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F J G Magrani

O FAROL

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O Farol é uma obra licenciada sob uma Licença
Creative Commons Atribuição - Não Comercial - Sem
Derivações 4.0 Internacional.

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ISBN: 978-85-922400-0-4

Atribuição, Não-Comercial, Sem-Derivações 4.0 Internacional

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** O FAROL **

Fermanville, Normandia, 22 de Agosto de 1944

A guerra havia praticamente terminado, mas Finn


Janssens continuava a proteger o farol em estilo vitoriano no Cap
Lévi, cem quilômetros à noroeste de Le Havre. Naquele dia, já à
noite, veria o que não havia visto em toda a sua vida. E aquilo
mudaria tudo.

Belga, mas de família francesa, Finn havia sido


incorporado às tropas aliadas em 1940. Entrara no exército em
novembro de 1938, pouco antes do início da Segunda Guerra
Mundial.
Inicialmente em uma nação neutra, manteve seus estudos
e sua vida de pós-adolescente em Bruxelas normalmente. Foi
somente em maio de 1940, com a invasão da Bélgica, França,
dos Países Baixos e Luxemburgo que as coisas realmente se
complicaram. Naquele mesmo mês, exatamente cinco dias
depois da invasão, Finn foi convocado para a Operação Dínamo.

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Ali, quase na fronteira com seu país natal, naquela mesma
costa da Normandia, armado com seu fuzil e cercado pelos
nazistas, viu o que era uma guerra. E não compreendeu como
podia alguém querer uma segunda.

Finn havia sido mandado para a Segunda Guerra


Mundial, que era também, curiosamente, a sua segunda batalha,
aos vinte anos de idade. Antes, já havia participado de uma
pequena guerra local. Naquela altura, preferia que fosse mais
velho para não precisar lembrar daquilo por tanto tempo ainda.
Havia visto de tudo e mais um pouco. Havia sentido na pele a
perda da inocência de menino, mas também vira o quão mais
estúpidos que os meninos, os homens realmente eram. O medo
no olhar de cada soldado, ao mesmo tempo sabendo e sem saber
o que faziam sob comandos entre esdrúxulos e os repugnantes.

Naquele farol, onde estava agora, tinha tido bastante


tempo para pensar em tudo. Montava guarda sozinho ali já há
mais de doze dias. Mais quatro restantes até que seu resgate o
tirasse dali. Solitário e deprimido, aguardando a chegada de uma
corveta qualquer para a qual deveria sinalizar que estava vivo.
Apesar dele mesmo se questionar sobre aquele seu status. Estava

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agoniado, infeliz e cada dia que se passava era um pedaço de
tempo a mais de angústia.
Alguns dias haviam sido bonitos, mas dava bom dia
sempre com um rifle Browning automático, o BAR, ao seu lado.
Ora apontado para a terra, ora para o mar. Havia matado mais
de trezentos. Depois parara de contar. Aquele número já não era
mais bom pra ele, nem para contar a ninguém.
O cabo em que se encontrava era um dos mais avançados
em direção à Grã-Bretanha, bem no meio do Canal da Mancha.
A meros cinquenta quilômetros da Praia de Omaha, o local da
pior e mais sangrenta batalha do Dia D. Dali, tinha uma visão
privilegiada de toda aquela área. Chegara algumas semanas após
as principais batalhas e montara guarda em locais específicos com
boa visão, como barricadas, faróis e casas sobre as falésias.
O farol de Cap Lévi tinha quatro andares de madeira,
com um imenso pináculo em ferro que finalizava sua estrutura. O
último andar consistia em um imenso holofote circundado por
lentes mais grossas que as paredes de sua antiga casa. Acima dele,
algumas janelas sem acesso, somente para ventilação. Ao redor,
vastos campos de batatas e plantações amarelo claro, que
pareciam trigo, o rodeavam. De forma geral, gostava de ficar no
terceiro andar, onde já tinha uma boa visão. As quatro janelas ao

