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A IGREJA CATÓLICA FRENTE AO SISTEMA

ESCRAVAGISTA NO PERÍODO COLONIAL

Adriano da Silva Almeida

INTRODUÇÃO
Em relação ao sistema de trabalho compulsório no Brasil colonial, a primeira
questão a ser observada, se refere à utilização dos preceitos religiosos como forma
justificação do sistema, tanto perante os portugueses colonizadores, como perante os
próprios trabalhadores para aceitação de sua condição desumana e exploratória. Assim,
facilitando a manutenção e o fortalecimento desta condição. Isto nos leva ao seguinte
questionamento, ponderado por Pereira (2018): “por que uma instituição, ao qual fora
criada para promover a fraternidade, a justiça e paz, tornou-se conivente, promotora e
até usufruidora de um sistema hediondo de exploração humana?”
Devemos considerar outra questão, no qual se refere a inércia da Igreja no
resguardo dos negros africanos, num mesmo ímpeto ao qual foram em defesa da não
escravização dos indígenas, que sempre foi muito dinâmica e fervorosa na América
Portuguesa (FAUSTO,2006) . Diante destas
circunstancias mencionadas, algo no qual também deve ser deliberado, trata-se da união
ocorrida entre a Igreja e a Coroa Portuguesa no projeto colonial brasileiro, denominada
de “padroado real” e, ainda, até que ponto esta junção estimulou o posicionamento da
Igreja em prol da aceitação e até mesmo da justificação de um sistema que não
respeitava o ser humano, no caso, o negro africano escravizado.
Durante o primórdio da colonização do Brasil os escravos negros não eram
maioria, o principal motivo era o seu alto custo. Pereira (2018) afirma que entre 1550 a
1560, a maioria dos escravos presentes nos engenhos açucareiros eram índios,
capturados nas matas ou diretamente nas missões catequizadoras dos jesuítas, só entre
1560 e 1570 é que tráfico negreiro e a entrada de escravos, veio crescer
exponencialmente, tendo a preponderância deles destinados às lavouras canavieiras do
Nordeste. Essa conversão de escravos indígenas por negros africanos, teve a intervenção
jesuítica como um de seus fatores, já que “os jesuítas lutaram contra a escravidão dos
indígenas, mas para defender os índios estimularam o tráfico de africanos” [ CITATION
Tul18 \l 1046 ].
No início do processo colonizatório, a mão de obra mais utilizada era indígena,
ao qual, segundo Monteiro (1994), era obtida de dois modos: na primeira, “os
portugueses ofereciam ferramentas, espelhos e bugigangas as chefes tribais, na
expectativa de que estes orientassem mutirões para as lavouras europeias”, este método
de negociação ficou conhecido como escambo; na segunda forma de recrutamento, os
lusitanos fomentaram as guerras intertribais, “com intuído de ampliar o número de
cativos, no qual, em vez de serem sacrificados, seriam negociados como escravos para
os europeus” [ CITATION Esc10 \l 1046 ] . As razões econômicas eram preponderantes para
justificar a escravização dos povos nativos, tidos como essenciais para o
desenvolvimento da colônia [ CITATION Gil06 \l 1046 ].
Em 1570 a Coroa portuguesa sanciona uma lei no qual proibia a escravização
dos índios, deixando de fora a tribo dos aimorés, visto que os mesmos se destacavam
pela eficiência militar e pela rebeldia (FAUSTO, 2006). Com isso buscava remover as
tribos que possuíam uma maior resistência contra os portugueses.

