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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Mestrado em Relações Internacionais

O TROFÉU DA ANARQUIA

Simon Bolívar, guerras de independência e a formação discursiva do nacionalismo hispano-


americano (1810-1820)

Marcelo dos Santos Netto

Belo Horizonte,
2011
Marcelo dos Santos Netto

O TROFÉU DA ANARQUIA

Simon Bolívar, guerras de independência e a formação discursiva do nacionalismo hispano-


americano (1810-1820)

Dissertação apresentada ao programa de Pós-


Graduação em Relações Internacionais da Ponti-
fícia Universidade Católica de Minas Gerais,
como requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Relações Internacionais.

Orientador: Otávio Dulci

Belo Horizonte,
2011
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Netto, Marcelo Santos


N476t O troféu da anarquia: Simon Bolívar, guerras de independência e a formação
discursiva do nacionalismo hispano-americano (1810-1820) / Marcelo Santos
Netto. Belo Horizonte, 2011.
93f. : Il.

Orientador: Otávio Soares Dulci


Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais

1. Nacionalismo – América Latina. 2. Bolívar, Simón, 1783-1830. 3.


Independência. I. Dulci, Otávio Soares. II. Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais. III.
Título.

CDU: 329.17(7/8)
Marcelo dos Santos Netto

“O Troféu da Anarquia: Simon Bolívar, guerras de independência e formação do


nacionalismo hispano-americano (1810-1820)”.

Dissertação de Mestrado submetida à banca


examinadora designada pelo Colegiado do Programa
de Pós-Graduação em Relações Internacionais da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do
grau de Mestre em Relações Internacionais.

______________________________________________________
Prof. Dr. Otávio Soares Dulci - Orientador
Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PUC Minas)

_______________________________________________________
Profª. Dra. Matilde de Souza
Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PUC Minas)

______________________________________________________
Prof. Dr. Antonio Fernando Mire Canahuati
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Belo Horizonte, 09 de junho de 2011.


Dedicado ao meu pai,
o tenente-coronel José Simplício Netto,
un militar al servicio de la patria.
AGRADECIMENTOS

A orientação do trabalho fora conduzida com elegância e solicitude


pelo professor Otávio Dulci.

A metodologia e os conceitos científicos foram desenvolvidos com o


auxílio pertinente do professor Cristiano Mendes.

As observações do professor Eugênio Diniz foram imprescindíveis


ao aperfeiçoamento do trabalho.

A avaliação da professora Matilde de Souza e do senhor Antonio


Mitre foram importantes para o aperfeiçoamento dos conceitos e ideias aqui
utilizadas.

As referências a San Martín foram localizadas com o gentil auxílio


do Instituto Nacional Sanmartiniano (Buenos Aires, Argentina).

O apoio da Capes tornou possível o empreendimento.

A cidade de Belo Horizonte foi um bem-vindo alívio, um grato


refúgio e uma agradável libertação. Fica aqui registrado o apreço e
agradecimento pelos amigos, vizinhos e colegas mineiros.

O autor declara sua profunda gratidão para com seus pais pelo
carinho, auxílio e paciência.

Um agradecimento especial à minha companheira Cláudia Alves.


“Los que lucharon por la independencia hemos arado en
el mar. América Latina es ingobernable. Lo mejor a
hacer aquí es emigrarse.”

- Simón Bolívar

“Sea lo que debes ser, si no, no serás nadie.”

- José de San Martín


RESUMO

Esta dissertação analisa a formação do nacionalismo hispano-americano. Considera para isso


que o amadurecimento desse processo ocorreu entre os anos de 1810 e 1820, período aqui
rotulado como o Troféu da Anarquia, devido às incertezas sobre o significado dos conflitos
que ocorriam então. A estratégia para entender o processo será assim a de investigar o sentido
dado ao Troféu da Anarquia pelos libertadores, aqui considerados importantes agentes desse
processo e da própria formação do nacionalismo estudado, tendo em mente a influência que
seus atos e seus escritos ainda exercem sobre a formação das identidades nacionais hispano-
americanas. Para isso, recorre-se a uma Análise de Discurso Textualmente Orientada, com
uso de ferramentas sociolinguísticas para investigar o significado do discurso de Simon
Bolívar. O texto a ser analisado é a “Carta de Jamaica”, considerada a primeira teoria da
libertação hispano-americana.

Palavras-chave: América Hispânica; América Latina; Simon Bolívar; independência; Carta


de Jamaica; Análise de Discurso; nacionalismo.
ABSTRACT

This dissertation analyzes the conception of the Hispanic-American nationalism. It does this
by considering that the process had developed its full meaning along the 1810-1820’s period,
here called “The Trophy of Anarchy” because of the uncertainties that surrounded the
meaning of its conflicts. The scientific strategy adopted here is to interpret the way the
Hispanic American liberators gave meaning to the Trophy of Anarchy. It is done having in
mind the importance of the liberators not only during the studied period, but in the future
concept of Hispanic American nationalism, because of the political and intellectual legacy
they left to the future generations. Methodology includes a Textually-Oriented Discourse
Analysis and sociolinguistic tools. The analyzed text is Simon Bolivar’s “The Jamaica
Letter”, considered the first Hispanic American theory of liberation.

Keywords: Hispanic America; Latin America; Simon Bolívar; independence; Jamaica Letter;
Discourse Analysis; nationalism.
OBSERVAÇÃO

As citações em espanhol foram mantidas na língua original. A grafia


original dos documentos consultados foi preservada.

As citações em outras línguas – inglês, francês – estão traduzidas


pelo autor.
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................................10

2. MÉTODO E METODOLOGIA........................................................................................14

2.2 Linguística saussureana ...................................................................................................17


2.2.1 Crítica linguística de Fairclough ....................................................................................18
2.3 Ideologia e textualidade ...................................................................................................20
2.4 Dialética e contradição .....................................................................................................22
2.5 Metodologia.......................................................................................................................25

3. PRÁTICA SOCIAL: TEORIA DO NACIONALISMO .................................................31

3.1 Objetos Específicos e Zonas de Contato .........................................................................32


3.2 Direitos e deveres hispânicos ...........................................................................................34
3.2.1 Comunidades imaginadas ...............................................................................................34
3.2.2 Crítica de Lomnitz ...........................................................................................................37
3.2.3 Reconquista .....................................................................................................................38
3.2.4 Colonização e patriotismo...............................................................................................39
3.2.5 Crioulos e o fardo da terra..............................................................................................40
3.2.6 Declínio imperial e nacionalismo ...................................................................................43
3.2.7 Cuerpo Unido de la Nación e Queda da Espanha ..........................................................45

4. PRÁTICA DISCURSIVA: O TROFÉU DA ANARQUIA .............................................47

4.1. As contradições bolivarianas ..........................................................................................50


4.1.1 Bolívar e suas origens .....................................................................................................51
4.1.2 Queda da Espanha ..........................................................................................................52
4.1.3 Missão londrina, “libertação” e queda da Venezuela ....................................................53
4.1.4 Exílio e “Campanha Admirável” ....................................................................................54
4.2. Interdiscursividade e Intertextualidade hispano-americana e bolivariana ...............55
4.2.1 Iluminismos na América Hispânica.................................................................................56
4.2.2 Bolívar e o Iluminismo emancipatório ............................................................................58

5. TEXTO: CARTA DE JAMAICA .....................................................................................60

5.1 A terra como vítima..........................................................................................................62


5.2 A “América Livre” ...........................................................................................................64
5.3 Imaturidade política .........................................................................................................69
5.4 A “América Órfã” ............................................................................................................71
5.5 Colonização interna..........................................................................................................74
5.6 A América fragmentada...................................................................................................76
5.7 A América unida...............................................................................................................81

6. CONCLUSÃO.....................................................................................................................85

REFERÊNCIAS .....................................................................................................................90
10

1. INTRODUÇÃO

Essa dissertação toma por objeto de estudo o nacionalismo hispano-americano – mais


precisamente, o problema de sua formação. Considera para isso que o processo encontrou seu
ponto ótimo a partir de 1808 com a queda da metrópole espanhola e os conflitos que então se
espalharam pelas colônias hispânicas (cf. ANDERSON, 1991, p.47-48; LYNCH, 1994, pp.45;
383). O processo da confecção identitária hispano-americana será acessado através da Análise
de Discurso, realizada com base em pressupostos científicos que definem a realidade como o
produto intersubjetivo de uma estrutura linguística contraditória (FAIRCLOUGH, 2004,
2006; FOUCAULT, 1962). O objetivo principal será o de investigar no discurso emancipa-
tório o sentido conferido aos conflitos ocorridos no período entre 1810 e 1820. A definição do
período é realizada com base em declaração de San Martín aos peruanos em 1820, durante os
esforços de libertação do Peru. Na declaração, San Martín afirma que “Vuestra situación no
admite disimulo: diez años de constantes sacrificios sirven hoy de trofeo a la anarquia (...)”
(SAN MARTIN, 1992, p.92). A definição revela a possibilidade de que o maior inimigo tenha
sido a anarquia, ou a incerteza sobre o que significavam as lutas do período; além disso,
permite dispensar a ideia tendenciosa de uma Guerra de Independência.
O acesso à formação desse sentido e do próprio nacionalismo hispano-americano será
feito através do discurso do militar venezuelano Simon Bolívar, intitulado “Libertador”
devido à sua atuação abrangente nas guerras entre 1810 e 1825. Bolívar “libertou” seis países
latino-americanos, tarefa à qual dedicara esforços relevantes. Eis por que os dizeres dele
permitem aprender algo sobre os modos de liderança, o que era necessário e o que estava
disponível para governar então os povos das colônias hispânicas, sendo assim crucial para
compreender não apenas o passado, como também o presente, considerando o legado político
que os libertadores deixaram às futuras gerações (cf. LYNCH, 1992). Desse modo, aqui se
considera que a produção textual de Bolívar é uma fonte relevante para refazer o processo
estudado: o pensamento bolivariano fora um produto de um contexto que não só produzira o
Libertador, como também fora produzido por ele, proposição que se torna possível ao se
considerar que o discurso é produto e produtor da realidade (FAIRCLOUGH, 2004, 2006;
BERGER; LUCKMANN, 2008).
A doutrina bolivariana possui a oportuna característica de ser apoiada por filosofia:
poucos teriam sido os casos em que Bolívar fizera ou decidira algo antes de ponderar
teoricamente (LYNCH, 1992, p.292). É um discurso marcado por referências textuais e
11

discursivas que tanto auxilia a compreender seu pensamento quanto a compreender a própria
formação da América póscolonial, processo esse que não se isenta de heterogeneidades e
contradições, a exemplo do próprio pensamento bolivariano e da própria confecção da
identidade nacionalista. Isso se observaria em particular na “Carta de Jamaica”, texto célebre
no qual o venezuelano realizou aquela que seria a primeira teoria própria de liberação
nacional latino-americana (LYNCH, 1992, p.92). Nesse texto, é chamativa a forma como o
autor manifesta entusiasmo por uma América desiludida com o império espanhol e unida por
uma ânsia heróica de liberdade; e paradoxalmente reconhece uma América Hispânica “órfã”
da metrópole, fragmentada entre si e obrigada a se emancipar estando ainda despreparada para
o autogoverno, tendo se lançado assim na “anarquía” e no “caos de la revolución”.
Ambas as Américas são simultâneas, o que constitui uma contradição relevante: a
análise desses enunciados em conjunto, com o auxílio de ferramentas sociolinguísticas e
históricas, pode ser uma forma possível para reconstruir o nacionalismo hispano-americano a
partir do sentido dado ao Troféu da Anarquia. Para tal, a abordagem que se propõe será a
Análise de Discurso Textualmente Orientada, que foca a construção identitária a partir de uma
investigação sociológica, histórica e linguístico-textual. O esforço é oportuno, considerando
que Bolívar fora um Libertador, tendo não apenas sido o produto de sua época, como também
um dos principais formadores dela – e, por consequência, do próprio nacionalismo hispano-
americano. Seu legado abrange assim não apenas na Venezuela, como em todo o continente
hispano-americano: suas ideias continuam construindo e sendo construídos pela América na
medida em que são evocadas como objeto de culto, fonte histórica ou justificativa política.
Para isso, a dissertação está pautada sobre o objetivo de oferecer uma interpretação
alternativa ao processo de formação do nacionalismo hispano-americano, partindo para isso
das afirmações de Pierre Chaunu sobre o assunto. De acordo com Chaunu, as explicações
disponíveis para a independência hispano-americana são orientadas por um “esquema
tradicional” condensado nos discursos, nos livros escolares e nas melhores obras com esse
tema (CHAUNU, 1979, p.124). Tais esquemas impõem um paradigma extraído de outros
espaços, culturas e realidades, forçando uma interpretação a partir de experiências
nacionalistas que possivelmente não se repetiram nas colônias hispano-americanas.
Chaunu divide esses esquemas em causas gerais, influências, exemplos e precursores.
As causas gerais envolvem os abusos da metrópole: o monopólio, a exclusão dos cargos
públicos e as opressões que recairiam sobre os “crioulos”, definidos como descendentes
diretos de espanhóis, mas nascidos em solo americano; por sinal, este seria o argumento
preferido dos chefes patriotas para dar às suas reivindicações particulares um senso de
12

dignidade e interesse geral – “nosotros americanos”. As influências incluem as ideias políticas


do Iluminismo, enquanto os exemplos reúnem as revoluções estadunidense e francesa. E
finalmente os precursores somam as diversas perturbações coloniais no século XVIII, das
quais se destacariam revoltas indígenas como as de Tupac Amaru, supostamente responsáveis
por dar aos colonos algum senso de patriotismo (CHAUNU, 1979, p.125-128)1. A interpre-
tação do ocorrido é assim subordinada a um “sentido de ruptura” quase inescapável, sentido
esse que

[S]e opone a toda construcción orgánica del continente latinoamericano [e] impide
que América española asuma su pasado hispánico, es decir obstaculiza el
establecimiento de las bases históricas de su cultura. Crea la ilusión de una
liberación conseguida, mientras que la independencia política le cuesta internamente
el refuerzo de las estructuras sociales (CHAUNU, 1979, p.123-124).2

No entender de Chaunu, é provável que este “sentido de ruptura” derive de uma


interpretação condicionada por uma imitação do nacionalismo fratricida que caracterizaria a
Europa do século XIX. Como prejuízo, as especificidades do processo hispano-americano
teriam sido ignoradas, simplificando as discussões e impedindo a obtenção de explicações
mais precisas (CHAUNU, 1979, p.124). Daí o possível “risco” de se recorrer à perspectiva
canônica: a maior parte de sua produção poderia estar condicionada pelo “sentido de ruptura”
necessário à coerência do nacionalismo. Dessa forma, existe uma chance de que estejam
servindo ao próprio projeto nacionalista, que priorizaria a necessidade de se explicar a
identidade nacional como autorreferente e independente de qualquer influência ou origem
“estrangeira”, com o fim de obter coerência, legitimidade e até mesmo sentido.
A consequência metodológica dessa ideia de ruptura é previsível: analisar a menci-
onada Carta de Jamaica, por exemplo, demandaria enfatizar a América unida pela liberdade e
“silenciar” a América fragmentada pela orfandade. Eis por que se propõe aqui um estudo do
nacionalismo hispano-americano não pela perspectiva da coerência, mas a partir das contradi-
ções do processo. Quando se admite que as nações vindouras guardam em si as características
coloniais – algo como uma “colonização interna” –, surge a oportunidade de vislumbrar que a
“incoerência” não ameaça ou invalida o projeto nacional estudado, mas o constitui e até

1
Sobre as revoluções francesa e estadunidense, cf., p.ex., Anderson (1991); em relação ao pressuposto das
revoltas indígenas, cf. p.ex. Loveman (1999); quanto à influência do Iluminismo, cf. também Anderson
(2001); e sobre a pressão da metrópole e do atrito entre peninsulares e crioulos, cf. Donghi (1976).
2
Sobre o reforço dessas estruturas, cf. Mark Hanson (1974), cujo argumento básico é o de que as nações
póscoloniais na América Latina herdaram o aparato legal, administrativo e organizacional da antiga forma de
organização imperial, realizando assim um processo contraditório de modernização a partir de “dinossauros
administrativos” que seriam renitentes e reativos a mudanças.
13

mesmo o torna possível. Tal como nas reflexões de Claudio Lomnitz, o nacionalismo peri-
férico nasceria de um impulso contraditório entre a necessidade de se conceber um estado
moderno e a de resguardar a tradição necessária à legitimidade (LOMNITZ, 2001, p.128).
Apesar disso, é preciso esclarecer que o objetivo da presente dissertação não se pauta
exatamente por se antepor aos “esquemas tradicionais”. Negar a veracidade desses não se
justifica, considerando que uma noção interpretativa da realidade tornaria o conceito de
“falso” dificilmente configurável. Dessa forma, o que se propõe seria uma explicação mais
útil à América Latina, considerando para isso que a história seria uma organização do passado
a partir das questões do presente, e que a tendência de superar esses esquemas tradicionais já
estaria se manifestando no trabalho de alguns latino-americanistas (CHAUNU, 1979, p.124).
Nesse sentido, cabe mencionar as inquietações de ensaístas como o venezuelano Carlos
Rangel (1988) e o mexicano Octavio Paz (1976).
Ora, a disciplina das Relações Internacionais possui um importante papel nesse
sentido. Suas ferramentas, conceitos e objeto de estudo permitem problematizar a formação
das identidades nacionais, tarefa da qual se beneficiaria por ampliar o próprio alcance
explicativo, o que seria possível quando apela a diversas disciplinas do conhecimento. Isso
seria possível na medida em que considere as identidades como um processo, e não como um
pressuposto ontológico ou uma origem coerente. Há motivos para se concluir que o mais útil
para a América Latina não será trocar um esquema de causalidade por outro alternativo: o
melhor será avaliar essas interpretações contraditórias em sua totalidade. Daí a sugestão de
abordagem com base em Fairclough e Foucault.
14

2. MÉTODO E METODOLOGIA

A dissertação utilizará uma Análise de Discurso Textualmente Orientada para


investigar a formação do nacionalismo hispano-americano a partir do sentido conferido ao
Troféu da Anarquia pelo pensamento emancipatório bolivariano. Recorrerá para isso ao ponto
de vista de Norman Fairclough (1993; 2001), segundo quem a Análise de Discurso é
constituída por uma abordagem tridimensional do objeto investigado. O discurso será assim
analisado sinérgica e simultaneamente nos aspectos sociológico, histórico e linguístico. Para
isso, a dissertação assumirá uma perspectiva intersubjetiva da ordem social, tal como proposta
por Samuel Berger e Peter Luckmann (2008), de maneira a esclarecer como a realidade
humana existe, é criada, faz sentido e gera efeitos.
De acordo com Berger e Luckmann, o ser humano vive em um ambiente próprio,
especificamente social, produzido em conjunto com a totalidade e suas formações sócio-
culturais. Tais formações não podem ser entendidas como resultado da constituição biológica,
de leis naturais ou do ambiente natural, mas unicamente como produto da atividade humana
(BERGER; LUCKMANN, 2008, pp.72-73). Ora, o ambiente humano torna-se “realidade”
quando ocorre a institucionalização, ou seja, uma tipificação de ações habituais praticadas por
tipos específicos de atores. Essas tipificações são recíprocas, sendo acessíveis a todos os
membros do grupo social, bem como reproduzidas por eles: daí a afirmação basilar de que o
homo sapiens é sobretudo homo socius.
Tal processo ocorre no curso de uma história compartilhada, não sendo assim possível
entender uma instituição sem entender o processo histórico em que foi produzida (BERGER;
LUCKMANN, 2008, p.79). Dessa forma, o mundo institucional será experimentado como
realidade objetiva, uma vez que possui uma história que antecede o nascimento do indivíduo,
de maneira que a biografia individual será aprendida como um episódio localizado na história
objetiva da sociedade (BERGER; LUCKMANN, 2008, p.86). Portanto, entender a identidade
do indivíduo – e, por conseguinte, as identidades coletivas, tal como o naciona-lismo –
demanda entender as instituições sociais que influenciaram a formação de seu caráter.
A linguagem cumprirá papel importante no processo de institucionalização. Será
através dela que a “lógica” atribuída à ordem institucional fará parte do acervo socialmente
disponível do conhecimento, que pelos motivos expostos será tomado como natural e certo.
Dessa forma, uma vez que o indivíduo socializado “conheça” seu mundo social como uma
totalidade consistente, será forçado a explicar seu funcionamento e defeitos de funcionamento
15

em termos desse “conhecimento” (BERGER; LUCKMANN, 2008, p.92). Isso significa dizer
que a Análise do Discurso deve considerar as instituições em que o discurso foi elaborado,
bem como o histórico que permitiu a criação dessas instituições, porque isso torna possível
entender os termos que o discurso utiliza para se expressar.
Ora, a abordagem aqui proposta enfatiza o caráter linguístico dessa realidade
sociológica e intersubjetiva. Considera-se assim que a língua não apenas reflete essa
realidade, como também serve como estrutura para a construção e transformação dela. A
realidade humana será assim entendida como instituições derivadas da língua, e das quais se
originam a ordem social; a ordem social, como discurso; e o discurso, como um fenômeno
essencialmente sociolinguístico, baseado em ideologias específicas.

2.1 Discurso

A dissertação assume a definição de “discurso” proposta por Norman Fairclough: uma


maneira particular de representar partes do mundo, havendo discursos alternativos e muitas
vezes competitivos, associados com diferentes grupos de pessoas em diferentes posições
sociais. De acordo com Fairclough, os discursos diferem na forma como representam os
eventos sociais, o que é excluído ou incluído, quão abstrata ou concretamente os eventos são
representados, e como mais especificamente os processos e relações, atores sociais, tempo e
lugar de eventos são representados (FAIRCLOUGH, 2004, p.17). Tal como será visto, essas
diferenças ocorrem porque o discurso é elaborado em um ambiente social e político. Eis por
que o discurso possui um caráter constitutivo que se define ao se contrapor a outro grupo,
fundamentado para isso na lógica imposta pela língua e pela própria (in)coerência de um
processo dialético, realizado através da contraposição das identidades.
Fairclough definirá “discurso” com base nos “estudos arqueológicos iniciais” de
Michel Foucault, de quem a Análise de Discurso Textualmente Orientada toma duas
contribuições consideradas importantes. A primeira dessas, segundo Fairclough, é a visão
constitutiva do discurso, na qual o ato discursivo construirá a sociedade em várias dimensões:
os objetos do conhecimento, as formas sociais do “eu”, as relações sociais e as estruturas
sociais. A segunda é uma ênfase na interdependência das práticas discursivas de uma
sociedade ou instituição: os textos recorrem a outros textos historicamente contemporâneos ou
anteriores – propriedade definida como “intertextualidade” –, bem como a qualquer tipo de
16

prática discursiva – a chamada “interdiscursividade” –, para se expressar ou transformar a


realidade (FAIRCLOUGH, 2006, pp.39-40).
No entanto, segundo Fairclough, o pensamento foucaultiano possui a limitação de não
admitir comparações entre a Análise de Discurso e a análise linguística, e tampouco entre o
discurso e a linguagem. É o que se verifica, por exemplo, nas passagens em que Foucault
define o enunciado, que considera o átomo do discurso (FOUCAULT, 1969, p.107). De
acordo com Foucault, “é evidente que os enunciados não existem no mesmo sentido de que
uma língua existe”; além disso, “sem enunciados, a língua não existiria; mas nenhum
enunciado depende da língua para que exista”; e ainda, “a língua não existe senão a título de
sistema para enunciados possíveis; mas por outro lado ela não existe senão a título de descri-
ção (mais ou menos exaustiva) obtida a partir de um conjunto de enunciados reais”
(FOUCAULT, 1969, pp.113-114, tradução nossa) 3.
Para superar essa “limitação”, Fairclough enfatiza a relação ativa do discurso com a
construção da realidade, relação essa possibilitada pela linguagem. Dessa forma, o autor
entende que os discursos contribuem para a produção, transformação e reprodução dos objetos
e dos sujeitos da vida social. Por consequência, o discurso não possui uma relação passiva
com o real, com a linguagem meramente se referindo a objetos dados de maneira indepen-
dente; antes, “[d]iscurso está em uma relação ativa para com a realidade, [e] a língua significa
realidade no sentido de construir sentidos para ela” (FAIRCLOUGH, 2006, pp.41-42, tradu-
ção nossa)4.
No entender de Fairclough, o discurso contribui de três formas distintas para formar a
realidade. Para começar, o discurso constrói “identidades sociais” e “posições” de sujeitos,
efeitos discursivos que Fairclough compreende em um sentido construtivista que em muitos
sentidos remete ao pensamento de Berger e Luckmann; além disso, o discurso edifica relações
sociais entre as pessoas; e finalmente, o discurso elabora sistemas de conhecimento e crença.
De acordo com o autor, essas funções correspondem às próprias funções da linguagem e
dimensões de sentido que coexistem e interagem em todo discurso. São essas funções a
função identitária, relacionada com o modo pelo qual as identidades sociais são estabelecidas
no discurso; a relacional, que diz respeito às relações sociais entre os participantes do
discurso; e a ideacional, responsável pela forma de os textos significarem o mundo e seus

3
[I]l est évident que les énoncés n’existen pas au sens óu une langue existe”; [s]’il n’y avait pas d’énoncés, la
langue n’existerait pas; mais aucun énoncé n’est indispensable pour que la langue existe; [l]a langue n’existe
qu’à titre de système de construction pour des énoncés possibles; mais d’um autre côté, elle n’existe qu’à titre
de description (plus ou moins exhaustive) obtenue sur un ensemble d’énoncés réels.
4
[D]iscourse is in an active relation to reality, [and] language signifies reality in the sense of constructing
meanings for it.
17

processos e entidades. Ou seja, o discurso – bem como as identidades sociais e a realidade


humana – será formado de acordo com as funções e propriedades da língua, podendo assim
ser avaliado sob uma perspectiva linguística (FAIRCLOUGH, 2006, pp.64-65).
Para isso, segundo Fairclough, os enunciados devem ser compreendidos como
manifestações concretas, expressas e comunicadas da língua, inseridas em um ambiente de
interação social. Não deve assim ser reduzida a uma análise lógica de proposições, uma
análise gramatical de frases ou uma análise contextual de formulações, embora a Análise de
Discurso Textualmente Orientada não exclua esses aspectos. Para Fairclough, a Análise de
Discurso diz respeito à especificação sócio e historicamente variável de formações discur-
sivas, bem como aos sistemas de regras que tornam possível a ocorrência de certos enun-
ciados, e não outros, em determinados tempos, lugares e localizações institucionais (FAIR-
CLOUGH, 2006, p.64). Compreender essas ideias demanda revisar os conceitos linguísticos
evocados por Fairclough.