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redor eram grandes o suficiente para apoiar e mirar com o rifle e
pequenas o bastante para impedirem que o vissem. O último
andar era o pior e mais vulnerável. Além disso, os possíveis
estilhaços das lentes seriam mortais.
O subsolo ainda guardava mais de duzentos pentes
contendo vinte cartuchos cada. Finn provavelmente não usaria
mais. Na verdade, estava cansado até mesmo de olhar para
aquela droga de arma. Ou de carregá-la toda manhã. De ver
aquele mesmo pedaço de mar e de ter que esperar por uma
merda de navio depois de tudo pelo que passara. Várias vezes
havia pensado em simplesmente fugir dali de volta para a sua casa
a pé. Mas ainda sem notícias do mundo, não sabia se era seguro.
Tudo o que sabia era o que ele via ou ouvia, isto até poucas
semanas atrás quando a estação de rádio do farol parou de
funcionar. O resgate, no entanto, estava confirmado até aquele
momento. Contudo, não saber com certeza se viriam resgatá-lo
ou não era, no mínimo, frustrante.
Eram sete horas, noite de verão, e ainda estava claro. Finn
desceu as escadas que rangiam a cada degrau e se estabeleceu no
segundo andar para comer algo e descansar. Apoiou o binóculo e
escorou o BAR contra a parede. Removeu a boina da cabeça e se
sentou no chão, ao lado de mais um pote de massa com molho

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de tomate. Ele abriu a lata, tirou o garfo do bolso e começou a
comer lentamente como se fosse uma deliciosa refeição. Na
verdade, para ele já não importava mais do quê aquilo tinha
gosto.
Foi naquele instante em que dava mais uma garfada, que
ouviu o inesperado.
Do andar de baixo, um barulho de latas caindo e um
baque seco contra o piso de madeira.
Levantou-se num pulo. A comida rolou para o lado.
Puxou o rifle para si e apontou em direção à escada caracol que
dava acesso ao primeiro andar.
Como podia não ter notado alguém se aproximando?
Tinha certeza de que antes de descer vistoriara os trezentos e
sessenta graus ao redor daquele maldito lugar. Confessava que
podia ter deixado algum detalhe escapar. Alguém escondido ou
alguma movimentação entre as plantações.
Aos poucos, se deitou no chão e montou o rifle sobre os
bipés. Se uma tropa inteira subisse por ali, ele acabaria com ela
todinha antes que qualquer um pusesse os olhos no segundo
andar.
Porém, com a estação de rádio inoperante, preferia
esperar para ver se não eram aliados. Apesar do informe bastante

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claro que o resgate só se aproximaria após sua confirmação visual
e aceite de ambas as partes em sinais com dois lampejos rápidos
e três longos. Qualquer outra aproximação sem aquele código
seria um alvo.
Pensando melhor, em vez de ficar ali mirando a escada,
talvez se escondesse ou deixasse ser morto. Pouco importava.
Por fim, se manteve deitado. O BAR contra seu ombro
direito, apoiado sobre os bipés. A mão direita no gatilho e a
esquerda sobre o apoio de madeira. O olhar fixo na mira.
Nenhum ruído. Somente o vento que passava se esgueirando ao
lado do farol e o farfalhar das plantações ao fundo.
Havia quase um minuto que sua respiração estava presa.
Ele puxou o ar novamente. Parecia mais difícil que imaginava.
Sua mão tremia levemente. Ele tirou dos bolsos mais 3 cartuchos
e pôs no seu lado esquerdo. O olhar afixado na escada caracol de
madeira que descia para o andar subjacente. A madeira dos
degraus era escura e o pilar central, todo trabalhado em flores
entalhadas na madeira.
A estrutura do farol tinha um mesmo estilo: vitoriano
com seus seis metros de diâmetro. Por fora, madeira reforçada
com algumas partes de granito. Sua forma octogonal e o pináculo
metálico pontiagudo (com quatro ou cinco metros de altura) o

