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UMA ORDEM DE IRMÃOS

Frei Odair Verussa, OFMCAP

Nas origens da fraternidade

Em 1209, quando Frei Francisco pede ao papa a aprovação do seu


grupo, a forma institucional identificativa é a da fraternitas e não a de uma
“Ordem” religiosa. Vivem todos a comum dimensão de vida cujos traços de
identidade o Testamento resume em:  opção pela pobreza em minoridade,
oração e freqüência às igrejas. Nos primeiros frades há um caráter
profundamente desarmado, expresso na saudação “O Senhor te dê a paz”.
Quem quiser pode se tornar frade menor, independentemente da idade, da
condição social e da cultura. Lenta e inexoravelmente a chegada de indivíduos
provenientes das fileiras clericais e magisteriais condicionam de forma diferente
a primitiva fraternidade.

O caminho da sacerdotalização (*) da fraternidade de Frei Francisco


começa cedo. Os primeiros que foram com ele pedir a aprovação da Igreja em
1209 certamente eram leigos, mas a mesma aprovação desperta o interesse e
a chegada de clérigos, sacerdotes ou não. É a eles que o Testamento se refere
quando diz: “os clérigos rezavam o ofício”. Frei Leão, Frei Iluminato são desse
grupo e são sacerdotes. Em 1211 entra Frei Silvestre, sacerdote! O número dos
clérigos, todavia vai crescer bastante entre 1217 e 1220. Entre eles já há vários
mestres aos quais quase espontaneamente a fraternidade vai confiando o
serviço fraterno de ministros, sem excluir os irmãos leigos, levando-os a
assumir os destinos da jovem fraternidade. Frei Caetano Esser faz este precioso
comentário: “Os ministros se encontravam frente a homens da Idade Média e o
homem medieval por si mesmo não pensa nem vive senão de forma
cooperativa, em corporações. Essa mentalidade leva a entender que devia
haver na Ordem uma estrutura social bem definida. Francisco sustentava ao
contrário sua concepção pessoal, querendo o homem bem enraizado em si
mesmo e na inspiração divina, como se pode deduzir em primeiro lugar da
concepção franciscana de obediência nos primeiros tempos. Sob este aspecto
Francisco estava claramente em vantagem em relação ao seu tempo... e
mesmo fazendo algumas concessões soube manter e conservar solidamente o
seu ponto de vista“ (Introduzione Alla Regola Franciscana, 26-27). Com a sua
profunda convicção da importância da fraternidade, Francisco sinaliza para a
individualidade e subjetividade típicas da modernidade.

Os ministros e mestres querem organizar uma verdadeira Ordem, com


estatutos rigorosos, competências bem definidas. Penso que não se pode falar
de uma tendência de laxismo dos ministros e mestres, mas de uma dificuldade
congênita deles, formados no refinado método escolástico de análise pontual,
em intuir a fineza da simplicidade do pensamento de Francisco. Sem querer
abrir mão da fidelidade do projeto original do santo eles conduzirão a
fraternidade a uma normatização sempre maior e a um enquadramento nos
critérios canônicos recém adquiridos pela legislação da Igreja. A diversificada
compreensão do “modelo Francisco” leva os ministros e mestres a darem
consistência à Fraternidade através da afirmação eclesiástica e social.
Intencionalmente ou não, porém faz-se o distanciamento do primeiro ideal. A
intenção parece ser a de atualizar o “mito Francisco”, mas a forma com que se
inserem na pastoral da Igreja, na sociedade e nos ambientes de alta cultura
distancia a fraternidade das suas origens, um pouco como canta Chico Buarque
“é porque há distância entre intenção e gesto”.

