
socialismo etc.) (Idem, ibidem, p.27 et seq).
Para Rodrigues, L. M. e Fiore (1978, p.13), o comunismo de guerra
correspondeu aos anos

[...] da ampliação do controle estatal sobre a economia, da consolidação do


poder dos bolcheviques sobre o aparelho de Estado, da eliminação da
burguesia privada, do desaparecimento dos mecanismos de mercado e da

47
Serge (2003, p.135 et seq) relatou que logo após a destituição do governo provisório em outubro de
1917, a guarda vermelha revolucionária enfrentou alguns focos de resistência contra revolucionária
em Petrogrado, mas que foram debelados com relativa facilidade e os inimigos contra revolucionários
tiveram suas vidas poupadas. Foi um grave erro, pois os sobreviventes espalharam-se pelo país e
formaram novos focos de contrarrevolução que posteriormente vieram a receber apoio estrangeiro.
46

moeda. No tocante ao campesinato, o período é marcado pelas requisições


forçadas de cereais e pela tentativa de levar o comunismo ao campo [...].

De acordo com Deutscher (1968b, p.522), foi nessa época que

Os bolcheviques lutaram para exercer o mais rigoroso controle


sobre os escassos recursos, e desse esforço nasceu o comunismo de
guerra. Nacionalizaram toda a indústria. Proibiram o comércio privado.
Enviaram destacamentos de trabalhadores para o interior, para requisitar
alimentos para o Exército e os moradores da cidade. O governo era incapaz
de recolher tributos normais: não dispunha de uma máquina para tanto.
Para cobrir despesas, as prensas fabricavam dinheiro dia e noite. A moeda
desvalorizou-se tanto que os salários tinham de ser pagos com
mercadorias. A magra ração de alimento constituía o salário básico. O
trabalhador também era pago com parte de sua produção, um par de
sapatos ou algumas peças de roupa, que habitualmente trocava por
alimentos.

Nove (1986, p.108) declarou que o “[...] comunismo de guerra não foi
imposto como parte de um plano predeterminado.” Em sua totalidade, as ações
formavam um conjunto desesperado de expedientes em função da prioridade
absoluta destinada à guerra. A propósito, Lenin teria afirmado: “[...] tudo pela vitória
no fronte da guerra civil, e nada mais [...]”48 (LENIN, s.d. apud FERNANDES, 1978,
p.169). Ele também asseverou que o “[...] ‘comunismo de guerra’ foi-nos imposto
pela guerra e pela ruína. Não foi nem podia ser uma política que correspondesse às
tarefas econômicas do proletariado. Foi uma medida provisória.” (LENINE49 [escrito
em 21 de abril de 1921], 1980c, p.502).
Segundo Carr (1981, p.28), durante vários meses o regime viveu sem
qualquer planejamento. Não havia estratégia a longo prazo e as medidas eram
tomadas visando unicamente a sobrevivência imediata (HOBSBAWM, 1995, p.66 et
seq).
Nove (1986, p.108) também destacou o caráter ideológico do comunismo de
guerra, na medida em que alguns defendiam a ideia segundo a qual, através
daquelas práticas, ingressava-se num “atalho” para o comunismo, quando da
adoção da proibição do comércio privado e da eliminação do dinheiro. No plano
político, recrudesceu a centralização política e a hegemonia do partido único, que se
tornou sinônimo de Estado. Porém, a situação era clara: o comunismo de guerra foi
adotado não como um plano, mas como um conjunto de medidas para se vencer a
guerra.

48
Rapport d’activité politique du Comité Central du Parti Communiste (b) de Russie Le 8 mars. In:
LENIN. Oeuvres, v.32, déc. 1920 /août. 1921, p.176-199.
49
Sobre o imposto em espécie.
47

Sendo assim, esse sistema não poderia funcionar por muito tempo. As
requisições de alimentos à força e a proibição do comércio privado permitiram que o
governo controlasse as situações mais graves e emergentes, mas a longo prazo
essas ações agravaram e aceleraram a desintegração da economia. O camponês
começou a produzir apenas o necessário para sua sobrevivência e na medida em
que não havia alimento suficiente para a cidade, os fundamentos da civilização
urbana praticamente desabaram, de modo que:

As cidades da Rússia tornaram-se despovoadas. Os trabalhadores


dirigiram-se ao campo para fugir à fome. Os que ficavam para trás
desmaiavam nas bancas de trabalho, produziam muito pouco e
frequentemente roubavam o que produziam, para trocá-lo por alimento. O
velho mercado formal fora, realmente, abolido. Mas seu filho ilegítimo, o
mercado negro, saqueava o país, deformando e pervertendo,
vingativamente, as relações humanas. Isso poderia continuar por mais um
ano, aproximadamente, mas inevitavelmente o fim seria o colapso de todo o
governo e a dissolução da sociedade. (DEUTSCHER, 1968b, p.523)

De acordo com Reis Filho (2003, p. 70 et seq) a situação era desesperadora


e o governo revolucionário parecia condenado. Mas aos poucos o improvável tornou
a acontecer. Assim, ao final de 1919 – início de 1920, em função de um conjunto de
fatores e condições contrários à contrarrevolução e à intervenção estrangeira, a
correlação de forças tinha se alterado de forma radical em favor dos bolcheviques e
no ano de 1921 a Rússia finalmente encontrou a paz: “Os Exércitos Brancos foram
dissolvidos e desapareceram. Os exércitos da intervenção se retiraram. A paz com a
Polônia foi firmada. As fronteiras europeias da Federação Soviética foram traçadas e
consolidadas.“ (DEUTSCHER, 1968c, p.14).
Logo, a contrarrevolução estava debelada, mas

O país estava simplesmente arrasado. O produto industrial


registrava um declínio de mais de dois terços. Na grande indústria, a perda
chegava a 80%. A produção de petróleo, energia elétrica e carvão caíra em
mais de 70%. Em relação a outros setores estratégicos para o equilíbrio da
economia, como ferro, aço e açúcar, uma situação ainda mais desoladora:
quase 100% de queda. O mesmo ocorria no tocante ao comércio externo.
Quanto à produção agrícola, diminuição de quase metade.
Dados e estatísticas desfavoráveis, mas ainda faltaria acrescentar
as epidemias, o desgaste extremo, as crueldades típicas dos processos de
guerra civil, os traumas provocados pelo emprego sistemático do terror –
vermelho e branco -, incontáveis atrocidades, gerando um processo de
brutalização das relações sociais, caldo de cultura política que oferece o
quadro que ajuda a compreender muitos episódios que ainda haveriam de
vir. (REIS FILHO, 2003, p.71-72, grifos do autor)

Por todo o país havia a devastação, a fome, a desorganização:


48

Os anos de guerra mundial, Revolução, guerra civil e intervenção


provocaram a ruína total da economia russa e a desintegração de sua
estrutura social. Os bolcheviques tiveram de arrancar de uma economia
arruinada os meios da guerra civil. Em 1919 o Exército Vermelho já
consumira todos os estoques de munições e outros abastecimentos. As
indústrias sob controle soviético não podiam substituí-los senão
parcialmente. Normalmente, a Rússia meridional fornecia combustível, ferro,
aço e matéria-prima às indústrias da Rússia central e setentrional. Mas o
50
Sul do país, ocupado primeiro pelos alemães e depois por Denikin , só
esteve sob controle soviético em períodos intermitentes e breves. Quando
finalmente, em fins de 1919, os bolcheviques voltaram a ocupá-lo para
sempre, verificaram que as minas de carvão do vale do Donetz foram
inundadas, e as outras indústrias destruídas. Privados de combustível e
matéria-prima, os centros industriais do resto do país ficaram paralisados.
Mesmo em fins de 1920 as minas de carvão produziam menos de um
décimo e as usinas de ferro e aço, menos de um vigésimo da produção de
antes da guerra. A produção de bens de consumo era cerca de um quarto
do normal. O desastre tornou-se ainda pior com a destruição dos
transportes. Em todo o país, as linhas ferroviárias e as pontes foram
dinamitadas. O material rolante não fora renovado e raramente fora
submetido a uma manutenção adequada, desde 1914. O transporte
aproximava-se, inexoravelmente, de um ponto morto. (DEUTSCHER,
1968b, p.521-522)

No plano internacional e contrariando as previsões dos bolcheviques, a


revolução proletária não aconteceu e a Rússia ficou isolada. Internamente, as
requisições forçadas de alimentos provocaram grande descontentamento no campo,
ameaçando seriamente o poder bolchevique e a frágil aliança com o proletariado.
Para complicar mais ainda a situação, em 1921 explode a revolta dos marinheiros de
Kronstadt, desta vez contra o governo operário, que entre outras coisas, clamavam
por democracia e o retorno aos princípios da Revolução de Outubro. Nas cidades, o
descontentamento e a fome também eram generalizados.
No inverno de 1921-22, houve uma grande fome, que junto com as
epidemias, matou cerca de cinco milhões de pessoas. Assim,

Uma das piores fomes da História visitou as populosas terras agrícolas do


Volga. Já na primavera de 1921, pouco depois do levante de Kronstadt,
Moscou alarmara-se com as notícias sobre secas, tempestades de areia e
uma invasão de gafanhotos nas províncias do sul e sudeste. O governo
engoliu seu orgulho e pediu socorro às organizações filantrópicas
burguesas no exterior. [...] Em fins do ano, o número de famintos se elevara
a 36 milhões. Multidões incontáveis fugiam ante as tempestades de areia e
os gafanhotos e vagavam num desespero sem objetivo, pelas planícies
enormes. Reapareceu o canibalismo e as capitais mostravam apenas um
cadavérico arremedo dos altos ideais e aspirações socialistas. (Idem,
1968c, p.15)

Havia um quadro de descontentamento generalizado e a sociedade estava à


beira da dissolução. A política do comunismo de guerra tornara-se inviável. Desse
50
Denikin – líder contra revolucionário que comandou tropas durante a guerra civil contra o poder
soviético.
49

modo, era preciso adotar medidas não para construir o socialismo, mas para matar a
fome e reconstruir o país. Tais medidas teriam nome: a Nova Política Econômica
(REIS FILHO, 2003, p.77 et seq).

1.1.4 A Nova Política Econômica e a adoção do modelo de Partido


Único
No X Congresso do Partido Comunista, em março de 1921, Lenin (LENINE
[publicado integralmente pela primeira vez em 1963], 1980c) lançou formalmente a
Nova Política Econômica, ou a política econômica do Estado proletário na passagem
do capitalismo ao socialismo. Nova, para diferenciá-la da política econômica adotada
durante a guerra civil (o comunismo de guerra).
Na ocasião, Lenin reconheceu o erro de se tentar passar imediatamente ao
comunismo pela adoção do comunismo de guerra e anunciou as principais medidas
a serem adotadas.

A partir daí, a RSFSR passava para uma política econômica de


estímulo à pequena empresa, de reativação do comércio privado, de
reanimação do capitalismo, de concessões ao capital estrangeiro. Na
agricultura, a NEP significava principalmente a substituição das requisições
forçadas de matérias-primas e víveres (especialmente de trigo) para uma
política que Lenin denominaria de “imposto em espécie”. Os camponeses,
depois da entrega de uma parcela de sua produção ao Estado, poderiam
comercializar o restante no “mercado capitalista” e obter certo lucro.
(RODRIGUES, L. M. e FIORE, 1978, p.18)

A NEP não foi um modelo elaborado mais do que havia sido o comunismo
de guerra. As principais medidas adotadas foram: as requisições de alimentos foram
substituídas por um imposto em espécie e depois de pago o imposto, o excedente
poderia ser comercializado; restabelecimento da pequena propriedade privada na
indústria e serviços em geral. Isto é, foi permitido o comércio ao nível da produção e
da circulação de mercadorias (NOVE, 1986; REIS FILHO, 2003, p.77 et seq).
A ideia era fazer concessões e reativar o capitalismo, sob a tutela do Estado
proletário num país em que a terra, as fábricas e o sistema monetário haviam sido
estatizados. O princípio, “[...] portanto, era permitir o intercâmbio capitalista, apesar
de todos os riscos políticos aí envolvidos.” (RODRIGUES, L. M. e FIORE, 1978,
p.19). Lenin admitiu que a NEP era um retrocesso, pois haveria certo retorno ao
capitalismo, na medida em que o lucro, o livre intercâmbio de mercadorias, o
enriquecimento individual seriam permitidos e mesmo estimulados.
Seria um retrocesso ante as expectativas dos bolcheviques. Porém, na
50

medida em que os meios de produção haviam sido estatizados, a crença era a de


não havia como retroceder ao modo de produção capitalista propriamente dito. O
objetivo então era desenvolver aquilo que Lenin denominou de capitalismo de
Estado, posto que o capitalismo ocorreria sob a tutela do Estado soviético (Idem,
ibidem, p.19-20).
Enfim, com a NEP, o objetivo era reconstruir uma economia devastada pela
guerra; amenizar o descontentamento no campo e tentar restabelecer os laços entre
o campesinato e o proletariado; desenvolver imediatamente o capitalismo sob a
tutela do Estado proletário e consequentemente alcançar o desenvolvimento das
forças produtivas.
No plano político, se durante a economia de guerra houve concentração da
autoridade política mediante a centralização do poder no Partido, tal concentração
intensificou-se ainda mais, de modo que todos os partidos de oposição foram
eliminados e proibidas a oposição formal e as divisões internas. Na prática, os
bolcheviques se apropriaram do poder do Estado e debelaram a oposição dos outros
partidos, de modo que o Partido e o Estado progressivamente vão se tornando
sinônimos (CARR, 1981, p.39 et seq; NOVE, 1986; RODRIGUES, L. M. e FIORE,
1978).
Deutscher (1968a; 1968c) e Serge (2007) mencionaram que vários foram os
motivos pelos quais os bolcheviques agiram no sentido da centralização do poder,
do abandono dos ideais de democracia e liberdade dos sovietes.
Após anos de guerra, a classe trabalhadora fora quase dizimada, restando
apenas uma sombra dela. Os operários encontravam-se dispersos e sem coesão –
seus quadros mais combativos, corajosos e inteligentes haviam morrido ou foram
incorporados ao governo e assim muitos se “burocratizaram”. Havia ainda os que se
tornaram declassés: com as fábricas praticamente paradas, muitos trabalhadores
fugiram para o campo, onde era mais fácil conseguir comida e outros viviam do
mercado negro, muitas vezes negociando mercadorias roubadas das fábricas.
Deutscher (1968c, p.20 et seq) declarou que ocorreu o virtual
desaparecimento num breve lapso de tempo de uma classe social vigorosa e
militante no cenário político, associado à quase desagregação da sociedade. Logo,
formou-se um vácuo político e social que precisava ser recomposto com rapidez. O
partido encontrava-se numa encruzilhada histórica e num dilema ético atroz –
continuar no poder sem o respaldo da classe operária, renunciando aos princípios
51

de liberdade, democracia, legitimidade das organizações soviéticas e da revolução


de Outubro, ou entregar o poder?
Assim, os bolcheviques substituíram a classe trabalhadora pelo seu próprio
partido, assumindo-se como partido único. A ditadura do proletariado, cujo poder se
assentava nas organizações soviéticas, acabou por se tornar a ditadura do partido
bolchevique:

[...] sua intenção [do partido bolchevique, era] de reagrupar, no curso da


reconstrução econômica, uma nova classe trabalhadora que deveria ser
capaz, no devido tempo, de tomar nas mãos o destino do país. Enquanto
isso, o Partido Bolchevique mantinha-se no poder pela usurpação. (Idem,
ibidem, p.20)

As consequências disso são previsíveis: o partido e o governo perderam sua


vida interna, sua vitalidade, seu caráter democrático, de discussão, de
contraposição. Os debates teóricos e práticos praticamente desapareceram. Logo, o
poder se concentrou no “núcleo duro”, composto pela velha guarda bolchevique, que
com muita dificuldade ainda mantinha e valorizava a disciplina, os valores e ideais
da revolução e do socialismo de antes da guerra civil. Mas mesmo assim, muitos
deles se renderam à corrupção pelo poder, às pressões sociais, ao cansaço e a
outras influências (Idem, ibidem, p.31).
Por conseguinte, os bolcheviques assumiram a posição de uma elite
revolucionária sem classe revolucionária para respaldá-la. O argumento deles era
que o recrudescimento da centralização e da violência era também uma resposta
inevitável à atuação daqueles que empregavam todos os meios para derrubar o
governo dos sovietes: a ofensiva militar, o bloqueio econômico, as sabotagens
internas e o terrorismo (que fora empregado contra um diplomata alemão e contra a
vida de Lenin).
Não se deve esquecer que o governo proletário havia saído recentemente
de uma guerra civil por demais violenta, em que as partes beligerantes entregaram-
se a uma luta feroz e encarniçada. Vencida a guerra, os bolcheviques não podiam
correr o risco de entregar o poder aos inimigos que eles haviam acabado de vencer.
A propósito, Deutscher (1968a, p.29-30) nos explicou:

Por via de regra, uma guerra civil resulta no monopólio do poder pelos
vencedores. O sistema de partido único converteu-se numa necessidade
inevitável para os bolcheviques. Sua própria sobrevivência e, sem dúvida, a
da Revolução, dependiam disso. Não visavam tal medida com
premeditação. Estabeleceram-na com apreensão, como um expediente
temporário. O sistema de partido único ia contra as inclinações, a lógica e
as ideias de Lenin, Trotski, Kamenev, Bukarin, Lunacharski, Rikov e tantos
52

outros. Mas a lógica da situação impôs-se e fez tábua rasa de suas ideias e
escrúpulos. O expediente temporário converteu-se em norma. O sistema de
partido único adquiriu uma permanência e um ímpeto próprios.

Portanto, a concentração do poder do partido, de exceção tornou-se regra.


Contudo, isso teve o seu revés trágico – ela foi a base de sustentação da
ditadura stalinista. Essas foram as “[...] origens autênticas da chamada
degenerescência burguesa do regime [...]” (Idem, ibidem, p.28), que será analisada
posteriormente por nós sob o título de contrarrevolução burocrática51(BENSAID,
2000a, p.171 et seq).

1.2 Elementos políticos


1.2.1 O papel e a importância de Lenin para a Revolução Bolchevique
de Outubro de 1917

A vitória da revolução russa em outubro de 1917 fundou, pela


primeira vez, um Estado com direção marxista. Estrategista e líder da
primeira e maior revolução socialista no mundo, do Partido Bolchevique e
do movimento comunista internacional, Lenin ocupa na história do marxismo
um lugar precedido somente por Marx. Ele foi definido como “talvez o maior
52
revolucionário de todos os tempos” . As consequências da sua atividade na
história do mundo fizeram com que muitos o considerassem o personagem
mais importante deste século. Sua prática revolucionária liga-se à
adaptação criativa e original do marxismo aos problemas de um mundo
bastante diferente daquele no qual Marx e Engels elaboraram as suas
ideias. Sua obra, tanto teórica como prática, que se desdobrou nos mais
variados campos, suscitou infinitas discussões. (JOHNSTONE, 1985,
p.113).

Vista em perspectiva, a figura de Lenin confunde-se com a história da


Revolução de Outubro. Ele pertenceu ao Partido Social Democrata Russo53 e foi um
incansável organizador do partido revolucionário, além de fazer a crítica e romper
com as concepções revisionistas, reformistas e oportunistas54 da Europa ocidental e
da II Internacional. Lenin renovou de forma original a teoria da revolução marxista,
aclimantando o marxismo à realidade russa, ao produzir uma síntese que preservou
elementos ortodoxos do marxismo com a tradição política russa. Essa tarefa foi a
51
Consultar o item 4.3.5 Contrarrevolução burocrática, carência, escassez e educação.
52
CARR, E.H. La rivoluzione bolscevica (1917-1923). Turim, 1964, p.26.
53
O Partido Operário Social-Democrata Russo, ou POSDR foi um partido político socialista russo
fundado em 1898 em Minsk, com o objetivo de unir as várias organizações revolucionárias em um
partido único. O POSDR mais tarde se dividiria nas facções Bolcheviques (bol’chinstvo, maioria) e
Mencheviques (men’chinstvo, minoria), dando origem aos Partidos Bolchevique e Menchevique,
respectivamente. Após Outubro de 1917, os bolcheviques assumem a primazia política do Conselho
dos Comissários do Povo e tornam-se o Partido Comunista da Rússia (bolchevique) - PCR(b) - e
posteriormente Partido Comunista da União Soviética (PCUS) (REIS FILHO, 2003, p.40).
54
Sobre as críticas de Lenin ao economicismo, oportunismo, reformismo, sugerimos consultar Que
fazer?
53

“[...] a epítome de um século de esforços revolucionários russos.” (DEUTSCHER,


1968a, p.15)55.
Superando criticamente algumas vertentes socialistas, Lenin sistematizou
um pensamento segundo o qual a via para o socialismo deveria passar por uma
tomada violenta do poder. Tratava-se de uma revisão da teoria marxista da
revolução, em que as condições políticas assumiam proeminência relativa em
relação à maturidade das condições econômico-sociais (BENSAID, 2000b, REIMAN,
1985). Ou seja, ele não pensava que a revolução aconteceria só quando se
instalassem as condições objetivas ideais.
De modo diferente, aproveitava todas as condições objetivas existentes (os
ganhos em termos da democracia burguesa; a atividade operária; as vacilações dos
setores e partidos burgueses e pequenos burgueses; a insatisfação social etc.),
sempre visando a curto, médio e longo prazo os objetivos finais da destruição
completa do capitalismo; o período de transição do capitalismo ao comunismo e a
edificação do comunismo (FERNANDES, 1978, p.19). É sob tal ótica que Lenin via
sempre os problemas particulares como momentos de um projeto de ação política e
social mais amplo (STRADA, 1987, p.115).
Assim, Lenin era firme e inflexível quanto aos seus princípios e objetivos
finais e estratégicos, mas pragmático e extremamente flexível na interpretação dos
fatos, na leitura das condições objetivas e nas possibilidades de ação imediata na
luta revolucionária para se alcançar aqueles objetivos estratégicos (FERNANDES,
1978, p.12). Implacável e inflexível contra os inimigos de classe, era otimista,
incentivador, esperançoso e camarada para com a classe trabalhadora.
Foi assim que ele impôs a si como tarefa de sua vida “[...] a adequação
instrumental, institucional e política do marxismo à concretização da revolução
proletária.” (Idem, ibidem, p.16). É dessa forma que o ponto central da tomada do
poder se constitui em saber como o proletariado, enquanto classe oprimida e
explorada chega ao poder, concentrado e disciplinado de forma revolucionária.
Tal era a essência do problema político da sociedade de classes, que só
poderia ser resolvido mediante a definição das formas possíveis de luta

55
Para uma visão mais detalhada da análise de Lenin a respeito dos problemas relacionados ao
movimento operário, socialista e revolucionário europeu e russo ao final do século XIX – início do
século XX; bem como suas críticas acerbas contra as tendências reformistas, revisionistas e
economicistas existentes à época, recomendamos consultar Que fazer? e A doença infantil do
“esquerdismo” no comunismo.
54

revolucionária dentro da sociedade de classes, por meio: 1) da atuação do partido


revolucionário, como vanguarda; 2) da ruptura radical com todas as formas diretas
ou indiretas, visíveis ou invisíveis de acomodação à ordem burguesa; e 3): da

[...] educação política do proletariado e, na medida do possível, das massas


pobres e da pequena burguesia, através de situações e de reivindicações
concretas, do desenvolvimento da consciência de classe e da agudização
(aos níveis econômico, sócio-cultural e político) dos conflitos de classe.
(Idem, ibidem, p.17-18, grifos nossos)

O percurso, as preocupações e ações de Lenin entre fevereiro a outubro de


1917 são conhecidos (ZIZEK, 2005) – colérico, intransigente, desesperado –, em
que ele exorta, planeja, organiza e lidera, juntamente com Trotski, a insurreição de
25 de outubro de 1917. Em outras palavras, ele foi o principal dirigente da revolução
bolchevique em suas diferentes etapas e particularmente na fase decisiva da
revolução (FERNANDES, 1978, p.5).
Segundo Hobsbawm (1995, p.67), o gênio de Lenin foi transformar a massa
incontrolável e anárquica, quando da eclosão da revolução, em poder bolchevique.
Com efeito, ele representou a vontade sublimada das aspirações revolucionárias e
socialistas do proletariado e do povo russo e foi

[...] o verdadeiro artífice da vitória, nos momentos difíceis da tomada do


poder e da construção das estratégias vinculadas à destruição da ordem
burguesa, à consolidação do Estado proletário e à transição gradual para o
socialismo sob a hegemonia do poder soviético – bem como o inspirador da
rearticulação do internacionalismo socialista como movimento mundial.
(FERNANDES, 1978, p.7)

Porém, não se deve transformar a história da revolução de outubro na


história de um gênio solitário pairando acima das massas, do partido e das
organizações soviéticas. Lenin foi vitorioso porque soube calibrar de forma rigorosa
e precisa suas ações ao curso da história, de modo que seus apelos encontraram
eco na incrível explosão de democracia popular (ZIZEK, 2005, p.11). Outro grave
erro seria desconsiderar o papel e a importância do Partido Bolchevique:

A Revolução de Outubro nos oferece o exemplo de um partido proletário,


por assim dizer, ideal. Relativamente pouco numeroso, na verdade, seus
militantes vivem com as massas, no seio das massas; longos anos de
provações – uma revolução, a ilegalidade, o exílio, a prisão, incessantes
lutas de ideias – formaram seus quadros admiráveis e chefes autênticos,
cuja ação comum concretizou a unidade de pensamento. A iniciativa de
todos e o realce de personalidades fortes se harmonizam no partido com
uma centralização inteligente, uma disciplina voluntária, o respeito às
direções reconhecidas. Esse partido, dotado de excelente aparelho de
organização, não apresenta a menor deformação burocrática. Nele não se
observa nenhum fetichismo, não possui tradições malsãs ou sequer
55

equívocas; sua tradição principal é a da guerra ao oportunismo; ele é


revolucionário até a medula dos ossos. (SERGE, 2007, p.83)

Seu núcleo duro era composto por alguns jovens inteligentes, disciplinados e
dedicados até a alma à causa do socialismo e da revolução. Em seu conjunto, sob a
liderança de Lenin, Trotski, Krilenko e outros, o Partido formava um todo organizado
e combativo, disposto a ir às últimas consequências por seus ideais. “Essa é a
história não contada da Revolução de Outubro, o oposto do mito de um pequeno
grupo de revolucionários implacavelmente dedicados que deram um golpe de
Estado.” (ZIZEK, 2005, p.11).
Lenin se considerava um marxista e procurou ser um marxista ortodoxo. Ele
foi diretamente aos textos de Marx e Engels, estudando-os sistematicamente, mas
também procurou dominar os autores que fundamentaram as bases da formação do
marxismo, entre eles Hegel. Foi assim que sua primeira obra de fôlego, O
desenvolvimento do capitalismo na Rússia, evidenciou que Lenin detinha um
completo domínio crítico das teorias econômicas de Marx e do materialismo histórico
e que ele se sustentava nas teorias econômicas de Marx como hipóteses diretrizes,
assegurando um trabalho criativo aplicado à realidade russa (FERNANDES, 1978,
p.14).
Ele também detinha um agudo senso dialético, posto que a dialética exige
que “[...] um fenômeno social seja estudado sob todos os ângulos, e que a
aparência, o aspecto exterior seja reduzido às forças motrizes capitais, ao
desenvolvimento das forças produtivas e à luta de classes.”56 (LENIN, s.d. apud
FERNANDES, 1978, p.28). Nesse sentido, as estruturas não podem ser tomadas em
si e por si mesmas, mas como elementos dinâmicos, concretos, reais, em
movimento – as condições histórico-sociais concretas, cujos fundamentos seriam o
desenvolvimento das forças produtivas e a luta de classes.
Lenin não era daqueles que esperam o tempo certo, mas aquele que
percebe a perspectiva revolucionária como algo real que deve ser apreendida a
partir dos desvios e contradições do sistema. Era o tipo de homem que “faz história”,
isto é, age nos acontecimentos, modificando-os e transformando-os (ZIZEK, 2005,
p.14). Não se trata de subjetivismo voluntarista, mas da união indissolúvel entre a
aguda capacidade de apreensão e de intervenção no real.

56
LENIN. Oeuvres, v.21, août.1914/déc. 1915, s.d., p.221.
56

O saber político em Lenin assume nuanças e flutuações, que resulta das


múltiplas aplicações nas situações, problemas e dramas coletivos. Ele emerge sob o
signo da história e ao mesmo tempo procura “fazer a história” – acelerar e alterar o
rumo dos acontecimentos (FERNANDES, 1978, p.35). É assim que Lenin dotava a
política de uma temporalidade própria:

Quer se trate da representação, da organização, da estratégia, o


pensamento político de Lenin é a cada momento a elaboração de uma
temporalidade específica. Culmina na compreensão de crises, de guerras e
de revoluções, do momento insurrecional decisivo. (BENSAID, 2000b,
p.186).

Em mais de uma vez Lenin expressou-se sobre esse assunto, como na


“metáfora da corrente” e nas transcrições subsequentes:

Não basta ser revolucionário e partidário do socialismo ou


comunista em geral. É necessário saber encontrar em cada momento
particular o elo particular da cadeia a que temos de nos agarrar com todas
as forças para reter toda a cadeia e preparar solidamente a passagem para
o elo seguinte; a ordem dos elos, a sua forma, o seu encadeamento, a
diferença entre uns e outros na cadeia histórica dos acontecimentos não
são tão simples nem tão rudimentares como uma cadeia vulgar feita pelo
57
ferreiro. (LENINE , [escrito entre 13 e 26 de abril de 1918], 1980b, p.585)

É importante compreender que, em tempo de revolução, a


situação objetiva muda tão rápida e bruscamente como corre rapidamente a
vida em geral. E devemos saber adaptar nossa tática e nossas tarefas
58
imediatas às particularidades de cada situação. (LENIN , [escrita entre final
de março e início de abril de 1917], 2005, p.54, grifos do autor)

As dificuldades são imensas. Estamos acostumados a lutar contra


dificuldades imensas. Não sem razão têm dito nossos inimigos que somos
“firmes como a rocha” e que representamos uma política que “faz estalar os
ossos”. Mas aprendemos também, ao menos até certo ponto, outra arte
imprescindível na revolução: a flexibilidade, o saber mudar de tática com
rapidez e decisão, partindo das transformações verificadas nas condições
objetivas e escolhendo outro caminho para alcançar nossos fins, se o que
seguíamos revela-se inconveniente ou impossível num período
59
determinado. (LENIN [escrito em 14 de outubro de 1921], 1968, p.133).

Segundo Lukács (2009, p.126), Lenin representou magistralmente a XI Tese


sobre Feuerbach, segundo a qual a filosofia deveria passar da reflexão para a
transformação da realidade. Lenin encarnou a práxis como a indissolúvel associação
entre teoria e prática, em que se sobressai sua grande capacidade de “leitura
teórica” do real, adequando-a à consecução de ações para transformação desse
mesmo real. Ou seja, para ele, a transformação da realidade jamais estava

57
As tarefas imediatas do poder soviético.
58
Cartas de longe.
59
Por ocasião do IV Aniversário da Revolução de Outubro.
57

dissociada da sua análise crítica, profunda e rigorosa, mas adequada a cada


situação e problema particulares.

1.2.2 O pensamento político de Lenin

Lenin nasceu, cresceu e viveu para a ação política – não para a


ação política comum ou convencional, dentro das regras do jogo, para a
qual também estaria credenciado, mas para a ação política revolucionária,
consagrada ao socialismo. Todo o seu pensamento é político: em suas
origens, em suas motivações ou em seus alvos. (FERNANDES, 1978, p.33).

Para Lenin, a política se baseia em algumas premissas já expostas


anteriormente. Ou seja, sua motivação política está associada à destruição da
autocracia e do capitalismo e à construção do socialismo e do comunismo. E o
agora é dado pelas possibilidades imediatas do que é necessário fazer para se
alcançar estes objetivos.
Lenin expressou sua posição sobre o que é a política em pelo menos duas
ocasiões. Em seu discurso na Conferência de toda a Rússia dos Comitês de
Instrução Política das secções de Gubernia60 e UEZD61 da instrução pública ele
asseverou: “A política é a luta entre as classes [...].” (LENINE [proferido em 3 de
novembro de 1920], 1980c, p. 405). E quando da realização do X Congresso do
PCR(b), em março de 1921, ao fazer um balanço do comunismo de guerra e lançar
a NEP: “A política é a relação entre as classes [...]” (Idem, ibidem, p.484).
Note-se que o emprego dos termos luta e relação para ambas as acepções
do que é política explica-se pelo contexto em que foram proferidas. No primeiro
caso, o termo luta se relaciona com a tarefa de vencer a resistência dos capitalistas,
no campo militar, ideológico e político. Já o contexto em que Lenin se refere ao
termo relação trata-se da necessidade de se restabelecer a união entre os
camponeses e os trabalhadores, profundamente abalada naquele momento pela
adoção do comunismo de guerra. Isto é, o emprego de termos diferentes se justifica
pelos contextos diferentes em que as frases foram proferidas. O que se sobressai é
que nos dois casos a política se caracteriza por uma relação que se estabelece
entre as classes, a qual pode ou não ser de luta ou de oposição.

60
Gubernia - província ou unidade territorial e administrativa da Rússia. As gubernias dividiam-se em
uezdes (distritos), que por sua vez dividiam-se em vólosti (subdistritos). Este sistema prevaleceu de
1708 a 1929, quando houve uma reforma administrativa. (CARVALHO, F. M. de 2005a, p.13).
61
Ver a nota anterior.
58

No caso do conceito de classe social, baseamo-nos primeiramente no texto


Uma grande iniciativa, no qual, ao tratar da supressão das classes sociais, Lenin
([escrito em 28 de junho de 1919] 1968, p.76) expressou sua concepção de classe
social da seguinte forma:

As classes são grandes grupos de homens que se diferenciam entre si pelo


lugar que ocupam num sistema de produção social historicamente
determinado, pelas relações em que se encontram com respeito aos meios
de produção (relações que as leis referendam e formulam em grande parte),
pelo papel que desempenham na organização social do trabalho, e,
consequentemente, pela maneira e pela proporção em que percebem a
parte de riqueza social de que dispõem. As classes são grupos humanos,
um dos quais pode apropriar-se do trabalho de outro por ocupar postos
diferentes num regime determinado de economia social.

Já em seu discurso proferido quando da realização do III Congresso de toda


a Rússia da União Comunista da Juventude da Rússia, ao falar sobre as tarefas das
uniões da juventude, Lenin (LENINE62 [proferido em 2 de outubro de 1920], 1980c,
p.392) afirmou:

E que são as classes em geral? São aquilo que permite a uma


parte da sociedade apropriar-se do trabalho da outra. Se uma parte da
sociedade se apropria de toda a terra, temos as classes dos latifundiários e
dos camponeses. Se uma parte da sociedade tem as fábricas, tem as ações
e os capitais, enquanto a outra trabalha nessas fábricas, temos as classes
dos capitalistas e dos proletários.

