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dois místicos isolados, osautores do Raia Mcltemna e do livro 1'p.liá Após a catástrofe da expulsão espanhola, que alterou tão radi
haviam sonhado com uma revolução mísiica na vida judaica, e nin calmente o aspecto exterior da Cabala, se não seu conteúdo mais
guém respondera a seu apelo2. Em essência, o cabalismo era o pri íntimo, tornou-se também possível considerar o retorno ao ponto de
vilégio do eleito que seguia a vereda de penetração cada vez mais lartida da Criação como meio de precipitar a catástrofe final do
profunda nos mistérios de Deus. Esta atitude era claramente mani inundo, que ocorreria quando o retomo fosse realizado por muitos
festa na Velha Cabala, com sua •'neutralização" de todas as tendên indivíduos, unidos no desejo pelo "Fim" do mundo. Tendo ocorrido
cias messiânicas que, embora não completa, era muito marcante. Esta uma grande reviravolta emocional, a absorção mística do indivíduo
relativa indiferença à sugestão de que o curso da história poderia poderia transformar-se, por uma espécie de dialética mística, na as
ser algo encurtado por meios místicos devia-se ao fato de que ori piração religiosa de toda a comunidade. Neste caso, aquilo que es
ginalmente os místicos c apocalípticos tinham voltado seus pensa tivem escondido sob o suave aspecto do Tikun (lutando pela perfei
mentos cmdireção inversa: os cabalistas concentraram Iodos os seus ção do inundo) revelar-sc-ia como arma potente, capaz de destruir
poderes mentais e emocionais não no fim messiânico do mundo, no todas as forças do mal; e tal destruição seria por si equivalente à
estágio final do universo revelado, mas antes no seu começo. Ou, Redenção.
em outras palavras, em sua especulação cies estavam no conjunto Embora os cálculos, idéias e visões messiânicas não fossem par
mais interessados na Criação do que na Redenção. A Redenção de le essencial da Cabala antiga, esta não era de modo algum carente
veria ser conseguida não por um movimento tempestuoso na tenta- nesses assuntos, e não se deveria concluir que o cabalismo descurnsse
tiva de apressar crises c catástrofes históricas, mas antes pelo novo .inteiramente do problema da Redenção "em nossa é[>oca". A ques
seguimento do caminho que conduz aos primórdios da Criação cda tão é que, se houve preocupação com ela e quando esta se verificou,
Revelação, ao ponto em que o processo do mundo (a história do cie o fez com um espírito de super-rogação. Típico dos aspectos
Universo e de Deus) principiou a desenvolver-sc dentro de um sis catastrofais da Redenção - de que os cabalistas estavam plenamente
tema de leis. Aquele que conhecia a senda pela qual viera podia ter ;eónscios - foi o horrível fato de que, bem antes de 1492, alguns
esperanças eventualmente de poder retornar sobre seus passos. utores cabalistas haviam proclamado esse ano catastrófico como
As meditações místicas dos cabalistas sobre a teogonia e a cos «ndo o ano da Redenção*. Entretanto, 1492 não trouxe libertação
mogonia produziram, destarte, um modo não-messiânico e indivi de cima, mas um exílio crudelíssimo aqui embaixo. A consciência
dualista de redenção ou salvação. Na união - diz um cabalisla do de que a redenção significava tanto libertação quanto catástrofe im
século XIV3 - está a redenção. Nestas meditações, a história era pregnou o novo movimenlo religioso a tal ponto que ela só pode
purgada de sua mácula-cornipção. uma vez que os cabalistas procu- I ser considerada o lado anverso da disposição apocalíptica predomi
nante na vida judaica.
ravam encontrar o caminho de retomo à unidade original, 5 estrutura
cósmica anterior à Primeira Fraude de Satã, com cujas conseqüências Os efeitos c conseqüências concretas do desastre de 1492 não
eram forçados a identificar o curso da História. Feita a esta altura e limitaram de modo algum aos judeus que viviam naquela época.
Ia verdade, o processo histórico desencadeado pela expulsão da Es-
uma nova abordagem emocional, a Cabala poderia ter absorvido â i
anha requereu várias gerações - quase um século inteiro - para
intensidade do messianismo ese tornado um poderoso fator apoca-1 desdobrar completamente seus efeitos. Só gradativãmente consegui
líptico. pois remontar o processo espiritual até os seus últimos fun- I ram suas tremendas implicações impregnar regiões cada vez mais
damentos da existência poderia ler sido considerado por si como à I rofundas da existência. Este processo ajudou a fundir os elementos
própria redenção, no sentido de que o mundo voltaria então a uni^i
pocalípticos e messiânicos do judaísmo com os aspectos tradicionais
dade c pureza das seus primórdios. Esta volta ao ponto de partida 4 Ba cabalismo. A última época tornou-se tão importante quanto a
I
cosmogônico, como propósito central da Cabala, nem sempre se de-^ rôncira; cm lugar de reverter ao amanhecer da história ou, melhor,
senvolveu nas silentcs e solitárias meditações do indivíduo, que po- .1] \z seus antecedentes metafísicos, as novas doutrinas punham ênfase
dem ou não ter relação com acontecimentos externos. nos estágios finais do processo cosmológico. O palhas do messia-
nismo invadiu a nova Cabala esuas formas clássicas de expressão cabalismo e a refundiram. A nova Cabala, modelada por eslc pro
como nunca o Zohar ofizera; o "começo" e o "fim" foram liados cesso transformador e fundenlc na "Comunidade dos Devotos" cm
entre si. Safed. portou marcas duradouras do acontecimento ao qual devia
Os contemporâneos da Expulsão tinham especial consciência sua origem. Pois. uma vez que o cataslrofal foi semeado qual se
dos problemas concretos que ela criara, mas não de suas profundas mente fértil no âmago desta nova Cabala, seus ensinamentos deviam
implicações para o pensamento religioso c a expressão teológica levar necessariamente àquela catástrofe ullcrior que se tomou aguda
Paia os exilados da Espanha, ocaráter cataslrofal do "Fim" tornou- com o movimento sabataísta.
se mais uma vez evidente. Mobilizar e libertar todas as forças ca O ânimo que prevaleceu nos círculos cabalísticos incendiados
pazes de apressar o"Fim" tornou-se mais uma vez oprincipal ob pela propaganda apocalíptica e nos grupos influenciados por eles se
jetivo dos místicos. Adoutrina messiânica, que era a preocupação reflete de maneira revclndora em dois trabalhos anônimos - Sefer
antenor dos interessados cm apologética. converteu-se por algum Ha-Meschiv. "O Livro das Revelações", c Kaflla-Kciorci, "O Tu-
tempo no tema de uma propaganda agressiva. Os compêndios clás ríbulo" - escritos por volta de 1500e conservados em manuscritos'.
sicos, nos quais Isaac Abarbanel codificou as doutrinas messiânicas 0 primeiro é um comentário sobre a Tora, c o segundo, um comen
do judaísmo alguns anos após aExpulsão, foram logo acompanhados tário sobre os Salmos. Ambos os aulores tentaram introduzir signi
por numerosas epístolas, panfletos, homílias e escritos apocalípticos ficados apocalípticos em cada palavra das Escrituras. Alegavam te
cm que as repercussões da catástrofe alcançaram sua expressão mais rem as Escrituras setenta "faces", e manifestar uma face diferente
vigorosa. Nesses escritos, cujos autores se empenharam muito cm para cada geração, com um modo diferente de alocução. Em sua
vincular a Expulsão às antigas profecias, era fortemente enfatizado própria geração, cada palavra da Bíblia, supuseram eles. referia-se
o caráter redentor da catásirofe de 1492. Supôs-se que as dores de ao Exílio e â Redenção. As Escrituras foram interpretadas como uma
parto da era messiânica, com a qual a História deveria "terminar" série de símbolos dos acontccimenios preliminares, tristezas e dores
ou (como os apocalípticos diriam) "desmoronar", iniciaram-se com da Redenção que esses autores encaravam vividamente como uma
a Expulsão5. catástrofe.
A figura impressionante c agudamente delineada de Abraão ben- O autor do Kaf Ha-Ketoret, em particular, adotou uma posição
El.czcr Hn-Lcvi, cm Jerusalém, um infatigávcl agitador c intérprete muito radical. Empregando todos os artifícios dessa precisão mística
de ratos "prenhes" de redenção, é típica de uma geração de caba com que os cabalistas liam a Bíblia, infundiu significados apocalíp
listas em que o abismo apocalíptico se escancarou, sem contudo en ticos extraordinários ás palavras dos Salmos, c apresentou o Saltério
golir as categorias tradicionais da teologia mística ou, como acon como um manual do Milênio c da catástrofe messiânica Além disso,
teceu mais tardüi scm lransf0rniá.|así. A força CIIII)ciona| 0 a cIü. desenvolveu uma teoria extremamente audaciosa sobre os Salmos
quencia de um pregador da penitência combinaram-se aqui com uma como hinos apocalípticos e sobre o conforto que esses hinos traziam
•
paixão pela interpretação apocalíptica da História e pela teologia aos fiéis". A função secreta dos verdadeiros hinos era servir de anuas
histórica; mas aprópria crença de que a Redenção estava próxima mágicas a serem brandidas no embate final, armas dotadas de po-
impediu que as drásticas experiências da Expulsão, lembradas como deres ilimitados de purificação e destruição, de modo que pudessem
ainda eram v.vidamente. se transmutassem em conceitos religiosos aniquilar todas as forças do mal. Vistas sob este prisma, as palavras
finais. Só passo a passo, à medida que a Expulsão cessou de ser dos Salmos surgiam como "sabres afiados nas mãos de Israel c
considerada Dluz redentora e assomou mais nitidamente em seu ca anuas mortais"", e o próprio Saltério era considerado em seu duplo
ráter cataslrofal. é que as chamas que se inflamaram a partir do
abismo apocalíptico se espalharam por largas áreas do mundo judai 7. Com relação ao SeferHu-Mescliiv. dei informações detalhadas no meu CaliS-
co, até que por fim se apoderaram da própria teologia mística do l"Xi< dns MamUOilia CuboIttSoa em Jerusalém, pp. 85-89. O volumoso KiifHa-Ke-
lurel existe emdiversos manuscritos. Usei o daBiblioihèque Nalionale deParis (Hebr.
845). A obra lambem era do conhecimento dos místicos de Safcd: Vilala menciona
,„.. i. 5,it,',v m**«feWweM* «o Wsehtò Kllàa, .le Avraham llalcvi (Consumi- em seu livro inédito sobre magia (ms. Musajolf em Jerusalém, f.69a). Excertos mais
ZL»»,'CrT, CSC'ÍKifHu-Keiarei.
,DS Xmcl,anles- «peciaI,,K„,e no manuscrito subsiste completos de outros escrilos do mesmo aulor encontram-se nummanuscrito da Biblio
oo comentário dos Salmos. teca Schockcn. cm Jcrusaliim.
8. Kuf Hn-Keliirel sobre o Salmo 29.
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J-li.ctJ^SEtoSP*
vol. VII (1930). pp. SOl're t',e 4-S0-456.
I49.165. "° Kiri<" Sefir- wl " <I925>- W»- l0'-141-269' 9. llerevImd be-Uuiam scliel Israel hihiimit uleuval kid Izar umaslin.
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AS GRANDES CORRENTES DA MÍSTICA JUDAICA ISAAC I.URIA E SUA ESCOLA 279
aspecto de livro de cânticos de combate c de arsenal de armas para começou agora a soar oca c espectral aos ouvidos sintonizados com
a "guena final". Antes da derradeira luta apocalíptica em que essas a nova Cabala. Os livros dos filósofos judeus tomaram-se "livros
armas senam usadas, o Iremcndo poder apocalíptico latente nas pa diabólicos"1".
lavras dos Salmos deveria manifestar-se sob afonna de consolo, que Morte, anependimento c renascimento eram os Ires grandes
é na realidade a incandescente c secreta crepitação dos fogos apo acontecimentos na vida humana pelos quais a nova Cabala procurava
calípticos em suas profundezas. O consolo é o símbolo clássico de conduzir o homem â união bem-aventurada com Deus. A humani
pronogação. Ate a demora da consumação final, indesejável como •
dade estava ameaçada não apenas por sua própria corrupção, mas
e, tem uma Torça curativa. Oconsolo pavimenta o caminho para a
-
lhanie Exílio absoluto era opior pesadelo da alma que encarava seu
drama pessoal em (ermos do destino trágico do povo inteiro. Aex-
patriação absoluta era o símbolo sinistro da Incligiosidadc. da ab O |>eríodo mais importante na história da Cabala mais antiga
soluta falta de divindade, da pura degradação moral e espirilual. A está ligado à pequena comunidade espanhola de Gerona, na Catalu
união com Deus ou o completo banimenlo eram os dois pólos entre nha, onde um grupo todo de místicos atuou durante a primeira me
os quais era preciso estabelecer um sistema em que os judeus pu tade do século XIII;este grupo também foi o primeiro que conseguiu
dessem viver sob o domínio da Lei que as forças do Exílio tenta difundir o pensamento cabalístico em círculos influentes da judiaria
destruir. espanhola. Foi principalmente sua herança espiritual que no Zohar
Este novo cabalismo ergue-se e cai com o seu programa de aflorou à superfície. Do mesmo modo. foi mais uma vez uma pe
conquistar acomunidade para sua finalidade e prepará-la para oad quena cidade. Safcd, na Galiléia Superior, que se converteu, cerca
vento do Messias11. Nos sublimes pináculos do pensamento especu de quarenta anos após a expulsão da Espanha, no centro do novo
lativo, sustentado pelos profundos mananciais da contemplação mís movimento cabalístico. Lá, suas doutrinas peculiares foram formu
tica, ele nunca proclamou uma filosofia de fuga diante da multidão ladas pela primeira vez, c de lá começaram sua marcha vitoriosa
enlouquecida; não se satisfez com areclusão aristocrática de alguns através do inundo judaico.