O capitulo geral de 1230 encontra dificuldade para entender algumas


passagens da Regra e do Testamento e nomeia uma delegação para
representá-lo junto a Gregório IX (Hugolino), composta do Ministro Geral João
Parente, o único irmão leigo do grupo, e de mais seis sacerdotes já conhecidos
do papa, entre os quais Frei Antonio de Pádua e Frei Leão de Perego, que será
o primeiro bispo franciscano. Os seis tinham se destacado pela atuação anti-
herética no norte da Itália e no “movimento aleluia” cuja finalidade religiosa e
política era a de reduzir dissidentes à obediência eclesiástica. Sabemos como
Gregório se serve da amizade que tivera com São Francisco para se fazer
intérprete qualificado da sua verdadeira intenção. Ele ajudara redigir a Regra e
aprová-la. O grupo de delegados não é escolhido aleatoriamente nem
democraticamente, mas intencionalmente entre frades conhecidos do papa e da
cúria romana. O resultado é a bula “Quo Elongati” de setembro de 1230,
abrindo caminho para consolidar as transformações e o processo de
sacerdotalização da fraternidade. O prelado que Francisco escolhera como
suprema instância disciplinar da fraternidade agora era a autoridade suprema
da Igreja. Gregório IX estava com todo o poder para decidir. A santidade de
Frei Francisco e o vigor dos Irmãos Menores são os instrumentos de que
precisava para realizar seu plano restaurador do poder papal e da hegemonia
da Igreja romana sobre o poder temporal e sobre as igrejas particulares. Entre
as transformações da fraternidade nenhuma era mais significativa que a
sacerdotalização, já em andamento quando Francisco ainda estava vivo. Grado
Giovanni Merlo, minha referência nesta reflexão histórica, diz: “Os filhos de
Francisco abandonaram a submissão a todas as criaturas e entraram
definitivamente na área do poder”.

Muitas vezes a figura de Frei Elias é vista como um obstáculo para o


processo de sacerdotalização, mas não parece ser assim. É verdade que ele
nomeia ministros de preferência entre os irmãos leigos, porém ele favorece os
estudos teológicos, a compra de livros e bíblias, promove a formação de
professores em Paris impulsionando o estudo e a pregação, motores da
clericalização e da sacerdotalização.

Quando Frei Aimão de Faversham é eleito Ministro Geral o processo de


sacerdotalização entra numa etapa definitiva. Com ele entra em crise a
identidade franciscana porque parece não ter tanta certeza da especificidade
franciscana como irmãos menores. Procurará ele equiparar a fraternidade às
demais ordens já existentes, sobretudo aos dominicanos, com quem os frades
ingleses tinham estreito relacionamento. Suas intervenções promovendo a
sacerdotalização se dão pela ampla reforma dos livros litúrgicos “conforme o
modelo da cúria romana”. As transformações responsáveis pela fragilização da
identidade franciscana recebem um extraordinário impulso com a nomeação de
Frei Leão Valvassori de Perego como Arcebispo de Milão. Nada menos que
Milão, a sé mais importante da Itália depois de Roma e das mais importantes
de toda a cristandade. Trata-se de um frade “empenhado na vida pública
urbana e na ação político-eclesiástica confiada pelo pontífice ao seu legado para
a Lombardia” (Merlo, 108). Ele representa bem o minorismo da região do Rio
Pó, que crescera em direta ligação com a Cúria Romana e menos com o
franciscanismo da Úmbria, a serviço da hegemonia do papado “com os
ambientes de estudo e com as Igrejas e sociedades locais e que assumira
encargos pastorais de orientação, ensino, educação e formação dos fiéis”
(ibidem).

A nomeação do primeiro frade menor como arcebispo não passa em


silêncio. O novo Ministro Geral Crescêncio de Jesi convida os frades no capítulo
de Genova (1244) a enviarem suas memórias sobre São Francisco, não
contidas na primeira biografia de Tomás de Celano. Com o material que chega
Celano redige a segunda biografia iniciando assim: “Começa o memorial no
anseio da alma” conhecido pelo seu título latino “Memoriale in desiderio
animae”.