DESENVOLVIMENTO

Há de ser destacado que mesmo antes da chegada dos europeus na região, as


comunidades indígenas locais já viviam em constantes guerras internas, lutando pela
defesa da terra contra tribos invasoras ou pela hegemonia territorial. Como um dos
principais resultados dessas disputas, surgiu a escravidão indígena: os índios vencidos e
presos eram reduzidos a escravos e obrigados a realizar serviços compulsórios,
“repugnantes para o índio livre” [ CITATION Joh94 \l 1046 ] . Esta prática, como apontado
por Monteiro (1994), não foi introduzida pelos europeus, mas usufruída e fomentada
por eles. Oliveira (2001) afirma que “entre os Omágua e os Tapajós haviam escravos
aprisionados em guerra, ou comprados de outras tribos, através de um intenso comércio
intertribal”. Ou seja, tais transações, conforme a concepção de guerra dos nativos locais,
era uma das várias formas pré-coloniais de organização social encontradas pelos
colonizadores. Foi esta “escravidão do índio pelo índio” que ofereceu a justificativa
social aos europeus de receber pelas tribos aliadas a troca humana.
A escravização do índio se chocou com uma série de inconvenientes, tendo em
vista os fins da colonização, pois estes, “culturalmente não eram compatíveis com o
trabalho intensivo, regular e compulsório como pretendido pelos europeus” [ CITATION
Joh94 \l 1046 ], além do que muitos não resistiam as doenças trazidas pelo homem
branco, tais como a varíola e o sarampo. Fausto (2009) mostra que os índios não se
submeteram facilmente ao domínio dos colonizadores, através de guerras, fugas ou
recusa ao trabalho compulsório resistiram as várias formas de submissão. Para o autor,
há duas tentativas de sujeição dos nativos, por parte dos portugueses: a dos colonos,
segundo um frio cálculo econômico, consistiu na escravização pura e simples, e a dos
jesuítas sob forma modeladora da cultura indígena dentro do dogmatismo católico.
Fausto (2006) aponta que os principais opositores da escravização indígena
foram as ordens religiosas, sobretudo os jesuítas, “por motivos alheios às suas
concepções missionárias, propunham a transformação dos índios por meio da fé”.
Criando pequenos povoados ou aldeias para ensina-los a serem “bons cristãos”, que
segundo o autor, significava adquirir hábitos laborais europeus, assim criariam
“cultivadores indígenas flexíveis as necessidades da colônia”. Os jesuítas não eram
totalmente contra o regime escravagista, pois desfrutavam deste sistema, sendo um dos
maiores donos de escravos, eles defendiam a escravidão indígena desde que realizada de
forma “lícita”, ou seja, quando se tratasse de índios cativos em guerra de outros nativos.
Nesse caso, se libertados pelos colonos ou jesuítas, os mesmos poderiam tornar-se
“licitamente” seus escravos às expensas da Fazenda Real. Já na categoria de
escravização “ilícita”, por eles condenada, enquadravam-se as demais formas, como,
por exemplo, invasão de aldeamentos indígenas sob a proteção jesuítica para
transformá-los em escravos nas lavouras [ CITATION Joh94 \l 1046 ].
Com o estabelecimento dos aldeamentos, os jesuítas acenavam com um método
alternativo de conquista e assimilação dos povos nativos [ CITATION Mau01 \l 1046 ] .
Paim (2006) e Monteiro (1994) revelam que este projeto fracassou, tendo graves
implicações para a formação de uma relação amargamente conflituosa entre jesuítas e
colonos. Gilberto Paim (2006) aponta que as ordens religiosas dispunham no monopólio
das atividades econômicas (principalmente o comércio de produto de extração vegetal,
ao qual era realizada pelos índios), pois eram isentas de pagar impostos de qualquer
natureza, o que gerou uma grande discrepância em relação aos colonos, submetidos a
todos os tributos. Tal situação levou ao enriquecimento das autoridades eclesiásticas e o
empobrecimento dos colonos portugueses. Mediante essa situação, houve vários
conflitos entre os colonos e os jesuítas, tais como a Guerra dos Tamoios [ CITATION
Joh94 \l 1046 ].
As posições da Coroa portuguesa dividiam-se entre atender os interesses
escravocratas de seus súditos que desbravavam a colônia, e as reclamações dos Jesuítas,
gerando uma legislação oscilante e contraditória, refletindo os conflitos de interesses
que representavam projetos diferentes de incorporação da mão-de-obra indígena, entre
missionários e colonos [ CITATION Joh94 \l 1046 ].
Mediante a forte pressão dos religiosos, Portugal proibiu a captura de índios por
meio de uma Carta Régia emitida no ano de 1570. que regulamentava — mas não
proibia — o cativeiro indígena. Segundo esse documento, os índios só poderiam ser
presos e escravizados em situação de guerra justa. Ou seja, somente os índios que se
voltassem contra os colonizadores estariam sujeitos à condição de escravos. Os demais
índios, escravizados por outros meios, foram declarados livres. Na verdade, a lei teve
pouco efeito sobre as reais relações entre colonos e índios, uma vez que a brecha
oferecida pela instituição da guerra justa abria caminho para abusos, pois não tinha
como saber a forma que foi feita a captura dos índios. Por meio dessa medida, os
colonizadores conseguiram manter a escravidão indígena durante todo o período
colonial [ CITATION Joh94 \l 1046 ].
No início do século XVII a população indígena estava em vias de desaparecer
pela ação de doenças e guerras, além da pressão escravista, como afirma Giuseppe
Marcocci (2001). Fausto (2006) salienta que a partir de 1570 a Coroa portuguesa cria
uma sucessão de leis afim de inibir a escravização “desenfreada” dos índios, tais
medidas incentivaram ainda mais tráfico e o comércio de africanos. Para o autor
contribuíram na introdução de escravos de origem africana no Brasil, dentre outros
fatores, o fato dos colonizadores portugueses, terem conhecimento de suas habilidades
na atividade açucareira, pois estes já eram utilizados nas ilhas de colonização
portuguesas no Atlântico. E, ainda, os negros provinham de culturas em que trabalhos
com ferro e a criação de gado eram usuais, sendo sua capacidade produtiva superior à
do indígena.
Para os padres da Companhia de Jesus era considerado impossível viver sem
escravos, visto que a base material de sustentação da missão evangelizadora dos
jesuítas, notadamente dos colégios mantidos pela Ordem, foi a unidade produtora típica
do Brasil dos séculos XVI e XVII: a fazenda de agropecuária sustentada braço escravo.
Durante os dois primeiros séculos do período colonial, a Companhia de Jesus era
provavelmente a maior proprietária de escravos do Brasil; seguramente possuía o maior
número de escravos existentes em uma só fazenda em toda a América colonial
[ CITATION Gil06 \l 1046 ]. Neste momento destacamos a figura do “Padre Antônio Vieira,
nascido em Lisboa no ano de 1608, o qual foi considerado um dos máximos expoentes
das letras portuguesas do século XVII” [ CITATION JrA03 \l 1046 ]. O padre foi um ávido
defensor do fim da escravidão indígena, não que ele fosse totalmente contra a
escravização, o mesmo a defendia desde que fosse realizada de forma "lícita". Depois
de anos no Brasil, lutando contra a escravização dos índios, pelos colonos no Maranhão,
o Padre Antônio Vieira retorna a Portugal expulso pelos fazendeiros maranhenses
[ CITATION Bor09 \l 1046 ]. Contudo, devido a suas relações com os cristãos novos, e com
a iminente chegada a inquisição a Portugal, o Padre Antônio Vieira retorna ao Brasil.
Vieira iria utilizar-se de todos os seus recursos “estilístico-literário barrocos”, para
tentar convencer a sociedade colonial sobre a desumanidade da escravidão [ CITATION
JrA03 \l 1046 ]. Ainda que Vieira defendesse os direitos dos escravos, chegando a se opor
a escravização indígena, este na análise de seu discurso, opunha-se na verdade que os
colonos tivessem mais direitos do que os padres, sobre a vida dos indígenas [ CITATION
Gil06 \l 1046 ]. Embora o Padre Antônio Vieira tenha sido um ardoroso defensor do fim
da escravidão indígena no Brasil, uma análise do discurso do padre, leva a constatação
de que este como a Companhia de Jesus, admitia como legítima a escravidão negra,
segundo ele, era impossível pensar edificação da colônia portuguesa no Brasil sem o uso
do braço escravo de origem africana [ CITATION JrA03 \l 1046 ].
Para defender a legitimidade da escravidão dos negros, o Padre Antônio Vieira,
em seus discursos, propõe a transfiguração da escravidão como milagre e salvação. Os
negros são eleitos de Deus, e como seus filhos teriam a missão de salvar a humanidade,
por meio do seu sacrifício, e, portanto, a sua escravidão, na verdade, significaria
salvação da alma, para os que aceitassem o cativeiro. "Quanto aos escravos, devem se
conformar com o destino e derramar o seu sangue sagrado: ser escravo é ser Cristo, eis a
associação fundamental construída por Vieira"[ CITATION JrA03 \l 1046 ].