poucos eleitos, mas fez da educação popular seu objetivo. Nesle Por estranhoque possa parecer, as idéias religiosas dos místicos
aspecto, foi por muito tempo surpreendentemente bem-sucedido. de Safcd, que exerceram imensa influência, não foram até hoje de
Uma comparação de tratados e escritos moraliziuites e edificantes vidamente exploradas15. O fato é que todos os estudiosos, na esteira
tipicamente populares, antes edepois de 1550. revela o fato de que de Graetze Geiger. tenderam a elegera escola luriânica do cabalismo
alé e durante a primeira metade do século XVI esta espécie de lite como alvo de seus ataques e zombarias. Daí por que todo mundo
ratura popular não exibia nenhum traço de influência cabalística pode ler em nossa literatura histórica quão profundamente Isaac Lu-
Depois de 1550. a maioria destes escritores propagava doutrinas ca- ria prejudicou o judaísmo, mas não é tão fácil descobrir o que Luria
balísticas. Nos séculos seguintes, quase todos os tratados importantes pensava na realidade. O sistema místico, cuja influência na história
sobre moral íoram redigidos por místicos e, com exceção de Moisés judaica não foi por certo menos considerável que a do Guia dos
Perplexos, de Maimônides, era considerado pelo racionalismo do
Ha.m Luzzauo no "Caminho dos Probos". Messilat lescharím, seus século XIX um assunto algo insípido. Esta concepção não mais pre
autores não leniaram ocultar este fato. Moisés Cordovcro com o
valece. Há uma valiosa introdução ao tema no belo ensaio de Schech-
Tomcr Débora, Elias de Vidas com o Reschii Hochmá, Eliezcr Azi- [ter "Safed no Século XVI", onde ele descreve as características
kriIJ com o Sefcr Harcdim. Haim Vital com os Schaarci Keduschá, gerais do movimento e mais particulannentc algumas de suas figuras
Isaias Horovitz com os Selma Lulwi Ha-Brit, Zcvi Koidanover com exponenciais"'. Mas Schechtcr, que diz: "Não tenho a pretensão de
o Kav lla-lascliar, para mencionar apenas alguns de uma longa lista ser um iniciado na ciência do invisível"", abstém-se deliberadamen-
de escritos similares, entre 1550 c 1750- todos desempenharam seu ; te de realizar uma análise mais aprofundada das idéias místicas dos
papel na transmissão da mensagem religiosa da Cabala a cada lar grandes cabalistas c daquilo que neles era novo. Éaqui precisamente
judeu.
| que começa a nossa tarefa
Os cabalistas de Safed deixaram numerosos e às vezes volumo-
13. Sumamente interessante, nessa concaáo. étambém uma cilação de Avrabam ísos escritos, alguns dos quais sistemas completos de pensamento
Azula, no prefáco de seu comentário ao Zol.ar. Or Ilu-IUwui (Jerusalém, 1876). l£lc místico, sendo os dois mais famosos os de Moisés bcn-Iaakov Cor-
<•'/. Sc fosse vedado ,>elo Céu ocupar-se al«rlamcnle com a Cabala, islo se circuns ! dovero e os de Isaac Luria. Seria uma tarefa fascinante comparar e
crevem a um espaço de tempo limitado alé o fim do ano de 1490. Dai ,», diante, o
em,,, deno„una-se 'A História do Fim', ea proibição está «uspeiiM. sendo permitido
ocupar-se com a Cabala: desde o ano de 1540 consii.ui. para grandes e pequenos, 15. O tratamento doassunlo nos eserilos hebraicos deS. A. Horodezky é bastan
mandamento até mesmo especialmente mcrilório ocupar-se com aCabala pois pre te insatisfatório. Pie kublmUsiiscbe Lchrc deu liubbi Miises Cordmeru (lierlim. 1924)
cisamente desta maneira, e por nenhum outro mérito, virá o Messias". ' e Die hibbalislhche Lebrei/m Isiuik Imiíu(Tcl-Aviv. 1947).
„ »...* t*.'*??'0.COm °S l"a"usc""">s fci"" "* Palestina nessa época, por exemplo. 16. Sclechlcr, Siudies In Judaism. Sccond Series (1908). pp. 202-306.
Oaul grafç, ,fc v.tal cm suas nolas autobiográficas (ms. Toaff em Livorno). "AzikrT 17. Ibid.. p. 258. Cf. notas de Steinschncidcr na Biblmgndia Hebruun, vol.
a Ortografia correu, do nome ,|ue de modo geral é eserilo erradamente '•A/kari". V|||. p. |47. Ele acha os escritos lurilinicos "totalmente incompreensíveis".
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AS GRANDES CORRENTES DA MÍSTICA JUDAICA ISAAC LURIA E SUA ESCOLA 283
contrastar as personalidades eidéias de ambos, no estilo que Plutarco menic embaixo, mas antes na existência da substância unificada, pois Ele
desenvolveu em suas famosas biografias, pois ambos diferem tanto e as coisas existentes são [deste modo] um. nem separados nem mullifários.
um do outro quanto se relacionam intimamente entre si. Infelizmente nem externamente visíveis, mas Sua substancia está presente cm Suas Se-
devo deixar tal análise para outra ocasião. Permitam-me. contudo Jiroi. e Ele Próprio c tudo. e nada existe fora dÍ3eft
que eu d>ga apenas isto: Cordovcro é essencialmente um pensador
sistemático; seu propósito é dar uma nova interpretação c uma des- A fecundidade de Cordovero como escritor é comparável ã de
cnção sistemática do legado místico da velha Cabala, particularmen Boaventura ou Tomás de Aquino e, como o último, ele morreu re
te do Zohar. Pode-se afirmar que este modo de pensar o leva. mais lativamente jovem. Quando a morte o levou cm 1570, contava ape
que a um novo estágio de introversão mística, a novas idéias e fór nas quarenta c oito anos. O grosso de scus escritos ainda subsiste,
mulas. Para descrevê-lo nos termos de Evelyn Underhill. Cordovcro inclusive um imenso comentário ao Zohar que chegou até nós numa
é antes um filósofo místico do que um místico, embora de modo cópia completa do original21. Ele tinha o dom de transformar tudo
algum lhe faltasse experiência mística1*. cm literatura, c nisto, como em muitas outras coisas, era a própria
Dos teóricos do misticismo judaico. Cordovero é sem dúvida o antítese de Isaac Luria, que é o representante exponcncial da nova
maior. Ele íoi o primeiro a procurar esclarecer o processo dialético Cabala. Luria não foi apenas um verdadeiro tzadik ou homem santo
que as Scjiroí percorrem cm seu desenvolvimento e que se realiza - Cordovero não o era menos, pelo que sabemos dele22 - mas, além
antes de tudo dentro de cada uma Também foi ele quem tentou disso, também possuía aquele poder criativo que fez com que todas
interpretar os diversos estágios de emanação como estágios do pensar as gerações subseqüentes o considerassem o chefe do movimento de
d.vino. Oproblema da relação da substância do Ein-Sofcom o "or Safed. Ele também íoi o primeiro cabalista cuja personalidade im
ganismo", com os "instrumentos" (keilim: isto é, vasos ou rrascos) pressionou tão profundamente seus discípulos que trinta e tantos anos
através dos quais ela funciona c atua, foi um dos que ele procurou depois da sua morte começou a circular uma espécie de "vida de
santo", que relata não apenas uma porção de lendas, mas faz uma
repetidamente interpretar. O conflito intrínseco entre as tendências descrição fiel de muitos de scus traços pessoais. Ela está contida cm
teisticas e panteísticas na teologia mística da Cabala cm parte al-uma
três cartas escritas por um certo Salomão, mais conhecido como
aparece mais claramente do que em seu pensamento, esuas tentativas Schlomel Dresnitz. que em 1602 veio de Strassnitz, na Morâvia.
de s.ntctizar acontradição não só dominaram olado especulativo de para Safcd c de lá difundiu a fama de Luria cm suas canas a seus
seu pensamento como produziram soluções experimentais amiúde amigos cabalistas da Europa1'.
lao profundas e audaciosas quanto problemáticas. Suas idéias sobre
o assunto resumem-se na fórmula - um século antes de Spinoza c Luria, não menos que outros cabalistas, pertencia no rol dos
Malebranche - de que "Deus é toda a realidade, mas nem toda eruditos; durante seus anos de formação no Egito, abeberara-se am
plamente nos livros c manuscritos rabínicos. Mas, embora falasse a
realidade éDeus"'''. Segundo ele. pode-se também chamar olün-Sof linguagem simbólica dos antigos cabalistas, sobretudo a dos que
de pensamento (islo é, de pensamento do mundo)
eram antropomorfistas, era evidente que eslava à procura de meios
de expressar idéias novas c originais. Ao contrário de Cordovcro,
na medida em que tudo o que existe está contido cm Sua substância. Ele
abarca lodo oexistente, mas não segundo omodo em que existe isolaüa- não deixou legado escrito quando morreu em 1572 com trinta c oito
anos; na verdade, ao que tudo indica, faltou-lhe por completo a fa
culdade literária. Quando um de seus discípulos, que parece tê-lo
t* rraSlrtbV? ViWaS«f"aiín<*a
paSSagcnJ *na ""dilação.
scus "•**Sc,'*&/«•
" "cmP' °- "° **» adorado como um ser superior, lhe perguntou certa vez por que não
rr.nl' """ Cuen«vlrim (Vc-
ncia,1001 baseia-* numa lécnica mística especial, deslinada aintensifica, aespon
taneidade da tnsn.raçân e concebida por cie e por seu mesire Salomão Alcabez: cf. 20. Sehlur Ktimú, $ 40.p. 98.
Km.aSefer, vol. I(1924). p. 164. evol. XVIII (1942). p. -108 21. Sobre as obras de Cordovcro. cf. Ef. vol. V. cols. 663-664.
» £'»"<' «**(«WX f. 24d. Vale lalve* „pa» notar que ofilósofo alemão 22. Cf. as prescrições élicas c indicações para exercícios ascéticos, publicadas
i- w. .SLhcllmg empregou precisamente a mesma fórmula para definir a alilu.lc de por Sdiechlcr, n/i, cil., pp. 292-294.
spifloa em> rclaçSb ao problema do "panieísmo": cf. MOtchenw Vmietmgtn W 23. Estas cartas tornaram-se famosas sob o nome de Schibhei Ila-Ari. Vieram a
^^^^nmergapmiiVUe,átS!a^ii^xà.A.t>nxma9(m p 44 Sobrea público pnmoimmcnte numa coletânea cabalística Taalunuil Hochmá (Basiléia. 1629).
Sm Ouira carta do autor foi recentemente publicada |xir S. Assaf. Knbeiiut.lad. novasér.
MGW, 2vol. !5S?
LXXV (1931). pp.Cor,k,vcm- * !'LXXVI
452 ess.. evol. •""•*»(1932),
***pp.•*»167-170.
•i Hnrodrfy. fie, vol. III. pp. 121-133. •.—•>::
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expunha suas idéias c ensinamentos em forma de livro, dizem que ainda diversos escritos anônimos, também de seus seguidores, assim
ele respondeu: como uma apresentação mais compacla do lado leosófieo de seu
sistema pelo Rabi fossei ibn Tabul, o mais autorizado de seus dis
E impossível, porque todas as coisas .são relacionadas entre si. Mal cípulos depois de Vital". O livro de Tabul em manuscrito esteve
posso abrir a minha boca para fiilar sem me sentir como se o mar reben por muito tempo enterrado em diversas bibliotecas, sem que pessoa
tasse seus diques e transbordasse. Como então poderia eu exprimir o que alguma lhe prestasse atenção, e mesmo quando ao fim foi publicado
minha alma recebeu c como haveria de registrá-lo num livro?"
por puro acidente cm 192I!K. foi atribuído ao mais famoso. Vital -
Na realidade, uma análise crítica dos numerosos escritos que o que cm bastante irônico, porquanto Vital, aparentemente, alimen
circularam sob seu nome c aos quais os cabalistas sempre se refe tava reduzida simpatia por seu rival. Aquilo que é comum a ambas
riram reverentemente como os Kitvei Ha-Arí. "Os Escritos do Sa as versões pode ser seguramente considerado como a autêntica dou
grado Leão", mostra que ou antes ou no curso de sua estada em trina luriánica.