Na segunda metade do século XIII forma-se um contexto apropriado


para o surgimento de muitos escritos franciscanos tendentes a reinterpretar os
quarentas primeiros anos da fraternidade de acordo com as várias correntes
internas. A repercussão da nomeação episcopal do primeiro frade menor vem
recordada na 2Cel 148 assim: “Na cidade de Roma, encontraram-se com o
senhor de Óstia- que depois foi sumo pontífice- os preclaros luminares da terra,
São Francisco e São Domingos.  Como falassem alternadamente coisas
melífluas do Senhor, disse-lhes finalmente o bispo: Na Igreja primitiva, os
pastores eram pobres e homens fervorosos de caridade e não de avareza.  Por
que não fazemos dos vossos irmãos bispos e prelados que sobressaiam aos
outros pela doutrina e pelo exemplo? (cf.Tt 2,7) Entre os santos , surgiu uma
disputa (cf.Lc,22,24) sobre quem devia responder, cada qual não se
antecipando, mas oferecendo, antes obrigando um ao outro a responder. Na
verdade, cada um era prior, pois cada um tinha devoção para com o outro.
Finalmente, a humildade venceu Francisco, para que não se colocasse à frente,
e venceu também Domingos, para que respondendo primeiro, obedecesse
humildemente. Respondendo, portando, o bem-aventurado Domingos , disse ao
bispo: Senhor, meus irmãos, se o reconhecerem, foram elevados a bom grau, e
quanto me for possível, não permitirei que cheguem a outro tipo de dignidade.
Depois que ele completou o discurso assim tão brevemente, o bem-aventurado
Francisco, inclinando-se diante do bispo, disse: Senhor, meus irmãos foram
chamados de Menores para que não presumam tornar-se maiores (cf.
Mt20,26). A vocação deles os ensina a permanecer no chão e a seguir as
pegadas da humildade de Cristo (cf.1 Pd 2, 21) para que finalmente na
retribuição dos santos (cf.Sb 3,13) sejam mais exaltados do que os outros. Se
quereis -disse- que produzam fruto (cf. Jo 15,2-8) na Igreja de Deus (cf. Fl
3,6), mantende-os e conservai-os no estado de sua vocação (cf.!Cor 7,20) e
reconduzi-os às coisas do chão, mesmo contra a vontade deles. E assim
suplico, pai, para que não sejam, tanto mais soberbos quanto mais pobres e se
tornem insolentes contra os outros, não permitais de maneira alguma que eles
sejam elevados à prelatura. “Estas foram as respostas dos bem-aventurados”.

O encontro descrito dos dois santos com o futuro papa é historicamente


improvável, mas representa a inconformidade de muitos frades da época com a
primeira nomeação episcopal de um frade menor e com as demais
“metamorfoses” do franciscanismo, mesmo que promovidas a aprovadas pela
cúpula da Igreja e da Ordem. A narrativa mostra que os novos rumos não são
aceitos acriticamente mesmo que se imponham como irreversíveis,
Frei Aimão se esforça em resolver as dúvidas que as transformações
provocavam. Frades cultos de Oxford e Paris foram convidados a esclarecer os
pontos duvidosos da Regra: Alexandre de Hales, João de La Rochelle, Roberto
de La Bassé, Eudes Rigaud prepararam o texto conhecido como “Exposição dos
quatro mestres sobre a Regra dos Frades Menores”. Eles tiveram suficiente
clareza sobre as dificuldades da tarefa. Sabendo que o método escolástico com
suas distinções e contra distinções podia levá-los a passar distante da
verdadeira intenção de São Francisco  subordinaram suas observações a um
princípio superior e absoluto: era preciso observar a Regra “sicut a Sancto
Francisco, dictante Spiritu Sancto, tradita fuit  = conforme fora dada por São
Francisco sob inspiração do Espírito Santo”. De fato, com a melhor das
intenções os quatro mestres realizaram uma excelente obra de escolástica,
distante, porém do projeto original de São Francisco.