E o que seria luta de classes? Diferentemente de uma definição ou de um


conceito do que seja luta de classes, nesse caso nós recorremos à forma como
Lenin analisou o desenrolar dos acontecimentos, durante o período de fevereiro a
outubro de 1917. Ou seja, às vésperas da Revolução de Outubro de 1917.
Assim, na primeira Carta de longe Lenin ([escrita entre final de março-início
de abril de 1917], 2005, p.25-35) expôs de modo exemplar quais eram as principais
classes sociais na Rússia, quem eram os seus representantes, quais forças políticas
e econômicas elas mobilizavam, quais os interesses em jogo e como tais interesses
determinavam as ações das classes em luta.
É dessa forma que ele explicou como a autocracia, que durou séculos, pôde
ser derrubada em alguns dias – formou-se uma coalizão de vários setores e partidos
da sociedade, que insatisfeitos com as ações da autocracia (dentre elas, a trama de
uma paz secreta e em separado com a Alemanha), promoveram a destituição do
czar, para que a guerra continuasse e para que os lucros da burguesia e os

62
As tarefas das uniões da juventude.
59

investimentos da França e da Inglaterra não fossem prejudicados. Portanto, o


objetivo não declarado era substituir Nicolau Romanov por alguém mais enérgico na
condução da guerra e dar continuidade a ela.
A situação política descrita era a de que os burgueses e capitalistas é que
detinham o poder econômico, por meio dos postos de administração, do exército e
da economia. Bastou a sua decisão, somada aos interesses da Inglaterra e da
França para que o czar fosse destituído. Na ocasião, as três principais forças em
luta eram a monarquia czarista; o governo provisório burguês, cujo objetivo era dar
continuidade à guerra imperialista; e o soviete dos deputados operários. Assim, a
luta dessas três classes é que determinava a situação política daquele momento e
que iria constituir a transição da primeira etapa da revolução (democrático-burguesa)
para a segunda etapa (socialista).
Esta era a situação, a qual deveria ser definida o mais precisamente
possível, para sobre ela traçar-se a tática marxista para tomada do poder.
Por consequência, a nosso ver, para Lenin, classe social é o substrato
essencial da política, a qual sempre implica numa relação, em função do contexto,
das forças políticas que as classes são capazes de mobilizar e das suas motivações
e objetivos econômicos. O que determina se essa relação é de luta ou oposição é a
forma pela qual as classes se apropriam ou não da riqueza produzida socialmente.
Se o que predomina é uma relação entre uma classe que se apropria privadamente
da riqueza produzida socialmente, em detrimento de outra que produz coletivamente
a riqueza e além disso é expropriada e explorada, então temos uma relação de luta
de classes, em que os interesses de ambas necessariamente são opostos e
inconciliáveis. Foi assim que Lenin assumiu uma posição de classe em favor dos
trabalhadores.
Enfim, política para Lenin não é apenas uma relação que se estabelece
entre classes sociais, que, tratando-se de classes que assumem posições opostas e
inconciliáveis na produção da riqueza social é uma relação de luta. Política é tomar
partido, é atuar na luta de classes em favor da classe trabalhadora, assumir
posições, modificar e transformar as circunstâncias, empregar todos os esforços e
meios visando a destruição do capitalismo e a construção do comunismo.
60

1.2.3 Socialismo, comunismo, ditadura do proletariado, revolução em


Lenin
Em O Estado e a revolução (LENINE [escrito entre agosto-setembro de
1917, 1980b), Lenin afirmou que o Estado é o órgão de dominação e opressão de
uma classe por outra, mediante basicamente: a) a criação de uma ordem que
legaliza (a lei burguesa) e consolida essa opressão com o objetivo de moderar o
conflito de classe; b) a atuação das forças policiais e do exército, como principais
instrumentos de repressão do Estado. Logo, se o Estado é o produto do caráter
inconciliável das classes, a emancipação da classe oprimida é impossível sem a
realização de uma revolução violenta e sem a destruição do próprio Estado que foi
criado e é mantido pela classe dominante.
Tal posição se assenta nas premissas existentes no Manifesto do Partido
Comunista e sinteticamente, referem-se à derrubada violenta do Estado burguês e à
destruição das instituições burguesas. Foi nesse sentido que Lenin63 ([escrito em
meados de julho de 1917] 2005, p.69) escreveu: “[...] a questão do poder é a
questão fundamental de qualquer revolução.”
Também:

A questão mais importante de qualquer revolução é sem dúvida a


questão do poder do Estado. Nas mãos de que classe está o poder, é isto
que decide tudo.
[...]
Não é possível eludir nem afastar a questão do poder, pois esta é
a questão fundamental, que determina tudo no desenvolvimento da
64
revolução, em sua política interna e externa. (LENIN [publicado em
setembro de 1917], 2005, p.113, grifo do autor)

Assim, a tomada violenta do poder é condição sine qua non para a


derrubada do Estado burguês, posto que, evidentemente, ninguém entrega o poder
e a propriedade privada sem luta. Por conseguinte, a classe proletária, ao fazer a
revolução, deverá: 1) substituir o Estado burguês por um Estado operário; 2)
promover a socialização dos meios de produção.
Por sua vez, a ditadura do proletariado seria uma instituição na qual o
proletariado, após a tomada violenta do poder, estaria organizado como classe
dominante, essencialmente para: a) atuar pela violência e repressão contra a luta e
a resistência da burguesia em ceder o poder do Estado e a propriedade privada; b)

63
A propósito das palavras de ordem.
64
Umas das questões fundamentais da revolução.
61

apropriar-se, organizar e controlar a produção e a distribuição da riqueza para a


totalidade da sociedade.
Ademais,

[...] a ditadura do proletariado é também um período de luta de classes, a


qual é inevitável enquanto as classes não forem suprimidas e reveste
diversas formas, sendo particularmente violenta e específica durante o
primeiro período depois de derrubado o capital. Uma vez conquistado o
poder político, o proletariado não cessa sua luta de classe, mas a continua
até que as classes sejam suprimidas, mas naturalmente, em outras
65
condições, sob outra forma e com outros meios. (LENIN [escrito em 28 de
junho de 1919] 1968, p.76, grifo do autor)

Consequentemente, como em geral o transcorrer de uma revolução


raramente se dá de forma pacífica, após a tomada do poder e a expropriação dos
meios de produção, a luta de classes costuma assumir sua forma mais aguda – a
guerra civil -, “[...] quando uma série de choques e combates econômicos e políticos,
repetindo-se, acumulando-se, alargando-se, agudizando-se, conduz à transformação
desses choques em luta de armas na mão de uma classe contra a outra classe.”
(LENINE66 [escrito na primeira quinzena de setembro de 1917] 1980b, p. 208).
Considerando que o comunismo, enquanto etapa mais avançada do
desenvolvimento da humanidade, só pode sair dos escombros do capitalismo, a
transição do capitalismo para o comunismo implicará num processo longo, difícil e
doloroso, no qual a ditadura do proletariado representa o “[...] período de transição
[do capitalismo] para o comunismo [...].” (LENINE67 [escrito entre agosto-setembro
de 1917] 1980b, p.283).
Na primeira fase, ou fase inferior da sociedade comunista, “[...] que se
chama habitualmente socialismo e a que Marx dá o nome de primeira fase do
comunismo [...]” (Idem, ibidem, p.284), os meios de produção já deixariam de ser
propriedade privada dos indivíduos e pertenceriam a toda a sociedade. Não havendo
capitalistas, não haveria classes. Foi nesse sentido que no artigo escrito em
novembro de 1919, intitulado A economia e a política na época da ditadura do
proletariado, Lenin escreveu: “O socialismo é a supressão das classes.” (LENINE
[escrito em 30 de outubro de 1919] 1980c, p.206).
Neste caso, os meios de produção deixariam de ser privados, mas a justiça

65
Uma grande iniciativa.
66
A revolução russa e a guerra civil.
67
O Estado e a revolução.
62

e a igualdade completas ainda não existiriam nesta primeira fase do comunismo,


pois ainda “[...] subsistirão diferenças de riqueza, e diferenças injustas, mas a
exploração do homem pelo homem será impossível, porque ninguém poderá
apoderar-se da propriedade privada dos meios de produção, fábricas, máquinas,
terra, etc.” (LENINE68 [escrito entre agosto-setembro de 1917] 1980b, p.285, grifos
do autor).
Por sua vez, na fase superior da sociedade comunista, desapareceria a
subordinação opressiva dos indivíduos à divisão do trabalho e com ela a oposição
entre trabalho manual e intelectual. O trabalho seria não apenas um meio de
sobrevivência, mas a necessidade vital principal. Com o desenvolvimento integral
dos indivíduos, cresceriam as forças produtivas e consequentemente cresceria a
riqueza produzida socialmente. Só então o direito burguês seria completamente
extinto e o seguinte mote seria realidade: de cada um segundo as suas
capacidades, a cada um segundo as suas necessidades.
Todavia, por um lado, a passagem dos meios de produção para a
propriedade social não eliminaria a oposição entre trabalho espiritual e trabalho
manual. Por outro, a apropriação coletiva dos meios de produção traria a
possibilidade de um desenvolvimento gigantesco das forças produtivas da sociedade
humana. Porém, o processo da derrocada do capitalismo e sua transição para o
comunismo caracterizaria um longuíssimo processo. Assim, não há como prever
nem precisar quando ocorreria a completa extinção do Estado na fase superior do
comunismo. Mas é importante citar que

Até que chegue a fase “superior” do comunismo, os socialistas


exigem o mais rigoroso controle por parte da sociedade e por parte do
Estado sobre a medida do trabalho e a medida do consumo, mas este
controle deve começar com a expropriação dos capitalistas, com o controle
dos capitalistas pelos operários, e deve ser exercido não por um Estado de
funcionários mas pelo Estado dos operários armados. (Idem, ibidem, p.288,
grifos do autor)

E o que é o comunismo? Comunismo provém da palavra latina comunis, que


significa comum. Isto é, na sociedade comunista, não existiria a propriedade privada
e assim, tudo seria propriedade comum, de todos: a terra, as fábricas (LENINE69
[discurso proferido no III Congresso de toda a Rússia da União Comunista da
Juventude da Rússia, em 2 de outubro de 1920], 1980c, p.395). No comunismo,

68
O Estado e a revolução.
69
As tarefas das uniões da juventude.
63

todos iriam trabalhar pelo bem comum (LENIN70 [escrito em 28 de junho de 1919],
1968), pois o objetivo do comunismo é alcançar o maior desenvolvimento possível
das potencialidades do ser humano e das forças produtivas em favor da
humanidade. O objetivo do comunismo é alcançar a felicidade suprema do ser
humano (LUNATCHARSKI, 1988c).
Em função dessas proposições, os bolcheviques foram tachados de
utopistas, acusados de fazer promessas demagógicas sobre o comunismo. Contra
isso, Lenin objetou que o crucial é não ter essas concepções como dogmas e não
ater-se exclusivamente às palavras. O que importa é entender os graus de
maturidade econômica do comunismo, os processos e as etapas, posto que não
existem regras predeterminadas. Ou seja, por “[...] que etapas, através de que
medidas práticas a humanidade chegará a este fim supremo, não sabemos nem
podemos saber.” (LENINE71 [escrito entre agosto e setembro de 1917] 1980b,
p.289).
Sobre a revolução, ao escrever sobre as atividades do partido, o qual deve
desenvolver um trabalho sistemático, cotidiano e disposto a tudo, Lenin mencionou
que existiriam momentos de calma, repressão e explosão. Nesse sentido, “[...] a
própria revolução não deve ser imaginada como um ato único [...], mas como uma
rápida sucessão de explosões mais ou menos violentas, alternando com períodos de
calma mais ou menos profunda [...]” (LENINE72 [escrito no outono de 1901-fevereiro
de 1902], 1980a, p.204).
Em verdade, não podemos definir etapas fixas e predeterminadas no curso
de uma revolução. De modo diferente, ela é caracterizada pelas mudanças e
imprevisibilidade no curso da história. Com responsabilidade e dotado de grande
senso de realidade, Lenin declarou que primeiro (e mais importante) é conquistar o
poder político pela via revolucionária e depois vê-se o que é possível fazer
(LENINE73 [datado de 17 de janeiro de 1923], 1980c).
Ou seja, a revolução é imprevisível quanto aos seus desdobramentos e fins.
Ela define-se na luta, no seu devir.

70
Uma grande iniciativa.
71
O Estado e a revolução.
72
Que fazer?
73
Sobre a nossa revolução.
64

Foi assim que na comemoração do quarto ano da Revolução de outubro,


numa visão retrospectiva, Lenin74 ([escrito em 14 de outubro de 1921], 1968, p. 128-
129) se referiu à realização de duas revoluções: a democrático-burguesa e a
socialista:

Mas a fim de consolidar para os povos da Rússia as conquistas da


revolução democrático-burguesa, devíamos ir mais longe e assim o fizemos.
Resolvemos os problemas da revolução democrático-burguesa
imediatamente, de passagem, como “produto acessório” de nossa atividade
principal e verdadeira, de nossa atividade revolucionária proletária,
socialista. (grifos do autor)

Com efeito, a revolução democrático-burguesa foi levada até o fim, em


direção à revolução socialista. Mas como não existe uma divisão rígida e formal
entre uma e outra revolução, somente na luta é que se decide até onde se consegue
avançar na revolução socialista. Nesse sentido, as reformas democrático-burguesas
são acessórios da revolução socialista, de modo que a primeira transforma-se na
segunda, a segunda resolve os problemas da primeira, consolidando-a. De modo
que somente a luta determina até que ponto a segunda ultrapassa a primeira.

1.2.4 A classe trabalhadora


No início do século XX, a população da Rússia era de aproximadamente 150
milhões de habitantes. Por sua vez, a classe trabalhadora constituía apenas uma
minoria da nação. Era composta de cerca de 10 milhões de pessoas, cujo núcleo
consistia, no máximo, três milhões de homens e mulheres empregados nas
indústrias modernas das principais cidades russas (DEUTSCHER, 1968a, p.22;
TROTSKY, 1978a, p.30). Assim,

Os marxistas calcularam que os trabalhadores industriais seriam a força


mais dinâmica da sociedade capitalista, os principais agentes da revolução
socialista. Os trabalhadores russos justificaram de sobra essa esperança.
Nenhuma classe da sociedade russa e nenhuma classe trabalhadora, em
qualquer outra parte do mundo, atuou com a energia, a inteligência política,
a capacidade de organização e o heroísmo com que os operários russos
agiram em 1917 e depois, durante a guerra civil. (DEUTSCHER, 1968a,
p.22)

A classe trabalhadora defendeu com ardor a revolução socialista


propugnada pelos bolcheviques. Um conjunto de elementos preparou e formou a
consciência socialista e a combatividade do operariado russo: foram décadas de
agitação e propaganda marxista; experiências das lutas contra o czarismo; a

74
Por ocasião do IV aniversário da revolução de outubro.
65

tradição de um século de esforços revolucionários e a coerência de propósitos dos


bolcheviques. De modo que o operariado não aceitou nada aquém das perspectivas
socialistas da Revolução - a abolição da exploração capitalista, a socialização da
indústria e dos bancos, o controle operário da produção e o governo dos sovietes
(Idem, ibidem, p.22-23).
Porém, ao lado da abnegação, capacidade de sacrifício, dedicação,
despontavam também suas deficiências.
De acordo com Trotski, em síntese, a vitória da revolução de outubro foi em
parte decorrente da combinação particular do atraso econômico-social e cultural com
a implantação de um capitalismo dos mais avançados para os padrões da época.
Seu raciocínio é o de que a Rússia não passou pelas fases de desenvolvimento do
capitalismo (artesanato, manufatura etc.).
De maneira diferente, de uma economia agrária, passou diretamente para
um tipo de capitalismo moderno. Tal é o motivo da fragilidade de sua burguesia, a
qual foi tão fácil de vencer. Daí também a importância que assumiu o capital
financeiro, o qual investiu tão pesadamente na industrialização da Rússia. Em outras
palavras, conviviam os “[...] mais antiquados elementos, ao lado das últimas
realizações europeias.” (TROTSKY, 1978a, p.390).
O mesmo raciocínio se aplica ao proletariado russo:

Que dizer de nosso proletariado? Terá passado pela escola


medieval das confrarias de aprendizado? Existirão nele tradições
corporativas seculares? Nada de parecido. Lançaram-no diretamente à
fornalha, assim que o retiraram de seu arado primitivo... Daí a ausência de
tradições conservadoras, a ausência de castas, mesmo entre o proletariado,
e a juventude do espírito revolucionário; daí, entre outras causas eficientes,
Outubro e o primeiro governo proletário que existiu no mundo. Mas daí,
também, o analfabetismo, a mentalidade atrasada, a deficiência de hábitos
de organização, a incapacidade de trabalhar sistematicamente, a falta de
educação cultural e técnica. A cada passo nos ressentimos dessas
inferioridades na nossa economia e na nossa edificação cultural. (Idem,
ibidem, 391, grifos nossos)

Deutscher (1968b, p.343) parece compartilhar da tese de Trotski:

A classe trabalhadora russa de 1917 foi uma das maravilhas da


História. Pequena, jovem, inexperiente, sem instrução, era rica de paixão
política, generosidade, idealismo e qualidades heróicas raras. Tinha o dom
de sonhar grandes sonhos sobre o futuro e de morrer morte estóica em
combate. Com seus pensamentos semianalfabetos, abraçou a república dos
filósofos, não em sua versão platônica que serve à oligarquia para governar
o rebanho, mas a ideia de uma república próspera e bastante sábia para
fazer de todo cidadão um filósofo e um trabalhador. Das profundezas de sua
miséria, a classe operária russa empenhou-se em construir tal república.
Mas lado a lado com o sonhador e o herói, vivia no trabalhador
66

russo o escravo, preguiçoso, praguejador, esquálido, trazendo o estigma do


passado. Os líderes da Revolução falavam ao sonhador e herói, mas o
escravo lhes fazia sentir, rudemente, a sua presença. Durante a guerra civil,
e mais ainda depois dela, Trotski em seus discursos militares queixou-se
repetidamente de que o comunista russo e o soldado do Exército Vermelho
sacrificariam sua vida pela Revolução, mas seriam incapazes de limpar seu
fuzil ou engraxar suas botas. Esse paradoxo refletia a falta, no povo russo,
daqueles inumeráveis pequenos hábitos de disciplina e vida civilizada, em
que o socialismo esperava basear-se. Era esse o material humano com o
qual os bolcheviques começaram a construir seu novo Estado, a
democracia proletária, na qual “todo cozinheiro” devia ser capaz de realizar
as tarefas de governo. E foi talvez essa a mais grave de todas as graves
contradições que a Revolução teve de enfrentar. (p.343, grifos nossos)

E quais eram as faces do proletariado, do povo, daqueles que apoiaram o


poder bolchevique na revolução de outubro? Reed e Trotski nos dão algumas
indicações.
Em 25 de Outubro, no II Congresso dos Sovietes, encontravam-se “[...]
grandes massas de soldados esfarrapados, de operários encardidos, de
camponeses – gente pobre, curvada e com cicatrizes da luta brutal pela existência.”
(REED, 1977, p.135). Trotsky (1978c, p.947) também escreveu que:

Os galões dos oficiais, os óculos e as gravatas dos intelectuais do primeiro


75
Congresso tinham desaparecido completamente. O que predominava era
a cor cinza, roupas e rostos. Todos se tinham esgotado durante a guerra.
Inúmeros operários da cidade envergaram as túnicas dos soldados. Os
delegados das trincheiras não tinham ar apresentável: de há muito sem
76
fazer a barba, cobertos com velhas túnicas rasgadas, pesadas papakhi ,
cujo forro aparecia através dos buracos, sobre as cabeleiras desgrenhadas.
Faces rudes, feridas pelas intempéries, pesadas patas [sic] cobertas de
frieiras, dedos amarelados pelos cigarros ordinários, botões caindo,
suspensórios pendurados, borás rugosas, ruças, que há muito não eram
engraxadas. A nação plebeia enviara, pela primeira vez, uma representação
honesta, sem maquilagem, feita à sua imagem e semelhança.

Enfim, tais são os esboços do panorama histórico e político e da classe


sobre a qual se assentou a Revolução de Outubro.

1.3 Elementos sociológicos


1.3.1 A Rússia imperial
Ao final do século XIX, o império russo formava o maior Estado do mundo
em extensão territorial, com 22,3 milhões de km quadrados. Sua população em 1897
era de aproximadamente 130 milhões de habitantes, com grande diversidade racial,
étnica e cultural. Sob o ponto de vista das nacionalidades, a população era
composta de: grão russos – 56 milhões; ucranianos – 22,3 milhões; russos brancos
75
Trotski refere-se ao primeiro Congresso dos Sovietes.
76
Papakhi: boné de pelo.
67

(Bielo-Rússia) – aproximadamente 6 milhões; poloneses – 8 milhões; lituanos – 3,1


milhões; alemães – 1,8 milhão; moldávios – 1,1 milhão; judeus – 5,1 milhões;
finlandeses – 2,6 milhões; povos do Cáucaso – 1,1 milhão; povos de origem finesa
(estonianos, carélios etc.) 3,5 milhões; povos tártaros – 13,6 milhões (REIS FILHO,
2003, p.15 et seq; SERGE, 2007, p.141).
Pairando acima do povo, estava a autocracia imperial russa, tendo a seu
serviço a burocracia civil, a polícia política e as forças armadas. A burocracia era
elitista, politicamente irresponsável, ineficiente, corrupta e odiada pelo cidadão
comum. A polícia política, a temida Okhrana era eficaz e extremamente violenta. Foi
criada em 1881 e era considerada a melhor do mundo. De certo modo, sua criação
foi uma reação ao recrudescimento dos movimentos terroristas que vinham
ocorrendo desde a década de 70 do século XIX na Rússia (REIS FILHO, 2003, p.
p.15 et seq; SERGE, 2003, p.42).
Para consolidar seu poder, o czar contava ainda com a Igreja Ortodoxa, a
qual não poderia a rigor ser considerada um mero instrumento do poder czarista,
pois ela conservava certa autonomia. Contudo, a Igreja Ortodoxa também não era
um todo monolítico, posto que havia grande diversidade hierárquica em sua
estrutura. No geral, era uma instituição comprometida com uma religiosidade cristã
conformista e resignada, subserviente e subordinada funcionalmente ao poder
czarista e dependente financeiramente dele.
Enfim, a autocracia czarista se baseava num complexo conjunto de
instituições composto pela burocracia civil, pela polícia política, pelas forças
armadas e pela Igreja Ortodoxa (REIS FILHO, 2003, p.18).
De acordo com Trotsky (1978a, p.23), o “[...] traço essencial e o mais
constante da História da Rússia é a lentidão com que o país se desenvolveu,
apresentando como consequência uma economia atrasada, uma estrutura social
primitiva e [um] baixo nível cultural.” Ademais, a Rússia czarista era uma sociedade
fundamentalmente agrária (cerca de 85% da população vivia no campo em fins do
século XIX). A base da agricultura eram as dezenas de milhões de mujiques
(agricultor pobre), organizados na maioria das vezes em comunas agrícolas (o mir),
mas a principal base de poder da autocracia czarista eram os grandes proprietários
de terra (os pomeschtchiki) - aproximadamente 107 mil famílias, quase todos
vinculados a famílias nobres (REIS FILHO, 2003, p.19).
A Rússia vivia uma situação complexa e contraditória: de um lado, a
68

situação econômica e social exigia que fossem feitas transformações, mas de outro,
a autocracia e aqueles em que ela baseava o seu poder não tinham intenção de
alterar o status quo. A opção foram as reformas, as quais ocorreram, mas não de
maneira a atender aos anseios e necessidades do povo em geral, o que gerou
descontentamento em alguns setores da sociedade ávidos por mudanças. Tal é a
origem dos movimentos revolucionários e terroristas de 1860-70, que de certo modo
foram os precursores dos partidos marxistas e revolucionários.
Tais reformas, mesmo que parciais e incompletas, abriram novos horizontes
à Rússia, com a ascensão de novas forças políticas, sociais e econômicas, que a
partir de 1890 propiciaram profundas transformações: intenso crescimento
demográfico e urbano (o que viria a exigir mais alimentos, transporte, saúde,
educação, habitação etc.); criação de uma rede de estradas de ferro; ativação do
comércio externo; aumento da produção de carvão, petróleo, cereais;
desenvolvimento da indústria de base. Por consequência, a burguesia se fortaleceu.
Também se formou uma articulação de capitais nacionais e internacionais
patrocinada, protegida e estimulada pelo Estado. Ou seja, a Rússia finalmente abria
as portas para o desenvolvimento do capitalismo, subordinando-o aos interesses do
Estado.
Houve muitos avanços, mas comparada com a Europa a Rússia era
atrasada, pois convivia com o desequilíbrio, o obsoleto e a carência da agricultura.
Isto é, o progresso econômico e social trouxe contradições insanáveis que foram o
combustível para as revoluções: “Assim, o influxo do capitalismo na Rússia, apesar
do progresso proporcionado, não foi capaz de resolver os problemas acumulados e
acentuou contrastes no processo de desenvolvimento econômico em curso.” (REIS
FILHO, 2003, p.32).
Portanto, na Rússia coexistia o que havia de mais avançado em termos do
capitalismo com o mais antiquado de civilização: exportava-se cereais e a população
passava fome; conviviam a aristocracia e o mujique semi servil. Existiam diferentes
“[...] etapas históricas, universos contraditórios, mas entrelaçados, integrados.”
(Idem, ibidem, p.32). De um lado, havia as elites reacionárias, sempre desejosas de
manter seu poder e contrárias ao desenvolvimento e à modernização. De outro,
apareceram as correntes liberais e revolucionárias.
69

1.3.2 Questões referentes à burguesia


As classes dominantes sempre foram francamente contrárias e hostis ao
poder operário. Antes da insurreição de outubro, era comum a intelligentsia
burguesa se referir aos Sovietes de Deputados Operários como Sabatchikh
Deputatov, ou “deputados dos cães” (REED, 1977, p.49). Ainda, um eminente
capitalista russo, conhecido como o “Rockfeller russo”, teria dito numa entrevista a
John Reed:

A Revolução [...] é uma doença. Mais tarde ou mais cedo as


potências estrangeiras terão de intervir – como se interviria para curar uma
criança doente e ensiná-la a andar. Evidentemente que seria um pouco
incorreto, mas as nações terão de compreender o perigo do bolchevismo
nos seus próprios países – ideias contagiosas como “ditadura proletária” e
“revolução socialista mundial”. [...] Há uma possibilidade de que tal
intervenção não seja necessária. Os transportes estão desmoralizados, as
fábricas fecham e os alemães avançam. A fome e a derrota podem fazer
com que o povo russo recupere a razão... (Idem, ibidem, p.49)

Já outro importante capitalista teria afirmado que “[...] acontecesse o que


acontecesse, seria impossível aos comerciantes e industriais permitirem a existência
dos comitês operários de empresa [...]”, ou que os operários tomassem para si a
administração das indústrias (Idem, ibidem, p.49). E quanto

[...] aos bolcheviques, acabar-se-á com eles por um destes dois processos
[explicitados a seguir]. O Governo pode evacuar Petrogrado, declarando em
seguida o estado de sítio, e o comandante militar do distrito pode tratar
desses senhores sem formalidades legais... Ou então, por exemplo, se a
Assembleia Constituinte manifestar quaisquer tendências utópicas, poderá
ser dissolvida pela força das armas... (Idem, ibidem, p.49-50, grifos do
77
autor)

As classes médias e a pequena burguesia também compartilhavam desses


sentimentos, conforme descreveu o autor:

Ao anoitecer de 16 de novembro vi dois mil guardas vermelhos


descerem a Perspectiva Zágorodni atrás de uma banda militar que tocava a
Marselhesa – e como parecia apropriada! -, com bandeiras vermelho-
sangue desfraldadas sobre as fileiras de operários que davam as boas-
vindas aos irmãos que tinham defendido a “Petrogrado Vermelha” e
regressavam. Marchavam na escuridão agreste, homens e mulheres, com
as compridas baionetas a oscilar; marchavam por ruas mal iluminadas e
que a lama tornava escorregadias, entre multidões silenciosas de
burgueses desdenhosos, mas amedrontados...
Eram todos contra eles – homens de negócios, especuladores,
investidores, proprietários fundiários, oficiais do Exército, professores,
estudantes, gente das profissões liberais, lojistas, escriturários, agentes. Os
outros partidos socialistas odiavam os bolcheviques com um ódio

77
Mais claro, direto e sincero impossível.
70

implacável. Do lado dos Sovietes estavam os simples operários e


marinheiros, todos os soldados não desmoralizados, os camponeses sem
terra e alguns – muito poucos – intelectuais... (Idem, ibidem, p.227-228)

Havia uma combinação de hostilidade, indignação e profunda crença na


incapacidade do povo. Já Trotsky (1978c, p.982) descreveu a situação da seguinte
forma:

“Quem poderia crer”, escrevia a esse respeito, com tom indignado,


o general russo Zalesky, “que um criado ou um vigia do Palácio da Justiça
pudesse ser transformado, de repente, em presidente do Congresso dos
Juízes de paz? Ou então, um enfermeiro tornando-se diretor de
ambulância? Um cabeleireiro, alto funcionário? Um subtenente de ontem
passar a generalíssimo? Um lacaio de ontem, ou então um servente de
pedreiro, nomeado prefeito? Aquele que, ainda ontem, lubrificava as rodas
de um vagão, transforma-se em chefe de seção da rede ou então chefe de
estação? Um serralheiro, colocado à frente de uma oficina!”
“Quem acreditaria?” Foi preciso crer. Não era possível deixar de
acreditar porquanto os subtenentes derrotaram os generais; o prefeito, ex-
servente, dominou os senhores da véspera; os lubrificadores das rodas de
vagões organizaram os transportes; os serralheiros, na função de diretores,
levantaram a indústria.

Em 25 de outubro de 1917 (pelo calendário juliano), com a destituição do


governo provisório encabeçado por Kerenski78, os opositores do poder proletário
foram privados das armas, mas eles ainda controlavam a vida econômica e
administrativa do país. Desse modo, dedicaram-se a sabotar, desorganizar, obstruir,
enfraquecer e a desacreditar o governo dos sovietes (REED, 1977, p.241 et seq).
Assim, logo após a tomada do poder, os bancos e estabelecimentos
comerciais organizaram e financiaram uma greve dos funcionários do antigo
governo, de modo que todas as tentativas dos bolcheviques para assumir o controle
do aparelho do Estado encontravam resistência. Trotski dirigiu-se ao Ministério dos
Negócios Estrangeiros, mas

[...] os funcionários recusaram-se a reconhecer o seu cargo, fecharam-se no


interior e quando as portas foram arrombadas demitiram-se. Ele exigiu as
chaves dos arquivos, mas só quando mandou chamar os operários para
forçarem as fechaduras as recebeu. Descobriu-se então que Neratov, ex-
ministro adjunto dos Negócios Estrangeiros, desaparecera com os Tratados
Secretos... (REED, 1977, p.242)

O Ministério da Assistência Pública também estava em greve, de maneira


que os pobres, aleijados, famintos, órfãos e outros não podiam ser atendidos. Os
grevistas se negaram a entregar as chaves do cofre, só o fazendo depois de serem

78
Kerenski: foi o chefe do governo provisório a partir de julho de 1917 e deposto pela Revolução de
Outubro de 1917. Destituído do poder, comandou a primeira tentativa armada de derrubar o poder
soviético, mas foi derrotado e fugiu para o exterior (REED, 1977, p.385).
71

presos. Aberto o cofre, este não tinha dinheiro, que fora levado pela administração
anterior. Nos Ministérios da Agricultura, Abastecimentos e Finanças o cenário era o
mesmo. Os funcionários não vinham trabalhar e quando o faziam era para sabotar.

Como quase toda a intelligentzia era antibolchevique, o Governo Soviético


não tinha onde recrutar novos quadros...
Os bancos privados permaneciam teimosamente fechados, mas
com uma porta das traseiras aberta para os especuladores. Quando os
comissários bolcheviques entravam, os empregados saíam, não sem
esconderem os livros e levarem os fundos. Todos os empregados do Banco
do Estado entraram em greve, exceto os encarregados das casas fortes e
da cunhagem de moeda, mas estes recusavam todos os pedidos de fundos
79
do Smólni e pagavam em segredo enormes importâncias ao Comitê de
80
Salvação e à Duma Municipal .
[...]
Os funcionários da Chancelaria do Crédito destruíram os livros
respectivos, de modo que se perderam todos os registros das relações
financeiras da Rússia com os países estrangeiros. (Idem, ibidem, p.243)

No quesito abastecimento a situação era similar – as provisões não eram


entregues quando requisitadas e os serviços essenciais de abastecimento de
alimentos e energia foram paralisados. O alto comando militar não dava assistência
à frente de batalha e o sindicato dos ferroviários, controlados pelos mencheviques,
não transportava as tropas soviéticas. O governo dos sovietes “[...] estava
claramente de mãos atadas. [...] Quanto às embaixadas aliadas, ou se mostravam
friamente indiferentes ou francamente hostis...” (Idem, ibidem, p.244).
Ao longo do tempo, as classes dominantes na Rússia foram estabelecendo
relações com a autocracia, a burocracia, a burguesia internacional, formando uma
rede de poder que se estendia e incluía os partidos políticos, a igreja, a educação,
dentre muitas outras instituições. Após a expropriação das grandes indústrias, parte
da burguesia deixou a Rússia, mas os que ficaram participaram ativamente da
guerra civil. Porém, derrotados, também foram praticamente eliminados.
Contudo, numa revolução, eliminar a classe dominante não é tão simples:

Todo partido revolucionário imagina, a princípio, que sua tarefa é simples:


tem de eliminar um “punhado” de tiranos ou exploradores. É certo que,
habitualmente, os tiranos e exploradores constituem uma minoria
insignificante. Mas a velha classe dominante não viveu isolada do resto da
sociedade. No curso de seu prolongado domínio, cercou-se por uma rede
de instituições, compreendendo grupos e indivíduos de muitas classes e
deu vida a muitas ligações e fidelidades que nem mesmo uma revolução
destrói totalmente. A anatomia da sociedade jamais é tão simples que seja

79
Palácio Smólni: antigo colégio para moças da aristocracia russa. Após a insurreição de Outubro, foi
tomado como sede do governo proletário.
80
Imediatamente após a tomada do poder em outubro de 1917, organizaram-se grupos contra
revolucionários, um deles denominado Comitê de Salvação, cujo centro de atividade e organização
era a Duma Municipal de Petrogrado.
72

possível separar cirurgicamente um dos membros do restante do corpo.