CONCLUSÃO
A Igreja possuía muitos escravos, tanto africanos como índios, mais ou menos
em todas as suas casas. Os padres pertenciam à mais alta camada social num país
baseado no trabalho escravo, inclusive no trabalho doméstico, não é de se estranhar que
os padres fossem donos de escravos. Eles não se distinguiam dos demais amos de
escravos, fazendo com que a religião católica no Brasil Colônia fosse uma “força
apagada, uma consciência adormecida” [ CITATION Iva08 \l 1046 ]. Em São Paulo, por
exemplo, os maiores fazendeiros locais tinham de 40 a 50 escravos, enquanto os
Carmelitas controlavam nada menos que 436 escravos [ CITATION Joh94 \l 1046 ]. A
justificativa da escravidão pelas Ordens Religiosas deitava liames profundos nas
concepções da Escolástica Medieval1, esta, por sua vez, era subordinada do pensamento
aristotélico e da tradição judaico-cristã [ CITATION And07 \l 1046 ].
A doutrina das guerras justas, assim como no caso dos indígenas, foi utilizada
como justificativa para a escravidão negra. Os negros poderiam ser escravizados, desde
que capturados num combate envolvendo interesses de promoção da fé no continente
africano. Contudo, na colônia não tinha como se saber como teria ocorrido seu
aprisionamento [ CITATION Esc10 \l 1046 ]. Macedo (2013) afirma que “uma das
justificativas ideológicas ao aprisionamento das populações africanas era a sua posterior
conversão ao cristianismo, antes da travessia do Atlântico muitos cativos eram batizados
e começavam a receber os rudimentos da doutrina cristã”. Isto é, os traficantes, os
comerciantes e os donos de escravos, nas suas próprias perspectivas, assumiam o papel
de agentes da punição divina. Ou ainda, como seus resgatadores, ao tirarem de uma vida
pecaminosa e lhe proporcionarem expiação de suas transgressões. Neste ponto a Igreja
participava ativamente do processo de instituição da escravidão ao se beneficiar pela
iniciação do negro africano na religião ainda na África, com a finalidade de aumentar
seu rebanho e inculcar em suas mentes que seu martírio é uma forma de redenção e
obediência à verdadeira religião.

