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RelInternac NettoMS 1 PDF
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O TROFÉU DA ANARQUIA
Belo Horizonte,
2011
Marcelo dos Santos Netto
O TROFÉU DA ANARQUIA
Belo Horizonte,
2011
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
CDU: 329.17(7/8)
Marcelo dos Santos Netto
______________________________________________________
Prof. Dr. Otávio Soares Dulci - Orientador
Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PUC Minas)
_______________________________________________________
Profª. Dra. Matilde de Souza
Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PUC Minas)
______________________________________________________
Prof. Dr. Antonio Fernando Mire Canahuati
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
O autor declara sua profunda gratidão para com seus pais pelo
carinho, auxílio e paciência.
- Simón Bolívar
This dissertation analyzes the conception of the Hispanic-American nationalism. It does this
by considering that the process had developed its full meaning along the 1810-1820’s period,
here called “The Trophy of Anarchy” because of the uncertainties that surrounded the
meaning of its conflicts. The scientific strategy adopted here is to interpret the way the
Hispanic American liberators gave meaning to the Trophy of Anarchy. It is done having in
mind the importance of the liberators not only during the studied period, but in the future
concept of Hispanic American nationalism, because of the political and intellectual legacy
they left to the future generations. Methodology includes a Textually-Oriented Discourse
Analysis and sociolinguistic tools. The analyzed text is Simon Bolivar’s “The Jamaica
Letter”, considered the first Hispanic American theory of liberation.
Keywords: Hispanic America; Latin America; Simon Bolívar; independence; Jamaica Letter;
Discourse Analysis; nationalism.
OBSERVAÇÃO
1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................................10
2. MÉTODO E METODOLOGIA........................................................................................14
6. CONCLUSÃO.....................................................................................................................85
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................90
10
1. INTRODUÇÃO
discursivas que tanto auxilia a compreender seu pensamento quanto a compreender a própria
formação da América póscolonial, processo esse que não se isenta de heterogeneidades e
contradições, a exemplo do próprio pensamento bolivariano e da própria confecção da
identidade nacionalista. Isso se observaria em particular na “Carta de Jamaica”, texto célebre
no qual o venezuelano realizou aquela que seria a primeira teoria própria de liberação
nacional latino-americana (LYNCH, 1992, p.92). Nesse texto, é chamativa a forma como o
autor manifesta entusiasmo por uma América desiludida com o império espanhol e unida por
uma ânsia heróica de liberdade; e paradoxalmente reconhece uma América Hispânica “órfã”
da metrópole, fragmentada entre si e obrigada a se emancipar estando ainda despreparada para
o autogoverno, tendo se lançado assim na “anarquía” e no “caos de la revolución”.
Ambas as Américas são simultâneas, o que constitui uma contradição relevante: a
análise desses enunciados em conjunto, com o auxílio de ferramentas sociolinguísticas e
históricas, pode ser uma forma possível para reconstruir o nacionalismo hispano-americano a
partir do sentido dado ao Troféu da Anarquia. Para tal, a abordagem que se propõe será a
Análise de Discurso Textualmente Orientada, que foca a construção identitária a partir de uma
investigação sociológica, histórica e linguístico-textual. O esforço é oportuno, considerando
que Bolívar fora um Libertador, tendo não apenas sido o produto de sua época, como também
um dos principais formadores dela – e, por consequência, do próprio nacionalismo hispano-
americano. Seu legado abrange assim não apenas na Venezuela, como em todo o continente
hispano-americano: suas ideias continuam construindo e sendo construídos pela América na
medida em que são evocadas como objeto de culto, fonte histórica ou justificativa política.
Para isso, a dissertação está pautada sobre o objetivo de oferecer uma interpretação
alternativa ao processo de formação do nacionalismo hispano-americano, partindo para isso
das afirmações de Pierre Chaunu sobre o assunto. De acordo com Chaunu, as explicações
disponíveis para a independência hispano-americana são orientadas por um “esquema
tradicional” condensado nos discursos, nos livros escolares e nas melhores obras com esse
tema (CHAUNU, 1979, p.124). Tais esquemas impõem um paradigma extraído de outros
espaços, culturas e realidades, forçando uma interpretação a partir de experiências
nacionalistas que possivelmente não se repetiram nas colônias hispano-americanas.
Chaunu divide esses esquemas em causas gerais, influências, exemplos e precursores.
As causas gerais envolvem os abusos da metrópole: o monopólio, a exclusão dos cargos
públicos e as opressões que recairiam sobre os “crioulos”, definidos como descendentes
diretos de espanhóis, mas nascidos em solo americano; por sinal, este seria o argumento
preferido dos chefes patriotas para dar às suas reivindicações particulares um senso de
12
[S]e opone a toda construcción orgánica del continente latinoamericano [e] impide
que América española asuma su pasado hispánico, es decir obstaculiza el
establecimiento de las bases históricas de su cultura. Crea la ilusión de una
liberación conseguida, mientras que la independencia política le cuesta internamente
el refuerzo de las estructuras sociales (CHAUNU, 1979, p.123-124).2
1
Sobre as revoluções francesa e estadunidense, cf., p.ex., Anderson (1991); em relação ao pressuposto das
revoltas indígenas, cf. p.ex. Loveman (1999); quanto à influência do Iluminismo, cf. também Anderson
(2001); e sobre a pressão da metrópole e do atrito entre peninsulares e crioulos, cf. Donghi (1976).
2
Sobre o reforço dessas estruturas, cf. Mark Hanson (1974), cujo argumento básico é o de que as nações
póscoloniais na América Latina herdaram o aparato legal, administrativo e organizacional da antiga forma de
organização imperial, realizando assim um processo contraditório de modernização a partir de “dinossauros
administrativos” que seriam renitentes e reativos a mudanças.
13
mesmo o torna possível. Tal como nas reflexões de Claudio Lomnitz, o nacionalismo peri-
férico nasceria de um impulso contraditório entre a necessidade de se conceber um estado
moderno e a de resguardar a tradição necessária à legitimidade (LOMNITZ, 2001, p.128).
Apesar disso, é preciso esclarecer que o objetivo da presente dissertação não se pauta
exatamente por se antepor aos “esquemas tradicionais”. Negar a veracidade desses não se
justifica, considerando que uma noção interpretativa da realidade tornaria o conceito de
“falso” dificilmente configurável. Dessa forma, o que se propõe seria uma explicação mais
útil à América Latina, considerando para isso que a história seria uma organização do passado
a partir das questões do presente, e que a tendência de superar esses esquemas tradicionais já
estaria se manifestando no trabalho de alguns latino-americanistas (CHAUNU, 1979, p.124).
Nesse sentido, cabe mencionar as inquietações de ensaístas como o venezuelano Carlos
Rangel (1988) e o mexicano Octavio Paz (1976).
Ora, a disciplina das Relações Internacionais possui um importante papel nesse
sentido. Suas ferramentas, conceitos e objeto de estudo permitem problematizar a formação
das identidades nacionais, tarefa da qual se beneficiaria por ampliar o próprio alcance
explicativo, o que seria possível quando apela a diversas disciplinas do conhecimento. Isso
seria possível na medida em que considere as identidades como um processo, e não como um
pressuposto ontológico ou uma origem coerente. Há motivos para se concluir que o mais útil
para a América Latina não será trocar um esquema de causalidade por outro alternativo: o
melhor será avaliar essas interpretações contraditórias em sua totalidade. Daí a sugestão de
abordagem com base em Fairclough e Foucault.
14
2. MÉTODO E METODOLOGIA
em termos desse “conhecimento” (BERGER; LUCKMANN, 2008, p.92). Isso significa dizer
que a Análise do Discurso deve considerar as instituições em que o discurso foi elaborado,
bem como o histórico que permitiu a criação dessas instituições, porque isso torna possível
entender os termos que o discurso utiliza para se expressar.
Ora, a abordagem aqui proposta enfatiza o caráter linguístico dessa realidade
sociológica e intersubjetiva. Considera-se assim que a língua não apenas reflete essa
realidade, como também serve como estrutura para a construção e transformação dela. A
realidade humana será assim entendida como instituições derivadas da língua, e das quais se
originam a ordem social; a ordem social, como discurso; e o discurso, como um fenômeno
essencialmente sociolinguístico, baseado em ideologias específicas.
2.1 Discurso
3
[I]l est évident que les énoncés n’existen pas au sens óu une langue existe”; [s]’il n’y avait pas d’énoncés, la
langue n’existerait pas; mais aucun énoncé n’est indispensable pour que la langue existe; [l]a langue n’existe
qu’à titre de système de construction pour des énoncés possibles; mais d’um autre côté, elle n’existe qu’à titre
de description (plus ou moins exhaustive) obtenue sur un ensemble d’énoncés réels.
4
[D]iscourse is in an active relation to reality, [and] language signifies reality in the sense of constructing
meanings for it.
17
5
Dans la vie des individus et des sociétés, le langage est un facteurs plus important qu’aucun autres. Il serait
inadmissible que son étude restât l’affaire de quelques spécialistes ; en fait, tout le monde s’en occupe peu ou
prou.
18
assim ligação direta entre um objeto e sua descrição. Isso significa que a língua é um
fenômeno social e coletivo, não havendo produção de sistemas linguísticos possível a partir
do indivíduo (SAUSSURE, 1995, pp.100-101; p.157). Igualmente relevante é a imutabi-
lidade: a ligação entre significado e significante que edifica o signo tende a ser gerada e
depois perpetuada pela coletividade em que fora criada, recebendo assim reforço do tempo.
Esse caráter imutável convive com o da mutabilidade: para perpetuar-se, o signo deve passar
por adaptações, o que torna complementares o caráter mutável e imutável do símbolo (SAUS-
SURE, 1995, pp.105; 109).
Quando considerado em sua totalidade, a produção de sentido ocorre basicamente na
medida em que o signo seja imbuído de um valor. Isso significa que a existência simbológica
somente se torna possível em um sistema no qual o sentido é fabricado sem termos positivos,
ou seja, a partir daquilo que não é. Nas palavras de Saussure: “Os valores da escrita não
surgem de outra forma que não seja pela oposição recíproca deles em meio a um sistema
definido (...)” 6; eis por que “na língua, não há nada além da diferença” (SAUSSURE, 1995,
pp.165-166, tradução nossa)7. Uma importante conclusão sobre as identidades nacionais pode
ser inferida daqui: essas surgirão a partir da diferenciação e da negação.
6
Les valeurs de l’écriture n’agissent que par leur opposition réciproque au sein d’un système defini (...).
7
[D]ans la langue il n’y a que des différences.
19
A prática política e a prática ideológica não são independentes, porque ideologia são
sentidos gerados dentro de relações de poder em uma dimensão de exercício de
poder e de luta pelo poder. Dessa forma, a prática política é a categoria superior.
Além disso, discursos como prática política não são apenas um lugar de luta pelo
poder, mas também um marco na luta pelo poder: a prática discursiva utiliza
convenções que naturalizam certas formas de relações de poder e ideologias, e tais
convenções por si sós, e a maneira pelas quais são articuladas, são um foco de luta.
(FAIRCLOUGH, 2006, p.67, tradução nossa)8
Vale observar que essa é uma visão compatível com a ordem de discurso proposta por
Foucault, para quem “discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas
de dominação, mas aquilo pelo que se luta, o poder do qual procura-se apoderar” (FOU-
CAULT, 1971, p.12, tradução nossa)9. A própria identidade nacional será assim não apenas
um objeto de luta, como também o próprio instrumento de luta, processo que não se isenta de
heterogeneidades que, longe de impedir, caracterizam e tornam possíveis as identidades daí
surgidas, através das contraposições ideológicas tipicamente discursivas.
8
[P]olitical and ideological practice are not independent of each other, for ideology is significations generated
within power relations as a dimension of the exercise of power and struggle over power. Thus political
practice is the superordinate category. Furthermore, discourse as a political practice is not only a site of power
struggle, but also a stake in power struggle: discursive practice draws upon conventions which naturalize
particular power relations and ideologies, and these conventions themselves, and the ways in which they are
articulated, are a focus of struggle.
9
Le discours n'est pas simplement ce qui traduit les luttes ou les systèmes de domination, mais ce pour quoi, ce
par quoi on lutte, le pouvoir dont on cherche à s'emparer.
21
como a possibilidade de a ideologia ser rejeitada por essas mesmas pessoas. Eis por que
Fairclough prefere a concepção de que a ideologia está localizada tanto nas estruturas (ou
ordens do discurso) que constituem o resultado de eventos passados como nas condições para
os eventos contemporâneos e nos próprios eventos quando reproduzem e transformam as
estruturas (FAIRCLOUGH, 2006, p.187). Portanto, analisar a ideologia como evento linguís-
tico demanda avaliar igualmente a maneira como a ideologia está disponível no repertório
cultural e nas relações sociais.
deve ser apartado para que se libere enfim a verdade, [a contradição] constitui por si só sua
existência; é a partir dela que [o discurso] emerge” (FOUCAULT, 1969, p.197, tradução
nossa)10. A mesma ideia pode ser inferida de Fairclough, considerando suas observações
sobre a contradição discursiva.