Cada classe social está ligada ao seu vizinho imediato por muitas
gradações quase imperceptíveis. A aristocracia se confunde com a classe
média superior; esta, com as camadas inferiores da burguesia. A classe
média inferior termina na classe proletária e o proletariado, especialmente
na Rússia, está ligado por numerosos laços aos camponeses. Os partidos
políticos têm interligações semelhantes. A revolução não pode desfechar
um golpe contra o partido que lhe é mais hostil e perigoso sem forçar não só
esse partido, mas também o seu vizinho imediato, a responder com um
outro golpe. A revolução, portanto, trata o vizinho imediato de seu inimigo
também como inimigo. Quando atinge o inimigo secundário, também o
vizinho deste se sente ameaçado e é levado à luta. O processo continua
como uma reação em cadeia, até que o partido da revolução levanta-se
contra si mesmo e elimina todos os partidos que até recentemente
encheram o cenário político. (DEUTSCHER, 1968b, p.361-362)

Foi dessa forma que a necessidade da aniquilação das classes dominantes


deu-se em várias frentes, com destaque, evidentemente, para o campo militar, mas
também ideológico, do qual a educação participou.

1.3.3 Sobre a educação czarista / burguesa


A Rússia czarista era um país de analfabetos e um dos países mais
atrasados da Europa na área educacional, onde prevalecia também a ausência de
direitos, a ignorância, a miséria das massas populares. De acordo com os dados do
censo de 1897, na faixa de 9-49 anos, apenas 28,4% da população sabia ler e
escrever. No cômputo geral, 98% da população era analfabeta e cerca de 50 povos
que integravam a Rússia imperial não tinham escrita codificada (CAPRILES, 1989;
GAPOTCHKA, 1987).
Ainda, segundo dados do censo de 1897, somente 67 pessoas em cada mil
habitantes na Rússia czarista frequentavam algum tipo de estabelecimento de
ensino. Sobre a educação entre os povos da Rússia, havia 2,1% de alfabetizados
entre os cazaques; 1% entre os uzbeques; 0,7% entre os turcomenos; 0,6% entre os
kirguizes; 0,5% entre os tadjiques (GAPOTCHKA, 1987, p.141).
Sobre o sistema escolar russo de antes de Outubro de 1917, Capriles (1989,
p.18) nos informou que:

As escolas primárias russas, até a Revolução de 1917, eram


instituições isoladas, dirigidas com critérios feudais, que, em termos
nacionais, não relacionavam os seus respectivos programas entre si. Isso
[se] refletia no nível geral da instrução de maneira separatista, tanto em
termos de clãs como de classes, limitando radicalmente a continuação dos
estudos superiores. A grande maioria das instituições de ensino era de
propriedade de alguns setores da grande burguesia, nas áreas urbanas, dos
latifundiários, no campo, e uma pequena parte era [propriedade] do Estado.
A Igreja, além de controlar maciçamente a instrução popular, também era
proprietária de um significativo número de estabelecimentos educacionais.
73

Além disso, a escola primária tinha a duração de máxima de três anos, na


qual predominava a transmissão do dogma religioso; noções de leitura e escrita;
rudimentos de aritmética e sempre canto religioso. As escolas paroquiais81 eram o
principal veículo de ensino e doutrinação da Rússia Imperial, de modo que as
poucas crianças provenientes dos meios operários e camponeses que frequentavam
essas escolas recebiam uma instrução não científica, baseada fundamentalmente na
leitura de textos eclesiásticos (Idem, ibidem, p.19).
Na sociedade czarista, a ciência, o conhecimento e o saber eram privilégio
das classes dominantes. Sobre o assunto, Serge (2007, p.39 et seq) declarou que
houve um movimento reacionário na sociedade russa, contrário às reformas liberais
e ao desenvolvimento do capitalismo na Rússia, por volta de 1880. Em meio a esse
movimento, o ensino superior foi reservado por lei às classes dirigentes, de maneira
que apenas as classes dominantes tinham acesso ao ensino superior, onde eram
formados e preparados os dirigentes e os responsáveis pela continuidade do
sistema. Assim, a educação superior tornou-se a via de acesso por excelência aos
cargos de liderança, administração e direção da sociedade. Portanto, é
compreensível que posteriormente, após a Revolução de Outubro, os setores mais
escolarizados, em sua maioria, iriam assumir uma atitude hostil ao poder soviético.
Contudo, a queda da monarquia russa, em março de 1917, teve um impacto
tremendo na sociedade, de modo que séculos de barbárie, opressão e violência
provocaram um movimento geral e praticamente incontrolável em prol da liberdade,
que afetou praticamente todos os setores da sociedade, inclusive a educação.
Reed (1977, p.54) relatou como o povo sentia a necessidade de ler e a
escrever: “Toda a Rússia aprendia a ler e lia – política, economia, história – porque o
povo queria saber.” (grifo do autor). Naquele período (entre os meses de fevereiro-
outubro de 1917), o povo queria saber o que estava acontecendo, pois diariamente
eram veiculados milhares de panfletos e jornais de todas as tendências: democratas,
liberais, monarquistas, anarquistas, socialistas. “A sede de educação, reprimida
durante tanto tempo, explodiu com a Revolução num verdadeiro delírio.” (Idem,
ibidem, p.54). Segundo o autor, saíam toneladas de publicações, de modo que a
81
As escolas paroquiais eram escolas primárias da Rússia czarista, dependentes das paróquias
eclesiásticas. No seu programa de estudos dava-se primazia ao estudo do catecismo, dos livros
sagrados eslavos e o canto gregoriano, em detrimento do estudo do russo e do ensino da aritmética.
Os estudos duravam dois anos (em algumas escolas quatro). As escolas paroquiais eram
frequentadas exclusivamente pela população mais pobre, entre operários e camponeses (LENINE,
1981, p.146, nota 32).
74

[...] Rússia absorvia o material de leitura como a areia quente absorve a


água, insaciável! E não eram fábulas, história falsificada, religião diluída e a
ficção barata que corrompe – mas sim teorias econômicas e sociais,
filosofia, as obras de Tolstoi, Gogol e Gorki... (Idem, ibidem, p.54)

O autor descreveu ainda um fato significativo quando da sua visita ao fronte:

Visitávamos a Frente do 12º Exército, perto de Riga, onde


soldados esqueléticos e descalços adoeciam no meio da lama das
trincheiras, desesperados; e quando nos viram levantaram-se, com os
rostos contraídos e os corpos roxos aparecendo através dos uniformes
esfarrapados, perguntando ansiosos: “Trouxeram alguma coisa para ler?”
(Idem, ibidem, p.54, grifo do autor)

Além da leitura, o povo participava de todo tipo de comícios e assembleias,


os quais rebentavam pelo país. Eram conferências, debates, discursos, proferidos
nos teatros, circos, escolas, clubes, salas de reuniões dos Sovietes, sedes de
sindicatos, quartéis, fábricas, praças das aldeias. “Durante meses em Petrogrado, e
em toda a Rússia, cada esquina era uma tribuna pública.” (Idem, ibidem, p.54)
Conforme já mencionamos (item 1.3.1 A Rússia imperial), o poder do czar
fundava-se nos aparelhos de repressão do Estado (forças armadas, polícia, polícia
política); na burocracia estatal e nos aparelhos de controle ideológico, com destaque
para a educação. Mais precisamente, o czarismo atuava, como disse Lenin, pela
“deseducação”, isto é, alijando a quase totalidade da população do acesso a uma
educação escolar de qualidade, a qual poderia propiciar o desenvolvimento social,
intelectual, cultural, artístico e político.
Dessa maneira, mantendo o povo também numa situação de ignorância,
analfabetismo, atraso educacional e cultural, as classes dominantes garantiam para
si a manutenção do status quo, e consequentemente, do seu poder político e
econômico.
75

2 LENIN E A EDUCAÇÃO ANTES DE OUTUBRO DE 1917


2.1 Lenin e a educação: aspectos biográficos
Conforme mencionado, Lenin foi o grande líder da revolução bolchevique e
depois o Presidente do Conselho dos Comissários do Povo da recém criada
República Soviética, durante o período de outubro de 1917 a janeiro de 1924, mês e
ano de sua morte. Mesmo enfrentando uma série de atribuições, dificuldades e
gravíssimos problemas, ele foi um revolucionário e um estadista profundamente
preocupado e atuante nas questões educacionais (CARVALHO, F. M. de 2005a;
DOMMANGET, 1970; ROSSI, 1981).
Mas, segundo Carvalho, F. M. de (2005a, p.190), Lenin não escreveu
nenhum compêndio sobre educação ou teorias pedagógicas. Saviani (2008, p.420),
ao discorrer sobre os fundamentos da concepção histórico-crítica da educação, com
relação ao materialismo histórico, também nos alertou: “[...] como se sabe, nem
Marx, nem Engels, Lenin ou Gramsci desenvolveram [uma] teoria pedagógica em
sentido próprio.” Contudo, parece-nos incontestável a importância do pensamento e
das ações de Lenin para a educação.
Porém, a investigação sobre a educação leninista nos impôs muitas
dificuldades. De acordo com Fernandes (1978), não houve nenhum outro estadista
na história que rivalizasse com Lenin na produção escrita, em quantidade e
qualidade. Com efeito, Lenin produziu uma obra que excede quarenta volumes na
edição russa, na qual se encontra um panorama invulgar e vasto de conhecimento,
reflexões, preocupações e profunda perspicácia intelectual, escrita num estilo direto,
claro e muitas vezes ácido e sarcástico.
Por conseguinte, o material referente à educação encontra-se disperso entre
os milhares de artigos, folhetos, discursos, cartas, atas etc. Acrescente-se que os
mais diversos assuntos e conceitos (entre os quais a educação), aspectos de
natureza política, social, cultural, econômica e histórica mantêm estreita interrelação,
de modo que as discussões referentes à educação encontram-se intercaladas,
dispersas e muitas vezes apresentadas de forma sintética. Também, ao longo do
tempo e de acordo com a necessidade ou conjuntura (as mudanças ocorridas na
sociedade soviética, o tipo de obstáculo e oposição enfrentados pelo governo
soviético e pelo partido bolchevique, os problemas e os dramas coletivos da
sociedade russa etc.), algum conceito, raciocínio ou posição política era abandonado
ou modificado, apresentando novos matizes.
76

Portanto, a questão que permanece seria: como entender a educação no


conjunto da obra e da vida de Vladimir Ilich Ulianov?
Uma explicação inicial, mas parcial, para a questão acima refere-se à vida
familiar de Lenin. Seu pai, Ilia Nikolaevitch Ulianov, nasceu num lar pobre e simples,
mas com grande esforço ingressou na Universidade de Kazan, formando-se
professor de matemática e física e depois atuou nas escolas secundárias nas
cidades de Penza e Novgorod. Posteriormente, tornou-se inspetor e diretor das
escolas primárias da gubernia de Simbirsk82 (COLETIVO DE AUTORES, 1984, p.12-
13; DOMMANGET, 1970, p.446-449).
Segundo Coletivo de Autores (1984, p.13) e Gomes (2006, p.26), Ilia Ulianov
tinha grande aptidão para o ensino e exercia sua profissão com extrema dedicação.
Desenvolvia trabalhos de alfabetização; qualificação de professores; preocupava-se
com as condições de vida e educação dos povos não-russos que habitavam as
regiões próximas a Simbirsk etc. “Entusiasta da instrução do povo, pedagogo por
vocação, amava o seu trabalho e entregava-se-lhe inteiramente. Ilia Ulianov
acreditava profundamente no povo e nas forças nele latentes.” (COLETIVO DE
AUTORES, 1984, p.13).
A mãe de Lenin, Maria Alexandrovna, por sua vez, foi filha de um médico
culto e famoso. Apesar de não ter recebido educação formal, era uma pessoa culta:
tocava piano; gostava muito de ler; aprendera várias línguas estrangeiras, que
depois ensinou aos filhos. “Por suas aptidões pessoais e com muito esforço,
preparou-se e prestou exames para a escola primária, mas não chegou a trabalhar
em escolas devido aos excessivos afazeres domésticos e ao cuidado que deveria ter
com seus oito filhos.” (GOMES, 2006, p.26).
Os pais de Lenin procuraram educar os filhos num clima de rigor e disciplina
pessoal; despertar neles o desejo de saber e conhecer sempre mais; “[...] serem
exigentes, sinceros e verdadeiros em tudo o que fizessem.” (Idem, ibidem, p.27). Foi
nesse ambiente doméstico que provavelmente Lenin viu despertar em si sua
dedicação e suas preocupações iniciais com relação à educação. Posteriormente,
Lenin sempre se destacou com brilhantismo nos estudos. Em sua vida escolar
dividiu-se entre a atividade política (com períodos de perseguição política e policial)

82
Simbirsk era uma pequena cidade que ficava às margens do Rio Volga. Mais tarde chamou-se
Ulianovsk. Lenin nasceu em Simbirsk em 10 de abril de 1870, com o nome de batismo Vladimir Ilich
Ulianov.
77

e os estudos, e mais tarde conseguiu formar-se com louvor em Direito na


Universidade de São Petersburgo.
De acordo com Dommanget (1970, p.448 et seq), em 1894 Lenin também foi
instrutor em círculos operários de São Petersburgo, em universidades operárias e
durante seu exílio em Paris (em 1900, aproximadamente), ele ministrou aulas de
economia política para operários.
Outro dado biográfico muito importante foi a presença e a influência de sua
companheira de toda a vida, Nadeja Konstantinova Krupskaia (1869-1939), com
quem se casou na Sibéria, em julho de 1898 (FERNANDES, 1978, p.9).
Krupskaia foi militante do partido bolchevique e uma eminente educadora,
que estudou os sistemas e modelos educacionais da Europa e Estados Unidos.
Publicou vários livros, mas dedicou-se especialmente ao estudo e ao
desenvolvimento de uma pedagogia de base marxista, que pudesse ser aplicada ao
contexto da Rússia e posteriormente da República Soviética. Foi assim que
Krupskaia notabilizou-se pelo estudo e proposição da politecnia ao contexto da
República Soviética (MACHADO, 1991).
Em seu texto intitulado Lenine et l’enseignement polytechnique
(KROUPSKAIA [publicado em 1932], s.d.b), Krupskaia relatou alguns fatos que
evidenciam a preocupação e o engajamento de Lenin na área educacional, bem
como a constante troca de ideias entre ela e Lenin.
Assim, inicialmente, Krupskaia teceu alguns comentários sobre o
envolvimento e a posição de Lenin na polêmica travada com os populistas83, por
ocasião da publicação do texto de Lenin intitulado Pérolas da projetomania
populista84. Também, quando da eclosão da primeira guerra mundial, Lenin se
interessou pelos problemas da educação da nova geração. Foi nessa época que ele
sugeriu a Krupskaia que elaborasse um estudo sobre os dados relacionados ao
ensino técnico primário nos países economicamente avançados. O resultado do
estudo foi uma brochura intitulada A instrução pública e a democracia, a qual Lenin
leu com muita atenção e se encarregou de publicá-la.
Krupskaia também mencionou alguns dos acontecimentos relativos ao texto
de Lenin intitulado Acerca do ensino politécnico. Observações às teses de N.K.

83
Para mais detalhes, consultar o item 2.3.1 As disputas com os populistas.
84
Idem à nota anterior.
78

85
Krupskaia . Na ocasião, ele pede inicialmente que seus comentários não sejam
publicados, mas em vista do contexto e das dificuldades relacionadas com a
implantação do ensino politécnico na URSS, após a morte de Lenin, Krupskaia
resolveu publicar o texto do seu companheiro.
Ou seja, apesar de não ser um especialista em educação, nem ter escrito
nenhum compêndio que tratasse dos aspectos técnico-metodológicos da instrução
ou da pedagogia, Lenin sempre se preocupou e teve destacada atuação na área
educacional. Na condição de Presidente do Conselho dos Comissários do Povo, ele
discutia no Comitê Central do Partido, participava e acompanhava tudo ou boa parte
do que ocorria no campo educacional, devido a sua relação com Krupskaia e
proximidade com Lunacharski (ROSSI, 1981). Ademais, Lenin também se informava
sobre os mais variados assuntos (incluindo-se a educação) junto às delegações e
representantes de camponeses e trabalhadores, que constantemente solicitavam
audiências com ele.
Foi assim que as concepções e as ações de Lenin para a educação
definiram as bases do primeiro período pós revolucionário na Rússia (1917-1930)
(CAMBI, 1999, p.558) e as diretrizes do que viria a ser o sistema educacional
soviético (MACHADO, 1991).
Todavia, a nosso ver os elementos biográficos não são suficientes para
explicar a preocupação, o envolvimento e as ações de Lenin no campo educacional.
Dessa forma, é preciso entender como os elementos de natureza política,
econômica e social se relacionam com a educação em Lenin.

2.2 Elementos subjacentes à investigação do tema Lenin e a educação:


política, luta de classes, revolução
De acordo com o compilador do livro Sobre a educação (LENINE, 1977), em
suas notas de Esclarecimento e justificação, para Lenin, assuntos como política,
educação, economia, mantinham interrelações e dependência mútua. Mas
considerando a íntima relação entre a educação e a política e a proeminência desta
em relação à primeira, o que determina o tratamento de Lenin com relação à
educação, seria a base política, ou em primeiro lugar, o “[...] econômico-político-
social, que caracteriza, determina, utiliza e projeta a educação no processo histórico,

85
Para mais detalhes, consultar o item 3.5.1 A politecnia: tarefas imediatas e mediatas.
79

[...] quanto ao seu serviço e missão.” (Idem, ibidem, p.21). Em segundo lugar, a
educação é determinada pelos objetivos imediatos ditados pela revolução socialista:
a “[...] liquidação dos inimigos capitalistas, das classes opressoras e dos contra
revolucionários de direita ou de esquerda.” (Idem, ibidem, p.21). Em última instância,
a liquidação total da sociedade capitalista e czarista em particular. É por isso que os
escritos de Lenin não se relacionavam com questões especificamente pedagógicas -
não que ele não tivesse consciência da importância do assunto - apenas que não
eram prioridade nem de seu conhecimento profundo.
Em seu prefácio, os editores do livro A instrução pública (LENINE, 1981, p.
3-11) corroboraram a tese segundo a qual Lenin atribuía grande significado à
educação do povo, focando as questões da instrução e da formação em relação às
tarefas políticas da classe operária e da construção da sociedade soviética nas
diferentes etapas de sua evolução.
Genericamente, Lenin se embasava nas seguintes premissas: o caráter
indissociável existente entre educação e política; o caráter classista da educação, de
modo que a educação necessariamente participa da luta de classes; a revolução
social é condição indispensável para que haja uma revolução na educação; os
problemas da educação não se restringem à educação escolar.
Considerando-se que um dos elementos que direciona o raciocínio e a ação
das classes dominantes é como fazer para manter e perpetuar o poder político e
econômico, é inegável que a educação, a pedagogia e a educação escolar estão
intimamente relacionadas com a luta de classes e com as formas pelas quais as
classes dominantes agem para manter e perpetuar o seu poder (PONCE, 2001,
p.169).
Desse modo, em mais de uma ocasião Lenin criticou o fato de que na
educação burguesa (e czarista) propunha-se apartar a educação da política e quais
eram os objetivos do capital com relação à formação humana:

Uma dessas hipocrisias da burguesia é a crença segundo a qual a


escola pode ser apartada da política. Vocês sabem tão bem quão falsa essa
crença é. A própria burguesia, a qual advoga esse princípio, faz sua própria
política burguesa a pedra angular do sistema escolar, e tenta reduzir a
escola ao treino de servos dóceis e eficientes à burguesia, reduzir a
educação universal para o fim de treinar servos dóceis e eficientes para a
burguesia, de escravos e instrumentos do capital. A burguesia nunca
pensou em dar a escola o sentido de desenvolver a personalidade humana.
E agora isso é claro para todos aqueles que trabalham pela escola
socialista, que criaram laços inseparáveis com todos os trabalhadores e
80

86
pessoas exploradas e apoia com sinceridade a política soviética. (LENIN
[proferido em 14 de janeiro de 1919], 2002, p.1-2)

E no seu discurso no primeiro Congresso de educação de toda a Rússia:

[...] quanto mais desenvolvido culturalmente o Estado burguês, tanto mais


refinadamente ele mentia, quando declarava que as escolas podiam
permanecer à margem da política e servir à sociedade como um todo.
Na realidade, as escolas se tornaram num instrumento de domínio
de classe da burguesia, nada mais do que isso. Elas estavam
completamente impregnadas com o espírito de classe burguês e o seu
objetivo era prover os capitalistas com lacaios serviçais e trabalhadores
hábeis. A guerra mostrou que as maravilhas da tecnologia moderna são
empregadas com o objetivo de exterminar milhões de trabalhadores e
proporcionar benefício aos capitalistas, que estão fazendo fortuna com a
guerra. A guerra está minada internamente, porque nós desmascaramos as
mentiras dos capitalistas. [Assim] Afirmamos que o nosso trabalho na esfera
da educação é parte da luta pela derrubada da burguesia. Nós declaramos
abertamente que a educação divorciada da vida e da política é mentira e
87
hipocrisia. [...] (LENIN [proferido em 28 de agosto de 1918], 2002, p.3-4)

Em seu importante Discurso na Conferência de toda a Rússia dos Comitês


de Instrução Política das secções de Gubernia e UEZD da instrução pública, Lenin
tratou da escolha do nome “Comitê Principal de Instrução Política”, para um comitê
relacionado à educação. Ele declarou então que a escolha de tal nome não é
fortuita, mas adequada, pois instrução e política não podem ser apartados. Dessa
forma,

Tal ideia [a de que a política e a educação estão desligados]


dominou e domina na sociedade burguesa. Falar de instrução “apolítica” ou
“não política” é hipocrisia da burguesia, não é outra coisa senão enganar as
massas, humilhadas em 99% pelo domínio da Igreja, da propriedade
privada, etc. A burguesia, que domina em todos os países que agora ainda
são burgueses, empenha-se precisamente em enganar as massas dessa
maneira. (LENINE [proferido em 3 de novembro de 1920], 1980c, p.400-
401)

Para Felix (1968), uma revolução verdadeira e completa não se dá apenas


no campo econômico e político, mas em todas as esferas da existência: cultural,
educacional, pedagógica, escolar. Revolução é revolução em todos os aspectos. Foi
assim que na destruição da velha sociedade russa, a cultura e a educação tiveram
um papel fundamental.
Já mencionamos que a revolução de outubro foi uma revolução em sentido
pleno. Ela ganhou força de lei com os primeiros decretos dos Comissários do Povo e
afetou praticamente todos os setores da sociedade russa, inclusive a educação
escolar e a pedagogia:

86
Speech at the second all-Russia Congress of Internationalist teachers.
87
Speech at the first all-Russia Congress on Education.
81

[...] em Odessa, os estudantes ditam aos professores um novo programa de


história; em Petrogrado, os trabalhadores obrigam seus patrões a aprender
o “novo direito operário”; no exército, os soldados convidam o capelão a sua
reunião “para dar um novo sentido a sua vida; em certas escolas, as
crianças reivindicam o aprendizado do boxe para se fazer escutar e
respeitar pelos adultos”. (BENSAID, 2000a, p.170, grifos do autor)

Apesar das dificuldades econômicas e do atraso cultural, esse élan


revolucionário inicial também se fez sentir ao longo dos anos vinte, nas tentativas
pioneiras de transformação do modo de vida, representadas nas “[...] reformas
escolares e pedagógicas, legislação familiar, utopias urbanas, invenção gráfica e
cinematográfica88.” (Idem, ibidem, p.170).
Citamos anteriormente que para Lenin, as batalhas contra o capital devem
ser travadas de acordo com as necessidades, situações particulares e prioridades.
Assim, num certo momento, a prioridade era vencer militarmente o capital. Depois,
vencer o poder econômico da burguesia. Numa situação pacífica, era administrar o
que fora expropriado dos capitalistas (LENINE89 [escrito entre 13 e 26 de abril de
1918], 1980b, p.564-565). Nesse sentido, a educação participou: da luta contra o
capital e contra o sistema czarista; da luta de classes em múltiplas frentes, mas
adequando-se a momentos particulares.
Foi sob tal ótica que Lunacharski mencionou que o objetivo central,
fundamental e global do poder soviético era o de realizar plenamente o comunismo
no mundo e mais especificamente na república soviética. Contudo, era um fato que
a República dos Sovietes enfrentava um mundo hostil, com uma guerra mundial,
depois a guerra civil e a intervenção estrangeira. Portanto, é evidente que a
prioridade número um era a defesa nacional, posteriormente a sobrevivência
econômica e finalmente a instrução pública, muito embora isso não seja uma regra.
Em verdade, uma guerra não pode ser vencida sem o funcionamento da economia e
sem a instrução:

No fundo, funcionaram as três frentes [a defesa nacional, a


economia, a instrução pública], mas foram adaptadas às necessidades da
primeira, e só agora, só nestes escassos últimos anos, é que podemos
examinar objetivamente, normalmente, as suas relações mútuas. Podemos
agora repetir – e não só nós, os homens da terceira frente -, em nome de
todo o poder soviético, que a terceira frente se combina organicamente com
a primeira e a segunda, que elas são inseparáveis, que atualmente nos
confrontamos com o seguinte problema: a defesa nacional, a administração

88
A propósito da questão da arte em geral no período da revolução, sugerimos consultar o
interessante artigo intitulado Arte e revolução (WILLETT, 1987).
89
As tarefas imediatas do poder soviético.
82

do Estado, o desenvolvimento econômico são impensáveis sem o


desenvolvimento rápido na terceira frente... (LUNATCHARSKI, 1988c,
p.159)

E considerando-se que um dos objetivos do comunismo é criar uma


comunidade fraterna de pessoas com um nível de humanidade cada vez mais
elevado, às quais faculte o pleno acesso aos bens materiais, todas as riquezas e
possibilidades de desenvolvimento humano, é absolutamente imprescindível que
haja cultura, instrução, ciência, arte, para se alcançar o comunismo (Idem, ibidem,
p.162-163).
Apesar do contexto em que foi escrito, qual seja, a crítica ao programa
populista para as escolas agrícolas, na transcrição a seguir Lenin manifestou sua
consciência tanto de que a educação é mais ampla que a educação escolar, quanto
a vinculação dos problemas da educação com a luta de classes:

Para terminar, voltemos aos problemas da educação, mas não ao


90
livro do senhor Yujakhov que ostenta este título . Já salientamos que essa
designação é excessivamente ampla, pois os problemas da educação não
se esgotam com os da escola; a educação de modo algum se limita à
escola. Se o senhor Yujakhov expusesse os “problemas da educação”
efetivamente do ponto de vista dos princípios e procedesse a uma análise
das relações entre as diversas classes, não teria podido evitar a questão do
papel desempenhado pelo desenvolvimento capitalista da Rússia na
91
educação das massas trabalhadoras. (LENINE [escrito em fins de 1897],
1977, p.231)

Mas, apesar de nossa preocupação inicial se limitar à investigação da


educação leninista no período compreendido entre 1917-1924, não há como
dissociar o que Lenin pensou e agiu antes da revolução de outubro.

2.3 Lenin e a educação antes de Outubro de 1917


De acordo com Instituto Marx-Lenin, no Prefácio do volume 2 das Obras
escolhidas, nas obras escritas que cobrem o período de 1897 a 1916 (LENINE,
1980b, p.V-IX), Lenin tratou principalmente: da defesa intransigente de uma
concepção ortodoxa do marxismo, insurgindo-se contra qualquer tendência
revisionista da teoria política e econômica de Marx; da teoria da organização política
(o partido como força dirigente da vanguarda do movimento operário). Em suma,

90
O título do livro de Yujakhov é Os problemas da educação. Experiências de ensaios sociais.
Reforma da escola secundária. Sistema e objetivos do ensino superior. Manuais para as escolas
secundárias. Problemas da instrução pública geral. A mulher e a instrução.
91
Pérolas da projetomania populista.
83

neste período prevalecem as preocupações e ações de Lenin sobre os caminhos da


tomada do poder e a derrubada do czarismo / capitalismo.

2.3.1 As disputas com os populistas


Com relação ao período anterior a outubro de 1917, destacamos
inicialmente a questão da disputa política travada entre a social-democracia russa e
os populistas russos.
Os populistas eram partidários do populismo, uma corrente ideológica e
política pequeno-burguesa surgida no movimento revolucionário russo na década de
70 do século XIX. Na época, defendiam a derrubada do czarismo e a entrega das
terras aos camponeses. Afirmavam que o capitalismo na Rússia era um fenômeno
“casual” e consequentemente, negavam o papel dirigente da classe operária no
movimento revolucionário. Viam nos camponeses a principal força revolucionária,
considerando o campesinato como a base do desenvolvimento do socialismo.
Formavam uma vanguarda revolucionária que adotou o terrorismo, mas não tinham
o apoio das massas, pois os camponeses não os apoiavam (LENINE, 1981, p.141).
O populismo passou por uma série de etapas, passando da democracia
revolucionária para o liberalismo. Nos anos 80-90 do século XIX os populistas
reconciliaram-se com o czarismo, expressaram os interesses dos kulaks (burguesia
rural) e lutaram de forma encarniçada contra os marxistas.
Mencionamos anteriormente que Lenin promoveu a superação crítica de
alguns movimentos sociais da Rússia, adequando-os à realidade russa e às
necessidades da revolução social. Esse é o pano de fundo sobre o qual Lenin travou
debates acirrados com os populistas, demonstrando cientificamente como o
capitalismo se implantou e se desenvolveu na Rússia em O desenvolvimento do
capitalismo na Rússia (LENIN, 1985) e consequentemente, provando que a classe
dirigente do processo revolucionário era o proletariado e não o campesinato. Outra
superação do populismo deu-se também pela adoção de outra via para o derrube do
czarismo que não fosse o terrorismo. No caso, a proposta da organização de um
partido revolucionário de massa.
No campo educacional, selecionamos dois textos de Lenin que se
relacionam com seu debate com o populista Yujakhov. Em As herdades-liceus e os
liceus correcionais (LENINE [escritos no outono de 1895], 1981, p.12-19), Lenin
critica o artigo de Yujakhov intitulado Uma utopia no campo. Plano de ensino
84

secundário obrigatório, publicado no número de maio de 1895 da revista Russkoie


Bogatstvo92. Em Pérolas da projetomania populista (LENINE [escrito em fins de
1897], 1977), Lenin critica o livro de Yujakhov intitulado Os problemas da educação
(segundo Lenin, trata-se de uma recompilação dos artigos de Yujakhov publicados
na Russkoie Bogatstvo, durante os anos de 1895-189793).
No primeiro parágrafo do texto As herdades liceus e os liceus correcionais,
Lenin estabeleceu um dos princípios sobre o qual se baseiam as críticas aos
populistas:

Há muito que é conhecida a solução que propõem os populistas


para o problema do capitalismo na Rússia e que nos últimos tempos é
representada com o maior relevo pela revista Rússkoie Bogatstvo. Sem
negar a existência do capitalismo e obrigados a reconhecer o seu
desenvolvimento, os populistas consideram, no entanto, que o nosso
capitalismo não é um processo natural e necessário – que coroa o
desenvolvimento secular da economia mercantil na Rússia, - mas uma
casualidade que carece de raízes profundas e significa apenas um desvio
do caminho prescrito por toda a vida histórica da nação. “Devemos – dizem
os populistas – escolher outros caminhos para a pátria”, afastar-nos do
caminho capitalista e “comunalizar” a produção, aproveitando as forças
existentes “de toda” “a sociedade”, a qual, segundo eles, já começa a
convencer-se da inconsistência do capitalismo. (LENINE, 1981, p.12)

Porém, destacamos a questão referente à comunalização da produção. Em


essência, Yujakhov propõe, tanto no seu artigo quanto no livro supracitados, abordar
os problemas gerais da educação da época e sugerir reformas ao ensino,
basicamente na forma de uma comunalização do campo.
A propósito, Lenin se esmerou em rebater, rechaçar e criticar duramente as
ideias de Yujakhov, o qual propunha a implantação do ensino secundário obrigatório
nos liceus agrícolas, de modo que os alunos que não pudessem pagar pelos
estudos o fizessem por meio do trabalho voluntário. Assim, Lenin denuncia o caráter
reacionário do programa de comunalização do campo dos populistas, bem como a
confusão e os erros teóricos no tratamento de questões relacionadas à luta de
classes, às contradições campo versus cidade, entre outros.