REFERÊNCIAS

BILHEIRO, Ivan. A legitimação teológica do sistema de escravidão negra no Brasil.


Juiz de Fora: Ces Revista, v. 22, 2008.

FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. 12ª. ed. São Paulo: Edusp, 2006.

FERREIRA, Amarilio.; BITTAR, Marisa. A pedagogia da escravidão nos Sermões do


Padre Antônio Vieira. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 84, p.
43-53, 2003.

MARCOCCI, Giuseppe. Escravos ameríndios e negros africanos: uma história


conectada. Teorias e modelos de discriminação no império português. Tempo, Niterói,
16, 2011.

MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São
Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Igreja e escravidão africana no Brasil


Colonial. [S.l.]: Cadernos de Ciências Humanas - Especiari, v. 10, 2007.
1
O termo Escolástica refere-se à produção filosófica que aconteceu na Idade Média, entre os séculos IX e
XIII d.C. Em comparação com a Patrística, vertente anterior da Filosofia Medieval, a Escolástica está
situada em um período de intensidade do domínio católico sobre a Europa.
OLIVEIRA, Mauro Leonardo da Costa de. Escravidão Indígena na Amazônia
Colonial. Goiânia: Editora da UFG, 2001.

PAIM, Gilberto. A Amazônia de Pombal sob ameaça. Rio de Janeiro: Editorial


Escrita, 2006.

PEREIRA, Tulio Augusto de Paiva. A Igreja Católica e a Escravidão Negra no Brasil A


Partir Do Século XVI. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento,
v. 05, n. 05, p. 14-31, maio 2018. ISSN 2448-0959.

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