2.2 Linguística saussureana

Quando se refere à linguística e à própria língua, Fairclough menciona o “Cours de


Linguistique Géneral” de Ferdinand de Saussure (1817-1913). Nessa obra, Saussure
argumenta que a língua pode ser analisada em termos de suas leis de operação, sem referência
às propriedades e evolução. A importância de se estudar a língua dessa maneira é cienti-
ficamente abrangente: “Na vida dos indivíduos e das sociedades, a linguagem é um fator mais
importante do que qualquer outro. Seria inadmissível que seu estudo permanecesse restrito a
quaisquer especialistas; de fato, todo mundo se ocupa dela em menor ou maior intensi-
dade“ (SAUSSURE, 1995, p.21, tradução nossa)5.
De acordo com Saussure, o alicerce estrutural da língua está no signo linguístico, que
consiste no produto de duas partes relacionadas: um componente acústico, denominado
significante; e um componente conceitual, ou significado (SAUSSURE, 1995, pp.98-99).
Essa composição possui características basilares. Uma das mais relevantes é a arbitrariedade:
um significado seria unido ao significante por conveniência cultural e social, não havendo

5
Dans la vie des individus et des sociétés, le langage est un facteurs plus important qu’aucun autres. Il serait
inadmissible que son étude restât l’affaire de quelques spécialistes ; en fait, tout le monde s’en occupe peu ou
prou.
18

assim ligação direta entre um objeto e sua descrição. Isso significa que a língua é um
fenômeno social e coletivo, não havendo produção de sistemas linguísticos possível a partir
do indivíduo (SAUSSURE, 1995, pp.100-101; p.157). Igualmente relevante é a imutabi-
lidade: a ligação entre significado e significante que edifica o signo tende a ser gerada e
depois perpetuada pela coletividade em que fora criada, recebendo assim reforço do tempo.
Esse caráter imutável convive com o da mutabilidade: para perpetuar-se, o signo deve passar
por adaptações, o que torna complementares o caráter mutável e imutável do símbolo (SAUS-
SURE, 1995, pp.105; 109).
Quando considerado em sua totalidade, a produção de sentido ocorre basicamente na
medida em que o signo seja imbuído de um valor. Isso significa que a existência simbológica
somente se torna possível em um sistema no qual o sentido é fabricado sem termos positivos,
ou seja, a partir daquilo que não é. Nas palavras de Saussure: “Os valores da escrita não
surgem de outra forma que não seja pela oposição recíproca deles em meio a um sistema
definido (...)” 6; eis por que “na língua, não há nada além da diferença” (SAUSSURE, 1995,
pp.165-166, tradução nossa)7. Uma importante conclusão sobre as identidades nacionais pode
ser inferida daqui: essas surgirão a partir da diferenciação e da negação.

2.2.1 Crítica linguística de Fairclough

Para o pensamento faircloughiano, Saussure comete o equívoco de enfatizar o uso


individual da língua, ignorando em muitos sentidos o aspecto social. Eis por que considera
relevante a opinião dos sociolinguistas, para os quais o uso da linguagem é socializado, e não
individualizado. Esse ponto de vista torna possível acessar a variação no uso da linguagem,
bem como o estudo de sua correlação com variáveis sociais, tais como a natureza da relação
entre os participantes em interações, o tipo de evento social, os propósitos sociais da interação
e assim por diante (FAIRCLOUGH, 2006, p.63). Por consequência, isso torna possível
alcançar um saber científico ampliado pela possibilidade de se alcançar uma realidade
sociocognitiva que transcende o indivíduo.

6
Les valeurs de l’écriture n’agissent que par leur opposition réciproque au sein d’un système defini (...).
7
[D]ans la langue il n’y a que des différences.
19

No entanto, segundo Fairclough, mesmo o ponto de vista sociolinguístico revela


limitações. A opinião dos sociolinguistas deixa implícito que os eventos e fatos sociais
influenciam de forma independente o uso da língua, ignorando o aspecto constitutivo dela.
Além disso, relacionam variáveis sociais limitadas às variáveis linguísticas, gerando resul-
tados cientificamente restritos. Para “ajustar” essas limitações, Fairclough afirma que a língua
é o principal instrumento para constituição, reprodução e mudança social, não se restringindo
à individualidade. Somado a essa opinião, Fairclough aprofunda a conexão entre a língua e a
sociedade, ampliando o uso da língua para horizontes mais “globais” como classes, grupos e
identidades mais amplas (FAIRCLOUGH, 2006, p.63).
Dessa forma, Fairclough considera o uso da linguagem como prática social, e não
como uma atividade puramente individual ou o reflexo de variáveis situacionais. Isso implica
dizer que o discurso é um modo de ação, uma forma de as pessoas interagirem com o mundo e
umas sobre as outras, bem como um modo de representação; e significa também que há uma
relação dialética entre o discurso e a estrutura social, estando geralmente mais evidenciada
entre a prática social e a estrutura social, sendo a última tanto uma condição como um efeito
da primeira (FAIRCLOUGH, 2006, p.64).
Nesse sentido, uma pessoa ou um grupo se expressa e se comporta segundo o que está
culturalmente disponível, ou seja, de acordo com as convenções dos discursos que compu-
seram determinada sociedade e as identidades que nelas surjam; e na medida em que se sujeite
a essas convenções, surge a oportunidade de transformá-las. Portanto, analisar o discurso – tal
como o nacionalismo hispano-americano tratado nesta dissertação – permite não apenas
entender como a sociedade estava formada, como também em que sentido estava sendo
transformada. Isso significa que, na medida em que o discurso é cerceado pelas práticas
sociais e discursivas, poderá revelar muito do que ocorria na época; e na medida em que seja
constituinte, pode igualmente revelar muito de como a época estava sendo trabalhada, bem
como que herança legaria às convenções sociais, culturais e discursivas.
Apesar dessas críticas, os conceitos básicos saussureanos ainda prevalecem no pensa-
mento faircloughiano. A produção do discurso será assim um fenômeno social e linguístico,
guiado pela lógica do signo. Os discursos – e, por conseguinte, as classes e as identidades
nacionais – surgirão através do esforço de diferenciação, ganhando sentido a partir de uma
contraposição para com outros discursos. Essa contraposição possui caráter competitivo,
considerando que as díades serão realizadas com base em um juízo de valor nascido da
comparação. O alicerce dessa contraposição será o caráter ideológico do discurso.
20

2.3 Ideologia e textualidade

A mencionada diferenciação entre os discursos ocorre na medida em que eles


produzam e sejam derivados da ideologia, definida por Fairclough como representação de
aspectos do mundo que contribui para estabelecer, manter e mudar as relações sociais de
poder. Essa é uma visão de ideologia que, para Fairclough, contrasta com várias visões
“descritivas” de ideologia como posições, atitudes, crenças, perspectivas, etc. de grupos
sociais sem referência às relações de poder entre tais grupos (FAIRCLOUGH, 2006, p.9).
De acordo com Fairclough, a ideologia manifesta-se em vários aspectos da realidade.
A prática social possui diversas orientações – econômica, política e cultural, por exemplo; o
discurso está necessariamente implicado em todas elas. Com isso, Fairclough enfatiza que o
discurso como prática política e ideológica é o principal aspecto a ser investigado, porque
abrange o aspecto prioritário da constituição real da sociedade, tendo assim prioridade sobre
todos os demais. Nas palavras do autor,

A prática política e a prática ideológica não são independentes, porque ideologia são
sentidos gerados dentro de relações de poder em uma dimensão de exercício de
poder e de luta pelo poder. Dessa forma, a prática política é a categoria superior.
Além disso, discursos como prática política não são apenas um lugar de luta pelo
poder, mas também um marco na luta pelo poder: a prática discursiva utiliza
convenções que naturalizam certas formas de relações de poder e ideologias, e tais
convenções por si sós, e a maneira pelas quais são articuladas, são um foco de luta.
(FAIRCLOUGH, 2006, p.67, tradução nossa)8

Vale observar que essa é uma visão compatível com a ordem de discurso proposta por
Foucault, para quem “discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas
de dominação, mas aquilo pelo que se luta, o poder do qual procura-se apoderar” (FOU-
CAULT, 1971, p.12, tradução nossa)9. A própria identidade nacional será assim não apenas
um objeto de luta, como também o próprio instrumento de luta, processo que não se isenta de
heterogeneidades que, longe de impedir, caracterizam e tornam possíveis as identidades daí
surgidas, através das contraposições ideológicas tipicamente discursivas.

8
[P]olitical and ideological practice are not independent of each other, for ideology is significations generated
within power relations as a dimension of the exercise of power and struggle over power. Thus political
practice is the superordinate category. Furthermore, discourse as a political practice is not only a site of power
struggle, but also a stake in power struggle: discursive practice draws upon conventions which naturalize
particular power relations and ideologies, and these conventions themselves, and the ways in which they are
articulated, are a focus of struggle.
9
Le discours n'est pas simplement ce qui traduit les luttes ou les systèmes de domination, mais ce pour quoi, ce
par quoi on lutte, le pouvoir dont on cherche à s'emparer.
21

De acordo com Fairclough, a ideologia possui caráter linguístico, investindo na


linguagem de várias maneiras e em vários níveis. Disso se pode inferir que a análise
ideológica é também uma função da linguística, porque a ideologia possuirá as características
básicas do signo, tais como arbitrariedade, diferença e valoração; vale esclarecer também que
o discurso também possuirá essas características justamente porque está estruturado em
formato ideológico. As representações ideológicas podem ser identificadas em textos, que
manterão com a ideologia uma relação dual de causa e efeito. Considerando o mencionado
caráter linguístico da ideologia, aqui se propõe que as ferramentas linguísticas são as mais
adequadas para se investigar as características ideológicas do texto.
A importância dessa pesquisa linguístico-ideológica está na própria necessidade
científica de se alcançar a formação sociolinguística da realidade humana. Como afirma
Fairclough, textos são elementos dos eventos sociais, porque produzem a sociedade e por ela
são produzidos. Dessa forma, os textos não apenas refletem como também edificam a forma
de o ser humano representar e dominar a realidade em que se encontra inserido. Textos podem
transmitir e trazer mudanças no conhecimento (é possível aprender coisas a partir deles), nas
crenças, nas atitudes e assim por diante; e podem ainda ter efeitos em longo prazo, formando
identidades, alterando relações sociais, ações e até mesmo o mundo material. Isso ocorre na
medida em que os textos contribuem à fabricação dos sentidos (FAIRCLOUGH, 2004, p.9).
Tal ideia permite reafirmar a importância dos textos de Bolívar – em particular, a
“Carta de Jamaica” – não apenas como um reflexo da confecção das identidades soberanas
hispano-americanas, mas também como um produtor dessas identidades. Para isso, observa
Fairclough, o efeito causal e reflexivo dos textos sobre a realidade precisa ser considerado no
contexto em que está inserido. Daí a necessidade de se analisar a ideologia a partir de uma
análise textual emoldurada por uma análise social; e daí também a importância de se
investigar as instituições das quais as práticas sociais derivam, ou que tentam transformar.
Afinal, se por um lado ideologias são representações, por outro não deixam de ser
“praticadas” em formas de agir social, bem como “inculcadas” nas identidades dos agentes
sociais. Eis por que o significado edificado a partir delas depende não apenas do que está
explícito no texto, como também do que está implícito, ou melhor, assumido. Ademais, ideo-
logias podem também possuir uma durabilidade e estabilidade que transcende os textos, po-
dendo ser associadas aos discursos em seu sentido mais amplo (FAIRCLOUGH, 2004, p.9).
Fairclough insiste assim que a ideologia deve ser entendida como uma propriedade
tanto de estruturas sociais – a língua – como também de eventos sociais. Não convém
entender a ideologia como um reflexo do real, ou ignorar as relações das pessoas entre si, bem
22

como a possibilidade de a ideologia ser rejeitada por essas mesmas pessoas. Eis por que
Fairclough prefere a concepção de que a ideologia está localizada tanto nas estruturas (ou
ordens do discurso) que constituem o resultado de eventos passados como nas condições para
os eventos contemporâneos e nos próprios eventos quando reproduzem e transformam as
estruturas (FAIRCLOUGH, 2006, p.187). Portanto, analisar a ideologia como evento linguís-
tico demanda avaliar igualmente a maneira como a ideologia está disponível no repertório
cultural e nas relações sociais.

2.4 Dialética e contradição

De acordo com Fairclough, a Análise de Discurso orientada dialeticamente não possui


um procedimento satisfatoriamente claro e bem definido; no entanto, pode ser compreendida
como um esforço oriundo dos princípios ontológicos e epistemológicos que orientam a aná-
lise. Os mais importantes desses princípios, no entender de Fairclough, são os processos e
relações que antecedem os elementos e estruturas. Esses são compreendidos como “deri-
vados” de uma constituição heterogênea e contraditória, devido aos diversos processos que os
produzem. Eis por que as mudanças sociais surgem justamente das contradições do interior
das “coisas”, estruturas e sistemas (FAIRCLOUGH, 2006, p.214).
Fairclough detecta diversas origens e manifestações dessa contradição discursiva.
Parte delas advém daquilo que denomina intertextualidade: na medida em que recorre a
outros textos para se expressar, o discurso realiza clamores e proposições contraditórias.
Outra parte surge daquilo que se rotula como interdiscursividade: o discurso apela a outros
discursos para se configurar, característica que o torna contraditório de maneira semelhante ao
que ocorre intertextualmente. A forma como o discurso reflete e produz a realidade social
gera também contradições: nesse caso, o discurso muda através da conservação e se conserva
através de mudanças, processo que o torna ambíguo. Em suma, a heterogeneidade e o caráter
construtivo e reflexivo são as origens das contradições que caracterizam o discurso.
Ora, partindo das concepções faircloughianas e foucaultianas, a dissertação ampliará a
noção de discurso contraditório, de maneira a explicar com mais detalhes como a mencionada
dialética se aplica na confecção das identidades. Argumenta dessa forma que a contradição é
ao mesmo tempo uma característica e uma necessidade do discurso: tal como afirma Fou-
cault, a contradição, “longe de ser aparência ou acidente do discurso, longe de ser aquilo que
23

deve ser apartado para que se libere enfim a verdade, [a contradição] constitui por si só sua
existência; é a partir dela que [o discurso] emerge” (FOUCAULT, 1969, p.197, tradução
nossa)10. A mesma ideia pode ser inferida de Fairclough, considerando suas observações
sobre a contradição discursiva.

2.4.1 Dialética e soberania

Para definir com mais clareza essa proposição, será utilizada a formulação de Tzvetan
Todorov sobre a soberania como produto dialético da confecção de identidades. O método
substitui assim o conceito de hegemonia proposto por Fairclough, opção justificada pelas
necessidades impostas pelo próprio objeto de estudo. As reflexões todorovianas são compa-
tíveis com as de Fairclough: ambos concebem a formação dos conceitos, das identidades, do
discurso e da própria ideologia através de contraposições; estão igualmente de acordo com o
caráter comparativo, socializado e competitivo do processo dialético; e também assumem a
possibilidade de se analisar o discurso não apenas de forma textual, como também de maneira
imagética e fonética, ampliando as possibilidades científicas e metodológicas dessa abor-
dagem científica11.
O esquema apresentado por Todorov parte do conceito de “dialética do senhor e do
escravo” proposto por Friedrich Hegel e esquematizado por Aleksandr Kojève. De acordo
com Todorov, esse seria um dos “mitos fundadores” necessários para explicar a origem das
identidades, não sendo provável, mas pertinente para explicar e esquematizar esse processo
(TODOROV, 1996, p.36). A indicada pertinência interessa ao trabalho aqui proposto: na
dialética Hegel-Kojève, a identidade surge a partir de uma relativização do Eu para com
outras identidades consideradas externas e muitas vezes ameaçadoras. Isso ocorre da mesma

10
[L]oin d’être apparence ou accident du discours, loin d’être ce dont Il fault l’affranchir pour qu’il libere enfin
as verité déployée, constitue lui-même de son existence: c’est à partir d’elle qu’il emerge (...). La contradiction
fonctionne alors, au fil du discours, comme le principe de son historicité.
11
Existe ainda outro motivo para se realizar essa substituição: a própria necessidade de superar visões
tendenciosas na análise do Troféu da Anarquia. Como observado, um dos objetivos propostos é o de evitar os
“esquemas tradicionais” da libertação latino-americana. Isso implica superar a noção de hegemonia de
Antonio Gramsci, utilizada por Fairclough. Existem razões para se concluir que as análises sobre hegemonia
são tendenciosas: na medida em que haja um discurso “hegemônico”, haverá também um discurso “anti-
hegemônico” que tende a ser considerado legítimo, porque as hegemonias seriam necessariamente “tirânicas”
e “opressoras”, a exemplo das metrópoles. O conceito conduziria a pesquisa aos esquemas tradicionais que se
quer evitar; daí a pertinência da substituição do conceito de hegemonia pelo de “soberania”.
24

forma que o signo surge a partir de díades baseadas em diferença e valor evidenciados pela
comparação12.
De acordo com Todorov, o impulso da dialética Hegel-Kojève ocorre porque o Eu
depende do Outro para que exista, compreenda a si mesmo e possa ser compreendido. A
principal dependência nesse sentido seria quanto ao reconhecimento que o Eu precisa obter do
Outro, entendendo-se por “reconhecimento” a aquiescência que uma entidade concede à
existência de outra (TODOROV, 1996, p.33-34). Na dialética, a existência do Eu precisa
desse reconhecimento cedido pelo Outro, ou simplesmente não poderá existir: a vida humana
é basicamente a vida social, e a vida social torna-se possível através do reconhecimento. A
tragédia dialética ocorre porque o Eu pede reconhecimento ao Outro da mesma forma que o
Outro o solicita, estando ambos dispostos a sacrificar a própria vida em nome dessa glória.
Eis por que o reconhecimento gera um conflito extremo: fazer-se reconhecer-se é impor-se
(TORODOV, 1996, p.35).
O pensamento todoroviano admite que esse processo não ocorre somente através da
agressão. Há casos em que a sujeição a uma hierarquia – ou uma ordem do discurso – fará
com que o sujeito ou o grupo exista na medida em que usufrua de aceitação; nesse caso, o
reconhecimento pode envolver até mesmo três entidades, onde a primeira agredirá a segunda
para obter o reconhecimento da terceira. Entretanto, mesmo Todorov admite que, uma vez
aplicada à soberania, a busca do reconhecimento será necessariamente violenta, porque a
menor concessão que se abre ao Outro implica ameaça à identidade nesse contexto. Além
disso, envolverá duas entidades distintas, como dois cavalheiros em uma luta de morte.
No entanto, mesmo nesse caso extremo o reconhecimento depende da concessão dada
pelo antagonista. Eliminar o Outro, portanto, seria uma forma de eliminar o próprio Eu,
porque frustra a extração da soberania necessária. Nesse caso, a identidade já não faria
sentido, uma vez que perderia a alteridade que torna possível estabelecer a diferença e o valor.
A situação é facilmente traduzida em termos linguísticos: como um signo, a identidade não
poderia estabelecer a diferença de que depende para existir. Com a destruição do outro, o
fenômeno social seria impossibilitado pela ausência de dialética. A única chance nesse sentido

12
Não convém desenvolver um debate sobre rótulos; mas cabe aqui observar que a dialética Hegel-Kojève pode
ser classificada como construtivista, sendo assim outra vez compatível com o pensamento faircloughiano.
Afinal, nela a configuração da identidade depende de interações sociais, não havendo identidade
autorreferente. A mesma compatibilidade pode ser verificada também entre essa dialética e as noções
sociolinguísticas: os sentidos socialmente produzidos – e por consequência as identidades – surgirão também
através de díades e diferenciações arbitrárias, comparativas e valorativas. Ademais, a dialética senhor-escravo
pode também ser aplicada às noções de ideologia e de identidade sugeridas por Fairclough.
25

seria a de ter a soberania reconhecida pelo Outro – o que também seria indesejável, pois com-
prometeria a possibilidade de soberania ao anular a alteridade (cf. TODOROV, 1996, p.35).
Disso se infere que a obtenção da soberania fica assim condenada à “frustração”: um
resultado dialético extremo – a destruição da alteridade pela força, ou a eliminação soberana
da alteridade pelo reconhecimento concedido – anula invariavelmente o contraponto que o Eu
precisa obter do Outro. Dessa forma, será essa frustração que contraditoriamente tornará
possível à identidade surgir e existir: na medida em que não seja plenamente reconhecida, o
Eu justifica sua própria existência pela ameaça representada pelo Outro à soberania,
perpetuando assim o mecanismo dialético. Disso se infere que a dialética não produz a
identidade: a dialética é a identidade.
Todorov aplica o esquema Hegel-Kojève ao surgimento da identidade individual; mas,
sob um ponto de vista faircloughiano, o esquema pode ser aplicado também a grupos sociais,
que serão configurados em uma relação de diferenciação dialética, inseridos em um contexto
de luta pelo poder. É uma afirmação linguisticamente plausível, considerando a visão fair-
cloughiana de que a língua é a estrutura social maior (cf. FAIRCLOUGH, 2004, pp.23-24).

2.5 Metodologia

A metodologia em si começa pela proposição faircloughiana de que a Análise de


Discurso é um empreendimento interdisciplinar. Isso significa que o discurso deve ser
analisado em relação às propriedades textuais; às circunstâncias de produção, distribuição e
consumo do texto; às práticas sociais em várias instituições; e ao relacionamento da prática
social com as relações de poder no nível social (FAIRCLOUGH, 2006, p.225). Dessa forma,
aqui se considera que as especificidades de uma prática discursiva dependem da prática social
da qual faz parte. Eis por que a presente pesquisa dará prioridade às disciplinas que se ocupam
com as questões institucionais e políticas, tais como a sociologia, a ciência política e a
história, estando assim de acordo com a perspectiva faircloughiana de que a Análise de
Discurso conduz pesquisas sobre questões definidas fora dela (FAIRCLOUGH, 2006, p.226).
A interdisciplinaridade da Análise de Discurso implica avaliar sinergeticamente a
prática social, a prática discursiva e o texto. As três instâncias são complementares e se
sobrepõem na prática, não havendo hierarquia ou precedência exata de uma sobre a outra. A
prática social buscará uma análise macrossociológica do discurso, envolvendo os sistemas de
26

conhecimento e crença, as relações sociais e as identidades sociais disponíveis na época. A


prática discursiva diz respeito aos processos de produção, consumo e distribuição do texto,
envolvendo também o contexto da situação, definido como o aspecto da identidade social dos
participantes, ou o “mapa mental” disponível no pensamento da época. E o texto em si será
abordado como uma microanálise da prática social, feita com ferramentas linguísticas
somadas às análises acima listadas (FAIRCLOUGH, 2006).
Na prática, a Análise de Discurso será o trabalho de entender e explicar o que está
sendo dito no texto. Isso precisa ser feito considerando que os agentes sociais – os produtores
do discurso – são constrangidos pelas estruturas e pelas práticas em que estão inseridos. No
entanto, é preciso estar atento para a maneira como os agentes possuem certa liberdade
associativa, uma vez que os discursos possuem também efeito constitutivo sobre a realidade.
Isso implica também avaliar e julgar o que estejam dizendo, esforço esse que será feito com
base nas estruturas e práticas sociais disponíveis. O esforço justifica-se em parte pelo fato de a
fabricação de sentidos não se resumir apenas ao que está explícito, mas também ao que está
implícito (FAIRCLOUGH, 2004, pp.23-27). Cabe informar que os elementos aqui consi-
derados mais relevantes – explicação e julgamento – são possibilitados justamente pela Ava-
liação das práticas sociais e discursivas então disponíveis.
Ora, a análise textual em si combinará a transcrição textual e a interpretação
sociolinguística. Isso será feito considerando que não há distinção entre ambas as atividades.
De acordo com Fairclough, a interpretação deve em primeiro lugar construir um sentido para
os aspectos dos textos, considerados como elementos da prática discursiva; e buscar em
seguida construir um sentido dos aspectos do texto e de nossa opinião sobre como são
produzidos e interpretados, considerando ambos como encaixados numa prática social mais
ampla (FAIRCLOUGH, 2004, pp. 198-199). A análise do texto em si será a de “descrição”,
enquanto que a análise da prática social da qual o discurso faz parte será a de “interpretação”.
Ambas as análises serão realizadas em sinergia: embora algumas tendências distingam a
análise linguística da análise dos sentidos sociais, aqui se considera que ambas não se
excluem (FAIRCLOUGH, 2004, pp.101-102).
Tais esforços serão empreendidos com base no objetivo principal de revelar o ethos
discursivo, ou seja, as diversas características relacionadas com a elaboração de identidades
sociais no discurso. A investigação envolverá assim não apenas o discurso, mas também o
comportamento geral na construção de uma identidade. Na presente dissertação, investigar o
ethos implicará avaliar sociolinguisticamente a formação do Eu através da contraposição
dialética, política e ideológica em relação ao Outro. Isso será feito considerando o ethos como
27

parte de um processo maior de “modelagem”, no qual o lugar e o tempo de uma interação e


seus participantes são constituídos por associações em certas direções intertextuais. Em outras
palavras, o ethos será avaliado não apenas na Análise de Discurso em si, como em todo o
corpo do trabalho; portanto, as características analíticas em sua totalidade serão relevantes
nessa tarefa (cf. FAIRCLOUGH, 2004, pp.166; 225-240). Essas serão pinçadas a partir da
necessidade de análise que o próprio texto revele na medida em que for transcorrido.
Posto isso, é preciso estabelecer um critério para se selecionar as passagens que devem
ser analisadas no texto. Fairclough recomenda localizar o ponto crítico e o momento de crise
do discurso, nos quais algo estaria caminhando de maneira errada: repetições, hesitações,
silêncios, mudanças súbitas de estilo e assim por diante (FAIRCLOUGH, 2006, p.230). A
esses serão acrescidos índices sintagmáticos como contradições, omissões, redundâncias; e
índices paradigmáticos como questões de verossimilhança cultural e científica (cf. TODO-
ROV, 1978). As passagens selecionadas serão analisadas através de uma combinação de
algumas estratégias analíticas. Buscará assim a interdiscursividade, ou a forma como o
discurso se refere a outros discursos disponíveis no contexto; a intertextualidade, definida
como a maneira de o discurso fazer uso de outros textos para se expressar; o significado das
palavras, que consiste em buscar palavras-chave com significado geral ou local como foco de
luta; as metáforas usadas no discurso, bem como que fatores (cultural, ideológico, etc.)
determinam a escolha delas. Como dito, tal análise será feita em conjunto com os aspectos da
prática social e discursiva.
A análise textual será organizada em quatro itens básicos: vocabulário, gramática,
coesão e estrutura textual. O vocabulário trata de investigar o que significam palavras
individuais. A gramática cuida das palavras combinadas em orações e frases. A coesão analisa
a ligação entre orações e frases. E a estrutura textual reflete sobre as propriedades
organizacionais em larga escala dos textos (FAIRCLOUGH, 2006, p.103). Haveria ainda três
itens que estariam mais relacionados com a prática textual: a força dos enunciados, ou o tipo
de atos de fala – promessa, pedido, ameaça, etc.; a coerência dos textos, ou a avaliação se os
enunciados fazem sentido entre si; e a intertextualidade dos textos, relacionada à forma como
evocam outros textos. Os sete itens reunidos formam um quadro para análise textual que
abrange aspectos de sua produção e interpretação, como também as propriedades formais do
texto (FAIRCLOUGH, 2006, p.104).
Baseada em Tzvetan Todorov (1991), a interpretação será orientada ainda por um
quadro analítico que evidencie o tema a ser pesquisado; o relato a ser analisado; a unidade de
tempo em que ocorreu a formação discursiva; a unidade de espaço em que se desenvolve a
28

formação; a unidade de ação em que ocorreu a formação do discurso; e as fontes que serão
analisadas. Dessa maneira, fica estabelecido que o tema será a formação do nacionalismo
hispano-americano; a unidade de tempo fica estabelecida entre 1810 e 1820; a unidade de
espaço restringe-se às colônias hispano-americanas; a unidade de ação define-se como o
Troféu da Anarquia, ou os conflitos ocorridos ao longo da unidade de tempo e de espaço; e a
fonte será a Carta de Jamaica, texto célebre de Simon Bolívar, cuja importância para o
pensamento emancipacionista na América Latina permite inferir o caráter constitutivo desse
texto não apenas na identidade nacional venezuelana, como de todo o continente.
Considera-se que o discurso bolivariano foi constrangido pelas práticas sociais e
discursivas da época, bem como buscara transformá-las ativamente. Além disso, constitui
parte do legado deixado pelo Troféu da Anarquia, de forma que possui efeito constituinte em
longo prazo sobre as identidades hispano-americanas. Ora, a escolha das estratégias –
intertextualidade, interdiscursividade, metáfora, ideologia-dialética, significado das palavras –
justifica-se pela associação dessas manifestações linguísticas com a formação do ethos
discursivo aqui buscado. Postas essas considerações, a dissertação optará por uma descrição
alongada da Carta de Jamaica, e as partes a serem analisadas serão escolhidas ao longo dessa
exposição. O critério para a análise será as passagens relacionadas com o ethos nacionalista
hispano-americano. Tal abordagem permitirá analisar todos os elementos em conjunto, tarefa
facilitada pela limitação do corpus a um único texto: a “Carta de Jamaica”. Por fim, observe-
se que a análise investigará não apenas o sentido direto do discurso, como também o sentido
indireto. Ambos serão considerados em sinergia, conforme o ponto de vista de Tzvetan
Todorov (1978, p.16), que são compatíveis com a mencionada proposta faircloughiana de que
os textos devem ser estudados não apenas em relação ao que está dito, como também ao que
está implícito, ou previamente assumido.
29

TEXTO
Pontos críticos
PRÁTICA Ethos
DISCURSIVA Intertextualidade
Interdiscursividade
Metáforas
PRÁTICA Palavras
SOCIAL
História
Produção
Recepção
Distribuição
Contexto

Sociologia
Conhecimento e crença
Identidades sociais
Relações sociais

Figura1: resumo do modelo macroanalític


Fonte: adaptado de Fairclough (2004)).