92
Russkoie Bogatstvo: revista mensal que foi publicada em São Petersburgo de 1876 a 1918. No
começo da década de 90 do século XIX, a revista passou a ser o órgão de divulgação dos populistas
liberais. (LENINE, 1981, p.141, nota 2).
93
Não tivemos acesso ao livro Os problemas da educação, de Yujakhov e portanto, não podemos
afirmar se o texto Uma utopia no campo. Plano de ensino secundário obrigatório compõe a referida
obra.
85

2.3.2 A educação política do proletariado e as críticas à educação


czarista
Os elementos de crítica à educação czarista e a educação política do
proletariado em Lenin se combinam e se fundem, posto que ambos conduzem tanto
aos fins estratégicos da derrubada do czarismo e do capitalismo, quanto da
construção da sociedade socialista.
Ou seja, as críticas de Lenin à educação czarista e capitalista e as tarefas de
educação política do proletariado devem ser entendidas no contexto global da
destruição das sociedades czarista e capitalista e relacionadas às concepções de
Lenin sobre Estado, revolução, socialismo etc. Nesse sentido, resgatamos
novamente o discurso de Lenin proferido por ocasião do IV aniversário da Revolução
de Outubro, com relação às duas revoluções empreendidas pelo proletariado russo:
a democrático-burguesa e a socialista.
Assim, o conteúdo da revolução democrático-burguesa se refere a varrer as
relações sociais e as instituições de tudo o que é resquício do medievalismo, do
feudalismo e dos elementos da servidão – a monarquia, a divisão da sociedade em
estamentos, as formas de propriedade e usufruto da terra, a situação aviltante da
mulher, a religião, a opressão das nacionalidades. Mas, a fim de consolidar as
conquistas da revolução democrático burguesa, o proletariado empreendeu a
revolução socialista, a qual incorpora e transforma a primeira e vai além dela. Como
não existe, nas palavras de Lenin, uma “muralha chinesa” que separe essas duas
revoluções, somente a luta decidirá até onde se conseguirá avançar nas conquistas
da revolução socialista (LENIN94 [escrito em 14 de outubro de 1921], 1968, p.125-
129).
Desse modo, as críticas à educação czarista e capitalista e a educação
política do proletariado devem ser compreendidas no processo dialético que
assumem as revoluções democrático-burguesa e socialista.
Inicialmente, analisamos o significado da educação política e
posteriormente, como esta se relaciona e se materializa nas denúncias e críticas de
Lenin à educação czarista.
Logo, no que se refere à educação política, há várias passagens dos textos
leninianos em que essa questão é indicada. Em seu livro Que fazer? Lenin (LENINE

94
Por ocasião do IV aniversário da Revolução de Outubro.
86

[escrito no outono de 1901-fevereiro de 1902], 1980a) apresentou alguns dos


fundamentos do que seria a educação política do proletariado. No prefácio desta
obra, Lenin mencionou que o livro representou o desdobramento de três questões
principais colocadas anteriormente no artigo Por onde começar?, a saber: 1) o
caráter principal da agitação política; 2) as tarefas de organização; 3) o plano para
criação de uma organização de combate para a Rússia.
Que fazer? é uma obra prima da teoria e da prática política. Representa o
ponto de inflexão vivido pelo movimento socialista europeu e revolucionário russo.
Seus fundamentos são o desenvolvimento do capitalismo na Rússia (a teoria do
desenvolvimento desigual e combinado); os caminhos do movimento socialista e
operário na Europa; as tendências revisionistas e reformistas do marxismo; a
organização internacional dos trabalhadores.
Seu contexto imediato é a sociedade czarista, o terrorismo, o combate aos
meios de repressão czarista, extremamente violentos e eficientes. É ao mesmo
tempo uma afirmação na ortodoxia marxiana e seus princípios para a prática política
(a luta de classes e a revolução como única forma de romper com o jugo do capital),
uma aliança entre um profundo conhecimento teórico com o mais lúcido
pragmatismo e firmeza de princípios com relação à derrubada do czarismo e do
capitalismo e a construção do socialismo.
No tocante ao movimento operário russo, o desenvolvimento do capitalismo
na Rússia havia proporcionado o crescimento de um operariado não organizado e
despreparado, de modo que o recrudescimento do movimento operário não foi
acompanhado pela atuação dos partidos socialistas e revolucionários. Antes, houve
a difusão e a penetração dos movimentos reformistas e oportunistas no seio das
massas trabalhadoras.
Que fazer? é a pergunta a como enfrentar essa miríade de problemas. Ao
longo do livro, Lenin vai construindo a resposta, na forma de críticas e ao mesmo
tempo superando os detratores e inimigos do marxismo, do socialismo e do
movimento revolucionário. Às tendências reformistas, oportunistas e economicistas,
ele proclamou veementemente a necessidade da vinculação com o marxismo
ortodoxo; com os princípios da luta de classes; com a revolução como forma de
passagem para o socialismo; a coerência com os fins da revolução e com a
construção do socialismo e do comunismo.
87

Ao problema da falta de condução das massas trabalhadoras, ele anunciou


a necessidade de se criar um Partido que representasse a vanguarda da classe
trabalhadora, organicamente vinculado ao movimento operário, que desempenhasse
uma série de tarefas, entre elas a de educação política do proletariado, de
denúncias de todo o tipo de opressão (política, econômica, social, cultural), criando
as condições para a derrubada da autocracia e do capitalismo na Rússia. Seria um
partido formado por “revolucionários profissionais”, isto é, agindo na clandestinidade,
recrutados na fábrica, temperados na luta política e capazes de lidar com a polícia
política mais eficaz, violenta e repressiva.
A resposta à pergunta Que fazer? admite mais de uma resposta. Mas Lenin,
na condição de primoroso propagandista e escritor, faz questão de respondê-la na
última frase do livro: “Liquidar o terceiro período.” (Idem, ibidem, p.208). Ou seja,
liquidar o período caracterizado pela predominância do oportunismo e do
economicismo, pela união de um “[...] praticismo mesquinho com a mais completa
despreocupação em relação à teoria [...]” (Idem, ibidem, p.207), um abandono dos
princípios do socialismo científico como uma teoria revolucionária integral e da luta
de classes.
Todavia, Johnstone (1985) mencionou que Lenin escreveu Que fazer? como
forma de preparação para o II Congresso do Partido Social Democrata e como
contribuição do grupo Iskra95 contra as tendências economicistas presentes no
movimento operário. Evidentemente que é um livro fundamental para se
compreender as ideias constitutivas do partido de vanguarda. Porém, “[...] seria um
equívoco considerá-lo [Que fazer?] como a suma da teoria leniniana do partido, que
– como tantas outras ideias de Lenin – é, antes de mais nada, o produto de
circunstâncias e controvérsias específicas.” (Idem, ibidem, p.116).
De acordo com Johnstone, Lenin destacaria anos mais tarde o engano
daqueles que viessem a tomar esse texto como algo completamente deslocado de
uma situação histórica determinada. Considerar Que fazer? como um dogma, ou

95
Iskra (Centelha): primeiro jornal marxista ilegal da Rússia, fundado por Lenin em 1900, que
desempenhou papel decisivo na criação do partido marxista revolucionário da classe operária. Seu
primeiro número saiu a público em dezembro de 1900 em Leipzig. O Iskra converteu-se no núcleo de
unificação das forças do partido e de seleção e educação dos seus quadros. O Iskra começou a
sofrer influências mencheviques e em 1903 Lenin abandona sua redação e a partir de então os
mencheviques convertem o Iskra em seu próprio órgão de divulgação (LENINE, 1980a, p.698-699,
nota 103).
88

algo completamente independente da tarefa à qual Lenin se propunha naquele


momento é um erro.
No que concerne às tarefas da social democracia e à educação política do
proletariado, Lenin afirmou:

A social-democracia dirige a luta da classe operária não só para obter


condições vantajosas de venda da força de trabalho, mas para que seja
destruído o regime social que obriga os não possuidores a venderem-se aos
ricos. A social-democracia representa a classe operária não só na sua
relação com um dado grupo de patrões, mas também nas suas relações
com todas as classes da sociedade contemporânea, com o Estado como
força política organizada. Compreende-se portanto que os sociais-
democratas não só não possam circunscrever-se à luta econômica, como
nem sequer possam admitir que a organização das denúncias econômicas
constitua a sua atividade predominante. Devemos empreender ativamente o
trabalho de educação política da classe operária, de desenvolvimento da
96
sua consciência política. (LENINE [escrito no outono de 1901-fevereiro de
1902] 1980a, p.119, grifos nossos).

Também em seu texto As três fontes e as três partes constitutivas do


marxismo, Lenin (LENINE [Publicado em março de 1913], 1980a, p.38-39) escreveu:
Os homens sempre foram em política vítimas ingênuas do engano
dos outros e do próprio e continuarão a sê-lo enquanto não aprenderem a
descobrir por trás de todas as frases, declarações e promessas morais,
religiosas, políticas e sociais, os interesses de uma ou outra classe. Os
partidários de reformas e melhoramentos ver-se-ão sempre enganados
pelos defensores do velho, enquanto não compreenderem que toda
instituição velha, por mais bárbara e apodrecida que pareça, se mantém
pela força de umas ou de outras classes dominantes. E para vencer a
resistência dessas classes só há um meio: encontrar na própria sociedade
que nos rodeia, educar e organizar para a luta, os elementos que possam –
e, pela sua situação social, devam – formar a força capaz de varrer o velho
e criar o novo. (p.38-39, grifos do autor)

Agitação, propaganda, educação política, que implicam em denunciar de


todas as formas e todos os tipos de opressão, em todos os níveis, circunstâncias e
situações, de modo que

A consciência política e a atividade revolucionária das massas não podem


ser educadas senão com base nestas denúncias. Por isso, a atividade deste
gênero constitui uma das mais importantes funções de toda a social-
97
democracia internacional [...]. (LENINE [escrito no outono de 1901-
fevereiro de 1902], 1980a, p.128, grifos do autor)

Desse modo, somente por meio de uma educação política das massas é que
estas vão adquirir consciência de todos os tipos de opressão, violência,
arbitrariedade e abusos que ocorram contra todas as classes (e não apenas contra a
classe operária) em todas as formas de manifestação da vida - intelectual, moral,

96
Que fazer?
97
Que fazer?
89

política, cultural etc. Só assim é que a classe operária adquire uma verdadeira
consciência política, pois é preciso conhecer, estar consciente de tudo: as relações
de classe, a opressão em todos os níveis e não apenas no nível econômico.

É por essa razão que a defesa pelos [por parte dos] nossos “economistas”
da luta econômica como o meio mais amplamente aplicável para integrar as
massas no movimento político é, pelo seu significado prático, tão
profundamente nociva e tão profundamente reacionária. Para se tornar um
social-democrata o operário deve ter uma ideia clara da natureza
econômica e da fisionomia política e social do latifundiário e do padre, do
dignatário e do camponês, do estudante e do vagabundo, conhecer os seus
pontos fortes e os seus pontos fracos, saber orientar-se nas frases mais
correntes e sofismas de toda a espécie com que cada classe e cada
camada encobre os seus apetites egoístas e as suas verdadeiras
“entranhas”, saber distinguir que interesses refletem estas ou aquelas
instituições e leis e como os refletem. E não é nos livros que se pode obter
essa “ideia clara”: só a podem dar quadros vivos, denúncias em cima dos
acontecimentos, de tudo o que sucede num dado momento à nossa volta,
do que todos e cada um falam, ou pelo menos, murmuram, à sua maneira,
do que se manifesta em determinados acontecimentos, números, sentenças
judiciais, etc., etc., etc. Estas denúncias políticas que abarcam todos os
aspectos da vida são uma condição indispensável e fundamental para
educar a atividade revolucionária das massas. (Idem, ibidem, p.129, grifos
do autor)

Dessa forma,

As denúncias políticas são [...] um dos meios mais poderosos para


desagregar o regime adverso, separar o inimigo dos seus aliados fortuitos
ou temporários e semear a hostilidade e a desconfiança entre os que
participam continuamente no poder autocrático.
Só o partido que organize campanhas de denúncias realmente
dirigidas a todo o povo poderá tornar-se, nos nossos dias, vanguarda das
forças revolucionárias. (Idem, ibidem, p.142-143. Grifos do autor)

Finalmente:

Pois precisamente em sermos nós, os sociais-democratas, quem organizará


essas campanhas de denúncias dirigidas a todo o povo; em que todas as
questões levantadas na nossa agitação serão esclarecidas a partir de um
ponto de vista invariavelmente social-democrata, sem a menor indulgência
para com as deformações, intencionais ou não, do marxismo; em que esta
ampla agitação política multiforme será realizada por um partido que reúne,
num todo indivisível, a ofensiva em nome de todo o povo contra o governo,
a educação revolucionária do proletariado, salvaguardando ao mesmo
tempo a independência política deste, a direção da luta econômica da
classe operária e a utilização dos seus conflitos espontâneos com os seus
exploradores, conflitos que põem de pé e atraem sem cessar para o nosso
campo novas e novas camadas do proletariado! (Idem, ibidem, p.143)

Alguns anos depois, no texto On confounding politics with pedagogics, Lenin


([escrito em junho de 1905], 2003, p.2) confirmou o que ele havia escrito em Que
fazer?, asseverando que o Partido Social Democrata deveria ir às massas, trabalhar
a propaganda e a agitação, em conexão com a luta econômica:
90

É obrigação nossa intensificar e ampliar sempre nosso trabalho e influência


entre as massas. Um Social-Democrata que não faz isso não é um Social-
Democrata. Nenhuma seção, grupo, ou círculo pode ser considerado uma
organização Social-Democrata se ela não trabalha para chegar a esse
objetivo de modo firme e regular.

De maneira que a atuação do Partido Social Democrata deve se basear no


marxismo e levar, sempre e sem desvios, as massas a adquirir sua consciência de
classe, posto que

Há e sempre haverá um elemento pedagógico na atividade política do


Partido Social-Democrata. Nós devemos educar a totalidade da classe
proletária para que eles assumam o papel de combatentes [em prol] da
emancipação da humanidade de toda a opressão. (Idem, ibidem, p.2, grifos
nossos).

Assim, o Partido Social Democrata deveria ensinar os membros da classe


operária, conscientizando-os dos objetivos da social-democracia, mas sem fazer
disso um dogma.
Cerca de vinte anos depois, em seu discurso As tarefas das uniões da
juventude (LENINE [Discurso proferido no III Congresso de toda a Rússia da União
Comunista da Juventude da Rússia, em 2 de outubro de 1920], 1980c, p.391), Lenin
explicaria sinteticamente no que consistira a educação política e o papel pedagógico
do Partido: criticar a burguesia (e o czarismo); desenvolver a consciência de classe;
unir as forças do proletariado contra a burguesia; incitar o ódio à burguesia; derrubar
a burguesia – essas eram as tarefas essenciais naquela época (aproximadamente
quando Que fazer? fora publicado).
Também, nas Cartas de longe, ao escrever sobre a capacidade de adaptar-
se às mudanças nas situações objetivas nos tempos de revolução, Lenin aludiu à
questão da propaganda política, que se relaciona com a educação política das
massas: “Antes de fevereiro de 1917, o que estava na ordem do dia era a
propaganda revolucionária internacionalista corajosa, o apelo às massas para a luta,
o seu despertar.” (LENIN [as primeiras quatro Cartas de longe foram escritas na
Suíça entre final de março e início de abril de 1917], 2005, p.54).
Desse modo, inferimos que para Lenin a educação deveria contribuir para a
transformação social, de modo que educar significava um processo de politização,
ou um processo por meio do qual um maior nível de consciência política é
alcançado. Também, segundo Rossi (1981), pela concepção leninista de partido, as
massas seriam incapazes de alcançar por si mesmas um nível de consciência e
participação política. Assim, era necessário que existisse um Partido, uma
91

vanguarda capaz de potencializar e catalisar as condições subjetivas, dirigindo a


massa para um levante revolucionário.
É sob tal ótica que interpretamos as denúncias e as críticas de Lenin à
educação czarista, anteriores a Outubro de 191798. A propósito, os textos Em torno
da política do ministério da instrução pública99 (LENINE [escrito em 27 de abril (10
de maio) de 1913], 1981) e Acerca das nossas escolas (LENINE [publicado em 18
de dezembro de 1913], 1981) são bastante ilustrativos, nos quais Lenin criticou
duramente o Ministério da Instrução Pública e a educação czarista, que para ele
eram simplesmente lacaios dos latifundiários e do grande capital.
Na ocasião, Lenin denunciou a maneira como o Ministério da Instrução
Pública divulgava o aumento com os gastos com educação: de 46 milhões de rublos
em 1907, seu orçamento elevou-se para 137 milhões em 1913. “O aumento é
enorme: quase o triplo em seis anos, nada mais!” (LENINE100 [escrito em 27 de abril
(10 de maio) de 1913] 1981, p.31). Porém, a questão não é o cálculo efetuado em
termos porcentuais, mas per capita: triplicar os valores referentes ao orçamento para
a educação havia significado um aumento de apenas alguns copeques101 por
pessoa. Logo, informar tais aumentos porcentuais objetivava apenas encobrir a
situação miserável da instrução pública na Rússia. Ou seja, o governo entregava-se
a um estúpido e burocrático jogo com números que não diziam nada ou muito
pouco.
De forma diferente, Lenin apresentou outros dados, que segundo ele,
revelavam o embrutecimento público oficial da educação. Eram informações do
próprio governo, a respeito do número de crianças em idade escolar que
frequentavam a escola; número de adultos alfabetizados etc. Ele declarou que “[...] o
atraso e a barbárie da Rússia são incríveis devido à onipotência dos latifundiários
feudais no nosso Estado.” (Idem, ibidem, p.32, grifo do autor). Haja vista que

98
As informações referentes às notas de números 99 a 115 (exceto as notas 101 e 112) de nossa
tese constam no livro A instrução pública.
99
O texto Em torno da política do ministério da instrução pública foi escrito por Lenin para ser lido por
um deputado bolchevique na Duma. O deputado Badáev pronunciou o discurso em 4 (17) de junho
de 1913, quando da discussão sobre o relatório da Comissão de orçamentos sobre o projeto de
despesas do Ministério de Instrução Pública para o ano de 1913. O deputado expôs quase que
textualmente o discurso, mas foi privado da palavra quando disse “Acaso não merece este governo
ser expulso pelo povo?”
100
Em torno da política do ministério da instrução pública.
101
Se fosse no Brasil diríamos centavos por pessoa.
92

aproximadamente quatro quintos das crianças e adolescentes em idade escolar na


Rússia estavam privados de instrução.
E acrescentou:

À exceção da Rússia, na Europa já não há nenhum país tão


bárbaro, onde as massas populares tenham sido tão espoliadas no sentido
do ensino, da instrução e do saber. E esta barbárie das massas populares,
particularmente dos camponeses, não é fortuita, mas irremediável sob o
jugo dos latifundiários, que se fizeram donos de dezenas e dezenas de
102
milhões de deciatinas de terra e usurparam o poder estatal, tanto na
103 104
Duma como no Conselho de Estado , e não só nestas instituições, sem
falar das inferiores...
Quatro quintas partes da jovem geração estão condenadas a viver
no analfabetismo pelo regime estatal feudal da Rússia. O analfabetismo na
Rússia corresponde a este embrutecimento do povo pelo poder latifundiário.
Esse mesmo Anuário da Rússia calcula que na Rússia só 21% da
população sabe ler e escrever, ou 27%, se excetuarmos as crianças em
idade pré-escolar, ou seja, os menores de nove anos. (Idem, ibidem, p.33,
grifo do autor)

Sobre os argumentos do governo de que há limites quanto aos gastos com a


educação, Lenin aduziu:

Os plumitivos e os lacaios oficiais dir-nos-ão, por certo, que a


Rússia é pobre e não tem dinheiro. Oh, sim, a Rússia não só é pobre, mas
também miserável, quando se trata da instrução pública! Em contrapartida,
a Rússia é muito “rica” pelos seus gastos com o sustento do Estado feudal,
dirigido pelos latifundiários, pelos gastos com a polícia, o exército, os
contratos de renda e as remunerações de dezenas de milhares de rublos
aos latifundiários que atingiram “altas” graduações, com a política de
aventuras e saques [...]. A Rússia será sempre pobre e miserável no que se
refere aos gastos com a instrução do povo, até que o povo não se instrua o
suficiente para sacudir o jugo dos latifundiários feudais.
A Rússia é pobre quando se trata das remunerações dos
professores nacionais. Paga-lhes miseravelmente. Os professores nacionais
105
passam fome e frio nas isbás sem aquecimento e quase inabitáveis.
Vivem juntos com o gado, que os camponeses metem em suas casas
durante o inverno. Os professores veem-se perseguidos por qualquer
106 107
uriádnik , por qualquer membro das centúrias negras no campo e por
qualquer polícia ou espião, sem contar a perseguição de que são objeto por

102
Deciatina: antiga medida de superfície agrária russa que existiu antes da introdução do sistema
métrico. Uma deciatina correspondia a 1,092 hectare.
103
Duma: órgão legislativo que o governo czarista se viu obrigado a convocar em função dos
acontecimentos revolucionários de 1905, mas na prática a Duma carecia de todo poder efetivo. Suas
eleições não eram diretas, igualitárias ou gerais. Os direitos das classes trabalhadoras e das
nacionalidades não russas eram muito restritos e parte considerável dos operários e camponeses não
tinham garantidos seus direitos eleitorais.
104
Conselho de Estado: um dos organismos supremos do Estado da Rússia czarista. Foi criado em
1810 como instituição consultiva quanto à promulgação das leis. Seus representantes eram
nomeados e ratificados pelo czar. Era tão reacionário que recusava até projetos de lei moderados
aprovados pela Duma de Estado.
105
Isbá: cabana russa primitiva.
106
Uriádnik: grau inferior na polícia russa da época.
107
Centúrias negras: bandos monárquicos formados pela polícia czarista, cujo objetivo era lutar
contra o movimento revolucionário. Os centúrias negras assassinavam os revolucionários, agrediam
os intelectuais progressistas e organizavam perseguições antissemitas.
93

parte dos seus chefes. A Rússia é pobre para remunerar os honestos


trabalhadores da instrução pública, mas é muito rica para atirar dezenas de
milhões de rublos aos nobres parasitas, para gastá-los em aventuras
bélicas, para subsidiar os fabricantes de açúcar e os reis do petróleo, e
assim sucessivamente. (Idem, ibidem, p.35, grifos do autor)

Ainda, sobre a condição dos professores e a atividade policial do Ministério


de Instrução Pública:

Mas até agora referi-me quase unicamente ao aspecto material,


ou mesmo financeiro, do problema. Incomparavelmente mais sombrio, ou
melhor dizendo, mais repulsivo é o quadro da ignorância espiritual, da
humilhação e da falta de direitos dos alunos e dos professores na Rússia.
Neste sentido, toda a atividade do Ministério da Instrução Pública é um
escarnecer contínuo dos direitos dos cidadãos, do povo. Indagação policial,
arbitrariedade policial, entraves policiais à ilustração do povo em geral e dos
operários em particular, destruição policial daquilo que o próprio povo faz
para se instruir: a isto se reduz toda a atividade do Ministério, cujo
orçamento vai ser aprovado pelos senhores latifundiários, desde os
108
direitistas até aos outubristas . (Idem, ibidem, p.36, grifos do autor)

Assim, Lenin pergunta: “[...] não tinha eu absoluta razão ao dizer que o
Governo é um estorvo ao fomento da instrução pública na Rússia? Que o Governo é
o maior inimigo da instrução pública na Rússia?” (Idem, ibidem, p.38, grifo do autor).
Finalmente, ele termina com uma provocação peremptória:

Sim, os professores nacionais russos são acossados como lebres.


Sim, o Governo obstrui o caminho do ensino a nove décimas partes da
população da Rússia. Sim, o nosso Ministério da Instrução Pública é um
ministério de buscas policiais, de escárnio da juventude, de ultraje à ânsia
de saber do povo. Porém, nem todos os camponeses russos, e em
particular os operários russos, nem todos, nem muitíssimo menos, senhores
membros da IV Duma, se parecem com as lebres. A classe operária soube
109
demonstrar isso no ano cinco e saberá demonstrar outra vez, de modo
muito mais persuasivo, muito mais impressionante e muito mais seriamente,
a sua capacidade para a luta revolucionária pela autêntica liberdade e por
110
uma instrução não a Kassó nem para os nobres, mas verdadeiramente
popular! (Idem, ibidem, p.40, grifos do autor).

Em Acerca de nossas escolas, Lenin denunciou as péssimas condições


materiais das escolas paroquiais e os salários aviltantes das professoras111. Com
base nos dados do censo escolar da Rússia de 18 de janeiro de 1911, nas cidades
do distrito escolar de São Petersburgo, havia 329 escolas urbanas; 139 escolas

108
Outubristas: membros do partido União 17 de outubro, fundado em 17 de outubro de 1905. Era um
partido que representava e defendia os interesses da grande burguesia e dos latifundiários. Os
outubristas apoiavam totalmente a política interna e externa do governo czarista.
109
Ano cinco: alusão à revolução de 1905-1907.
110
Kassó: grande latifundiário e professor universitário. Foi ministro da Instrução Pública de 1910 a
1914. Aplicou uma política reacionária em relação à escola primária, secundária e superior e reprimiu
cruelmente os estudantes revolucionários e os professores progressistas.
111
O corpo docente era composto predominantemente por mulheres.
94

privadas e 177 escolas paroquiais. Os salários médios das professoras eram: 924
rublos/ano; 609 rublos/ano e 302 rublos/ano, respectivamente.
Nas aldeias havia 3.545 escolas unitárias112 dos zemstvos113 e 2.506
escolas unitárias paroquiais. Nas escolas unitárias o salário médio anual das
professoras era de 374 rublos; nas paroquiais, 301 rublos/ano. Nas primeiras, o
número de professoras com instrução representava 20%; nas escolas paroquiais,
2,5% (sem levar-se em conta os professores de religião).
Ao que Lenin declarou: “Professoras pobres e famintas: as nossas escolas
paroquiais são isto.” (LENINE [publicado em 18 de dezembro de 1913], 1981, p.49).
Com relação à porcentagem de professoras com instrução laica média e
superior: nas escolas urbanas, 76%; 67% nas privadas e 18% nas paroquiais.
“Professoras ignorantes [...]: as nossas escolas paroquiais são isto.” (Idem, ibidem,
p.49). Também, com base nos dados do mesmo censo escolar, Lenin concluiu que
as escolas paroquiais não dispõem de espaço físico e iluminação suficientes. “Estes
dados permitem ver até que extremo é lamentável a situação das escolas
paroquiais.” (Idem, ibidem, p.50). E acrescentou:

Estes dados, como se compreenderá, são extremamente pobres.


O Ministério esforçou-se ao máximo para que não se recolhessem dados
minuciosos, exatos e completos sobre a mísera situação das nossas
escolas.
E, apesar disso, mesmo os dados incompletos, diminuídos pelas
autoridades e mal estudados, mostram a situação lamentável, miserável, da
escola paroquial. (Idem, ibidem, p.50, grifo do autor).

Lenin foi um crítico mordaz da educação czarista. Suas denúncias dirigiam-


se tanto aos poderes centrais da Rússia quanto aos locais, não os poupando de
uma linguagem ferina e sarcástica. Também foram objeto de sua denúncia a
perseguição policial e política que sofreram estudantes e professores, em função de
seu envolvimento em atividades políticas ou simplesmente por adotar e defender
posicionamentos liberais.
Enfim, a educação política materializava-se por meio da crítica, denúncia,
agitação, propaganda, envolvimento com as massas, empregando-se todos os

112
Lenin ou os editores não explicam o que eram as escolas unitárias. Talvez escolas primárias do
campo.
113
Zemstvos: organismos de administração autônoma local instituídos nas provinciais centrais da
Rússia czarista em 1864. A competência dos zemstvos estava limitada às questões econômicas
meramente locais (construção de hospitais, abertura de estradas, estatística etc.). Atuavam sob o
controle dos governadores e do Ministério do Interior, que poderiam anular as decisões tomadas nos
zemstvos, se não fossem do agrado do governo.
95

meios e dirigidos a todas as circunstâncias, níveis e formas de opressão, violência,


desigualdade, discriminação, em todas e quaisquer esferas da vida social, incluindo-
se a educação e a instrução.

2.3.3 Educação revolucionária antes da revolução?


A questão que norteia nossa argumentação é saber se é possível a
implantação uma educação revolucionária no modo de produção capitalista antes da
eclosão de uma revolução social. Sobre o assunto, de acordo com o compilador dos
textos do livro Cultura e revolução cultural (FELIX, 1968), Lenin considerava a
revolução social como premissa indispensável da revolução cultural. Em outras
palavras, não se implanta uma educação revolucionária sem antes se fazer uma
revolução.
Do exposto até o momento no capítulo 2, inferimos que a educação política,
ou o papel pedagógico do partido assumia dois aspectos distintos mas
complementares. Um deles se refere às questões pedagógicas em sentido estrito.
Ou seja, ensino no sentido formal do termo – já vimos que Lenin fora professor de
economia política em círculos operários em São Petersburgo e em seu exílio em
Paris (item 2.1 Lenin e a educação: aspectos biográficos).
Também, em seu texto Em que pensam os nossos ministros?, Lenin
(LENINE [escrito entre novembro e dezembro de 1895], 1981), mencionou o temor
que despertava no então Ministro do Interior o ensino de conteúdo político
ministrado por “indivíduos estranhos”114 nas escolas dominicais115 russas. Cite-se
que o ministro teria ficado profundamente incomodado com o fato de “os
trabalhadores estarem estudando”, caracterizando uma situação em que alguém
ensinava e alguém aprendia e que os “indivíduos estranhos” se dispunham a
trabalhar gratuitamente:

O sistema que permite a indivíduos estranhos proferir conferências deixa o


caminho livre para que se infiltrem entre os conferencistas pessoas
francamente pertencentes ao meio revolucionário.
Assim pois, se alguns “indivíduos estranhos”, não sancionados
nem inspecionados pelos popes e pelos espiões, desejam ensinar os
operários, trata-se de uma franca revolução! O ministro vê nos operários a

114
“Indivíduos estranhos”, segundo Lenin, foi a expressão empregada pelo então Ministro do Interior
que denunciou essa atividade como subversiva. Os elementos estranhos a quem se refere o Ministro
eram militantes engajados na derrubada do czarismo.
115
Escolas dominicais para adultos, em particular para os operários, de modo que a social
democracia revolucionária utilizava essas escolas para a educação política dos operários.
96

pólvora e nos conhecimentos e na instrução a chispa; o ministro está certo


de que se a chispa cair na pólvora, a explosão irá dirigida, antes do mais,
contra o governo.
Não podemos negar-nos a satisfação de assinalar que, neste raro
caso, estamos plena e absolutamente de acordo com as opiniões de Sua
Excelência. (LENINE [escrito entre novembro e dezembro de 1895], 1981,
p.21)

Isto é, o conhecimento, o ensino, a instrução tinham efetivamente um papel


revolucionário, de modo que a atuação pedagógica do partido também incluía o
ensino propriamente dito. Porém, a atividade pedagógica do partido não deveria
nem podia se limitar a essas atividades. Tal é o sentido das palavras de Lenin
([escrito em junho de 1905], 2003, p.3), no já citado artigo On confounding politics
with pedagogics, quando ele adverte aos militantes do partido de que é preciso

[...] ensiná-los [os membros da classe operária] não somente com base nos
livros, mas através da participação na luta diária da existência desse estrato
atrasado e menos desenvolvido do proletariado. Existe, eu repito, um certo
elemento pedagógico nesta atividade diária. O Social-Democrata que perca
essa visão deve cessar de ser um Social-Democrata. Essa é a verdade.
Mas alguns de nós frequentemente esquece, que um Social-Democrata que
reduz suas tarefas políticas à pedagogia também deveria, por outra razão,
cessar de ser um Social-Democrata.

Em outras palavras, o papel pedagógico do partido implicava tanto na


instrução, quanto na educação política que se dava ao nível das massas, por meio
da agitação e da propaganda, à qual Lenin atribuía clara proeminência naquele
momento.
Logo, perguntamos: no caso da Revolução de Outubro, teria existido então
uma “educação revolucionária antes da revolução”?
Nossa suposição é a de que sim, quando consideramos as duas faces da
atividade pedagógica do partido. No tocante à atividade de agitação e propaganda,
não parece haver dúvidas quanto ao seu claro propósito revolucionário. Porém, no
caso do ensino propriamente dito, é necessário refletir mais cuidadosamente.
Em primeiro lugar, as aulas ministradas não mantinham nenhum vínculo com
o sistema formal de ensino da Rússia – eram proferidas na forma de conferências,
dadas voluntariamente por pessoas que não pertenciam ao quadro oficial dos
funcionários das escolas. Em segundo lugar, as aulas ministradas pelos militantes
do Partido Social Democrata compunham o conjunto das atividades do partido, o
qual, em última instância, visava a derrubada do czarismo e do capitalismo.
Portanto, aquelas atividades pedagógicas devem ser consideradas em consonância
97

com os objetivos estratégicos da social democracia russa, de modo que o papel


pedagógico do partido absolutamente não se contrapunha à política.
Contudo, tal papel pedagógico não pode se confundir nem se limitar à
instrução e ele absolutamente não substitui a pedagogia das massas. Em suma,
esse foi o alerta de Lenin ao escrever On confounding politics with pedagogics.
98

3 LENIN E A EDUCAÇÃO APÓS OUTUBRO DE 1917


As deficiências na área educacional da Rússia czarista se transformaram
num grande e grave problema para a República Soviética, pois se no czarismo e no
capitalismo, o povo era mantido na ignorância como forma de manutenção do status
quo e em benefício da exploração e expropriação do trabalho social, de modo
diferente, numa suposta sociedade socialista, o conhecimento, o saber, a educação
política são condições fundamentais à organização e funcionamento da sociedade.
Sendo assim, após o sucesso da Revolução de Outubro de 1917, para
Lenin, a educação assumiu grande importância no processo de luta contra a
burguesia; de consolidação do poder proletário; de construção econômica e de
implantação das bases para construção da futura sociedade socialista, de modo que
as ações ligadas à educação e à instrução pública deviam atuar em múltiplas
frentes, a saber: a) alfabetizar o povo; b) vencer a resistência dos profissionais
contrários à revolução e trazê-los à causa do comunismo; c) elaborar uma
pedagogia coerente com a implantação de um governo proletário; d) dar condições
materiais para que as crianças pudessem frequentar a escola etc.
Portanto, a

[...] revolução socialista de outubro de 1917 provocou mudanças radicais na


organização da instrução pública. A escola privada desapareceu e o
sistema escolar adquiriu um caráter democrático. Todos os povos da jovem
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas obtiveram o direito de
desenvolver sua própria cultura em suas próprias escolas.
Conjuntamente com a transformação da economia e o
desenvolvimento das relações sociais socialistas começou a renovação
cultural. A sua essência consistia na criação de uma cultura socialista e na
democratização de toda vida espiritual da sociedade. A revolução cultural
refletiu-se na esfera da instrução, através de transformações realizadas pela
direção do ensino popular entre 1917 e 1929, denominada, na época,
Comissariado do Povo para a Instrução [...]. (CAPRILES, 1989, p.28)

Quanto às ações no campo educacional, após outubro de 1917, destacamos


a promulgação dos decretos referentes à liquidação do analfabetismo e a instituição
do programa do PCR de 1919 (ZAJDA, 1980, p.9). Segundo Cambi (1999, p.557-
558), os temas educativos defendidos por Lenin nessa época formaram a base das
realizações escolares do período de 1917 a 1930 na Rússia. A instrução pública, por
meio da atuação do Comissariado para a Instrução Pública, sofreu profundas
transformações:

Ao antigo regime de escolas elementares reservadas ao povo e de ginásios


praticamente reservados à burguesia sucedeu a escola única do trabalho;
aos antigos programas, que preparavam súditos para o czar e crentes para
99

igreja ortodoxa, sucedeu um programa, forçosamente improvisado,


antireligioso, socialista, baseado no ensino do trabalho: tratava-se de
preparar produtores conscientes de seu papel social. Planejou-se associar a
escola e a oficina. Para melhor pôr em prática, desde a infância, a igualdade
dos sexos, a escola se tornou frequentemente mista, com meninos e
meninas reunidos nas mesmas classes. Mas era preciso improvisar tudo.
Os antigos livros didáticos deviam ser destruídos. Grande parte do antigo
professorado resistia, sabotava, não compreendia, aguardava o fim do
bolchevismo. Era trágica a carência da escola nas coisas mais básicas.
Faltava papel, caderno, lápis, canetas. Crianças famintas e esfarrapadas ali
se reuniam no inverno, em torno de uma pequena estufa instalada no meio
da sala de aula, onde às vezes, para amenizar um pouco o sofrimento do
frio, queimavam-se peças do mobiliário; havia um lápis para cada quatro
alunos; e a professora passava fome.
A despeito dessa imensa miséria, deu-se prodigioso impulso ao
ensino público. Tal era a sede de saber que se manifestava no país que por
toda parte se criavam novas escolas, cursos para adultos, universidades e
faculdades operárias. Inúmeras iniciativas descobriram novos campos para
a pedagogia, inteiramente inexplorados. (SERGE, 2007, p.465).

Nesses anos, caracterizados por um forte entusiasmo construtivo e por uma


vontade de profunda renovação das instituições, realizou-se uma atualização
pedagógica e didática, ligada particularmente à noção de escola única do trabalho,
escola de cultura geral e politécnica. Além desses princípios gerais, também foram
tomadas medidas para organizar o sistema educativo, tais como a construção de
escolas, a formação de professores, a reforma do sistema pedagógico, entre outras.