Frei Tomás de Eccleston em sua Crônica da chegada dos Frades à


Inglaterra refere uma passagem extremamente significativa das tensões
vivenciadas na Ordem.  Narrando sobre o trabalho dos quatro mestres conta o
sonho de um frade ao qual São Francisco apareceu mostrando-lhe um poço
profundo, símbolo de uma possível queda da Ordem num fosso escuro e sem
saída, exatamente no momento em que se punha o problema de esclarecer os
pontos duvidosos da Regra. O frade dirigiu ao santo o seguinte convite urgente:
“Pai, eis que os padres querem explicar a Regra: melhor seria se tu mesmo nos
explicasses a Regra”. Embora dada num sonho a resposta de São Francisco tem
um elevado grau de concretude: “Filho, dirige-te aos frades leigos, que eles te
exporão a Regra”.

O caminho da sacerdotalização seguida pelos superiores e mestres da


Ordem não impede que muitos frades continuem assumindo o jeito de ser
vivido e proposto por Frei Francisco: vida simples e pobre, fraterna e menor,
com forte presença no meio dos últimos da sociedade, desenvolvendo a
pregação exortativa. Entre estes não diminuiu a consciência da especificidade
franciscana derivada da experiência cristã que provinha da vida e da intenção
de São Francisco. A inconsciência da especificidade da vida franciscana podia
afetar até um ministro geral como Aimão de Faversham, mas não a maioria
sadia dos frades radicados na identidade jesuânica do carisma de Francisco,
fossem eles clérigos ou irmãos leigos.

No processo de sacerdotalização a Fraternidade dos Irmãos Menores


recebia estruturas fortemente sacerdotais e monásticas, mesmo conservando a
inspiração pauperística. A deposição de Frei Elias em 1239, conforme a Crônica
de Jordão de Jano e Tomás de Eccleston é precedida por uma complexa
operação envolvendo os ministros de além-Alpes e Gregório IX, mediada por
Frei Arnulfo Ânglico, penitenciário da Cúria pontifícia. Desta data em diante a
condição dos irmãos leigos muda radicalmente em número e em importância
nos serviços internos da Ordem. A constituição emanada deste capítulo de 1239
disciplinava em sentido aristocrático e clerical a entrada na Ordem. Critério
para ser frade agora não é mais a conversão e o desejo de seguir Jesus Cristo
do jeito de São Francisco. Somente serão aceitos os que forem úteis à Ordem:
“com o suporte da própria formação cultural e clerical e de outras louváveis
condições, podem ser úteis à Ordem e a si mesmos mediante uma vida de
méritos e servir de exemplo para os outros”. Aimão de Faversham irá confirmar
estes critérios que terão a seguinte redação nas Constituições de Narbona de
1260: “Ordenamos que ninguém seja recebido na Ordem para ser clérigo sem
suficiente conhecimento de gramática ou de lógica; se for para ser leigo, que
seja de tal condição que sua entrada produza muita edificação no clero e no
povo. Se, apesar desta ordem for preciso receber leigos para preencher os
serviços materiais, não se faça sem urgente necessidade e com especial licença
do Ministro geral” (São Boaventura, Constituições de Narbona, Opera Omnia,
VIII,450). 
A sacerdotalização da Ordem serviu de instrumento nas mãos dos papas
do século XIII para confirmar a absoluta centralidade eclesiástica e hierárquica
do pontificado romano. Trata-se de uma centralidade que dura até hoje não
tendo sido mudada nem pelo Concílio Vaticano II e cuja vigência nem sempre
se dá em benefício da Igreja Particular e do Povo de Deus.

Resgate da Ordem de irmãos na Reforma Capuchinha

Na Reforma Capuchinha ressurge com vigor o princípio da


fraternidade composta de leigos e clérigos completamente integrados
entre si, com todos vivendo vida mista em sentido pleno, na dimensão
contemplativa e ativa no apostolado, com direitos e deveres iguais. A total
interação de frades clérigos e leigos se consolidava na observância da Regra e
das Constituições, excetuando somente o que deriva da ordenação presbiteral.
Mostram esta integração a tradição capuchinha, a história legislativa, a
hagiografia, etc..