Objetivo geral Obter o ethos do nacionalismo hispano-americano através do


significado do Troféu da Anarquia

Trabalho analítico Interpretar – entender-explicar e julgar-avaliar

Estratégias Intersubjetividade, Intertextualidade, Significado das palavras,


analíticas Ideologia (dialética), Metáforas

Desenvolvimento Descrição e Interpretação simultâneas do discurso


analítico

Critério para Pontos críticos do discurso relacionados ao ethos e ao


seleção de significado do Troféu da Anarquia:
passagens
analisáveis Contradições, Omissões, Redundâncias, Hesitações, Mudanças
de estilo, Verossimilhança cultural, Verossimilhança científica

Itens de análise Vocabulário, Gramática, Coesão, Estrutura


textual
Características do enunciado: Força, Coerência,
Intertextualidade
Ethos: formação sociolinguística, dialética e ideológica da
identidade

Composição do Palavras, Orações, Frases, Períodos, Conceitos


discurso

Sentidos Sentido direto e sentido indireto


investigados

Quadro1: Resumo do modelo microanalítico.


Fonte: Fairclough (2004; 2006);Todorov (2008).
30

Tema Formação do nacionalismo hispano-americano

Relato Significado do Troféu da Anarquia

Unidade de tempo 1810-1820

Unidade de ação Troféu da Anarquia

Unidade de espaço América Hispânica

Fonte Carta de Jamaica

Quadro 2: Quadro analítico baseado em Todorov.


Fonte: Todorov (1991).
31

3. PRÁTICA SOCIAL: TEORIA DO NACIONALISMO

A dissertação propõe a abordagem da prática social hispano-americana sob uma


perspectiva póscolonialista do nacionalismo. Para isso, recorre às proposições de Claudio
Lomnitz, o que torna necessário revisar os avanços e desafios dessa abordagem. Lomnitz
define o nacionalismo como um discurso que permite trabalhar várias conexões entre
instituições sociais, em particular o relacionamento entre instituições estatais e outras formas
de organizações sociais; dessa forma, o nacionalismo pode ser compreendido como uma
“linguagem” que produz molduras interativas nas quais o relacionamento entre instituições
estatais e diversas relações sociais poderiam ser negociadas (LOMNITZ, 2001, p.13). A
conceituação de Lomnitz soa de fato abstrata. Dessa forma, pode ser mais facilmente
traduzida como uma experiência emocional e intersubjetiva, capaz de configurar uma
identidade coletiva e contraposta a uma exterioridade qualquer, como outra nação, ou o
ambiente internacional. Ora, menos importa se o nacionalismo formou seus nacionais ou vice-
versa: como discurso, o nacionalismo é um produto e um produtor de realidades.
Segundo Lomnitz, o nacionalismo é edificado em meio a estas relações comunitárias
através de duas dimensões complementares: profundidade e silêncio. Ambas trabalham em
sinergia na medida em que a nação avança no tempo, processo esse que revela a instabilidade
e imprecisão daquilo que se denomina “espaço nacional”. Tomado de Guillermo Bonfil, a
ideia de profundidade surge dos clamores de uma suposta origem nacional autêntica,
independente, enraizada no tempo e materializada no espaço. Para manter a coerência desses
clamores, o silêncio omite as contradições nacionalistas, tais como sua configuração intersub-
jetiva, heterogeneidade cultural, interdependência com outras coletividades e hierarquização
interna, o que permite ao discurso obter coerência e coesão (LOMNITZ, 2001, p.xiii-xv).
Lomnitz concorda dessa forma que teorias nacionalistas “autorreferentes” estão a
serviço da produção identitária nacional, ficando assim sujeitas aos silêncios necessários ao
processo (LOMNITZ, 2001, p.125)13. A fim de evitar esta limitação, o autor aborda o assunto
pela visão “contemporânea”, que supera de alguma forma esses silêncios ao descartar a ideia
de nação surgida a partir da “alma” ou do “espírito” de uma coletividade. Lomnitz define

13
Essa perspectiva “autorreferente” impõe ainda o desafio de isolar a América Latina do debate nacionalista
mais amplo. Devido às peculiaridades latino-americanas, os principais teóricos do nacionalismo – Ernest
Gellner, Anthony Smith, John Breuilly e John Hutchinson, por exemplo – ignoram ou simplesmente legam o
caso da América Hispânica às notas de rodapé, admitindo que suas teorias não serviriam ou serviriam apenas
parcialmente para explicar o caso, mas ao mesmo tempo não as adaptando para tal (cf. MILLER, 2006,
pp.203).
32

assim o nacionalismo como um produto cultural derivado de um emaranhado de relações


comunitárias e muitas vezes transnacionais. Prefere assim o compreender não como uma
ideologia coerente e autorreferente, mas como uma ampla nervura cultural da qual surgiriam
afirmações contraditórias (LOMNITZ, 2001, p.125-126).
Apesar das contribuições, Lomnitz esclarece que o desenvolvimento dessa perspectiva
ainda não sistematizou os contextos nos quais a identidade nacional emerge (LOMNITZ,
2001, p.126). A origem dessa dificuldade advém dos países “periféricos”, ou “póscoloniais”.
As especificidades desses países quebram os paradigmas nacionalistas mais amplos, impondo
obstáculos às definições tradicionais e apontando a necessidade de novas definições. O
desafio mais evidente está na forma como as nações póscoloniais emergiram não de um
desejo popular por independência, mas devido ao colapso dos impérios aos quais estavam
subordinadas. Além disso, a configuração desses estados ocorreu antes da integração
territorial, de forma que a consolidação nacional teria sido tardia – e ainda assim constan-
temente posta à prova (LOMNITZ, 2001, p.126).
Tal dificuldade teórica se amplia quando se consideram as duas forças basilares e
contraditórias que gerariam as nações periféricas: de um lado, o desejo de se apropriar do
poder e força dos antigos impérios dos quais faziam parte; e do outro, o impulso de formar
comunidades modernas, baseadas em uma idealização de laços fraternos entre cidadãos
(LOMNITZ, 2001, p.128). Forma-se com isso um quadro complexo de incertezas, diante do
qual selecionar as relações que geram o nacionalismo póscolonial é parte do desafio teórico.

3.1 Objetos Específicos e Zonas de Contato

Para superar essas imprecisões, Lomnitz sugere uma abordagem sinergicamente


histórica e social do nacionalismo. O aspecto histórico justifica-se pela necessidade de se
especificar o contexto de cada época, considerando a instabilidade e desigualdade que
caracterizam o processo de formação nacional; e o sociológico explica-se pelo fato de
identidades serem relacionais (LOMNITZ, 2001, p.127). O autor restringe assim o processo
de “amadurecimento nacional” às interações que geram uma consciência de diferenciação
entre atores, ou contatos entre atores identificados como “nacionais” em contraste com outros
retratados como “estrangeiros” (LOMNITZ, 2001, p.128). Ao ver de Lomnitz, essa
33

especificação é necessária: muitos contatos não são marcados pela diferenciação nacionalista,
mesmo quando essa exista de fato (LOMNITZ, 2001, p.129).
Portanto, o nacionalismo está restrito a objetos específicos, não envolvendo toda e
qualquer relação. Tais objetos evidenciam-se pelo convívio, cuja consequência seria a
especificação de bens inalienáveis, conceito que Lomnitz toma emprestado de Weiners.
Segundo esse conceito, o intercâmbio não criaria apenas sistemas de solidariedade, como
também de diferenciação, baseado naquilo que se julga desonroso ou ilógico compartilhar
(WEINERS apud LOMNITZ, 2001, p.129-130). Em outras palavras, na medida em que se
relacionam, as culturas evidenciam entre si objetos cujo compartilhamento seria tido como
intolerável, conclusão elaborada paradoxalmente com base em direitos e deveres comuns.
Lomnitz procura especificar essas relações e objetos tomando por base o que chama de
molduras de contato, definidas como contextos relacionais nos quais a identidade nacional
será produzida. Tais molduras compõem zonas de contato na medida em que abriguem uma
classe internamente homogênea de instituições. As zonas de contato, por sua vez, estão
integradas em uma região mais ampla de produção identitária nacional, na qual se inclui uma
zona de instituições estatais que definem direitos e deveres para cidadãos e produz imagens e
narrativas de nacionalidade (LOMNITZ, 2001, p.129). Daí a forma como o autor define o
nacionalismo como um discurso produtivo que se realiza através de instituições, e não pela
integração horizontal de indivíduos (cf. LOMNITZ, 2001, p.13).
Tal discurso tem por consequência a edificação de um estrangeiro, baseado para isso
nos bens considerados inalienáveis. Lomnitz descreve assim quatro zonas de contato
essenciais à concepção nacionalista: material, ideológica, modernizadora e civilizatória. A
zona material diz respeito à posse política de recursos econômicos. Nesse caso, são definidos
como estrangeiros todos aqueles que não deveriam usufruir desses recursos. A zona ideo-
lógica resulta da tensão entre “tradição” e da “modernidade”. Nesse contexto, a tradição será
considerada estrangeira na medida em que não se concilie com o projeto modernizador, que
buscará romper com o passado a partir de uma origem tradicional alternativa. A zona
modernizadora inverte o quadro ideológico: nessa o contato surge na medida em que a
modernidade seja vista como um desafio à tradição nacionalista, tendo por resultado a
“estrangeirização” de todo impulso modernizador. E a zona de contato civilizatória deriva das
relações culturais entre as coletividades, a partir das quais alguns produtos serão tidos como
estrangeiros e eventualmente até mesmo repelidos (LOMNITZ, 2001, p.130-140).
Aqui se torna possível e necessário realizar uma “associação” dos termos de Lomnitz:
a evidência dos bens inalienáveis será promovida através da profundidade e do silêncio
34

necessários à coerência e coesão nacionalistas. Na medida em que realiza seus clamores de


posse, o nacionalismo procura desenvolver um argumento de profundidade, possibilitado pela
omissão de suas esperadas incoerências. Menos importa a “aplicação prática” dos bens
inalienáveis, ainda que estes possam ser associados às definições nacionalistas mais amplas e
clássicas de soberania, mesmo admitindo que seja instável (LOMNITZ, 2001, p.287). Interes-
sam antes os mencionados direitos – ou valores – que possibilitariam as narrativas de nacio-
nalidade que evidenciariam esses bens, considerando o formato ideológico nacional. Parte
dessa tarefa consistirá em investigar o que estava disposto na legislação imperial: a adminis-
tração da colônia teria tido um forte caráter judicial, de forma que descobrir o que estaria
disponível no repertório dos colonos será justamente o que estaria disponível nas “leis das
Índias” (cf. HANSON, 1974, p.203).

3.2 Direitos e deveres hispânicos

Lomnitz indicará duas instituições originais dos direitos e deveres do nacionalismo


hispano-americano: o critério de solo e o critério de sangue. Ambos derivam do próprio
formato imperial hispânico, que se organizaria precocemente de maneira genealógica e
territorial, fixando práticas sociais nacionalistas muito antes do mundo anglo-saxônico. Na
medida em que o nacionalismo hispânico desenvolvia em direção às Américas, os hispânicos
em geral – como integrantes plenos do império – aprenderam as próprias noções de
nacionalismo. Lomnitz argumentará assim que entender o nacionalismo hispânico demanda
refazer o caminho dele a partir da própria nação hispânica, tarefa que o autor realizar a partir
do conceito de nação como “comunidade imaginada”, tal como sugere Benedict Anderson.

3.2.1 Comunidades imaginadas

Em termos gerais, Benedict Anderson define a nação como uma comunidade política
imaginada como limitada e soberana de forma inerente (ANDERSON, 1991, p.6). Essa
comunidade é imaginada porque mesmo os membros da menor delas nunca terão contato
direto ou indireto com todos os demais, ainda que a imagem de comunhão esteja no
35

pensamento de todos. Também é limitada porque mesmo a mais larga delas possui fronteiras
finitas, além das quais ficam outras nações. A nação é igualmente soberana porque o conceito
teria surgido em uma época na qual o Iluminismo e a Revolução destronavam a legitimidade
divina dos reinos dinásticos. E finalmente é comunitária porque, apesar da desigualdade e
exploração que prevalece em cada uma, a nação é concebida como uma unidade de
camaradagem profunda e horizontal (ANDERSON, 1991, p.6-7).
Ora, Anderson acredita que a experiência nacionalista hispano-americana tenha sido
pioneira e mesmo precoce, servindo de modelo para experiências seguintes. Os protagonistas
do processo teriam sido os crioulos, descendentes diretos de espanhóis que viviam em
situação ambígua, porque nasceram em solo colonial e sofreriam por isso alguma
discriminação por parte da metrópole. Para explicar o ocorrido, Anderson concordará assim
com muitos dos esquemas tradicionais de independência mencionados por Pierre Chaunu:

Os dois fatos mais comumente utilizados em explicações são o aperto do controle de


Madri e a divulgação de ideias liberais do Iluminismo na segunda metade do século
18. Sem dúvida é verdade que as políticas buscadas pelo ‘déspota esclarecido’
Carlos III (reinado de 1759-1788) frustraram, enfureceram e alarmaram cada vez
mais as classes crioulas mais altas. Naquilo que algumas vezes é denominado a
segunda conquista das Américas, Madri impôs novas taxas, tornou seu recolhimento
de impostos mais eficiente, reforçou os monopólios comerciais, centralizou
hierarquias administrativas e promoveu uma pesada imigração de peninsulares. (...)
O sucesso da revolta das Treze Colônias ao fim da década de 1770 e a eclosão da
Revolução Francesa no fim da década de 1780 não deixaram de exercer uma influ-
ência poderosa. Nada confirma essa ‘revolução cultural’ mais do que o republi-
canismo abrangente das comunidades recém-independentes (ANDERSON, 1991,
p.50-51, tradução nossa)14.

No entanto, afirma Anderson, isso não basta para tornar as novas nações emocio-
nalmente possíveis e politicamente viáveis. Dessa forma, o autor prossegue seu raciocínio a
partir das características da administração colonial, o que permite incluir sua interpretação nos
modelos “contemporâneos” de explicação nacionalista mencionados por Lomnitz. Três
aspectos da administração teriam contribuído para formar na América Hispânica um
pensamento emancipatório, não obstante os movimentos derivados desse pensamento terem

14
The two factors most commonly adduced in explanation are the tightening of Madrid’s control and the spread
of the liberalizing ideas of the Enlightenment in the latter half of the eighteenth century. It is undoubtedly true
that the policies pursued by the capable ‘enlightened despot’ Carlos III (r.1759-1788) increasingly frustrated,
angered, and alarmed the upper creole classes. In what has sometimes sardonically been called the second
conquest of the Americas, Madrid imposed new taxes, made their collection more efficient, enforced
metropolitan commercial monopolies, centralized administrative hierarchies, and promoted a heavy
immigration of peninsulares [espanhóis nascidos na metrópole e enviados à colônia para ocupar cargos
privilegiados]. (…) The success of the Thirteen Colonies’ revolt at the end of the 1770s, and the onset of the
French Revolution at the end of the 1780s, did not fail to exert a powerful influence. Nothing confirms this
“cultural revolution” more than the pervasive republicanism of the newly independent communities.
36

sido conservadores em muitos sentidos (ANDERSON, 1991, p.46). São esses aspectos: a
organização do espaço, a organização soberana dos súditos e a promoção da imprensa.
Sobre a organização do espaço, Anderson afirma que a divisão imperial das colônias
teria sido de fato arbitrária; mas isso não as impediria de gerar realidades firmes e
autorreferentes a partir de fatores geográficos, políticos e históricos. A própria vastidão do
império hispano-americano, a enorme variedade climática e sobretudo a enorme dificuldade
de comunicações confeririam a essas unidades características endógenas; além disso, as
políticas comerciais de Madri tiveram o efeito de tornar as unidades administrativas em zonas
econômicas separadas, o que tornaria fácil as conceber como unidades independentes entre si
e independentes da própria metrópole (ANDERSON, 1991, p. 52).
Quanto à organização soberana dos súditos, os crioulos americanos geraram um
problema único à Espanha: pela primeira vez ela teria de lidar com um vasto número de
nacionais que viviam fora da Europa. Os crioulos constituíram assim uma classe ao mesmo
tempo explorada e distinta, sendo inferiorizados como servos, mas ao mesmo tempo
estimados como importantes elementos de domínio colonial (ANDERSON, 1991, p.58). Para
manter os crioulos sob controle, a Coroa espanhola teria executado um projeto “maquia-
vélico” que os incluía como súditos imperiais plenos, ao mesmo tempo em que os apartava
geograficamente entre si e da metrópole. Além disso, teria os impedido de controlar as
colônias na medida em que fornecia os cargos mais altos aos espanhóis nascidos na metrópole
– os peninsulares.
Uma das principais bases para este projeto “maquiavélico”, segundo Anderson, adveio
do próprio iluminismo: autores influentes como Rousseau e Herder afirmariam que a
“ecologia” geográfica determinaria as características das personalidades e culturas. Os
crioulos foram assim considerados inferiores porque estavam submetidos a uma terra inóspita
e inviável como as Américas, não devendo assim as organizar (ANDERSON, 1991, p.60).
Como resultado, os crioulos teriam se afastado cada vez mais da metrópole, porque o próprio
Império os enraizaria cada vez mais à terra, mas ao mesmo tempo os impediria de governar.
Somado a isso, a promoção da imprensa cumpriria papel essencial na formação de “tempos” e
“espaços” próprios nas colônias: a temática e produção dos jornais, que eram controladas pela
metrópole, promoveriam na mentalidade dos crioulos o provincianismo e a distinção entre
metrópole e colônias, bem como entre as colônias, baseada em construções estilísticas que
reforçariam essa imagem (ANDERSON, 1991, pp.62-63).
37

3.2.2 Crítica de Lomnitz

Lomnitz criticará o pensamento de Anderson – ou o “aclamará”, tal como prefere – a


partir da própria proposta do autor, que seria a de entender as guerras nacionais travadas pelos
países socialistas entre as décadas de 1960 e 1980 (cf. ANDERSON, 1991, p.1). Ao ver de
Anderson, esse fato indicaria haver no nacionalismo algo mais profundo do que sugeriria a
mera solidariedade criada por interesses de classe compartilhados. Isso teria levado o autor a
investigar a “potência secreta do nacionalismo”, que se manifestaria principalmente em sua
capacidade de gerar sacrifício pessoal em favor de uma causa maior. Daí sua impressão de
que o nacionalismo seria horizontal, bem como capaz de gerar sacrifício quase “suicida”
(LOMNITZ, 2001, p.7).
De acordo com Lomnitz, seria assim que Anderson cometeria “equívocos” em relação
ao processo nacionalista hispano-americano15. O equívoco capital estaria em uma dificuldade
vocabular: o conceito de “nação” no contexto hispano-americano não é o mesmo utilizado
pelo autor – nem mesmo nos supostos tempo e lugar de sua “invenção”, ou seja, a América
Hispânica “revolucionária” do período entre 1760 e 1830 (LOMNITZ, 2001, p.7). Do início
do século XVIII até a primeira metade do século XIX, o termo nación foi criado e recriado
pela colonização hispânica e pela reforma Bourbon, esta última responsável por substituir o
pacto colonial pelo panimperialismo através de uma “horizontalização” administrativa. O
resultado seria uma ambiguidade cada vez mais profunda em relação ao espaço da nación – o
território; sobre quem pertenceria à nación – a descendência sanguínea somada às fronteiras; e
quanto aos privilégios inalienáveis da nación – a soberania (cf. LOMNITZ, 2001, p.7-9).
Dessa forma, Lomnitz indica haver no império hispânico uma distinção entre a nación
e um segundo termo, a patria, ou terra-mãe. Isso ocorreu de forma que uma patria pudesse ser
a terra de muitas naciones: precisamente o caso na maior parte das Américas, que seria
concebida como pátrias plurinacionais (LOMNITZ, 2001, p.9). De acordo com Lomnitz,
lealdade à terra seria um conceito disponível no discurso político espanhol desde o século
XVI, ainda que não tenha sido diretamente assimilado ao conceito de nação. Tal ambiguidade
15
Observada a prioridade desse trabalho, os equívocos “acessórios” de Anderson dizem respeito ao relacio-
namento entre o indivíduo e a nação. Sobre esses, Lomnitz afirma que o nacionalismo não implicaria
necessari-amente “camaradagem profunda e horizontal”. Esse aspecto silencia o formato hierárquico das
nações, para que se torne possível imaginar uma comunidade horizontal de camaradagem. Além disso,
Lomnitz explica que o sacrifício não é exatamente uma consequência espontânea do imaginário nacional.
Antes, resultaria da posição do indivíduo na sociedade, na qual se incluiriam coerções como a conscrição
militar, bem como apelos morais que não seriam relacionados ao nacionalismo, tais como pressões familiares
(LOMNTIZ, 2001, p. 9-11).
38

estaria na própria base da categoria de “crioulo”, que teria emergido na metade do século
XVI, mas que manteria uma relação ambígua para com a hispanidade ao longo do período
colonial (LOMNITZ, 2001, P.9). Dessa forma, Lomnitz prefere afirmar que o nacionalismo
hispano-americano teria sido anterior à independência, remontando ao passado hispânico.
Conhecer o nacionalismo hispano-americano demanda refazer o caminho a partir do próprio
nacionalismo hispânico, que teria começado ainda durante o século XVI.

3.2.3 Reconquista

Segundo Lomnitz, o primeiro momento do nacionalismo hispânico ocorrera no


episódio da Reconquista, quando os reis católicos espanhóis amadureceram uma proto-
identidade nacional através da expulsão dos mouros e dos judeus. Como resultado, os valores
da Igreja Católica serviram de base para os primórdios de uma identidade nacional que
antecedeu em muitos sentidos as revoluções nacionalistas europeias (LOMNITZ, 2001, pp.14-
15). Tal como afirma Albert Sicroff, a conversão ao cristianismo foi inicialmente o critério
básico para se configurar a condição de súdito. Dessa forma, judeus e mouros adquiriam
direitos e deveres hispânicos pelo fato de terem se convertido ao cristianismo – o que fizeram
muitas vezes com o intuito de salvar a própria vida (SICROFF, 2010, p.44).
Dessa forma, a sinceridade dessas conversões fora posta em dúvida por diversas
instituições hispânicas. Certificados de pureza sanguínea passaram a ser exigidos, de forma a
garantir que os integrantes eram descendentes de cristãos legítimos. É possível que o primeiro
caso tenha sido em Toledo no ano de 1449, quando Pedro Sarmiento manifestou seu ponto de
vista na “Sentencia-Estatuto” (SICROFF, 2010, pp.47-53). Neste documento, lê-se que judeus
e mouros recém-convertidos seriam indignos de confiança da cristandade, e que portanto “no
pueden haber ni oficios ni beneficios públicos ni privados tales por donde pueden facer
injurias, agravios e malos tratamientos a los christianos viejos lindos, ni pueden valer por
testigo contra ellos” (TOLEDO, p.1037 – grifo nosso).
Diversas instituições religiosas recorreram à prática, apesar de mal vista pelos reis
cristãos e até mesmo condenada por diversos papas (SICROFF, 2010, p.135-136). Como
resultado, surgiu uma discriminação entre cristãos velhos, cujos ascendentes foram cristãos
autênticos; e cristãos novos, compostos por mouros ou judeus recém-convertidos. A prática
foi intensificada durante a Inquisição espanhola, cujas investigações teriam descoberto Cris-
39

tãos novos que celebrariam secretamente os antigos cultos. Isso levou Isabela I e Fernando II
a lançarem pragmáticas significantes no ano de 1501. Em uma destas, os reis católicos
ordenam e mandam que “ningun reconciliado por el dicho delito de herejía: o hijo: o nieto de
quemado: o condenado por el dicho delicto... pueda sin nuestra licencia y special mandato...
tener ningun ofício público ni de honra en todos los dichos nuestros reynos y señorios”
(SALA, 1832, p.26). A pureza de sangue começaria a ganhar assim legalidade.
Eis como Claudio Lomnitz conclui que os certificados de pureza sanguínea inaugu-
raram a identidade nacional hispânica, uma vez que eram necessários para adentrar os
escritórios, a Igreja ou certas guildas do reino. Embora os proprietários destes certificados
fossem definidos não como espanhóis, mas christianos viejos, estes comporiam de qualquer
forma uma comunidade de sangue e crença que teria acesso privilegiado ao estado
(LOMNITZ, 2001, p.16). O reforço desta identidade foi reforçado com a descoberta das
Índias, que posteriormente receberiam o nome de Américas. O conceito de pátria foi
amadurecido de maneira quase concomitante com o de nação sanguínea, na medida em que
ambos de certa forma remetem à terra em que se nasceu, tal como será analisado.