3.1 A luta contra o analfabetismo


Além da guerra, da fome e das doenças, o analfabetismo foi um grave
problema enfrentado pela República dos Sovietes. Numa conversa com Lenin, Clara
Zetkin teria dito que o analfabetismo tinha seu lado positivo e negativo. O lado
positivo era que as pessoas não foram educadas sob o entulho das concepções e
ideias burguesas (LENIN, 1968, p.178). O lado negativo é que se tornou necessário
alfabetizar milhões de pessoas privadas de uma instrução mínima, a qual é a base
para a produção científica, técnica e artística.
Das ações implementas para erradicação do analfabetismo, destacamos a
assinatura do decreto sobre a mobilização da população dos que soubessem ler e
escrever (final de 1918), no qual todos aqueles que soubessem ler e escrever
deveriam se comprometer com o trabalho de alfabetização. Destacamos também a
assinatura do decreto de dezembro de 1919, intitulado “Sobre a liquidação do
analfabetismo”, segundo o qual toda a população com idade entre 8 e 50 anos que
não sabia ler nem escrever deveria se alfabetizar em russo ou em sua língua
materna, conforme fosse o desejo de cada um (Idem, ibidem, p.30-31).
100

Ademais, o governo soviético adotou muitas medidas visando dar condições


para que as pessoas pudessem estudar: a jornada de trabalho foi reduzida em duas
horas para os que estudavam, mas conservando-se o recebimento do salário
integral; clubes, casas particulares, fábricas, repartições públicas foram usados para
ministrar e assistir aulas. Mesmo durante a guerra civil, foram editados 115 títulos de
obras clássicas da literatura russa (Idem, ibidem, p.30-31). “A campanha de
alfabetização tomou conta também da guerra e os soldados aprendiam a ler com as
famosas cartilhas especialmente escritas por Krupskaia para o front.” (Idem, ibidem,
p.32).
Mas tais tarefas não se limitavam apenas e tão somente a ensinar a ler e a
escrever. Significava também elevar o nível cultural e educacional da população,
posto que a alfabetização, a cultura e a educação eram premissas para muitas
outras necessidades no campo da educação, tanto as imediatas quanto aquelas que
deveriam ser empreendidas a médio e longo prazo.
Assim, desde a sua criação, o Comissariado do Povo para a Instrução
Pública estabeleceu como meta “[...] conseguir a alfabetização geral e a educação
política da população [...]” (CAPRILES, 1989, p.30), pois o analfabetismo era um
empecilho real na construção do socialismo. Lenin afirmou em vários momentos que
uma pessoa analfabeta estava impossibilitada de participar da vida política, portanto
era necessário que todos soubessem ler e escrever.
Ou seja, a alfabetização era uma premissa para se conseguir elevar o nível
educacional, bem como para a participação e a educação política do povo.
Tomemos dois exemplos.
Em seu discurso no primeiro congresso de educação de adultos, no auge da
guerra civil (maio de 1919), quando todos os prognósticos sobre o desfecho da
guerra eram desfavoráveis à República Soviética, Lenin116 ([realizado de 6 a 19 de
maio de 1919], 2002) afirmou que naqueles dezoito meses do poder soviético, houve
um grande progresso na esfera da educação de adultos, porém, ainda havia muitos
obstáculos a superar.
Dentre os problemas elencados, Lenin se referiu indiretamente à falta de
educação política do povo. Ele declarou: os bolcheviques estavam sendo acusados
pela oposição (mencheviques, socialistas revolucionários, cadetes), através de uma

116
[Speech at the] First all-Russia congress on adult education.
101

propaganda maciça interna e externa à Rússia, de terem mentido ao prometer “paz,


pão e liberdade”, pois a República dos Sovietes ainda estava envolvida numa guerra
devastadora.
Ao que Lenin replicou: os bolcheviques nunca pensaram em abandonar seus
princípios. Portanto, ao tomar as medidas necessárias para aniquilar o poder
burguês, houve uma reação violenta e sem precedentes da burguesia nacional e
internacional contra o poder soviético, à qual os bolcheviques não podiam
simplesmente “baixar as baionetas”. Fazer isso seria um suicídio e representaria o
extermínio da classe trabalhadora. Assim, não havia outra alternativa além de
continuar lutando.
Ora, para o mujique que tinha uma vida semi servil, para o analfabeto, para
o povo que viveu séculos na mais profunda ignorância, guerra é guerra,
independentemente de ser uma guerra imperialista, uma guerra entre nações, ou
uma guerra entre classes sociais. Para Lenin, somente quem tem educação política
poderia entender plenamente a situação e não ser usado como massa de manobra
pela oposição contra o governo soviético. Foi talvez sob tal inspiração que Lenin
teria afirmado: “Para participar da revolução de maneira racional, com sensatez e
êxito, é necessário estudar.” (LENINE117 [escrito em novembro de 1917], 1981,
p.59).
Ainda, retomando a concepção de comunismo para Lenin, qual seja, o
princípio do bem comum, ou o trabalho, a vida dedicados ao bem comum, é
praticamente impossível encontrar pessoas numa sociedade burguesa que creiam
honestamente nesse princípio e mais do que isso, pratiquem-no sincera e
abnegadamente, de acordo com uma orientação política.
Em outras palavras, para a existência do comunismo, pelo menos duas
condições são imprescindíveis. Em primeiro lugar, é preciso eliminar a propriedade
privada, a qual é o substrato material dos princípios da lógica burguesa. Em
segundo lugar, a tarefa muito mais longa, difícil e trabalhosa, que é eliminar os
hábitos burgueses e criar novos hábitos, por intermédio de um longo, paciente,
sistemático, perseverante, determinado, trabalho de elevação do nível cultural e
educacional da população em bases socialistas / comunistas, conforme Lenin

117
Sobre as tarefas da biblioteca pública de Petrogrado.
102

proferiu em seu discurso sobre para a juventude comunista (LENINE118 [proferido


em outubro de 1921] 1980c).
Sem essas duas condições, o sacrossanto princípio burguês da propriedade
privada jamais será eliminado. Seria o pensamento pequeno burguês daquele que,
após a expropriação dos livros da burguesia, se apossa do que foi desapropriado e
vai imediatamente guardá-los debaixo do seu colchão como se fossem propriedade
particular. Isto é, o princípio segundo o qual ou tu roubas ou tu és roubado por
alguém. Ou o pensamento segundo o qual o mais importante na vida é a “minha”
casa, o “meu” carro, o “meu” dinheiro.
Além disso, saber ler e escrever não era apenas uma premissa para a
construção da futura sociedade socialista, mas uma necessidade imediata. Reed
(1977, p.137) nos auxilia a compreender a importância da alfabetização e da
educação na organização do Estado soviético:
Os funcionários públicos do Estado e do Município recusavam-se a
obedecer aos comissários, os correios e telégrafos não lhes garantiam as
comunicações, os ferroviários ignoravam friamente os pedidos de comboios,
Kerenski vinha a caminho, a guarnição não era inteiramente de confiança,
os cossacos preparavam-se... Contra eles [os bolcheviques] havia não só a
burguesia organizada, mas também todos os outros partidos socialistas,
119
com exceção dos socialistas-revolucionários de esquerda , de alguns
mencheviques internacionalistas e dos sociais-democratas
internacionalistas, mas mesmo estes não tinham tomado ainda uma decisão
concreta. A seu favor tinham, é certo, os operários, as massas de soldados
– os camponeses em número desconhecido -, mas os bolcheviques não
eram uma facção política onde abundassem elementos cultos e
preparados...
Riazanov, enquanto subia a escada principal, explicava numa
espécie de aflição irônica que ele, Comissário do Comércio, nada sabia de
negócios. Na sala de café do primeiro andar, sozinho, sentado num canto,
estava um homem de capa de pelo de cabra [...]. Escrevia nervosamente
algarismos num envelope e mordia o lápis ao mesmo tempo. Era Menjinski,
o Comissário das Finanças, cujas habilitações se resumiam a ter sido
empregado num banco francês... (grifos nossos)

Ou seja, tomado o poder político, era preciso organizar e administrar o


Estado e essa atividade foi assumida pelos bolcheviques. Contudo, a maioria, senão
todas as atividades desempenhadas necessitavam mais do que rudimentos de
leitura e escrita e de aritmética para serem executadas. Mas, como sabemos, o povo
em geral não era instruído e assim os bolcheviques enfrentaram extrema dificuldade
para lidar com a situação.

118
As tarefas das Uniões da Juventude.
119
Sobre os partidos políticos existentes à época, facções, classes que pertenciam etc., sugerimos
consultar as Notas e explicações do livro Dez dias que abalaram o mundo (REED, 1977, p.35).
103

Dessa forma, em função da inexistência de quadros preparados e instruídos


para executar a tarefa prática de administrar a produção e a distribuição, o

[...] proletariado revolucionário recorria, em todas as administrações, ao


concurso de numeroso quadro de empregados e de funcionários
pertencentes à antiga pequena-burguesia das cidades. [...] A escassez
obrigava, por um lado, a recensear os consumidores e, por outro, a
recensear os produtos disponíveis. Que métodos aplicar, que pessoal
utilizar? Era preciso improvisar tudo, muitas vezes com um pessoal
desonesto, em todo caso inteiramente despreparado, devido a suas origens
sociais, para compreender os princípios socialistas e as necessidades
implacáveis da luta de classes. (SERGE, 2007, p.457)

Foi-se então criando um problema que teria profundas consequências no


curso da revolução, posto que o povo

[...] procurava meios de conseguir para si os produtos que existiam em


quantidade insuficiente; o partido se empenhava em destiná-los, em
primeiro lugar, ao exército, aos operários, às crianças, às mães; porém,
confiava a execução de suas diretrizes a organismos que as falseavam,
enquanto os elementos desfavorecidos da população faziam contrabando.
Os processos, os registros, os bônus, os cartões de racionamento, esse
imenso papelório servia, ao mesmo tempo, para o recenseamento, a
distribuição, a classificação da população por categorias, a fraude, e
finalmente, para fazer viver o corpo de funcionários, cuja imensa maioria era
hostil ao regime. (Idem, ibidem, p.457).

Essa seria a origem da burocracia, a qual, combinada com a constituição do


Partido único120, culminaria na degenerescência do sistema121.
Lembremos que o modelo de Estado imaginado por Lenin foi exposto em
vários textos e momentos, como nas Cartas de longe (LENIN [escritas entre o final
de março e início de abril de 1917], 2005), nas Teses de abril (LENIN [publicadas em
abril de 1917], 2005) e em O Estado e a revolução (LENINE [escrito em agosto-
setembro de 1917], 1980b), que por sua vez se baseava na experiência da Comuna
de Paris. A ideia básica era a de que após a derrubada do poder da burguesia por
meio de uma revolução, o povo, organizado em milícias armadas, iria elaborar e
executar as leis, administrar e fazer funcionar a máquina do Estado. Um belo
modelo, sem dúvida, mas a realidade e as dificuldades de sua execução os
bolcheviques estavam sentindo na pele nos momentos imediatamente posteriores à
tomada do poder.
Portanto, a alfabetização e a elevação do nível educacional e cultural do
povo se constituíram numa necessidade imediata para a sobrevivência da

120
Consultar o item 1.1.4 A Nova Política Econômica e a adoção do modelo de Partido Único.
121
Consultar o item 4.3.5 Contrarrevolução burocrática, carência, escassez e educação.
104

organização e do Estado soviético, bem como uma premissa para implantação da


educação politécnica e para construção da futura sociedade comunista.

3.2 O programa do Partido de 1919 para a educação


Do conjunto dos documentos elaborados (e depois implementados) pelo
governo soviético após 1917, destacamos o Programa do PCR(b) de 1919, o qual,
segundo Dietrich (1973, p.214), foi preparado com o concurso direto de Lenin e
posteriormente foi adotado durante o VIII Congresso do Partido, em março de 1919.
Devido a sua importância, o trecho do Programa referente à educação foi transcrito
integralmente, conforme segue (ainda que numa citação extensa):

No campo da instrução pública, o PCR se dá como tarefa concluir


a obra iniciada pela revolução de Outubro de 1917 – transformar a escola
de um instrumento de dominação de classe nas mãos da burguesia em
instrumento de destruição dessa dominação, assim como liquidar
inteiramente a divisão da sociedade em classes.
No período da ditadura do proletariado, ou seja, no período em
que são preparadas as condições que permitirão a realização total do
comunismo, a escola não deve simplesmente se contentar em transmitir os
princípios do comunismo em geral, mais ela deve ainda transmitir ao nível
ideológico, organizacional e educativo a influência do proletariado sobre as
camadas semiproletárias ou não proletárias das massas ativas, para educar
uma geração que seja capaz no final das contas de edificar o comunismo. A
tarefa seguinte nesse processo consiste atualmente em perseguir o
desenvolvimento dos fundamentos da instituição escolar e cultural que o
Estado soviético criou:
1. Instituir a instrução gratuita e obrigatória, geral e politécnica
(ensino da teoria e da prática dos principais ramos da produção), para as
crianças de ambos os sexos até os 16 anos.
2. Criar uma rede de instituições pré-escolares: creches, jardins de
infância, abrigos para crianças que aperfeiçoem a educação social e
facilitem a emancipação da mulher.
3. Realizar totalmente os princípios da escola única do trabalho,
liberando o ensino da língua materna; o ensino deve ser dado igualmente às
crianças de ambos os sexos; é preciso criar uma escola absolutamente
laica, ou seja, livre de toda influência religiosa, onde ocorra uma ligação
estreita entre ensino e trabalho social produtivo e que garanta a marca da
universalidade aos membros da sociedade comunista.
4. Fazer emergir novos quadros [trabalhadores, operários] que
trabalhem no campo da educação e sejam instruídos segundo as ideias do
comunismo.
5. Incitar a população trabalhadora a participar ativamente da
instrução pública (desenvolvimento dos “conselhos de educação pública”,
mobilização dos indivíduos que sabem ler e escrever, etc.).
6. Garantir a todos os alunos a alimentação, os uniformes e os
materiais escolares às custas do Estado.
7. O Estado deve incentivar firmemente os operários e os
membros do campesinato que queiram se formar por si sós (criar uma rede
de instituições de ensino pós-escolares, de bibliotecas, de escolas para
adultos, casas e universidades do povo, cursos, conferências, cinemas,
casas de leitura).
8. Desenvolver amplamente a formação profissional para as
pessoas com idade acima de 17 anos, necessariamente ligada aos
105

conhecimentos politécnicos.
9. Abrir os anfiteatros das universidades a todos aqueles que têm
o desejo de aprender qualquer coisa, e em primeiro lugar os trabalhadores,
permitindo a todos aqueles que têm capacidade o acesso ao ensino
universitário. Abolir todas as barreiras artificiais entre as novas forças
científicas e a cátedra; assegurar a manutenção material àqueles que
estudam para dar aos proletários e aos membros do campesinato a
possibilidade real de frequentar a universidade.
10. Do mesmo modo, devem ser acessíveis aos trabalhadores
todos os tesouros artísticos que foram criados graças à exploração do seu
trabalho, e se encontravam até o presente momento à disposição exclusiva
dos exploradores.
11. Desenvolver ampla propaganda das ideias comunistas e
utilizar o aparelho e os meios do Estado para este fim. (Apud DIETRICH,
1973, p.214-215)

De acordo com Gapotchka (1987, p.143), o Programa estabeleceu os


princípios norteadores e as bases da escola e da educação soviéticas. A nosso ver,
ele representou também uma belíssima síntese dos princípios socialistas e leninistas
para a educação e para a cultura em geral, na medida em que se abandonou e ao
mesmo tempo rompeu-se com os princípios e o modelo da educação czarista e
burguesa. Dessa maneira, a ideia era acabar: com uma escola cuja característica
era ser um privilégio destinado apenas às classes dominantes; com a influência
religiosa; com a assepsia da escola em relação à política; com a educação
destinada ao povo apenas para formar “lacaios dóceis” ao capital e ao poder
instituído.
O Programa também incorporou os princípios da educação liberal, mas
superando-os e projetando-os em direção à edificação de uma educação comunista.
Esse parece ser o sentido da proposição relativa à construção de uma educação
laica, universal, gratuita e estatal, mas que estivesse fundada em um Estado
proletário e numa sociedade socialista e não num Estado e sociedade burgueses. A
ideia fundamental era “[...] transformar a escola de um instrumento de dominação de
classe nas mãos da burguesia em instrumento de destruição dessa dominação,
assim como liquidar inteiramente a divisão da sociedade em classes [...]”, com vistas
a edificar o comunismo (Apud DIETRICH, 1973, p.214).
Sendo assim, o objetivo declarado era criar uma escola de classe, uma
escola proletária, posto que na fase da ditadura do proletariado, a classe
trabalhadora era a classe dominante. Em tal modelo, o Estado proletário assumia a
importante função de prover e manter as condições materiais para que todos
pudessem estudar, de modo que a educação privada também foi abolida.
106

No Programa, o Partido e Lenin também trataram ainda de outras


preocupações e ações no campo mais amplo da cultura e da educação. A
proposição era fazer com que a cultura e a educação não fossem mais privilégio de
poucos, mas torná-las acessíveis a todos, por meio da participação nas mais amplas
e variadas formas de produção e manifestação cultural. Propunha-se, assim, não
apenas a participação política do povo nas organizações soviéticas, mas a
participação cultural e social em sentido amplo.
Deve-se ainda citar outros pontos importantes do programa: a preocupação
com relação à situação da mulher, mediante a criação de uma rede de instituições
que propiciassem condições para sua emancipação; a questão da autodeterminação
dos povos; a liberdade de ensino na língua materna.
Finalmente, cabe mencionar a importância do Programa com relação à
definição dos princípios norteadores da educação escolar soviética: o acesso
irrestrito do povo à instrução em todos os níveis de escolarização às crianças de
ambos os sexos; a instituição da educação gratuita e obrigatória; a instituição da
educação politécnica e da associação entre o ensino e o trabalho; dentre outros
aspectos.

3.3 “Confirmação” da hipótese de trabalho


Retomando: 1) nossa hipótese de trabalho, qual seja, a de que os objetivos
de Lenin para o campo da educação se relacionavam com uma necessidade de
natureza tanto política quanto econômica; e 2) nosso objetivo específico, qual seja, o
de demonstrar o duplo e indissociável caráter que Lenin atribuía à educação – as
dimensões econômica e política -, considerando-se a consolidação do poder do
Estado proletário, a necessidade de reconstrução econômica da República Soviética
e a implantação das bases materiais e culturais para a construção da futura
sociedade socialista.
Assim, acreditamos ter confirmado nossa hipótese de trabalho e a
adequação de nosso objetivo específico, com base nas próprias palavras de Lenin,
de acordo com o que ele escreveu nos textos Uma grande iniciativa e Notas críticas
sobre a questão nacional.
No primeiro texto, Lenin elogiou a iniciativa dos ferroviários da linha Moscou-
Kazan, os quais se dispuseram a trabalhar voluntariamente aos sábados. Lenin
anunciou que esta iniciativa poderia ser um prelúdio da organização comunista da
107

sociedade. Discorrendo sobre as tarefas a serem empreendidas na conquista do


socialismo, ele destacou o papel proeminente das dimensões política e econômica
no contexto da revolução proletária:

É natural e inevitável que, durante os primeiros tempos depois da


revolução proletária, nos preocupe mais que tudo a tarefa principal e
fundamental: esmagar a resistência da burguesia, vencer os exploradores,
esmagar seus complôs [...]. Mas, ao lado dela, surge também
inevitavelmente – e cada vez com maior força – outra tarefa mais essencial:
a construção comunista positiva, a criação das novas relações econômicas,
da nova sociedade. (LENIN [escrito em 28 de junho de 1919], 1968, p.74).

Já no caso da educação, mesmo tratando da questão da autodeterminação


dos povos e mais especificamente da cultura nacional, em seu texto Notas críticas
sobre a questão nacional, Lenin (LENINE [escrito entre outubro e dezembro de
1913], 1981, p.51) confirmou a tese segundo a qual a luta de classes ocorre
predominantemente nos campos econômico e político (também indicado acima em
Uma grande iniciativa) e acrescentou uma segunda tese de suma importância para
nós: a de que a escola participa inextricavelmente da luta de classes, também ao
nível das dimensões econômica e política:

Em toda a sociedade capitalista, qualquer luta séria de classes é


levada a cabo, acima de tudo, no campo econômico e político. Separar
daqui a questão das escolas é, em primeiro lugar, uma utopia absurda, pois
não é possível desligar a escola (assim como a “cultura nacional” em geral)
da economia e da política [...]. (Grifos do autor).

Portanto, com base no primeiro texto, inferimos que existe uma


proeminência do político e do econômico no processo de construção do socialismo,
aos quais a educação estaria articulada. Tal raciocínio é confirmado no segundo
texto, no qual a educação efetivamente vincula-se de forma indissociável à luta de
classes, ao nível da economia e da política.

3.4 A dimensão política da educação leninista


3.4.1 Acabar com o poder da burguesia
Com o fim da guerra civil, tanto a classe trabalhadora quanto a burguesia
foram praticamente eliminadas. No caso da última, além dos burgueses que
simplesmente abandonaram a Rússia após a subida dos bolcheviques ao poder,
muitos morreram durante a guerra. Além disso, setores da pequena e média
burguesia também sofreram muitos reveses decorrentes da perda do poder político
108

e da expropriação econômica. Sendo assim, conforme Lenin já havia mencionado, a


luta contra a burguesia deu-se em várias frentes de batalha.
A hostilidade que a burguesia nutria pelo poder soviético, pelos bolcheviques
e pelo povo em geral era determinada socialmente. Ou seja, a educação, o meio
cultural, o contexto social constituíam um estado de espírito próprio do ser burguês,
em que o acesso à ciência, à cultura e ao saber era um privilégio das classes
dominantes:

A velha escola declarava que queria criar homens instruídos em todos os


domínios e que ensinava as ciências em geral. Sabemos que isso era pura
mentira, pois toda a sociedade se baseava e assentava na divisão dos
homens em classes, em exploradores e oprimidos. Como é natural, toda a
velha escola, estando inteiramente impregnada de espírito de classe, só
dava conhecimento aos filhos da burguesia. Nessas escolas, a jovem
geração de operários e camponeses não era apenas educada como
treinada no interesse dessa mesma burguesia. Educavam-nos para
preparar para ela servidores úteis, capazes de lhe dar lucros, e que ao
mesmo tempo não perturbassem a sua tranquilidade e ociosidade. Por isso,
ao rejeitar a velha escola, propusemo-nos a tarefa de tomar dela apenas
aquilo que nos é necessário para conseguir uma verdadeira formação
122
comunista. (LENINE [publicado em outubro de 1920], 1980c, p.387-388).

Logo, vencida a luta no campo militar, tratava-se naquele momento de


acabar com o poder da burguesia na área da cultura e da educação. Sobre o
assunto, Lenin se expressou muito claramente em vários momentos, a respeito do
papel desempenhado pela educação na derrubada do poder político da burguesia. A
premissa fundamental era que “[...] vida e conhecimento devem ser libertados do
controle do capital, do jugo da burguesia.” (LENIN123 [escrito em 4 de junho de
1918], 2002, p.1-2, grifos nossos).
Ainda, em seu discurso no Primeiro Congresso de Educação de toda a
Rússia, Lenin fez uma exposição sobre a situação política externa, com o avanço da
revolução na Europa e um relato sobre as dificuldades encontradas pela República
Soviética contra o czarismo, os guardas brancos, os latifundiários e capitalistas
naquela etapa da revolução. E acrescentou:

A instrução pública é parte integrante da batalha que travamos agora. À


hipocrisia e à falsidade podemos opor a verdade completa e honesta.
[...]
[...] quanto mais desenvolvido culturalmente o Estado burguês, tanto mais
refinadamente ele mentia, quando declarava que as escolas podiam
permanecer à margem da política e servir à sociedade como um todo.
Na realidade, as escolas se tornaram num instrumento de domínio

122
As tarefas das Uniões da juventude.
123
[Brief report of] Speech delivered at the first all-Russia Congress of Internationalist teachers.
109

de classe da burguesia, nada mais do que isso. Elas estavam


completamente impregnadas com o espírito de classe burguês e o seu
objetivo era prover os capitalistas com lacaios serviçais e trabalhadores
hábeis. A guerra mostrou que as maravilhas da tecnologia moderna são
empregadas com o objetivo de exterminar milhões de trabalhadores e
proporcionar benefício aos capitalistas, que estão fazendo fortuna com a
guerra. A guerra está minada internamente, porque nós desmascaramos as
mentiras dos capitalistas. [Assim] Afirmamos que o nosso trabalho na esfera
da educação é parte da luta pela derrubada da burguesia. Nós declaramos
abertamente que a educação divorciada da vida e da política é mentira e
124
hipocrisia. [...]. (LENIN [pronunciado em 28 de agosto de 1918], 2002,
p.2-4, grifos nossos)

Também em seu Projeto de resolução sobre a cultura proletária, ainda que


neste texto Lenin tinha como objetivo precípuo opor-se às teses do movimento
Proletkult125, no primeiro item do projeto vemos expressos os princípios ou
premissas sobre as quais deve-se fundamentar a instrução em geral. Sendo assim:

1. Na República Soviética operária e camponesa, toda a


organização da instrução, tanto no domínio da instrução política em geral,
como, mais especialmente, no domínio da arte, deve estar impregnada do
espírito da luta de classe do proletariado pela realização vitoriosa dos
objetivos da sua ditadura, isto é, pelo derrubamento da burguesia, pela
supressão das classes e pela eliminação de toda a exploração do homem
pelo homem. (LENINE [escrito em 8 de outubro de 1920], 1980c, p.398,
grifos nossos).

Mas para se derrubar a burguesia, suprimir as classes e eliminar a


exploração do homem pelo homem, é preciso construir uma educação de classe,
uma educação comunista e “[...] vencer a velha ordem e levar a cabo a construção
de um Estado sem capitalistas, sem exploradores, sem latifundiários.” (LENINE126
[proferido em 3 de novembro de 1920], 1980c, p.404). Assim, a tarefa “[...] consiste
em vencer toda a resistência dos capitalistas, não só militar e política, mas também
ideológica, que é a mais profunda e a mais poderosa.” (Idem, ibidem, p.405). Ou
seja,

Num momento como este da luta devemos defender a edificação


revolucionária, lutar contra a burguesia tanto pela via militar como mais
ainda pela via ideológica, pela via da educação, a fim de que os costumes,
hábitos e convicções que a classe operária adquiriu no decurso de muitos

124
Speech at the first all-Russia Congress on Education.
125
Movimento Proletkult. Proletkult – abreviatura de Proletarskaia Kultura (Cultura Proletária).
Organização cultural vinculada ao Comissariado do Povo para Instrução Pública, mas começou a
defender independência deste Comissariado, opondo-se assim ao Partido Comunista e à República
Soviética. Em consequência disso, intelectuais burgueses infiltraram-se no movimento e começaram
a exercer influência em sua condução. Assim, os adeptos do Proletkult negavam a importância da
herança cultural do passado e isolavam-se das tarefas educativas e culturais entre as massas
(LENINE, 1981, p.147. Nota 44; SCHERRER, 1984, p.189).
126
Discurso na Conferência de toda a Rússia dos Comitês de Instrução Política das secções de
Gubernia e UEZD da instrução pública.
110

decênios de luta pela liberdade política, a fim de que toda a soma destes
costumes, hábitos e ideias sirva de instrumento de educação de todos os
trabalhadores; e a tarefa de resolver a questão de como precisamente
educar recai sobre o proletariado. (Idem, ibidem, p.402)

Desse modo, caberia à educação revolucionária múltiplos papéis, dentre os


quais: superar os velhos costumes e hábitos que impregnam a antiga sociedade
burguesa (religião, propriedade privada etc.) e reeducar a sociedade para construir o
comunismo.
Foi em seu discurso no III Congresso de toda a Rússia da juventude
comunista que Lenin expressou magistralmente suas ideias a respeito desse
assunto. Primeiramente, Lenin afirmou que incumbia à juventude a tarefa de criar a
sociedade comunista e para tanto, as responsabilidades da juventude em geral e da
juventude comunista resumiam-se numa só palavra: aprender. Mas aprender o que
e como aprender? (LENINE127 [proferido em outubro de 1920], 1980c, p.386).
Resposta: aprender o que é comunismo. Para tanto, era preciso apropriar-se
criticamente do patrimônio cultural da humanidade, do que existia de mais avançado
da técnica, da ciência e do conhecimento humano, mas aplicando-os às
particularidades e necessidades da construção da sociedade comunista. Por
exemplo, naquele momento era preciso restaurar a agricultura e a indústria e era
preciso restaurá-las sobre a base da moderna indústria da eletrificação. Assim,
tratava-se de apropriar-se do que existia de mais moderno sobre este assunto,
adequando-o à construção do comunismo.
Mas não se tratava apenas disso. Era preciso também acabar com todos os
vestígios dos princípios, pensamentos e hábitos pequeno burgueses, posto que

A velha sociedade baseava-se no princípio de que ou tu roubas


outro ou outro te rouba a ti, ou trabalhas para outro ou outro para ti, ou és
escravista ou és escravo. E é compreensível que homens educados nesta
sociedade assimilem, por assim dizer com o leite materno, a psicologia, o
costume, a ideia de que ou se é escravista ou escravo, ou pequeno
proprietário, pequeno empregado, pequeno funcionário, intelectual, numa
palavra um homem que se preocupa apenas em ter o que é seu e não se
importa com os outros. Se exploro esta parcela de terra, pouco me
importam os outros; se o outro passa fome, tanto melhor, venderei os meus
cereais mais caro. Se tenho o meu lugarzinho como médico, como
engenheiro, professor, empregado, pouco me importam os outros. E talvez
sendo complacente, agradando aos poderosos, conserve o meu lugarzinho
e possa mesmo fazer carreira e chegar a burguês. Tal psicologia e tal
estado de espírito não podem existir num comunista. (Idem, ibidem, p.393,
grifos nossos).

127
As tarefas das Uniões da Juventude.
111

De modo absolutamente diferente, a juventude comunista deveria aprender


o comunismo ligando cada passo desse estudo à luta encarniçada e incessante dos
trabalhadores contra a velha sociedade exploradora e contra a burguesia. Eis no que
consistia o como aprender o comunismo.
Finalmente, Lenin perguntou: mas o que é o comunismo? Comunismo
provém do latim, que significa comum. Logo, na sociedade comunista, significa que
tudo pertence ao bem comum, não sendo propriedade privada de alguns poucos
privilegiados. Deve-se aprender o comunismo na prática, na vida, de modo a
consagrar o trabalho, as forças, à causa comum, de todos. Nisto é que consistiria a
educação comunista: trabalhar para o bem comum, doar o tempo para a causa da
sociedade comunista, independentemente do tipo ou da natureza do trabalho. E
Lenin dá alguns exemplos: contribuir para a liquidação do analfabetismo; trabalhar
nas hortas coletivas; organizar e trabalhar nas fábricas etc. Tal foi a experiência dos
ferroviários da linha de trem Moscou-Kazan, conforme anunciado por Lenin no texto
Uma grande iniciativa (LENINE [escrito em 28 de junho de 1919], 1968).

3.4.2 Implantar as bases para construção da sociedade socialista /


comunista
Neste ponto Lenin também foi muito claro: a tarefa de implantação das
bases da futura sociedade socialista caberia aos jovens daquela época. Segundo
Krupskaia, “Lenin atribuía imensa importância à formação da geração jovem. A
escola para ele, devia ser um instrumento que contribuísse com a criação de uma
sociedade sem classes, a educação da geração jovem no espírito do comunismo.”
(KROUPSKAIA [publicado em 1932], s.d.b, p.196).
A propósito, em seu discurso no III Congresso de toda a Rússia da União
Comunista da Juventude russa Lenin foi muito instrutivo ao tratar de vários assuntos,
especialmente sobre as tarefas da juventude no futuro:

A tarefa da geração precedente reduzia-se a derrubar a burguesia.


Criticar a burguesia, desenvolver nas massas o ódio contra ela, desenvolver
a consciência de classe e saber unir as suas forças eram então as tarefas
essenciais. A nova geração tem à sua frente uma tarefa mais complexa.
Não deveis apenas unir as vossas forças para apoiar o poder operário e
camponês contra a invasão dos capitalistas. Isso deveis fazê-lo.
Compreendeste-o admiravelmente, como o vê claramente qualquer
comunista. Mas isso é insuficiente. Vós deveis edificar a sociedade
comunista. A primeira metade do trabalho está já feita em muitos aspectos.
O velho foi destruído, como devia ser destruído, constitui um monte de
escombros, que é aquilo em que devia ser transformado. O terreno está
112

limpo e sobre esse terreno a nova geração comunista deve edificar a


sociedade comunista. A vossa tarefa é edificar, e só podereis cumpri-la
possuindo todos os conhecimentos modernos, sabendo transformar o
comunismo de fórmulas, conselhos, receitas, prescrições e programas já
feitos e aprendidos de cor em algo de vivo que dá unidade ao vosso
trabalho imediato, transformar o comunismo em guia do vosso trabalho
prático.
Esta é a vossa tarefa, pela qual deveis guiar-vos na obra de
formação, educação, elevação de toda a jovem geração. Deveis ser os
primeiros construtores da sociedade comunista entre os milhões de
construtores que devem ser todos os rapazes, todas as moças. Se não
incorporardes nessa edificação do comunismo toda a massa da juventude
128
operária e camponesa, não construireis a sociedade comunista. (LENINE
[discurso proferido em 2 de outubro de 1920], 1980c, p.391, grifos nossos).