Para definir com mais clareza essa proposição, será utilizada a formulação de Tzvetan
Todorov sobre a soberania como produto dialético da confecção de identidades. O método
substitui assim o conceito de hegemonia proposto por Fairclough, opção justificada pelas
necessidades impostas pelo próprio objeto de estudo. As reflexões todorovianas são compa-
tíveis com as de Fairclough: ambos concebem a formação dos conceitos, das identidades, do
discurso e da própria ideologia através de contraposições; estão igualmente de acordo com o
caráter comparativo, socializado e competitivo do processo dialético; e também assumem a
possibilidade de se analisar o discurso não apenas de forma textual, como também de maneira
imagética e fonética, ampliando as possibilidades científicas e metodológicas dessa abor-
dagem científica11.
O esquema apresentado por Todorov parte do conceito de “dialética do senhor e do
escravo” proposto por Friedrich Hegel e esquematizado por Aleksandr Kojève. De acordo
com Todorov, esse seria um dos “mitos fundadores” necessários para explicar a origem das
identidades, não sendo provável, mas pertinente para explicar e esquematizar esse processo
(TODOROV, 1996, p.36). A indicada pertinência interessa ao trabalho aqui proposto: na
dialética Hegel-Kojève, a identidade surge a partir de uma relativização do Eu para com
outras identidades consideradas externas e muitas vezes ameaçadoras. Isso ocorre da mesma
10
[L]oin d’être apparence ou accident du discours, loin d’être ce dont Il fault l’affranchir pour qu’il libere enfin
as verité déployée, constitue lui-même de son existence: c’est à partir d’elle qu’il emerge (...). La contradiction
fonctionne alors, au fil du discours, comme le principe de son historicité.
11
Existe ainda outro motivo para se realizar essa substituição: a própria necessidade de superar visões
tendenciosas na análise do Troféu da Anarquia. Como observado, um dos objetivos propostos é o de evitar os
“esquemas tradicionais” da libertação latino-americana. Isso implica superar a noção de hegemonia de
Antonio Gramsci, utilizada por Fairclough. Existem razões para se concluir que as análises sobre hegemonia
são tendenciosas: na medida em que haja um discurso “hegemônico”, haverá também um discurso “anti-
hegemônico” que tende a ser considerado legítimo, porque as hegemonias seriam necessariamente “tirânicas”
e “opressoras”, a exemplo das metrópoles. O conceito conduziria a pesquisa aos esquemas tradicionais que se
quer evitar; daí a pertinência da substituição do conceito de hegemonia pelo de “soberania”.
24
forma que o signo surge a partir de díades baseadas em diferença e valor evidenciados pela
comparação12.
De acordo com Todorov, o impulso da dialética Hegel-Kojève ocorre porque o Eu
depende do Outro para que exista, compreenda a si mesmo e possa ser compreendido. A
principal dependência nesse sentido seria quanto ao reconhecimento que o Eu precisa obter do
Outro, entendendo-se por “reconhecimento” a aquiescência que uma entidade concede à
existência de outra (TODOROV, 1996, p.33-34). Na dialética, a existência do Eu precisa
desse reconhecimento cedido pelo Outro, ou simplesmente não poderá existir: a vida humana
é basicamente a vida social, e a vida social torna-se possível através do reconhecimento. A
tragédia dialética ocorre porque o Eu pede reconhecimento ao Outro da mesma forma que o
Outro o solicita, estando ambos dispostos a sacrificar a própria vida em nome dessa glória.
Eis por que o reconhecimento gera um conflito extremo: fazer-se reconhecer-se é impor-se
(TORODOV, 1996, p.35).
O pensamento todoroviano admite que esse processo não ocorre somente através da
agressão. Há casos em que a sujeição a uma hierarquia – ou uma ordem do discurso – fará
com que o sujeito ou o grupo exista na medida em que usufrua de aceitação; nesse caso, o
reconhecimento pode envolver até mesmo três entidades, onde a primeira agredirá a segunda
para obter o reconhecimento da terceira. Entretanto, mesmo Todorov admite que, uma vez
aplicada à soberania, a busca do reconhecimento será necessariamente violenta, porque a
menor concessão que se abre ao Outro implica ameaça à identidade nesse contexto. Além
disso, envolverá duas entidades distintas, como dois cavalheiros em uma luta de morte.
No entanto, mesmo nesse caso extremo o reconhecimento depende da concessão dada
pelo antagonista. Eliminar o Outro, portanto, seria uma forma de eliminar o próprio Eu,
porque frustra a extração da soberania necessária. Nesse caso, a identidade já não faria
sentido, uma vez que perderia a alteridade que torna possível estabelecer a diferença e o valor.
A situação é facilmente traduzida em termos linguísticos: como um signo, a identidade não
poderia estabelecer a diferença de que depende para existir. Com a destruição do outro, o
fenômeno social seria impossibilitado pela ausência de dialética. A única chance nesse sentido
12
Não convém desenvolver um debate sobre rótulos; mas cabe aqui observar que a dialética Hegel-Kojève pode
ser classificada como construtivista, sendo assim outra vez compatível com o pensamento faircloughiano.
Afinal, nela a configuração da identidade depende de interações sociais, não havendo identidade
autorreferente. A mesma compatibilidade pode ser verificada também entre essa dialética e as noções
sociolinguísticas: os sentidos socialmente produzidos – e por consequência as identidades – surgirão também
através de díades e diferenciações arbitrárias, comparativas e valorativas. Ademais, a dialética senhor-escravo
pode também ser aplicada às noções de ideologia e de identidade sugeridas por Fairclough.
25
seria a de ter a soberania reconhecida pelo Outro – o que também seria indesejável, pois com-
prometeria a possibilidade de soberania ao anular a alteridade (cf. TODOROV, 1996, p.35).
Disso se infere que a obtenção da soberania fica assim condenada à “frustração”: um
resultado dialético extremo – a destruição da alteridade pela força, ou a eliminação soberana
da alteridade pelo reconhecimento concedido – anula invariavelmente o contraponto que o Eu
precisa obter do Outro. Dessa forma, será essa frustração que contraditoriamente tornará
possível à identidade surgir e existir: na medida em que não seja plenamente reconhecida, o
Eu justifica sua própria existência pela ameaça representada pelo Outro à soberania,
perpetuando assim o mecanismo dialético. Disso se infere que a dialética não produz a
identidade: a dialética é a identidade.
Todorov aplica o esquema Hegel-Kojève ao surgimento da identidade individual; mas,
sob um ponto de vista faircloughiano, o esquema pode ser aplicado também a grupos sociais,
que serão configurados em uma relação de diferenciação dialética, inseridos em um contexto
de luta pelo poder. É uma afirmação linguisticamente plausível, considerando a visão fair-
cloughiana de que a língua é a estrutura social maior (cf. FAIRCLOUGH, 2004, pp.23-24).
2.5 Metodologia
formação; a unidade de ação em que ocorreu a formação do discurso; e as fontes que serão
analisadas. Dessa maneira, fica estabelecido que o tema será a formação do nacionalismo
hispano-americano; a unidade de tempo fica estabelecida entre 1810 e 1820; a unidade de
espaço restringe-se às colônias hispano-americanas; a unidade de ação define-se como o
Troféu da Anarquia, ou os conflitos ocorridos ao longo da unidade de tempo e de espaço; e a
fonte será a Carta de Jamaica, texto célebre de Simon Bolívar, cuja importância para o
pensamento emancipacionista na América Latina permite inferir o caráter constitutivo desse
texto não apenas na identidade nacional venezuelana, como de todo o continente.
Considera-se que o discurso bolivariano foi constrangido pelas práticas sociais e
discursivas da época, bem como buscara transformá-las ativamente. Além disso, constitui
parte do legado deixado pelo Troféu da Anarquia, de forma que possui efeito constituinte em
longo prazo sobre as identidades hispano-americanas. Ora, a escolha das estratégias –
intertextualidade, interdiscursividade, metáfora, ideologia-dialética, significado das palavras –
justifica-se pela associação dessas manifestações linguísticas com a formação do ethos
discursivo aqui buscado. Postas essas considerações, a dissertação optará por uma descrição
alongada da Carta de Jamaica, e as partes a serem analisadas serão escolhidas ao longo dessa
exposição. O critério para a análise será as passagens relacionadas com o ethos nacionalista
hispano-americano. Tal abordagem permitirá analisar todos os elementos em conjunto, tarefa
facilitada pela limitação do corpus a um único texto: a “Carta de Jamaica”. Por fim, observe-
se que a análise investigará não apenas o sentido direto do discurso, como também o sentido
indireto. Ambos serão considerados em sinergia, conforme o ponto de vista de Tzvetan
Todorov (1978, p.16), que são compatíveis com a mencionada proposta faircloughiana de que
os textos devem ser estudados não apenas em relação ao que está dito, como também ao que
está implícito, ou previamente assumido.
29
TEXTO
Pontos críticos
PRÁTICA Ethos
DISCURSIVA Intertextualidade
Interdiscursividade
Metáforas
PRÁTICA Palavras
SOCIAL
História
Produção
Recepção
Distribuição
Contexto
Sociologia
Conhecimento e crença
Identidades sociais
Relações sociais
13
Essa perspectiva “autorreferente” impõe ainda o desafio de isolar a América Latina do debate nacionalista
mais amplo. Devido às peculiaridades latino-americanas, os principais teóricos do nacionalismo – Ernest
Gellner, Anthony Smith, John Breuilly e John Hutchinson, por exemplo – ignoram ou simplesmente legam o
caso da América Hispânica às notas de rodapé, admitindo que suas teorias não serviriam ou serviriam apenas
parcialmente para explicar o caso, mas ao mesmo tempo não as adaptando para tal (cf. MILLER, 2006,
pp.203).
32
especificação é necessária: muitos contatos não são marcados pela diferenciação nacionalista,
mesmo quando essa exista de fato (LOMNITZ, 2001, p.129).
Portanto, o nacionalismo está restrito a objetos específicos, não envolvendo toda e
qualquer relação. Tais objetos evidenciam-se pelo convívio, cuja consequência seria a
especificação de bens inalienáveis, conceito que Lomnitz toma emprestado de Weiners.
Segundo esse conceito, o intercâmbio não criaria apenas sistemas de solidariedade, como
também de diferenciação, baseado naquilo que se julga desonroso ou ilógico compartilhar
(WEINERS apud LOMNITZ, 2001, p.129-130). Em outras palavras, na medida em que se
relacionam, as culturas evidenciam entre si objetos cujo compartilhamento seria tido como
intolerável, conclusão elaborada paradoxalmente com base em direitos e deveres comuns.
Lomnitz procura especificar essas relações e objetos tomando por base o que chama de
molduras de contato, definidas como contextos relacionais nos quais a identidade nacional
será produzida. Tais molduras compõem zonas de contato na medida em que abriguem uma
classe internamente homogênea de instituições. As zonas de contato, por sua vez, estão
integradas em uma região mais ampla de produção identitária nacional, na qual se inclui uma
zona de instituições estatais que definem direitos e deveres para cidadãos e produz imagens e
narrativas de nacionalidade (LOMNITZ, 2001, p.129). Daí a forma como o autor define o
nacionalismo como um discurso produtivo que se realiza através de instituições, e não pela
integração horizontal de indivíduos (cf. LOMNITZ, 2001, p.13).
Tal discurso tem por consequência a edificação de um estrangeiro, baseado para isso
nos bens considerados inalienáveis. Lomnitz descreve assim quatro zonas de contato
essenciais à concepção nacionalista: material, ideológica, modernizadora e civilizatória. A
zona material diz respeito à posse política de recursos econômicos. Nesse caso, são definidos
como estrangeiros todos aqueles que não deveriam usufruir desses recursos. A zona ideo-
lógica resulta da tensão entre “tradição” e da “modernidade”. Nesse contexto, a tradição será
considerada estrangeira na medida em que não se concilie com o projeto modernizador, que
buscará romper com o passado a partir de uma origem tradicional alternativa. A zona
modernizadora inverte o quadro ideológico: nessa o contato surge na medida em que a
modernidade seja vista como um desafio à tradição nacionalista, tendo por resultado a
“estrangeirização” de todo impulso modernizador. E a zona de contato civilizatória deriva das
relações culturais entre as coletividades, a partir das quais alguns produtos serão tidos como
estrangeiros e eventualmente até mesmo repelidos (LOMNITZ, 2001, p.130-140).
Aqui se torna possível e necessário realizar uma “associação” dos termos de Lomnitz:
a evidência dos bens inalienáveis será promovida através da profundidade e do silêncio
34
Em termos gerais, Benedict Anderson define a nação como uma comunidade política
imaginada como limitada e soberana de forma inerente (ANDERSON, 1991, p.6). Essa
comunidade é imaginada porque mesmo os membros da menor delas nunca terão contato
direto ou indireto com todos os demais, ainda que a imagem de comunhão esteja no
35
pensamento de todos. Também é limitada porque mesmo a mais larga delas possui fronteiras
finitas, além das quais ficam outras nações. A nação é igualmente soberana porque o conceito
teria surgido em uma época na qual o Iluminismo e a Revolução destronavam a legitimidade
divina dos reinos dinásticos. E finalmente é comunitária porque, apesar da desigualdade e
exploração que prevalece em cada uma, a nação é concebida como uma unidade de
camaradagem profunda e horizontal (ANDERSON, 1991, p.6-7).