3.2.4 Colonização e patriotismo

A colonização espanhola do Novo Mundo a partir do século XVI reforçou o conceito


de español, processo no qual a Igreja também serviu de base para a composição ideológica
nacional. Para começar, a própria expansão imperial foi tida como graça e fardo divinos
estendidos ao rei, que estaria incumbido de levar a fé cristã ao mundo (LOMNITZ, 2001,
p.14-16). O título I do livro I da Leyes de Índias fornece um resumo do contexto, declarando
que “Dios nuestro Señor… demás de juntar en nuestra Real persona muchos, y grandes
Reynos… ha dilatado nuestra Real Corona en grandes Provincias, y tierras por Nos
descubiertas”; em seguida, com base neste sentimento de missão divina, o texto prossegue
afirmando que “para que todos universalmente gocen el admirable beneficio de la Redención
por la Sangre de Christo nuestro Señor, rogamos y encargamos a los naturales de nuestras
Indias, que no hubieren recibido la Santa Fe” (MADRI, 1841, p.1).
A imigração às Índias restringiu-se àqueles que seriam espanhóis autênticos. O critério
dessa hispanicidade era religioso e genealógico: podiam imigrar os espanhóis, ou
descendentes de crhistianos viejos lindos. No título XXVI do livro XXVI da Leyes de Índias,
40

os reis católicos Isabel e Fernando determinam na lei XVI que “ningún reconciliado, ni hijo
del que públicamente huviere traído sambenito, ni hijo, ni nieto de quemado, o condenado por
herética pravedad, ni apostasía por línea masculina, ni femenina, pueda passar, ni passe a
nuestras Indias, ni islas adyacentes sin nuestro permiso” (MADRI, 1841, p.1). Com isso,
rigorosos certificados de sangue puro foram requisitados para se ter acesso ao Novo Mundo, o
que resultaria numa exportação da hispanicidade.
Lomnitz sugere que o conceito de español baseou-se profundamente nestas fórmulas
cristianizadas. Esse seria importante para organizar a vida política nas Índias, onde a
autoridade espanhola envolvia tutela moral e religiosa sobre outras categorias distintas de
gente, tais como “índios”, “negros”, “mulatos” e “mestiços”; e também servia como
diferenciação de europeus extranjeros (LOMNITZ, 2001, p.17). Havia neste contrato uma
clara hierarquização “racial”, alicerçada no “dever e direito” hispânicos de divulgar a fé
verdadeira. Uma série de passagens das Leyes de Índias determina esta hierarquia e estabelece
as diferenças (cf. para alguns exemplos, LOMNITZ, 2001, p.17).
Dessa forma, conclui Lomnitz, a noção de espanhol foi legal e formalmente definida
como uma questão de descendência, que passou a ser um importante elemento da prática
social nacionalista. Isso significa que os crioulos eram nacionais; eis como a Política Indiana
permite concluir que “no se puede dudar que [los criollos] sean verdaderos españoles, y como
tales hayan de gozar sus derechos, honras y privilegios, y ser juzgados por ellos”
(SOLÓRZANO, p.209). No entanto, Lomnitz aponta um contexto discriminatório entre os
espanhóis nascidos nas Índias e os nascidos na Espanha, iniciado desde meados do século
XVI a partir da colonização. Esse processo não foi ocasionado com base no sangue; antes,
surgiu na suposta influência da terra sobre as características, feições e fisionomia dos nascidos
nas Índias (LOMNITZ, 2001, p.17). A discussão sobre o nacionalismo hispano-americano
encontra aqui um ponto nevrálgico: esse é o argumento mais utilizado para justificar a
existência de uma “guerra de independência” a partir do atrito entre colônia e metrópole.

3.2.5 Crioulos e o fardo da terra

Diversos autores afirmam que a identidade dos crioulos hispânicos fora edificada a
partir do fato de terem nascido nas colônias (cf., p.ex., ANDERSON, 1991; LOMNITZ, 2001;
LOVEMAN, 1999; HOBSBAWN, 1995; LYNCH, 1992). O argumento básico é o de que,
41

embora o sangue espanhol lhes garantisse a condição de súditos, o fato de terem nascido nas
colônias deterioraria essa condição. Uma das “causas” mais mencionadas disso estaria naquilo
que Antonello Gerbi descreve como um “preconceito geográfico” surgido ainda na época do
Iluminismo, em parte como reação ao deslumbramento de mitos como o do “bom selvagem”
ou do “paraíso terrestre” nas Américas (GERBI, 1996, p. 148-150). O pensamento do jesuíta
Cornelius de Pauw fora emblemático desse preconceito. Em sua obra Recherches
philosophiques sur les Américains, o autor observa que os americanos teriam mentalidade e
físico inferiores ao mais fraco dos europeus. A explicação estaria na má influência da
geografia americana sobre a constituição do ser humano: “a grande umidade da atmosfera na
América, e a inacreditável quantidade de água empoçada, depositada sobre a superfície...
[são] a maior parte das causas que viciaram e depravaram o temperamento dos habitantes [das
Américas]16” (DE PAUW, 1768, p.23).
Gerbi conclui assim que o nascimento em solo americano cancelava qualquer
privilégio conquistado ou herdado pela descendência sanguínea, fato que teria causado em
longo prazo um rompimento para com a metrópole (GERBI, 1996, p.151). Eis como até
mesmo Lomnitz se permite concluir que os crioulos teriam sido excluídos dos cargos por
serem considerados incompetentes para tal; daí o envio de peninsulares às colônias, o que
teria frustrado as elites locais, criando um atrito inconciliável entre os colonos e os
peninsulares – e talvez até mesmo entre os colonos e a própria metrópole (LOMNITZ, 2001,
p.125). Dessa forma, a aplicação do conceito de nación seria problemática na América Latina:
tal como visto acima, o autor prefere utilizar o de patria, na medida em que a autoafirmação
dos crioulos implicaria necessariamente a exaltação da terra-mãe.
Entretanto, uma discussão completa do assunto exige anunciar a possibilidade de este
atrito não ter sido tão determinante assim. Sobre a exclusão dos cargos, Campbell afirma que,
com exceção dos vicerreinados, os crioulos estavam bem distribuídos em funções
administrativas, militares e judiciais privilegiadas. Isso fora possibilitado pela venda de cargos
a crioulos abastados, solução encontrada pela metrópole para lidar com sua crise financeira
durante o século XVIII (CAMPBELL, 1972, p.5)17. Pierre Chaunu aponta também a
possibilidade de os próprios crioulos terem apoiado essa discriminação, bem como a
perspectiva de que a imigração de peninsulares para as colônias não tenha sido mais intensa

16
La grande humidité de l’atmosphère en Amérique, & l’incroyable quantité d'eaux croupiffantes répondues fur
sa surface… [sont] la plupart des causes qui y avoient vicié & dépravé le tempérament des habitants [des
Amériques].
17
Cf. também Burkholder (1972), sobre a “peninsularização de crioulos” na prestigiosa audiência de Lima,
localizada no vicerreinado do Peru, centro da administração colonial.
42

no século XVIII do que nos séculos XVII ou XVI. Além disso, argumenta Chaunu, a
imigração ilegal de peninsulares pode ter sido muito mais relevante do que a oficial; e os
crioulos tiveram vantagens econômicas inegáveis sobre os peninsulares, o que teria
empurrado esses a uma esperada corrida pelos cargos mais privilegiados, havendo assim mais
retórica do que fatos nessa divisão clássica entre crioulos e peninsulares (CHAUNU, 1979,
p135-137).
É preciso considerar também a chance de a discriminação “antiamericana” ter sido
impopular não apenas na América Hispânica, como também na própria metrópole. É o que se
pode inferir da maneira como os peninsulares a recusaram antes mesmo de os crioulos toma-
rem conhecimento delas (GERBI, 1996, p.153). O padre Benito Jerónimo Feijoo y Monte-
negro seria exemplar dessa rejeição. Em seu ensaio Españoles Americanos, Feijoo “desmen-
te” a ideia de que os crioulos chegariam com mais rapidez à velhice e decrepitude, citando
para isso hispano-americanos que conheceu pessoalmente (FEIJOO, 1863, p.155). Além
disso, em Mapa Intelectual y Cotejo de Naciones, Feijoo afirma que “muchos han observado
que los criollos, o hijo de españoles que nacen en aquella tierra [Índias] son de más viveza ó
agilidad intelectual que los que produce España” (FEIJOO, 1863, p.90).
Dessa forma, é possível que a exaltação patriótica da terra teria sido central aos
crioulos não como argumento antiimperial ou antipeninsular, mas porque lhes tornaria
possível reclamar inteiramente a herança do sangue (LOMNITZ, 2001, p.17). Havia assim até
mesmo uma dificuldade de o crioulo se identificar plenamente com a terra: essa seria um meio
de se alcançar a identidade hispânica imperial, e não um fim18. Portanto, interpretações que
insistam em se referir a essa discriminação provavelmente atendem à necessidade de se
explicar o nacionalismo hispano-americano a partir do rompimento para com a metrópole,
pagando assim tributos à necessidade de coerência nacionalista.
Dessa forma, a partir do próprio Lomnitz, a dissertação dará preferência à ideia de que
a exaltação da terra-mãe fora inicialmente uma forma de os crioulos se integrarem como
súditos imperiais; em seguida, com a queda da metrópole espanhola, o patriotismo teria
atendido à necessidade de se preencher o vazio referencial deixado às colônias, tornando
possível às novas nações se tornarem possíveis. O patriotismo foi assim o produto cultural da
independência, e não sua precondição (LOMNITZ, 2001, p.33): uma perspectiva que se torna

18
Essa proposição remete à clássica distinção entre as “colônias de exploração” hispano-americanas e as
“colônias de povoamento” anglo-americanas. Aos estadunidenses possivelmente teria sido mais fácil
identificar-se com a terra do que aos hispânicos, que viam na terra como algo a ser explorado para se obter
prestígio e respeito junto à corte hispânica.
43

ainda mais plausível na medida em que se avança na formação do nacionalismo hispânico,


que amadureceu no sentido pan-imperialista a partir do declínio espanhol.

3.2.6 Declínio imperial e nacionalismo

Prosseguindo em seu raciocínio, Lomnitz afirma que o rápido declínio da Espanha no


teatro europeu durante o século XVIII consolidou a consciência nacional hispânica de formas
peculiares. O contexto teria sido desencadeado em particular pelo declínio espanhol em
relação a outras potências europeias, especialmente a Inglaterra, que ascendia como “rainha
dos mares” e economia industrialista (cf. LOMNITZ, 2001, pp.20-22). A Espanha reagiria
através das reformas Bourbon, aplicadas pelos déspotas esclarecidos espanhóis. Essas seriam
baseadas em uma literatura econômica e administrativa autenticamente espanhola, literatura
essa que Horst Pietschmann classifica como “moderna” (PIETSCHMANN, 1996, p.21-24).
De acordo com Pietschmann, as reformas hispânicas empregaram soluções importadas
do modelo francês. Isso porque as casas reais dos Habsburgos e dos Bourbons estavam
espraiadas pela França e pela Espanha. No entanto, a prática hispânica seria combinada com a
tradição intelectual espanhola, estando assim voltada à procura de soluções específicas para o
caso hispânico. Em outras palavras, as reformas tiveram papel na configuração da identidade
hispânica porque nasceram nos limites desta, não tendo sido apenas a apropriação de ideias
que então poderiam ser rotuladas como extranjeras (LOMNITZ, 2001, p.20).
Dessa forma, Lomnitz afirma que entender as reformas hispânicas demanda
compreender o caráter da tradição intelectual espanhola. Baseado em Pietschmann, o autor
considera que essa se deveu principalmente à mencionada impressão de declínio, que teria
gerado a indicada exacerbação nacionalista. Como resultado, o pensamento hispânico
desenvolveu de forma precoce o conceito de “tempo vazio”, definido como a impressão de
história simultânea e universal, na qual os estados competem entre si. Importa notar que isso
ocorrera muito antes do “capitalismo impresso”, estando presente na literatura econômica,
política, militar e comercial hispânicas de então (PIETSCHMANN, 1996, p.22). Sendo
anterior à imprensa, a modernização precoce do estado espanhol permitiu a formação de uma
consciência nacional distinta da vocação da Inglaterra e dos Países Baixos. A entrada desses
últimos no jogo dos estados modernos os inclinou ao desenvolvimento do liberalismo e,
44

eventualmente, de formas nacionalistas mais compatíveis com o pensamento de Anderson –


fato que não ocorrera na Espanha (LOMNITZ, 2001, p.21). Assim,

[C]ompetição entre os estados, e uma consciência relativa de declínio, foram


necessárias para promover e justificar programas de reformas econômicas e
administrativas. Como resultado, essa forma de imaginar o tempo estava disponível
há muito tempo para as elites, e não pode por si só explicar o surgimento do
nacionalismo hispano-americano, apesar de sugerir um tipo anterior de consciência
coletiva hispânica (LOMNITZ, 2001, p.22, tradução nossa)19.

Em outras palavras, é difícil encontrar a ideia de separatismo na relação da colônia


para com a metrópole. A situação persiste mesmo ao se mencionar a influência iluminista
sobre a mentalidade colonial: é o que se infere de Lomnitz quando esse recorre a Pietschmann
para descrever de que forma o pensamento iluminista adentrou o repertório cultural hispânico.
Segundo Pietschmann, o Iluminismo espanhol era diferenciado do francês e do europeu em
geral pelo seu notório sentido cristão. Isso o caracterizaria como “patriótico”, considerando o
já mencionado papel da Igreja Católica na confecção da identidade hispânica. O Iluminismo
espanhol teve igualmente um profundo sentido político, oriundo do desejo de a Espanha recu-
perar sua florescência econômica e seu prestígio político de outrora (PIETSCHMANN, 1996,
p.23). Em outras palavras, o Iluminismo reforçava a identidade hispânica e a ordem monár-
quica, não contendo elementos subversivos que geraram a Revolução Francesa, por exemplo.
O Iluminismo hispânico cumpriu papel fundamental na concepção nacionalista espa-
nhola, uma vez que influenciou os déspotas esclarecidos e seu conjunto de reformas. Nesse
sentido, a perspectiva de Lomnitz remete à de Richard Morse, para quem o Iluminismo
adentrara a Espanha como uma ideologia que favorecia o nacional e o social, muitas vezes em
detrimento do individual. Teve assim inclinação nacionalista e monárquica, e não cívica e
republicana (MORSE, 1988, p.40). Morse concorda assim com Lomnitz ao afirmar que isso
ocorreu devido ao próprio plano nacional espanhol. A Espanha construiu uma identidade
nacional com sucesso e de forma precoce devido a instituições político-religiosas consistentes
e legítimas, que permitiram edificar uma nação política e emocionalmente viável (MORSE,
1988, p.43).
Essas vantagens permitiram a formulação de um projeto baseado em São Tomás de
Aquino, cujo pensamento estava baseado em hierarquia, somado a um delicado equilíbrio

19
[C]ompetition between states, and a consciousness of relative decline, were required to promote and justify
programs of economic and administrative reforms. As a result this mode of imaging time had long been
available to the elites, and cannot of itself explain the rise of Spanish-American nationalism, although it does
suggest an earlier sort of Spanish collective consciousness.
45

entre razão e fé. O corolário dessa união foi a ideia de que a Igreja era um “corpo místico” e o
Estado, sendo a mais perfeita associação humana, era um “corpo político e moral” (MORSE,
1988, p.43). Dessa forma, o ordenamento social era formado de início por consenso popular,
mas sempre com a palavra final do rei, que agia em nome dos súditos como o melhor e mais
apto agente para tais funções (MORSE, 1988, p55). Nesse sentido, a ideia de liberdade é a de
servidão voluntária ao poder constituído. Por consequência, explica Morse, a liberdade
consiste na prática em um Estado destinado a regular a ordem através da justiça, que premia o
mérito e castiga a delinquência. A comunidade política e suas estruturas são concebidas assim
de forma estática: a tarefa do governo é manter a segurança e a estabilidade em um mundo
movimentado, evitando também a repressão severa em um mundo em que o individualismo
afirmava-se cada vez mais (MORSE, 1988, p.68). As reformas bourbônicas foram trabalhadas
nesse sentido, amadurecendo plenamente assim a partir do século XVIII.

3.2.7 Cuerpo Unido de la Nación e Queda da Espanha

Nas palavras de Lomnitz, o ponto mais alto do movimento reformista bourbônico


ocorreu no século XVIII sob a conduta de Carlos III. A inspiração permanecia a nostalgia
pelo passado hispânico, acrescida da então presente ameaça da marinha britânica, bem como
da potencial influência subversiva da revolução estadunidense. O rei buscou desenvolver
metrópole e colônias hispânicas no sentido de comporem um espaço econômico fechado, com
uma administração relativamente horizontalizada. Isso se tornaria possível através das
intendências, unidades organizativas que centralizaram a administração e a economia do
corpo imperial (PIETSCHMANN, 1996, p.302; pp.82-119). Paradoxalmente, a reforma fora
baseada também em subdivisões internas, onde cada unidade contava com exército e
administração próprias. Esse fora o formato básico do que se rotulava então como Gran
España – o Cuerpo Unido de la Nación (PIETSCHMANN, 1996, LOMNITZ, 1991, p.25).
De acordo com Lomnitz, a descentralização constituiu um importante recurso para o
fortalecimento do império. Não seria parte de uma “arquitetura maquiavélica” para conter os
crioulos em um espaço restrito, mas uma medida prática para tornar a resposta colonial mais
rápida nos casos de crise (LOMNITZ, 2001, p.27). O Cuerpo também promoveu a ideia de
indústria e de interesse público, que seriam significantes na formação de um nacionalismo
moderno, baseado na propriedade individual, na força de trabalho e na esfera pública
46

burguesa (LOMNITZ, 2001, p.25). Outro aspecto importantíssimo seria a forma como Carlos
III associaria a nação com a sujeição comum ao rei, de forma a diminuir diferenças de castas
em favor de uma categoria ampla e homogênea de “súditos”. Dessa forma, uma identificação
entre a nação e a soberania teria sido construída pelos monarcas absolutos espanhóis
(LOMNITZ, 2001, p.9).
O resultado dessas reformas poderia ser considerado ambíguo em muitos sentidos. Por
um lado, haveria o reforço de uma Grã-Espanha composta pela Ibéria e pelas Índias em
conjunto. Nesse sentido, o império seria formado por uma população de súditos que tenderia a
uma relevante homogeneização interna, uma vez sujeitos a formas de identidade políticas
cada vez mais burguesas. Mas por outro lado, as reformas produziriam a consolidação de
várias unidades administrativas com financiamento interno viabilizado e exército próprio. Isso
teria tornado a ideia de independência mais fácil de imaginar. No entanto, é preciso esclarecer
que ambos os aspectos eram intimamente ligados: a consolidação administrativa de unidades
politicas transatlânticas seria a única forma de formar uma Gran España consistente
(LOMNITZ, 2001, p. 25). Dessa forma, a “viabilidade política” e a “plausibilidade emocio-
nal” dos vicerreinados fora política e ideologicamente fortalecida pelo novo sistema de inten-
dências, com uma nova ênfase no bem público através de indústria e educação. Dessa ma-
neira, a noção de uma verdadeira identidade pan-imperial viu-se fortalecida (LOMNITZ,
2001, p.27).
De qualquer forma, tal como sugerido por Lomnitz, a consistência destas unidades
poderia ser discutível. Donghi observa que este sistema administrativo, baseado na crescente
demanda por racionalidade na Espanha, teria defeitos evidentes e de tendências agravantes.
As atribuições das várias magistraturas sobrepunham-se, e as dificuldades provenientes desse
estado de coisas se acentuavam. Os conflitos de competência se verificavam a grande distân-
cia, e aqueles que tinham a faculdade de resolvê-los omitiam-se, de forma a permitir que se
prolongassem e se agravassem ainda mais. Por sinal, é possível avaliar a consistência dessas
reformas pelo próprio processo de desagregação política vivido posteriormente pela América.
As reformas não conseguiram assim resolver os conflitos de competência, mas somente abrir
novas possibilidades para eles (DONGHI, 1976, p.33-35) – em particular durante o Troféu da
Anarquia, é possível acrescentar.
Por outro lado, é possível que as reformas tenham sustentado o império com um
aparato político e emocional que teria até mesmo se sobreposto às dificuldades organi-
zacionais, ainda que estas possam ter sido críticas. Indício disso seria a longa sobrevida
imperial, que não desmente a gritante fragilidade política do império, mas indica de alguma
47

forma a possibilidade pan-imperialista. Eis por que os colonos teriam resistido às revoltas
nativistas e às primeiras tentativas de se estabelecer repúblicas, mesmo estando isolados da
metrópole. A segurança, a inovação e o sentimento de pertencimento e orgulho ainda
derivariam da Coroa, menos por um projeto maquiavélico do que por um autêntico
amadurecimento nacionalista que fora em muitos sentidos antecedentes ao modelo europeu.
Em suma, antes do Troféu da Anarquia, o império fora imaginado como uma
comunidade transatlântica encabeçada pelos hispânicos. Tal comunidade seria imaginada
através do critério de sangue, que se originaria basicamente a partir de um argumento
religioso de superioridade. Essa distinção nacional seria acrescida de um critério de solo
geográfico que lhes permitia se distinguir e apartar dos extranjeros, ao mesmo tempo em que
permitia idealizar uma hierarquização de outras nações – índios, negros, mestiços – sob a
estrutura de la patria, bem como pela perspectiva de privilégio e fardo divino da liderança.
Dessa forma, a estrutura imperial reforçava seu caráter tomista, de uma casa com muitas
moradas – ou nações –, que estariam hierarquicamente dispostas segundo os critérios de la
patria, formato que permitia a obtenção da ordem e da estabilidade (cf. MORSE, 1988).

Reconquista Península Ibérica é reconquistada dos mouros por reis católicos


Cristianismo católico torna-se critério basilar para definir
hispanicidade autêntica; criados certificados de sangue para
provar cristianismo autêntico, o que permite adentrar instituições
Certificados são assumidos oficialmente pelos reis

Conquista das Terras americanas são descobertas além-mar, iniciando


Américas expansão
Certificados de sangue são exigidos para a emigração oficial,
reforçando o critério de sangue
Critério geográfico é criado para definir espaço hispânico na
Península Ibérica e nas colônias ultramarinas, gerando assim o
critério de solo

Declínio imperial e Declínio do Império Espanhol frente à concorrência inglesa e


reformas Bourbon holandesa criam impressão de competição secular
Surge nostalgia por passado de glória e preocupação com
declínio hispânico; colônias hispano-americanas são elevadas à
condição de vicerreinados autônomos, erodindo pacto colonial

Cuerpo Unido de la Intendências são criadas para verticalizar administração imperial


Nación por todo o espaço das colônias e metrópole
Rompido definitivamente o pacto colonial: Espanha e colônias
hispânicas são elevadas ao estado de império
Nacionalismo hispânico é trabalhado no sentido de obediência
voluntária ao rei e à vontade de Deus

Quadro3: Resumo do desenvolvimento nacionalista hispânico.