Lenin expressou o mesmo pensamento no Primeiro Congresso dos


Estudantes Comunistas:

Eu não sei quantas gubernias estão representadas aqui, ou de onde todos


vieram. O mais importante é que a juventude, a juventude comunista, está
se organizando. O importante é que a juventude está trabalhando junta para
aprender a construir o novo tipo de escola. Agora vocês têm um novo tipo
de escola. A velha, a escola burocrática, a qual vocês odiavam e
detestavam, e a qual não tinha com vocês vínculo nenhum, não existe mais.
Nós estamos planejando nosso trabalho para um longo período. A futura
sociedade que nós estamos nos esforçando para construir, a sociedade em
que todos devem trabalhar, a sociedade em que não existirá distinção de
classe, levará um longo tempo para ser construída. Neste momento nós
estamos somente assentando as bases dessa futura sociedade, mas vocês
é que a construirão quando vocês tiverem crescido. No momento, trabalhem
de acordo com o que suas forças permitirem; não assumam tarefas acima
129
das suas forças; guiem-se pelos mais experientes [...]. (LENIN [proferido
em 17 de abril de 1919], 2002, p.1, grifos nossos)

Ou seja, à educação cabiam múltiplas e simultâneas tarefas: destruir os


vestígios da sociedade e da educação czarista e burguesa e ao mesmo tempo
construir as bases para instauração da sociedade comunista. E após o fim da guerra
civil, a dificílima tarefa de reconstrução econômica. Mas não se tratava apenas
disso. Era necessário apropriar-se criticamente do patrimônio cultural da
humanidade e do que havia de mais avançado na ciência e na técnica capitalistas,
adequando-as às necessidades imediatas e mediatas para construção do
comunismo. Em suma:

A nossa escola tem uma dupla tarefa: por um lado, proporcionar


todas as conquistas do passado, pondo a tônica, como é bom de ver, na
nova cultura, na ciência nova, antes de mais proletária, no marxismo, nas
organizações proletárias, nas ideias comunistas, e, por outro lado, impedir à
criança o acesso às ideias do passado, não a contaminar com aquilo contra
o qual lutamos e que existe na velha sociedade... (LUNATCHARSKI, 1988b,
p.225)

128
As tarefas das uniões da juventude.
129
Speech at the first all-Russia congress of communist students.
113

O objetivo era formar comunistas, no sentido proclamado por Lenin em seu


discurso para a juventude comunista. Continuemos com Lunacharski:

Queremos educar um homem que venha a ser o coletivista da


nossa era, que viva muito mais intensamente a sua vida social que os seus
interesses pessoais. O cidadão novo deve ter uma ardente percepção das
relações político-econômicas, características da construção do socialismo,
vivê-las e amá-las, ver nelas o objetivo e o conteúdo da sua vida. A sua
atividade, consequentemente, seja qual for a direção em que se exerça
(trabalho de organização ou simples trabalho físico), deve constantemente
ser alumiada por essa chama e em conformidade com todo o coletivo. O
homem deve pensar como nós e ser o órgão vivo e conforme a uma parte
desse nós. Todos os interesses pessoais devem ser relegados a segundo
plano. No entanto, isso não significa que queiramos apagar as
preocupações reais, as preocupações quanto à satisfação das nossas
próprias necessidades, do instinto pessoal. Só dizemos que isso deve vir
depois dos imperativos da vida coletiva. (Idem, ibidem, p.228, grifos do
autor)

Porém, isso não significa absolutamente apagar a individualidade de cada


um. Pelo contrário, o objetivo é a expansão do coletivo, posto que ao se alcançar
uma alta qualidade de convivência coletiva, viver-se-ia mais intensa e
qualitativamente melhor o individual. Assim, a coletividade seria a base para o pleno
desenvolvimento individual.

É isso que garante uma ampla repartição do trabalho na sociedade. Só uma


sociedade com a força da diversidade dos seus diferentes indivíduos,
constituída por individualidades claramente afirmadas, é verdadeiramente
culta e rica. (Idem, ibidem, p.229)

De modo diverso, os indivíduos com personalidade gregária é que são mais


facilmente manipuláveis, muitas vezes não dispondo de capacidade de reagir
criticamente às situações da vida.
Mas como colocar tudo isso em prática?
Tal era a proposta do ensino politécnico.

3.5 A dimensão econômica da educação leninista


3.5.1 A politecnia: tarefas imediatas e mediatas
Com o fim da guerra civil, além do que fora proposto por Lenin para a
educação no Programa do PCR de 1919, somaram-se a superação da miséria
econômica e a reconstrução da economia, por meio do desenvolvimento das forças
produtivas, com destaque para o plano de eletrificação do país. Contudo, a tarefa de
formação das bases para a construção da futura sociedade comunista não foi
114

abandonada. Desse modo, em função desse contexto, a politecnia acabou por


assumir ainda mais importância.
A compreensão do que significou a politecnia para a República Soviética não
é algo simples. Veremos130 que os cânones do socialismo advogavam que uma das
premissas necessárias à instauração de uma sociedade socialista é que exista um
elevado grau do desenvolvimento das forças produtivas e que este seja
correspondente a um elevado nível de socialização do processo produtivo. Ou seja,
um elevado grau do caráter social de todo o processo produtivo.
Em termos simples e práticos, significa que no socialismo a agricultura, a
produção e a extração de matérias primas, a indústria de base e de transformação, a
indústria de produtos manufaturados, transporte, comunicações, ciência, tecnologia,
serviços, seriam altamente integrados e organizados. Seria uma sociedade
altamente planejada, em que a produção, a distribuição e o consumo da riqueza
social são organizados e equilibrados.
A nosso ver essa é a premissa e ao mesmo tempo o objetivo visado no
ensino politécnico: a compreensão, o estudo e a vivência dos princípios e dos vários
ramos da produção, posto que a produção é altamente integrada e organizada. Para
ilustrar o que seria o ensino politécnico, Krupskaia (KROUPSKAIA [publicado em 21
de março de 1925], s.d.a), no texto intitulado Difference entre l’enseignement
professionnel et l’enseignement polytechnique deu o exemplo do processo de
aprendizagem que ocorreria na indústria têxtil. Assim, numa sociedade com a
produção integrada, é preciso que haja alunos que tenham o conhecimento do
conjunto da produção; que compreendam os princípios e a natureza do processo
técnico; que possuam um conhecimento generalizado dos mecanismos técnicos
envolvidos; da integração do trabalho em sua totalidade. Isto é, tenham um
conhecimento politécnico.
O objetivo é formar um trabalhador com uma nova qualificação, educado
numa escola que não ensinará apenas fiar e tecer (o trabalho manual), mas tudo o
que for necessário para a produção (os aspectos gerais, os fundamentos). Por
exemplo: o papel que a indústria têxtil desempenha na economia mundial e na
economia soviética; o plano de desenvolvimento da indústria têxtil soviética; quais as
matérias primas utilizadas; onde estão localizados os principais centros de matérias

130
Item 4.2 O problema da construção da sociedade socialista.
115

primas e os centros têxteis do país; os princípios técnicos e científicos da indústria


têxtil etc.
E por que não aprender o trabalho manual, simplesmente? Em primeiro
lugar, porque a técnica não pára de se aperfeiçoar e se alguém se especializa em
apenas uma atividade (o tecelão ou o fiandeiro), qualquer mudança tecnológica
poderia tornar essa pessoa desqualificada e, portanto, virtualmente inútil
socialmente. Em segundo lugar, porque numa sociedade com um alto nível de
socialização da produção, mesmo alguém que tenha conhecimentos num ramo
particular da produção – a indústria têxtil, por exemplo –, mas que tenha também
uma formação politécnica, terá a capacidade de se adaptar a outros ramos da
produção se isso for necessário e sem prejuízo de sua formação específica.
Desse modo, um aluno “[...] formado desta maneira saberá se adaptar a
todas as modificações técnicas. Este será um trabalhador com uma nova
qualificação.” (Idem, ibidem, p.193). Tal seria um dos motivos pelos quais a
educação politécnica não pode prescindir do estudo in loco, de maneira a integrar a
teoria com o processo produtivo, posto que um dos princípios básicos da politecnia é
garantir a vinculação orgânica entre a educação com o trabalho.
Inserido no processo produtivo, o estudante iria se familiarizar com a
estrutura de uma fábrica, as diferentes operações da produção têxtil e as diferentes
categorias de operários que nela trabalham. Após estudar esses mecanismos, o
aluno poderia elaborar desenhos industriais; aprender sobre o histórico da indústria
têxtil; as últimas inovações em termos de tecnologia etc. Nos ateliês ele entraria em
contato com os mais variados tipos de máquinas e aprenderia a manipular,
conservar e protegê-las. O aluno deveria obter uma visão da produção como um
todo, aprender os procedimentos e o funcionamento dos mecanismos mais simples
e mais complexos, de modo que

A escola deve despertar no aprendiz um grande interesse pela


produção, assim como o desejo de elevar a produção a um nível sem
precedente. Por outro lado, a escola politécnica permitirá iniciá-lo na
organização do trabalho tanto individual quanto coletivo, criar as condições
higiênicas apropriadas; ela ensinará os princípios da segurança do trabalho
em toda empresa industrial, inclusive na indústria têxtil. Enfim, a escola
politécnica ensinará a história do movimento operário e sindical no nosso
país e nos países capitalistas; a história da luta do proletariado mundial, dos
operários da área têxtil em primeiro lugar.
O aluno adquirirá não uma profissão nos limites estreitos, que
amanhã poderá se tornar inútil, mas adquirirá vastos conhecimentos
politécnicos, uma experiência geral graças à qual o aprendiz não se
apresentará na fábrica como “um cachorrinho cego” que incomodará as
116

pessoas e que não se saberá onde escondê-lo, mas como um operário


consciente e hábil para quem uma breve aprendizagem especializada será
suficiente. (KROUPSKAIA [publicado em 21 de março de 1925], s.d.a,
p.194-195).

Também em Lenine et l’enseignement polytechique, Krupskaia


(KROUPSKAIA [publicado em 1932], s.d.b) declarou que Lenin via como
absolutamente necessária a implantação do ensino politécnico, não apenas como
um meio para se construir uma sociedade sem classes, mas também como meio
para a reconstrução econômica imediata da República Soviética.
Numa conferência sobre este assunto, Krupskaia131 ([discurso proferido no I
Congresso de toda a Rússia de Instrução Politécnica realizado de 10 a 12 de agosto
de 1930], 1976, p.103) se pronunciou da seguinte forma:

O tema da minha conferência é a reconstrução da economia


nacional e a instrução politécnica. Companheiros, a reconstrução da
economia nacional, a qual testemunhamos, possui um claro caráter
socialista.
A questão consiste na sua particularidade, o seu trato distintivo.
Esta reconstrução é plenamente socialista. Trata-se não tanto de
aumentar a coletivização dos meios de produção, mas de fazer com que
todo o sistema organizativo seja estruturado de modo novo, que o objetivo
da reconstrução da economia nacional seja perseguido no interesse das
massas trabalhadoras.
Aqui está naturalmente, a diferença substancial entre a nossa
reorganização da economia nacional e aquela reconstrução da economia
nacional que acontece nos países capitalistas. Aí os fins da reconstrução
estarem em proveito do lucro de um restrito grupo de capitalistas. A
particularidade mais importante da nossa reconstrução é que ela venha a
ser efetuada das mãos das massas populares e que não seja possível a
esta grande massa não tomar parte do modo mais ativo e consciente.

Tal é o sentido do que Lenin escreveu a respeito dos sábados comunistas,


isto é, o trabalho para o bem comum, a reconstrução da economia visando a
totalidade da sociedade. Nesse sentido, a reconstrução da economia em bases
socialistas implicaria no despertar de imensas forças fundadas na ação de uma
massa consciente e organizada que não existia nos países capitalistas e que
poderia efetivamente elevar a produção a níveis nunca antes imaginados.
Krupskaia também mencionou que este processo deveria incorporar o que
existe de mais avançado na ciência e na técnica capitalistas, não para explorar e
destruir a classe trabalhadora, mas que esses conhecimentos fossem postos a
serviço da reconstrução socialista da sociedade soviética, assumindo novas e
inusitadas perspectivas. É sob tal aspecto que o ensino politécnico despontava

131
La ricostruzione dell’economia nazionale e l’istruzione politecnica.
117

como fundamental, pois a produção é tanto maior e melhor quanto maior é a


consciência e a formação politécnica do trabalhador:

[...] é claro que a atividade autônoma das massas operárias e a sua


atividade criativa produzem um efeito e resultados maiores, tanto mais o
operário esteja tecnicamente preparado e compreenda todos os processos
da produção e seu vínculo recíproco, quanto mais amplos sejam seus
horizontes politécnicos. Não se trata da capacidade estritamente
profissional: quem não tem conhecimento da técnica de um setor pequeno e
limitado, quem não possui um atento olhar de operário, necessita de um
horizonte politécnico. (Idem, ibidem, p.106)

Krupskaia também enfatizou que a reconstrução da economia era uma


reconstrução planificada sob a tutela do estado proletário e sob inspiração do
conhecimento socialista, de modo que a “[...] planificação da produção tem uma
importância enorme.” (Idem, ibidem, p.114). Mas o que significa exatamente a
planificação? Já o dissemos: significa a organização planificada de todos os ramos
da produção material (de forma diferente da produção capitalista, que é caótica), à
qual a escola deve fazer parte. Ou seja, escola e produção não estão dissociadas
nesse grande plano. É por isso que educação, cultura, produção, conhecimento
técnico e politécnico devem estar integrados.
Portanto, este é o contexto para se entender melhor o que Lenin escreveu
sobre o ensino politécnico, o qual, a nosso ver, visava a múltiplas finalidades,
conforme sugeriu Finzi (1986, p.155):

A prática concreta e cotidiana de gestão dos problemas administrativos


públicos e a necessária elevação cultural das massas funcionam no projeto
leniniano a um só tempo (e de modo combinado) como tomada de
consciência dos condicionamentos e das necessidades inerentes à
realidade, como momento de formação de uma “cultura industrial”
generalizada, como um dos caminhos para ir além das formas da
democracia burguesa, como reapropriação – ou pelo menos seu início – por
parte do proletariado da capacidade de domínio do processo produtivo e
econômico em seu conjunto.

Ou seja, construção do Estado proletário, reconstrução econômica imediata


e construção da sociedade comunista a longo prazo.
Para ilustrar a importância que a educação assumiu no processo de
reconstrução econômica para Lenin, transcrevemos um trecho do texto abaixo:

O IX Congresso considera que a tarefa do Comissariado do Povo


para a Instrução Pública no novo período consiste em formar, no prazo mais
curto possível, especialistas de todos os ramos provenientes dos operários
e camponeses, e propõe que se reforcem ainda mais os vínculos da
instrução escolar e extraescolar com as tarefas econômicas atuais tanto de
toda a República como de cada região e cada localidade. Em particular, o IX
Congresso dos Sovietes estabelece que está ainda longe de ser suficiente
118

tudo o que se fez para cumprir o acordo do VIII Congresso dos Sovietes
sobre a propaganda do plano de eletrificação da Rússia e exige que em
cada central elétrica se celebrem regularmente, mediante a mobilização de
todas as forças idôneas, palestras, conferências e aulas práticas, a fim de
dar a conhecer aos operários e camponeses a eletricidade, a sua
importância e o plano de eletrificação; nos distritos onde não existe ainda
nenhuma central elétrica, é preciso construir com a maior rapidez possível
centrais elétricas, mesmo que pequenas, as quais deverão converter-se no
centro local da indicada atividade de propaganda, instrução e estímulo de
132
toda a iniciativa neste campo. (LENINE [escrito em 25 de dezembro de
1921], 1981, p.125).

Reproduzimos também alguns trechos das observações de Lenin às teses


de Krupskaia sobre o ensino politécnico. Na ocasião, Lenin se referiu à necessidade
de se fundir as escolas de ensino secundário com as profissionais e técnicas, com o
objetivo de se formar imediatamente a mão de obra necessária à reconstrução da
sociedade. Ele também mencionou que era preciso: 1. evitar a especialização
precoce dos alunos; 2. ampliar em todas as escolas profissionais e técnicas as
disciplinas de ensino geral, elaborando um programa anual sobre os seguintes
conteúdos: comunismo, geografia, história universal, história das revoluções; 3.
avançar no ensino politécnico no seguinte sentido: a) programar visitas a centrais
elétricas, com conferências sobre essa experiência; elaborar uma série de trabalhos
práticos sobre a eletricidade; b) idem para as fazendas coletivas; c) idem para as
fábricas. Ainda:

Isto é arqui importante. Somos pobres. Necessitamos de


marceneiros, mecânicos, agora mesmo. Sem falta. Todos devem ser
marceneiros, mecânicos, etc., mas com o complemento de um mínimo de
ensino geral e politécnico.
Tarefa das escolas de ensino secundário (mais exatamente: dos
graus superiores): proporcionar marceneiros, mecânicos, carpinteiros, etc.
que dominem o seu ofício com perfeição, que sejam plenamente capazes
de se converterem em contramestres e que estejam preparados
praticamente para isso, com a condição, porém, de que estes “artesãos”
tenham uma ampla instrução geral (conheçam no mínimo os fundamentos
destas ou daquelas ciências; assinalar exatamente quais); sejam
comunistas (assinalar exatamente o que devem saber); possuam horizontes
politécnicos e fundamentos (rudimentos) de ensino politécnico, a saber:
a) noções elementares de eletricidade (assinalar exatamente
quais),
b) sobre o emprego da eletricidade na indústria mecânica,
c) [idem ao anterior] na indústria química,
d) o mesmo sobre o plano de eletrificação da RSFSR,
e) que visitem pelo menos 1-3 vezes uma central elétrica, uma
133
fábrica, um sovkhoze ,
f) que conheçam certos fundamentos de agronomia, etc. Elaborar

132
O IX Congresso dos Sovietes de toda a Rússia de 23 a 28 de dezembro de 1921.
133
Sovkhoze: fazendas modelo estatais.
119

134
um mínimo pormenorizado de conhecimentos. (LENINE [escrito em fins
de 1920], 1981, p.113, grifos do autor)

Também, ao dirigir-se ao Comissariado da Educação, Lenin135 ([proferido em


7 de fevereiro de 1921] 2002) declarou que aquele momento de reconstrução exigia
menos reflexões teóricas e mais ação prática na reconstrução da indústria, produção
de alimentos, reconstrução das ferrovias. Para tanto, era preciso ter agrônomos,
carpinteiros, engenheiros. Era preciso fazer funcionar aparelhos, máquinas, fábricas,
fazendas, estações elétricas. Na ocasião, ele reconheceu que houve grandes
avanços no campo da instrução pública, mas que era forçoso reconhecer que muito
ainda havia de ser feito. Contudo, para se alcançar a organização socialista da
produção e a reconstrução econômica sobre bases socialistas, mais ainda, para se
viver o socialismo, é absolutamente imprescindível que exista um alto nível cultural e
uma educação política.

134
Acerca do ensino politécnico. Observações às teses de N.K. Krupskaia.
135
The work of the people’s commissariat for education.
120

4 LENIN E A EDUCAÇÃO NA CONSTRUÇAO DA REPÚBLICA DOS


SOVIETES E DA SOCIEDADE SOCIALISTA
4.1 Outubro de 1917: breve balanço
A revolução de outubro de 1917 representou um duro golpe no imperialismo
do século XX e talvez o seu maior ato de confronto. Portanto, não foi à toa que ela
suscitou tanto ódio e ao mesmo tempo medo, em nível interno e externo à República
dos Sovietes. Também é inegável que ela foi vitoriosa em suas tarefas de vencer
tanto a contrarrevolução interna quanto a aliança internacional.
O socialismo foi em parte alcançado, mas a duras penas, mediante uma
série de avanços e retrocessos, calamidades e erros evitáveis e inevitáveis. No 50º
ano da revolução de outubro os ganhos eram evidentes e o padrão de vida havia
melhorado substancialmente se comparado à Rússia czarista: serviços sociais,
saúde e educação tornaram-se mais eficientes, melhoraram e estenderam-se
praticamente a todo o país. “A dureza e a crueldade do regime eram reais. Mas
também o eram as suas realizações.” (CARR, 1981, p.170).
É evidente que nos dias atuais não há como repetir a experiência da
revolução bolchevique, dadas as especificidades das condições e do contexto em
que ela ocorreu (a primeira guerra mundial; as contradições do desenvolvimento de
um capitalismo numa sociedade autocrática, rural e atrasada; a existência de um
lado de uma burguesia ainda débil e vacilante e de outro um partido de vanguarda
dotado de grande capacidade de organização e militância etc.). Ademais, a grande
capacidade de adaptação e mutação do capitalismo foi um dos fatores que lhe
garantiu até agora uma sobrevivência não propriamente tranquila, mas pelo menos
hegemônica, principalmente após a derrocada, em fins do século XX, da URSS e do
bloco socialista.
Porém, para aqueles que investigam, lutam, militam e acreditam que é
possível se construir uma organização societária qualitativamente superior ao
capitalismo, mais justa e mais racionalmente organizada, o conhecimento das
experiências socialistas do passado é condição sine qua non para a compreensão e
preparação de nossas lutas atuais e aquelas que o futuro nos reserva. É nesse
sentido que a revolução de outubro de 1917 assume tanta importância e valor aos
nossos olhos.
Em termos gerais, a Revolução Russa de 1917 seguiu o princípio básico da
contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas versus relações sociais
121

de produção (não seria esse o sentido da teoria do desenvolvimento desigual e


combinado?). Ela também seguiu o modelo exposto no Manifesto, no que se refere à
derrubada do poder político e econômico da burguesia e à dissolução da estrutura
social burguesa, bem como o princípio socialista da necessidade da organização
planificada da produção.
Além disso, o Outubro de 1917 representou a concepção segundo a qual o
triunfo de uma revolução está associado à existência de uma situação
revolucionária, cujos principais indícios são: a) uma crise da classe dominante que
não consegue conservar o seu domínio; b) um agravamento anormal da miséria e
sofrimento das classes oprimidas; c) uma intensificação da atividade política e social
das massas que não se submetem mais ao poder instituído. Demais, a situação
revolucionária pode ser criada por diferentes causas: crises econômicas, conflitos
sociais, miséria etc. (FERNANDES, 1984; LENINE136 [escrito em abril-maio de
1920], 1980c, p.325; SERTSOVA et al, 1988, p.24).
Mas, além dessas condições objetivas, é necessário ainda que exista o fator
subjetivo, que se refere à atividade consciente das massas, classes e partidos,
movidos pela existência de uma vanguarda revolucionária capaz de elaborar e dirigir
uma tática de luta revolucionária. Assim, ao adquirir uma consciência revolucionária,
as massas organizam-se e tornam-se prontas e decididas a lutar até o fim. Portanto,
a existência da situação revolucionária (fatores objetivos), associada ao fator
subjetivo maduro constitui a premissa geral e necessária para a eclosão da
revolução social. Ao que Hobsbawm (1995, p.444) acrescentou: uma revolução
precisa de uma massa, líderes, estruturas ou estratégias políticas para vingar.
A Revolução bolchevique de outubro de 1917 levou até o fim a revolução
democrático burguesa na Rússia e avançou até onde pôde na revolução socialista.
Conforme Lenin declarou, não se pode prever o quanto se conseguirá avançar no
socialismo, posto que isso é dado no transcorrer da luta. Mas é inegável que muito
foi conseguido em termos de uma organização socialista. O Outubro de 1917, por
meio de seus dirigentes e do povo em geral, promoveu e encorajou uma experiência
cultural, política, educacional, organizativa nunca antes vista na Rússia. Apesar dos
traumas, privações e agruras vividos ao longo dos anos de guerra, bem como as
suas consequências, os anos de 1917-1930 caracterizaram-se por uma

136
A doença infantil do “esquerdismo” no comunismo.
122

efervescência social riquíssima.


Ao tecer suas considerações finais em A revolução inacabada, Deutscher
(1968a, p.93 et seq) perguntou: após cinquenta anos (o livro foi publicado na década
de 1960), a revolução russa realizou as esperanças que suscitou? Qual é o seu
significado para a humanidade? Na ocasião, o autor confessou que gostaria de
responder à primeira questão com um enfático sim e concluir de modo triunfal, mas
as circunstâncias o impediam de fazê-lo. Por outro lado, uma conclusão desanimada
e pessimista também não se justificava. A revolução compôs-se de fracassos e
êxitos, de esperanças tanto frustradas quanto realizadas. Efetivamente, ocorreram
ganhos: o pujante desenvolvimento econômico (principalmente após a segunda
guerra mundial, até a década de 1970); a escolarização em massa; o avanço
tecnológico; a corrida espacial; ganhos muito significativos na saúde e na educação.
Também houve o lado negativo: a coletivização forçada do campo; a adoção
da militarização na indústria; a burocratização; a perda das liberdades política e
cultural; a insuficiência de moradias e principalmente os crimes da ditadura stalinista.
Num primeiro momento, a revolução provocou ira e medo, dando origem à
guerra civil. Consolidada, provocou uma oposição entre favoráveis e desfavoráveis a
ela, inclusive dando origem à Guerra Fria, mas o fato é que,

Através da revolta do mundo não capitalista atrasado, a revolução


apresentava um renovado desafio às potências capitalistas, cujo vigor ainda
não se exauriu. A Revolução Russa de 1917 ficou aquém dos objetivos que
ela mesma se fixou e das esperanças que despertou. Sua história está
cheia de falhas e é ambígua. Mas ela tem sido uma fonte de repercussões
mais profundas e duradouras, em todo o mundo, do que qualquer outro
acontecimento histórico dos tempos modernos. (CARR, 1981, p.172)

De acordo com Costa (2003, p.5), um traço distintivo do século XIX foi a
ocorrência das revoluções democrático-burguesas, o século XX o das revoluções
socialistas. Nesse sentido, o que nos reservará o século XXI? “Há quem diga que a
era das revoluções está encerrada, que o mito da Revolução que governou a vida
dos homens desde o século XVIII já não serve como guia no presente.” (Idem,
ibidem, p.5).
Será?
A nosso ver, a experiência da Revolução de Outubro de 1917 é rica em
ensinamentos.

A Revolução Russa suscitou questões muito mais profundas,


provocou conflitos muito mais violentos e desencadeou forças muito mais
vastas do que tudo o que esteve envolvido nas maiores convulsões sociais
123

do passado. E a Revolução de maneira nenhuma já chegou a seu termo


final. Está ainda em marcha. Poderá surpreender-nos por suas violentas e
súbitas reviravoltas. É capaz de redefinir suas próprias perspectivas. O
terreno onde estamos penetrando é daqueles que os historiadores têm
medo de pisar ou o fazem amedrontados. (DEUTSCHER, 1968a, p.1-2).

É evidente que a dissolução da União Soviética marcou o fim de uma fase,


mas isso não é o mesmo que dizer que a revolução social esteja enterrada para
sempre e que o capitalismo seja um sistema eterno. É desse modo que com o fim do
“socialismo real”, tornou-se manifesta a tentativa de se decretar a morte da
revolução. Assim como para Löwy (2000), para nós o que está em jogo é se a
experiência de Outubro de 1917 está morta e deve ser esquecida. Ao contrário
disso, Outubro de 1917 foi uma afronta e um perigo real ao capitalismo e mais do
que isso, ela deu mostras de sua universalidade.
Também destacamos uma das observações de Löwy, segundo o qual o
Outubro de 1917 não é o único e exclusivo modelo de revolução. Nesse sentido,
deve-se aprender com outras experiências revolucionárias, sem fetichizá-las nem
mitificá-las: a Europa central em 1919; a Espanha em 1936 e as revoluções sociais
do “terceiro mundo”, de modo que “A tradição dos oprimidos é rica e múltipla, e as
lições das derrotas não são menos importantes do que as das vitórias.” (Idem,
ibidem, p.159). Ao que Bensaid (2000a, p.175) acrescentou: “[...] as derrotas não
são provas de erro ou de falhas, da mesma forma que as vitórias não são prova da
verdade. Porque não há julgamento final.” (Grifos nossos). Ainda, o autor afirmou
que mesmo que a Revolução de Outubro de 1917 tenha retrocedido, não há como
apagar sua importância na história: “Ninguém poderá conseguir que os dez dias que
abalaram o mundo sejam apagados.” (Idem, ibidem, p.176).
A nosso ver, a Revolução de Outubro foi muito instrutiva para o capitalismo
mundial, na medida em que ela pode ter motivado uma estratégia de vigilância e de
contrarrevolução preventiva permanentes. Dessa forma, ao longo do século XX,
assistimos a uma série de medidas combinadas, em que toda e qualquer
possibilidade e perspectiva de revolução socialista deveria ser combatida e morta no
seu nascedouro (FERNANDES, 1984).
Em sua análise sobre a sobrevivência e a atualidade do marxismo, Boron
(2007, p. 38) afirmou: “Hoje, podemos dizer que o capitalismo enquanto sistema
altamente dinâmico apresenta mecanismos de exploração, e portanto, de extração
de mais valia mais complexos e diversificados que os existentes no tempo de Marx e
124

Engels.” (p.38). Ademais, o espetacular desenvolvimento das forças produtivas, a


complexificação, o aprofundamento e o avanço do capitalismo propiciou-lhe
aperfeiçoar antigas estratégias e recorrer a várias outras: cooptação da classe
operária; convencimento; versões contemporâneas do “pão e circo” (mais circo do
que pão); fazer concessões econômicas e políticas e quando necessário, o uso
desmedido da força.
Foram expedientes que com o passar do tempo permitiram ao capitalismo
postergar sua sobrevivência, mas até quando?

4.2 O problema da construção da sociedade socialista


Dentre as muitas consequências, implicações e legados que a Revolução
Russa deixou ou suscitou, um deles foi que “[...] pela primeira vez na história o
problema da construção da sociedade socialista deixou de ser [algo] abstrato.”
(HOBSBAWM, 1985, p.16).
Desse modo, colocada de maneira abstrata e genérica, a construção do
socialismo se relaciona com uma série de premissas, dentre as quais a de que o
socialismo só pode nascer das entranhas do capitalismo avançado. A explicação
para isso é que, em tese, o socialismo requer um elevado grau do desenvolvimento
das forças produtivas, de modo que o progresso tecnológico, a divisão do trabalho e
as forças produtivas estejam altamente integradas, propiciando um alto nível de
socialização do processo produtivo (DEUTSCHER, 1968a, p.26-27). Logo, o “[...]
pleno desenvolvimento do caráter social do processo produtivo [é] a principal e
histórica condição prévia do socialismo. Sem isso, o socialismo seria um castelo no
ar.” (Idem, ibidem, p.26, grifo do autor).
Ainda, segundo Lenin (LENINE137 [publicado em 9,10 e 11 de maio de 1918],
1980b, p.602):
O socialismo é inconcebível sem a grande técnica capitalista
construída segundo a última palavra da ciência moderna, sem uma
organização estatal planificada que submeta dezenas de milhões de
pessoas à mais rigorosa observância de uma norma única na produção e na
distribuição dos produtos.

Nós sabemos que um dos problemas fundamentais do modo de produção


capitalista é que, mesmo este tendo alcançado um alto grau de socialização da
produção, a riqueza produzida social e coletivamente é apropriada de maneira

137
Acerca do infantilismo “de esquerda” e do espírito pequeno burguês.
125

privada, sendo esta a origem das insanáveis contradições, mazelas e crueldade


extremas do sistema. É assim que a produção, distribuição e consumo de
mercadorias tornam-se caóticas, incontroláveis e contraditórias, muitas vezes
atentando contra o próprio bem estar e sobrevivência da humanidade.
Portanto, derrubado o poder político e econômico da burguesia por meio de
uma revolução social e submetida a economia (antes capitalista) a uma organização
socialista da produção, alcançar-se-ia um elevado nível de desenvolvimento das
forças produtivas de maneira planificada, organizada e eficaz, cujo objetivo maior
seria o pleno desenvolvimento das potencialidades humanas e a conquista da
felicidade. É sob tal ótica que Lunacharski escreveu que o objetivo do comunismo
seria alcançar a felicidade. Ele perguntou:

Será que o homem vive [apenas] para vegetar, para vestir dia após dia as
calças, comer um bocado de carne durante o dia e meter-se na cama
chegada a noite? Não. Tudo isso não passa de meios para alcançar uma
vida feliz.
O homem não vive [unicamente] com o fito nesses meios. Tem
necessidade de se vestir, de se alimentar, de descansar e de trabalhar para
desenvolver os seus conhecimentos, desenvolver os seus sentimentos, as
suas sensações, para conhecer a felicidade e dar a mesma felicidade aos
outros. O nosso objetivo último é o de criar uma comunidade fraterna dos
homens de um nível cada vez mais elevado e que faculte plenamente todos
os bens materiais, todas as riquezas e possibilidades acessíveis ao
138
homem... (LUNATCHARSKI , 1988c, p.162-163)

Lenin139 (LENINE [publicado em 27 de maio de 1918], 1980b, p.627)


também compartilhava de tal pensamento, afirmando que um dos objetivos do
socialismo é propiciar a real possibilidade de bem estar do ser humano.
No entanto, não foi essa situação ideal que Lenin e seus correligionários
encontraram. Pelo contrário, sabemos quais eram as condições sociais, econômicas
e políticas vigentes na sociedade russa. Em suma, uma situação muito diversa
daquela imaginada pelos formuladores do socialismo científico. Por conseguinte,

Restava aberta, em particular, uma questão: como enfrentar o velho atraso


da situação russa e assegurar de maneira permanente o caráter socialista
do novo poder. O programa proposto por Lenin era substancialmente
voltado para a instauração de um governo socialista a partir de uma base
econômica e social não socialista. O antigo dilema da política bolchevique
não era resolvido, mas simplesmente deslocado para um outro plano e, na
realidade, aguçado. (REIMAN, 1985, p.94)

138
Na coletânea dos textos de Lunacharski intitulada Sobre a instrução e a educação, não há menção
sobre quando os textos foram escritos, proferidos ou publicados originalmente.
139
Discurso no I Congresso de toda a Rússia dos Conselhos da Economia Nacional em 26 de maio
de 1918.
126

Assim, a implantação vitoriosa de um governo proletário de caráter


socialista, mas fundado numa base econômica e social não socialista e a
impossibilidade de se implantar o socialismo baseado na carência e na escassez,
tornaram-se os maiores problemas e talvez as incongruências fundamentais do
governo dos sovietes (DEUTSCHER, 1968a, p.35), os quais foram talvez os
principais motivos das reflexões, preocupações e ações de Lenin e do partido
bolchevique.
A propósito, Deutscher (1968a, p.27) declarou com acerto que o socialismo
não poderia ser fundado na carência e na escassez, já que ambas acarretam,
inevitavelmente, a desigualdade, pois se não houver alimentos, roupas e moradia
para todos, apenas uma minoria se apropriará do que puder e o resto da sociedade
não terá o que comer, vestir ou onde morar. Infelizmente, “[...] isso iria acontecer
fatalmente na Rússia.” (Idem, ibidem, p.27).
Por sua vez, Nove (1986) afirmou que no momento da tomada do poder
pelos bolcheviques em outubro de 1917, nem os marxistas russos nem os marxistas
da Europa ocidental tinham uma ideia precisa sobre como uma economia socialista
deveria funcionar. Isso se deveu em parte porque Marx e Engels, no tocante à
questão do funcionamento da economia no período da passagem do capitalismo ao
socialismo, se por um lado evitaram tratar abstratamente do assunto, por outro não
previram nem desenvolveram o tema, deixando os marxistas sem praticamente
nenhuma indicação ou rumo.
Foi assim que Lenin e seus companheiros formaram-se tendo como
referência apenas algumas ideias “utópicas” de Marx e Engels a respeito da
sociedade socialista/comunista. Dessa forma, a ideia generalizada era a de que

[...] na economia comunista, não haveria produção de mercadorias; a


sociedade planificaria suas próprias necessidades, tomando diretamente as
decisões produtivas necessárias. Os fundadores do marxismo acreditavam
que esta tarefa seria fácil, que as necessidades da sociedade seriam
determinadas com clareza, e que todos os homens, não mais desviados por
interesses de classe ou de seita, iriam desejar fazer o que é necessário ser
feito em uma sociedade organizada. A divisão do trabalho seria superada;
cada qual desejaria trabalhar o melhor possível segundo suas próprias
possibilidades para a sociedade, conseguindo os abundantes bens
materiais segundo as próprias necessidades. Pressupunha-se que, numa
sociedade comunista que tivesse resolvido a contradição entre forças
produtivas e relações de produção, a disponibilidade de recursos iria ser
praticamente infinita. Naturalmente, não haveria mais disparidade, nem
dinheiro, nem salários, nem preços, nem Estado, nem leis. (NOVE, 1986,
p.105)
127

Porém, é evidente que esses elementos não poderiam ser aplicados numa
sociedade de transição do capitalismo para o socialismo (como era o caso da
Rússia), na qual faltassem os níveis necessários de instrução, consciência política e
capacidade produtiva (Idem, ibidem, p.105-106).
Portanto, Alec Nove afirmou que os bolcheviques não tinham noção real dos
problemas econômicos que eles iriam enfrentar. Por um lado, o autor tem razão,
quando consideramos alguns dos textos leninianos escritos antes da tomada do
poder político. Por exemplo, em A catástrofe que nos ameaça e como combatê-la
(LENIN [escrito em setembro de 1917], 2005, p.172 et seq), ao tratar das medidas
necessárias para se evitar a catástrofe que ameaçava a Rússia naquele momento (a
fome, o desabastecimento, a desorganização nos transportes), Lenin se referiu à
nacionalização do sistema bancário; nacionalização das principais associações
monopolistas capitalistas; abolição do segredo comercial; entre outras; talvez de
forma um tanto superficial, ao afirmar que tais medidas eram universalmente
conhecidas e fáceis de serem aplicadas.
Muito pelo contrário, a República dos Sovietes iria se deparar com imensas
dificuldades para implementar tais medidas e sofrer as terríveis consequências
decorrentes delas.
Por outro lado, Nove pareceu subestimar a capacidade dos bolcheviques,
mas principalmente, desconsiderou que todas as dificuldades decorrentes daquela
incongruência fundamental não poderiam ser previstas a priori, de acordo com o que
Lenin (LENINE [publicado em 27 de maio de 1918], 1980b, p.625) escreveu no já
citado Discurso no I Congresso de toda a Rússia dos Conselhos de Economia
Nacional de 26 de maio de 1918. Portanto, com relação às tarefas de construção do
socialismo:

É por si mesmo evidente que aqui, dada a muito grande importância e as


muito grandes dificuldades das tarefas de organização, quando temos de
organizar de uma maneira completamente nova as bases mais profundas
da vida humana de centenas de milhões de pessoas, é perfeitamente
evidente que é impossível organizar aqui as coisas de modo tão simples
[...]. Temos de construir o nosso edifício econômico no próprio decurso do
trabalho, pondo à prova estas ou aquelas instituições, observando-as na
prática, confrontando-as com a experiência coletiva geral dos trabalhadores
e, principalmente, com a experiência dos resultados do trabalho, e, além
disso, numa situação de luta desesperada e de furiosa resistência dos
exploradores, que se torna tanto mais furiosa quanto mais nos aproximamos
do momento de arrancar definitivamente os últimos dentes cariados da
exploração capitalista.