Ora, Anderson acredita que a experiência nacionalista hispano-americana tenha sido
pioneira e mesmo precoce, servindo de modelo para experiências seguintes. Os protagonistas
do processo teriam sido os crioulos, descendentes diretos de espanhóis que viviam em
situação ambígua, porque nasceram em solo colonial e sofreriam por isso alguma
discriminação por parte da metrópole. Para explicar o ocorrido, Anderson concordará assim
com muitos dos esquemas tradicionais de independência mencionados por Pierre Chaunu:
No entanto, afirma Anderson, isso não basta para tornar as novas nações emocio-
nalmente possíveis e politicamente viáveis. Dessa forma, o autor prossegue seu raciocínio a
partir das características da administração colonial, o que permite incluir sua interpretação nos
modelos “contemporâneos” de explicação nacionalista mencionados por Lomnitz. Três
aspectos da administração teriam contribuído para formar na América Hispânica um
pensamento emancipatório, não obstante os movimentos derivados desse pensamento terem
14
The two factors most commonly adduced in explanation are the tightening of Madrid’s control and the spread
of the liberalizing ideas of the Enlightenment in the latter half of the eighteenth century. It is undoubtedly true
that the policies pursued by the capable ‘enlightened despot’ Carlos III (r.1759-1788) increasingly frustrated,
angered, and alarmed the upper creole classes. In what has sometimes sardonically been called the second
conquest of the Americas, Madrid imposed new taxes, made their collection more efficient, enforced
metropolitan commercial monopolies, centralized administrative hierarchies, and promoted a heavy
immigration of peninsulares [espanhóis nascidos na metrópole e enviados à colônia para ocupar cargos
privilegiados]. (…) The success of the Thirteen Colonies’ revolt at the end of the 1770s, and the onset of the
French Revolution at the end of the 1780s, did not fail to exert a powerful influence. Nothing confirms this
“cultural revolution” more than the pervasive republicanism of the newly independent communities.
36
sido conservadores em muitos sentidos (ANDERSON, 1991, p.46). São esses aspectos: a
organização do espaço, a organização soberana dos súditos e a promoção da imprensa.
Sobre a organização do espaço, Anderson afirma que a divisão imperial das colônias
teria sido de fato arbitrária; mas isso não as impediria de gerar realidades firmes e
autorreferentes a partir de fatores geográficos, políticos e históricos. A própria vastidão do
império hispano-americano, a enorme variedade climática e sobretudo a enorme dificuldade
de comunicações confeririam a essas unidades características endógenas; além disso, as
políticas comerciais de Madri tiveram o efeito de tornar as unidades administrativas em zonas
econômicas separadas, o que tornaria fácil as conceber como unidades independentes entre si
e independentes da própria metrópole (ANDERSON, 1991, p. 52).
Quanto à organização soberana dos súditos, os crioulos americanos geraram um
problema único à Espanha: pela primeira vez ela teria de lidar com um vasto número de
nacionais que viviam fora da Europa. Os crioulos constituíram assim uma classe ao mesmo
tempo explorada e distinta, sendo inferiorizados como servos, mas ao mesmo tempo
estimados como importantes elementos de domínio colonial (ANDERSON, 1991, p.58). Para
manter os crioulos sob controle, a Coroa espanhola teria executado um projeto “maquia-
vélico” que os incluía como súditos imperiais plenos, ao mesmo tempo em que os apartava
geograficamente entre si e da metrópole. Além disso, teria os impedido de controlar as
colônias na medida em que fornecia os cargos mais altos aos espanhóis nascidos na metrópole
– os peninsulares.
Uma das principais bases para este projeto “maquiavélico”, segundo Anderson, adveio
do próprio iluminismo: autores influentes como Rousseau e Herder afirmariam que a
“ecologia” geográfica determinaria as características das personalidades e culturas. Os
crioulos foram assim considerados inferiores porque estavam submetidos a uma terra inóspita
e inviável como as Américas, não devendo assim as organizar (ANDERSON, 1991, p.60).
Como resultado, os crioulos teriam se afastado cada vez mais da metrópole, porque o próprio
Império os enraizaria cada vez mais à terra, mas ao mesmo tempo os impediria de governar.
Somado a isso, a promoção da imprensa cumpriria papel essencial na formação de “tempos” e
“espaços” próprios nas colônias: a temática e produção dos jornais, que eram controladas pela
metrópole, promoveriam na mentalidade dos crioulos o provincianismo e a distinção entre
metrópole e colônias, bem como entre as colônias, baseada em construções estilísticas que
reforçariam essa imagem (ANDERSON, 1991, pp.62-63).
37
estaria na própria base da categoria de “crioulo”, que teria emergido na metade do século
XVI, mas que manteria uma relação ambígua para com a hispanidade ao longo do período
colonial (LOMNITZ, 2001, P.9). Dessa forma, Lomnitz prefere afirmar que o nacionalismo
hispano-americano teria sido anterior à independência, remontando ao passado hispânico.
Conhecer o nacionalismo hispano-americano demanda refazer o caminho a partir do próprio
nacionalismo hispânico, que teria começado ainda durante o século XVI.
3.2.3 Reconquista
tãos novos que celebrariam secretamente os antigos cultos. Isso levou Isabela I e Fernando II
a lançarem pragmáticas significantes no ano de 1501. Em uma destas, os reis católicos
ordenam e mandam que “ningun reconciliado por el dicho delito de herejía: o hijo: o nieto de
quemado: o condenado por el dicho delicto... pueda sin nuestra licencia y special mandato...
tener ningun ofício público ni de honra en todos los dichos nuestros reynos y señorios”
(SALA, 1832, p.26). A pureza de sangue começaria a ganhar assim legalidade.
Eis como Claudio Lomnitz conclui que os certificados de pureza sanguínea inaugu-
raram a identidade nacional hispânica, uma vez que eram necessários para adentrar os
escritórios, a Igreja ou certas guildas do reino. Embora os proprietários destes certificados
fossem definidos não como espanhóis, mas christianos viejos, estes comporiam de qualquer
forma uma comunidade de sangue e crença que teria acesso privilegiado ao estado
(LOMNITZ, 2001, p.16). O reforço desta identidade foi reforçado com a descoberta das
Índias, que posteriormente receberiam o nome de Américas. O conceito de pátria foi
amadurecido de maneira quase concomitante com o de nação sanguínea, na medida em que
ambos de certa forma remetem à terra em que se nasceu, tal como será analisado.
os reis católicos Isabel e Fernando determinam na lei XVI que “ningún reconciliado, ni hijo
del que públicamente huviere traído sambenito, ni hijo, ni nieto de quemado, o condenado por
herética pravedad, ni apostasía por línea masculina, ni femenina, pueda passar, ni passe a
nuestras Indias, ni islas adyacentes sin nuestro permiso” (MADRI, 1841, p.1). Com isso,
rigorosos certificados de sangue puro foram requisitados para se ter acesso ao Novo Mundo, o
que resultaria numa exportação da hispanicidade.
Lomnitz sugere que o conceito de español baseou-se profundamente nestas fórmulas
cristianizadas. Esse seria importante para organizar a vida política nas Índias, onde a
autoridade espanhola envolvia tutela moral e religiosa sobre outras categorias distintas de
gente, tais como “índios”, “negros”, “mulatos” e “mestiços”; e também servia como
diferenciação de europeus extranjeros (LOMNITZ, 2001, p.17). Havia neste contrato uma
clara hierarquização “racial”, alicerçada no “dever e direito” hispânicos de divulgar a fé
verdadeira. Uma série de passagens das Leyes de Índias determina esta hierarquia e estabelece
as diferenças (cf. para alguns exemplos, LOMNITZ, 2001, p.17).
Dessa forma, conclui Lomnitz, a noção de espanhol foi legal e formalmente definida
como uma questão de descendência, que passou a ser um importante elemento da prática
social nacionalista. Isso significa que os crioulos eram nacionais; eis como a Política Indiana
permite concluir que “no se puede dudar que [los criollos] sean verdaderos españoles, y como
tales hayan de gozar sus derechos, honras y privilegios, y ser juzgados por ellos”
(SOLÓRZANO, p.209). No entanto, Lomnitz aponta um contexto discriminatório entre os
espanhóis nascidos nas Índias e os nascidos na Espanha, iniciado desde meados do século
XVI a partir da colonização. Esse processo não foi ocasionado com base no sangue; antes,
surgiu na suposta influência da terra sobre as características, feições e fisionomia dos nascidos
nas Índias (LOMNITZ, 2001, p.17). A discussão sobre o nacionalismo hispano-americano
encontra aqui um ponto nevrálgico: esse é o argumento mais utilizado para justificar a
existência de uma “guerra de independência” a partir do atrito entre colônia e metrópole.
Diversos autores afirmam que a identidade dos crioulos hispânicos fora edificada a
partir do fato de terem nascido nas colônias (cf., p.ex., ANDERSON, 1991; LOMNITZ, 2001;
LOVEMAN, 1999; HOBSBAWN, 1995; LYNCH, 1992). O argumento básico é o de que,
41
embora o sangue espanhol lhes garantisse a condição de súditos, o fato de terem nascido nas
colônias deterioraria essa condição. Uma das “causas” mais mencionadas disso estaria naquilo
que Antonello Gerbi descreve como um “preconceito geográfico” surgido ainda na época do
Iluminismo, em parte como reação ao deslumbramento de mitos como o do “bom selvagem”
ou do “paraíso terrestre” nas Américas (GERBI, 1996, p. 148-150). O pensamento do jesuíta
Cornelius de Pauw fora emblemático desse preconceito. Em sua obra Recherches
philosophiques sur les Américains, o autor observa que os americanos teriam mentalidade e
físico inferiores ao mais fraco dos europeus. A explicação estaria na má influência da
geografia americana sobre a constituição do ser humano: “a grande umidade da atmosfera na
América, e a inacreditável quantidade de água empoçada, depositada sobre a superfície...
[são] a maior parte das causas que viciaram e depravaram o temperamento dos habitantes [das
Américas]16” (DE PAUW, 1768, p.23).
Gerbi conclui assim que o nascimento em solo americano cancelava qualquer
privilégio conquistado ou herdado pela descendência sanguínea, fato que teria causado em
longo prazo um rompimento para com a metrópole (GERBI, 1996, p.151). Eis como até
mesmo Lomnitz se permite concluir que os crioulos teriam sido excluídos dos cargos por
serem considerados incompetentes para tal; daí o envio de peninsulares às colônias, o que
teria frustrado as elites locais, criando um atrito inconciliável entre os colonos e os
peninsulares – e talvez até mesmo entre os colonos e a própria metrópole (LOMNITZ, 2001,
p.125). Dessa forma, a aplicação do conceito de nación seria problemática na América Latina:
tal como visto acima, o autor prefere utilizar o de patria, na medida em que a autoafirmação
dos crioulos implicaria necessariamente a exaltação da terra-mãe.
Entretanto, uma discussão completa do assunto exige anunciar a possibilidade de este
atrito não ter sido tão determinante assim. Sobre a exclusão dos cargos, Campbell afirma que,
com exceção dos vicerreinados, os crioulos estavam bem distribuídos em funções
administrativas, militares e judiciais privilegiadas. Isso fora possibilitado pela venda de cargos
a crioulos abastados, solução encontrada pela metrópole para lidar com sua crise financeira
durante o século XVIII (CAMPBELL, 1972, p.5)17. Pierre Chaunu aponta também a
possibilidade de os próprios crioulos terem apoiado essa discriminação, bem como a
perspectiva de que a imigração de peninsulares para as colônias não tenha sido mais intensa
16
La grande humidité de l’atmosphère en Amérique, & l’incroyable quantité d'eaux croupiffantes répondues fur
sa surface… [sont] la plupart des causes qui y avoient vicié & dépravé le tempérament des habitants [des
Amériques].
17
Cf. também Burkholder (1972), sobre a “peninsularização de crioulos” na prestigiosa audiência de Lima,
localizada no vicerreinado do Peru, centro da administração colonial.
42
no século XVIII do que nos séculos XVII ou XVI. Além disso, argumenta Chaunu, a
imigração ilegal de peninsulares pode ter sido muito mais relevante do que a oficial; e os
crioulos tiveram vantagens econômicas inegáveis sobre os peninsulares, o que teria
empurrado esses a uma esperada corrida pelos cargos mais privilegiados, havendo assim mais
retórica do que fatos nessa divisão clássica entre crioulos e peninsulares (CHAUNU, 1979,
p135-137).
É preciso considerar também a chance de a discriminação “antiamericana” ter sido
impopular não apenas na América Hispânica, como também na própria metrópole. É o que se
pode inferir da maneira como os peninsulares a recusaram antes mesmo de os crioulos toma-
rem conhecimento delas (GERBI, 1996, p.153). O padre Benito Jerónimo Feijoo y Monte-
negro seria exemplar dessa rejeição. Em seu ensaio Españoles Americanos, Feijoo “desmen-
te” a ideia de que os crioulos chegariam com mais rapidez à velhice e decrepitude, citando
para isso hispano-americanos que conheceu pessoalmente (FEIJOO, 1863, p.155). Além
disso, em Mapa Intelectual y Cotejo de Naciones, Feijoo afirma que “muchos han observado
que los criollos, o hijo de españoles que nacen en aquella tierra [Índias] son de más viveza ó
agilidad intelectual que los que produce España” (FEIJOO, 1863, p.90).
Dessa forma, é possível que a exaltação patriótica da terra teria sido central aos
crioulos não como argumento antiimperial ou antipeninsular, mas porque lhes tornaria
possível reclamar inteiramente a herança do sangue (LOMNITZ, 2001, p.17). Havia assim até
mesmo uma dificuldade de o crioulo se identificar plenamente com a terra: essa seria um meio
de se alcançar a identidade hispânica imperial, e não um fim18. Portanto, interpretações que
insistam em se referir a essa discriminação provavelmente atendem à necessidade de se
explicar o nacionalismo hispano-americano a partir do rompimento para com a metrópole,
pagando assim tributos à necessidade de coerência nacionalista.