Safed. que durou some.rte cerca de três anos, Luria fez uma tentaliva No que concerne à personalidade de Luria, é uma sorte que
de anotar scus pensamentos num livro, que é sem dúvida autêntico Vilal tenha anotado cuidadosamente centenas de pequenos traços
c está cm nosso poder. Éo seu comentário ao Sifra di-Tzcniuta, "O pessoais que ostentam uma indiscutível marca de autenticidade^. De
Livro do Segredo", uma das partes mais difíceis do Zohar15. Mas um m<xlo geral, a personalidade de Luria emerge com clareza bem
há pouquíssima coisa aí do que lhe é peculiar. Em aditamento, alguns maior que a de Cordovero. Embora, pouco depois de sua morte já
de seus comentários a certas passagens do Zohar sobreviveram. Fi estivesse convertido em figura lendária, resta suficiente material bio
nalmente, existem scus três hinos místicos para as refeições do Scha- gráfico genuíno para nos mostrar o homem. Antes c acima de tudo,
bat, que figuram enlrc os mais notáveis produtos da poesia cabalís foi um visionário. Na verdade, devemos a ele boa dose de com
tica c aparecem em quase todos os livros de orações da judiaria preensão da força c dos limites do pensamento visionário. Olabirinto
oriental. do mundo oculto do misticismo - pois eslc é o modo como aparece
Por outro lado, tudo o que sabemos de seu sistema se baseia nos escritos de seus discípulos - lhe era tão familiar quanto as mas
em seus colôquios com seus discípulos; colóquios que foram lão de Safed. Ele próprio habitava pcrpctuamenlc naquele mundo mis
difusos c sistemáticos quanto possível. Felizmente para nós, seus terioso e seu olhar visionário captava vislumbres de vida psíquica
pupilos nos deixaram várias compilações de suas idéias e ditos, in cm tudo o que o rodeava; não diferenciava entre vida orgânica c
clusive diversas que foram escritas independentemente umas das ou inorgânica; mas insistia que as almas estavam presentes cm toda
tras, de modo que não dependemos, como algumas vezes se disse, parte e que era possível relacionar-se com elas. Ele linha muitas
de uma única fonte. Seu seguidor mais importante. Haim Viial visões misteriosas, como. por exemplo, quando freqüentemente
(1543-1620), é o autor de várias versões do sistema de Luria, a mais aponlava a seus discípulos, enquanto passeava com eles pelos arre
elaborada das quais abrange cinco volumes ín-folio, os chamados dores de Safed, os lúmulos de homens pios de lempos antigos com
"Oito Portões" (Schmoná Schearím) cm que dividiu o trabalho ao cujas almas ele se comunicara. Uma vez que o mundo do Zohar lhe
qual consagrou a vida, Eiiz Haim, "A Árvore da Vida"2'-. Temos era inteiramente real, não raro "descobria" tumbas de homens que
nada mais eram senão íantasmas literários, derivados dos enfeites
24. Tmdumai//,«•/,„„;. f. 37b: UtuieiScluuslUvomo. 1790). f.33c. românticos desse livro notável"1.
25. Publicado, por exemplo, no Scluiar Maumarei Raschbui, de Vilal (Jerusa
lém. 1898). fl. 22a-30c. Aautenticidade do comentário pode ser provada conclusiva-
menie; cf. meu arligo sobre os escritos autênticos de Luria no Kiriui Sefer. vol. XIX 27. Quanlo a losscf ibn Tabul. cf. meu ensaio sobre os discípulos de Luria no
0943). pp. 184-199. Zion, vol. V.pp. 133-160. especialmente pp. 148 c ss.
26. Os Schmoná Schuurím foram publicados pela primeira vez em Jerusalém en 28. Olivro de Tabul. sob o título Drusch HefrJ Bú, roi publicado no começo do
lrc 1850 c I89S. Contém o texto editado pelo fillu» de Vital. Samuel. Outra versão dos Sindiul Kuhen. deMas-ud Hakohcn Al-Hadad (Jeiusalém. 1921).
escritos de Vilal foi dada pelo cabalisla jcrosolimila. Meir Hoppers. cm 1640-1650. A = 29. Muitos desses extratos foram reunidos c publicados cm Nagmd U-Mewe
melhor edição da peça mais importante uf comida. Kiiz Haim. apareceu cm Varsóvia de laakov Zcmach. primeiramente em Amsler.bm (1712). assim como na coletânea
cm 891. Todas as nossas citações deslc livro ot-c.lecem aesla edição. As outras par Orhol Twbkim no fim do Ukulei Scluus (Livorno. 1790).
les da versão de Meir Poppers apresentam títulos àparte e(oram pul.lica.las separada 30. Cf. a lista de lúmulos sagrados, dada no fim do Sclmar Ha-C.alKuhm de
mente, como Prl BnHaim, Schuar Ha-tlmdim. Sefer Ha-GuUgutlm, Likatei Torú. Vilal.
, ••i
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AS GRANDES CORRENTES DA MÍSTICA JUDAICA
ISAAC LURIA E SUA ESCOLA 287
cate os dias de hoje Sarug tem sido traiado, quer por adeplos quer Místicas do Rei" de preferência a "O Vale do Rei"). O livro apóia-
por oponentes do cabalismo. como um autêntico intérprete de Luria se inteiramente na interpretação que Sarug dá às doutrinas de Luria.
Averdade eque em certos pomos essenciais imprimiu um giro in A obra foi em parte acerbamente criticada também pelos cabalistas,
teiramente novo ao pensamento de Luria c oenriqueceu com idéias mas não foi antes do fim do século XVIII, e em alguns aspectos só
especulativas que lhe eram próprias c que não posso discutir no no século XIX, que os cabalistas consentiram na publicação impressa
presenie conlexto. Encontram-se principalmente no livroUmudèiAl- dos livros de Vilal. A inovação, porém, não acrescentou muito à sua
alui, "Ensinamentos sobre a Emanação". Em essência. Sarug pro divulgação, pois, durante o século XVIII, a cópia de scus escritos
cura dar a doutrina nitidamente não-filosófica de Luria uma base tomara-se cm alguns lugares, como, por exemplo, cm Jerusalém, na
quase filosófica numa espécie de platonis.no c precisamente isto ou Itália c no Sul da Alemanha, quase uma indústria.
seja „ elcmcn.o mauténlico em seu ensinamento, é que constitui o
fundamento de seu tremendo êxito.
Um dos próprios seguidores de Sarug levou mais tarde essas
tendências a um remate particularmente radical e produziu um sis
tema de cabalismo que representa uma curiosa mistura eclética do Nos anos subseqüentes à sua morte, a inspiração mística de Lu
neoplatomsmo. em moda na Itália da Renascença, e da doutrina lu- ria foi geralmente reconhecida em Safcd. c precisamente as idéias
nana nos termos da interpretação de Sarug. Trata-se de Abraão Co- que lhe eram peculiares tornaram-se propriedade comum do caba
ijen Hcrrera de Florença (morreu em Amsterdam cm 1635 ou 1639) lismo posterior, não de um só lance mas por um processo de expan
descendente de uma família marrana c único cabalista aescreverem são c desenvolvimento que começou pouco antes de 1600.
espanhol. Do espanhol, em que se haviam preservado tão-somente Já falei da inspiração mística de Luria. Mas não se deve supor
-sob a forma de manuscritos", foram seus livros traduzidos para o que seu sistema tenha caído por assim dizer do céu. E verdade que
Hebraico, c um compêndio latino, que apareceu em 1677, desempe à primeira vista ele se afigura inteiramente diferente, em seu modo
nhou papel considerável - não menos porque estava escrito num de ser e cm concepções básicas, das idéias conentes entre os caba
estilo mais ou menos compreensivo» - nas discussões dos eruditos listas de Safed antes dele. c especialmente do sistema de Cordovcro.
cristãos sobre ocaráter da Cabala, eseu suposto pan.eísmo ou spi- Uma comparação mais próxima, entretanto, evidencia que um bom
nozisiiio,'1 até o começo do século XLX.
número de aspectos na Cabala de Luria procede das idéias de Cor
Enquanto os escritos autênticos dos adeptos orientais de Luria dovero, embora elaboradas de uma forma tão autônoma c original
"bi.vcram larga circulação já no século XVII. mas quase exclusiva que transformam o conjunto em algo essencialmente diverso e novo.
mente em manuscritos, a forma luriana de cabalismo representada Quase não há diferença cnlre Cordovcro e Luria no que concerne
pelos seguidores de Sarug - especificamente na Itália. Holanda Ale à aplicação pratica do pensamento cabalístico, embora certos estu
manha e Polônia - predominava no pequeno número de livros im diosos modernos quisessem encontrar precisamente neste domínio o
pressos dedicados àpropagação das idéias de Luria antes da imtpção que é específico de Luria. Nada poderia estar mais distante da ver
do movimento saba.aísta (1665). De especial importância nesta co dade; é completamente errôneo pretender que Cordovero se situe na
nexão foi ogrande volume in-folio de Nafiaü ben-Iaakov Bacharach, teoria e Luria na prática, ou que Cordovcro seja hcrdeiio do caba
de Frankfu..-am-Main, que apareceu em 1648 sob o título Emek lismo espanhol, enquanto que Luria. um judeu aschkenazi, cujos pais
Ila-Melech (uma tradução correta do título seria "As Profundezas parecem ter chegado a Jerusalém pouco tempo depois do seu nas
cimento, represente o legado da tradição do velho asectismo judeu
na Alemanha medieval*'. A Cabala de Luria é exatamente tanto ou
Dil,liolVi/'Tr,f'
BIlio eca Real de llaui.C'r'"- * "'""*•numC"c"<><™
mas também manuscrito"»da "riginal espanhol
llibliu.eca nao só na
da Uníversi.lade tão pouco "prática" quanto a dos demais místicos de Safcd. Todos
da Columb.a. cm New York (X 86-H 42 Q). un.vers.uauc eles tinham fronteiras comuns com aquilo que se chamava "caba
lismo prático" e com tudo o que este conota para a inenle cabalíslicu,
<M^
v-io hcbra,ca. ,|ue apareceu '"'" (l677>'cm*Amslcrdam.
em 1655 Kn,"r- Traü-sc * "»" condensação da edi- conforme expus na Quarta Conferência, mas todos eles estavam
^V/„1„„,„J,/,C,!:,N/V0,C'"er- ^ >''"•*»"« '»' JBdcBtlmmb «lerdie v,m dem heuügen
IPWSd sl^ apo.a-sefoitcmen.c
i''6fctf Ve,mem
nos «*<"». 4"= .lesempenbou grande 40. Esle ponlu de visla. que me parece totalmente infundado, t representado |«>r
i*>'>essn discussão, livros de llerrera. numerosos livros e ensaios de llorodezl.)'. Cf. nota 15.
290 ASGRANDES CORRENTES DA MÍSTICA JUDAICA ISAAC LURIA E SUA ESCOI-A 291
igualmcrdejinsiosos cm traçar uma distinção entre seu misticismo ncoplatonismo, numa linha reta de cima alé embaixo. O processo é
prátiçg_g sua possível degencração em magia. Oiinin^ins-mnrínrri.. estritamente unívoco e conespondentemente simples.
vida ascéticos que o cabalismo luriânico propagava, é difícil encon A leoria de Luria nada tem desta inofensiva simplicidade. Ela
trar aqui algo que deva sua influência a Luria. No todo. não passam se fundamenta na teoria do Tzimlium, uma das concepções mais
de um reflexo da vida religiosa, tal como era sobretudo em Safed surpreendentes e de maior alcance jamais formulada cm toda a his
antes da vinda de Luria c como depois dele continuou. Seria dese tória do cabalismo. Tzimtzum originalmenie significa ••concentra
jável que a infeliz expressão cabalismo prático, para designar o sis ção" ou "contração", mas, se usado em linguagem cabalística. é
tema de Luria. que jácomeça a introduzir-se em nossos compêndios melhor iraduzido por "retração" ou "retirada". Luria, assim como
de história, volte logo a desaparecer daí. A hegemonia da escola de sua fonte imediata, um breve tratado quase completamente esqueci
Saíed. c mais especialmente de seu rebento mais importante, a Ca do, proveniente do século XII14;. partiam, neste caso, de uma idéia
bala luriânica.jTpjJejierjJescri^^ „ „,jS|j. talmúdica que Luria, porém, para dize-lo em poucas palavras, pôs
^cismo prálicojlommou. mas cumpre procurar alhures a diferença de cabeça para baixo, acreditando lê-la colocado de pés no chão. O
específica entre a doutrina luriãnica c seus prcdcccssorcs imediatos. Midrasch - em algumas sentenças de mestres do século III - diz
Como já dissemos. Luria desenvolve suas idéias a partir dos ocasionalmente que Deus concentrou Sua Schehinó, Sua presença
escritos cabalísticos de scus predecessorcs, c não apenas de Cordo divina, no Santo dos Santos, lá onde se acham os Querubim, embora
vero mas de autores bem mais antigos. No caso de certos detalhes todo o seu poder estivesse concentrado e contraído num único pon
importantes, devido aos quais ele voltou aos antigos cabalistas, pode- to4'. Temos aqui a origem do termo Tzimtzum, enquanto que o pró
se dizer que estes não desempenharam papel proeminente em seus prio objeto é precisamente o oposto desta idéia: para os cabalistas
escritos, enquanto que para Luria eram de muita relevância. Eslas da escola de Luria Tzimtzum não significa a concentração de Deus
conexões entre Luria c alguns cabalistas espanhóis quase esquecidos num ponto, mas sua retirada de um ponto.