A Bula Religionis Zelus é dirigida nominalmente a um frade sacerdote e a


um frade leigo. Os dois são autorizados a receber clérigos e leigos
indiferentemente. Há diversos leigos entre os primeiros seguidores da reforma.
A expressão “fratelli” dos textos legislativos primitivos é usada para clérigos e
leigos. Exatamente porque é sublinhada a fraternidade e não o sentido clerical,
se diz no inicio das Ordenações de Albacina: “Rogo e exorto todos os nossos
irmãos desta confraternidade”. A autoridade e a precedência derivam da
ancianidade e não da clericatura.

As Constituições de 1535-36, (Roma- Sta Eufêmia) acentua alguns


aspectos significativos: Os frades simples entendem melhor a sabedoria de
Deus. A recepção de candidatos não se baseava na formação cientifica e na
clericatura, mas na ótima intenção e fortíssima vontade. A expropriação dos
bens na entrada e na vida fraterna se faz sem distinção de clérigos e leigos. A
formação do noviciado prioriza a vida religiosa. Nas eleições não há distinção de
clérigos e leigos.

No regime interno da Ordem Capuchinha nota-se nos primeiros decênios


uma importante presença dos irmãos leigos, quando vários deles são escolhidos
como superiores. Os primeiros sinais de mudança começam com o
encerramento Concilio de Trento (1565) pela valorização que nele se dá ao
estado clerical e sacerdotal, alijando os irmãos leigos dos ofícios de superiores
e privando-os da voz ativa e passiva. É então que se introduzem as
descriminações. Mesmo assim, os superiores da Ordem sempre conseguem
obter da Igreja exceções e dispensas. Excluídos que foram dos capítulos, Pio V
reintegra os irmãos leigos em 1566 para que possam participar plenamente das
eleições, mesmo com a proibição do Concilio de Trento. Estas práticas de cunho
democrático-fraterno continuam comuns até os primeiros anos do século XVII.
Até essa época são inúmeros os irmãos leigos guardiães e vigários de
fraternidade. Alguns foram mestres de noviços ou mestres de noviços leigos. É
conhecido o caso de Frei Rafael de Asti, perito em direito canônico, que sendo
leigo foi leito definidor provincial várias vezes, custódio e guardião.

As mudanças irreversíveis nos costumes da Ordem se deram também


aqui por um processo sacerdotalizante, pela criação de medidas penais, pela
exasperação das normas jurídicas, pela intervenção dos cardeais protetores e
da Congregação dos Religiosos, pela acentuação clerical do Concilio de Trento
dada a toda a Igreja, bem acolhida por aqueles frades sacerdotes que já tinham
mentalidade clerical e jurisdicista. 

Pensando aspectos da Ordem de irmãos na vida da Província hoje

Nos últimos quarenta anos os ministros Gerais Capuchinhos vêem


reiterando o pedido à Congregação dos Religiosos para que a Igreja reconheça
a nossa Ordem como fraternidade, onde leigos e presbíteros dedicados à
vivência dos valores da vida consagrada têm um carisma comum. Ainda em
2007 em visita à nossa Província, Frei Mauro Jöhri nos relatou sua audiência
com o papa Bento XVI e as diferentes compreensões expressas por ambos. A
posição oficial da Ordem Capuchinha é, pois de retorno às origens franciscanas
e da nossa Reforma, de resgate da Ordem de Irmãos. Esta posição oficial da
Ordem faz parte também da convicção vivencial da nossa Província, no seu
conjunto e de cada frade?  

Na época do nascimento dos Capuchinhos estavam surgindo na Igreja os


institutos clericais, de padres religiosos com caráter bem diferenciado das
ordens medievais mendicantes. Assim nasceram os Teatinos, os Barnabitas, os
Jesuítas etc... São padres que vivem os votos, mas se voltam, sobretudo para o
apostolado tendo sua origem nos movimentos leigos surgidos na pré-reforma
luterana e na contrareforma, dedicados à reforma da Igreja. São
marcadamente romanos, florescendo nos países latinos como Itália e Espanha,
e com freqüência nascem em Roma ou ao menos procuram indiretamente a
aprovação e confirmação de Roma. Tendem a se afastar das formas de vida
monástica e mendicante para exercer mais facilmente o apostolado, por isso
não usam hábito e reduzem ao mínimo a vida e a oração em comum etc...  Eles
são os clérigos regulares.