Dessa forma, a partir do próprio Lomnitz, a dissertação dará preferência à ideia de que
a exaltação da terra-mãe fora inicialmente uma forma de os crioulos se integrarem como
súditos imperiais; em seguida, com a queda da metrópole espanhola, o patriotismo teria
atendido à necessidade de se preencher o vazio referencial deixado às colônias, tornando
possível às novas nações se tornarem possíveis. O patriotismo foi assim o produto cultural da
independência, e não sua precondição (LOMNITZ, 2001, p.33): uma perspectiva que se torna
18
Essa proposição remete à clássica distinção entre as “colônias de exploração” hispano-americanas e as
“colônias de povoamento” anglo-americanas. Aos estadunidenses possivelmente teria sido mais fácil
identificar-se com a terra do que aos hispânicos, que viam na terra como algo a ser explorado para se obter
prestígio e respeito junto à corte hispânica.
43
19
[C]ompetition between states, and a consciousness of relative decline, were required to promote and justify
programs of economic and administrative reforms. As a result this mode of imaging time had long been
available to the elites, and cannot of itself explain the rise of Spanish-American nationalism, although it does
suggest an earlier sort of Spanish collective consciousness.
45
entre razão e fé. O corolário dessa união foi a ideia de que a Igreja era um “corpo místico” e o
Estado, sendo a mais perfeita associação humana, era um “corpo político e moral” (MORSE,
1988, p.43). Dessa forma, o ordenamento social era formado de início por consenso popular,
mas sempre com a palavra final do rei, que agia em nome dos súditos como o melhor e mais
apto agente para tais funções (MORSE, 1988, p55). Nesse sentido, a ideia de liberdade é a de
servidão voluntária ao poder constituído. Por consequência, explica Morse, a liberdade
consiste na prática em um Estado destinado a regular a ordem através da justiça, que premia o
mérito e castiga a delinquência. A comunidade política e suas estruturas são concebidas assim
de forma estática: a tarefa do governo é manter a segurança e a estabilidade em um mundo
movimentado, evitando também a repressão severa em um mundo em que o individualismo
afirmava-se cada vez mais (MORSE, 1988, p.68). As reformas bourbônicas foram trabalhadas
nesse sentido, amadurecendo plenamente assim a partir do século XVIII.
burguesa (LOMNITZ, 2001, p.25). Outro aspecto importantíssimo seria a forma como Carlos
III associaria a nação com a sujeição comum ao rei, de forma a diminuir diferenças de castas
em favor de uma categoria ampla e homogênea de “súditos”. Dessa forma, uma identificação
entre a nação e a soberania teria sido construída pelos monarcas absolutos espanhóis
(LOMNITZ, 2001, p.9).
O resultado dessas reformas poderia ser considerado ambíguo em muitos sentidos. Por
um lado, haveria o reforço de uma Grã-Espanha composta pela Ibéria e pelas Índias em
conjunto. Nesse sentido, o império seria formado por uma população de súditos que tenderia a
uma relevante homogeneização interna, uma vez sujeitos a formas de identidade políticas
cada vez mais burguesas. Mas por outro lado, as reformas produziriam a consolidação de
várias unidades administrativas com financiamento interno viabilizado e exército próprio. Isso
teria tornado a ideia de independência mais fácil de imaginar. No entanto, é preciso esclarecer
que ambos os aspectos eram intimamente ligados: a consolidação administrativa de unidades
politicas transatlânticas seria a única forma de formar uma Gran España consistente
(LOMNITZ, 2001, p. 25). Dessa forma, a “viabilidade política” e a “plausibilidade emocio-
nal” dos vicerreinados fora política e ideologicamente fortalecida pelo novo sistema de inten-
dências, com uma nova ênfase no bem público através de indústria e educação. Dessa ma-
neira, a noção de uma verdadeira identidade pan-imperial viu-se fortalecida (LOMNITZ,
2001, p.27).
De qualquer forma, tal como sugerido por Lomnitz, a consistência destas unidades
poderia ser discutível. Donghi observa que este sistema administrativo, baseado na crescente
demanda por racionalidade na Espanha, teria defeitos evidentes e de tendências agravantes.
As atribuições das várias magistraturas sobrepunham-se, e as dificuldades provenientes desse
estado de coisas se acentuavam. Os conflitos de competência se verificavam a grande distân-
cia, e aqueles que tinham a faculdade de resolvê-los omitiam-se, de forma a permitir que se
prolongassem e se agravassem ainda mais. Por sinal, é possível avaliar a consistência dessas
reformas pelo próprio processo de desagregação política vivido posteriormente pela América.
As reformas não conseguiram assim resolver os conflitos de competência, mas somente abrir
novas possibilidades para eles (DONGHI, 1976, p.33-35) – em particular durante o Troféu da
Anarquia, é possível acrescentar.
Por outro lado, é possível que as reformas tenham sustentado o império com um
aparato político e emocional que teria até mesmo se sobreposto às dificuldades organi-
zacionais, ainda que estas possam ter sido críticas. Indício disso seria a longa sobrevida
imperial, que não desmente a gritante fragilidade política do império, mas indica de alguma
47
forma a possibilidade pan-imperialista. Eis por que os colonos teriam resistido às revoltas
nativistas e às primeiras tentativas de se estabelecer repúblicas, mesmo estando isolados da
metrópole. A segurança, a inovação e o sentimento de pertencimento e orgulho ainda
derivariam da Coroa, menos por um projeto maquiavélico do que por um autêntico
amadurecimento nacionalista que fora em muitos sentidos antecedentes ao modelo europeu.
Em suma, antes do Troféu da Anarquia, o império fora imaginado como uma
comunidade transatlântica encabeçada pelos hispânicos. Tal comunidade seria imaginada
através do critério de sangue, que se originaria basicamente a partir de um argumento
religioso de superioridade. Essa distinção nacional seria acrescida de um critério de solo
geográfico que lhes permitia se distinguir e apartar dos extranjeros, ao mesmo tempo em que
permitia idealizar uma hierarquização de outras nações – índios, negros, mestiços – sob a
estrutura de la patria, bem como pela perspectiva de privilégio e fardo divino da liderança.
Dessa forma, a estrutura imperial reforçava seu caráter tomista, de uma casa com muitas
moradas – ou nações –, que estariam hierarquicamente dispostas segundo os critérios de la
patria, formato que permitia a obtenção da ordem e da estabilidade (cf. MORSE, 1988).
que compuseram a “primeira geração” libertadora. Daí a hipótese de que, sem as invasões
napoleônicas, é provável que o Império tivesse largos anos de permanência (CHAUNU, 1972,
p.148). Ou seja, o que contara no Troféu da Anarquia fora o ponto de dissídio entre os
colonos, que não podiam ter os Bourbons, não queriam Napoleão e sobretudo não acredi-
tavam nos liberais (cf. LYNCH, 1992, p.45) – e além disso, não confiavam em si mesmos.
Eis por que os novos estados não seriam nações, ainda que a independência tenha se
servido do discurso nacionalista, e vice versa (LYNCH, 1992, p.383). Daí a ideia de que a
emancipação hispano-americana fora desencadeada mais pela queda da metrópole e menos
por algum sentimento patriótico incipiente (LYNCH, 1992, p.44; cf. também LOMNITZ,
2001, p.27). Não que o contexto estivesse isento de luta por soberania: tendo os colonos de
decidir por si sós a quem obedeceriam, e como dividiriam o poder, decisões terminaram sendo
tomadas (LYNCH, 1992, p.45); por consequência, zonas de contato entre os colonos foram
estabelecidas, tendo como base dialética os critérios da prática social, expressados na divisão
do espaço disponível. O resultado indireto foi o amadurecimento político e emocional dos
novos espaços soberanos.
Dessa forma, mesmo não sendo nacionalista, o Troféu da Anarquia ensejou em longo
prazo a necessidade de confeccionar entidades soberanas política e emocionalmente plau-
síveis. Os impulsos resultantes comporiam um quadro complexo e ambíguo que recairia sobre
a própria constituição dos libertadores. Com Simon Bolívar, não foi diferente.
entusiasmo indigenista; a luta entre progressistas e regressistas. Não por acaso são diversos os
historiadores e sociólogos que recorrem ao pensamento bolivariano para explicar o processo
de emancipação das colônias hispânicas – e todos estes certamente pagaram tributos à
necessidade de silêncio que a identidade e o nacionalismo exigem para que faça sentido.
Investigar o pensamento de Simon Bolívar demanda assim encarar as contradições que o
constituíram como Libertador, e não exatamente tentar organizar seu pensamento em um
corpo de ideias coerentes. Parte desse trabalho seria uma questão de avaliar sua própria
história de vida, que será brevemente exposta em seguida.
20
Alguns estudiosos afirmam que não houve Juramento algum; e outros duvidam de que haja uma fonte textual
para o conteúdo desse Juramento. Seja como for, vale mencionar o Juramento seja como parte da história de
Bolívar, seja como parte do “folclore” bolivariano.
52
A história de Bolívar como libertador começa de fato a partir de 1808. Naquele ano, a
França avançaria sobre Portugal, a fim de estender ali o embargo marítimo contra os ingleses.
Para isso, as tropas napoleônicas cruzaram o território da Espanha, onde capturaram algumas
cidades pelo caminho. Temendo o avanço francês, o rei Carlos IV abdicou em favor de seu
filho, que foi proclamado Fernando VII. Ambos foram capturados por Napoleão, que assumiu
o trono espanhol e o transferiu ao irmão José Bonaparte.
De acordo com John Lynch (1992, pp.44-47), as notícias da queda espanhola
chegaram à Venezuela através dos franceses, dos ingleses e dos espanhóis. As propostas que
eles apresentaram formariam o quadro de opções disponíveis na época, considerado à luz de
uma elite cuja maioria certamente estava inserida em um sistema de valores imperial e
conservador. Os franceses exigiriam imediata lealdade e adesão dos venezuelanos ao império
napoleônico. Argumentavam para isso que essa seria a própria vontade do rei de Espanha21.
Por outro lado, o almirante inglês Alexander Cochrane informou os venezuelanos sobre a
junta espanhola de resistência antifrancesa. Disponibilizou assim seus serviços militares para
eventuais conflitos, bem como para estabelecer arranjos defensivos entre ingleses e hispano-
americanos. Os venezuelanos receberiam também notícia dos espanhóis rebeldes, então
acuados na cidade espanhola de Cádiz. Esses solicitariam auxílio dos colonos, com os quais
planejavam instaurar uma junta central constitucionalista entre a Espanha e as Índias.
As notícias teriam gerado comoção nas colônias e uma renovação dos votos de leal-
dade a Fernando VII (DONGHI, 1976, p.56). As exigências francesas extrapolaram o limite
do suportável; e o caráter constitucionalista da resistência espanhola ia de encontro não só aos
interesses como também aos valores dos colonos, interessados em manter a identidade de
súditos e, por conseguinte, seus próprios direitos. Os membros do Cabildo de Caracas deci-
diram formar a Junta Conservadora de los Derechos de Fernando VII. Solicitaram então o
21
O rei publicaria na Gaceta de Madri em 20 de maio de 1808 as seguintes palavras: “Hoy, en las extraor-
dinarias circunstancias en que se me ha puesto y me veo, mi conciencia, mi honor y el buen nombre que debo
dejar a la posteridad, exigen imperiosamente de mí que el último acto de mi Soberanía únicamente se
encamine al expresado fin, a saber, a la tranquilidad, prosperidad, seguridad e integridad de la monarquía de
cuyo trono me separo, a la mayor felicidad de mis vasallos de ambos hemisferios. (...) Así pues, por un tratado
firmado y ratificado, he cedido a mi aliado y caro amigo el Emperador de los franceses todos mis derechos
sobre España e Indias; habiendo pactado que la corona de las Españas e Indias ha de ser siempre independiente
e íntegra, cual ha sido y estado bajo mi soberanía, y también que nuestra sagrada religión ha de ser no
solamente la dominante en España, sino también la única que ha de observarse en todos los dominios de esta
monarquía” (Madrid, 1808).
53
auxílio de Cochrane, que escoltou uma missão diplomática à Inglaterra, a quem pediriam
ajuda militar em nome do rei Fernando VII. Simon Bolívar estava entre os integrantes.
Apesar das suspeitas de Bolívar, Puerto Cabello era de fato estratégica. A cidade
reunia em si a função de porto, arsenal e prisão militar, na qual estavam detidos inimigos
influentes da república venezuelana. Fosse por inexperiência de Bolívar, fosse por falta de
tempo para preparo ou mesmo por negligência, Puerto Cabello fora assaltada e ocupada de
surpresa, em uma ação oportuna e favorável aos rebeldes realistas (LYNCH, 1992, p.60). Isso
agravou a instável situação republicana, que se complicou ainda mais com o terremoto
ocorrido em março de 1812, atribuído a um “castigo divino” pela recusa venezuelana à Coroa
(LYNCH, 1992, p.62-63; DONGHI, 1976, p.63-64). Os monarquistas ganharam com isso
novo fôlego, o que enfraqueceu e desarticulou Francisco de Miranda, então decepcionado
com a queda de Puerto Cabello. O desânimo do general teria se refletido entre as tropas, entre
os aliados e mesmo entre as cidades, diversas das quais passariam para o lado realista.