Ainda, a respeito da revolução socialista, cujo ponto principal é a


128

expropriação da propriedade privada dos meios de produção, ele afirmou:

Isto foi estabelecido com precisão científica [a expropriação da propriedade


privada dos meios de produção]. E nós sabíamo-lo quando tomamos nas
nossas mãos a bandeira do socialismo, quando nos declaramos socialistas,
quando fundamos o partido socialista, quando transformamos a sociedade.
Sabíamo-lo quando tomamos o poder para empreender a reorganização
socialista, mas não podíamos conhecer nem as formas da transformação
nem o ritmo do desenvolvimento da reorganização concreta. Só a
experiência coletiva, só a experiência de milhões de pessoas pode dar
neste sentido indicações decisivas, precisamente porque para a nossa
causa, para a causa da edificação do socialismo, não basta a experiência
de centenas e centenas de milhares de elementos das camadas superiores,
que fizeram até agora a história tanto na sociedade latifundiária como na
sociedade capitalista. Nós não podemos proceder assim precisamente
porque contamos com a experiência conjunta, com a experiência de milhões
de trabalhadores.
Por isso sabemos que o trabalho de organização, que constitui a
tarefa principal, capital e fundamental dos Sovietes, nos traz inevitavelmente
uma quantidade de experiências, uma quantidade de passos, uma
quantidade de modificações, uma quantidade de dificuldades,
principalmente no que respeita a como colocar cada homem no seu lugar,
pois aqui não temos experiência, temos de elaborar nós próprios cada
passo, e quanto mais duros são os erros nesse caminho, tanto mais
firmemente cresce a certeza de que com cada novo aumento do número de
membros dos sindicatos, com cada novo milhar, com cada nova centena de
milhares de homens que passam do campo dos trabalhadores, dos
explorados, que viviam até agora segundo as tradições, segundo os
costumes, para o campo dos construtores, das organizações soviéticas,
cresce o número de pessoas que devem satisfazer as exigências e colocar
o trabalho no caminho certo. (Idem, ibidem, p.626)

Dessa maneira, supomos que o problema da construção da sociedade


socialista sempre fez parte das reflexões e preocupações de Lenin. Em termos
genéricos, tratava-se de organizar a produção e a distribuição da riqueza social em
bases socialistas, mas sob a tutela do Estado proletário. Portanto, desde antes de
Outubro de 1917, nas jornadas de fevereiro a outubro de 1917, aquela questão
estava posta claramente. A seguir, ela se mantém no período correspondente a
Outubro de 1917 – meados de 1918, mas sofre certa interrupção durante a guerra
civil (1918-1920), em função da prioridade destinada à guerra. Com o fim da guerra
civil é que a construção do socialismo vai assumir uma face absolutamente
dramática e prioritária, em virtude da devastação e da quase desintegração da
sociedade russa.
Desse modo, consciente de que não existiam condições objetivas e
subjetivas para se instaurar imediatamente o socialismo na Rússia, todos os
esforços, energia, recursos foram direcionados à reconstrução econômica, que
significou, ao mesmo tempo: a necessidade de se garantir a sobrevivência imediata
129

da República dos Sovietes; da revolução socialista e de se implantar as bases da


futura sociedade comunista.
Assim, antes de Outubro de 1917, mencionamos o já citado texto A
catástrofe que nos ameaça e como combatê-la, no qual Lenin ([escrito em setembro
de 1917], 2005) proclamou a necessidade de se adotar medidas para o registro e o
controle da produção, tais como a nacionalização do sistema bancário; a
nacionalização dos consórcios capitalistas; a abolição do segredo comercial; entre
outros. Em O Estado e a revolução, Lenin (LENINE [escrito em agosto-setembro de
1917], 1980b, p.290) também se referiu à importância da organização da produção e
da distribuição da riqueza nos seguintes termos: “Registro e controle – eis o
principal, o que é necessário para a organização, para o funcionamento regular da
primeira fase da sociedade comunista.” (Grifos do autor).
Lenin vai se dedicar a essa questão de forma quase obsessiva depois do
sucesso de Outubro de 1917, atestando que essa é a tarefa mais difícil da
construção do socialismo: “[...] trata-se de organizar de um modo novo as bases
mais profundas, as [bases] econômicas da vida de dezenas de milhões de pessoas.”
(LENINE140 [escrito entre 13 e 26 de abril de 1918], 1980b, p.562). Ou seja, a “[...]
dificuldade principal reside no campo econômico: realizar um registro e um controle
rigorosíssimo e geral da produção e distribuição dos produtos, elevar a produtividade
do trabalho, socializar de fato a produção.” (Idem, ibidem, p.560, grifo do autor).
Desse modo, após a vitória política sobre a burguesia, seria a construção
das bases econômicas da nova sociedade, ou:

[...] o trabalho positivo ou construtivo de organização de uma rede


extraordinariamente complexa e delicada de novas relações de organização
que abarquem a produção e a distribuição planificada dos produtos
necessários à existência de dezenas de milhões de pessoas. Tal revolução
só pode ser realizada com êxito com a atividade criadora histórica
independente da maioria da população em, em primeiro lugar, da maioria
dos trabalhadores. (Idem, ibidem, p.560)

Destarte, só depois de se resolver a tarefa de organização da produção e a


distribuição de forma planificada é que se poderia dizer que a Rússia teria se
tornado um país verdadeiramente socialista. Essa argumentação se repete nos
textos Seis teses acerca das tarefas imediatas do poder soviético (LENINE [escrito
entre 29 de abril e 3 de maio de 1918], 1980b); Acerca do infantilismo “de esquerda”
e do espírito pequeno burguês (LENINE [publicado em 9, 10 e 11 de maio de 1918

140
As tarefas imediatas do poder soviético.
130

nos nº 88, 89 e 90 do Pravda], 1980b) e no Discurso no I Congresso de toda a


Rússia dos Conselhos de Economia Nacional de 26 de maio de 1918 (LENINE
[publicado em 27 de maio de 1918], 1980b).
Contudo, os anos difíceis de guerra civil impuseram certa interrupção na
produção escrita de Lenin sobre o processo de transição para a ordem socialista,
que seria retomada após a vitória sobre a contrarrevolução. Em outras palavras,
suas ideias variaram segundo as circunstâncias e problemas enfrentados pela
sociedade soviética e pelos obstáculos e oposição enfrentados pelos bolcheviques,
com destaque para o período do comunismo de guerra e da NEP. Após o fim da
guerra civil, com a adoção da NEP, a construção do socialismo é colocada sob
novas bases, mediante o retorno ao capitalismo sob a tutela do Estado proletário.
Vencida a guerra, tratava-se de investir na via pacífica de reconstrução da
sociedade, posto que existiam as premissas políticas, mas não as premissas
econômicas.
Porém, a Rússia era um país com uma enorme camada social de
camponeses analfabetos; de um proletariado incipiente e analfabeto (ou
semianalfabeto); além de ser um país atrasado social e economicamente. Nessas
condições (agravadas dramaticamente após a guerra civil), a educação e a cultura
tornaram-se pedras angulares na construção da sociedade socialista.
Foi nesse sentido que Lenin141 ([escrito em setembro de 1917], 2005, p. 106)
afirmou que, numa revolução, é preciso avançar em direção ao socialismo, “[...] com
passos condicionados e determinados pelo nível técnico e cultural [...]” (grifos
nossos). Mais do que isso, a educação, a elevação do nível cultural e a
alfabetização constituiriam algumas das premissas para a organização socialista da
sociedade:

Aqui “a quantidade transforma-se em qualidade”: este grau do


democratismo está ligado à saída do quadro da sociedade burguesa, ao
começo da sua reorganização socialista. Se todos participam realmente na
administração do Estado, então o capitalismo já não poderá manter-se. E o
desenvolvimento do capitalismo cria, por sua vez, as premissas para que
“todos” possam realmente participar na administração do Estado. Entre
estas premissas conta-se a alfabetização geral já realizada por uma série
dos países capitalistas mais avançados, em seguida o “educar e disciplinar”
milhões de operários pelo grande, complexo e socializado aparelho dos
correios, dos caminhos-de-ferro, das grandes fábricas, do grande comércio,
142
dos bancos, etc., etc. (LENINE [escrito em agosto-setembro de 1917],
1980b, p.290, grifos do autor).

141
A catástrofe que nos ameaça e como combatê-la.
142
O Estado e a revolução.
131

Este raciocínio é confirmado e repetido em vários momentos, mas após a


guerra civil, com a adoção da NEP, somaram-se ao atraso cultural do povo em geral
e dos trabalhadores as terríveis consequências das guerras e do virtual
desaparecimento da classe trabalhadora. Portanto, reforçou-se ainda mais a
importância que a educação assumiu, agora no processo de reconstrução
econômica e também de edificação da sociedade socialista.
Nesse sentido, no VIII Congresso dos Sovietes de toda a Rússia, ao fazer
um balanço das conquistas do poder soviético no campo militar, Lenin enfatizou que
naquele momento a prioridade era retomar a reconstrução econômica do país,
arrasado pelas guerras. Para tanto, ele expôs um plano geral para a economia, que
contemplava a produção de alimentos e combustíveis; a reconstrução do sistema de
transporte ferroviário e por último e especialmente, o plano de eletrificação. Segundo
ele, naquele momento, tais eram as premissas para se alcançar o comunismo.
Nosso destaque é para a questão da eletrificação do país, a qual,
igualmente, necessitava da elevação do nível educacional, técnico e cultural do
povo:
Mas é preciso saber e recordar que não se pode realizar a
eletrificação com os analfabetos que nós temos. Não basta que a nossa
comissão [Comissão para liquidação do analfabetismo] se esforce por
liquidar o analfabetismo. Ela fez muito em comparação com o que havia,
mas pouco em comparação com o que é preciso [fazer]. Além de
trabalhadores alfabetizados, são precisos trabalhadores cultos, conscientes
e instruídos, é preciso que a maioria dos camponeses tenha uma noção
concreta das tarefas que se nos colocam. Este programa do partido deve
tornar-se o livro principal, que deve entrar em todas as escolas. Ao lado do
plano geral de eletrificação encontrareis nele planos especiais estabelecidos
para cada distrito da Rússia. E todo o camarada que vá para um lugar
possuirá um estudo preciso de aplicação da eletrificação no seu distrito, da
passagem da escuridão para a existência normal. E, camaradas, pode-se e
deve-se comparar no local, analisar, verificar as teses distribuídas,
procurando que em cada escola, em cada círculo de estudos, se responda à
questão de saber o que é o comunismo não só com aquilo que está escrito
no programa do partido, mas também se fale de como sair da escuridão.
Os melhores funcionários, especialistas da economia, realizaram a
tarefa que lhes tinha sido dada de elaborar o plano de eletrificação da
Rússia e de restabelecimento da sua economia. Agora deve conseguir-se
que os operários e os camponeses saibam como é grande e difícil essa
tarefa, como se deve iniciá-la e empreendê-la. É preciso conseguir que
cada fábrica e cada central elétrica se transforme num foco de instrução, e
se a Rússia se cobre de uma densa rede de centrais elétricas e de potentes
instalações técnicas, a nossa edificação econômica comunista será um
143
modelo para as futuras Europa e Ásia socialistas. (LENINE [publicado em
1921], 1980c, p.431, grifos nossos).

143
[Discurso proferido no] VIII Congresso dos Sovietes de toda a Rússia, realizado de 22 a 29 de
dezembro de 1920.
132

Mas, para os objetivos de nosso trabalho, tendo em vista a incongruência


apontada anteriormente, qual seja, a implantação de um governo proletário de
caráter socialista fundado numa base econômica e social não socialista, concluímos
que a educação assumiu importância fundamental no processo de edificação da
sociedade socialista, em seus vários momentos e situações particulares.

4.3 Lenin e a educação: “conclusões” pontuais


4.3.1 “Interlocução” com a revisão da bibliografia
Ao retomarmos alguns elementos da revisão da bibliografia, podemos
afirmar que do ponto de vista da produção escrita e das suas ações, Lenin
efetivamente merece destaque no conjunto dos estudos relativos à “educação
marxista”, “educação socialista”, entre outros, conforme sugeriram Dietrich (1973),
Dommanget (1970) e Rossi (1981). Sobre o assunto, lembramos que Lenin não foi
apenas um crítico mordaz da educação czarista e burguesa, mas um estadista e o
chefe de um Estado proletário comprometido com a implantação do socialismo e do
comunismo.
A traços largos, podemos associar a “educação leninista” aos elementos
indicados por Cambi (1999, p.555-556), os quais caracterizariam o que autor
denominou de pedagogia marxista: 1) uma conjugação dialética entre educação e
sociedade, em que imbricam-se mútua e inextricavelmente a estrutura política
econômica e ideológica da sociedade com os ideais e práticas educativas; 2) um
vínculo muito estreito entre educação e política, principalmente no que se refere à
luta de classes, à organização política e à ação revolucionária; 3) a centralidade do
trabalho na formação e organização do ensino; 4) o valor da formação integral,
omnilateral, multidimensional do homem.
Assim, considerando-se os objetivos, as características e as limitações de
nosso estudo, esperamos que este trabalho venha a contribuir com avanços para os
denominados “estudos leninistas da educação”, na medida em que: 1) inserimos a
investigação a respeito do tema Lenin e a educação num quadro explicativo geral,
com relação aos fundamentos históricos, políticos e sociológicos, necessários à
melhor compreensão do assunto; 2) à luz das premissas históricas, políticas e
sociológicas, discorremos sobre nosso tema de interesse diacrônica e
sincronicamente, numa análise de conjunto sobre elementos que até o momento ou
foram estudados de forma marginal, ou isolados (aspectos biográficos do tema Lenin
133

e a educação; as disputas com os populistas; a educação política do proletariado; a


luta contra o analfabetismo; a politecnia; entre outros).

4.3.2 Para além da hipótese de trabalho


De acordo com as informações compulsadas em nossa investigação,
acreditamos ter obtido a comprovação de nossa hipótese de trabalho, da maneira
como a formulamos. Isto é, os objetivos de Lenin para a educação, para o período
correspondente aos anos de 1917-1924, se relacionavam fundamentalmente com
necessidades de natureza tanto políticas quanto econômicas.
Assim, do ponto de vista político, caberia à educação: 1) acabar com o poder
político da burguesia e ao mesmo tempo consolidar o poder do Estado proletário; 2)
implantar os fundamentos da futura sociedade comunista. E do ponto de vista
econômico caberia à educação: 1) contribuir com a reconstrução econômica; 2)
formar a força de trabalho necessária à implantação do comunismo.
Contudo, propusemo-nos a ampliar a discussão.
Desse modo, se por um lado, o econômico e o político efetivamente se
sobressaem como elementos proeminentes das relações entre pessoas, grupos e
classes sociais no modo de produção capitalista, por outro, não é possível estipular
uma separação rígida entre ambos, na medida em que

[...] o real é um todo estruturado que se desenvolve e se cria, o


conhecimento de fatos ou conjuntos de fatos da realidade vem a ser
conhecimento do lugar que eles ocupam na totalidade do próprio real. Ao
contrário do conhecimento sistemático (que procede por via somatória) do
racionalismo e do empirismo - conhecimento que se move de pontos de
partida demonstrados através de um sistemático acrescentamento linear de
fatos ulteriores -, o pensamento dialético parte do pressuposto de que o
conhecimento humano se processa num movimento em espiral, do qual
cada início é abstrato e relativo. Se a realidade é um todo dialético e
estruturado, o conhecimento concreto da realidade não consiste em um
acrescentamento sistemático de fatos a outros fatos, e de noções a outras
noções. É um processo de concretização que procede do todo para as
partes e das partes para o todo, dos fenômenos para a essência e da
essência para os fenômenos, da totalidade para as contradições e das
contradições para a totalidade; e justamente neste processo de correlações
em espiral no qual todos os conceitos entram em movimento recíproco e se
elucidam mutuamente, atinge a concreticidade. O conhecimento dialético da
realidade não deixa intactos os conceitos no ulterior caminho do conhecer;
não é uma sistematização dos conceitos que procede por soma,
sistematização essa fundada sobre uma base imutável e encontrada uma
vez por todas: é um processo em espiral de mútua compenetração e
elucidação dos conceitos, no qual a abstratividade (unilateralidade e
isolamento) dos aspectos é superada em uma correlação dialética,
quantitativo-qualitativa, regressivo-progressiva. A compreensão dialética da
totalidade significa não só que as partes se encontram em relação de
interna interação e conexão entre si e com o todo, mas também que o todo
134

não pode ser petrificado na abstração situada por cima das partes, visto que
o todo se cria a si mesmo na interação das partes. (KOSIK, 1976, p.41-42,
grifos do autor).

Logo, transpondo as proposições de Kosik para a discussão sobre o político


e o econômico na educação leninista, é lícito afirmar que o político e o econômico se
interpenetram. Em outras palavras, supomos que os objetivos de Lenin para a
educação eram ao mesmo tempo políticos e econômicos e o que distinguia a ênfase
dada a uma ou outra dessas dimensões era o contexto, a particularidade, o
problema específico ou o drama coletivo enfrentado pelo partido bolchevique, pelo
governo soviético ou pelo povo russo.
Por exemplo, a devastação decorrente da guerra civil evidenciou a
necessidade absoluta de se priorizar a reconstrução econômica. Assim, era preciso
produzir alimentos, combustíveis, reconstruir o sistema de transportes e reconstruir a
indústria, de maneira também a garantir a recomposição da classe trabalhadora.
Sabemos que nesse contexto a educação politécnica assumiu grande relevância e
no caso, a ênfase era claramente econômica.
Porém, também estavam implicadas questões de natureza política por
demais sérias. Isto é, garantir a reconstrução econômica significava também garantir
a recomposição da classe trabalhadora e consequentemente garantir a
sobrevivência da base de sustentação do governo proletário, da República dos
Sovietes e a longo prazo garantir a construção da sociedade comunista. Ou seja, era
preciso também recompor, reavivar, restabelecer o que havia restado da classe
trabalhadora (LENIN144 [publicado em outubro de 1921], 2002, p.7). Foi sob tal ótica
que no auge da guerra civil e da intervenção estrangeira, diante da necessidade de
sobrevivência e reconstrução da República dos Sovietes, Lenin afirmou: “Nós
devemos sacrificar qualquer coisa para salvar a vida dos trabalhadores.” (LENIN145
[discurso proferido entre 6 a 19 de maio de 1919], 2002, p.24).
Num raciocínio similar, relembremos que estipulamos uma delimitação
temporal relativa ao período de 1917-1924 para nossa pesquisa. Todavia, com base
nas evidências encontradas, afirmamos que a maioria dos aspectos (senão todos)
relativos à educação leninista vêm desde muito antes das jornadas de fevereiro-
outubro de 1917 e mantêm-se até a morte de Lenin.

144
The new economic policy and the tasks of the political education departments.
145
[Speech at the] First all-Russia Congress on Adult Education.
135

Por exemplo, a educação política é uma constante para Lenin, mas


evidentemente que adequando-se às situações e àqueles a quem ela se destinava.
Destarte, antes de fevereiro de 1917, a educação política das massas tinha o claro
propósito de desestabilizar, desestruturar e derrubar a autocracia russa. Ao passo
que a educação política da juventude comunista, em maio de 1919 era colocada
sobre novas bases. Neste caso, como a autocracia e a burguesia já haviam sido
vencidas, o objetivo precípuo era educar para o comunismo. Mas a nosso ver, em
ambos os casos, a natureza, a essência da educação política era a mesma: educar,
formar, preparar, conscientizar.

4.3.3 Educação e política em Lenin


Concluímos que Lenin atribuiu grande importância à educação durante toda
a sua vida. E concordamos com Machado (1989, p.136), segundo a qual, em Lenin,
a educação não se limitava à educação escolar e atingia as contradições das
relações sociais entre as classes. Também é possível afirmar que ele se preocupou
profundamente com a questão da implantação das condições objetivas e subjetivas
(das quais a educação fazia parte) necessárias ao desenvolvimento do ser humano
e à construção da sociedade socialista.
Segundo Rossi (1981), para se entender os pontos de vista de Lenin sobre a
educação é necessário levar em conta sua teoria política. Porém, falar de teoria
política em geral em Lenin pode dar margem a simplificações perigosas.
Principalmente porque ele não sistematizou uma teoria política, nem era esse seu
objetivo. Foi assim que procuramos depreender suas concepções políticas a partir
do que ele escreveu sobre revolução, ditadura do proletariado, socialismo,
comunismo, entre outros (item 1.2 Elementos políticos), os quais encontram-se
dispersos ao longo de sua vasta obra. Ademais, muitos desses conceitos sofreram
alterações, muitas vezes condicionados pela realidade, contingências e
necessidades impostas pela condução política e pela necessidade de sobrevivência
imediata da República Soviética.
Inferimos que para Lenin educação e política são indissociáveis, pois a
educação nunca é neutra – a educação numa sociedade de classes sempre é uma
educação de classe. Ainda, para ele, existia um papel pedagógico em vários
elementos revolucionários - o partido e a revolução propriamente dita -, a qual é
136

pródiga em ensinar as massas, como forma de ampliar os horizontes políticos,


intelectuais, culturais e sociais do povo.
Portanto, perguntamos: a educação teria proeminência sobre a política? Ou
seria o oposto? Já mencionamos que Lenin nasceu e viveu para a política, mas
como explicar a relação política-educação para ele, considerando que a educação
também foi motivo de grande preocupação de sua parte? Para responder a essas
questões, consideremos alguns dos problemas enfrentados por Lenin em momentos
e situações distintas de sua vida e da história:
1) antes de 1917, como fazer a revolução socialista num país atrasado
econômica e socialmente, com uma população predominantemente agrária, uma
classe operária numericamente reduzida, e ambas limitadas por um baixo nível
educacional e cultural?
2) após o sucesso de Outubro de 1917, como garantir o apoio do
campesinato a um Estado proletário de caráter socialista?
3) após o refluxo do movimento revolucionário na Europa, como garantir a
sobrevivência do governo dos sovietes diante do seu isolamento?
4) após o fim da guerra civil, como reconstruir um país arrasado
economicamente e à beira da desintegração social em bases socialistas?
Independentemente das respostas e das medidas adotadas em todas essas
situações (algumas das quais já tratadas em nosso trabalho), o que desponta como
importante é que para todos os problemas elencados acima, a educação assumiu
papel de destaque e importância, mesmo que indiretamente. A propósito,
destacamos o texto de Lenin Sobre a cooperação, no qual ele afirmou que a
revolução política e social precedeu a revolução cultural e seria essa revolução
cultural perante a qual a República dos Sovietes se encontrava naquele momento
(LENINE146 [escrito em janeiro de 1923], 1980c, p.662):

Para nós é suficiente agora esta revolução cultural para nos


tornarmos um país completamente socialista. Mas esta revolução cultural
apresenta incríveis dificuldades para nós, tanto no aspecto puramente
cultural (pois somos analfabetos) como no aspecto material (pois para
sermos cultos é necessário um certo desenvolvimento dos meios materiais
de produção, é necessária uma certa base material). (Idem, ibidem, p.662).

Assim, talvez o crucial não seja saber quem era mais importante para Lenin:
a educação ou a política, o que por si só seria uma abstração. O que importa é que

146
Sobre a cooperação.
137

para cada uma das questões colocadas anteriormente, a educação compunha e se


destacava no conjunto das ações necessárias para se atingir os fins e objetivos
estratégicos, seja com relação à derrubada da autocracia e da burguesia por meio
de uma tomada violenta do poder; seja com relação à sobrevivência da República
dos Sovietes; seja com relação à construção do comunismo.
Isto é, política e educação compunham a face de uma mesma moeda, de
modo que a importância de uma em relação à outra é antes relativa e condicionada:
pelas circunstâncias e problemas enfrentados e pelos fins e objetivos pertinentes à
consecução da revolução, da sobrevivência do Estado proletário e da construção do
comunismo. Tal parece ser o sentido da declaração de Lenin, segundo a qual,
vencida a batalha contra a burguesia no campo militar, tratava-se naquele momento
de vencer a burguesia no campo da ideologia. A nosso ver, para ele, o político não
assume proeminência absoluta, mas relativa sobre as outras dimensões do real: o
econômico, cultural, educacional. É assim que, dialeticamente, as outras dimensões
dão existência ao político e vice-versa.

4.3.4 A politecnia
Cambi (1999, p.557-558), ao caracterizar os principais aspectos da
“educação leninista”, citou a retomada do conceito de instrução politécnica, ao qual
subjaz a noção da não dissociação entre instrução e trabalho produtivo. Contudo, já
sabemos que para um melhor entendimento do que seja o ensino politécnico, é
necessário conhecer o que denominamos de “o problema da construção da
sociedade socialista” (item 4.2). Não obstante, é indiscutível que Lenin atribuiu
grande importância à politecnia no conjunto de suas ações e preocupações.
Assim, as décadas de 1920-1930 foram muito importantes para a história da
educação soviética, em função das discussões teóricas e dos problemas práticos
enfrentados quando da implementação do ensino politécnico, de modo que houve
um complexo processo de afirmação / negação associado à politecnia (MACHADO,
1989).
Todavia, muitas das proposições relativas à escola politécnica não foram
implementadas ou o foram de maneira distorcida, posto que, do lado dos
educadores e dirigentes soviéticos: muitos se opuseram ao princípio da instrução
politécnica, dando preferência à instrução técnica tradicional; muitos simplesmente
não entenderam o que era a educação politécnica. Do lado dos professores: muitos
138

eram hostis e contrários ao Estado proletário e assim não seguiam ou sabotavam as


orientações do governo soviético; muitos não tinham experiência nem formação
adequada para implementar as mudanças propostas. (MACHADO, 1989, p.162 et
seq; 1991). De maneira que,

[...] raramente se conseguiu ir além de uma organização do trabalho


artesanal (carpintaria ou culinária) e não foi possível conjugar realmente o
trabalho intelectual com o produtivo, de modo a colocar em execução os
princípios cardinais da teoria marxista. As conquistas foram conseguidas
mais na batalha contra a velha escola: foram abolidos o seu conteúdo
religioso e nacionalista, seus métodos de ensino e seus livros de texto,
embora, neste campo, tenha sido necessário muitas vezes corrigir
tendências extremistas que exaltavam uma exclusiva finalidade prática da
instrução ou que valorizavam a comuna-escola (uma escola-fábrica em
miniatura), onde o trabalho produtivo era posto no centro do processo
formativo. (CAMBI, 1999, p.558)

Mas, talvez a maior dificuldade encontrava-se na inexistência das condições


materiais para que a proposta da educação politécnica fosse colocada em prática.
Em verdade, entrou-se num círculo vicioso, pois defendia-se a educação politécnica
como uma das maneiras para se superar a ruína econômica, mas sem um
desenvolvimento mínimo das condições materiais, ou do desenvolvimento das
forças produtivas, também não era possível implantar a educação politécnica
(LUNATCHARSKI, 1988a, p.199). Machado (1989, p.168-169) se referiu ao
problema nos seguintes termos:

A criação de uma cultura radicalmente nova e de uma escola


unificada e unificadora articulada com este conhecimento em gestação é um
grande desafio, talvez um dos maiores a surgir numa experiência
revolucionária. Este projeto, só em linhas muito gerais, pode ser definido no
plano teórico. Como todo componente superestrutural, tais questões
dependem basicamente das condições e relações sociais, que são
imprimidas pelo processo da produção material. Por isso, uma
transformação neste nível da realidade exige algum tempo, para que se
implantem as condições objetivas capazes de definir as necessidades
concretas, de dar suporte a inovações e de contra-arrestar as resistências
surgidas. Por outro lado, as condições objetivas precisam, também, de se
desenvolver, de forma a garantir o apoio e a participação de amplos setores
na definição e implantação do novo projeto.

Em outras palavras, um ponto teórico nodal e um dos traços mais distintivos


da politecnia – sua articulação com um sistema de produção socializado - na prática,
acabou por ser aquilo que em parte inviabilizou a sua execução plena.

4.3.5 Contrarrevolução burocrática, carência, escassez e educação


Já mencionamos que um dos elementos de sustentação do czarismo era a
burocracia, a qual era ineficiente, corrupta e odiada pelo povo.
139

Após a derrubada do poder político da burguesia, quando os bolcheviques


assumem a administração e a organização do Estado, concluiu-se que, em função
do baixo nível cultural e educacional do proletariado e de sua classe dirigente, foi
necessário recorrer aos funcionários do antigo aparelho para manter o sistema
funcionando. Ou seja, como não havia condições educacionais e culturais
suficientes para construção da sociedade socialista, foi preciso recorrer aos
especialistas burgueses. Desse modo,

A questão dos especialistas burgueses coloca-se no exército, na indústria,


nas cooperativas, coloca-se em toda a parte. É uma questão muito
importante do período de transição do capitalismo para o comunismo. Só
poderemos construir o comunismo quando, mediante os meios da ciência e
da técnica burguesas, o tornarmos mais acessível às massas. Não há outro
modo de construir a sociedade comunista. E para a construir deste modo é
preciso tomar o aparelho da burguesia, é preciso atrair para o trabalho
todos estes especialistas. [...] Sabemos perfeitamente o que significa o
atraso cultural da Rússia, o que ele faz ao Poder Soviético, que em princípio
deu uma democracia proletária incomparavelmente mais elevada, que deu
um modelo desta democracia para todo o mundo, sabemos como esta falta
de cultura avilta o Poder Soviético e engendra a burocracia. Em palavras, o
aparelho soviético é acessível a todos os trabalhadores, mas de fato, como
todos sabemos, está muito longe de ser acessível para todos. E não porque
as leis o impeçam, como acontecia sob a burguesia: as nossas leis, pelo
contrário, favorecem-no. Mas as leis só por si não bastam. É necessário um
enorme trabalho educativo, organizativo e cultural, que não pode ser feito
pela lei, rapidamente, que exige um trabalho intenso e prolongado. Esta
questão dos especialistas burgueses deve ser resolvida no atual congresso
147
duma maneira absolutamente precisa. (LENINE [publicado em março e
abril de 1919], 1980c, p.100-101, grifos nossos).