ainda estão à espera de uma análise histórica adequada41. O que significa isso? Em poucas palavras significa que a exis
tência do universo é possível devido ao processo de contração em
Deus. Luria começa pondo uma questão que parece naturalista e, se
4
quiserem, um tanto ema. Como pode existir um mundo se Deus está
em Ioda parle? Se Deus é "tudo em tudo", como podem exisiir
Como veremos posteriormente, a forma pela qual Luria apresen coisas que não são Deus? Como pode Deus criar o mundo a partir
tou suas idéias lembra accntuadamcntc os mitos gnósiicos da Antigüi do nada se não existe o nada? Este é o problema. A solução tornou-
dade. Asimilaridade, claro está, não é intencional; simplesmente o se. apesar da forma crua com que ele a apresentou, da mais alia
fato éque aestrutura de scus pensamentos se assemelha muito de per importância na história do pensamento do cabalismo posterior. De
to à dos gnósticos. Sua cosmogonia é intensamente dramática e incli- acordo com Luria, Deus foi compelido a dar espaço ao mundo, aban
no-ine a acreditar que esta qualidade, que faltava ao sistema de Cor donando, por assim dizer, uma região dentro d'Ele. uma espécie de
dovero. explica parcialmente seu êxito. Comparada à do Zohar, cuja espaço primordial místico de onde Ele se retirou a fim de voltar aí
interpretação autêntica - com base nas revelações de Elias - ela pre no ato da Criaçãoe Revelação44. O primeiro ato do Ein-Sof, o Scm-
tende ser, suacosmogonia é mais original c mais elaborada. Os caba
listas mais amigos tinham uma concepção muito mais simples do pro
42. Ms. Brit. Muscum 711. f. 140b: "Acheia seguinte passagem no livro dos
cesso cosmológico. Segundo eles, esse ..rocesso começa com um aio cabalistas. Como foi que Deus suscitou o mundo e o criou? Como um homem que reú
pelo qual Deus projeta Seu poder criativo fora do Seu próprio Eu para ne o seu fôlego c se contrai, lamliéin Deus concentrou sualuznum palmo de si.c o
o espaço. Cada novo ato é mais um estágio no processo de exteriori mundo permaneceu como escuridão. Nessa escuridão suscitou pedras e roclicdos. para
zação, que se desdobra, de acordo com a doutrinaemanacionista do estabelecer |*>r meio .leslcs oscaminhos que sechamam a "Maravillia daSabedoria
BE Esla explanação baseia-se nainterpretação queNachmânidcs dãas primeiras palavras
do Seferlelvrú; cf. Kiiial Sefer.vol. IV (1930), p. 402.
41. Pude demonstrar que diversos lermini leaiid que serepetem cm Luria tive 43. Cf. ExotL Haim a Éxod. 25:10, Lev. Ruba a Levíl. 23:24; Pestiktu de Rah
ram sua origem num iralado cabalístico. composlo por voll.-i de 1480 por lossef Alkas- Kalmmi. cd. Uubcr. f 20a:Midnistli Scbir HaSchirim. cd.Grflnli.il (1899). f. 15b.
liel. em Jativa (perto de Valéncia). Cf. minha edição dos lextos relativos no Tarbi:. 44. Btt Haim deVital. cap. 1.5 1-2; MevoSchearim (Jerusalém. 190-1). f. l;Ta-
vol. XXIV (1955). pp. 167-206. cem especial nas pp. 173-174. bul no Drusih Hefui llii. cap. I. As imagem aprcsenla.hs nessa coneião. cm algumas
7
292
AS GRANDES CORRENTES DA MÍSTICA JUDAICA ISAAC LURIA E SUA ESCOLA 293
Fim. é por conseguinte não um passo para fora mas um passo para à primeira vista parece tão racionalista como a "Criação a partir do
dentro, um movimento de retração, de retrocesso para si mesmo, de Nada" se converter, diante do nosso exame, tão facilmente em mis
retirada para dentro de si. Em lugar da emanação, lemos o oposto, tério leosófico moslra-nos quão ilusória é na realidade a aparente
a contração. O Deus. que revelou a si mesmo cm firmes contornos, simplicidade dos fundamentos religiosos.
foi substituído por ouiro que desceu mais profundamente nos recôn Além de sua importância intrínseca, a teoria do Tzimtzum tam
ditos de Seu próprio Ser, que Se concentrou cm Si Mesmo45, c que bém serviu de contrapeso ao panteísmo, que alguns estudiosos jul
assim procedeu desde o início da criação. Na realidade, eslc modo gam estar implícito na teoria da emanação4''. Não só existe um re
de ver se afigurou com freqüência, mesmo para aqueles que lhe síduo de manifestação divina cm cada ser, mas. sob o ângulo do
deram uma formulação teórica, como algo que beirava a blasfêmia. Tzimtzum, adquire também uma realidade própria que o protege con
Contudo, volta a aflorar repelidas vezes, modificado apenas exte tra o perigo de dissolução no ser não-individual do divino "tudo em
riormente por um frágil "como se" ou "por assim dizer". tudo". Luria mesmo foi o exemplo vivo de um declarado míslico
Somos tentados a interpretar esse relraimcnto de Deus dentro teísta. Ele deu ao Zohar, apesar de todo o seu panteísmo intrínseco,
de seu próprio Ser em lermos de Exílio, de banir-se Ele próprio de uma interpretação estritamente teísia. Portanto, nada mais natural
Sua totalidade para a mais profunda reclusão. Vista desse prisma, a que as tendências pnnteístas, que começaram a ganhar importância
idéia do Tzimtzum é o mais profundo símbolo do Exílio que se po no cabalismo. especialmente desde o período da Renascença euro
deria imaginar, mais profundo nié que a ''Ruptura dos Vasos"4*. Na péia, hajam colidido com a doutrina luriânica do Tzimtzum c que
•"Ruptura dos Vasos", que pretendo tratar mais adiante, algo do Ser tenham sido feitas tentativas de rcintcrpretá-las de modo a despojá-
Divino é exilado fora d'Ele. enquanto que se poderia considerar o lasde seusignificado. Aquestão desaber se era preciso interpretá-las
Tzimtzum como um exílio dentro d'Elc. O primeiro de todos os atos literal OU metaforicamente veio a converter-se, muitas vezes, cm sím
não 6 um ato de revelação mas de limitação. Só no segundo ato é bolo da luta entre tendências pnnteístas e teístas, a tal ponto que no
que Deus emite um raio de Sua luz c começa sua revelação ou. cabalismo posterior a posição que um autor ocupava nesse embate
melhor, seu desdobramento como Deus, o Criador, no espaço pri está em certa medida implícita em sua posição quanto ao problema
mordial de sua própria criação. Mais que isso. cada novo ato de do Tzimtzum*'. Pois se o Tzimtzum é mera metáfora à qual não
emanação c manifestação é precedido por outro de conccniração c corresponde nenhum ato ou ocorrência real, por mais velado e mis-
retração47. Em outras palavras, o processo cósmico torna-se duplo. terioso queseja.então continua sem solução a questão de saber como
Cada estágio envolve um esforço duplo, islo é. a luz que reflui a algo que não é Deus pode realmente existir. Se o Tzimtzum - como
Deus c aquela que flui d"Ele. Enão fosse essa lensão perpétua, eslc alguns cabalistas posteriores tentaram provar - é apenas um véu de
esfoiço sempre repetido com que Deus Sc contem, nada no mundo Maia que encobre a essência divina na consciência da criatura c lhe
existiria. Há força e profundidade fascinantes nesta doutrina. O pa dá a ilusão de auloconsciência, com a qual ela pode reconhecer-se
radoxo do Tzimtzum - como disse Jacob Emden" - é a única ten como separada de Deus, enlão é necessário apenas uma leve mu
tativa séria jamais envidada com o fito de dar substância à idéia da dança para que o coração possa sentir a unidade da subsistência
Criação a partir do Nada. Incidcnlalmcnle, o fato de uma idéia que divina cm todas as coisas. Tal mudança destruiria forçosamente a
concepção de que o Tzimtzum sedestinava a fornecer uma explicação
vcisões manuscritas da doulrina de Vital, dislingucn-sc por sua coloração altamente para a existência de algo que não Deus.
nalu.aiista. se não materialista. Como já disse, a doulrina do Tzimtzum desempenhou um papel
45. Afórmula "Deus limitou a si mesmo por si mesmo sobre si mesmo" é usa extremamente importante na evolução do pensamento luriânico, e
da pela primeira vez por Sarug c lambem pelo autor do St hefil Tal (I lanau. 1618). houve constantemente novas tentativas para foniuilá-lo. A história
46. O paralelo entre Tümtrum c Scbevirú que esta interpretação insinua c suge desta idéia, desde Luria até nossos dias, daria um quadro fascinante
rida pelo próprio Vital, embora num contexto diferente; cf. lüti Haim. VI. 55. p. 54, c
uma alusão velada nu primeiro capítulo do seu Wevu Sthearim. Agradeço esta obser
vação ao livro.lcTishby cilada nanota 68. 49. Foi eslc o motivo pelo qual D. II.Joel, emfíie Religiaiisplúlnsoplüe des
47. Vital serefere, cntieiai.lo. a eslc primeiro ato como primeiro TlimWJm. O Sohur. lenta mostrar queo limar de um modo geral não ensina a doulrina daema
pr.nc.pio é taxativamente formulado no BitHaim. p. 71: "Em cada estagio cm que nação.
novas luzes são emanada, isto é como que precedido pelo T.-imiuon". 50. Cf. a discussão sobre o significado de Tzimiwm cm lossefErgas. Sdwmer
48. Jacob Emden. Mitpahul Sefarim (Lcmbcrg. 1870). p. 82. Kmunim. parte II.c cm Emanuel liai Riki. Iiadier Levar, cap. 1.
294
AS GRANDES CORRENTES DA MÍSTICA JUDAICA ISAAC LURIA E SUA ESCOLA 295
do curso do pensamento judaico místico original5'. Aqui devo limi nova fonna53. No curso de lodo esse processo, as duas tendências
tar-me a acentuar mais um aspecto que o próprio Luria considerava de fluxo e rcfiuxo perpétuo - os cabalistas falam de llitpascbtui.
sem duvida da mais alia importância53. Aessência do Ser Divino - egressão. c llistalkut, regressão5'' - continuam a agir c reagir uma
reza uma observação sem dúvida autêntica do próprio Luria - antes sobre a outra. Assim como o organismo humano existe pelo duplo
que o Tzimtzum ocorresse, continha não apenas as qualidades do processo de inalar e exalar e um não pode ser conechido sem o
amor e da misericórdia, mas também as da Divina Severidade que outro, do mesmo modo o conjunto da Criação consiste num processo
os cabalistas chamam Dia ou Julgamento. Mas o Din não era reco gigantesco de inalação c cxalação divinas. Em última instância, por
nhecível como tal; era como se estivesse dissolvido no grande oceano tanto, a raiz de lodo o mal já está latente no ato de Tzimtzum.
da compaixão de Deus. como um grão de sal no mar. para usar um 1-icl à tradição do Zohar, Luria encara o processo cósmico, até
s.m.lc de fossei ibn Tabul. No ato do Tzimtzum. entretanto, ele se certo ponto, após o Tzimtzum, como um processo que se desenvolve
cristahzou cse tomou claramente definido, pois, na medida cm que dentro de Deus - uma doutrina, diga-se de passagem, que nunca
o Tztmtzum significa um alo de negação e limitação, também é um deixou de enredar aqueles adeplos que tentaram sustentá-la em di
MO de julgamento". Cumpre lembrar que. para os cabalistas julga ficuldades das maiscomplexas. Estaconcepção lhe foi facilitada pelo
mento Slgn.fica a imposição de limites e a detcnninação coneta das fato de ele acreditar, comojá foi mencionado acima, que um vestígio
coisas. De acordo com Cordovero. a qualidade de julgamento é ine ou resíduo da luz divina - Reschimu na terminologia de Luria -
rente a tudo. na medida em que ludo deseja permanecer o que é permanece no espaço primevo criado pelo Tzimtzum. mesmo depois
ficar dentro de seus limites54. Destarte, c precisamente na existência da retração da substância do Ein-Sof1. Luria compara isso com o
das coisas individuais que acategoria mística do Julgamento desem resíduo de óleo ou vinho de uma garrafa cujo conteúdo lenha sido
penha um papel importante. Se. portanto, oMidrasch diz que origi derramado". Assim, tonia-sc possível argumentar que o Reschimu
nalmente omundo fora criado com base na qualidade do Julgamento continua sendo criação divina, tal como se pode dar ênfase ao lato
estrito. D,n, mas Deus. vendo que isso não bastava para lhe assegurar de que a substância do Ein-Sof foi recolhida, devendo, por conse
a existência, acrescentara a qualidade da Misericórdia, o cabalista
que segue Luria interpreta a írasc da seguinte maneira: Oprimeiro guinte, ficar fora de Deus o que aparececomo resultadodo processo
ato. oato do Tzimtzum, no qual Deus determina e, por conseguinte, em apreço. Resla acrescentar que alguns dos mais decididos teístas
dentre os cabalistas resolveram o dilema desprezando completamente
imita aSi Mesmo é um ato de Din que revela as raízes dessa qua
o Reschimu.
lidade em ludo o que existe; essas "raízes do julgamento divino"
subsistem cm mistura caótica com o resíduo da luz divina que re Antes de prosseguir, pode ser de inlcresse salientar que esta
manesceu, após a retirada ou retraimento original, dentro do espaço concepção do Reschimu tem estreito paralelo no sistema do gnóstico
primário da Criação de Deus. En.ão um segundo raio de luz emanado Basilides. que floresceu por volta de 124 d.C. Também aqui encon
da essência do Ein-Sofiuxz ordem ao caos e põe oprocesso cósmico tramos a idéia de um primordial "espaço abençoado que não pode
em movimento, ao separar os elementos ocultos e moldá-los numa ser concebido nem caracterizado por nenhuma palavra, embora não
tenha sido totalmente abandonado pela 'Filidade' ", termo com que
ele designa a mais sublime realização das potencialidades universais.