Em nossa Província, no ambiente de renovação da Ordem, tomamos uma


decisão incomum: substituir o curso de filosofia e teologia pelo Curso de Vida
Religiosa (CVR), com a intenção explícita de oferecer a quem quer ser
capuchinho em nossa Província, uma formação comum, com características
essencialmente religiosas e franciscanas. É a consagração que tem peso no
itinerário formativo, sob a ótica do nosso carisma franciscano-capuchinho.
Antes do Concilio Vaticano, vivenciamos com toda a Ordem o processo de
clericalização-sacerdotalização tanto do século XIII como dos séculos XVI-XVII.
Tínhamos duas classes de frades: os padres e os irmãos leigos, com direitos
iguais nas constituições, mas práticas distintas na vida cotidiana. Gostando ou
não temos que reconhecer que a Ordem e a Província tinham frades de
primeira e segunda classe.

Hoje, certamente se não tudo, quase tudo mudou para melhor, mas
parece inevitável a constatação de que as práticas das atividades pastorais,
especialmente de caráter paroquial, têm prioridade e se impõem sobre as
práticas da vida fraterna, tanto no plano organizacional como no plano pessoal,
mesmo sem fazer generalizações. Embora a maioria dos frades da Província
respeite as escolhas pessoais dos jovens em formação, há referências das
investidas de frades que lhes dizem claramente: vocês têm que ser padres,
pois a Igreja precisa de padres! E há quem ainda acrescenta: os irmãos não
fazem nada! Já Salimbene de Parma no século XIII, em sua Crônica defendia a
“curialitas”, modelo aristocrático, para a vivência diária da vida franciscana e
também dizia que os irmãos leigos eram “inúteis”, além de indignos de exercer
os “ofícios da Ordem”. Aqui não é o lugar adequado para aprofundar o
significado do ministério presbiteral na Igreja, mas há perguntas que brotam
espontaneamente: têm que ser padres por quê? Aqui não se pretende discutir o
lugar e a importância do presbítero, mas de perguntar que modelo de
presbítero a Igreja precisa? O presbítero com cabeça clerical, de casta superior,
cujos serviços são os únicos valorizados na Igreja, absorvendo e centralizando
tudo? A Igreja não estaria precisando antes de pessoas felizes em suas
escolhas vocacionais, dispostas a servir o Povo de Deus, como leigos, religiosas
e religiosos consagrados, presbíteros, missionários em qualquer estado de
vida?

A estrutura jurídico-hierárquica da Igreja faz de todo o presbítero


necessariamente um clérigo, mas sua identidade primeira é de pastor. O padre
João Batista Libânio diz: ”anuncia-se para o futuro um clero mais do altar, do
sacramento, das celebrações, da organização paroquial bem diferente em sua
visibilidade, do que na presença discreta, do diálogo, da animação, da conversa
confidencial, da orientação espiritual, da palavra profética” (Cenários da Igreja,
30). Quando se afirma: “os irmãos não fazem nada”, a partir de que horizonte
se faz? Trabalho é só celebrar os sacramentos, administrar as paróquias,
coordenar pastorais etc...? Os irmãos leigos teriam que voltar para as cozinhas,
portarias, hortas, sacristias etc..para deixarem de ser inúteis? Se os irmãos
leigos às vezes não tem o que fazer numa paróquia capuchinha não é de se
perguntar se algo não está equivocado no modo de organizá-la que não leva
em conta nossa condição de Ordem de Irmãos? Será que só dos irmãos que se
pode reclamar que não fazem nada? Não é a fraternidade que envia os irmãos
para a missão, para qualquer missão, paróquia ou outras formas de presença?
Não há padres omissos em relação ao ministério e aos trabalhos da
fraternidade?  Ouvimos o relato na última assembléia em que um irmão leigo
está se situando e muito bem, em serviços pastorais não ministeriais. Se
crermos que é a fraternidade que envia os frades para servir em paróquias
pergunta-se: só os frades presbíteros são enviados? Nas origens franciscanas e
capuchinhas a presença ativa a serviço do povo não é exclusiva dos presbíteros
e não se orienta para clericalizar os irmãos leigos. Talvez o definitório provincial
e os serviços de formação inicial e permanente pudessem trabalhar juntos para
que todos os frades, antes da profissão perpétua não só se decidissem pelo
estado de irmãos leigos ou presbíteros, mas também por uma opção pastoral,
serviço, área e atividade de preferência. A disponibilidade não parece ficar
comprometida. Ficaria antes aprimorada. 