Fonte: Donghi (1976); Lomnitz (2001); Morse (1988); Pietischmann (1996).
48

4. PRÁTICA DISCURSIVA: O TROFÉU DA ANARQUIA

A fim de tornar possível a análise da força e da coerência dos enunciados, a análise da


prática discursiva traduz-se aqui como a contextualização histórica das lutas políticas em que
a produção, recepção e distribuição textuais estão inseridas. A opção justifica-se pela
necessidade de se avaliar o contexto da situação não apenas pelas suas possibilidades
sociocognitivas, como também pela forma como essas possibilidades estavam sendo
efetivamente disponíveis nas relações sociais – inclusive para Simon Bolívar.
Ora, Túlio Halpérin Donghi afirma que as reformas bourbônicas espanholas – ou o
Cuerpo Unido de la Nación – reforçara entre os súditos a fé na Coroa, prolongando assim a
sobrevida imperial. Decerto enfrentou críticas dos próprios colonos; mas essas não focaram o
ordenamento monárquico ou a unidade do império. Não existiam assim ideologias ou
instituições subversivas relevantes no contexto: o Iluminismo hispano-americano, tal como o
da Península Ibérica, estava calcado no tradicionalismo monárquico, em nada se relacionando
com ruptura para com o passado. Ao mesmo tempo esse conservadorismo teria um paradoxal
elemento renovador, que se traduzia em uma renovada crença na Coroa como fonte de avanço
e modernidade (DONGHI, 1976, p.48).
Donghi lembra que a renovação imperial enfrentou descrentes desde o fim do século
XVIII, tal como na Venezuela. Esses atritos costumam ser apontados como os elementos
imediatos de uma “revolução pela independência”; no entanto, observa Donghi, essa relação
não é clara – e menos clara ainda é a ligação entre tais movimentos sediciosos entre si, bem
como para com a “renovação libertária” das ideologias políticas. No conjunto, as revoltas
gerariam cifras impressionantes; mas quando observadas de perto, apresentam heteroge-
neidade. Dessa forma, essas revoltas não foram um antecedente para o Troféu da Anarquia,
mas uma das chaves para compreender por que os colonos persistiram em defender a causa do
rei com obstinação. Isso porque os colonos certamente concluíram que a manutenção da
ordem colonial era a melhor salvaguarda de sua hegemonia, bem como a única garantia contra
as castas mais numerosas de índios e mestiços (DONGHI, 1976, p.49).
Os antecedentes imediatos e mais relevantes para o Troféu da Anarquia foram as
crises enfrentadas pela metrópole. Essas começaram a partir da concorrência naval e
econômica com a Inglaterra, que dificultou a comunicação entre a metrópole e a colônia.
Perante esses desafios, Carlos III concedeu maior liberdade comercial e decisória às colônias,
o que foi celebrado pelos colonos; até que o isolamento atlântico da Espanha fosse selado pela
49

Batalha de Trafalgar em 1805, empurrando as colônias em direção à autonomia cada vez


maior (DONGHI, 1976, p.50-51). Poucos anos depois, a França napoleônica reduziu o
governo da Espanha à legalidade provisória da regência, que alegou guardar o poder
monárquico até que fosse possível o restituir ao rei. A contínua agressividade francesa reduziu
a regência a uma corte acuada em Cádiz, que desenvolveu propostas liberais, em um período
em que a queda metropolitana parecia iminente e irreversível (DONGHI, 1976, pp.50-55).
Enquanto isso, na América Hispânica, as elites coloniais criaram um ambiente de
desconfiança recíproca na medida em que se proclamavam como as únicas leais no momento
de crise. Foram gerados assim dois pontos de dissídio no Troféu da Anarquia: de um lado, as
relações das colônias com a metrópole; e do outro, a situação dos espanhóis nas colônias. Em
outras palavras, duas zonas de contato dialéticas – metrópole-colônia, colono-colono –
háviam se formado em meio à moldura de contato imperial. A América Hispânica vivenciou
assim dois momentos dialéticos, inclinando-se assim ao desenvolvimento de soberania. Tais
zonas de contato são explicadas por Donghi com base no “esquema tradicional” de crioulos
contra peninsulares. Com base na análise de Lomnitz, a presente dissertação prefere explicar
os dissídios internos através da prática social. Sob essa perspectiva, a zona de contato entre
metrópole e colônia surgiu a partir do critério de solo; e a zona de contato entre os próprios
colonos adviera de uma combinação entre ambas as instituições, na qual o solo era expressão
material dos direitos sanguíneos, devido à própria organização imperial. Ao mesmo tempo, o
sangue também negava o critério de solo, porque esse reportava a uma natividade atípica entre
os hispano-americanos. As razões disso serão revistas na análise da “Carta de Jamaica”.
De qualquer forma, mesmo Donghi concorda que o segundo ponto de dissídio –
colono contra colono – fora o mais crucial. A guerra de independência com base no critério de
solo era uma invenção patriótica inverossímil, a julgar pela fragilidade e curta duração das
repúblicas da “primeira geração libertadora” (cf. DONGHI, 1976, p.55). Enquanto isso, as
reformas imperiais geraram uma situação ambígua, onde a segmentação dos colonos entre si
garantia a unidade do Cuerpo Unido de la Nación sob a égide do rei, que fora um importante
elemento de identidade pan-imperial. Sem a figura real, havia uma grande possibilidade de os
colonos iniciarem um conflito fratricida – o que de fato ocorreu.
Com uma perspectiva semelhante, Chaunu afirma que os movimentos separatistas
entre 1810 e 1811 não foram gerados por um conflito entre colônia e metrópole. Isso porque
havia quinze anos que a metrópole estava ausente das colônias, tendo se tornado de novo
presente somente entre 1814 e 1816. Além disso, os anos entre 1810 e 1817 permitem medir o
alcance limitado e a insignificância das forças autenticamente secessionistas e antiimperiais
50

que compuseram a “primeira geração” libertadora. Daí a hipótese de que, sem as invasões
napoleônicas, é provável que o Império tivesse largos anos de permanência (CHAUNU, 1972,
p.148). Ou seja, o que contara no Troféu da Anarquia fora o ponto de dissídio entre os
colonos, que não podiam ter os Bourbons, não queriam Napoleão e sobretudo não acredi-
tavam nos liberais (cf. LYNCH, 1992, p.45) – e além disso, não confiavam em si mesmos.
Eis por que os novos estados não seriam nações, ainda que a independência tenha se
servido do discurso nacionalista, e vice versa (LYNCH, 1992, p.383). Daí a ideia de que a
emancipação hispano-americana fora desencadeada mais pela queda da metrópole e menos
por algum sentimento patriótico incipiente (LYNCH, 1992, p.44; cf. também LOMNITZ,
2001, p.27). Não que o contexto estivesse isento de luta por soberania: tendo os colonos de
decidir por si sós a quem obedeceriam, e como dividiriam o poder, decisões terminaram sendo
tomadas (LYNCH, 1992, p.45); por consequência, zonas de contato entre os colonos foram
estabelecidas, tendo como base dialética os critérios da prática social, expressados na divisão
do espaço disponível. O resultado indireto foi o amadurecimento político e emocional dos
novos espaços soberanos.
Dessa forma, mesmo não sendo nacionalista, o Troféu da Anarquia ensejou em longo
prazo a necessidade de confeccionar entidades soberanas política e emocionalmente plau-
síveis. Os impulsos resultantes comporiam um quadro complexo e ambíguo que recairia sobre
a própria constituição dos libertadores. Com Simon Bolívar, não foi diferente.

4.1. As contradições bolivarianas

Durante o Troféu da Anarquia, o desempenho político e militar de Simon Bolívar


possuiu uma abrangência continental que atesta sua importância: o venezuelano atuou nos
Andes e no Caribe, tendo sido também o autor intelectual e organizador do Congresso do
Panamá em 1826, uma das primeiras iniciativas pan-americanistas. Ao longo desta trajetória,
o personagem comporia em si um misto ambíguo e complementar de liberalismo centralista,
radicalismo moderado, despotismo democrático e otimismo pessimista. Seu próprio histórico
de vida seria quase uma “profecia” de como as novas soberanias hispano-americanas emer-
giriam a partir de extremos contraditórios, tal como esperado de um contexto póscolonial.
É possível detectar na obra intelectual do Libertador todas as facetas dos mencionados
esquemas teóricos: a divisão entre peninsulares e crioulos; a opressão metropolitana; o
51

entusiasmo indigenista; a luta entre progressistas e regressistas. Não por acaso são diversos os
historiadores e sociólogos que recorrem ao pensamento bolivariano para explicar o processo
de emancipação das colônias hispânicas – e todos estes certamente pagaram tributos à
necessidade de silêncio que a identidade e o nacionalismo exigem para que faça sentido.
Investigar o pensamento de Simon Bolívar demanda assim encarar as contradições que o
constituíram como Libertador, e não exatamente tentar organizar seu pensamento em um
corpo de ideias coerentes. Parte desse trabalho seria uma questão de avaliar sua própria
história de vida, que será brevemente exposta em seguida.

4.1.1 Bolívar e suas origens

Simon Bolívar fora descendente de uma família aristocrática peninsular. O sobrenome


dele teria advindo do vilarejo de Bolívar, localizado no Señorio de Viscaya, na Espanha
(Pividal, 1983, p.51). Os Bolívars chegaram à Venezuela cerca de trinta anos após a fundação
de Caracas. Ali cumpriram funções prestigiosas, tendo também realizado diversos
matrimônios com os Palacios, família de renome local (ROURKE, 1942, p.13-16). O futuro
Libertador viria de um desses casamentos. Nasceu em 1783 na cidade de Caracas, filho de pai
peninsular e mãe crioula. A infância dele teria sido confortável; mas se complicaria a partir da
morte dos pais, vítimas da tuberculose, doença que ele mesmo enfrentaria durante a vida.
Aos dezessete anos de idade, Bolívar viajou para Madri em 1800, para continuar os
estudos. Lá conheceu Maria Teresa, com quem se casou. Bolívar retornou com a esposa para
Caracas em 1802, onde a moça faleceu daquilo que teria sido febre amarela. Certamente
entristecido, o rapaz viajou para Paris, onde manteria contato com os ideais iluministas, além
de receber notícias sobre as tentativas de emancipação hispano-americana. Inspirado pelas
ideias revolucionárias francesas e estadunidenses, Bolívar viajou para a Itália, onde realizou o
chamado “Juramento de Roma”, texto em que declara não descansar antes de resgatar sua
pátria do poder espanhol; então regressou à Venezuela em 1806, encontrando o país em meio
à convulsão revolucionária20.

20
Alguns estudiosos afirmam que não houve Juramento algum; e outros duvidam de que haja uma fonte textual
para o conteúdo desse Juramento. Seja como for, vale mencionar o Juramento seja como parte da história de
Bolívar, seja como parte do “folclore” bolivariano.
52

4.1.2 Queda da Espanha

A história de Bolívar como libertador começa de fato a partir de 1808. Naquele ano, a
França avançaria sobre Portugal, a fim de estender ali o embargo marítimo contra os ingleses.
Para isso, as tropas napoleônicas cruzaram o território da Espanha, onde capturaram algumas
cidades pelo caminho. Temendo o avanço francês, o rei Carlos IV abdicou em favor de seu
filho, que foi proclamado Fernando VII. Ambos foram capturados por Napoleão, que assumiu
o trono espanhol e o transferiu ao irmão José Bonaparte.
De acordo com John Lynch (1992, pp.44-47), as notícias da queda espanhola
chegaram à Venezuela através dos franceses, dos ingleses e dos espanhóis. As propostas que
eles apresentaram formariam o quadro de opções disponíveis na época, considerado à luz de
uma elite cuja maioria certamente estava inserida em um sistema de valores imperial e
conservador. Os franceses exigiriam imediata lealdade e adesão dos venezuelanos ao império
napoleônico. Argumentavam para isso que essa seria a própria vontade do rei de Espanha21.
Por outro lado, o almirante inglês Alexander Cochrane informou os venezuelanos sobre a
junta espanhola de resistência antifrancesa. Disponibilizou assim seus serviços militares para
eventuais conflitos, bem como para estabelecer arranjos defensivos entre ingleses e hispano-
americanos. Os venezuelanos receberiam também notícia dos espanhóis rebeldes, então
acuados na cidade espanhola de Cádiz. Esses solicitariam auxílio dos colonos, com os quais
planejavam instaurar uma junta central constitucionalista entre a Espanha e as Índias.
As notícias teriam gerado comoção nas colônias e uma renovação dos votos de leal-
dade a Fernando VII (DONGHI, 1976, p.56). As exigências francesas extrapolaram o limite
do suportável; e o caráter constitucionalista da resistência espanhola ia de encontro não só aos
interesses como também aos valores dos colonos, interessados em manter a identidade de
súditos e, por conseguinte, seus próprios direitos. Os membros do Cabildo de Caracas deci-
diram formar a Junta Conservadora de los Derechos de Fernando VII. Solicitaram então o

21
O rei publicaria na Gaceta de Madri em 20 de maio de 1808 as seguintes palavras: “Hoy, en las extraor-
dinarias circunstancias en que se me ha puesto y me veo, mi conciencia, mi honor y el buen nombre que debo
dejar a la posteridad, exigen imperiosamente de mí que el último acto de mi Soberanía únicamente se
encamine al expresado fin, a saber, a la tranquilidad, prosperidad, seguridad e integridad de la monarquía de
cuyo trono me separo, a la mayor felicidad de mis vasallos de ambos hemisferios. (...) Así pues, por un tratado
firmado y ratificado, he cedido a mi aliado y caro amigo el Emperador de los franceses todos mis derechos
sobre España e Indias; habiendo pactado que la corona de las Españas e Indias ha de ser siempre independiente
e íntegra, cual ha sido y estado bajo mi soberanía, y también que nuestra sagrada religión ha de ser no
solamente la dominante en España, sino también la única que ha de observarse en todos los dominios de esta
monarquía” (Madrid, 1808).
53

auxílio de Cochrane, que escoltou uma missão diplomática à Inglaterra, a quem pediriam
ajuda militar em nome do rei Fernando VII. Simon Bolívar estava entre os integrantes.

4.1.3 Missão londrina, “libertação” e queda da Venezuela

A chamada “missão londrina” fora liderada por Francisco de Miranda, militar


espanhol que se tornara herói da Revolução Francesa. Embora desconfiassem de suas
tendências revolucionárias, a Junta venezuelana julgava necessitar do prestígio dele para
negociar com os ingleses. As instruções da Junta Conservadora para a missão visavam a obter
apoio contra a junta regencial espanhola: os americanos queriam o direito de formar juntas
próprias, assim como os reinados espanhóis foram autorizados a fazer após a captura do rei.
Quanto à independência, esta seria considerada somente com o colapso total da causa
monarquista na Espanha (LYNCH, 1992, p.50-51).
O momento parecia oportuno para as negociações, pois espanhóis e ingleses haviam se
unido contra o perigo comum francês. No entanto, os ingleses se limitaram a reconhecer a
ilegitimidade da corte de Cádiz, prometendo ficar ao lado dos venezuelanos contra a França.
Cochrane escoltou a missão de volta à Venezuela. Assim que chegou, Miranda foi nomeado
general de campo, novidade que despertou pouco entusiasmo entre as elites coloniais. Bolívar
adentrara a Sociedade Patriótica e a transformou em um clube político radical a favor da
independência. Sob a retórica bolivariana, o Congresso venezuelano lançou a Declaração de
Independência venezuelana e a Constituição de 1811, inspirada na estadunidense (LYNCH,
1992, p.55). Com isso, a República da Venezuela fora oficializada, gerando resistências de
diversas províncias que permaneciam leais à Coroa.
Francisco de Miranda encarregou-se de combater os rebeldes. A cidade de Valencia
foi um cenário importante do conflito, devido à forte resistência local. Durante os combates,
Bolívar realizaria suas primeiras proezas militares, pelas quais recebeu de Miranda promoções
e patentes. Apesar deste reconhecimento, Miranda teria considerado Bolívar um joven
perigloso, buscando assim isolar a influência dele (LYNCH, 1992, p.58). Tendo vencido em
Valencia, Miranda nomeou Bolívar chefe militar da cidade de Puerto Cabello. Foi com
“reservas” que Bolívar aceitou o cargo, uma vez que desconfiava de ter sido posto ali apenas
para permanecer isolado (LYNCH, 1992, p.62).
54

Apesar das suspeitas de Bolívar, Puerto Cabello era de fato estratégica. A cidade
reunia em si a função de porto, arsenal e prisão militar, na qual estavam detidos inimigos
influentes da república venezuelana. Fosse por inexperiência de Bolívar, fosse por falta de
tempo para preparo ou mesmo por negligência, Puerto Cabello fora assaltada e ocupada de
surpresa, em uma ação oportuna e favorável aos rebeldes realistas (LYNCH, 1992, p.60). Isso
agravou a instável situação republicana, que se complicou ainda mais com o terremoto
ocorrido em março de 1812, atribuído a um “castigo divino” pela recusa venezuelana à Coroa
(LYNCH, 1992, p.62-63; DONGHI, 1976, p.63-64). Os monarquistas ganharam com isso
novo fôlego, o que enfraqueceu e desarticulou Francisco de Miranda, então decepcionado
com a queda de Puerto Cabello. O desânimo do general teria se refletido entre as tropas, entre
os aliados e mesmo entre as cidades, diversas das quais passariam para o lado realista.
Miranda capitulou em 26 de julho de 1812. Assinou um pacto com o espanhol
Domingo Monteverde, vicerrei da Venezuela, que concedeu salvo conduto aos republicanos
derrotados. Bolívar teria ficado ultrajado com isso: os exércitos republicanos eram então
maiores e mais largos. Considerou a atitude de Miranda uma traição, e planejou detê-lo antes
que se deslocasse da Venezuela, o que Miranda planejava fazer antes do retorno de
Monteverde ao poder. Bolívar teria assim conspirado com outros colegas também ressentidos.
Armaria com eles uma emboscada para entregar Miranda a Monteverde, que o deportou à
península, onde faleceu após alguns anos de prisão. Bolívar recebeu como agradecimento um
salvo conduto para se exilar em segurança, junto a outros colegas. Esse é um dos episódios
mais controversos da vida do Libertador.

4.1.4 Exílio e “Campanha Admirável”

Bolívar viajou para Curaçao, então ocupada por ingleses. Permaneceu na ilha por um
curto período, após o qual se moveu para Cartagena de Indias, no vicerreinado de Nova
Granada. Ali encontraria situação parecida com a da Venezuela: diversas juntas supremas
disputando o poder entre si. A fim de conquistar o apoio neogranadense, Bolívar escreveria o
“Manifesto de Cartagena”, onde realiza uma análise militar e política sobre as causas da
queda da Primeira República da Venezuela. O manifesto pode ser visto em muitos sentidos
como uma carta de intenções para a sua revanche: Bolívar não se considerava derrotado, e
acreditava geopoliticamente que o momento era crucial para toda a América hispânica. Pois
55

que solicitava ajuda dos neogranadenses: a liberdade de Nova Granada e de toda a América
Hispânica dependeria de se libertar a Venezuela, que seria o “coração geopolítico” das Índias.
Tendo se alistado nos exércitos neogranadenses, o venezuelano realizaria campanha
militar que “liberaria” diversos territórios de Nova Granada. Tais conquistas teriam reaberto o
acesso neogranadense ao território venezuelano, levando Monteverde a concentrar forças em
San Carlos, cidade fronteiriça entre o território de ambas as colônias. Provavelmente
alarmado com a atitude venezuelana, o Congresso neogranadense decidiu apoiar Bolívar em
sua expedição contra Monteverde, fornecendo-lhe armas, dinheiro e oficiais. Começaria assim
a Campanha Admirável, durante a qual Bolívar “liberaria” diversas cidades venezuelanas, a
partir das quais fundou a II República da Venezuela. Foi durante os combates que o
Libertador comporia a “Carta de Jamaica”, durante seu exílio voluntário na ilha. Embora o
episódio seja lembrado pelo título pomposo de “Campanha Admirável”, esse teria sido um
momento de privação e frustração na vida do venezuelano, que se viu forçado a combater não
o “inimigo”, mas os seus próprios compatriotas (cf. LYNCH, 1992, p.90).

4.2. Interdiscursividade e Intertextualidade hispano-americana e bolivariana

De posse desse contexto, a análise da prática discursiva prossegue através de uma


avaliação preliminar da verossimilhança cultural e científica então disponível. O esforço é
justificado pelo uso da estratégia da interdiscursividade e da intertextualidade, importantes
elementos da análise discursiva aqui proposta. O aspecto principal nesse sentido é a presença
do Iluminismo no pensamento hispânico, bem como sua introdução nas colônias. Apesar da
censura, observa Arthur Whitaker, o Iluminismo adentrou tanto as colônias quanto a própria
metrópole espanhola, que participou ativamente da produção iluminista (WHITAKER, 1972).
O governo espanhol ofereceu menos resistência aos iluministas do que se supõe, ainda
que tenha banido obras revolucionárias ou heréticas. De fato, o index expurgatorius hispânico
incluía obras de Montesquieu, Diderot, Voltaire e Montaigne, por exemplo; mas autores como
Hobbes, Hume, Newton, Locke e Pascal estavam disponíveis – e mesmo as obras do
mencionado index foram publicadas pela imprensa espanhola. Dessa forma, doutrinas
iluministas tornaram-se correntes na Espanha através de universidades, mercados de livros,
viajantes e cientistas (HUSSEY, 1962, p.25; 28-31). As Leyes de Índias banem diversos
livros; mas esse aspecto da Inquisição não teria funcionado durante o longo período entre a
56

Contrarreforma católica e o Troféu da Anarquia, de maneira que os livros estavam disponíveis


então nas colônias (LANNING, 1962, pp.71-72).

4.2.1 Iluminismos na América Hispânica

Com base em Arthur Whitaker (1961), a relação do pensamento iluminista com a


América Hispânica será fracionada aqui em três faces: Iluminismo edênico, Iluminismo
revolucionário e Iluminismo conservador. A divisão é necessária devido à heterogeneidade do
Iluminismo, o que demanda maiores nuanças para entender de que forma esse pensamento
alcançou, retratou e influenciou a realidade social hispano-americana. Isso não significa
necessariamente que um pensador não assume ao mesmo tempo duas ou mesmo as três faces.
A divisão serve antes ao propósito de mencionar a que aspecto iluminista apontam as
referências intertextuais do texto a ser analisado.
O Iluminismo edênico parte de uma concepção idealista e cristã das Américas. O Novo
Mundo cumpre aqui papel passivo, refletindo as esperanças e idealizações europeias. A ex-
pressão mais popular desse Iluminismo foi o mito do bon sauvage de Jean Jacques Rousseau.
Para Rousseau, o homem no estado natural – tal como nas Américas – era pacífico e
satisfeito, tendo sido corrompido pela “civilização”. Dessa forma, idealiza os índios com
nostalgia, em passagens nas quais afirma, por exemplo, que “é bem sabido que a piedade é um
sentimento natural que, moderando em cada indivíduo a atividade de amor a si próprio,
22
contribui à conservação de toda espécie” (ROUSSEAU, 1755, p.74, tradução nossa). A
ideia inspirou o Abade Raynal, filósofo menor cuja popularidade da obra Histoire des Deux
Indes (1770) fortaleceu essa concepção nostálgica do nativo americano (cf. WHITAKER,
1962, p.7).
Apesar de conhecer popularidade no século XVIII, o Iluminismo edênico surgiu ainda
no século XVI com a Leyenda Negra – a “Lenda Negra” segundo a qual a civilização
hispânica abusava da pureza indígena, o que demonstrava a corrupção dos valores e costumes
ibero-europeus23. A origem da lenda é atribuída ao padre espanhol Bartolomé de Las Casas,

22
[i]I est donc bien certain que la pitié est un sentiment naturel, qui modérant dans chaque individu l'activité de
l'amour de foi même, concourt'à la conservation mutuelle de toute l'espéce .
23
Como surgiu a partir da Leyenda Negra, seria o caso de se perguntar se o termo “edênico” poderia ser
substituído por “trágico”, ou “catastrófico”. No entanto, a ideia de que houve uma catástrofe partiu antes de
tudo da concepção edênica das Américas. Dessa forma, o termo “edênico” é ainda mais adequado.
57

que se dedicou a denunciar os abusos dos conquistadores espanhóis. Para isso, Las Casas
descreve os nativos como pessoas “sencillas, sin iniquidad, ni doblez, obedientes y fieles a sus
señores naturales y a los cristianos”, tendo constituição “delicada, tierna, flaca y débil”, e
sendo ainda “humildes, extentos de orgullo, ambicion, y codicia” (LAS CASAS, 1522, p.102-
105) – ao passo que os colonizadores são descritos como “diabos” e “demônios” que, em
nome da “codicia”, abusaram, maltrataram e exterminaram os nativos. O movimento
iluminista expandiria e distorceria a Lenda Negra com fins políticos e antirreligiosos, gerando
um argu-mento basilar para a emancipação das colônias (cf. WHITAKER, 1962, p.7).
O Iluminismo revolucionário diz respeito ao aspecto social e politicamente subversivo
desse movimento. É a face mais conhecida dele, e remete ao pensamento revolucionário
francês do século XVIII, embora tenha origem também no pensamento inglês. O Iluminismo
revolucionário pode ser definido como um conjunto de ideias baseadas na rejeição da
autoridade clássica. Essa era questionada ao se insistir na necessidade de experimentos
empíricos, mesmo que esses colidissem com crenças estabelecidas (HUSSEY, 1962, p.23). A
fonte desse empirismo origina-se de pensadores ingleses como Francis Bacon, Isaac Newton e
Thomas Hobbes; e o aspecto subversivo deriva de franceses como Voltaire, Diderot,
Montesquieu e mesmo Raynal. Apesar desse “empirismo”, o Iluminismo revolucionário
recorre abertamente a uma escala universal e “idealista” de princípios sobre o que é certo ou
errado. Whitaker explica que tal escala fora elaborada a partir de uma interpretação dogmática
sobre o passado do homem, considerado idílico e puro, mantendo uma relação complementar
com o Iluminismo edênico. Daí a forma como Carl Becker descreve o Iluminismo como “uma
busca do século dezoito pelo Cálice Sagrado” (BECKER apud WHITAKER, 1962, p.4)24.
O Iluminismo conservador pode ser atribuído ao aspecto germânico e italiano desse
movimento intelectual, combinado ao já mencionado aspecto nacionalista hispânico. É assim
em muitos sentidos um contraponto ao Iluminismo edênico e o Iluminismo revolucionário.
Ne-le, o zelo pela promoção do conhecimento útil fora ardentemente defendido por círculos
social e politicamente conservadores, de maneira a servir ao fortalecimento do estado de
coisas politico e social. Com isso, seu caráter é avesso à subversão, embora fosse eventu-
almente modernizante (WHITAKER, 1962, p.6). O aspecto mais relevante aqui do Ilumi-
nismo conservador é o fato de que alcançou seu mais alto desenvolvimento no mundo ibero-
americano, devido à proximidade entre Espanha, Itália e Alemanha, o que ocorreu através de

24
[A]n eighteenth-century search for the Holy Grail.
58

instituições para produção e divulgação do conhecimento (WHITAKER, 1962, p.6). Entre os


autores que se destacaram no Iluminismo conservador encontra-se Alexander Von Humboldt.