.. rJs tA Ú"'a, 7*2*1 T f1** **•* aM- ***""* cm seu livrosobre Da relação de Filidade com o Espírito Santo ou Pncuma. Basilides
1,7 o T"
pp. 37-94. """"*""
Outros esclores M',MdÍ lUU^r'
que abordaram aquestão do""'•'"•• W- "são(Varsóvia.
Tvmtu.m 1913).
Moltlor Rhib,
sopheder Geuhichte. vol. II ,1834). pp. ,32-172; Isaac Misses. Dantellung multa- 55. Aidéia surge claramente no Inigruento luriano mencionado na nota 52 c no
usche lleleuclmmx derjudischen (Jcheimlchre, vol. II (1863). pp. 44-50 escrito deIbn Tabul. mis está um (hiuco oliscurccida na interpelação de Vital.
52 Otcxlo foi publicado por min. no Kiríat Sefer. vol. XIX. pp' |97.,ya Sua 56. Eili Haim. p. 57. c |>articularmcule p. 59. Uma discussão |x)imcnorizada
autenticidade eslã fora dequalquer dúvida.
dessa dialética entre egressão e regressai., cnlre tendências centrífugas c cciilrípcuis.
meimsL^.C T ,1"C",1":"lL','"" l»!*! <* P™"** importância em Iodos os pri
meirosescritos sobre a doutrinado Tiimtzum.
cnconira-sc no volume 3 da giai.de obra cabalislica Uschem Schtbll Ve-Achlama. de
Salomão Eliassov (Jerusalém. ID24). Oaulor foi um importanlc místico judeu do co
VIU deli^W é-a ^"f" 1Ü-la,,a |W G"d"VCr0 C"' l'"rd"5 *""""""- O•*P''IU,° meço do picsaile século.
da i,st' 1 í C""" T" P'°tmá3 «*"> °^nir'a'k> "» «'ribulo da força ou 57. Ao que prece. Vilal leve algum motivo para não mencionar a leoria do resí
0« os munT T, m° ra"- V- *^ ^ C0',IOV"0 •'«"-'-• •' '«* * duo de luz. Reschimu. no seu devido lugar mas somente mais tarde; cf.. p. ex.. Eitt
ZZZ" '"'"^ *"" dc5,miàos na",ieviJo"" "»»*" * «h. nus omes Haim, p.55. Luria c Ibn Tabul acentuam sua importância.
58. Cf. o lejclo de Luria citailo na nota 52.
296
AS GRANDES CORRENTES DA MÍSTICA JUDAICA ISAAC LURIA E SUA ESCOLA 297
afirma que. mesmo quando oPneuma ficou vazio eseparado do Adam Kadmon nada mais é que uma primeira configuração de
Fdho. amda assim releve ao mesmo .empo operfume des.e que luz divina que flui da essência do Ein-Sof para dentro do espaço
impregnava ludo cm cima eembaixo, até a matéria amorfa ea nossa primordial do Tzimtzum - na verdade, não de todos os lados mas,
própria forma de existência. Também Basilides emprega osímile do como um feixe de luz, numa única direção. Ele é. portanto, a pri
vaso e,„ que persiste a delicada fragrância de um "ungüento doce- meira e mais alta forma pela qual a Divindade começa a se mani
festar depois do Tzimtzum. De scus olhos, boca, ouvido c nariz jor
sr :iinda quc °vas°scja csvazii,d° c°m °n,áximo ram as luzes das Sefirot. A princípio essas luzes estavam amalga-
Além disso, temos um protótipo precoce do Tzimtzum no gnós- madas num lodo sem nenhuma diferença entre as várias Sefirot,
ÜCO Llvro do Grande Logos". um desses espantosos remanescentes neste estado não necessitavam de vasos ou recipientes para contê-
de literatura gnós.ica preservados pelas iradiçõcs copias. Aprende las. As luzes provenientes dos olhos, entretanto, emanaram numa
mos ai que todos os espaços primordiais csuas "palemidades" vie forma "atomizada" na qual cada Sefirá era um ponto isolado. A
ram a existência devido à "pequena idéia", oespaço que Deus dei este "mundo de luzes puntiformes". Olam Ila-Nekudot, Luria tam
xou para trás como o radiante mundo de luz quando Ele "recolheu bém chama de Olam Ha-Tohu. islo é. "mundo da confusão ou dc-
aS. mesmo dentro de Si mesmo". Esla retirada que precede toda sordem"''1. Em resposia a uma pergunta concernente à diferença en
emanação e acentuada repetidas vezes59. tre sua doulrina c a de Cordovero, Luria expressou-sc no sentido de
que a Cabala de seu predecessor tratava, no conjunto, apenas dos
eventos nesta esfera e de um estado do mundo correspondente a
eIcsM. Entretanto, desde que o divino esquema das coisas predeter
minou a criação de seres e fonnas finitos, cadaqual com seu próprio
Ao lado dessa concepção do processo cósmico, deparamos lugar designado na hierarquia ideal, foi necessário que estas luzes
duas outras importantes idéias teosófkas. Luria as exprimiu em au isoladas fossem capturadas e preservadas cm "recipientes" especiais
daciosa linguagem mística, rs vezes talvez audaciosa demais. Essas criados - ou melhor emanados - para eslc propósito particular. Os
duas ide.as são adoutrina -o Schevira, Ha-KeiUm, ou "Ruptura dos vasos correspondentes às três Sefirot mais alias abrigaram por con
vasos e a do Ttkun, que significa arranjo ou reparação de um seguinte sua luz. mas. quando chegou a vez das seis Sefirot inferio
deleito Ainfluência das duas idéias no desenvolvimento do pen res, a luzjorrou toda de um só golpe e seu impacto foi demais para
sar cabalístico p„s,eríor foi tão pronunciada quanto a dn doutrina os vasos, que se quebraram e despedaçaram. A mesma coisa, embora
do Iztmtzum. não exatamente na mesma proporção, lambem ocorreu com o vaso
Aprimeira considera que a luz divina que inundou oespaço da última SefiráP.
Esta idéia da "ruptura dos vasos" foi desenvolvida por Luria
primevo - do qual o espaço tridimensional é um desenvolvimento de um modo extremamente original a partir de uma sugestão feita
ultcr.or - desdobrou-se cm vários estágios eapareceu sob uma gran- no Zohar. Num Midrasch quejá mencionei na Primeira Conferência,
de variedade de aspectos. Não cabe entrar aqui em de.nlhes quanto há uma referência à destruição dos mundos antes da criação do cos
ao seu curso. Luria e os scus seguidores tendem, neste caso, a se mo aluai'4. A interpretação dada pelo Zohar a esla Agadá é de que
perder em descrições em parte visionárias e em parte escolásticas ela se reporta à criação de mundos em que apenas as forças da
do processo" que ocorre num reino de existência que. usando um Gucvurá. a Sefirá do julgamento severo, eram ativas c que foram
'ermo gnosi.co, bem poderíamos denominar esfera do pleroma, ou portanto destruídas por esse excesso de severidade. Este aconteci
a plenitude •de luz divina. De acordo com essa doutrina, oponto mento, por seu turno, é situado em conexão com a lista dos reis de
uec.sivo e: o pr.me.ro ser que emanou da luz foi Adam Kadmon, o
Homem primevo".
61. Eilz Haim. p. 9. Aexpressão "mundo do tobu" procede do tratado de lossef
Alkasticl mencionado na nota 41.
62. Cf. o lexto publicado cm Zion, vol. V. p. 156. c Nafiali BadiaracH. bmek
-^«CK5ftJ!S?*,~v"-22: cr Mtt* ** i Ha-Melechl 16-16). f 32d.
63. Este |»occsso édescrito em detalhes no Ein Haim. cap. IX-
'•esteSc^*"101 ""VI"• "'• 29'78- d° £"Z **• ÍnC,UC'" dc,alhcs COInPlc,OS 64. Cf. 1'iimcira conferência, nola 30.
M
298 ASGRANDES CORRENTES DAMÍSTICA JUDAICA
ISAAC LURIA E SUA ESCOLA 299
68. liaseio-mc aqui numa analise muito completa da doutrina luriânica da Rup
tura dos Vasrr. e,1a Na.ure*. do Mal. feita por meu discípulo Isaías Tisliby. cm seu li 70. Vilal. Sefer Hu-Likutim (Jerusalém. 1913). f-21b.
71. Esta i. por exemplo, a objeção Icvanta.la |«r Moisés Haim L.i/.zauo no co
I,
M
vro l,cbra,co lona Ha-Rú Ve-lla-Kli,m Be-Kabalã Ha A,i (Jerusalém. 1942).
69. Cf fie,/,,,„, XI.SS.p. im-.Scham-MtmmureiRuschbaiimK) f 22b(.lc meço de seu Iloker U-Mekubal.
72. Mcnahem A^aria Fano. "Introdução ao Tehiru". impresso no começo de
um fragmento autêntico de Luria) e33a; Stevo Scbeanm (1904). I. 35d.
seu livro lona! Elem (Amstc.dam. 1648). bem como no Emek Ha-Melecb. f.24b.
300
AS GRANDES CORRENTES DA MÍSTICA JUDAICA ISAAC LURIA E SUA ESCOLA 301
Vasos, sobre a qual encontramos exaustivas descrições na literatura e caruclerística. Agora que os vasos estão quebrados, um novo fluxo
do cabalismo luriânico. éoponto decisivo no processo cosmológico de luz mana da fonlc original do Ein-Sof e, jorrando da fonte do
Iornada como um todo. é a causa daquela deficiência interior ine Adam Kadmon, imprime uma nova direção aos elementos desorde
rente atudo oque existe epersiste enquanto odano não for reparado. nados. As luzes das Sefirot que fluem do Adam Kadmon são orga
Pois. quando os recipientes se quebraram, a luz ou Sc difundiu ou nizadas em novas configurações, em cada uma das quais o Adam
refluiu àsua fonte, ou fluiu para baixo. Os diabólicos mundos ínferos Kadmon está refletido sob certas fonnas definidas. Cada Sefirá é
do mal. cuja influência se infiltrou cm todos os estágios do processo transformada a partir de um atributo geral de Deus naquilo que os
cosmológico. emergiram dos fragmentos que ainda retinham algumas cabalistas chamam de Partzuf, um "semblante" de Deus, que sig
centelhas de luz divina - Luria fala exatamente de duzentos c oitenta nifica que Iodas as potencialidades implícitas em cada Sefirá são
e oito7'. Deste modo, os bons elementos da ordem divina vieram agora submetidas à influência de um princípio fornialivo7'', c que em
m.sturar-sc aos viciosos". Invcr.saincnle.^a^estauraçã.) da ordem cada uma a personalidade inteira de Deus toma-sc manifesta, mas
jdraUme constitui oobjetivo origjii£^ria^rtaml>ém éooro-" sempre sob o aspecto de um traçodistinto. O Deus que Se manifesta
ao fim do processo representa muito mais que o Ein-Sofoculto; Ele
nijjcascnao resliluição. reintegração do conjunto original, ou nkiu7. é agora o Deus vivo da religião, a quem o cabalismo tentou retratar.
-!!iíS-H£!LfLi£J2^ muitos dos mistérios do~~ Toda a tentativa do cabalismo luriânico para descrever o processo
itkun constituem a principal preocupação dos sistemas teosófico. tcogônico em Deus em lermos de existência humana representa um
tcónco cprat.co de Luria. Scus detalhes, sobretudo no aspecto teó esforço para chegar a uma nova concepção do Deus pessoal77, mas
rico, soo de natureza altamente técnica e não me delcrei aqui para tudo o que consegue é culminar numa nova forma de mitologia gnós-
dcscreve-los75. O que precisamos considerar são as poucas idéias lica. De nada adianta querer fugir dcslc fato: Luria lenta descrever
básicas que encontram sua expressão najeoriadi>77/<«/1 de que maneira no processo do Tikttn, de reslnurar as luzes espalha
das de Deus em seu lugar certo, os vários aspectos sob os quais
Deus se apresenta emergem um do outro como outros tantos Part-
zufim; a concepção destes já é quase personalizada
Lendo essas descrições, somos facilmente levados a esquecer
Sem duvida, estas parles da Cabala luriana representam a maior que. para Luria, elas se referem a processos puramente espirituais.