Logo, a burocracia assumiu novos matizes, cuja origem foi a carência de


cultura do proletariado, caracterizada pala sua inexperiência e falta de conhecimento
em matéria de condução dos negócios e gestão da economia. De modo que esta
falta de cultura forçaria os comunistas a recorrer ao auxílio de setores da antiga
burguesia na tarefa de construção do socialismo (RODRIGUES, L. M.; FIORE, 1978,
p.46).
Para Lenin, este seria um expediente temporário, até que se conseguisse
alfabetizar, educar e depois da guerra civil, recompor a classe trabalhadora.
Contudo, essa tarefa tornou-se impossível, dadas as condições da época: o país
estava arrasado e à beira da desagregação e da classe trabalhadora restava apenas
um arremedo. Assim, o que era para ser uma retirada estratégica temporária, tornou-
se parte do sistema, putrefazendo-o. Na prática, os bolcheviques assumiram os
cargos de liderança, administração e supervisão e o resto do corpo de funcionários

147
VIII Congresso do PCR(b).
140

ficou, em sua maioria, a cargo do que havia restado de setores da burguesia. Mas
também foram incorporados muitos profissionais liberais e de nível técnico e superior
(médicos, engenheiros, professores, cientistas, agrônomos etc.).
No início, essas pessoas não eram apenas hostis, mas adversárias e
inimigas do sistema. Seu objetivo era aniquilar o governo soviético. Para isso elas
lançaram mão de todo tipo de expediente para prejudicar e minar os bolcheviques:
greves, sabotagens, roubos. Mas, com o passar do tempo, muitos foram eliminados.
E na medida em que a sobrevivência falou mais alto, muitos adaptaram-se à
situação. Logo, vencida em várias frentes (militar, econômica, ideológica), restaram
setores da média e pequena burguesia que foram incorporadas ao aparelho de
Estado. E a esses grupos, somaram-se elementos da classe trabalhadora, dando
origem à burocracia do sistema.
Nesse contexto, Rodrigues, L. M. e Fiore (1978, p.64) definiram tal
burocracia da seguinte forma:

[...] a burocracia é uma fusão entre o velho e o novo, entre remanescentes


das velhas classes e membros da nova elite dirigente. É justamente esta
combinação que aumenta a força da burocracia, que torna mais difícil
destruí-la. (grifos dos autores)

Segundo os autores, ela sobreviveu ao antigo regime, sobrevivia e se


desenvolvia dentro do regime soviético. Em certo momento, ela já não ameaçava o
monopólio do poder por parte do partido; não colocava em perigo os ganhos
políticos e econômicos da revolução; talvez não tivesse mais interesse na
restauração do capitalismo e da burguesia. Mas a burocracia começava
efetivamente e ameaçar o controle do aparelho do Estado e da organização
partidária, já que muitos comunistas haviam sido cooptados pelo aparelho
burocrático e haviam se corrompido. Portanto,

Agora, não se trata mais de derrotar a burguesia privada nem a pobreza,


nem tampouco os demais partidos de Esquerda. Há um novo inimigo que se
desenvolve no interior da sociedade soviética, que não se opõe à
estatização dos meios de produção nem à instituição do partido único, mas
que penetra e cresce nos aparelhos estatal e partidário e se opõe aos
bolcheviques. Na obra de Lenin, este novo inimigo recebe o nome de
“burocracia”. (Idem, ibidem, p.67, grifo dos autores)

Lenin e os adversários da burocracia manifestaram abertamente seu ódio


contra os burocratas e era comum ver cartazes exortando o fuzilamento dos
burocratas. Lenin foi um dos primeiros a denunciar e a prever esse perigo, mas na
ocasião, ele já estava praticamente fora de combate e à beira da morte.
141

O problema maior foi que, após a guerra civil, com a adoção do modelo de
Partido único, burocracia e partido aproximam-se e combinam-se e após a morte de
Lenin, essa seria a base de sustentação da ditadura stalinista. Evidentemente que
esse processo não foi simples nem linear, contudo, em linhas gerais, tal é o sentido
do que Bensaid (2000a, p.171-174) denominou de contrarrevolução burocrática.
Dito de outra forma, a República dos Sovietes havia sobrevivido a uma
guerra mundial, à guerra civil, à fome, à destruição, às doenças, mas não sobreviveu
a um tipo de restauração vinda de dentro, que lhe solapou os princípios de
liberdade, democracia, revolução internacional, socialismo. Em seu conjunto, esses
ideais foram substituídos por uma ditadura.
Com a instauração da ditadura, há um verdadeiro retrocesso em
praticamente todos os campos e atividades: no plano político, prevalece o modelo de
Partido Único, com os expurgos, prisões e fuzilamentos. No plano cultural, são
abafadas e proibidas todas as iniciativas contrárias ou diferentes à orientação do
Partido. No plano educacional, foram suprimidas todas as iniciativas e experiências
inovadoras e imposto um modelo educacional monolítico. Dessa forma, a
efervescência cultural, política e social que caracterizou os primeiros momentos da
Revolução Russa de Outubro de 1917 e durou até aproximadamente 1930, foi
completamente abafada a partir de então, com a imposição da crença do socialismo
num só país.
Cabe-nos resgatar Deutscher (1968a, p.635), quando o autor citou que uma
das incongruências fundamentais da Revolução de Outubro foi a tentativa de se
implantar um socialismo fundado na carência e na escassez. Portanto, não é
exagero afirmar que boa parte do esforço do governo soviético foi direcionado para
se tentar superar essa incongruência, ou seja, criar o mais rápido possível as
condições objetivas e subjetivas necessárias para se implantar o socialismo.
Nesse sentido, a existência de uma organização racional, equitativa, correta,
justa da produção e da distribuição da riqueza produzida social e coletivamente é
condição prévia para a instauração do socialismo. Mas, para tanto é necessário que
haja um alto nível de cultura e de instrução. Logo, no plano da educação, o que
desponta como essencial é que a educação assumiu um papel fundamental, tanto
no que se refere ao tema da contrarrevolução burocrática, quanto da incongruência
apontada por Deutscher.
142

Evidentemente que não se trata de superestimar o papel da educação em


todo o processo da revolução russa, posto que certamente existiram muitos outros
elementos importantes que influenciaram decisivamente nos destinos da revolução,
tais como: seu isolamento; o bloqueio econômico; o aumento da repressão e da
brutalização do sistema, iniciados antes mesmo da morte de Lenin etc.
O irônico é que o papel da educação se destacou não por ela existir, mas
exatamente pela sua falta ou ausência. Isto é, faltou educação, instrução, cultura,
para que os trabalhadores pudessem tomar para si a administração do Estado;
conduzir a economia; educar politicamente o resto da população. Em outras
palavras, a educação compunha o quadro de carência e escassez indicado por
Deutscher.
Por outro lado, antes e após a tomada do poder, em Outubro de 1917, a
educação também assumiu papel de destaque: antes, na condição de educação
política das massas e de educação revolucionária e após, como um expediente
necessário e desesperado para se superar a carência e a escassez e ao mesmo
tempo, para implantar as bases políticas e econômicas na construção da futura
sociedade comunista.
143

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final de nosso estudo, declaramos que, de modo diferente do que
propusemos em nossa questão de pesquisa, hipótese de trabalho, objetivo
específico, não nos limitamos a investigar o tema Lenin e a educação apenas
durante os anos de 1917-1924, nem estipulamos uma distinção absoluta em relação
às dimensões política e econômica. Desse modo, acabamos por discorrer sobre um
período de tempo maior do que aquele proposto inicialmente, bem como não
mantivemos uma separação rígida entre o político e o econômico.
Isso se deveu ao fato de que não é possível conduzir a construção do
conhecimento de forma linear e previsível. Nesse sentido, o “objeto” da investigação
adquire “vida e contornos próprios” (metaforicamente falando), o qual cabe ao
investigador acompanhar e perquirir – foi assim que procedemos. Por conseguinte,
concluímos que a manutenção da proposta inicial de trabalho, qual seja, a de limitar
o recorte temporal da pesquisa entre os anos de 1917-1924 talvez nos levasse a
visões equivocadas sobre o assunto Lenin e a educação.
No que se refere aos resultados obtidos, concluímos que a educação e a
educação escolar participam necessariamente da luta de classes em vários níveis e
dimensões da realidade. E a experiência da Revolução de Outubro demonstrou que,
com relação ao longo período que antecedeu a insurreição de Outubro de 1917, sob
a atuação do Partido Social Democrata Russo, ocorreu efetivamente uma educação
política das massas. Portanto, sob tal aspecto, faz sentido falar da existência de uma
“educação revolucionária antes da revolução”.
Contudo, sugerimos a adoção de uma postura crítica com relação às
experiências e/ou propostas pedagógicas que se autodenominam de socialistas ou
revolucionárias, mas cuja ação se dá principalmente no âmbito do sistema de
escolarização formal do modo de produção capitalista. Dessa forma, mesmo
considerando as mediações que a educação escolar assume, a nosso ver,
necessariamente ela está limitada e condicionada pelos imperativos do capital.
Há também aqueles que procuram repetir as experiências educativas de
natureza socialista, aplicando-as na sociedade capitalista ou na realidade
educacional brasileira (CARVALHO, J. de O. et al, 2007). Neste caso, Carvalho, F.
M. de (2005b, p.114) se posicionou da seguinte forma:

Ao contrário do que se possa pensar, a teoria marxista-leninista


para uma escola socialista e revolucionária não é exequível nesta
144

sociedade capitalista. Diferente do que tem sido feito com as teorias


pedagógicas de Krupskaia, Lunatcharski, Makarenko, Pistrak, Vigotsky, e
Sukholinski – todos colocados no “leito procustiano” (onde algo é forçado a
entrar onde não cabe, esticando-o ou encolhendo-o) – as contribuições de
Lenin, tanto quanto as desses autores, à construção de uma pedagogia
socialista não podem ser aplicadas na sociedade capitalista para
transformar a ordem por dentro da ordem.

Outrossim, com base numa visão de totalidade, que abarque o conjunto dos
levantes revolucionários ocorridos na Rússia (1905, fevereiro de 1917, outubro de
1917, março de 1921), é possível concordar com Lenin, quando ele diz que numa
revolução o povo se educa. De fato, a massa conscientizou-se e educou-se quando
envolvida nesses acontecimentos. Por exemplo, quando nas jornadas de fevereiro-
outubro de 1917, o povo tomou consciência e conhecimento das hesitações e
conluios da burguesia, deixando claro que uma coalizão com a burguesia era
impossível e que as únicas alternativas para se superar o caos, a invasão alemã, a
fome e a desorganização eram as propostas dos bolcheviques.
No tocante aos momentos da consolidação da revolução e de reconstrução
econômica, concluímos que, por um lado, a educação foi considerada por Lenin
como elemento de vital importância. Por outro, a falta de instrução, educação e
cultura do proletariado e das massas populares também foi um dos fatores
determinantes no processo denominado por Bensaid de contrarrevolução
burocrática.
É incontestável que Lenin atribuiu grande importância à educação em
praticamente toda sua vida, tanto na sua condição de propagandista e revolucionário
e depois, como estadista, de modo que a educação compôs o conjunto de medidas,
atos e processos relacionados à derrubada da autocracia russa, da sociedade
burguesa e da construção da sociedade socialista/comunista. Portanto, o tema
educação não foi algo marginal nos escritos de Lenin.
Também concluímos que a “educação leninista” não se restringe única e
exclusivamente à politecnia, posto que a educação para Lenin assumiu múltiplas
funções e matizes, atendendo a muitas necessidades e problemas de ordem prática
e teórica. Nesse sentido, o objetivo precípuo de Lenin era construir uma educação
da classe dominante, ou seja, uma educação proletária e socialista, que encerraria
múltiplas tarefas, mas que fundamentalmente visava a aniquilação completa da
sociedade czarista e burguesa e a implantação das bases para construção da futura
sociedade comunista.
145

A experiência da revolução russa também revelou que uma revolução plena


atinge e abarca todas as dimensões e sentidos de uma sociedade e
necessariamente a educação é atingida e transformada, como foi o caso de Outubro
de 1917. Entretanto, Lenin nos ensinou que nenhuma revolução sai do nada. Logo,
para que ocorra a tomada do poder é necessário elaborar-se um quadro o mais
rigoroso possível do contexto histórico, das forças políticas em disputa de uma dada
sociedade, para então planejar-se uma estratégia ou tática para tomada do poder.
Sob tal aspecto, a revolução “não se faz por encomenda”, mas é algo planejado,
organizado, preparado.
Ou seja, o sucesso de um levante revolucionário está condicionado a uma
série de elementos, entre os quais a existência e a condução de uma estratégia ou
tática revolucionária; a existência de líderes, partidos e organizações
revolucionárias; bem como a existência de uma situação revolucionária, a qual torne
propícias as condições para eclosão de uma revolução.
Mas, independentemente disso, quem quer que se proponha a pensar na
revolução social e no problema da construção do socialismo, não poderá deixar de
investigar, refletir, prever e planejar o papel e a importância que a educação e a
educação escolar têm e terão a desempenhar nesses processos históricos.
Inspirados por Deutscher (1968a, p.1), resta-nos refletir: a revolução de
Outubro realizou as esperanças que ela suscitou ou não? De forma análoga,
perguntamos: o modelo educacional planejado e implantado por Lenin realizou as
esperanças que suscitou ou não?
Evidentemente que para ambas as questões não existem respostas
categóricas, mas reflexões. Neste caso, novamente retomamos Deutscher (1968a,
p.8), para quem, no caso de Outubro de 1917, os homens agiram da maneira que
agiram porque não podiam fazê-lo de outro modo. Em outras palavras, diante das
circunstâncias, dificuldades e problemas enfrentados, eles fizeram o melhor que foi
possível fazer naquelas condições. Para nós, o que importa é que a realidade, a
situação concreta vivida, as decisões, visavam e eram calibradas pelo horizonte,
pelo olhar e pela utopia daqueles homens e principalmente de Lenin, com relação à
implantação do comunismo.
Talvez isso é o que realmente incomode os apologistas do capitalismo: a
consciência e o conhecimento de que o modo de produção capitalista não é um
sistema eterno, de maneira que ele parece caminhar para o esgotamento de sua
146

capacidade civilizatória, de criação de potencialidades de progresso e de solucionar


suas mazelas e contradições essenciais, dentro dos seus próprios limites e
possibilidades.
Sendo assim, é ridículo pensar que o capitalismo tem qualquer interesse ou
é capaz de resolver suas contradições imanentes, como o problema da
concentração de renda; da fome; do recrudescimento da favelização no mundo; da
falta de acesso à educação, saúde e saneamento básico; da destruição da natureza;
da exacerbação da violência etc. Por conta disso, é preciso planejar, estudar,
organizar, difundir, educar, colocando-se a revolução e o comunismo como soluções
ou alternativas possíveis e reais ao capitalismo.
No que se refere às sugestões aos que desejarem pesquisar sobre os temas
educação e revolução, Lenin e a educação, pedagogia soviética, entre outros,
recomendamos: 1) investigar a respeito de Nadeja Krupskaia na elaboração e
implantação da pedagogia soviética, em relação tanto à sua contribuição teórica
quanto prática; 2) desenvolver estudos comparativos entre algumas experiências
revolucionárias de caráter socialista (Cuba, Nicarágua, El Salvador), averiguando as
possíveis aproximações e dessemelhanças entre elas, no tocante à importância e ao
papel desempenhado pela educação em tais processos.
Finalmente, salientamos a necessidade de se ter extrema precaução ante
qualquer tipo de culto da pessoa de Lenin. Em outras palavras, em que pese sua
inteligência, denodo e abnegação nas tarefas às quais ele se dedicou, é necessário
vê-lo dentro do movimento da história, o qual engloba o desenvolvimento do
capitalismo na Europa em fins do século XIX – início do século XX, a Rússia czarista
e posteriormente a República dos Sovietes, de maneira que

O retorno a Lenin não pretende ser uma reencenação nostálgica dos “bons
velhos tempos revolucionários”, nem um ajuste oportunista-pragmático do
velho programa para “novas condições”; busca, isto sim, repetir, nas
condições do mundo atual, o gesto leninista que reinventou o projeto
revolucionário na época do imperialismo e do colonialismo [...]. (ZIZEK,
2005, p.15, grifos do autor).

Portanto, colocamo-nos frontalmente contra quaisquer atitudes dogmática,


fetichista, ou de mitificação da sua pessoa ou dos seus escritos, pois nada seria
mais prejudicial à memória, ao legado e à luta de Lenin do que isso. Atitudes dessa
natureza significariam definitivamente “matar e enterrar” Lenin.
147

A nosso ver, cabe-nos uma tarefa muito mais difícil e complexa: apropriar-
nos criticamente dos seus ensinamentos e do que ele escreveu (os quais têm data e
contexto específicos), tomá-los como hipóteses diretrizes, como elementos para
reflexão e para ação, adequando-os à realidade, à conjuntura contemporânea e aos
novos desafios postos no enfrentamento e destruição do modo de produção
capitalista, visando a construção da sociedade comunista.
Este talvez seja o maior tributo às grandiosas tarefas que Lenin se impôs ao
longo de toda a sua vida.
148

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158

ANEXO I
159

BREVES DADOS BIOGRÁFICOS SOBRE LENIN E CRONOLÓGICOS


SOBRE A RÚSSIA / URSS

- 10 de abril de 1870 (pelo calendário juliano) – nascimento de Vladimir Ilich


Ulianov (Lenin) em Simbirsk
- 1887 – Lenin é expulso da Universidade de Kazan, por participar de
atividades políticas consideradas subversivas
- 1890 – Lenin participa de atividades revolucionárias, dedicando-se ao
estudo e à divulgação das obras de Marx
- 1890 – início da industrialização na Rússia; ascensão de uma burguesia
financeira e industrial; crescimento do proletariado; eclosão das primeiras greves
operárias
- 1895 – Lenin é preso por participar de atividades revolucionárias
- 1897 – 1900 – degredo de Lenin na Sibéria
- 1897 – fundação do Partido Social Democrata Russo, por Lenin, Martov e
Plekhanov;
- 10 (22) de julho de 1898 – casamento de Lenin com Krupskaia
- 1903 - os social-democratas revolucionários se dividiram em bolcheviques
(maioria) e mencheviques (minoria) no II Congresso do POSDR
- 9 de junho (22 de junho) de 1905 – “domingo sangrento”
- 15 de junho (28 de junho) de 1905 – motim do encouraçado Kniaz-
Potemkim
- agosto de 1905 – criação da Duma do Império
- outubro de 1905 – criação do Soviete de São Petersburgo
- agosto de 1914 – 11 de novembro de 1918 - primeira guerra mundial
- fevereiro de 1917 – segundo levante revolucionário contra o czarismo.
Queda do czar
- março de 1917 – abdicação do czar; instalação do governo provisório
- 25 de outubro (07 de novembro) de 1917 – queda do governo provisório,
tomada do poder político pelos bolcheviques
- 26 de outubro (08 de novembro) de 1917 – realização do II Congresso dos
Sovietes. O Congresso declarou dissolvido o governo provisório e transferiu a
autoridade do governo aos Sovietes.
- novembro de 1917 - criação do Comissariado do Povo para a Instrução
Pública
- março de 1918 – assinatura do Tratado de Paz de Brest-Litovsk
- junho de 1918 – final de 1920 – guerra civil russa; implantação do
comunismo de guerra
160

- julho de 1918 - promulgação da constituição da República Soviética


Federal Socialista Russa (RSFSR). Atribuía a autoridade suprema ao Congresso
dos sovietes de todas as Rússias. Ao longo dos anos, foram incorporadas –
Azerbaijão, Ucrânia (1920), Bielo-Rússia, Armênia e Geórgia (1921)
- julho de 1918 – execução do czar e da família imperial;
- julho de 1920 - criação da Comissão Extraordinária para Eliminação do
Analfabetismo
- março de 1921 - lançamento da NEP
- dezembro de 1922 - os congressos das quatro repúblicas RSFSR, da
Ucrânica, Bielo-Rússia e Transcaucásia reuniram-se separadamente e aprovaram a
criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Ato contínuo,
delegados das quatro repúblicas reuniram-se, constituíram o primeiro congresso dos
sovietes da URSS, formaram uma comissão e preparam uma constituição
- março de 1923 - último texto escrito por Lenin de que se tem notícia
(Melhor menos, mas melhor)
- julho de 1923 - aprovação da constituição da URSS (modelada pela
constituição original da RSFSR). Foi formalmente ratificada no congresso dos
sovietes de janeiro de 1924
- 21 de janeiro de 1924 – morte de Lenin em Gorki, aos 53 anos
161

ANEXO II
162

PRINCIPAIS DECRETOS DO PODER SOVIÉTICO

Item I

Segundo Congresso dos sovietes de deputados operários e soldados de


toda a Rússia. [Escrito em 25 de Outubro (7 de novembro) de 1917] In: LENINE.
Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, 1980. p. 391-394. (Volume 2).

No dia 25 de Outubro (7 de novembro), às 10 da manhã, Lenin tornou


público um panfleto informativo, que em linhas gerais: dá informes sobre a abertura
do II Congresso dos Sovietes; que a maioria dos sovietes está representada neste II
Congresso; sobre o sucesso da insurreição, da tomada do poder e da deposição do
governo provisório; objetivos do poder soviético: proposição de uma paz imediata;
entrega da terra aos camponeses sem indenizações aos latifundiários; defenderá o
direito dos soldados, democratizando o exército; estabelecerá o controle operário
sobre a produção; assegurará a convocação da Assembleia Constituinte; cuidará do
abastecimento de pão; assegurará o direito de autodeterminação dos povos da
Rússia; decretará toda a autoridade local para os sovietes de deputados operários,
soldados e camponeses
No dia 25 de outubro, às 22h40min, no Palácio Smolni: houve a abertura
formal do II Congresso (que se realizou em 25 e 26 de outubro). No momento da
abertura do Congresso, havia 649 delegados, sendo 390 bolcheviques, 160
socialistas revolucionários, 72 mencheviques, 14 mencheviques internacionalistas.
Exatamente quando da abertura do Congresso destacamentos da Guarda Vermelha,
marinheiros e destacamentos da guarnição de Petrogrado assaltavam o Palácio de
Inverno, onde se encontrava o governo provisório.
Lenin não participou da primeira sessão do congresso, pois estava ocupado
com a direção da insurreição. A ala direita dos mencheviques e socialistas
revolucionários pediram que fosse constituído um governo de coalizão com o
governo provisório, chamando a insurreição de conspiração. Convencidos de que a
maioria estava com os bolcheviques, abandonaram o Congresso. Às 4 da manhã de
26 de outubro o Congresso foi informado da tomada do palácio de inverno e da
163

prisão dos membros do governo provisório.


A segunda sessão do Congresso iniciou seus trabalhos em 26 de outubro,
às 21h00. Na ocasião, Lenin apresentou os decretos sobre a paz e a terra e o
Congresso aprovou a ambos, os quais foram redigidos por Lenin. Também foi
constituído o governo operário e camponês - o Conselho dos Comissários do Povo.
Os socialistas revolucionários recusaram-se a participar do governo soviético e
assim o governo ficou constituído apenas por bolcheviques.

Os Relatórios sobre a paz (p.396)


Contêm a proposta de uma paz justa e democrática a todos os povos
beligerantes - significava paz imediata sem anexações, sem indenizações, sem
acordos secretos. Não era um ultimato, mas uma proposta de paz dirigida aos
governos e aos operários dos principais países beligerantes: Inglaterra, França e
Alemanha.

O decreto sobre a terra (p. 403-406)


O decreto era constituído de cinco itens:
1) a propriedade latifundiária da terra é abolida imediatamente sem qualquer
indenização;
2) as propriedades dos latifundiários, bem como todas as terras de
apanágio, dos mosteiros e da Igreja, com todo o seu gado e alfaias, edifícios e todas
as dependências, passam a ficar à disposição dos comitês agrários de vólost e dos
Sovietes de deputados camponeses de Uezd até à Assembleia Constituinte.
3) qualquer dano às propriedades e bens confiscados é punível pelo tribunal
revolucionário e o confisco estará sob controle e responsabilidade dos sovietes;
4) a questão da terra, em sentido amplo, seguirá as diretrizes do mandado
camponês sobre a terra, que rege o que segue, em geral: é abolido para sempre o
direito de propriedade privada da terra; a propriedade privada da terra pertencente
ao Estado, coroa, igreja, é abolida sem indenizações, convertendo-se em patrimônio
de todo o povo; todas as riquezas minerais, florestas, água, passarão para usufruto
exclusivo do Estado; o usufruto da terra deve ser igualitário;
5) não se confiscam as terras dos camponeses simples e cossacos.
164

Deliberação sobre a formação do governo operário e camponês (p.407)


Formação do governo provisório, até a convocação da Assembleia
Constituinte, de um governo operário e camponês, denominado então de Conselho
dos Comissários do Povo. O poder governamental será exercido pelos presidentes
das comissões do conselho, de caráter colegiado. O controle sobre a atividade dos
comissários do povo pertence ao congresso dos sovietes de deputados operários,
camponeses e soldados de toda a Rússia e ao seu Comitê executivo central;
165

Item II

Projeto de decreto sobre a aplicação da nacionalização dos bancos e sobre


as medidas necessárias em ligação com isto. [Escrito na segunda quinzena de
dezembro de 1917. Publicado não integralmente pela primeira vez em 1918 no nº 11
da revista Noródnoe Khoziáistvo e publicado integralmente pela primeira vez em
1949 na 4ª edição das Obras de Lenin, tomo 26]. In: LENINE. Obras escolhidas.
São Paulo: Alfa-Omega, 1980. p. 438. (Volume 2).

A crítica situação dos abastecimentos, a ameaça da fome, criada


pela especulação, pela sabotagem dos capitalistas e funcionários, bem
como pela ruína geral, tornam necessárias medidas revolucionárias
extraordinárias para lutar contra este mal.
A fim de que todos os cidadãos do Estado, e em primeiro lugar
todas as classes trabalhadoras, sob a direção dos seus Sovietes de
deputados operários, soldados e camponeses, possam imediatamente e em
todos os seus aspectos, sem se deterem perante coisa alguma e atuando
pela via mais revolucionária, empreender essa luta e a organização de uma
vida econômica regulada do país, estipulam-se as seguintes regras:
Projeto de decreto sobre a aplicação da nacionalização dos
bancos e sobre as medidas necessárias em ligação com isto
1. Todas as empresas por ações são declaradas propriedades do
Estado.
2. Os membros da administração e os diretores das sociedades
por ações, assim como todos os acionistas pertencentes às classes ricas
(isto é, possuidoras de um total de bens de mais de 5000 rublos ou um
rendimento de mais de 500 rublos por mês) são obrigados a continuar a
dirigir em perfeita ordem os assuntos das empresas, cumprindo a lei do
controle operário, apresentando todas as ações ao Banco de Estado e
apresentando relatórios semanais sobre a sua atividade aos Sovietes locais
de deputados operários, soldados e camponeses.
3. São anulados os empréstimos do Estado, externos e internos.
4. Os interesses dos pequenos portadores de obrigações, como
de quaisquer ações, isto é, dos portadores que pertencem às classes
trabalhadoras da população, são plenamente assegurados.
5. É introduzido o trabalho geral obrigatório. Todos os cidadãos de
ambos os sexos, dos 16 aos 55 anos, são obrigados a efetuar os trabalhos
que lhes indiquem os Sovietes locais de deputados operários, soldados e
camponeses ou outros órgãos do Poder Soviético.
[...]
10 As pessoas das classes ricas são obrigadas a guardar todas as
suas somas em dinheiro no Banco de Estado e nas suas sucursais, bem
como nas caixas de depósitos, recebendo para as suas necessidades de
consumo não mais do que 100-125 rublos por semana [...], e para as
necessidades de produção e do comércio só com um certificado escrito das
instituições de controle operário.
A fim de controlar a aplicação efetiva da presente lei serão
estabelecidas regras para troca do papel-moeda atualmente em circulação
por outro, e os culpados de fraude para com o Estado e o povo serão
submetidos à confiscação de todos os seus bens.
[...]
Os operários e empregados das empresas nacionalizadas são
166

obrigados a aplicar todas as forças e a adotar medidas extraordinárias para


melhorar a organização do trabalho, reforçar a disciplina e elevar a
produtividade do trabalho. Os organismos de controle operário devem
apresentar semanalmente ao CSEN [Conselho Superior da Economia
Nacional] relatórios sobre o que se conseguiu neste aspecto. Os culpados
de faltas e descuidos responderão perante o tribunal revolucionário. (p.440)

Comentários:
O Projeto não tratava apenas da nacionalização dos bancos. Os artigos 5 e
6 tratam do trabalho obrigatório, seu controle e inspeção. Já os artigos 7, 8 e 9
tratam do controle da produção e da distribuição e do transporte de víveres e
produtos de primeira necessidade. Os artigos 11 e 12 tratam das punições para
aqueles que desobedecerem a presente lei, os sabotadores, os funcionários
grevistas e os especuladores e dispõem sobre a autoridade que controlará e aplicará
a lei.
Segundo a nota 239, à pag. 724 das Obras Escolhidas, volume 2, o Banco
do Estado foi ocupado em 25 de outubro (7 de novembro) de 1917. Por disposição
do governo, na manhã de 16 (27) de dezembro, destacamentos de operários e de
combatentes do Exército vermelho ocuparam todos os bancos e instituições de
crédito de Petrogrado. Nesse mesmo dia foram adotados na reunião do CECR os
decretos “Sobre a nacionalização dos bancos” e “Sobre a revisão dos cofres fortes
nos bancos”. Ambos os decretos foram publicados em 15 (28) de dezembro no
Izvéstia TsIK [s/d].
167

Item III

Declaração dos direitos do povo trabalhador e explorado. [Escrito entre 01 e


03 (14 e 16) de janeiro de 1918. Publicado em 4 (17) de janeiro de 1918 no nº 2 do
Pravda e no nº 2 do Izvéstia TsIK]. In: LENINE. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-
Omega, 1980. p. 448-450. (Volume 2).

A Assembleia Constituinte decreta:


I. 1. A Rússia é proclamada República dos Sovietes de deputados
operários, soldados e camponeses. Todo o poder, no centro e localmente,
pertence a estes Sovietes.
2. A Rebública Soviética da Rússia institui-se na base da união
livre de nações livres como federação de repúblicas soviéticas nacionais.
II. Tendo-se assinalado como tarefa fundamental liquidar toda a
exploração do homem pelo homem, suprimir por completo a divisão da
sociedade em classes, esmagar implacavelmente a resistência dos
exploradores, estabelecer a organização socialista da sociedade e a vitória
do socialismo em todos os países, a Assembleia Constituinte decreta ainda:
1. É abolida a propriedade privada da terra. Toda a terra, com
todos os edifícios, o gado e as alfaias e outros acessórios da produção
agrícola, é declarada patrimônio de todo o povo trabalhador.
2. Ratifica-se a lei soviética sobre o controle operário e sobre o
Conselho Superior da Economia Nacional, com o objetivo de assegurar o
poder do povo trabalhador sobre os exploradores e como o primeiro passo
para a passagem completa das fábricas, minas, caminhos-de-ferro e outros
meios de produção e de transporte para a propriedade do Estado operário e
camponês.
3. Ratifica-se a passagem de todos os bancos para a propriedade
do Estado operário e camponês, como uma das condições da libertação das
massas trabalhadoras do jugo do capital.
4. Com o fim de suprimir as camadas parasitárias da sociedade é
introduzido o trabalho geral obrigatório.
5. Para assegurar toda a plenitude do poder às massas
trabalhadoras e eliminar a possibilidade de restauração do poder dos
exploradores decreta-se o armamento dos trabalhadores, a formação de um
exército vermelho socialista de operários e camponeses e o completo
desarmamento das classes possuidoras.
III. 1. Exprimindo a sua inabalável decisão de arrancar a
humanidade das garras do capital financeiro e do imperialismo, que
inundaram a terra de sangue na guerra atual, a mais criminosa de todas, a
Assembleia Constituinte adere totalmente à política aplicada pelo Poder
Soviético de romper com os tratados secretos, organizar a mais ampla
confraternização com os operários e camponeses dos exércitos atualmente
em guerra entre si e obter, custe o que custar, por medidas revolucionárias,
uma paz democrática entre os povos, sem anexações e sem contribuições,
na base da livre autodeterminação das nações.
2. Com o mesmo fim, a Assembleia Constituinte insiste na
completa ruptura com a bárbara política da civilização burguesa, que
edificava a prosperidade dos exploradores nalgumas nações eleitas sobre a
escravização de centenas de milhões de trabalhadores na Ásia, nas
colônias em geral e nos países pequenos.
A Assembleia Constituinte saúda a política do Conselho de
Comissários do Povo, que proclamou a completa independência da
Finlândia, que começou a retirar as tropas da Pérsia e declarou a liberdade
de autodeterminação da Armênia.
168

3. A Assembleia Constituinte considera a lei soviética sobre a


anulação dos empréstimos concluídos pelos governos do czar, dos
latifundiários e da burguesia com um primeiro golpe no capital bancário,
financeiro internacional, exprimindo a certeza de que o Poder Soviético
continuará firmemente neste caminho até a completa vitória da insurreição
operária internacional contra o jugo do capital.
IV. Tendo sido eleita na base de listas partidárias constituídas
antes da Revolução de Outubro, quando o povo ainda não podia erguer-se
em toda a sua massa contra os exploradores, não conhecia toda a força de
resistência deles na defesa dos seus privilégios de classe, não tinha
abordado ainda na prática a criação da sociedade socialista, a Assembleia
Constituinte consideraria fundamentalmente errado, mesmo do ponto de
vista formal, contrapor-se ao Poder Soviético.
Em essência a Assembleia Constituinte considera que agora, no
momento da luta final do povo contra os seus exploradores, não pode haver
lugar para os exploradores em nenhum dos órgãos do poder. O poder deve
pertencer inteira e exclusivamente às massas trabalhadoras e ao seu
representante plenipotenciário – os Sovietes de deputados operários,
soldados e camponeses.
Apoiando o Poder Soviético e os decretos do Conselho de
Comissários do Povo, a Assembleia Constituinte considera que as suas
tarefas se esgotam com o estabelecimento das bases fundamentais da
reorganização socialista da sociedade.
Ao mesmo tempo, aspirando à criação de uma aliança
verdadeiramente livre e voluntária e, consequentemente, tanto mais estreita
e duradoura entre as classes trabalhadoras de todas as nações da Rússia,
a Assembleia Constituinte limita a sua tarefa ao estabelecimento dos
princípios fundamentais da Federação das Repúblicas Soviéticas da Rússia,
deixando aos operários e camponeses de cada nação a adoção de
decisões independentes no seu próprio congresso soviético plenipotenciário
sobre se desejam, e em que bases, participar no governo federal e nas
restantes instituições soviéticas federais.

Comentários:
Segundo a Nota 242, à pag. 725, a Declaração dos Direitos do Povo
Trabalhador e Explorado, foi aprovada pelo Comitê Executivo Central dos Sovietes
(CECR) em 4 (17) de janeiro de 1918. A declaração foi lida e apresentada por
Sverdlov na primeira reunião da Assembleia Constituinte, em 5 (18) de janeiro. A
proposta de discussão sobre a declaração foi rejeitada pela maioria
contrarrevolucionária da Assembleia Constituinte e após a destituição da Assembleia
Constituinte, no dia 12 (25) de janeiro a Declaração foi aprovada pelo III Congresso
dos Sovietes de Toda a Rússia e depois serviu de base para a elaboração da
Constituição soviética. De acordo com Carr (1981), a Declaração dos Direitos do
Povo Trabalhador e Explorado era o correspondente socialista da Declaração
Universal dos direitos do Homem.
Em linhas gerais, a Declaração ratificou algumas das ações tomadas até
então pelo governo provisório (o Conselho dos Comissários do Povo): abolição da
propriedade privada da terra; controle operário sobre a produção; nacionalização
169

dos bancos; introdução do trabalho geral obrigatório; anulação dos empréstimos do


governo czarista; ratificação do princípio de que o povo deve estar no poder. É um
documento belíssimo, que sintetiza os princípios da revolução e os princípios
socialistas da sociedade soviética.
170

Item IV

Projeto de regulamento sobre o controle operário. [Escrito em 26 ou 27 de


outubro (8 ou 9 de novembro) de 1917]. In: LENINE. Obras escolhidas. São Paulo:
Alfa-Omega, 1980. p. 408. (Volume 2).

1. É introduzido o controle operário sobre a produção,


conservação e compra-venda de todos os produtos e matérias-primas, em
todas as empresas industriais, comerciais, bancárias, agrícolas e outras
com um número de operários e empregados (em conjunto) não inferior a 5
pessoas ou com um movimento não inferior a 10.000 rublos por ano.

Comentários:
Segundo a nota 233, à pg. 722, o projeto de Lenin foi a base para a
elaboração do decreto operário sobre a produção, que recebeu o nome de
Regulamento sobre o controle operário, publicado no Izvéstia TsIK, nº 22, de 16 (29)
de novembro de 1917.
No artigo 2, consta que os operários e empregados da empresa ou seus
representantes eleitos exercerão o controle da empresa. De acordo com o artigo 4,
todos os livros e documentos, armazéns, reservas de materiais, ferramentas e
produtos devem ficar à disposição dos operários ou seus representantes eleitos. No
artigo 5 consta que as decisões dos operários e representantes eleitos são
soberanas, devem ser obedecidas e só podem ser anuladas pelos seus respectivos
sindicatos e congressos sindicais.

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