4.2.2 Bolívar e o Iluminismo emancipatório

Bolívar fora um produto contraditório desses três tipos de Iluminismo. Com base na
interpretação de John Lynch (1992), é possível dizer que Bolívar expressou ainda um quarto
aspecto: o Iluminismo emancipatório, importante ao desenvolvimento de uma ideologia
libertária para a América Hispânica. Desse Iluminismo, Bolívar consumiu as ideias de John
Locke, que cita Josephus Acosta para afirmar que os habitantes originais das Américas eram
originalmente livres (cf. LOCKE, 1824, pp.189-190). A ideia lockeana continha argumentos
para a liberdade, mas não exatamente para a liberdade colonial (Lynch, 1992, p.33). Dessa
forma, Bolívar recorreu com mais ênfase a Montesquieu, ficando assim familiarizado com a
ideia de que “as Índias e a Espanha são duas potências sob um mesmo senhor; mas as Índias
são a principal, e a Espanha não é mais que um acessório” (MONTESQUIEU, Livro I, cap.
.XXI, tradução do autor) 25.
Essa visão de Montesquieu não significa que ele tenha sido avesso à colonização
imperial (LYNCH, 1992, p.33). Dessa forma, Bolívar recorreria também a Jean-Jacques
Rousseau, a exemplo de outros hispânicos que também refletiram sobre a liberdade. No
entanto, adverte Lynch, a relação do Libertador para com esse iluminista seria plena de atritos
(LYNCH, 1992, p.34). Ainda que não mencione diretamente o nome de Rousseau entre os
filósofos que desprezara, é provável que o venezuelano esteja se referindo a ele quando
menciona no “Manifiesto de Cartagena” os “ciertos buenos visionarios” que, imaginando
“repúblicas aéreas”, procuraram “alcanzar la perfección política, presuponiendo la perfecti-
bilidad del linaje humano” (BOLÍVAR, 1950, p.42).
A liberdade dos filósofos iluministas seria assim insuficiente para Bolívar. Como
observa Lynch, havia nessa liberdade um cosmopolitismo que ignorava aspirações nacionais.
A maior parte dos iluministas não aprovava diferenças nacionais e ignorava o sentimento
nacionalista, parecendo assim totalmente alheios à possibilidade de novas nacionalidades ou
de algum direito de independência colonial (LYNCH, 1992, p.34). Poucas teriam sido as

25
Les Indes et l’Espagne sont deux puissances sous un même maître ; mais les Indes sont le principal, l’Espagne
n’est que l’accessoire.
59

exceções nesse sentido. O inglês Jeremy Bentham, por exemplo, fora favorável à
emancipação colonial no panfleto Emancipate Your Colonies! – “Emancipem suas Colônias!”
–, no qual argumenta que manter colônias seria inútil tanto para essas quanto para as
metrópoles – ideia que repete em Rid yourselves of Ultramaria – “Livrem-se da Ultramaria” –
, texto dirigido ao caso particular do império hispânico. No entanto, o apelo era feito às
metrópoles, de forma que deve ter sido de importância restrita ao Libertador.
Por outro lado, o panfleto Common Sense – “Bom Senso” – do norte-americano
Thomas Paine defenderia a causa específica da liberdade paras as colônias. Para isso, procla-
mou ideias de efeito como “[h]á algo de muito absurdo em imaginar um continente perpetu-
amente governado por uma ilha” (PAINE, 1776, p.30, tradução nossa) 26. As ideias de Paine
influenciaram o Abade Raynal, cuja obra Histoire des Deux Indies ofenderia a metrópole
espanhola em muitos sentidos, ao passo que agradaria alguns hispano-americanos com sua
opinião favorável à libertação das colônias. A importância de Raynal seria pouca, não fosse a
influência que teria exercido sobre Dominique de Pradt, outro religioso iluminista. De acordo
com Pradt, o declínio da Espanha como potência colonial e as revoluções europeias eram
forças que aceleraram a tendência das colônias em se tornarem maduras e romperem com a
metrópole. Portanto, a Espanha deveria liberar as colônias por uma questão de princípios e
principalmente de política (cf. LYNCH, 1992, p.37).
Apesar dessas exceções, o autor da “Carta de Jamaica” teria tido pouca inspiração para
formular suas próprias ideias, precisando realizar por si só sua teoria de autodeterminação
nacional durante seus empreendimentos militares e políticos (LYNCH, 1992, p.36). A “Carta
de Jamaica” pode ser assim considerada a primeira teoria autêntica da libertação hispano-
americana – e provavelmente o primeiro vestígio da análise nacionalista local, embora o
Libertador não mencione esse termo diretamente (LYNCH, 1992, p.92-93). As particu-
laridades das colônias hispânicas desafiavam as definições dos iluministas, preocupados
demais com o cosmopolitismo para que investigassem a formação das identidades nacionais –
ou ainda, para que tentassem observar a emancipação das colônias pela perspectiva colonial.
Coube em parte a Bolívar transcrever em termos hispano-americanos os ideais de liberdade,
igualdade e fraternidade que pareciam inspirar as revoluções francesa e estadunidense.
É provável que a maior batalha do Libertador não tenha sido exatamente a guerreira ou
a estadista: Bolívar precisou também entender o que estaria acontecendo durante o Troféu da
Anarquia. Para isso, trabalhou com os critérios nacionalistas então disponíveis, desafio que

26
There is something very absurd, in supposing a continent to be perpetually governed by an island.
60

precisa ser considerado como parte de seus esforços para “libertar” a América Hispânica. A
situação política hispano-americana era menos evidente do que poderia insinuar a ideia de
uma luta pela independência entre colonos oprimidos e metrópole opressora. Bolívar cer-
tamente aprendeu isso após a queda da Primeira República Venezuelana. As dificuldades
impostas pelo ambiente exigiam um pensamento muito mais complexo do que o insinuado em
um Juramento de Roma. Por mais que esse Juramento tenha sido apócrifo, ele pode servir
como um parâmetro de comparação entre o Bolívar deslumbrado da Primeira República
Venezuelana e o Bolívar amargo, confuso e pragmático da Campanha Admirável.

Iluminismo Abade Raynal, Bartolomé de Las Casas, Jean-Jacques


edênico Rousseau

Iluminismo Montesquieu, Jean-Jacques Rousseau, John Locke


Revolucionário

Iluminismo Alexander Von Humboldt, pensamento iluminista hispânico


Conservador

Iluminismo Jeremy Bentham, Thomas Paine, Montesquieu, Abade Raynal,


Emancipatório Dominique de Pradt

Quadro 4: Resumo da intertextualidade hispano-americana, baseada na interdiscursividade iluminista.


Fonte: Whitaker (1962); Lynch (1992).
61

5. TEXTO: CARTA DE JAMAICA

Também conhecida como “resposta a um caballero de esta isla”, a “Carta de Jamai-


ca”27 fora ensejada por uma correspondência enviada a Bolívar por Henry Cullen, o “muy
señor mio” a quem Bolívar se refere no início do texto. Após anos de incógnita sobre o
interlocutor da “Carta...”, pesquisas históricas afirmam que Cullen era um comerciante inglês
sediado em Fallmouth, principal cidade portuária jamaicana (cf. MENDOZA, 1972, p.5;
HEFFES, 2008, p.88). Eis por que a primeira versão oficial do texto foi escrita em inglês –
isso embora haja convenção de que a primeira versão tenha sido em castelhano (cf.
MENDOZA, 1972; HEFFES, 2008, pp.88-89).
Lê-se na “Carta...” que Cullen solicitara ao Libertador informações sobre as Américas
e o processo de emancipação. Dessa forma, o destinatário cumpre papel relevante no texto,
bem como no estilo bolivariano. Tal como observa Gisela Heffes, Bolívar teoriza em função
de um interlocutor estrangeiro. Daí o profundo sentido de denúncia e condenação de seus
textos. No caso da “Carta...” Bolívar justifica a opção dos “muy oprimidos americanos
meridionales” de guerrear e combater. Para tal, acredita encontrar na Inglaterra uma chance de
conseguir seu intento, divulgando ali a ideia de que a “independência da América Hispânica”
é justa e factível, dependendo de uma intervenção das grandes potências para obter sucesso
(HEFFES, 2008, p.38-39). Provavelmente Bolívar calculou que escrever a Cullen seria uma
oportunidade de dialogar com os ingleses de maneira ampla. A “Carta...” é assim um apelo à
Inglaterra, baseado em uma apaixonada exaltação geopolítica da América no mundo.
Ao mesmo tempo, a “Carta...” constitui um momento de ponderação objetiva sobre o
que está havendo nas Américas. Há no discurso bolivariano não apenas o impulso panfletário,
mas também o objetivo de racionalizar o sentido do Troféu da Anarquia de maneira
pragmática, de acordo com o que é social e culturalmente verossímil. A “Carta...” fica assim
dividida entre panfletar a favor do Troféu da Anarquia e explicá-lo objetivamente, de forma
que o “Bolívar libertador” complementa e contradiz o “Bolívar pensador”. Com isso, o autor
esforça-se por um lado em demonstrar que a emancipação americana é plausível e interessante
à Inglaterra e à Europa; e por outro, tenta explicar as tendências e dificuldades do processo,
passagens nas quais o pessimismo muitas vezes se confunde com a objetividade, e vice versa.

27
A versão da “Carta de Jamaica” aqui mencionada encontra-se no tomo 21 da obra “Colección de Documentos
Importantes Relativos a la Vida Publica del Libertador de Colombia y del Peru Simon Bolivar hasta su
muerte” (1830, pp.207-229).
62

Dessa forma, o autor tenta ao mesmo tempo informar e convencer seu interlocutor, de forma a
explicar e a enaltecer o Troféu da Anarquia – objetivos que, como será visto, serão
inconciliáveis. O aspecto especificamente panfletário da “Carta...” se inicia quando o autor se
esforça para definir um Eu a partir de uma alteridade metropolitana. Esse esforço deriva da
própria visão de América como terra-mãe, ou pátria, proposição derivada do critério de solo.

5.1 A terra como vítima

Diante da solicitação recebida, o Libertador divide-se entre corresponder à confiança


que lhe foi dada e o impedimento de satisfazê-la “tanto por la falta de documentos y de libros,
cuanto por los limitados conocimientos que poseo de un país tan inmenso, variado y
desconocido como el Nuevo Mundo”. O autor informa assim que seria impossível “responder
a las perguntas com que usted me ha honrado”: apenas o Barão de Humboldt poderia fazê-lo
de forma precisa, porque a maior parte das informações sobre a revolução nas Américas
estaria “cubierta de tinieblas” (BOLÍVAR, 1830, p.208).
A menção ao Barão é importante: revela que o autor recorrerá ao geógrafo para inter-
pretar o Troféu da Anarquia de forma objetiva, de maneira que o Iluminismo conservador
parecerá o mais plausível. Por si só, o Libertador admite que somente poderia oferecer “conje-
turas más o menos aproximadas, sobretudo em lo relativo a la suerte futura, y a los verdaderos
proyectos de los americanos” (BOLÍVAR, 1830, p.208). É um enunciado com força expli-
cativa que possui modéstia sincera, considerando o que estava disponível. O Troféu da
Anarquia era em muitos sentidos um período de incertezas amplas. A própria longevidade dos
debates sobre o seu significado indica essa possibilidade. Eis por que o período necessita de
teorias que não apenas o explicassem, como também o justificassem, o que indica a origem da
heterogeneidade discursiva bolivariana – e suas consequentes contradições.
Em seguida, com uma citação direta de seu remetente, Bolívar concorda que “tres
siglos ha (...) que empezaron las barbaridades que los españoles cometieron em el grande
hemisfério de Colón” (BOLÍVAR, 1830, p.208). O venezuelano observa que essas atroci-
dades foram ignoradas pelos seus conterrâneos porque ultrapassavam os limites da crueldade
humana; e que de fato seriam difíceis de crer, não fosse o testemunho deixado pelas cartas
enviadas à metrópole pelo frei Bartolomé de Las Casas, “el apóstol de las Américas”.
Segundo o autor da “Carta..”, Las Casas descreve os “atos más horrorosos de um frenesí
63

sanguinário”, tarefa para a qual recorre ao testemunho de “personas respetables”. Dessa


forma, fornece informações que podiam ser confirmadas pelos melhores historiadores da
época (BOLÍVAR, 1830, p.208-209).
É possível identificar nessa passagem a primeira tentativa do Libertador em definir
uma zona de contato soberana entre metrópole e colônia, de maneira a definir um ethos
político e ideológico para a América. Isso é feito a partir do critério de solo, que torna
possível estabelecer a metrópole como a alteridade necessária à identificação americana. A
citação a Las Casas cumpre papel relevante, pois permite interpretar a América como vítima,
gerando assim um apelo emocional compatível com o contexto institucional da época. O autor
combina para isso o Iluminismo idealista com o Iluminismo emancipatório, gerando assim
uma apropriação “revolucionária” da Lenda Negra a partir do critério de solo.
A interpretação é verossímil: o critério de solo estava culturalmente disponível então;
e a ideia de soberania através desse critério estava de certa forma disponível na prática social.
No entanto, a passagem possui uma omissão: embora Las Casas tenha se dedicado à causa dos
índios nativos, Bolívar o utiliza para reforçar a ideia de que a vítima dos “conquistadores” foi
o “grande hemisfério de Colón” – ou seja, a terra, ou a mãe-terra, la patria. Para isso, o autor
silencia passagens em que o jesuíta, por exemplo, descreve os nativos como “ovejas mansas”,
com as quais os espanhóis, “lobos e tigres y leones cruelísimos”, não fizeram outra coisa
desde que os conheceram senão “despedazarlas, matarlas, angustiarlas, afligirlas, atormen-
tarlas y destruirlas” (LAS CASAS, 1522, p.103).
Tal omissão é realizada em favor da amplitude emocional do ethos americano: para
Bolívar, a terra é a vítima, e qualquer agressão contra ela é uma agressão àqueles que nas-
ceram nela. Portanto, o ultraje espanhol deve ser assimilado também pelos colonos ali nasci-
dos, não importando o quão espanhóis pudessem ser considerados pelo critério de sangue. O
nacionalismo bolivariano trabalha aqui o silêncio em favor da profundidade discur-iva. Com
enunciados de força prescritiva, Bolívar indica que todos devem se identificar com la patria
pelo nascimento, silenciando o nacionalismo genealógico imperial. A profundidade da Améri-
ca é desenhada assim com base no critério de solo, através do qual parece possível silenciar os
laços para com a metrópole. O resultado é uma identidade soberana a partir do contraponto
peninsular, estabelecido dialética e ideologicamente como a alteridade hispano-americana.
É possível que essa articulação seja coerente com o contexto cultural e a prática social
da época. Como dito, o critério de solo parecia desenvolver propensão à soberania. O
território e as fronteiras eram a maior referência dos colonos, porque foram de importância
basilar na configuração imperial. Isso ocorria de maneira que os direitos tinham por expressão
64

objetiva as fronteiras e os limites. Daí a forma como se evocava a terra como a questão princi-
pal dos conflitos. A partir dessa constatação, Bolívar desenvolve planos ambiciosos, imagi-
nando uma soberania ampla a partir de uma manipulação da Lenda Negra que demandava
silenciar a noção de “índio”. Apesar disso, o Libertador será obrigado mais tarde a romper
com o silêncio que impôs à Lenda Negra – mas não antes de realizar um prognóstico otimista
crucial ao Troféu da Anarquia no enunciado seguinte.

5.2 A “América Livre”

Com outra citação direta, Bolívar recebe com “emoción de gratitud” a passagem na
qual Cullen afirma “que espera que los sucesos que siguieron entonces a las armas españolas,
acompañen ahora a las de sus contrários, los muy oprimidos americanos meridionales”
(BOLÍVAR, 1830, p.209). Baseado na “crença otimista” de que a justiça decide as contendas
entre os homens, o Libertador toma a esperança de Cullen como uma predição; e acredita com
isso que o sucesso coroará “nuestros” esforços, porque o destino da América teria se fixado de
maneira irrevocável. Os laços que a unia à Espanha foram cortados; a opinião que outrora as
enlaçava agora as divide, e o ódio que a Península inspira nos americanos é maior do que o
próprio mar que separa os continentes – e menos difícil seria os unir do que reconciliar o
espírito desses países:

El hábito a la obediencia; un comercio de intereses, de luces, de religión; una


recíproca benevolencia; una tierna solicitud por la cuna y la gloria de nuestros
padres; en fin, todo lo que formaba nuestra esperanza nos venía de España. De aquí
nacía un principio de adhesión que parecía eterno; no obstante que la inconducta de
nuestros dominadores relajaba esta simpatía; o, por mejor decir, este apego forzado
por el imperio de la dominación. Al presente sucede lo contrario; la muerte, el
deshonor, cuanto es nocivo, nos amenaza y tememos: todo lo sufrimos de esa
desnaturalizada madrastra. El velo se ha rasgado y hemos visto la luz y se nos quiere
volver a las tinieblas: se han roto las cadenas; ya hemos sido libres, y nuestros
enemigos pretenden de nuevo esclavizarnos. Por lo tanto, América combate con
despecho; y rara vez la desesperación no ha arrastrado tras sí la victoria (BOLÍVAR,
1830, p.209).

Há nesses enunciados força de promessa com teor emocional: Bolívar aqui se refere ao
ethos que deseja para as Américas. É o que demonstra a própria crença na justiça, talvez
derivada da perfeição universal pretendida pelos iluministas. O uso do pronome “nosotros”,
somado ao pronome possessivo “nuestros”, indica o prosseguimento no esforço de se con-
65

ceber uma identidade colonial soberana, obtida em contraposição a uma alteridade


metropolitana. Bolívar alcança assim um dos seus principais objetivos ideológicos: sugerir um
sentido emancipatório para o Troféu da Anarquia, que possui função importante no ethos
hispano-americano. Quando explicado pelo critério de solo, o Troféu da Anarquia permite
caracterizar o contexto como uma Guerra de Independência. Isso ocorre pelo esforço dialético
de “estrangeirizar” uma metrópole considerada decadente e cruel.
Para isso, Bolívar precisa antes admitir que a América possui um grande “débito” para
com a Espanha, com quem manteve relações de simpatia e reciprocidade. Logo em seguida
introduz a expressão explicativa “o por mejor decir”, não se constrangendo em classificar
paradoxalmente essas mesmas relações como “apego forzado” ao “imperio de la domi-
nación”. A mudança de postura é brusca, refletindo uma incoerência possível de ser encon-
trada em toda a estrutura textual, que se divide basicamente entre uma América Livre e uma
América carente do império, tal como será visto. Considerando o repertório então disponível,
a atitude explica-se pelo caráter simultaneamente panfletário e analítico da “Carta...”,
objetivos que acabam se revelando incompatíveis.
Ignorando por enquanto essa problemática, o Libertador permite-se afirmar em
seguida que a “farsa metropolitana” fora derrubada. A Espanha estava corrompida ao ponto
de se tornar uma “desnaturalizada madastra”, levando “nosotros americanos” em direção à
liberdade da qual aprenderam a gostar, e pela qual estavam dispostos a combater ao limite do
desespero. Portanto, os sucessos “parciais e alternados” da causa independentista não devem
gerar desconfiança quanto à vontade geral de emancipação americana. É verdade que os
independentes triunfavam em uma parte, enquanto os tiranos obtinham vantagens em outras;
no entanto, anima-se o autor, o resultado final é o de que todo o Novo Mundo estava
comovido e armado para sua defesa, havendo lutas por libertação no continente inteiro: uma
opinião que Bolívar reforça com um prognóstico sobre o sucesso das lutas coloniais,
interpretando o Troféu da Anarquia como uma Guerra de Independência.
Nessa perspectiva, a instituição do critério de sangue já não é mais válida para fixar a
ideologia, a identidade e o próprio ethos hispano-americano. Com enunciados de força
panfletária, Bolívar prefere acreditar que os “lazos” estão rompidos de vez para com a
Espanha madrasta – não mãe, mas madrasta –, fornecendo um indício vocabular crucial para
compreender seu discurso. “Madrasta” aqui se refere a uma “falsa mãe”. Nas esperanças de
Bolívar, o critério sanguíneo é uma farsa: se há uma mãe autêntica, essa somente pode ser a
terra – la patria –, a partir da qual seria possível silenciar a identidade pan-imperial. É uma
passagem ligada ao Iluminismo emancipatório, que rejeitava o critério de sangue devido à sua
66

intimidade com o pensamento realista. Daí a forma como Thomas Paine, por exemplo,
afirmava que “a sucessão hereditária não pode jamais existir como uma questão de direito; é
uma nulidade, um nada”; e que “ninguém por nascimento poderia ter o direito de dispor sua
própria família em preferência perpétua sobre todas as outras para sempre” (PAINE, 1792,
p.106, tradução nossa) 28.
O critério de solo torna possível interpretar o Troféu da Anarquia como derivado de
uma identidade nacional que vai de encontro à identidade peninsular. O resultado é um ethos
para as Américas em sua totalidade, constituindo um projeto identitário pan-americanista a
partir da alteridade metropolitana. Os colonos são assim americanos porque nasceram ali,
proposição essa que torna possível conceber a ideologia de um Eu patriótico contra o Outro
metropolitano, “odioso” e “explorador”. Isso permite conferir um sentido “épico e heróico” ao
Troféu da Anarquia, indicando que as passagens possuem força de intenção panfletária, talvez
se dirigindo não apenas ao interlocutor e aos ingleses, mas principalmente aos hispano-
americanos. Isso se torna possível ao se combinar os iluminismos emancipatório e idealista.
Prosseguindo, o libertador calcula que o momento era oportuno para os americanos. A
Espanha, outrora um dos maiores impérios mundiais, estava reduzida “a restos”, impotente
não apenas para dominar o Novo Mundo, como até mesmo para manter o antigo. A
“insistência” espanhola em reconquistar a América até mesmo indigna o autor, como demons-
tram as exclamações e a força de admiração do seguinte enunciado: “¡Qué demencia la de
nuestra enemiga, pretender reconquistar América, sin marina, sin tesoros y casi sin solda-
dos!”; e mesmo que conseguisse ser bem sucedida, calcula Bolívar, os americanos cedo ou
tarde voltariam a se bater pela causa patriótica (BOLÍVAR, 1830, p. 212).
O Libertador lamenta assim que a Espanha não seja orientada pelos europeus a
desistir: “¿Está Europa sorda al clamor de su propio interés? ¿No tiene ya ojos para ver la
justicia? ¿Tanto se ha endurecido para ser de este modo insensible?”. O questionamento não é
apenas ético, como também racional: “Europa misma por miras de sana política debería haber
preparado y ejecutado el proyecto de la independencia americana, no sólo porque el equilibrio
del mundo así lo exige, sino porque éste es el medio legítimo y seguro de adquirirse
establecimientos ultramarinos de comercio” (BOLÍVAR, 1830, p.212). Bolívar lamenta tam-
bém a maneira como o apelo hispano-americano foi ignorado ao redor do mundo – mesmo
pelos “hermanos del norte”, os futuros estadunidenses. Nesses enunciados, os apelos e
considerações do Libertador indicam que ele parece convicto da importância americana no

28
The hereditary succession can never exist as a matter of right; it is a nullity — a nothing”; no one by birth
could have a right to set up his own family in perpetual preference to all other for ever.
67

contexto geopolítico mundial – mesmo que de uma maneira impulsiva e panfletária, ainda que
não deixem de ter verossimilhança para com o contexto de então, considerando que a
Inglaterra parecia de fato em busca de novos mercados ao redor do mundo. No entanto, a
convicção presente na América Livre termina comprometida pelas constatações sobre o que
seria o americano.

5.3 “Nosotros americanos”

De passagem, Bolívar não concorda com a comparação realizada pelo remetente entre
a situação do rei espanhol e a dos reis americanos. Segundo o autor, Cullen afirma que a
maneira como Carlos IV e Fernando VII foram capturados por Napoleão fora quase “un acto
manifiesto de retribución divina y, al mismo tiempo, una prueba de que Dios sostiene la justa
causa de los americanos, y les concederá su independencia”. Acreditando que o autor se refere
a “reis índios” como Montezuma – ou “Moteuczona” –, o venezuelano afirma que a
comparação é inviável. Os reis espanhóis são tratados com dignidade, conservados e ao fim
recobravam sua liberdade e trono; mas os índios sofrem “tormentos inauditos” e os
“vilipendios más vergonzosos” (BOLÍVAR, 1830, p.213). Bolívar aproveita assim a oportu-
nidade de “demonizar” outra vez a metrópole; mas não deixa de admitir que a situação dos
espanhóis e dos índios é incomparável, o que possui consequências relevantes para sua análise
sobre as Américas.
Em seguida, o Libertador realiza uma nova citação do remetente, na qual especifica o
favor solicitado: o senhor Cullen fez muitas reflexões sobre a situação dos americanos e suas
esperanças futuras, e possui interesse no sucesso deles; mas lhe faltava muitas informações
relativas a seu estado atual e ao que aspirariam. Pois que desejaria infinitamente saber a
politica e a população de cada província; se desejam repúblicas ou monarquias; se formarão
uma grande república ou uma grande monarquia; e que toda informação dessa espécie que
pudesse ser fornecida, ou cujas fontes pudessem ser indicadas, seriam estimadas como um
favor muito particular (BOLÍVAR, 1830, p.214).
O Libertador informa outra vez que seria impossível fornecer dados demográficos
precisos sobre as Américas. A população americana era composta por campesinos e nômades,
isolada por uma geografia hostil e dizimada por “guerras de extermínio”, o que dificultava
manter estatísticas nesse sentido. Porém, era ainda mais difícil pressentir a sorte futura do
68

Novo Mundo, estabelecer princípios sobre sua política e quase profetizar a natureza dos
governos que adotará. Dessa forma, toda ideia relativa ao porvir desse “país” parece aventu-
rosa ao Libertador: “¿Se puede preever cuando el jénero humano se hallaba en su infancia
rodeado de tanta incertidumbre, ignorancia y error, cuál seria el régimen que abrazaría para su
conservación? ¿Quién se habría atrevido a decir tal nación será república o monarquía, ésta
será pequeña, aquélla grande?” (BOLÍVAR, 1830, p.215). Considerando as incertezas do
Troféu da Anarquia, a força desses questionamentos está mais próxima da dúvida autêntica.
A despeito das dificuldades, Bolívar opta por cumprir a tarefa. Começa para isso
informando que, em seu entender, “nosotros [americanos] sumos um pequeño jénero humano”
que possui um mundo à parte, cercado de mares dilatados, novos em quase todas as artes e
ciências, ainda que de certa forma velhos nos costumes da sociedade civil. Em seguida, o
venezuelano usa a queda do Império Romano como metáfora para a situação americana: “Yo
considero el estado actual de América, como cuando desplomado el imperio romano cada
desmembración formó un sistema político, conforme a sus intereses y situación, o siguiendo
la ambición particular de algunos jefes, familias o corporaciones” (BOLÍVAR, 1830, p.215).
A semelhança é limitada: após a queda do império, os membros dispersos teriam ali voltado a
estabelecer de uma forma ou de outra suas antigas nações. Isso não se observou na América:

[N]osotros, que apenas conservamos vestijios de lo que en otro tiempo fue, y que
por otra parte no somos indios, ni europeos, sino una especie media entre los
lejítimos proprietarios del pais, y los usurpadores españoles: en suma, siendo
nosotros americanos por nacimiento, y nuestros derechos los de Europa, tenemos
que disputar estos a los del país, y que mantenernos en el contra la invasión de los
invasores; así nos hallamos en el caso mas estraordinario y complicado. (BOLÍVAR,
1830, p.215).

A metáfora introduz uma imagem que contradiz a América Livre. Aqui não existe
mais guerra de independência: tal como na queda do Império Romano, os americanos estão
em conflito interno para ajustar seu espaço próprio. A comparação entre ambos os episódios é
possibilitada pela interdiscursividade bolivariana para com os ideais do Iluminismo
revolucionário, que evocava os valores republicanos do Império Romano (cf. MAINGUE-
NEAU apud FAIRCLOUGH, 2006, p.166); mais do que isso, a metáfora advém da maneira
como o Libertador interpreta o Troféu da Anarquia não como uma guerra de independência,
mas como uma guerra civil. Isso acentua a contradição desse enunciado com o da América
Livre, introduzindo um ponto crítico discursivo. Aqui a alteridade e a dialética já não ocorre
entre colônia e metrópole, mas entre os colonos, bem como entre os colonos e os índios. É um
ethos distinto do proposto pelos esquemas clássicos de ruptura.
69

Essa contradição fica ainda mais evidente quando Bolívar esclarece que o contexto
americano é muito mais complexo do que a época pós-romana. Os colonos hispânicos
estavam em uma situação de ambiguidade identitária, situação evidenciada pelo contraste
entre colonos e nativos, o que justifica de alguma forma o silêncio imposto aos índios na
América Livre. “Nosotros” dessa forma se refere à elite colonial, da qual Bolívar admite fazer
parte, e a partir da qual o discurso bolivariano ensaia construir uma identidade americana. Eis
a dificuldade enfrentada pelo Libertador: embora “nosotros” tenha algo de natividade, essa
não se relaciona com a natividade radical dos astecas ou dos maias, por exemplo.
“Lejítimos proprietários” refere-se ao critério de solo, que Bolívar pretendia separar
dialeticamente do critério de sangue, definindo assim um ethos soberano para a América
Livre. No entanto, o Libertador é frustrado pela incompatibilidade institucional entre a
situação nativa e a dos hispano-americanos. “Nosotros” tinham dificuldades em se identificar
com a terra, e tinham ainda razões para até mesmo se recusarem a tal. Os “proprietários”
compreendiam solo não como um fim: antes, era um meio de se alcançar a condição imperial.
Além disso, o solo era um direito derivado dessa mesma condição, de maneira que a
americanidade derivada do solo era muito menos evidente, estando somente no discurso de
“visionários” e “oportunistas”. O critério de solo era assim imperativo na prática social
hispano-americana, para decepção de Bolívar, que se vê forçado a considerar essa realidade. É
o que faz quando avalia a (im)possibilidade de os americanos desejarem a autonomia.