É bom saber que os jovens formandos não dão muito ouvido às


insinuações clericalistas que soam como assédio moral, mas não é bom saber
que insinuações partem até de quem tem a responsabilidade de formar para
uma fraternidade de iguais. Parece que se houver respeito pela consciência dos
vocacionados e formandos, em suas diversas etapas, haverá também o cuidado
e a responsabilidade em ajudá-los a discernir sua vocação sem forçá-los ou
condicioná-los.. 

À Província como um todo, mas especialmente aos frades das gerações


que se formaram a partir do CVR, cabe a meu ver a tarefa de aprofundar estas
questões todas e descobrir caminhos de fidelidade ao nosso carisma de Ordem
de Irmãos. Mesmo que pelo Direito Canônico os presbíteros sejam sempre
clérigos, o que nos cabe é julgar e agir com os critérios da minoridade. De 1980
para cá os frades que se formaram em nossa Província fizeram o CVR
essencialmente voltado para a formação franciscana. Aproximando-nos dos
trinta anos de formação pelo CVR parece-me que a Província precisa fazer uma
avaliação para verificar a qualidade da informação e da formação em geral,
mas especialmente franciscana, que foi passada pelo CVR. Nessa tarefa de
avaliar cabe um lugar especial aos frades que se formaram pelo referido curso.

Mais de uma vez já se disse que o CVR mais informou sobre


franciscanismo, história, espiritualidade, valores etc..que formou. Assim, vale
perguntar mais do que por resultados numericamente palpáveis, pelas
convicções com que se vive o franciscanismo e as características de uma
Ordem de irmãos. Irmãos leigos e presbíteros formados pelo CVR que
contribuições oferecem para a vida fraterna local, provincial e para a vida
eclesial? Que valores franciscano-capuchinhos os frades formados pelo CVR
percebem em suas convicções e que lacunas e insuficiências estão também
presentes em sua história pessoal? Que contribuições especificamente
franciscanas os frades do CVR que já passaram pelo governo da Província
ofereceram neste serviço? Os que atuaram na formação, na pastoral, como
párocos, nas missões, na pastoral vocacional, no acompanhamento das
pastorais, da OFS, etc..que qualidade franciscana imprimiram em seus
trabalhos? São os frades do CVR que assumirão cada vez mais o governo da
Província e que serão escolhidos no próximo capítulo. Qual é o sentido e a
consistência da pertença que os envolve? Os frades do CVR que projeto têm
para a Província? Nesta perguntas não vai nenhuma insinuação de dúvida
quanto aos frades do CVR. Pelo contrário, confio neles. São sugestões para
revisão.