Miranda capitulou em 26 de julho de 1812. Assinou um pacto com o espanhol
Domingo Monteverde, vicerrei da Venezuela, que concedeu salvo conduto aos republicanos
derrotados. Bolívar teria ficado ultrajado com isso: os exércitos republicanos eram então
maiores e mais largos. Considerou a atitude de Miranda uma traição, e planejou detê-lo antes
que se deslocasse da Venezuela, o que Miranda planejava fazer antes do retorno de
Monteverde ao poder. Bolívar teria assim conspirado com outros colegas também ressentidos.
Armaria com eles uma emboscada para entregar Miranda a Monteverde, que o deportou à
península, onde faleceu após alguns anos de prisão. Bolívar recebeu como agradecimento um
salvo conduto para se exilar em segurança, junto a outros colegas. Esse é um dos episódios
mais controversos da vida do Libertador.
Bolívar viajou para Curaçao, então ocupada por ingleses. Permaneceu na ilha por um
curto período, após o qual se moveu para Cartagena de Indias, no vicerreinado de Nova
Granada. Ali encontraria situação parecida com a da Venezuela: diversas juntas supremas
disputando o poder entre si. A fim de conquistar o apoio neogranadense, Bolívar escreveria o
“Manifesto de Cartagena”, onde realiza uma análise militar e política sobre as causas da
queda da Primeira República da Venezuela. O manifesto pode ser visto em muitos sentidos
como uma carta de intenções para a sua revanche: Bolívar não se considerava derrotado, e
acreditava geopoliticamente que o momento era crucial para toda a América hispânica. Pois
55
que solicitava ajuda dos neogranadenses: a liberdade de Nova Granada e de toda a América
Hispânica dependeria de se libertar a Venezuela, que seria o “coração geopolítico” das Índias.
Tendo se alistado nos exércitos neogranadenses, o venezuelano realizaria campanha
militar que “liberaria” diversos territórios de Nova Granada. Tais conquistas teriam reaberto o
acesso neogranadense ao território venezuelano, levando Monteverde a concentrar forças em
San Carlos, cidade fronteiriça entre o território de ambas as colônias. Provavelmente
alarmado com a atitude venezuelana, o Congresso neogranadense decidiu apoiar Bolívar em
sua expedição contra Monteverde, fornecendo-lhe armas, dinheiro e oficiais. Começaria assim
a Campanha Admirável, durante a qual Bolívar “liberaria” diversas cidades venezuelanas, a
partir das quais fundou a II República da Venezuela. Foi durante os combates que o
Libertador comporia a “Carta de Jamaica”, durante seu exílio voluntário na ilha. Embora o
episódio seja lembrado pelo título pomposo de “Campanha Admirável”, esse teria sido um
momento de privação e frustração na vida do venezuelano, que se viu forçado a combater não
o “inimigo”, mas os seus próprios compatriotas (cf. LYNCH, 1992, p.90).
22
[i]I est donc bien certain que la pitié est un sentiment naturel, qui modérant dans chaque individu l'activité de
l'amour de foi même, concourt'à la conservation mutuelle de toute l'espéce .
23
Como surgiu a partir da Leyenda Negra, seria o caso de se perguntar se o termo “edênico” poderia ser
substituído por “trágico”, ou “catastrófico”. No entanto, a ideia de que houve uma catástrofe partiu antes de
tudo da concepção edênica das Américas. Dessa forma, o termo “edênico” é ainda mais adequado.
57
que se dedicou a denunciar os abusos dos conquistadores espanhóis. Para isso, Las Casas
descreve os nativos como pessoas “sencillas, sin iniquidad, ni doblez, obedientes y fieles a sus
señores naturales y a los cristianos”, tendo constituição “delicada, tierna, flaca y débil”, e
sendo ainda “humildes, extentos de orgullo, ambicion, y codicia” (LAS CASAS, 1522, p.102-
105) – ao passo que os colonizadores são descritos como “diabos” e “demônios” que, em
nome da “codicia”, abusaram, maltrataram e exterminaram os nativos. O movimento
iluminista expandiria e distorceria a Lenda Negra com fins políticos e antirreligiosos, gerando
um argu-mento basilar para a emancipação das colônias (cf. WHITAKER, 1962, p.7).
O Iluminismo revolucionário diz respeito ao aspecto social e politicamente subversivo
desse movimento. É a face mais conhecida dele, e remete ao pensamento revolucionário
francês do século XVIII, embora tenha origem também no pensamento inglês. O Iluminismo
revolucionário pode ser definido como um conjunto de ideias baseadas na rejeição da
autoridade clássica. Essa era questionada ao se insistir na necessidade de experimentos
empíricos, mesmo que esses colidissem com crenças estabelecidas (HUSSEY, 1962, p.23). A
fonte desse empirismo origina-se de pensadores ingleses como Francis Bacon, Isaac Newton e
Thomas Hobbes; e o aspecto subversivo deriva de franceses como Voltaire, Diderot,
Montesquieu e mesmo Raynal. Apesar desse “empirismo”, o Iluminismo revolucionário
recorre abertamente a uma escala universal e “idealista” de princípios sobre o que é certo ou
errado. Whitaker explica que tal escala fora elaborada a partir de uma interpretação dogmática
sobre o passado do homem, considerado idílico e puro, mantendo uma relação complementar
com o Iluminismo edênico. Daí a forma como Carl Becker descreve o Iluminismo como “uma
busca do século dezoito pelo Cálice Sagrado” (BECKER apud WHITAKER, 1962, p.4)24.
O Iluminismo conservador pode ser atribuído ao aspecto germânico e italiano desse
movimento intelectual, combinado ao já mencionado aspecto nacionalista hispânico. É assim
em muitos sentidos um contraponto ao Iluminismo edênico e o Iluminismo revolucionário.
Ne-le, o zelo pela promoção do conhecimento útil fora ardentemente defendido por círculos
social e politicamente conservadores, de maneira a servir ao fortalecimento do estado de
coisas politico e social. Com isso, seu caráter é avesso à subversão, embora fosse eventu-
almente modernizante (WHITAKER, 1962, p.6). O aspecto mais relevante aqui do Ilumi-
nismo conservador é o fato de que alcançou seu mais alto desenvolvimento no mundo ibero-
americano, devido à proximidade entre Espanha, Itália e Alemanha, o que ocorreu através de
24
[A]n eighteenth-century search for the Holy Grail.
58
Bolívar fora um produto contraditório desses três tipos de Iluminismo. Com base na
interpretação de John Lynch (1992), é possível dizer que Bolívar expressou ainda um quarto
aspecto: o Iluminismo emancipatório, importante ao desenvolvimento de uma ideologia
libertária para a América Hispânica. Desse Iluminismo, Bolívar consumiu as ideias de John
Locke, que cita Josephus Acosta para afirmar que os habitantes originais das Américas eram
originalmente livres (cf. LOCKE, 1824, pp.189-190). A ideia lockeana continha argumentos
para a liberdade, mas não exatamente para a liberdade colonial (Lynch, 1992, p.33). Dessa
forma, Bolívar recorreu com mais ênfase a Montesquieu, ficando assim familiarizado com a
ideia de que “as Índias e a Espanha são duas potências sob um mesmo senhor; mas as Índias
são a principal, e a Espanha não é mais que um acessório” (MONTESQUIEU, Livro I, cap.
.XXI, tradução do autor) 25.
Essa visão de Montesquieu não significa que ele tenha sido avesso à colonização
imperial (LYNCH, 1992, p.33). Dessa forma, Bolívar recorreria também a Jean-Jacques
Rousseau, a exemplo de outros hispânicos que também refletiram sobre a liberdade. No
entanto, adverte Lynch, a relação do Libertador para com esse iluminista seria plena de atritos
(LYNCH, 1992, p.34). Ainda que não mencione diretamente o nome de Rousseau entre os
filósofos que desprezara, é provável que o venezuelano esteja se referindo a ele quando
menciona no “Manifiesto de Cartagena” os “ciertos buenos visionarios” que, imaginando
“repúblicas aéreas”, procuraram “alcanzar la perfección política, presuponiendo la perfecti-
bilidad del linaje humano” (BOLÍVAR, 1950, p.42).
A liberdade dos filósofos iluministas seria assim insuficiente para Bolívar. Como
observa Lynch, havia nessa liberdade um cosmopolitismo que ignorava aspirações nacionais.
A maior parte dos iluministas não aprovava diferenças nacionais e ignorava o sentimento
nacionalista, parecendo assim totalmente alheios à possibilidade de novas nacionalidades ou
de algum direito de independência colonial (LYNCH, 1992, p.34). Poucas teriam sido as
25
Les Indes et l’Espagne sont deux puissances sous un même maître ; mais les Indes sont le principal, l’Espagne
n’est que l’accessoire.
59
exceções nesse sentido. O inglês Jeremy Bentham, por exemplo, fora favorável à
emancipação colonial no panfleto Emancipate Your Colonies! – “Emancipem suas Colônias!”
–, no qual argumenta que manter colônias seria inútil tanto para essas quanto para as
metrópoles – ideia que repete em Rid yourselves of Ultramaria – “Livrem-se da Ultramaria” –
, texto dirigido ao caso particular do império hispânico. No entanto, o apelo era feito às
metrópoles, de forma que deve ter sido de importância restrita ao Libertador.
Por outro lado, o panfleto Common Sense – “Bom Senso” – do norte-americano
Thomas Paine defenderia a causa específica da liberdade paras as colônias. Para isso, procla-
mou ideias de efeito como “[h]á algo de muito absurdo em imaginar um continente perpetu-
amente governado por uma ilha” (PAINE, 1776, p.30, tradução nossa) 26. As ideias de Paine
influenciaram o Abade Raynal, cuja obra Histoire des Deux Indies ofenderia a metrópole
espanhola em muitos sentidos, ao passo que agradaria alguns hispano-americanos com sua
opinião favorável à libertação das colônias. A importância de Raynal seria pouca, não fosse a
influência que teria exercido sobre Dominique de Pradt, outro religioso iluminista. De acordo
com Pradt, o declínio da Espanha como potência colonial e as revoluções europeias eram
forças que aceleraram a tendência das colônias em se tornarem maduras e romperem com a
metrópole. Portanto, a Espanha deveria liberar as colônias por uma questão de princípios e
principalmente de política (cf. LYNCH, 1992, p.37).
Apesar dessas exceções, o autor da “Carta de Jamaica” teria tido pouca inspiração para
formular suas próprias ideias, precisando realizar por si só sua teoria de autodeterminação
nacional durante seus empreendimentos militares e políticos (LYNCH, 1992, p.36). A “Carta
de Jamaica” pode ser assim considerada a primeira teoria autêntica da libertação hispano-
americana – e provavelmente o primeiro vestígio da análise nacionalista local, embora o
Libertador não mencione esse termo diretamente (LYNCH, 1992, p.92-93). As particu-
laridades das colônias hispânicas desafiavam as definições dos iluministas, preocupados
demais com o cosmopolitismo para que investigassem a formação das identidades nacionais –
ou ainda, para que tentassem observar a emancipação das colônias pela perspectiva colonial.
Coube em parte a Bolívar transcrever em termos hispano-americanos os ideais de liberdade,
igualdade e fraternidade que pareciam inspirar as revoluções francesa e estadunidense.
É provável que a maior batalha do Libertador não tenha sido exatamente a guerreira ou
a estadista: Bolívar precisou também entender o que estaria acontecendo durante o Troféu da
Anarquia. Para isso, trabalhou com os critérios nacionalistas então disponíveis, desafio que
26
There is something very absurd, in supposing a continent to be perpetually governed by an island.
60
precisa ser considerado como parte de seus esforços para “libertar” a América Hispânica. A
situação política hispano-americana era menos evidente do que poderia insinuar a ideia de
uma luta pela independência entre colonos oprimidos e metrópole opressora. Bolívar cer-
tamente aprendeu isso após a queda da Primeira República Venezuelana. As dificuldades
impostas pelo ambiente exigiam um pensamento muito mais complexo do que o insinuado em
um Juramento de Roma. Por mais que esse Juramento tenha sido apócrifo, ele pode servir
como um parâmetro de comparação entre o Bolívar deslumbrado da Primeira República
Venezuelana e o Bolívar amargo, confuso e pragmático da Campanha Admirável.
27
A versão da “Carta de Jamaica” aqui mencionada encontra-se no tomo 21 da obra “Colección de Documentos
Importantes Relativos a la Vida Publica del Libertador de Colombia y del Peru Simon Bolivar hasta su
muerte” (1830, pp.207-229).
62
Dessa forma, o autor tenta ao mesmo tempo informar e convencer seu interlocutor, de forma a
explicar e a enaltecer o Troféu da Anarquia – objetivos que, como será visto, serão
inconciliáveis. O aspecto especificamente panfletário da “Carta...” se inicia quando o autor se
esforça para definir um Eu a partir de uma alteridade metropolitana. Esse esforço deriva da
própria visão de América como terra-mãe, ou pátria, proposição derivada do critério de solo.
objetiva as fronteiras e os limites. Daí a forma como se evocava a terra como a questão princi-
pal dos conflitos. A partir dessa constatação, Bolívar desenvolve planos ambiciosos, imagi-
nando uma soberania ampla a partir de uma manipulação da Lenda Negra que demandava
silenciar a noção de “índio”. Apesar disso, o Libertador será obrigado mais tarde a romper
com o silêncio que impôs à Lenda Negra – mas não antes de realizar um prognóstico otimista
crucial ao Troféu da Anarquia no enunciado seguinte.