5.4 Imaturidade política

Perante essa complexidade identitária, Bolívar afirma que seria uma “espécie de
advinación indicar cuál será el resultado de la línea de política que América siga”. Mesmo
assim, decide se “atrever” a realizar algumas conjeturas sobre o assunto, advertindo que suas
ideias seriam “arbitrarias, dictadas por um deseo racional, y no por um raciocinio problable”.
Posto isso, o Libertador explica que a posição dos moradores do hemisfério americano fora
passiva por séculos, com existência política nula. “Nosotros” estavam em um nível ainda mais
abaixo do que a servidão e, portanto, com mais dificuldade para se elevar ao gozo da
liberdade (BOLÍVAR, 1830, pp.215-216). São passagens que revelam força de indignação,
mas ao mesmo tempo de verossimilhança para com as instituições então disponíveis.
70

O autor solicita permissão de seu remetente para explicar esse raciocínio. Será através
dele que “demonstrará” como a América podia ser considerada escrava da Espanha, em
enunciados com força denunciatória, mas que se destacam principalmente pela coerência para
com a prática social de então. Para o Libertador, os Estados são escravos pela natureza da
constituição ou pelo abuso dela; portanto, um povo é escravo quando o governo rouba e usur-
pa os direitos do cidadão ou do súdito, seja por sua essência ou vício. Aplicando esse princí-
pio às Américas, é possível perceber como o “continente de Colón” não somente estava pri-
vado de sua liberdade, como também da tirania ativa e dominante (BOLÍVAR, 1830, p.216).
A privação dessa “tiranía activa y dominante” advém da intertextualidade para com
Montesquieu, e é explicada da seguinte maneira: muitos governantes despóticos organizaram
sistemas de opressão no qual agentes subordinados participavam em vários níveis
administrativos. Ora, sob o absolutismo espanhol, os americanos não tiveram permissão de
exercitar quaisquer funções do governo ou mesmo da administração interna, de forma que não
apenas foram privados de seus direitos, como também mantidos em um estado de infância
política (cf. LYNCH, 2004, p.97). O autor calcula assim que, se tivessem aprendido os ofícios
da administração, os americanos teriam mantido um certo “respeito maquinal” necessário às
revoluções. Ausente esse respeito, o Troféu da Anarquia só poderia ser uma guerra civil.
Em enunciados de força acusativa, Bolívar afirma que a Espanha sujeitou a América a
uma postura economicamente passiva, cerceada de restrições e proibições, “condenada” a
produzir alguns poucos bens agrícolas e a exportar minérios preciosos para a metrópole. Além
disso, as colônias não puderam jamais ter as indústrias que faltavam mesmo à Península. A
situação era naturalmente ultrajante: “pretender que un país tan felizmente constituido,
extenso, rico y populoso sea meramente pasivo, ¿no es un ultraje y una violación de los
derechos de la humanidad?” (BOLÍVAR, 1830, p.217). É notável como a terra surge aqui
novamente como vítima, havendo uma forte interdiscursividade com a América Livre.
Esse ultraje não era apenas econômico, como também político: os americanos jamais
teriam sido vicerreis ou governadores, a não ser por causas extraordinárias; arcebispos ou
bispos poucas vezes; diplomatas, nunca; militares, somente na qualidade de subalternos;
nobres, sem privilégios reais. Os americanos “no éramos, en fin, ni majistrados ni financistas,
y casi ni aun comerciantes; todo en contravención directa de nuestras instituciones”
(BOLÍVAR, 1830, p.217). São enunciados plenos de força acusatória, que não deixam de ser
influenciados pelas esperanças formuladas sobre a soberania reclamada pelo critério de terra
Bolívar oferece uma explicação causal para a origem dessa “escravidão”. Por que os
americanos – os colonos, naturalmente – teriam direitos? E de que forma tais direitos estavam
71

sendo violados? A resposta estava na própria história da colonização: o contrato social


americano fora um pacto entre o imperador Carlos V e os “descubridores”, “conquistadores” e
“pobladores” da América. Esses deviam realizar a colonização por “su cuenta e riesgo”, tendo
para isso sido tornados senhores da terra, com direitos, obrigações e privilégios amplos e
hereditários. É uma ideia disponível no livro quatro, título seis, lei seis das Leyes de Índias:
“Por honrar las personas, hijos y descendientes legítimos de los que se obligaren (á) a hazer
poblacion, y la huiveren acabado y cumplido su assiento, les hazemos Hijosdalgo (...) y les
concedemos todas las honras y preminencias, que devem haver y gozar todos los Hijosdal-go,
y Cavalleros (...) segun fueros, leyes y costumbres de España” (MADRI, 1841, p.104).
O rei satisfez-se apenas com o “alto domínio”. A América fora algo como uma
propriedade “feudal” para os colonos e seus descendentes. No entanto, argumenta Bolívar, ao
mesmo tempo existiriam leis que favoreceriam quase que exclusivamente os originários da
Espanha em empregos civis, eclesiásticos e de renda, de maneira que “con uma violación
manifiesta de las leyes y de los pactos subsistentes, se han visto despojar aquellos naturales de
la autoridad constitucional que les daba su código” (BOLÍVAR, 1830, p.218). Bolívar
trabalha aqui novamente uma zona de contato emocional entre a metrópole e a colônia. Com
isso, introduz em seu discurso uma contradição: os colonos estavam sendo usurpados dos
direitos concedidos pela Espanha, sem a qual nenhuma noção de direito sobre a terra existiria.
Essas passagens remetem às esperanças da América Livre, o que poderia conduzir a
interpretação do discurso aos esquemas tradicionais de ruptura. Sob essa perspectiva, a
metrópole teria subtraído dos americanos os direitos dos colonos, dando ao Troféu da
Anarquia o sentido de guerra pela independência; no entanto, o próprio raciocínio de Bolívar
frustra essa conclusão: logo em seguida ele admite que a América jamais teve possibilidade
de se tornar autorreferente. Era assim improvável imaginá-la indo de encontro à metrópole,
porque os hispano-americanos jamais possuíram recursos intelectuais ou valorativos – ou
mesmo motivos – para aprender a “odiá-la”.

5.5 A “América Órfã”

Com base no exposto, afirma Bolívar, é possível deduzir que a América não estava
preparada para se desprender da metrópole. Isso ocorreu somente porque fora obrigada a tal
devido às “ilegítimas cesiones de Bayona”, quando Fernando VII abdicara da Espanha e das
72

Índias em favor de Napoleão Bonaparte; e devido também à “guerra” que a regência da corte
de Cádiz declarara às colônias “sin derecho alguno para ello no sólo por la falta de justicia,
sino también de legitimijad” (BOLÍVAR, 1830, p.218). A América fora posta assim na
“criminalidade” por uma covardia do rei de Espanha, seguida de uma injustiça da corte
regencial. Isso teria forçado os americanos a se emancipar “de repente y sin los conocimientos
previos y, lo que es más sensible, sin la práctica de los negocios públicos a representar en la
escena del mundo” (BOLÍVAR, 1830, p.218): um enunciado que se afasta em muitos sentidos
do que ocorrera na América Livre, estando pleno de força denunciatória.
Segundo Bolívar, quando as “águilas francesas” deixaram livre apenas a cidade de
Cádiz, e com “su vuelo arrollaron a los frágiles gobiernos de la Península”, os americanos
então “quedamos en la horfandad” (BOLÍVAR, 1830, p.218). O autor lamenta que a América
Hispânica tenha sido entregue outrora à mercê de uma metrópole, referindo-se com isso ao
contrato colonial. Em seguida, teria sido lisonjeada pelas propostas da corte de Cádiz, que
seriam aparentemente promissoras, mas que somente gerariam “esperanzas halagüeñas
siempre burladas”. E por fim, “inciertos sobre nuestro destino futuro, y amenazados por la
anarquía, a causa de la falta de un gobierno legítimo, justo y liberal, nos precipitamos en el
caos de la revolucion” (BOLÍVAR, 1830, p.218, grifo nosso). É notória a forma como a
revolução aqui se apresenta como algo “caótico”, não tendo assim a coerência que se espera
de uma luta por libertação. O sentido do Troféu da Anarquia aqui se afasta bastante de algo
como uma guerra pela independência.
Sob essa perspectiva, Bolívar acredita que a América teria sido “maquiavelicamente”
conservada na imaturidade durante longa data, situação contra a qual não teria reagido porque
a tutela espanhola teria eliminado quaisquer condições de os americanos se tornarem
autorreferentes. Eis por que a emancipação americana não ocorrera por um “súbito despertar”
pátriotico, e muito menos por uma decepção para com a metrópole: Bolívar se vê obrigado
pela prática social disponível a admitir que a América jamais tivera oportunidade de se
desenvolver nesse sentido. Antes, a “emancipação” teria sido o resultado de um contexto de
urgência e “orfandade”, causada pela queda da Coroa, pela rapacidade francesa e pelas
acusações da corte de Cádiz – que de qualquer forma não representaria com legitimidade o
que teria sido outrora a Espanha, não podendo assim ser equiparada à antiga metrópole.
Dessa forma, o Libertador transfere a zona de contato para os colonos. Será entre eles
que as forças ideológicas e a dialética política ensejarão as disputas soberanas da América em
processo de emancipação. A origem dessa querela derivará do critério de solo e de sangue,
dialeticamente dispostos um contra o outro desde a queda da metrópole. Aqui já não há mais
73

uma Coroa exploratória, mas tão-somente a ameaça francesa e a ilegitimidade da revolução


peninsular. Nesse caso, o sentido do Troféu da Anarquia será o de uma guerra interna, ideia
que torna possível especificar com mais precisão as zonas de contato sobre as quais a doutrina
bolivariana parece ponderar com menos esperança e mais objetividade.
Prosseguindo, o autor relata que os novos governos americanos marcaram seus primei-
ros passos com o estabelecimento de juntas populares, a partir das quais foram desenvolvidos
sistemas democráticos e federalistas. O primeiro momento fora de preocupação exclusiva para
com a segurança interior. Em seguida, tal preocupação estendeu-se à segurança exterior, tendo
sido estabelecidas autoridades que substituíam as que tinham sido depostas, de maneira que o
momento fora aproveitado para se estabelecer um governo constitucional “digno del presente
siglo y adecuado a nuestra situación”. Os acontecimentos que se sucederam provaram que as
instituições representativas são inadequadas a “nuestro” caráter, costumes e luzes. Em todas
as colônias os governos falharam em conservar a centralidade, de maneira que “sus débiles
enemigos se han conservado contra todas las probabilidades”.
Enfim, aqui o venezuelano se vê obrigado de novo a reconhecer indiretamente que a
guerra pela independência é uma esperança alimentada pelo “sonho de justiça”. Com isso,
introduz um ponto de conflito entre dois enunciados – a América Livre e a América Órfã –,
ponto esse que compõe o discurso bolivariano e provavelmente a própria constituição das
identidades nacionais na América Latina. Tal “defeito” estrutural provavelmente advém das
próprias ambiguidades institucionais do nacionalismo hispânico, ambiguidades essas que se
elevaram com a queda da metrópole. Uma vez entregue à busca pela soberania, a prática
social ocorreu de tal forma que o critério de sangue excluía o critério de solo, e vice versa,
estando ambos em luta pela soberania.
Paradoxalmente, a mesma luta pela soberania amparava-se no caráter complementar
de ambos os critérios. O solo era propriedade derivada do critério de sangue; e a expressão
maior do critério de sangue era o espaço geográfico, de forma que o reconhecimento soberano
evidenciava-se pela inviolabilidade das fronteiras. Eis por que a emancipação pelo critério de
solo parecia plausível para Bolívar: na prática, o colono hispano-americano exigia para si a
terra. Ou seja, apesar do idealismo, a América Livre não deixa de ser baseada também em
observações coerentes com a prática social de então. No entanto, Bolívar introduz nessas
passagens uma importante ressalva: o solo pode ser emocionalmente plausível, mas não basta
por si só, porque não é compatível com o “mapa mental” político dos colonos, cuja
composição havia se tornado heterogênea demais para comportar algo tão restrito assim.
74

5.6 Colonização Interna

Continuando, o autor da “Carta” recorre a uma comparação entre hispano-americanos


e anglo-americanos. Conclui assim que “en tanto que nuestros compatriotas no adquieran los
talentos y las virtudes políticas que distinguen a nuestros hermanos del Norte, los sistemas
enteramente populares, lejos de sernos favorables, temo mucho que vengan a ser nuestra
ruína” (BOLÍVAR, 1830, p.221). É um raciocínio oriundo do já mencionado “Manifiesto de
Cartagena”, no qual Bolívar analisa a queda da Venezuela a fim de realizar um prognóstico
para toda a América. Vale mencionar como Bolívar declara no “Manifiesto...” a opinião de
que “nuestros conciudadanos no se hallan en aptitud de ejercer por sí mismos y ampliamente
sus derechos; porque carecen de las virtudes políticas que caracterizan al verdadero
republicano: virtudes que no se adquieren en los gobiernos absolutos, en donde se desconocen
los derechos y los deberes del ciudadano” (BOLÍVAR, 1830, p.218).
A comparação com os “hermanos del Norte” possui a força de censura paterna: o
Libertador estava decepcionado com os hispano-americanos por não equivalerem em
“virtudes” aos anglo-americanos. Isso frustrava Bolívar, considerando que haveria aparentes
semelhanças entre os casos, tal como o substantivo “hermanos” denota. Tendo em conta as
instituições e as práticas sociais disponíveis, seria possível dizer que os americanos em sua
totalidade estavam no mesmo continente, isolados geograficamente da Europa, sujeitos a um
império e com plena possibilidade de construir uma alteridade não-europeia a partir do
critério de solo. No entanto, a plausibilidade política entre ambos é diferente, exigindo de
Bolívar uma distinção entre “los hermanos del Norte” e os hispano-americanos – distinção
essa que se soma de alguma forma à estabelecida entre hispano-americanos e nativos.
O pensamento de Bolívar prossegue assim o empenho objetivo de identificar o que era
o hispano-americano – dessa vez considerando o sentido do Troféu da Anarquia como guerra
civil. O contraste com o anglo-americano é utilizado no mesmo sentido que o contraste com
os nativos: um esforço sociolinguístico para definir o que o hispano-americano não é. Existe
assim aqui uma formulação sociolinguística, onde o ethos é definido pela negação. Por
consequência, Bolívar rejeita o Iluminismo edênico e revolucionário por desconsiderar o
hispano-americano como nativo; e rejeita o Iluminismo emancipatório por desconsiderar
também semelhanças entre hispano-americanos e anglo-americanos.
Indiretamente, o Libertador admite que, se a ausência hispano-americana fosse de fato
a metrópole madrasta, então o Troféu da Anarquia não teria gerado o “caos da revolução”.
75

Antes, o resultado teria sido algo semelhante ao que aconteceu entre os estadunidenses, cujas
qualidades republicanas e liberais o venezuelano aclama. No entanto, “[d]esgraciadamente,
estas cualidades parecen estar muy distantes de nosotros en el grado que se requiere; y por el
contrario, estamos dominados de los vicios que se contraen bajo la dirección de una nación
como la española que sólo ha sobresalido en fiereza, ambición, venganza y codicia”
(BOLÍVAR, 1830, p.221). Os hispano-americanos não são como os anglo-americanos, assim
como não são como os índios nativos. Posto isso, a alteridade talvez fosse mais plausível se
considerada entre os próprios hispano-americanos entre si.
Bolívar possui motivos imperiosos para continuar a sugerir uma “Espanha madrasta” e
cruel: disso depende a coerência de seu discurso, bem como da legitimidade de seu papel
como Libertador e de seu plano por uma “América Livre”, além de sua postura diante dos
ingleses. Entretanto, isso não o impede de admitir a incongruência de se comparar anglo-
americanos e hispano-americanos: a ideologia e a produção discursiva disponíveis eram dife-
rentes, apesar de o critério de solo e o anti-imperialismo parecerem existir em ambos os casos.
Em outras palavras, o Libertador admite – ao menos nessas passagens – que seria
inviável ou mesmo impossível formular na América Hispânica um contraponto liberal à
metrópole. O colono hispânico era um súdito. Seu conceito de ordem advém de uma noção
hierárquica e tradicionalista29, herdada da metrópole, e somente assim atenderia a qualquer
projeto pós-colonial. O Troféu da Anarquia não é interpretado assim como o esforço de se
desprender da metrópole, mas o de realizar uma “colonização interna”. As elites coloniais
estavam em uma guerra de sucessão, certamente causada pelas ambiguidades e contradições
da administração imperial.
Sob esse ponto de vista, o Libertador parece guiado menos por esperanças emocionais
e mais por pragmatismo. Não há recursos simbológicos ou institucionais disponíveis para
edificar uma revolução, ou uma história de camaradagem e sacrifício pan-americana. Tudo
que restou fora um esforço de sucessão que teria de encontrar seus parâmetros a partir do
próprio legado cultural do império, parâmetros esses que sugerem a necessidade de “alterizar”
a própria América Hispânica entre si, segundo o que a herança imperial sugeria.

29
Ideia essa amplamente trabalhada e consumida pela rainha Isabela de Toledo (cf. MORSE, 1988)
76

5.7 A América fragmentada

Continuando em suas ponderações, Bolívar recorre a Montesquieu para explicar ao seu


remetente o que ocorria na América – ou o sentido do Troféu da Anarquia. A perspectiva não
é lisonjeira: a frase citada é a de que seria mais difícil “sacar um pueblo de la servidumbre,
que subyugar uno libre” (BOLÍVAR, 1830, p.221). Considerando a ideia de escravidão acima
desenvolvida, o autor quer afirmar com isso que o americano hispânico não estava em busca
do sistema representativo que outrora fora negado pela metrópole madrasta, ou da posse das
Américas. Isso porque, como visto, as colônias foram entregues à emancipação a partir da
queda metropolitana, e não pela superação, o que insinuaria a possibilidade de que o anti-
imperialismo jamais estivera disponível no repertório social do Troféu da Anarquia – a não
ser como apelo dos oportunistas, ou ideal dos visionários.
Muitas foram as tentativas de se estabelecer uma América para os americanos, afirma
Bolívar, mencionando com isso os projetos e conspirações republicanas de outrora. No
entanto, “¿Seremos nosotros capaces de mantener en su verdadero equilibrio la difícil carga
de una República? Se puede concebir que un pueblo recientemente desencadenado, se lance a
la esfera de la libertad, sin que, como a Ícaro, se le deshagan las alas, y recaiga en el abismo?”
(BOLÍVAR, 1830, p.221). A força da dúvida nessas passagens é de ceticismo: Bolívar admite
que tal prodígio seria inconcebível, e que todo raciocínio que considere essa esperança seria
ingênuo. O americano não sabe se dirigir por si só, de forma que seria inadequado – quase
indigno – do modelo republicano. De qualquer forma, admite Bolívar, esse modelo seria débil
demais para manter a centralidade na situação de urgência e mesmo de calamidade em que as
colônias hispânicas se encontravam.
Posto isso, o autor enfim pondera sobre o que querem os americanos: uma grande
república ou uma grande monarquia. Com decepção, o Libertador afirma que deseja mais do
que qualquer um que a América se tornasse a maior nação do mundo, e menos por sua
extensão e riquezas do que por sua liberdade e glória. No entanto, por mais que aspire à
perfeição do governo de sua pátria, “no puedo persuadirme que el Nuevo Mundo sea por el
momento regido por una gran república; como es imposible, no me atrevo a desearlo, y menos
deseo una monarquía universal en América, porque este proyecto, sin ser útil, es también
imposible” (BOLÍVAR, 1830, p.221).
Caso houvesse um governo desse tipo, calcula Bolívar, os abusos que existiam jamais
se reformariam, tornando infrutífera a regeneração americana. Se os estados se pusessem à
77

mercê de um novo centro – México ou Panamá, por exemplo –, o resultado seria a


perpetuação da “languidez” e da desordem. Para que um só governo dê vida, anime e ponha
em ação todos os recursos da prosperidade pública, bem como corrija, ilustre e aperfeiçoe o
Novo Mundo, teria de possuir as “faculdades de um Diós”, ou ao menos “las luces y virtudes
de todos los hombres” (BOLÍVAR, 1830, p.222). Entretanto, tal como esperado, isso não é
humanamente possível. Dessa forma,

[e]l espíritu de partido que al presente ajita a nuestros estados, se encendería


entonces con mayor encono, hallándose ausente la fuente del poder, que únicamente
puede reprimirlo. A demas, los magnates de las capitales no sufrirían la
preponderancia de los metropolitanos, a quienes considerarían como a otros tantos
tiranos: sus zelos llegarían hasta el punto de comparar a estos con los odiosos
españoles. En fin una monarquía semejante seria un coloso diforme, que su propio
peso desplomaría a la menor convulsion (BOLÍVAR, 1830, p.222).

Em outras palavras: a América precisa de ordem, e não de liberdade. E precisa ainda


menos de união: uma vez entregues a si mesmos, os americanos apenas se lançavam contra si
mesmos em dispendiosos conflitos internos30. E esses conflitos certamente prosseguiriam
enquanto os americanos não estivessem distinguidos e separados entre si. Portanto, era
preciso não uma guerra de Independência, mas um esquema de colonização interna que
contenha a América em seus próprios limites. O encontro dos hispano-americanos entre si
gerava zonas de contato, e não a almejada congruência que deveria ocorrer pelo critério de
solo. Isso se explica em parte pelo fato de a aproximação interamericana ocorrer pela falta de
limites estabelecidos, e não pelo contraponto identitário proporcionado pela metrópole.
Como visto, o critério de solo estava disponível, clamava por soberania e poderia
idealmente unificar as Américas. No entanto, a instituição por si só não servia como discurso
político ou origem ideológica plausível. O Cuerpo Unido de la Nación havia unificado o
critério de solo ao critério de sangue. Isso ocorria de forma que as ambiguidades dessa união
lançavam americano contra americano, gerando zonas de contato internas. Bolívar preferiria
converter o Troféu da Anarquia em uma luta épica contra o império, talvez inspirado nos

30
Dessa forma, a liberdade a que as Américas estariam condenadas pareceria a Bolívar uma maldição. Pode ser
interessante citar a indignação de San Martín, que em muitos sentidos assemelha-se à constatação de Bolívar:
“¡Libertad! para que un hombre de honor sea atacado por una prensa licenciosa, sin que haya leyes que lo
protejan y si existen se hagan ilusorias. ¡Libertad! para que si me dedico a cualquier género de industria, venga
una revolución que me destruya el trabajo de muchos años y la esperanza de dejar un bocado de pan a mis
hijos. ¡Libertad! para que se me cargue de contribuciones a fin de pagar los inmensos gastos originados porque
a cuatro ambiciosos se les antoja por vía de especulación hacer una revolución y quedar impunes. ¡Libertad!
para que sacrifique a mis hijos en disensiones y guerras civiles. ¡Libertad! para verme expatriado sin forma de
juicio y tal vez por una mera divergencia de opinión (...). Maldita sea la tal libertad, no será el hijo de mi
madre el que vaya a gozar de los beneficios que ella proporciona.” (SAN MARTÍN, 2000, p.276)
78

Estados Unidos da América e pelo Iluminismo emancipatório. E foi nesse sentido que se
empenhou. No entanto, o Libertador confrontou uma dificuldade intransponível de construir
uma alteridade americana absoluta. Qualquer emancipação que ignorasse os hispanos como
súditos neutralizava a própria chance de ser aplicada na América Hispânica, porque excluiria
os colonos e, por conseguinte, a frágil ordem social legada pelo império.
A solução, portanto, era a colonização interna. Seria a chance de emancipar a América
com base no critério de solo soberano, neutralizando o Troféu da Anarquia e estabilizando os
conflitos. Mas como realizá-la? Em busca de uma solução, Bolívar recorre à opinião de
Dominique de Pradt, religioso iluminista favorável à liberdade das colônias hispânicas.
Segundo Pradt, era preciso “a criação de quinze ou dezesseis estados”31 na América, ideia que
concebe baseado na ideia de que ““Os novos estados serão assim desenhados com as medidas
mais convenientes à administração deles; tudo será realizado sob uma igualdade proporcional,
que ocorra entre pares” (PRADT, 1801, pp.384 ; 381 – tradução nossa) 32.
O Libertador concorda com essa opinião até onde é possível, pois rejeita em parte a
ideia de que “os americanos poderão (e certamente farão melhor) por preferir um rei”
(PRADT, 1801, p.382 – tradução nossa)33. Para Bolívar, seria de fato mais fácil instalar
monarquias na América Hispânica; mas o esforço também seria inútil. O ideal seriam as
repúblicas, porque são circunscritas à esfera da própria conservação, prosperidade e glória. Os
republicanos não se interessam em estender os limites de suas nações. Isso somente lhes traria
vantagens caso convertessem os vizinhos em colônias, conquistados ou aliados, atitude essa
em desacordo com os valores republicanos mais essenciais. Repúblicas têm mais interesse em
se conservar, de forma que duram mais do que qualquer outra forma de governo. Repúblicas
hipertrofiadas, portanto, não são repúblicas, mas impérios cujo expansionismo poria em risco
a própria existência. A única exceção nesse sentido fora a república romana; mas isso porque
Roma permitira às colônias organizarem-se por leis e governos próprios, de forma que a
estabilidade da república romana não fora comprometida ou ameaçada pelo expansionismo
(BOLÍVAR, 1830, p.222).
Por outro lado, prossegue Bolívar, a política do rei é muito contrária a esses princípios
republicanos de conservação. O monarca se dirige fatalmente ao aumento de suas posses,
riquezas e faculdades – e com razão, porque disso depende sua autoridade tanto entre os
vizinhos como entre os próprios vassalos, que temerão enfrentar um poder tão formidável