A vocação comum à vida consagrada e franciscano-capuchinha, a


vocação comum para a missão, para o serviço pastoral e outras características
que nos são próprias não parecem ter a incidência que precisariam ter na
avaliação da condição de presbíteros e irmãos leigos da Ordem de irmãos que
somos. A nossa presença quase exclusiva em paróquias e o modelo de
presbítero cultivado por muitos frades acabam formando uma espécie de filtro
sacerdotalizante através do qual se relê tudo, consciente ou inconscientemente,
colocando o serviço dos irmãos presbíteros como critério através do qual tudo é
controlado, impedindo que os aspectos típicos da nossa Ordem de irmãos
transpareçam quando se busca fundamentar nossas formas de presença, como
situações concretas para viver o Evangelho e o nosso carisma. Em seu artigo
“Presente e futuro do sacerdócio na Igreja Católica” padre Libânio traz uma
passagem significativa para avaliação: “Numa cultura extremamente voltada
para a exterioridade, vige uma figura de sacerdotes também eles cultivadores
da aparência externa por meio de vestes, do brilho da liturgia e da presença da
mídia. O próprio conteúdo das pregações sofre de superficialidade, ao carregar
o tom na emoção, na imagem. Perde-se tanto no aspecto teológico de
aprofundamento da fé quanto na riqueza simbólica própria da liturgia... Em
reação a tal figura, cresce uma linha oposta. Desloca o polo para a fidelidade à
verdade doutrinal ensinada pelo magistério, especialmente pontifício, e às
prescrições canônicas da Igreja institucional no campo da moral, da liturgia, da
disciplina eclesiástica até as raias do rigorismo ortodoxo, moralista e litúrgico.
Cresce um tipo de ministro ordenado pouco preocupado em responder aos
problemas de hoje, mas voltado para a conservação de fiéis dóceis...  Aposta-
se no purismo doutrinal , moral e disciplinar. (Vida pastoral, janeiro-fevereiro
2010, p 36-37). Aqui não se trata de desvalorizar a subjetividade e muito
menos de exercer patrulhamento ideológico, mas de recordar os critérios da
minoridade franciscano-capuchinha para avaliar o exercício do presbiterato
numa Ordem de irmãos.
Recordo-me sempre a experiência de alguns anos atrás vivida na
Província de Minas Gerais. Após a decisão de não aceitar mais paróquias além
das que já tinha no momento, o que durou por vários triênios, o definitório, por
orientação do capítulo provincial, procurou as dioceses e seus respectivos
responsáveis para verificar a possibilidade de assumir novas paróquias.
Acabaram assumindo duas, como muita dificuldade, mas antes ouviram várias
respostas com este teor: “Os Capuchinhos são bem-vindos! Ficamos felizes em
tê-los na diocese, mas não precisamos deles em paróquias!” Dá o que pensar!
Se as igrejas particulares não precisassem mais de nós nas paróquias ficaria
comprometida a nossa identidade ou teríamos que nos virar e revirar para
rever nossas formas de presença, de serviços ao Povo de Deus, exercendo
nossa criatividade radicada unicamente na condição de Ordem de irmãos,
incluindo as formas de subsistência?

Esta resenha histórica acompanhada de algumas observações pessoais


não pretende ensinar nada a ninguém; só quer ser um convite à reflexão sobre
as convicções e práticas próprias de uma Ordem de irmãos que queremos ser.
Certamente há muita riqueza a ser partilhada. 

Frei Odair Verussa, OFMCAP

*Sacerdotalização. É o termo que Landini, Manselli, Rusconi, Grado


Giovanni Merlo e outros historiadores franciscanos vêem usando em lugar de
clericalização porque parece indicar melhor a progressiva introdução dos frades
menores no organismo eclesiástico e na ação pastoral. Além disso, evita a falsa
alternativa entre o caráter “laical” ou “clerical” da primitiva fraternidade e da
sua evolução em Ordem. A alternativa verdadeira está, para Luigi Pellegrini,
entre a “absoluta precariedade e instabilidade das origens e o sucessivo
processo de estabilização e normalização institucional”.

Bibliografia
- MERLO, Grado Giovanni, Em nome de São Francisco. Petrópolis, Vozes. 2005.

- Os Capuchinhos, Fontes Documentárias e narrativas do primeiro século,


1525-1619, CCB, Brasília, 2007.     

- Uma Ordem de irmãos, A ordem Franciscana é uma fraternidade aberta a


clérigos e leigos. Documentação histórico-jurídica preparada pela Cúria Geral
OFM Cap em 1983.

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