Com outra citação direta, Bolívar recebe com “emoción de gratitud” a passagem na
qual Cullen afirma “que espera que los sucesos que siguieron entonces a las armas españolas,
acompañen ahora a las de sus contrários, los muy oprimidos americanos meridionales”
(BOLÍVAR, 1830, p.209). Baseado na “crença otimista” de que a justiça decide as contendas
entre os homens, o Libertador toma a esperança de Cullen como uma predição; e acredita com
isso que o sucesso coroará “nuestros” esforços, porque o destino da América teria se fixado de
maneira irrevocável. Os laços que a unia à Espanha foram cortados; a opinião que outrora as
enlaçava agora as divide, e o ódio que a Península inspira nos americanos é maior do que o
próprio mar que separa os continentes – e menos difícil seria os unir do que reconciliar o
espírito desses países:
Há nesses enunciados força de promessa com teor emocional: Bolívar aqui se refere ao
ethos que deseja para as Américas. É o que demonstra a própria crença na justiça, talvez
derivada da perfeição universal pretendida pelos iluministas. O uso do pronome “nosotros”,
somado ao pronome possessivo “nuestros”, indica o prosseguimento no esforço de se con-
65
intimidade com o pensamento realista. Daí a forma como Thomas Paine, por exemplo,
afirmava que “a sucessão hereditária não pode jamais existir como uma questão de direito; é
uma nulidade, um nada”; e que “ninguém por nascimento poderia ter o direito de dispor sua
própria família em preferência perpétua sobre todas as outras para sempre” (PAINE, 1792,
p.106, tradução nossa) 28.
O critério de solo torna possível interpretar o Troféu da Anarquia como derivado de
uma identidade nacional que vai de encontro à identidade peninsular. O resultado é um ethos
para as Américas em sua totalidade, constituindo um projeto identitário pan-americanista a
partir da alteridade metropolitana. Os colonos são assim americanos porque nasceram ali,
proposição essa que torna possível conceber a ideologia de um Eu patriótico contra o Outro
metropolitano, “odioso” e “explorador”. Isso permite conferir um sentido “épico e heróico” ao
Troféu da Anarquia, indicando que as passagens possuem força de intenção panfletária, talvez
se dirigindo não apenas ao interlocutor e aos ingleses, mas principalmente aos hispano-
americanos. Isso se torna possível ao se combinar os iluminismos emancipatório e idealista.
Prosseguindo, o libertador calcula que o momento era oportuno para os americanos. A
Espanha, outrora um dos maiores impérios mundiais, estava reduzida “a restos”, impotente
não apenas para dominar o Novo Mundo, como até mesmo para manter o antigo. A
“insistência” espanhola em reconquistar a América até mesmo indigna o autor, como demons-
tram as exclamações e a força de admiração do seguinte enunciado: “¡Qué demencia la de
nuestra enemiga, pretender reconquistar América, sin marina, sin tesoros y casi sin solda-
dos!”; e mesmo que conseguisse ser bem sucedida, calcula Bolívar, os americanos cedo ou
tarde voltariam a se bater pela causa patriótica (BOLÍVAR, 1830, p. 212).
O Libertador lamenta assim que a Espanha não seja orientada pelos europeus a
desistir: “¿Está Europa sorda al clamor de su propio interés? ¿No tiene ya ojos para ver la
justicia? ¿Tanto se ha endurecido para ser de este modo insensible?”. O questionamento não é
apenas ético, como também racional: “Europa misma por miras de sana política debería haber
preparado y ejecutado el proyecto de la independencia americana, no sólo porque el equilibrio
del mundo así lo exige, sino porque éste es el medio legítimo y seguro de adquirirse
establecimientos ultramarinos de comercio” (BOLÍVAR, 1830, p.212). Bolívar lamenta tam-
bém a maneira como o apelo hispano-americano foi ignorado ao redor do mundo – mesmo
pelos “hermanos del norte”, os futuros estadunidenses. Nesses enunciados, os apelos e
considerações do Libertador indicam que ele parece convicto da importância americana no
28
The hereditary succession can never exist as a matter of right; it is a nullity — a nothing”; no one by birth
could have a right to set up his own family in perpetual preference to all other for ever.
67
contexto geopolítico mundial – mesmo que de uma maneira impulsiva e panfletária, ainda que
não deixem de ter verossimilhança para com o contexto de então, considerando que a
Inglaterra parecia de fato em busca de novos mercados ao redor do mundo. No entanto, a
convicção presente na América Livre termina comprometida pelas constatações sobre o que
seria o americano.
De passagem, Bolívar não concorda com a comparação realizada pelo remetente entre
a situação do rei espanhol e a dos reis americanos. Segundo o autor, Cullen afirma que a
maneira como Carlos IV e Fernando VII foram capturados por Napoleão fora quase “un acto
manifiesto de retribución divina y, al mismo tiempo, una prueba de que Dios sostiene la justa
causa de los americanos, y les concederá su independencia”. Acreditando que o autor se refere
a “reis índios” como Montezuma – ou “Moteuczona” –, o venezuelano afirma que a
comparação é inviável. Os reis espanhóis são tratados com dignidade, conservados e ao fim
recobravam sua liberdade e trono; mas os índios sofrem “tormentos inauditos” e os
“vilipendios más vergonzosos” (BOLÍVAR, 1830, p.213). Bolívar aproveita assim a oportu-
nidade de “demonizar” outra vez a metrópole; mas não deixa de admitir que a situação dos
espanhóis e dos índios é incomparável, o que possui consequências relevantes para sua análise
sobre as Américas.
Em seguida, o Libertador realiza uma nova citação do remetente, na qual especifica o
favor solicitado: o senhor Cullen fez muitas reflexões sobre a situação dos americanos e suas
esperanças futuras, e possui interesse no sucesso deles; mas lhe faltava muitas informações
relativas a seu estado atual e ao que aspirariam. Pois que desejaria infinitamente saber a
politica e a população de cada província; se desejam repúblicas ou monarquias; se formarão
uma grande república ou uma grande monarquia; e que toda informação dessa espécie que
pudesse ser fornecida, ou cujas fontes pudessem ser indicadas, seriam estimadas como um
favor muito particular (BOLÍVAR, 1830, p.214).
O Libertador informa outra vez que seria impossível fornecer dados demográficos
precisos sobre as Américas. A população americana era composta por campesinos e nômades,
isolada por uma geografia hostil e dizimada por “guerras de extermínio”, o que dificultava
manter estatísticas nesse sentido. Porém, era ainda mais difícil pressentir a sorte futura do
68
Novo Mundo, estabelecer princípios sobre sua política e quase profetizar a natureza dos
governos que adotará. Dessa forma, toda ideia relativa ao porvir desse “país” parece aventu-
rosa ao Libertador: “¿Se puede preever cuando el jénero humano se hallaba en su infancia
rodeado de tanta incertidumbre, ignorancia y error, cuál seria el régimen que abrazaría para su
conservación? ¿Quién se habría atrevido a decir tal nación será república o monarquía, ésta
será pequeña, aquélla grande?” (BOLÍVAR, 1830, p.215). Considerando as incertezas do
Troféu da Anarquia, a força desses questionamentos está mais próxima da dúvida autêntica.
A despeito das dificuldades, Bolívar opta por cumprir a tarefa. Começa para isso
informando que, em seu entender, “nosotros [americanos] sumos um pequeño jénero humano”
que possui um mundo à parte, cercado de mares dilatados, novos em quase todas as artes e
ciências, ainda que de certa forma velhos nos costumes da sociedade civil. Em seguida, o
venezuelano usa a queda do Império Romano como metáfora para a situação americana: “Yo
considero el estado actual de América, como cuando desplomado el imperio romano cada
desmembración formó un sistema político, conforme a sus intereses y situación, o siguiendo
la ambición particular de algunos jefes, familias o corporaciones” (BOLÍVAR, 1830, p.215).
A semelhança é limitada: após a queda do império, os membros dispersos teriam ali voltado a
estabelecer de uma forma ou de outra suas antigas nações. Isso não se observou na América:
[N]osotros, que apenas conservamos vestijios de lo que en otro tiempo fue, y que
por otra parte no somos indios, ni europeos, sino una especie media entre los
lejítimos proprietarios del pais, y los usurpadores españoles: en suma, siendo
nosotros americanos por nacimiento, y nuestros derechos los de Europa, tenemos
que disputar estos a los del país, y que mantenernos en el contra la invasión de los
invasores; así nos hallamos en el caso mas estraordinario y complicado. (BOLÍVAR,
1830, p.215).
A metáfora introduz uma imagem que contradiz a América Livre. Aqui não existe
mais guerra de independência: tal como na queda do Império Romano, os americanos estão
em conflito interno para ajustar seu espaço próprio. A comparação entre ambos os episódios é
possibilitada pela interdiscursividade bolivariana para com os ideais do Iluminismo
revolucionário, que evocava os valores republicanos do Império Romano (cf. MAINGUE-
NEAU apud FAIRCLOUGH, 2006, p.166); mais do que isso, a metáfora advém da maneira
como o Libertador interpreta o Troféu da Anarquia não como uma guerra de independência,
mas como uma guerra civil. Isso acentua a contradição desse enunciado com o da América
Livre, introduzindo um ponto crítico discursivo. Aqui a alteridade e a dialética já não ocorre
entre colônia e metrópole, mas entre os colonos, bem como entre os colonos e os índios. É um
ethos distinto do proposto pelos esquemas clássicos de ruptura.
69
Essa contradição fica ainda mais evidente quando Bolívar esclarece que o contexto
americano é muito mais complexo do que a época pós-romana. Os colonos hispânicos
estavam em uma situação de ambiguidade identitária, situação evidenciada pelo contraste
entre colonos e nativos, o que justifica de alguma forma o silêncio imposto aos índios na
América Livre. “Nosotros” dessa forma se refere à elite colonial, da qual Bolívar admite fazer
parte, e a partir da qual o discurso bolivariano ensaia construir uma identidade americana. Eis
a dificuldade enfrentada pelo Libertador: embora “nosotros” tenha algo de natividade, essa
não se relaciona com a natividade radical dos astecas ou dos maias, por exemplo.
“Lejítimos proprietários” refere-se ao critério de solo, que Bolívar pretendia separar
dialeticamente do critério de sangue, definindo assim um ethos soberano para a América
Livre. No entanto, o Libertador é frustrado pela incompatibilidade institucional entre a
situação nativa e a dos hispano-americanos. “Nosotros” tinham dificuldades em se identificar
com a terra, e tinham ainda razões para até mesmo se recusarem a tal. Os “proprietários”
compreendiam solo não como um fim: antes, era um meio de se alcançar a condição imperial.
Além disso, o solo era um direito derivado dessa mesma condição, de maneira que a
americanidade derivada do solo era muito menos evidente, estando somente no discurso de
“visionários” e “oportunistas”. O critério de solo era assim imperativo na prática social
hispano-americana, para decepção de Bolívar, que se vê forçado a considerar essa realidade. É
o que faz quando avalia a (im)possibilidade de os americanos desejarem a autonomia.
Perante essa complexidade identitária, Bolívar afirma que seria uma “espécie de
advinación indicar cuál será el resultado de la línea de política que América siga”. Mesmo
assim, decide se “atrever” a realizar algumas conjeturas sobre o assunto, advertindo que suas
ideias seriam “arbitrarias, dictadas por um deseo racional, y no por um raciocinio problable”.
Posto isso, o Libertador explica que a posição dos moradores do hemisfério americano fora
passiva por séculos, com existência política nula. “Nosotros” estavam em um nível ainda mais
abaixo do que a servidão e, portanto, com mais dificuldade para se elevar ao gozo da
liberdade (BOLÍVAR, 1830, pp.215-216). São passagens que revelam força de indignação,
mas ao mesmo tempo de verossimilhança para com as instituições então disponíveis.
70
O autor solicita permissão de seu remetente para explicar esse raciocínio. Será através
dele que “demonstrará” como a América podia ser considerada escrava da Espanha, em
enunciados com força denunciatória, mas que se destacam principalmente pela coerência para
com a prática social de então. Para o Libertador, os Estados são escravos pela natureza da
constituição ou pelo abuso dela; portanto, um povo é escravo quando o governo rouba e usur-
pa os direitos do cidadão ou do súdito, seja por sua essência ou vício. Aplicando esse princí-
pio às Américas, é possível perceber como o “continente de Colón” não somente estava pri-
vado de sua liberdade, como também da tirania ativa e dominante (BOLÍVAR, 1830, p.216).
A privação dessa “tiranía activa y dominante” advém da intertextualidade para com
Montesquieu, e é explicada da seguinte maneira: muitos governantes despóticos organizaram
sistemas de opressão no qual agentes subordinados participavam em vários níveis
administrativos. Ora, sob o absolutismo espanhol, os americanos não tiveram permissão de
exercitar quaisquer funções do governo ou mesmo da administração interna, de forma que não
apenas foram privados de seus direitos, como também mantidos em um estado de infância
política (cf. LYNCH, 2004, p.97). O autor calcula assim que, se tivessem aprendido os ofícios
da administração, os americanos teriam mantido um certo “respeito maquinal” necessário às
revoluções. Ausente esse respeito, o Troféu da Anarquia só poderia ser uma guerra civil.