-
vitória que o pensamento anlropomórfico jamais conquistou na his Pelo menos superficialmente, assemelham-se aos mitos mediante os
I toria do misticismo judaico. É certo que muitos desses símbolos quais Basilides, Valenlinus ou Mani tentaram descrever o drama cós
relletem meditações mísücas altamente desenvolvidas, que são quase mico, com a diferença de serem infinitamente mais complicados que
•mpeneirave.s ao pensamento racional, assim como é inegável que. esles sistemas gnósticos.
tomado como um lodo. este simbolismo é de uma textura um tanto Os principais Partzufim, ou configurações, são cm número de
ema. Atendência de interpretar a vida e ocomportamento humanos cinco7*. Seus nomes foram sugeridos a Luria pelo simbolismo do
como símbolos de uma vida mais profonda. aconcepção do homem Zohar, particularmente nos Idrus, mas a função e significado que
como mwrocosmo c a do Deus vivo como macro-anthropos. nunca ele lhes atribui são cm larga escala novos.
foi clnramenie expressa c levada às suas últimas conseqüências. Onde as potências fluentes da misericórdia pura e do amor di
No estágio que conesponde à manifestação de Deus sob o as vino comidos na Sefirá suprema são reunidas numa figura pessoal.
pecto de Adam Kadmon. antes da Rupiura dos Vasos, as forças cm
ação ainda não constituem inteiramente partes de um iodo orsãnico 76. EitzllaimXl.l.p. 107.dão melhor sumario.
c outross.m ainda não assumiram uma configuração distinta. p"cssoal 77. A seguinte cilação do niósofo alemão I". W. Scliclling (morto cm 1854) é
como uma descrição doTzimtzum c de sua importância para a personalidade de Deus:
"Toda consciência c concentração, é recolhimento, é retirada parasi mesmo. Eslafor
73. EiizHuim, cap. XVIII. 5I, p. 170. çanegativa de um ser. que remonta a ele mesmo, é a verdadeira foiça da|>e.xonalida-
FUr h!:, ' wC,
/.».. Ilaon \,talT?*."0
declara éÓCS""° """afetou
,|uc aRup.ura SCan'leIodos
POraienor nos capítulos
os mundos, XI eXVIII
cap XXXIX *3a. do de nele. a força da individualidade" (Schellings samtlichc Werkc. Ablcilung 1. Band
VIII. p. 74).
cê».» do;á£T w do FMl ""'""•dcsde °•* *"•6 ** «j*** *- «*• 78. Cordovcro no Elima Rabati ja fnlo de cinco tenumol. "arquirpiadros" ou
"arquiformas". do mesmo sentido.
302 ASGRANDES CORRENTES DA MÍSTICA JUDAICA ISAAC LUK1A E SUA ESCOLA 303
aí, segundo o Zohar, surge a configuração úoArich Anpin. traduzido, Luria é conduzido a algo muito parecido com um mito de Deus
às vezes, por "A Longa Eacc". mas que significa na realidade "A que dá à luz a Si próprio; na verdade, isto me parece o ponlo central
Resignação", isto é, Deus, o resignado c llliscricordioso7'•,. No Zohar, desta descrição toda enredada e muitas vezes bastante obscura e
Arich também é chamado Atika Kadisch. isto é, "O Sagrado Antigo incoerente. O desenvolvimento do homem através dos estágios da
Ser". Para Luria, o primeiro é de algum modo uma modificação do concepção, gravidez, nascimento e infância, até o ponto cm que a per
último. As potências das Sefirot da sabedoria divina c inteligência, sonalidade desenvolvida faz pleno uso de seus poderes intelectuais
Hochmá e Bina, tornaram-se os Partzufim de "pai c mãe". Aba c c morais*', lodo eslc processo surge como um audacioso símbolo do
lmam. As potências das seis Sefirot mais baixas (com exceção da Tikun em que Deus desenvolve Sua própria personalidade.
Schchiná), nas quais misericórdia, justiça c compaixão estão portanto Ncsle ponlo o conflito é latente mas inevitável: é o Ein-Sof a
cm equilíbrio harmonioso, enconlram-sc organizadas numa única Deus pessoal, o Deus de Israel, c são todos os Partzufim apenas
configuração que Luria, de acordo com o Zohar. chama Zeir Anpin. Suas manifestações sob vários aspectos, ou é o Ein-Sof» substância
Mais uma vez, a Iradução coneta não é "A Face Curta", mas "O impessoal, o Deus absconditus, que se torna uma pessoa somente
Impaciente"*1, em oposição a "A Resignação". Nesta configuração, nos Partzufim! Aquilo que seria fácil de responder, enquanto se re
a qualidade do Julgamento severo, que não lera lugar na figura do ferisse apenas à interpretação teológica da doutrina do Zohar, com
"Sagrado Amigo Ser", desempenha importante papel. sua relação imediata entre Ein-Sof e Sefirot, torna-se um problema
Do mesmo mcxlo pelo qual, segundo o Zohar, as seis Sefirot, urgente neste couiplicndíssimo processo de Tzimtzum e Schevirá c
correspondentes aos seis dias da Criação, desempenham a parte prin na longa cadeia de fatos que levam ao desenvolvimento do Zeir
cipal no processo cósmico c, através da unidade de seu movimento, npin. Quanto mais dramático se torna o processo cm Deus, mais
representam Deus como o Senhor vivo do universo, assim a figura inevitável é a pergunta: Onde em todo este drama está Deus?
do Zeir Anpin permanece no centro da tcosofia luriânica, na medida Para Cordovcro, só o Ein-Sof era o Deus real de quem a religião
em que a última se refere ao processo do Tikun. O Zeir Anpin é "O fala. e o mundo da divindade com todas as suas Sefirot nada mais
Santo, louvado seja Ele". O que "O Santo, louvado seja Ele" e a .era que o organismo no qual Ele constitui a Si próprio, a fim de
Schehiná eram para o Zohar, o Zeir Anpin e Ratptel, a configuração gerar o universo da Criação c atuar nele. Quando lemos a literatura
mística, ou Panzuf, da Schehiná, são para Luria. Enquanto o Tikun autêntica do cabalismo luriânico, somos freqüentemente tomados
não for completado, eles formam dois Partzufim, embora a doutrina pela impressão oposta: o Ein-Sof, para Luria, tem pouco interesse
se preocupe essencialmente com a personnlidade plenamente desen religioso. Seus três hinos para as ires refeições do Schabat são di
volvida do Deus vivo. que é esculpida nasubstância do Ein-Sof pelo rigidos às configurações místicas de Deus: "O Sagrado Antigo Ser".
processo incomensuravelmente complicado do Tikun. A doulrina do Zeir Anpin, e a Schehiná em relação à qual emprega um símbolo
Zeir c Raquel, portanto, é o verdadeiro ponto focai do aspecto teórico o Zohur: "o sagrado jardim de maçãs"". Esics hinos lêm o mag-
do Tikun. A origem do Zeir Anpin no ventre da "mãe celestial", ífico gesto de quem visualiza um processo místico, descrevendo-o
seu nascimento e Crescimento, bem como as leis de acordo com as m parte, conjur.mdo-o cm parte e pnxlu/.indo-o por meio das pró-
quais todas as potências "superiores" se organizam nele constituem rias palavras. A solenidade desses hinos é altamente sugestiva, e o
objeto de detalhada exposição no sistema desenvolvido pelos segui eiro. em particular, merece sua imensa popularidade, por expres
dores de Luria". Existe algo desconcertante na excentricidade destas sar tão bem o estado que envolve a menle quando as penumbras
supcrdetalhadas exposições - a arquitetura desta estrutura mística crcsccnlcs proclamam o fim do Schabai. Ncsles hinos, Luria parece
poderia ser rotulada de barroca. irigir-sc aos Partzufim como personalidades inteiramente distintas.
.Trnla-se de uma alitude extrema. Sempre houve cabalistas que se
79. Zohar III, 128b. ecusaram a ir lão longe e, como Moisés Haim Luzzatto, insistiram
80. Tal simbolismo de du:is formas celestes daemanação como Pai e Mãe c ile-
scnyolvido principalmente no Idra Zutru cm Zohar III. pp. 290 css.. onde <S tratado em
conjunto com osimbolismo das Ires outras configurações. 83. Essas sãoas etapas místicas do Zeir Anpin. chamadas nosescritos luriânicos
81. A«pressão hebraica subjacente procede deProv. 14:17. Gikalila.no Schaa- ur(gestação). Leda (nascimento), lenika (nutrir). KatttUl c Gadlul (Infânciae Matu-
rei Ora. dá osentido correto da expressão, que foi interpretada erroneamente por mui "ibdc).
tos eruditos. 84. Zohar III. 128b. e cm muitas outras passagens (baseada na interpretação
82. Eiizlluim. caps. XVI-XXIX. piística de uma passagem do Talmud,Taanil 29a).
304 AS GRANDES CORRENTES DA MÍSTICA JUDAICA ISAAC LURIA E SUA ESCOLA 305
no caráter pessoal do Ein-Sof. Estes teístas declarados cm meio aos lância divina a fluir para cima; a luz do Ein-Sof é refratada. De
teosofistas nunca cessaram de reintcrpretar a doulrina dos Partzufim outro, o poder que emana da substância, se não ela mesma, passa
num sentido que permitisse despojá-la de scus elementos místicos através do filtro da "cortina". Eslc poder torna-se, então, a subs
óbvios, tendência particularmente interessante no caso de Luzzatto. tância do próximo mundo, do qual, mais uma vez, somente o poder
cuja doutrina sobre o mundo da divindade era fruto não de pura passa para o terceiro e assim por Iodas as quatro esferas. "Não é o
teoria mas de visão mística Demais, as múltiplas contradições c os próprio Ein-Sof que é disperso nos mundos inferiores, mas apenas
non sequitur nos escritos de Vital supriram tais cabalistas de um
uma radiação [diferente de sua substância], huará, que emana de
número suficiente de argumentos em favor de suas próprias exegeses le"117. Deste modo, o elemento dos mundos ínferos que por assim
teísticas.
dizer envolve e esconde os Partzufim em si assume o caráter de uma
De acordo com Luria. esta evolução do elemento pessoal repe criatura em sentido estrito. Estas "veslimentas da Divindade" não
te-se c parece refletir-se a cada estágio c em cada esfera daexistência
são mais, quanto à substância, um com Deus. E verdade que não
divina e mundana. De fontes anteriores, os cabalistas de Safed, e
em particular Cordovcro, adotaram a doutrina dos quatro mundos faltam divngaçõcs especulativas cm conexões inteiramente diversas
situados entre o Ein-Sof a nosso cosmo terreno - uma doutrina da quesão de molde a lançar dúvidas quantoao caráterdefinitivo desta
qual não há Irnço na maior parte do Zohar*15. Em Safed. esta teoria solução101 c que na realidade encorajaram várias rcinterpretações pnn
teístas do sistema luriano. Teístas mais radicais, como Moisés Haim,
foi plenamente elaborada pela primeira vez e Luria também a acei
tou, embora ã sua maneira. Os quatro mundos são: I) Atzilut. o Luzzatio, tentaram guardar-se desse perigo, negando inteiramente 0
mundo da emanação e da Divindade que foi até aqui o nosso assunto; continuidade do processo nos quatro mundos e pretendendo que a
2) Beriâ, o mundo da Criação, isto é, do Trono, a Mercabá e os Divindade, após manifesiar-se em toda sua glória no inundo da At
anjos superiores; 3) lelzirá. o mundo da formação, o domínio prin zilut, continuou a gerar os outros três mundos por um ato de "criação
cipal dos anjos; cA) Asiá, o mundo do produzir (e não, como muitos a partir do nada", não mais conhecido como simples metáfora mís
traduzem, da ação). Oquarto mundo, semelhante à hipóstase ploli- tica'1"'. Outros foram mais além c supuseram que até o raio do Ein-Sof, I
niana da ••Natureza", é concebido como o arquétipo espiritual do cuja incursão dentro do espaço primordial fonna o ponlo de partida
mundo material dos sentidos. Em cada um desses quatro mundos, a de todos os processos apóso Tzimtzum, não era da mesma substância
visão mística que desvenda suas estruturas mais íntimas percebe as que o Ein-Sof, mas fora criado cx nihilo'". Cumpre, todavia, consi
jámencionadas configurações da Divindade, os Partzufim, ainda que derar todas essas interpretações como desvios dos autênticos ensi
encobertas por disfarces cada vez mais profondos, como são descri namentos de Luria.
tos na última parte de "A Árvore da Vida" de Vital"'1.