31
[L]a création de quinze ou dixsept états.
32
[L]es nouveaux états seraient donc taillés sur les mesures les plus convenables à leur administration ; il ne
devra y avoir ni pygmées, ni colosses; tout sera dans une égalité proportionnelle.
33
[L]es Américains pouvoient (et sûrement ils auroient mieux fait), préférer un roi.
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quanto o de um império conservado ao custo de guerras e conquistas. Portanto, ainda que


sejam súditos e tenham um “mapa mental” monárquico, os hispano-americanos seriam mais
beneficiados pela república, considerando que são “anciosos de paz, ciências, artes, comercio
y agricultura” (BOLÍVAR, 1830, p.223). Dessa forma, aqui se manifesta outra vez a ideia de
que a América carece de ordem, e não de liberdade, opinião apoiado intertextualmente no
Iluminismo conservador.
Apesar de o elemento frasal “anciosos de paz” insinuar força idealista, a verdade é que
é intertextualmente conectados à perspectiva de Alexander von Humboldt. A menção a esse
geógrafo merece ser exposta com detalhes: como dito, é uma fonte intertextual relevante da
América Órfã, na qual o Libertador realiza observações mais objetivas e coerentes com a
prática social disponível. De acordo com John Lynch, o barão de Humboldt considerava
imoral a ideia de colônia, ou subordinar uma terra a impostos e restrições; mas não revelaria
essa opinião durante sua estada nas Índias, preferindo se questionar ali por que uma minoria
de espanhóis teria sustentado um império tão vasto por tantos anos (LYNCH, 1992, p.35).
Humboldt encontra uma resposta no caráter conservador dos hispânicos. Interesses
familiares, desejo de tranquilidade e medo de se engajar em uma causa arriscada como a da
independência os afastaria dessa ideia, ou mesmo de formar um governo local e represen-
tativo, mesmo que atrelado à metrópole (HUMBOLDT, 1822, p.439). Alguns colonos enten-
diam as revoluções apenas como perda de escravos, espoliação do clero e introdução de tole-
rância religiosa, algo incompatível com a crença estabelecida. Outros compunham “aristo-
cracias municipais” que rejeitavam constituições igualitárias, preferindo uma gestão estran-
geira que o exercício de autoridade por um americano de “casta inferior” – principalmente
porque temiam perder os títulos nobres que eram essenciais à sua felicidade. E haveria ainda
um número considerável que vivia do que a terra produz, em um continente onde a escassez
populacional permitiria viver livremente, mesmo sob o mais opressivo dos governos. Esses
talvez preferissem liberdade de comércio e um governo central – mas não ao ponto de
sacrificar as facilidades e a indolência adquiridas (HUMBOLDT, 1822, p.439-440).
Sob essa perspectiva, as molduras de contato moderna e ideológica ficam evidentes no
projeto patriótico bolivariano. Elevar o critério de solo tornaria la patria emocionalmente
plausível, mas perpetuaria a anarquia e a guerra civil na medida em que rejeita o critério de
sangue. E o critério de sangue poderia tornar a América politicamente possível, mas rejeitaria
o critério de solo e o caráter emocional necessário a la patria. A hipérbole do critério de solo
lançaria ambas as instituições em conflito ideológico pela soberania. Quando se intertex-
tualiza com Humboldt, o discurso bolivariano desenvolve um contraponto ao pensamento
80

revolucionário iluminista francês; e ao mesmo tempo consegue se tornar autêntico: Humboldt


provê Bolívar com informações específicas sobre as colônias, informações essas que não se
encontram nas demais formas de Iluminismo.
A consequência “prática” dessa intertextualidade verifica-se nas especificações que
Bolívar realiza sobre a compatibilidade política americana. Para o Libertador, repúblicas
seriam possíveis através do patriotismo americano. No entanto, a falta de patriotismo
americano perpetuaria o Troféu da Anarquia, como ficou evidente na Venezuela. Por outro
lado, monarquias seriam facilmente instaladas devido ao critério de sangue. Mas existiam
razões para deduzir que também perpetuariam o caos da revolução, devido ao caráter
expansionista delas. A prática discursiva bolivariana termina constrangida por essas
constatações, que derivam da prática social disponível, revelada indiretamente pelas
constatações do Barão de Humboldt.
Nesse caso, o que fazer? Bolívar acredita que tanto a monarquia quanto a república
seriam inconvenientes e ao mesmo tempo adequadas aos hispano-americanos. A solução
proposta deve ser assim um meio-termo: “no siéndonos posible lograr entre las repúblicas y
monarquías lo más perfecto y acabado, evitemos caer en anarquías demagógicas, o en tiranías
monócratas” (BOLÍVAR, 1830, p.223). Bolívar seleciona as melhores características de cada
um dos governos e faz assim previsões que possuem força de recomendação. Isso se
manifesta mesmo na citada frase, pelo verbo “evitemos”. Bolívar propõe assim um híbrido
político que antecede o que seria posteriormente conhecido como caudilhismo34. Ou
possivelmente teria realizado uma “profecia autorrealizável”, considerando a importância do
pensamento bolivariano para a formação hispano-americana.
Prosseguindo em seu raciocínio, Bolívar afirma que seria uma ideia grandiosa
pretender formar de todo o Novo Mundo uma nação única, com um só vínculo que ligue suas
partes entre si e com o todo. O projeto seria viável: como a América possui origem, língua,
costumes e religião comuns, deveria igualmente ter um só governo que confederasse os
estados que deveriam se formar. No entanto, o Libertador se vê obrigado a admitir que isso
não seria possível, porque “climas remotos, situaciones diversas, intereses opuestos, carac-
teres desemejantes dividen a la América” (BOLÍVAR, 1830, 226). A força do período grama-

34
De passagem, vale a pena mencionar a maneira como Carlos Rangel indica a “genialidade” bolivariana a partir
desse parágrafo, onde o Libertador prevê a necessidade política dos caudillos para se construir pactos e
estabilizar a América Latina. Na medida em que consegue se impor pela força e pelo carisma pessoal, o
caudilho estabelece um acordo hierárquico que torna possível estabilizar politicamente a convulsão
revolucionária e a guerra civil, o que o torna necessário a qualquer projeto nacional (cf. RANGEL, 1982).
81

tical possui tonalidade de lamento, revelada pelo próprio formato de coordenação assindética
adversativa: depois do ideal, o advérbio “mas” introduz as limitações da realidade social.
Em seguida, Bolívar permite-se idealizar: “¡Qué bello sería que el istmo de Panamá
fuese para nosotros lo que el de Corinto para los griegos!” (BOLÍVAR, 1830, 226). A força
de desejo fica evidente pelas exclamações, e pela própria conjugação do verbo principal no
futuro do pretérito – “sería”. O autor prossegue assim em seu sonho: “Ojalá que algun día
tengamos la fortuna de instalar allí um augusto congreso de los representantes de las
repúblicas, reinos e império a tratar y discutir sobre los altos interesés de la paz y de de la
guerra, com las naciones de las otras tres partes del mundo” (BOLÍVAR, 1830, 226). Isso
somente poderia ocorrer em uma “época dichosa de nuestra regeneración” – ou seria apenas
um delírio, semelhante ao do abade de Saint Pierre, que imaginou ser possível reunir um con-
gresso europeu para decidir o destino dos interesses daquelas nações (BOLÍVAR, 1830, 226).
A união, portanto, seria possível somente depois de o Troféu da Anarquia ter sido
apaziguado e a América, estabilizada. Isso demandava apartar os americanos entre si,
subordinando para isso o critério de solo ao critério de sangue – mas de maneira a respeitar os
limites desenvolvidos pelo critério de solo. O Libertador infere assim que a queda do império
espanhol gerou uma prática social que determinava a formação de pátrias. Era preciso assim
dispensar a nación e o cuerpo unido. A prioridade da América Órfã é a paz, e não a liberdade,
porque essa seria um fardo a que os hispânicos já estavam entregues com a queda imperial, e
da qual não se beneficiariam jamais. Não que isso impeça Bolívar de se contradizer quanto ao
problema da união americana na passagem seguinte.

5.8 A América Unida

Estando próximo de concluir seu texto, Bolívar introduz uma mudança discursiva
comentando outra citação direta de seu interlocutor, com a qual parece concordar:
“Mutaciones importantes y felices, continua pueden ser frecuentemente producidas por
efectos individuales” (BOLÍVAR, 1830, 226). Para expressar seu ponto de vista, o Libertador
recorre a uma tradição dos americanos meridionais sobre a figura de Quetzalcoatl, ou
“Quetral-cahualt” –, “el Hermes, o Buda de la América del Sur”, divindade cultuada pelos
índios astecas e maias. Segundo essa tradição, Quetzalcoatl deixara os índios há tempos atrás,
mas não antes de prometer retornar assim que os séculos designados houvessem passado, para
82

restabelecer seu governo e renovar a felicidade. Bolívar utiliza o mito indígena para introduzir
outra vez suas expectativas mais idealistas: ¿Esta tradición, no opera y excita uma conviccion
de que muy pronto debe volver? ¿concibe V. cual será el efecto que producirá, si un individuo
apareciendo entre ellos demonstrase los carateres de Quetralcahualt, el Buda del bosque, ó
Mercurio, del cual han hablado tanto las otras naciones?” (BOLÍVAR, 1830, 227).
Caso houvesse alguém com essas características, calcula Bolívar, toda a América
poderia se inclinar à causa libertadora. Ou seja, “¿no es la union todo lo que se necesita para
ponerlos em estado de espulsar a los espanoles, sus tropas, y los partidários de la corrompida
España, para hacerlos capaces de estabelecer um império poderoso, com um gobierno livre, y
leyes benévolas?” (BOLÍVAR, 1830, 227). É chamativa a maneira como essa passagem
contradiz a América Órfã. Mesmo a diferença de estilos é acentuada outra vez: as interro-
gações perdem o caráter de ponderação objetiva e ganham força retórica de inflamação
discursiva, abandonando o caráter de proposição, de denúncia e de reflexão intelectual das
passagens imediatamente anteriores. Há dessa forma um retorno à América Livre, que o
discurso bolivariano evoca outra vez aqui. A força do enunciado fica evidente quando se
considera que essas passagens são conclusivas: é esperável que o Libertador opte por retornar
aqui ao seu projeto patriótico pan-americano.
Apesar do entusiasmo pela figura de Quetralcahualt, o autor da “Carta...” acredita que
o deus índio possui um apelo restrito. Várias tentativas intelectuais foram feitas para se incluir
a divindade no panteão da cristandade, todas sem sucesso. Somente historiadores e
pensadores sofisticados se dedicaram a esse problema, de forma que constitui um elemento
agregador limitado. Assim, o Libertador concorda que ações individuais levam a resultados
gerais em revoluções; mas esse não seria o caso do culto a essa entidade divina indígena.
Felizmente, segundo Bolívar, o México soube tirar proveito revolucionário dos símbolos
cristãos – mais precisamente, o da Virgem de Guadalupe. A cristandade tinha apelo mais
amplo que o indígena, tendo sido mais adequada para unir o México em uma patria
emocionalmente plausível.
Em outras palavras: novamente a cultura dos colonos demonstra ser indispensável para
um projeto nacionalista. Bolívar elogia assim o uso da Virgem como apelo emocional para
formar uma comunidade imaginária abrangente no México. Eis a lição que deve ser aprendida
do caso mexicano: “seguramente la unión es la que nos falta para completar a obra de nuestra
rejeneración” (BOLÍVAR, 1830, 228). Ora, a divisão interamericana não é estranha: as
“guerras civiles” são formadas geralmente por dois partidos, os conservadores e
reformadores. Os primeiros vencem em quantidade, mas os segundos dispõem da qualidade:
83

“la masa física se equilibra con la fuerza moral, y la contienda se prolonga, siendo sus
resultados muy inciertos. Por fortuna entre nosotros, la masa ha seguido a la intelijencia”
(BOLÍVAR, 1830, 228).
Esse é um enunciado ligado ao esquema tradicional de ruptura que contrapõe
conservadores – ou peninsulares – e reformadores – ou crioulos. Mais do que isso, é a
tentativa conclusiva do Libertador de conciliar a América Livre e a América Órfã. O esforço é
outra vez frustrado pelas contradições: contrariando a América Órfã, o discurso bolivariano
enfatiza aqui a importância da união, que agora seria possível e até mesmo necessária para se
expulsar os espanhóis e fundar um governo livre. No entanto, alerta o autor, essa não virá de
“prodijios divinos”, mas de efeitos sensíveis e esforços bem dirigidos. A situação é favorável
para os americanos: a América está em si porque fora abandonada por todas as nações, ilhada
no meio do universo, sem relações diplomáticas nem auxílios militares e combatida pela
Espanha, que possui mais elementos para a guerra do que seria possível aos americanos
adquirir (BOLÍVAR, 1830, 228). É curioso como, de repente, as desvantagens da América
Órfã tornam-se vantagens aqui.
Caberia perguntar o que teria sido feito da Espanha decaída, destronada e sem
recursos; e também da América Órfã e anárquica que precisa ser fracionada entre si para que
contenha seu ímpeto destrutivo. Bolívar silencia aqui esses aspectos, preferindo explicar a
situação da seguinte forma: “[c]uando los sucesos no están asegurados, cuando el Estado es
débil, y cuando las empresas son remotas, todos los hombres vacilan; las opiniones se
dividen, las pasiones las agitan y los enemigos las animan para triunfar por este fácil medio”
(BOLÍVAR, 1830, p.228). Em outras palavras, a hesitação dos americanos deve-se apenas às
incertezas esperáveis do Troféu da Anarquia, não se relacionando com algum tipo de
inclinação conservadora.
No entanto, acredita o autor, assim que sejam fortes, sob o auspício de uma nação
liberal que lhes preste a proteção – no caso, a Inglaterra –, será possível ver os americanos
cultivar as virtudes e os talentos que conduzem à glória; então seguirão a “marcha
majestuosa” em direção às grandes prosperidades destinadas à América meridional; e as
ciências e as artes que nasceram no Oriente e ilustraram a Europa irão à Colômbia livre que as
convidará com um asilo (BOLÍVAR, 1830, p.228). Assim o Libertador conclui seu
pensamento. O quadro seguinte fornece um resumo panorâmico dos sentidos atribuídos ao
Troféu da Anarquia no discurso bolivariano, a partir dos quais a noção de ethos americana
derivará, tal como proposto no corpo teórico.
84

América Livre América Órfã

Interdiscursividade Iluminismo edênico Iluminismo conservador


Iluminismo emancipatório
Iluminismo revolucionário

Intertextualidade Bartolomé de Las Casas Alexander Von Humboldt


Dominique de Pradt Montesquieu

Imagem da metrópole Madrasta viva Mãe falecida

Valores Igualdade / Horizontalidade Heterogeneidade / Hierarquia

Sentido do Troféu da Anarquia Guerra pela independência Guerra civil

Aspirações e urgências Liberdade / independência Ordem / Colonização interna

Alteridade Metrópole Nativos


Anglo-americanos
Hispano-americanos entre si

Força do enunciado Panfletagem Denúncia


Esperança Proposição
Idealismo Explicação

Organização política possível República Misto entre monarquia e república

Possibilidade de união Favorável Desfavorável

Quadro 5: comparação entre os enunciados da América Livre e da América Órfã.


Fonte: Dados da pesquisa
85

6. CONCLUSÃO

A presente dissertação propôs investigar a formação do nacionalismo hispano-


americano. Considerou para tal o período chamado de Troféu da Anarquia (1810-1820) como
o momento crucial desse processo. Dessa forma, recorreu-se ao discurso de Simon Bolívar
para alcançar a forma como o pensamento emcanipatório hispano-americano interpretou o
significado atribuído ao Troféu da Anarquia. A escolha foi justificada pela forma como o
discurso dos libertadores refletiam a época; e pela maneira como formariam não apenas o
contexto de então, como também os contextos futuros, considerando o legado político que
deixariam às identidades soberanas nacionais na América Hispânica. A justificativa para a
dissertação é a de superar os esquemas tradicionais de ruptura listados por Pierre Chaunu
(1972), de forma a obter uma interpretação mais útil para a emancipação hispano-americana e
para a própria composição das identidades daí derivadas.
Sugeriu-se para tal uma concepção intersubjetiva e social da realidade humana, na
qual a língua cumpre papel producente (BEST; KELNER, 2008). Recorreu-se igualmente a
uma noção de realidade como discurso, que foi caracterizado como heterogêneo e
contraditório (FOUCAULT, 1972). A partir dessas proposições, utilizou-se uma Análise de
Discurso Textualmente Orientada como metodologia (FAIRCLOUGH, 2004; 2006). O
discurso foi assim abordado de maneira interdisciplinar e multidimensional, envolvendo três
aspectos: a prática social, a prática discursiva e o texto em si, considerado como parte da
prática social. Isso se traduziu no uso da sociologia, da história e da linguística.
Elaborou-se uma estratégia analítica que envolveu a descrição do texto em conjunto
com a análise. Metáforas, interdiscursividades, intertextualidades e outros elementos foram
analisados sinergicamente com o objetivo de se alcançar o ethos hispano-americano, ou a
identidade possibilitada pelos elementos discursivos então disponíveis. Sugeriu-se para isso
um modelo dialético, sociolinguístico e ideológico para explicar o mecanismo político pelo
qual as identidades são concebidas.
A prática social foi investigada a partir das ponderações de Claudio Lomnitz (2008),
segundo quem o nacionalismo periférico é discursivamente construído através da profun-
didade, que edifica a tradição e a camaradagem nacionais; e do silêncio, que se esforça por
omitir as contradições da profundidade, tal como a hierarquia e a heterogeneidade. A partir
daí, recorreu-se à ideia de que as duas instituições basilares da identidade nacional hispano-
americana derivaram do império espanhol. São essas instituições o critério de sangue, que
86

indica a origem genealógica do nacionalismo, de maneira que o hispânico seja o nascido de


hispânicos; e o critério de solo, que revela a característica geográfica do nacionalismo, de
forma que o hispânico terá de ter nascido em território hispânico. Posto isso, a prática
discursiva foi orientada no sentido histórico, tomando por base o trabalho de Túlio Halperin
Donghi (1978). O Troféu da Anarquia foi definido assim como uma guerra civil entre os
colonos, iniciada pela queda da Espanha em poder das tropas napoleônicas.
Selecionou-se da obra de Bolívar a “Carta de Jamaica”, considerada a primeira teoria
do nacionalismo hispano-americano (LYNCH, 1991). A análise buscou no texto pontos
críticos que revelassem o ethos do nacionalismo hispano-americano, ou seja, a identidade
conferida às novas nações. Com esse objetivo, foram selecionadas as estratégias consideradas
pertinentes para a análise discursiva. Como dito, o ponto crucial do ethos foi o sentido
sociolinguístico conferido pelo Libertador ao Troféu da Anarquia, tal como se rotulou os
conflitos entre 1810 e 1820. A importância desse estudo para o processo nacionalista hispano-
americano está na forma como os textos de Bolívar são produtos e produtores da época, tendo
assim grande influência sobre a formação do nacionalismo hispano-americano.
O principal objetivo de Bolívar na “Carta...” foi o de interpretar o significado do
Troféu da Anarquia, ou seja, as guerras hispano-americanas ocorridas entre 1810 e 1820. O
estilo é desenvolvido no documento em função de um interlocutor – no caso da “Carta...”, o
senhor Cullen, em quem Bolívar detecta um mensageiro adequado para defender a
importância geopolítica da América Hispânica perante a Inglaterra e a Europa. Ao mesmo
tempo, Bolívar trabalha para convencer os hispano-americanos de que o projeto nacionalista
nas colônias hispânicas é legítimo, existente e factível. Recorre para tal a uma intertextua-
lidade calcada em diversas facetas do Iluminismo, o que torna possível avaliar a verossi-
milhança cultural e científica do discurso.
O conteúdo da “Carta...” é constrangido pela verossimilhança científica da época. Sua
interdiscursividade é assim atrelada às diferences faces do discurso iluminista, aqui listadas
como edênico, revolucionário, emancipatório e conservador, de maneira que a intertex-
tualidade do discurso bolivariano deriva dos principais autores desses Iluminismos. Bolívar
também precisou trabalhar com a prática social disponível, ou seja, os critérios de solo e de
sangue que determinam quem é nacional ou não. Com isso, precisou elaborar seu pensamento
a partir do que estava disponibilizado pelos critérios de solo e de sangue. Ao mesmo tempo o
Libertador busca manipular esse aparato a favor de uma explicação plausível para o Troféu da
Anarquia. Com isso, divide-se entre panfletar a favor da causa hispano-americana e explicar
objetivamente o que ocorre nas colônias hispano-americanas. Eis por que seu discurso termina
87

fracionado entre dois enunciados básicos: a “América Livre”, surgida a partir do critério de
solo, com força panfletária em seus enunciados; e a “América Órfã”, no qual o critério de solo
é subordinado ao critério de sangue, gerando enunciados de força denunciatória, porém,
criteriosos e pragmáticos.
Ambos os enunciados constituem uma contradição estrutural que permeia todo o
discurso bolivariano. A possibilidade política e a plausibilidade emocional acabam sendo
mutuamente excludentes, fato que ocorre não apenas no discurso, como na própria prática
social. A dialética ideológica imaginada e mesmo apregoada pelo Libertador permite
identificar as Américas a partir da alteridade metropolitana, de maneira a caracterizar o
Troféu da Anarquia como uma guerra pela independência. Isso é feito a partir de uma
interpretação que recorre à interdiscursividade dos Iluminismos edênico, revolucionário e
emancipatório, havendo assim intertextualidade com Las Casas e os panfletários americanos.
No entanto, essa leitura exclui a possibilidade política que deriva do critério de sangue, já
neutralizado pelo critério de solo. A partir daí, o Troféu da Anarquia é forçosamente interpre-
tado como o “caos da revolução”, requerendo soluções emocionais e políticas diferentes.
Bolívar ensaia silenciar o critério de sangue, devido à forte ligação desse para com a
hereditariedade imperial. Isso é feito de maneira a aprofundar o critério de solo, o que gera
prejuízos ao próprio projeto nacionalista, porque exclui a possibilidade política derivada do
critério de sangue. Ciente disso, o autor da “Carta...” realiza um esforço teórico para conciliar
a América Livre e a América Órfã. No entanto, na medida em que se dedica a panfletar, acaba
prejudicando a o esforço de explicar, e vice versa. As dificuldades de Bolívar e suas esperadas
contradições refletem a própria prática sociolinguística então disponível. Derivada dos
critérios de solo e de sangue, la patria é um emaranhado de heterogeneidades que, diferente
do que se poderia prever, constituem a própria forma pela qual os novos espaços soberanos
são formados na América Hispânica. Bolívar é perspicaz ao admitir que os pactos eram mais
necessários do que revoluções; e que as revoluções eram igualmente necessárias para que os
pactos pudessem se formar. Daí as suas contradições, que são verossímeis diante do Troféu da
Anarquia e do legado que deixaria à formação das futuras patrias.
Em relação ao objetivo de superar os esquemas de ruptura, o trabalho foi bem
sucedido ao seu próprio modo. O sucesso não foi exatamente o de conseguir descartar esses
esquemas; antes, sua virtude foi a de fornecer outras explicações para eles. Em outras
palavras, a guerra da independência não foi um acontecimento explícito e evidente por si só.
Antes, atendeu à necessidade de se edificar um discurso emancipatório a partir dos critérios
então disponíveis, a fim de se constituir espaços comunitários emocionalmente plausíveis.
88

Nesse sentido, Bolívar está sendo honesto ao evocar e manipular o critério de solo: era o
único que poderia ser de fato instrumentalizado a favor de uma interpretação nacionalista para
o Troféu da Anarquia. Além disso, o discurso bolivariano está de acordo com o próprio
amadurecimento da mentalidade bolivariana, formado ainda na primeira tentativa de
libertação da Venezuela, quando havia somente o discurso bolivariano da América Livre.
Com o fracasso da libertação, Bolívar acaba se tornando honesto em relação ao critério de
solo: o Libertador admite que esse critério é necessário para se formar espaços politicamente
possíveis, embora isso implique em comprometer a emoção necessária ao nacionalismo. A
partir daí, Bolívar assume assim também a América Órfã em seu discurso, embora mantenha
em si a América Livre – nem tanto por uma questão de idealismo e de persistência diante do
erro, mas pela própria necessidade contextual de se fornecer uma interpretação heróica do
Troféu da Anarquia, o que tornaria os novos espaços nacionais possíveis e plausíveis em
todos os sentidos.
As dificuldades de Bolívar remetem à dificuldade que existe em se definir “nação”. A
própria discussão teórica aqui desenvolvida revela muito desse problema. A nação é
impossível de ser conceituada por critérios objetivos; e o uso de critérios intersubjetivos reduz
qualquer definição a conceitos que podem ser considerados excessivamente abstratos. A única
discussão possível nesse sentido precisou ser praticada de maneira tangencial: no lugar de se
definir o que seja “nação”, foi preferível pensar os critérios que potencialmente poderiam
desenvolver o “nacionalismo”, ou seja, a experiência intersubjetiva e emotiva que caracteriza
o grupo em relação a uma exterioridade qualquer. No caso, os critérios eram o de solo e de
sangue, ambos muito presentes no discurso bolivariano.
Com base na análise da Carta de Jamaica, é provável que o legado mais fundamental
do Troféu da Anarquia tenha sido a “eterna” luta pela interpretação sobre o que tenha sido as
guerras da independência. Responder a essa questão ainda constituiu uma maneira possível de
se refletir sobre a identidade latino-americana em tempos atuais: suas riquezas, suas
ambiguidades, suas dificuldades de formação e conceituação. Os conceitos principais dessa
interpretação ainda seguem como na Carta de Jamaica: a ideia de uma América Livre em
contraposição a de uma América Órfã. No caso, o presente trabalho buscou uma interpretação
sinérgica, onde ambas as Américas revelem sua importância simultaneamente, considerando a
heterogeneidade e a contradição típicas e necessárias ao discurso. O esforço foi bem sucedido
nesse sentido: a teoria bolivariana presente na Carta revela-se muito mais útil quando
analisada em sua totalidade. Entenda-se por “útil” como uma referência à possibilidade de se
89

acessar por ali a herança ibérica nas formas de organização políticas e possibilidades
emocionais na América Hispânica.
Considerando que o nacionalismo é um discurso; que o discurso é um signo dialético;
e que os signos persistem no tempo através de adaptações, o Troféu da Anarquia ainda pode
ser considerado crucial para entender as interações domésticas e internacionais da experiência
nacionalista hispano-americana. Isso se revela em particular nas situações de conflito. O
Troféu da Anarquia ainda prossegue em seu legado de ambiguidades, gerando situações
potencialmente conflituosas. O critério de sangue e o critério de solo com certeza deverão ser
usados para se investigar como e por que esses desajustes persistem. Nesse caso, uma atenção
especial deverá ser dada ao critério de solo. Uma conclusão equivocada sobre a Carta de
Jamaica seria a de que esse critério representa um “elo fraco” na experiência nacionalista.
Pelo contrário – a experiência estadunidense é um indício de que a terra-mãe pode evocar
nacionalismos perigosamente intensos. No caso da América Hispânica, há motivos para se
pensar que a emotividade nacionalista, embora necessária, pode se voltar contra a própria
identidade formada. A solução nesse caso será modos de conciliação: é possível que a
proximidade histórica e cultural dos países hispano-americanos, longe de congregá-los, torna-
os ainda mais propensos à necessidade de se diferenciar – em especial, pelo conflito.
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