Em enunciados de força acusativa, Bolívar afirma que a Espanha sujeitou a América a
uma postura economicamente passiva, cerceada de restrições e proibições, “condenada” a
produzir alguns poucos bens agrícolas e a exportar minérios preciosos para a metrópole. Além
disso, as colônias não puderam jamais ter as indústrias que faltavam mesmo à Península. A
situação era naturalmente ultrajante: “pretender que un país tan felizmente constituido,
extenso, rico y populoso sea meramente pasivo, ¿no es un ultraje y una violación de los
derechos de la humanidad?” (BOLÍVAR, 1830, p.217). É notável como a terra surge aqui
novamente como vítima, havendo uma forte interdiscursividade com a América Livre.
Esse ultraje não era apenas econômico, como também político: os americanos jamais
teriam sido vicerreis ou governadores, a não ser por causas extraordinárias; arcebispos ou
bispos poucas vezes; diplomatas, nunca; militares, somente na qualidade de subalternos;
nobres, sem privilégios reais. Os americanos “no éramos, en fin, ni majistrados ni financistas,
y casi ni aun comerciantes; todo en contravención directa de nuestras instituciones”
(BOLÍVAR, 1830, p.217). São enunciados plenos de força acusatória, que não deixam de ser
influenciados pelas esperanças formuladas sobre a soberania reclamada pelo critério de terra
Bolívar oferece uma explicação causal para a origem dessa “escravidão”. Por que os
americanos – os colonos, naturalmente – teriam direitos? E de que forma tais direitos estavam
71
Com base no exposto, afirma Bolívar, é possível deduzir que a América não estava
preparada para se desprender da metrópole. Isso ocorreu somente porque fora obrigada a tal
devido às “ilegítimas cesiones de Bayona”, quando Fernando VII abdicara da Espanha e das
72
Índias em favor de Napoleão Bonaparte; e devido também à “guerra” que a regência da corte
de Cádiz declarara às colônias “sin derecho alguno para ello no sólo por la falta de justicia,
sino también de legitimijad” (BOLÍVAR, 1830, p.218). A América fora posta assim na
“criminalidade” por uma covardia do rei de Espanha, seguida de uma injustiça da corte
regencial. Isso teria forçado os americanos a se emancipar “de repente y sin los conocimientos
previos y, lo que es más sensible, sin la práctica de los negocios públicos a representar en la
escena del mundo” (BOLÍVAR, 1830, p.218): um enunciado que se afasta em muitos sentidos
do que ocorrera na América Livre, estando pleno de força denunciatória.
Segundo Bolívar, quando as “águilas francesas” deixaram livre apenas a cidade de
Cádiz, e com “su vuelo arrollaron a los frágiles gobiernos de la Península”, os americanos
então “quedamos en la horfandad” (BOLÍVAR, 1830, p.218). O autor lamenta que a América
Hispânica tenha sido entregue outrora à mercê de uma metrópole, referindo-se com isso ao
contrato colonial. Em seguida, teria sido lisonjeada pelas propostas da corte de Cádiz, que
seriam aparentemente promissoras, mas que somente gerariam “esperanzas halagüeñas
siempre burladas”. E por fim, “inciertos sobre nuestro destino futuro, y amenazados por la
anarquía, a causa de la falta de un gobierno legítimo, justo y liberal, nos precipitamos en el
caos de la revolucion” (BOLÍVAR, 1830, p.218, grifo nosso). É notória a forma como a
revolução aqui se apresenta como algo “caótico”, não tendo assim a coerência que se espera
de uma luta por libertação. O sentido do Troféu da Anarquia aqui se afasta bastante de algo
como uma guerra pela independência.
Sob essa perspectiva, Bolívar acredita que a América teria sido “maquiavelicamente”
conservada na imaturidade durante longa data, situação contra a qual não teria reagido porque
a tutela espanhola teria eliminado quaisquer condições de os americanos se tornarem
autorreferentes. Eis por que a emancipação americana não ocorrera por um “súbito despertar”
pátriotico, e muito menos por uma decepção para com a metrópole: Bolívar se vê obrigado
pela prática social disponível a admitir que a América jamais tivera oportunidade de se
desenvolver nesse sentido. Antes, a “emancipação” teria sido o resultado de um contexto de
urgência e “orfandade”, causada pela queda da Coroa, pela rapacidade francesa e pelas
acusações da corte de Cádiz – que de qualquer forma não representaria com legitimidade o
que teria sido outrora a Espanha, não podendo assim ser equiparada à antiga metrópole.
Dessa forma, o Libertador transfere a zona de contato para os colonos. Será entre eles
que as forças ideológicas e a dialética política ensejarão as disputas soberanas da América em
processo de emancipação. A origem dessa querela derivará do critério de solo e de sangue,
dialeticamente dispostos um contra o outro desde a queda da metrópole. Aqui já não há mais
73
Antes, o resultado teria sido algo semelhante ao que aconteceu entre os estadunidenses, cujas
qualidades republicanas e liberais o venezuelano aclama. No entanto, “[d]esgraciadamente,
estas cualidades parecen estar muy distantes de nosotros en el grado que se requiere; y por el
contrario, estamos dominados de los vicios que se contraen bajo la dirección de una nación
como la española que sólo ha sobresalido en fiereza, ambición, venganza y codicia”
(BOLÍVAR, 1830, p.221). Os hispano-americanos não são como os anglo-americanos, assim
como não são como os índios nativos. Posto isso, a alteridade talvez fosse mais plausível se
considerada entre os próprios hispano-americanos entre si.
Bolívar possui motivos imperiosos para continuar a sugerir uma “Espanha madrasta” e
cruel: disso depende a coerência de seu discurso, bem como da legitimidade de seu papel
como Libertador e de seu plano por uma “América Livre”, além de sua postura diante dos
ingleses. Entretanto, isso não o impede de admitir a incongruência de se comparar anglo-
americanos e hispano-americanos: a ideologia e a produção discursiva disponíveis eram dife-
rentes, apesar de o critério de solo e o anti-imperialismo parecerem existir em ambos os casos.
Em outras palavras, o Libertador admite – ao menos nessas passagens – que seria
inviável ou mesmo impossível formular na América Hispânica um contraponto liberal à
metrópole. O colono hispânico era um súdito. Seu conceito de ordem advém de uma noção
hierárquica e tradicionalista29, herdada da metrópole, e somente assim atenderia a qualquer
projeto pós-colonial. O Troféu da Anarquia não é interpretado assim como o esforço de se
desprender da metrópole, mas o de realizar uma “colonização interna”. As elites coloniais
estavam em uma guerra de sucessão, certamente causada pelas ambiguidades e contradições
da administração imperial.
Sob esse ponto de vista, o Libertador parece guiado menos por esperanças emocionais
e mais por pragmatismo. Não há recursos simbológicos ou institucionais disponíveis para
edificar uma revolução, ou uma história de camaradagem e sacrifício pan-americana. Tudo
que restou fora um esforço de sucessão que teria de encontrar seus parâmetros a partir do
próprio legado cultural do império, parâmetros esses que sugerem a necessidade de “alterizar”
a própria América Hispânica entre si, segundo o que a herança imperial sugeria.
29
Ideia essa amplamente trabalhada e consumida pela rainha Isabela de Toledo (cf. MORSE, 1988)
76
30
Dessa forma, a liberdade a que as Américas estariam condenadas pareceria a Bolívar uma maldição. Pode ser
interessante citar a indignação de San Martín, que em muitos sentidos assemelha-se à constatação de Bolívar:
“¡Libertad! para que un hombre de honor sea atacado por una prensa licenciosa, sin que haya leyes que lo
protejan y si existen se hagan ilusorias. ¡Libertad! para que si me dedico a cualquier género de industria, venga
una revolución que me destruya el trabajo de muchos años y la esperanza de dejar un bocado de pan a mis
hijos. ¡Libertad! para que se me cargue de contribuciones a fin de pagar los inmensos gastos originados porque
a cuatro ambiciosos se les antoja por vía de especulación hacer una revolución y quedar impunes. ¡Libertad!
para que sacrifique a mis hijos en disensiones y guerras civiles. ¡Libertad! para verme expatriado sin forma de
juicio y tal vez por una mera divergencia de opinión (...). Maldita sea la tal libertad, no será el hijo de mi
madre el que vaya a gozar de los beneficios que ella proporciona.” (SAN MARTÍN, 2000, p.276)
78
Estados Unidos da América e pelo Iluminismo emancipatório. E foi nesse sentido que se
empenhou. No entanto, o Libertador confrontou uma dificuldade intransponível de construir
uma alteridade americana absoluta. Qualquer emancipação que ignorasse os hispanos como
súditos neutralizava a própria chance de ser aplicada na América Hispânica, porque excluiria
os colonos e, por conseguinte, a frágil ordem social legada pelo império.
A solução, portanto, era a colonização interna. Seria a chance de emancipar a América
com base no critério de solo soberano, neutralizando o Troféu da Anarquia e estabilizando os
conflitos. Mas como realizá-la? Em busca de uma solução, Bolívar recorre à opinião de
Dominique de Pradt, religioso iluminista favorável à liberdade das colônias hispânicas.
Segundo Pradt, era preciso “a criação de quinze ou dezesseis estados”31 na América, ideia que
concebe baseado na ideia de que ““Os novos estados serão assim desenhados com as medidas
mais convenientes à administração deles; tudo será realizado sob uma igualdade proporcional,
que ocorra entre pares” (PRADT, 1801, pp.384 ; 381 – tradução nossa) 32.
O Libertador concorda com essa opinião até onde é possível, pois rejeita em parte a
ideia de que “os americanos poderão (e certamente farão melhor) por preferir um rei”
(PRADT, 1801, p.382 – tradução nossa)33. Para Bolívar, seria de fato mais fácil instalar
monarquias na América Hispânica; mas o esforço também seria inútil. O ideal seriam as
repúblicas, porque são circunscritas à esfera da própria conservação, prosperidade e glória. Os
republicanos não se interessam em estender os limites de suas nações. Isso somente lhes traria
vantagens caso convertessem os vizinhos em colônias, conquistados ou aliados, atitude essa
em desacordo com os valores republicanos mais essenciais. Repúblicas têm mais interesse em
se conservar, de forma que duram mais do que qualquer outra forma de governo. Repúblicas
hipertrofiadas, portanto, não são repúblicas, mas impérios cujo expansionismo poria em risco
a própria existência. A única exceção nesse sentido fora a república romana; mas isso porque
Roma permitira às colônias organizarem-se por leis e governos próprios, de forma que a
estabilidade da república romana não fora comprometida ou ameaçada pelo expansionismo
(BOLÍVAR, 1830, p.222).
Por outro lado, prossegue Bolívar, a política do rei é muito contrária a esses princípios
republicanos de conservação. O monarca se dirige fatalmente ao aumento de suas posses,
riquezas e faculdades – e com razão, porque disso depende sua autoridade tanto entre os
vizinhos como entre os próprios vassalos, que temerão enfrentar um poder tão formidável
31
[L]a création de quinze ou dixsept états.
32
[L]es nouveaux états seraient donc taillés sur les mesures les plus convenables à leur administration ; il ne
devra y avoir ni pygmées, ni colosses; tout sera dans une égalité proportionnelle.
33
[L]es Américains pouvoient (et sûrement ils auroient mieux fait), préférer un roi.
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34
De passagem, vale a pena mencionar a maneira como Carlos Rangel indica a “genialidade” bolivariana a partir
desse parágrafo, onde o Libertador prevê a necessidade política dos caudillos para se construir pactos e
estabilizar a América Latina. Na medida em que consegue se impor pela força e pelo carisma pessoal, o
caudilho estabelece um acordo hierárquico que torna possível estabilizar politicamente a convulsão
revolucionária e a guerra civil, o que o torna necessário a qualquer projeto nacional (cf. RANGEL, 1982).
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tical possui tonalidade de lamento, revelada pelo próprio formato de coordenação assindética
adversativa: depois do ideal, o advérbio “mas” introduz as limitações da realidade social.
Em seguida, Bolívar permite-se idealizar: “¡Qué bello sería que el istmo de Panamá
fuese para nosotros lo que el de Corinto para los griegos!” (BOLÍVAR, 1830, 226). A força
de desejo fica evidente pelas exclamações, e pela própria conjugação do verbo principal no
futuro do pretérito – “sería”. O autor prossegue assim em seu sonho: “Ojalá que algun día
tengamos la fortuna de instalar allí um augusto congreso de los representantes de las
repúblicas, reinos e império a tratar y discutir sobre los altos interesés de la paz y de de la
guerra, com las naciones de las otras tres partes del mundo” (BOLÍVAR, 1830, 226). Isso
somente poderia ocorrer em uma “época dichosa de nuestra regeneración” – ou seria apenas
um delírio, semelhante ao do abade de Saint Pierre, que imaginou ser possível reunir um con-
gresso europeu para decidir o destino dos interesses daquelas nações (BOLÍVAR, 1830, 226).
A união, portanto, seria possível somente depois de o Troféu da Anarquia ter sido
apaziguado e a América, estabilizada. Isso demandava apartar os americanos entre si,
subordinando para isso o critério de solo ao critério de sangue – mas de maneira a respeitar os
limites desenvolvidos pelo critério de solo. O Libertador infere assim que a queda do império
espanhol gerou uma prática social que determinava a formação de pátrias. Era preciso assim
dispensar a nación e o cuerpo unido. A prioridade da América Órfã é a paz, e não a liberdade,
porque essa seria um fardo a que os hispânicos já estavam entregues com a queda imperial, e
da qual não se beneficiariam jamais. Não que isso impeça Bolívar de se contradizer quanto ao
problema da união americana na passagem seguinte.