Para Luria c scus adeptos, não há interrupção neste processo
contínuo de evolução. Tal fato lorna duplamente agudo o problema 7
processo pelo qual Deus concebe, produz e Se desenvolve a Si mes ' dos depende de ações espirituais, das quais a mais importante é a
mo não chega à conclusão final cm Deus. Certas partes do processo prcee',,;. De um modo geral, portanto, não somos apenas senhores de
de resiituição são outorgadas ao homem. Nem todas as luzes man nosso próprio destino, e cm última instância nós mesmos somos
tidas em cativeiro pelos poderes das trevas se libertam por scus pió- •rcsponsávcis-pcla o>nunuação_do Galtit. como também cumprimos
prios esforços; é o homem quem acrescenta o toque final ao sem uma missão que vai muiio além.
blante divino; é ele quem completa a cnlroiiização de Deus, o Rei Numa conferência anterior mencionei a magia da intimidade que
e o Criador místico de todas as coisas, em Seu próprio Reino do se vincula a certas doutrinas cabalísticas. No pensamento luriano,
Céu; é ele quem dá ao Criador de todas ascoisas a Sua configuração ? estes elementos, sob onome úeJCavaná, ou intenção rnística, ocupam
final! Em certas esferas do ser. a existência humana e divina se 5 uma posição muito importante. A tarefa do homem deve consistir
entrelaçam. O processo intrínseco, cxirariumdano do Tikun, simbo | cm orientar todo o propósito interior no sentido da restauração da
licamente descrito como o nascimento da personalidade de Deus, harmonia original perturbada pelo defeito original - a Ruptura dos
corresponde ao processo de história mundana. O processo histórico, Vasos - c pelos poderes do mal e do pecado que datam daquela
^3UB^^JBJLJlí.aÍíL^iHíi£ÍÍii-9_nti^ rejh^ogo_do_iudeu, preparam o cami-_ | época. Unificar o nome de Deus, como significa o termo, não é
^nJiojTarajij^sjmú^ centelhas espalhadas apenas realizar um ato de confissão e reconhecimento do Reino de
e exiladas.VQjuü^u,^uj^s^ájaii_c™L^^ a luz divina^ Deus, é mais do que isso; é mais uma ação do que um alo. O Tikun
alrjiyés da Tora, do cumprimemodos mandamentos e através da restaura a unidade do nome de Deus destruída pelo defeito original
oraçãt^tem o poderde acelerar ou rclü ar__esle. processoCada ato -Luria diz que as letras III foram separadas do WII no nome IHW1I
da criatura humana está relacionado com esta tarefa final que Deus - e todo ato religioso verdadeiro visa ao mesmo alvo.
estabeleceu para Suas criaturas. Numa época em que o exílio histórico do povo era uma terrível ^"
Segue daí que, para Luria, o aparecimento do Messias nada mais c fundamental realidade da vida, a velha idéia de um exílio da Sche-
é que a consumação do processo contínuo da Restauração, do Ti- 'hiná ganhou importância maior do que nunca. Apesar de toda a
kurí". A verdadeira natureza da Redenção é portanto mística, e scus /persistente alegação de que esta idéia representa uma simples metá
aspectos históricos e nacionais são meros sintomas auxiliarcs que fora, seus próprios escritos evidenciam que os cabalistas. no fundo,
constituem um símbolo visível de sua consumação. A redenção de viram algo mais nela. O exílio da Schehiná não é uma metáfora, é
Israel remata a redenção de todas as coisas, pois não significa a um símbolo genuíno do estado "rompido" das coisas no reino das
redenção que tudo está colocado cm seu devido lugar, que a mácula Potencialidades divinas. A Schehiná caiu, assim como a última Sc-
original foi removida? Q "mundo doT/AW^é^ portanto, o_ mundo, firá, quando os vasos se quebraram. Quando o Tikun começou c a
jlejiçjfojnessjâniça,.A vinda do Messias significa que este inundo última Sefirá foi reorganizada como "Raquel", a noiva celestial, cia
do Tikun recebeu sua forma final. 'cobrou nova força e quase conseguiu completa unificação com o
E aí que encontramos o ponto em que o elemento místico e o íZeir Anpin, quando, através de um atodescrito comoa "diminuição
elemento messiânico da doulrina de Luria se unem. O Tikun, cami fca Lua", ela foi, pela segunda vez, privada de algo de sua substân-
nho para o fim de todas as coisas, é também o caminho para o fciaw. Mais uma vez, com a criação do Adão terreno, o Tikun, no
começo. A cosmologia teosófica, a doutrina da emergência de todas jsenlido eslrilo, chegou ao fim; os mundos encontravam-se quase no
as coisas a partir de Deus, convcrtc-sc no seu oposlo, na doutrina ^estado para o qual haviam sido preparados e, se Adão não houvesse
da Salvação como volia de todas as coisas ao contato original com Scaído em pecado no sexto dia. a redenção final teria sido realizada
Dcus.Jjjdoj) que o homem faz reage em algumjugar e de alguili. Bno Schabat por suas preces e ações espirituais'-14. O Schabat eterno
JiTodosoJu-cj^sjcj^ir^^ Cada aconlccimcnto fteria chegado e "ludo teria retornado àsua raiz original'"'5. Ao invés.
ceada domínio de existência tem uma face interna e externa, razão
pela qual, ensina Luria, os mundos em seu exierior são determinados I
92. Pri EitzHaim (Dubior.no. 1804). f. 5a.
por atos de religião, pelo cumprimento dos preceitos da Tora e por 93. Eitz Haim. cap. XXXVI. 1
ações merilórias. Mas, segundo ele, tudo o que é interno nesses mun- 94. Cf. a nola 91. Sobre o pecado de Adão. cf.lambem as longas passagens cm
ISefer Ha-Likutim (1913). L56d. e oSermão sobre aPecado de Adão em Scbimr Ha-
P««u':;m(I9i2).IT. ld-41..
91. Eiiz Haim. cap. XXXIX. I 95. Schaar Maanuirei Ruschtnii(1898), f. 37c-d.
•B.
308 ISAAC LURIA ESUA ESCOLA 309
AS GRANDES CORRENTES DA MÍSTICA JUDAICA
^ a queda de Adão destruiu mais uma vez a harmonia, arrancou todos vimos, o processo de restaurar todas as coisas em seus lugares certos
|. os mundos de seus pedestais* c tomou a mandar a Schehiná para exige não apenas um impulso vindo de Deus, mas também um im
o exílio. Reconduzir a Schehiná de volta ao seu Mestre, uni-la a pulso vindo de Sua criatura, em sua ação religiosa. A verdadeira
Ele. é de um ou de outro modo o verdadeiro propósito da Tora. É vida e as verdadeiras correções para o pecado original são possibi
essa função míslica da ação humana que lhe empresta especial dig litadas pela confluência e concorrência de ambos os impulsos, o di-
nidade. O cumprimento de cada um c de iodos os mandamentos ino e o humano.
deveria ser acompanhado de uma fórmula que declarasse ler islo Em resumo, o verdadeiro fiel exerce tremendo poder sobre os
sido feilo "com o fito de unir o Santo, louvado seja Ele, e sua mundos internos, assim como arca com uma responsabilidade cor
Schehiná, por temeroso respeito c por amor'"'7. respondentemente grande na realização de sua tarefa messiânica. A
Mas adoutrina da Kavaná, particularmente ada Kavaná da pre vida de cada mundo c de cada esfera está em movimento contínuo;
ce, não se detém aí. Para Luria, herdeiro de toda uma escola de cada momento é um novo estágio noseu desenvolvimento"". A cada
pensamento no cabalismo clássico que ele apenas continuou a t';- momento aspira a encontrar a forma adequada que há de lira-la da
senvolver, a oração significa mais que uma livre cfusâo de senti confusão. E por isso há em último recurso uma nova Kavaná para
mento religioso. Tampouco é ela o mero reconhecimento institucio cada novo momento. Nenhuma oração mística é totalmente igual a
nalizado e louvor de Deus como Criador e Rei, não pelo indivíduo qualquer outra. A verdadeira prece dobra-se ao ritmo da hora para
só mas pela comunidade religiosa, como nas orações comuns da a qual e na qual é pronunciada"". Uma vez que cada indivíduo con
liturgia judaica. As preces individuais, assim como as da comunida tribui com sua parte para a tarefa da lula pelo Tikun, deacordo com
de, mas especialmente as últimas, são cm certas condições os veí o grau particular de sua alma na hierarquia, toda a meditação míslica
culos de ascensão míslica da alma a Deus"". As palavras da oração, é de natureza individual. Quanto aos princípios gerais relativos ã
mais particularmente as da oração litúrgica tradicional com seu texto direção de semelhante meditação, aos princípios que iodo mundo
fixo. tomam-se um cordão de seda por cujo intermédio a intenção pode aplicar a seu modo próprio c em sua própria época as orações
míslica da alma tateia em sua perigosa jornada alravés da escuridão comuns da liturgia, Luria acreditava lê-los encontrado, e seus segui
rumo a Deus. O propósito da meditação mística no ato da oração, dores os desenvolveram com muitos pormenores. Representam uma
e na reflexão sobre este ato, é descobrir os vários estágios desta aplicação da teoria da meditação de Abuláfia à nova Cabala. Aên- 4r"
ascensão, que doponto de vista lógico também pode ser considerada fase no caráter estritamente individual da oração, que ocupa lugar
um descenso aos mais profundos recessos da alma. Aprece, segundo ponderável na doutrina de Haim Vital sobre a Kavaná. é tanto mais
Luria. é imagem simbólica do processo teogônico c cósmico. O fiel importante quanto nos vemos aqui numa região de misticismo onde
devoto que reza com espírito de meditação míslica move-se por todos o perigo de degencração cm magia e leurgia mecânicas é máximo.
os estágios desse processo, do mais afastado ao mais íntimo'". Mais A doutrina da prec^jmsúçji_dc-Luria situa-se dirclamcntç_nn
ainda: a prece é uma ação mística que exerce influência nas esferas linha fronteiriça entre misticismo e magia, naquele ponto onde um
que o místico percorre em sua Kavaná. Éparte do grande processo TaíiTménurse Iransfomia no outro. Cada oração que é mais que um
místico do Tikun. Dado que a Kavaná é de natureza espiritual, ela simples rcconhccimcnio do Reino de Deus. na verdade cada oração
pode conseguir algo no mundo espiritual. Pode tornar-se um fator que. cm algum sentido mais exato, nulre aesperança de ser atendida, iil
muito poderoso, se usado pela devida pessoa no devido lugar. Como • envolve o elerno paradoxo pelo qual o homem espera influir nos
inescrutáveis caminhos c nas eternas decisões da Providência Este
paradoxo, cm cujas impenetráveis profundezas o sentimento religio
96. Cf. Sefer Ha-Guilyubm. caps. Ml!; Schaar Maumorei Rmelibai. loccil. so tem sua morada, levanta inevitavelmente ojjrpjn^majajia^urc^
97. Essa fórmula espalhou-se amplamente entre os círculos influenciados pelo
cabalismo luriânico. sobretudo com aajuda da coletânea de preces místicas que Noiá j má^içailaoraçjo. Adistinção fácil entre magia c ochamado ver-
de llanover organizou sob o título de Schaarc, Tzi<m. Cf. lambem oSchaar Ha-MilZ- dâddrolnlsTícIsmO, que encontramos nos escritos de alguns cstudio-
vol.de Vnal (Jerusalém, 1872). If 3b e 4b.
98. Cf meu ensaio "Der BegrífT der Knwwana iu der alio Kabbala" cm
MGWJ. vol. LXXVIII (1934). pp. 492-518, 100. EiizHaim.cap. 1.5. p. 29.
Esta c a doutrina daKav.má lalcomo foi desenvolvida noUvro das Kavimol 101. Tudo isso foi explicado |«rVilal numa nola n.ui.o interessante, editada no
(Veneza, 1620), no l'ri Eitz Haim (melhor ediçito: Dubrowno. 180-1) e no Schaarlb | começo do Chamado Sidur Ha-Ari ou Seder Ha-Tefdâ ai Ocrech Ho-S-hI. ed. Zolk.cw
Kavanor(Iciusalém. 1873). (I78l).f.5c-d.
310 ASGRANDES CORRENTES DA MÍSTICA JUDAICA ISAAC LURIA E SUA ESCOLA 311
prescrever o mandamento "Amarás leu próximo como a li mesmo", vivemos e a existência do homem como um ser cm parte espiritual
- pois o outro realmente é ele mesmo"". c em parte material"4. E sempre que caímos cm pecado, causamos
Neste ponto gostaria de inserir uma observação. Ocaráter gnós- uma repetição desse processo, da confusão do sagrado com o impuro.