Estando próximo de concluir seu texto, Bolívar introduz uma mudança discursiva
comentando outra citação direta de seu interlocutor, com a qual parece concordar:
“Mutaciones importantes y felices, continua pueden ser frecuentemente producidas por
efectos individuales” (BOLÍVAR, 1830, 226). Para expressar seu ponto de vista, o Libertador
recorre a uma tradição dos americanos meridionais sobre a figura de Quetzalcoatl, ou
“Quetral-cahualt” –, “el Hermes, o Buda de la América del Sur”, divindade cultuada pelos
índios astecas e maias. Segundo essa tradição, Quetzalcoatl deixara os índios há tempos atrás,
mas não antes de prometer retornar assim que os séculos designados houvessem passado, para
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restabelecer seu governo e renovar a felicidade. Bolívar utiliza o mito indígena para introduzir
outra vez suas expectativas mais idealistas: ¿Esta tradición, no opera y excita uma conviccion
de que muy pronto debe volver? ¿concibe V. cual será el efecto que producirá, si un individuo
apareciendo entre ellos demonstrase los carateres de Quetralcahualt, el Buda del bosque, ó
Mercurio, del cual han hablado tanto las otras naciones?” (BOLÍVAR, 1830, 227).
Caso houvesse alguém com essas características, calcula Bolívar, toda a América
poderia se inclinar à causa libertadora. Ou seja, “¿no es la union todo lo que se necesita para
ponerlos em estado de espulsar a los espanoles, sus tropas, y los partidários de la corrompida
España, para hacerlos capaces de estabelecer um império poderoso, com um gobierno livre, y
leyes benévolas?” (BOLÍVAR, 1830, 227). É chamativa a maneira como essa passagem
contradiz a América Órfã. Mesmo a diferença de estilos é acentuada outra vez: as interro-
gações perdem o caráter de ponderação objetiva e ganham força retórica de inflamação
discursiva, abandonando o caráter de proposição, de denúncia e de reflexão intelectual das
passagens imediatamente anteriores. Há dessa forma um retorno à América Livre, que o
discurso bolivariano evoca outra vez aqui. A força do enunciado fica evidente quando se
considera que essas passagens são conclusivas: é esperável que o Libertador opte por retornar
aqui ao seu projeto patriótico pan-americano.
Apesar do entusiasmo pela figura de Quetralcahualt, o autor da “Carta...” acredita que
o deus índio possui um apelo restrito. Várias tentativas intelectuais foram feitas para se incluir
a divindade no panteão da cristandade, todas sem sucesso. Somente historiadores e
pensadores sofisticados se dedicaram a esse problema, de forma que constitui um elemento
agregador limitado. Assim, o Libertador concorda que ações individuais levam a resultados
gerais em revoluções; mas esse não seria o caso do culto a essa entidade divina indígena.
Felizmente, segundo Bolívar, o México soube tirar proveito revolucionário dos símbolos
cristãos – mais precisamente, o da Virgem de Guadalupe. A cristandade tinha apelo mais
amplo que o indígena, tendo sido mais adequada para unir o México em uma patria
emocionalmente plausível.
Em outras palavras: novamente a cultura dos colonos demonstra ser indispensável para
um projeto nacionalista. Bolívar elogia assim o uso da Virgem como apelo emocional para
formar uma comunidade imaginária abrangente no México. Eis a lição que deve ser aprendida
do caso mexicano: “seguramente la unión es la que nos falta para completar a obra de nuestra
rejeneración” (BOLÍVAR, 1830, 228). Ora, a divisão interamericana não é estranha: as
“guerras civiles” são formadas geralmente por dois partidos, os conservadores e
reformadores. Os primeiros vencem em quantidade, mas os segundos dispõem da qualidade:
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“la masa física se equilibra con la fuerza moral, y la contienda se prolonga, siendo sus
resultados muy inciertos. Por fortuna entre nosotros, la masa ha seguido a la intelijencia”
(BOLÍVAR, 1830, 228).
Esse é um enunciado ligado ao esquema tradicional de ruptura que contrapõe
conservadores – ou peninsulares – e reformadores – ou crioulos. Mais do que isso, é a
tentativa conclusiva do Libertador de conciliar a América Livre e a América Órfã. O esforço é
outra vez frustrado pelas contradições: contrariando a América Órfã, o discurso bolivariano
enfatiza aqui a importância da união, que agora seria possível e até mesmo necessária para se
expulsar os espanhóis e fundar um governo livre. No entanto, alerta o autor, essa não virá de
“prodijios divinos”, mas de efeitos sensíveis e esforços bem dirigidos. A situação é favorável
para os americanos: a América está em si porque fora abandonada por todas as nações, ilhada
no meio do universo, sem relações diplomáticas nem auxílios militares e combatida pela
Espanha, que possui mais elementos para a guerra do que seria possível aos americanos
adquirir (BOLÍVAR, 1830, 228). É curioso como, de repente, as desvantagens da América
Órfã tornam-se vantagens aqui.
Caberia perguntar o que teria sido feito da Espanha decaída, destronada e sem
recursos; e também da América Órfã e anárquica que precisa ser fracionada entre si para que
contenha seu ímpeto destrutivo. Bolívar silencia aqui esses aspectos, preferindo explicar a
situação da seguinte forma: “[c]uando los sucesos no están asegurados, cuando el Estado es
débil, y cuando las empresas son remotas, todos los hombres vacilan; las opiniones se
dividen, las pasiones las agitan y los enemigos las animan para triunfar por este fácil medio”
(BOLÍVAR, 1830, p.228). Em outras palavras, a hesitação dos americanos deve-se apenas às
incertezas esperáveis do Troféu da Anarquia, não se relacionando com algum tipo de
inclinação conservadora.
No entanto, acredita o autor, assim que sejam fortes, sob o auspício de uma nação
liberal que lhes preste a proteção – no caso, a Inglaterra –, será possível ver os americanos
cultivar as virtudes e os talentos que conduzem à glória; então seguirão a “marcha
majestuosa” em direção às grandes prosperidades destinadas à América meridional; e as
ciências e as artes que nasceram no Oriente e ilustraram a Europa irão à Colômbia livre que as
convidará com um asilo (BOLÍVAR, 1830, p.228). Assim o Libertador conclui seu
pensamento. O quadro seguinte fornece um resumo panorâmico dos sentidos atribuídos ao
Troféu da Anarquia no discurso bolivariano, a partir dos quais a noção de ethos americana
derivará, tal como proposto no corpo teórico.
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6. CONCLUSÃO
fracionado entre dois enunciados básicos: a “América Livre”, surgida a partir do critério de
solo, com força panfletária em seus enunciados; e a “América Órfã”, no qual o critério de solo
é subordinado ao critério de sangue, gerando enunciados de força denunciatória, porém,
criteriosos e pragmáticos.
Ambos os enunciados constituem uma contradição estrutural que permeia todo o
discurso bolivariano. A possibilidade política e a plausibilidade emocional acabam sendo
mutuamente excludentes, fato que ocorre não apenas no discurso, como na própria prática
social. A dialética ideológica imaginada e mesmo apregoada pelo Libertador permite
identificar as Américas a partir da alteridade metropolitana, de maneira a caracterizar o
Troféu da Anarquia como uma guerra pela independência. Isso é feito a partir de uma
interpretação que recorre à interdiscursividade dos Iluminismos edênico, revolucionário e
emancipatório, havendo assim intertextualidade com Las Casas e os panfletários americanos.
No entanto, essa leitura exclui a possibilidade política que deriva do critério de sangue, já
neutralizado pelo critério de solo. A partir daí, o Troféu da Anarquia é forçosamente interpre-
tado como o “caos da revolução”, requerendo soluções emocionais e políticas diferentes.
Bolívar ensaia silenciar o critério de sangue, devido à forte ligação desse para com a
hereditariedade imperial. Isso é feito de maneira a aprofundar o critério de solo, o que gera
prejuízos ao próprio projeto nacionalista, porque exclui a possibilidade política derivada do
critério de sangue. Ciente disso, o autor da “Carta...” realiza um esforço teórico para conciliar
a América Livre e a América Órfã. No entanto, na medida em que se dedica a panfletar, acaba
prejudicando a o esforço de explicar, e vice versa. As dificuldades de Bolívar e suas esperadas
contradições refletem a própria prática sociolinguística então disponível. Derivada dos
critérios de solo e de sangue, la patria é um emaranhado de heterogeneidades que, diferente
do que se poderia prever, constituem a própria forma pela qual os novos espaços soberanos
são formados na América Hispânica. Bolívar é perspicaz ao admitir que os pactos eram mais
necessários do que revoluções; e que as revoluções eram igualmente necessárias para que os
pactos pudessem se formar. Daí as suas contradições, que são verossímeis diante do Troféu da
Anarquia e do legado que deixaria à formação das futuras patrias.
Em relação ao objetivo de superar os esquemas de ruptura, o trabalho foi bem
sucedido ao seu próprio modo. O sucesso não foi exatamente o de conseguir descartar esses
esquemas; antes, sua virtude foi a de fornecer outras explicações para eles. Em outras
palavras, a guerra da independência não foi um acontecimento explícito e evidente por si só.
Antes, atendeu à necessidade de se edificar um discurso emancipatório a partir dos critérios
então disponíveis, a fim de se constituir espaços comunitários emocionalmente plausíveis.
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Nesse sentido, Bolívar está sendo honesto ao evocar e manipular o critério de solo: era o
único que poderia ser de fato instrumentalizado a favor de uma interpretação nacionalista para
o Troféu da Anarquia. Além disso, o discurso bolivariano está de acordo com o próprio
amadurecimento da mentalidade bolivariana, formado ainda na primeira tentativa de
libertação da Venezuela, quando havia somente o discurso bolivariano da América Livre.
Com o fracasso da libertação, Bolívar acaba se tornando honesto em relação ao critério de
solo: o Libertador admite que esse critério é necessário para se formar espaços politicamente
possíveis, embora isso implique em comprometer a emoção necessária ao nacionalismo. A
partir daí, Bolívar assume assim também a América Órfã em seu discurso, embora mantenha
em si a América Livre – nem tanto por uma questão de idealismo e de persistência diante do
erro, mas pela própria necessidade contextual de se fornecer uma interpretação heróica do
Troféu da Anarquia, o que tornaria os novos espaços nacionais possíveis e plausíveis em
todos os sentidos.
As dificuldades de Bolívar remetem à dificuldade que existe em se definir “nação”. A
própria discussão teórica aqui desenvolvida revela muito desse problema. A nação é
impossível de ser conceituada por critérios objetivos; e o uso de critérios intersubjetivos reduz
qualquer definição a conceitos que podem ser considerados excessivamente abstratos. A única
discussão possível nesse sentido precisou ser praticada de maneira tangencial: no lugar de se
definir o que seja “nação”, foi preferível pensar os critérios que potencialmente poderiam
desenvolver o “nacionalismo”, ou seja, a experiência intersubjetiva e emotiva que caracteriza
o grupo em relação a uma exterioridade qualquer. No caso, os critérios eram o de solo e de
sangue, ambos muito presentes no discurso bolivariano.
Com base na análise da Carta de Jamaica, é provável que o legado mais fundamental
do Troféu da Anarquia tenha sido a “eterna” luta pela interpretação sobre o que tenha sido as
guerras da independência. Responder a essa questão ainda constituiu uma maneira possível de
se refletir sobre a identidade latino-americana em tempos atuais: suas riquezas, suas
ambiguidades, suas dificuldades de formação e conceituação. Os conceitos principais dessa
interpretação ainda seguem como na Carta de Jamaica: a ideia de uma América Livre em
contraposição a de uma América Órfã. No caso, o presente trabalho buscou uma interpretação
sinérgica, onde ambas as Américas revelem sua importância simultaneamente, considerando a
heterogeneidade e a contradição típicas e necessárias ao discurso. O esforço foi bem sucedido
nesse sentido: a teoria bolivariana presente na Carta revela-se muito mais útil quando
analisada em sua totalidade. Entenda-se por “útil” como uma referência à possibilidade de se
89
acessar por ali a herança ibérica nas formas de organização políticas e possibilidades
emocionais na América Hispânica.
Considerando que o nacionalismo é um discurso; que o discurso é um signo dialético;
e que os signos persistem no tempo através de adaptações, o Troféu da Anarquia ainda pode
ser considerado crucial para entender as interações domésticas e internacionais da experiência
nacionalista hispano-americana. Isso se revela em particular nas situações de conflito. O
Troféu da Anarquia ainda prossegue em seu legado de ambiguidades, gerando situações
potencialmente conflituosas. O critério de sangue e o critério de solo com certeza deverão ser
usados para se investigar como e por que esses desajustes persistem. Nesse caso, uma atenção
especial deverá ser dada ao critério de solo. Uma conclusão equivocada sobre a Carta de
Jamaica seria a de que esse critério representa um “elo fraco” na experiência nacionalista.
Pelo contrário – a experiência estadunidense é um indício de que a terra-mãe pode evocar
nacionalismos perigosamente intensos. No caso da América Hispânica, há motivos para se
pensar que a emotividade nacionalista, embora necessária, pode se voltar contra a própria
identidade formada. A solução nesse caso será modos de conciliação: é possível que a
proximidade histórica e cultural dos países hispano-americanos, longe de congregá-los, torna-
os ainda mais propensos à necessidade de se diferenciar – em especial, pelo conflito.
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