ÜCO desta psicologia e antropologia é evidente. Aeslmtura da an a "queda" da Schehiná c seu exílio. "Centelhas da Schehiná"
tropologia de Luria conesponde. no conjunto, à da sua teologia c acham-se espalhadas por todos os mundos, e "não há esfera de exis
cosmologia. com a diferença de que o ponlo de referência não é tência, seja de natureza orgânica seja inorgânica, que não esteja re
mais a luz míslica da emanação e manifestação divina, mas a alma pleta de centelhas sagradas que estão misturadas às Klipot e precisam
e suas "centelhas". Ohomem, como era antes de sua queda, écon ser separadas delas e elevadas".
cebido como um ser cósmico que contém o mundo inteiro dentro, Ao estudioso de história religiosa, a estreila afinidade destes
de si e cuja posição é superior até à do Metatron. o primeiro dos pensamentos com as idéias religiosas dos maniqueístas há de ser
anjos"". Adam Ha-Rischon. oAdão da Bíblia, corresponde no plano óbvia de imediato. Temos aqui certos elementos gnósticos - espe
antropológico aAdam Kadmon, o primitivo homem ontológico. Evi cialmente a teoria das centelhas ou partículas de luz espalhadas -
dentemente, o homem terreno e o místico estão intimamente rela que ou estavam ausentes ou não desempenhavam papel importante
cionados entre si; sua estnilura é a mesma e. para usar as próprias no primitivo pensamento cabalístico. Ao mesmo tempo não pode
palavras de Vital, um é a vestimenta c o véu do outro. Eis aqui haver dúvida de que este falo se deve não as conexões históricas
também a explicação para a conexão entre a queda do homem c o cnlre os maniqueísias e os novos cabalistas de Safed. mas a uma
processo cósmico, cnlre moralidade c física. Uma vez que Adão profunda similaridade de perspectiva e disposição que em seu de
abrangia ludo verdadeiramente c não apenas metaforicamente, sua senvolvimento produziram resultados parecidos. Apesar desse falo.
queda estava destinada do mesmo modo a arrastar e afetar ludo. não ou talvez devido a ele, os estudiosos do gnosticismo podem ler algo
apenas metafórica mas realmente. O drama do Adam Kadmon no a nprender do sistema luriano que. em minha opinião, é um exemplo
plano leosófico encontra rcp-.ição c paralelo no doAdam Rischon. perfeito do pensamento gnósiico, tanto cm princípios quanto em por-
O universo cai. Adão cai, ludo é afetado, perturbado e entra em menores.
"estágio de diminuição", como Luria o chama O pecado original
repete a Ruptura dos Vasos num plano conespondente mais baixo"".
Mais uma vez, o efeito c que nada permaneceu onde deveria estar
e como deveria ser. portanto, daí cm diante nada se encontrava cm
seu devido lugar1"'. Tudo está no Exílio. Aluz espiritual da Schehiná Mas voltemos ao ponto em que começamos. A realização da
foi arrastada para a escuridão do mundo demoníaco do mal. O re tarefa do homem neste mundo liga-se. segundo Luria, bem como
sultado é a mistura do bem e do mal que deve ser dissolvida pela iodos os ouiros cabalistas de Safed, a doutrina da meicmpsicose, ou
restauração do elemento de luz cm sua posição primitiva1". Adão transmigração da alma. No desenvolvimento ullerior da escola de
era um ser espiritual cujo lugar estava no mundo do Asiá"1. o qual. Safed, esta notável doutrina foi elaborada cm pormcnor c o livro
como vimos, era também um reino espiritual. Quando ele caiu em Sefer Ha-Guilíiulim, ou "Livro das Transmigrações". de Haim Vital,
pecado, enião esó então é que também este mundo caiu de seu lugar no qual ele dá uma descrição sistemática da doulrina da meicmpsi
anterior e destarte mcsclou-sc ao reino das Klipot. que originalmente cose de Luria. é o produto final de longa c importante evolução do
se localizava abaixo dele"3. Assim surgiu o mundo material em que pensamento cabalístico"5. Não pretendo levar esse ponlo adiante,
mas apenas salientar que há considerável diferença entre as atitudes
107. Cordovcio. Tomer Delxmi (Jerusalém. 1928). p.5. da escola do cabalismo mais antiga e a mais nova com respeito a
108. Cf. Schaar Ha-PessuUm. 1.3a; Sefer Ha-Gmlgulim. cap. XVI11 esta idéia. que. como jádisse, encontrou sua expressão clássica nas
109. Sefer HaLikulim. (. 3b.
110. Sefer Ha-Guilgulim. cap. XV-XVIII; bem como Schaar Maamarei Ra-
sddmi. fr.36bess. 114. Sefer Ha-Guilgulim. cap. XVIII. cSefer Ila-Likuum. f. 8c.
111. Sefer Ha-Guilgulim. cap. I. 115. Para esla configuração luriana da doulrina da traminigração da alma. cf.
112. Eiiz Haim. cap. XXVI. 5I. Outras passagens afirmam que seu corpo lW li meu ensaio ••Scclenwanderung und Sympalhic der Seclen" cm Eranos-Jahrbuch. vol.
ndo do mundo superior da formação lelzirá. XXIV (1956). pp. 94-107. O prcdcccssor mais importante da leona luriana í neste
113. Sefer Ha-Guilgulim. caps. XVI c XVIII. ponlo'. volumoso livro QtlH Razia. escrito cm 1552.
II
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douinnas de Luria ede Vilal. Qtlilnt0 aüs lnoIivos SwteJ preender que. na realidade, tenha havido tentativas de alegorizar a
uma eoutra aabraçarem adoulrina da transmigração. provavelmente idéia de inferno, assim como de privá-lo de lodo o seu significado
nao eram diferen.es. em princípio, daqueles que sempre levaram crr. literal11". Em geral, porém, verifica-se a misiura de ambas as idéias,
toda pane aesla crença, ou seja. a impressão causada em menti c a escola de Safcd. em particular, inclinava-se a reservar um certo
Sensíveis pelos sofrimentos de crianças inocentes, pela felicidade dos; lugar, cm seu esquema de estágios transmigratórios. ao aniiquado
perversos eoutros fenômenos que requerem uma explicação natural inferno. As duas idéias se entrelaçam, mas a ênfase recai sem dúvida
para se conformarem âcrença na justiça divina dentro da estera dl na transmigração.
natureza, teé mister admitir que as soluções dadas aessas conl Esta doutrina é agora intimamente vinculada à concepção do
imdiçôes. eviden.es pelas esperanças de retribuição no além e cm papel do homem no universo. Cada alma individual retém sua exis
geral pelas especulações escatológicas. sempre deixaram algo insa- tência individual apenas até o momento cm que realizou sua própria
lisrctas as mentes dos inúmeros crentes religiosos. Adiferença I restauração espiritual. Almas que cumpriram os mandamentos, sejam
quejirn^onaJfosJm.igos cabalistas acrçdjurvajinr?»/,»»/ parn usar •- estes os de Ioda a humanidade - "dos filhos de Noé" - ou. no caso
dos judeus, os 613 da Tora, são isentados da lei de transmigração c
tocante adeterminados peçjuIo^lspeciaJmente de natureza sexual esperam, cada uma em seu abençoado lugar, sua integração na alma
Como ressalte, na conferência anterior, não sabiam de uma lei uni-V de Adão quando oconcr a restituição geral de iodas as coisas. En
versa de transmigração considerada como sistema de causalidade quanto a alma não tiver executado esla tarefa, permanecerá subme
moral - isto e. um sistema de causas morais eefeitos físicos - Kar- tida à lei da transmigração. A transmigração. destarte, não é mais
ma. para usar o termo sánscrito. Ajusta-se a isso o fato de a doulrina •I simples retribuição, mas é ao mesmo tempo uma oportunidade de
<oda, que apnncip.o parece haver deparado com muiia oposição. í cumprir os mandamentos que não foi dado à alma cumprir antes, c
ser encarada como um mistério particularmente secreto e não obter desse modo continuar o trabalho de auto-emancipação. A pura re
•
entrada em círculos mais amplos. Um místico do século XIII. Isaac compensa csiá na verdade implícita na idéia da iransmigração para
mn Latif, rejeitou-a dcsdcnhosnmente"* outras esferas da natureza, como a dos animais, plantas e pedras.
Ocabalismo do século XVI assumiu uma posição totalmente '• Eslc banimento na prisão de estranhas formas de existência, em ani
diversa, pois en.remen.es - como declarei no início dessa conferência mais selvagens, cm plantas c pedras, é considerado uma forma de
exílio particularmente tenificanie. Como podem as almas ser liber
T-Í!^™L^ novaen-v. tadas de semelhante exílio'.' Luria responde à pergunta com a dou
de elevar aexperiência do judeu no Calul, oexílio eaminrnção do trina da afinidade entre cenas almas, de conformidade com o lugar
corpo ao plano mais elevado de símbolo para o exílio da alma'". que originalmente ocuparam na alma indivisa de Adão. o pai da
Oexíl.0 íntimo também deve sua existência ãqueda. Se Adão en- - humanidade. Existem, segundo ele, parentescos cnlre almas c até
cerrava aalma toda da humanidade, agora difusa em meio ao gênero entre famílias de almas, que de algum modo constituem um todo
-".eiro cm inúmeras codificações Daparições individuais, todas as dinâmico e reagem umas sobre as outras"''. Estas almas lêm especial
irans.iugraçoes das almas são. cm última instância, apenas migrações aptidão para se ajudarem umas às outras e complementarem as ações
umas das outras, podendo lambem, por sua piedade, elevar os mem
daquela única alma cujo exílio expia sua queda. Demais, cada indi bros de seu grupo ou família que caíram a um plano inferior e ca-
víduo produz, por seu comportamento, incontáveis ocasiões de exílio pacilá-las a começar sua viagem de volta às formas mais alias de
sempre renovado. OGuilgul apresenta-se aqui de maneira abrangente existência. Na opinião de Luria, esta misteriosa intcr-relaçao de al
como lc. do universo, eaidéia da retribuição no além pelo castigo mas esclarece muitos relatos bíblicos. No conjunto a verdadeira his
no inferno e afastada bem para o fundo. Éclaro que uma teoria tória do inundo seria a das migrações c inier-rcluçõcs das almas, que
radical da recompensa no processo de iransmigração não deixa de foi precisamente o que Haim Vital tentou descrever nas últimas par
üMQM» alguma lugar para aconcepção de inferno, e não é de sur- les do seu Sefer Ha-Guilgulim. Aí, e em escritos similares, encon
tramos uma curiosa e característica mistura de elementos de pura
<l936)'.p.V,0f' ""*" CÜ"""'ÍCaç30 *« •*»"»"> "O Gaster Anmversao- Volume
IIS. Cf. EJ. vol. IX. cal.708. c FesIschrififürAron Freimam, (1935). p.60.
pelo autor anon.rno do livro Temwul; cf. cd. Lemtefg (IS92). f. 56b. 119. SeferHa-Guilgulim. cap. V.
; 3I(.
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visto, mtuiçocs caractcrológicas (inclusive algumas muilo profun e glorificou a mais profunda e mais trágica experiência do judeu no
das) e idéias e associações de pensamento, puramente homiléticas Galul, em termos que apelavam da maneira mais vigorosa e direta
Kccapitulando o que dissemos, o Guitgut é parte do processo para a imaginação. Pois o próprio conceito de Galul adquire aqui
de restauração, do Tikun. Devido ao poder do mal sobre a humani novo significado. Anteriormente fora considerado - cm Saadia, por
dade, aduração deste processo é incomensuravelmentc dilatada, mas exemplo - quer um castigo pelos pecados de Israel, quer uma pro
- e aqui chegamos a um ponto na doutrina de Luria que atraía for vação para a fé de Israel. Agora ainda é tutlo isso, mas intrinseca-
temente a consciência individual - é possível abreviá-la por meio mente é uma missão: seu propósito é reerguer as centelhas caídas
de atos religiosos, isto è, ritos, penitências c meditações--'». Cada de iodas as suas diversas localizações.
pessoa traz o traço secreto das transmigrações de sua alma nos li-
nenmentos de sua fronte e de suas mãos'-', e na aura que se irradia E este c o segredo por que Israel está fadado a ser escravizado por
de seu corpo'". Eaquele aquem édado decifrar esla escrita da alma todos os gentios do mundo: a fim de que possa elevar aquelas centelhas
pode ajudá-la cm sua viagem. Éverdade que tal poder éconcedido que também caíram cnlre eles... E por isso era necessário que Israel se
por Cordovero e Luria apenas aos grandes místicos'». espalhasse pelos qualro ventos B fim de levantar tudo125.
Ora. é muito interessante c significativo que esla doulrina ca
balística da Iransmigração. cuja irradiação ficou originalmente con
luiada a pequeníssimos círculos, tenha estendido sua influência com 10
127. Cf., a respeito desses rilos. "Tradilion und Neuscbopfung im Kiius der
Kabbalistcn". noEranos-Jahrbucb, vol. XIX (1951). especialmente pp. 152-180. bem
como, sobre as vigílias ressurgidas, o exame especial de Kurl Wilhclm dosSidrei Ti-
kunim napublicação coincinoraliva cmhonra deZalman Scliokcn, Ale Ain (Jcrusaliím.
19-18-1952), pp. 125-146. c Armin Alwlcs. DerUeine Vcrsolmungstug (Viena. 1911).
128. Cf. a literatura cilada na nola 120.
129. Cf.A. lierlucr. Riuulbemetkungen :um lãglichen Gebetbuch. vol. I (1909).
pp. 30-47: Ahrnliam J.Sclicchlcr. Uciures on Jewish Liturgy (1933). pp. 39-60. Esse 131. Nos últimos lempos apareceram, naliteratura acadêmica hebraica, estudos
problqna dainllucncia daCabala sol.tc a liturgia judaica ultcrior merece ainda um es
tudo mais exaustivo.
ileulhados sobre a autoria, a é|wca de composição e caráter dessa obra. A minuciosa
130. Aobm foi editada primeiro cm Esmirna (1731-32) e abrange 4volumes na pesquisa de I. Tishhy quanto às fontes do Henuhit trouxe prova conclusiva de que o li
melhoredição (Veneza. 1763). vro foi escrito no primeiro quanel do século XVIII; 7«rW;. vul. XXIV (1955). pp. 1
441-455; vol. XXV (1956). pp. 66-92. 202-230. I
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