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erguiam finalmente a vinte metros do chão. Os primeiros seis
metros não possuíam nenhuma janela. Somente uma pequena
porta que Finn havia trancado e bloqueado com cadeiras e
pedaços de tijolos. Neste pedaço, o vão no interior do farol era
ocupado por uma imensa escada que levava até o primeiro andar.
As partes de dentro pareciam uma colcha de retalhos de épocas
diferentes e Finn não sabia se eram mesmo contemporâneas ou
se as sucessivas reformas foram incorporando novas estruturas.
O primeiro andar possuía, assim como os demais, quatro
janelas ao seu redor. Uma janela para cada um dos trechos
intercalados do octógono. Neste pedaço ficavam armários e um
ex-escritório que fora totalmente destruído, dando lugar à um
depósito de munição e comida.
O segundo andar contava com um salão mais amplo, já
que a escada subia pelo lado e não pelo centro. Ali, ele instalara
um segundo depósito de munições e algumas comidas para a
semana. Por dentro, era revestido por uma pintura azulada
totalmente descascada e alguns entalhes na madeira do teto já
indistinguíveis. Na outra extremidade da escada, improvisara um
banheiro junto à janela, pela qual jogava seus restos.
O terceiro andar era dedicado à estação de rádio. Além
de binóculos, documentos e equipamentos sobressalentes que

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haviam sido abandonados assim que chegou. Havia ainda
sinalizadores, material para reparo e todos os controles do farol:
dos disjuntores de luz ao acesso ao sistema da lâmpada e lentes.
O último andar, com pé-direito duplo, abrigava o imenso
farol de luz branca com dez mil Candela de intensidade. Lentes
Fresnel e sistema giratório. Uma raridade na época.
Um novo barulho o despertou do transe. Os dedos, ainda
no gatilho, se retesaram ainda mais. Finn tornou a botar a vista na
mira. Seus joelhos e cotovelos doíam. Já havia se passado ao
menos vinte minutos. Já era tempo demais. E naquele instante,
ele abandonou a ideia de se esconder e teve uma nova.
Pressionou o BAR contra o peito e disparou dois tiros em
direção à escada. O ruído ricocheteou por todo o ambiente.
TUM-TUM. Quem quer que estivesse lá embaixo, tomou um
susto, pois novamente voltou a deixar cair algumas latas de
comida no chão. Finn as tinha empilhado próximas à porta e sob
as janelas, junto com algumas caixas vazias de munição.
Apesar do barulho, não houve resposta. Quem quer que
estivesse ali, aparentemente estava bastante debilitado ou era
excessivamente descuidado.
Nenhum outro ruído. O mais terrível e sepulcral silêncio.
Começou a desconfiar de que alguém poderia entrar também

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pelas janelas do segundo andar, onde não teria tempo para mirar.
Olhava recorrentemente sobre os ombros. Mantendo o dedo no
gatilho, desembaiou sua faca e colocou ao seu lado. Finn
manteve a posição por mais quinze minutos, nos quais nem um
só pio surgiu no ar.
Seus cotovelos e joelhos doíam mais do que nunca, ele
precisava se sentar. O que significaria tirar as mãos do gatilho.
Apesar disso, sua localização estava ficando cada vez mais
desfavorável. Se alguém realmente o surpreendesse pelas costas,
subindo pela janela, não haveria qualquer movimento que fizesse
que poderia mantê-lo vivo.
Finalmente, ele tentou em francês:
- Hé! Qui est là? - gritou se sentando. Talvez sua fala
fizesse o inimigo recuar enquanto mudava de postura.
Nenhuma resposta.
- Hello? - tentou em inglês desta vez.
Silêncio.
Finn começava a ficar profundamente agoniado. Isso o
deixava com duas saídas: tentar subir para o quarto andar para
ver se avistava alguém ou descer para conferir o que estava
havendo de fato. De qualquer forma, não conseguiria manusear o
imenso rifle na escada caracol se necessitasse. E, talvez, essa

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poderia ser exatamente a oportunidade que seu inimigo estava
esperando.
Ele decidiu aguardar mais dois quartos de hora. Sua
respiração havia voltado ao normal. Estava sentado sobre o piso
de madeira. Todo movimento seu faria o chão ranger e estalar.
Quem estivesse ali embaixo poderia muito bem atirar no teto na
posição precisa em que estava. Se fosse se mover novamente,
precisava correr.
Em sua cabeça, Finn tentava analisar todas as suas
possibilidades. Mas para cada uma que pensava, havia um
possível contra-ataque ainda pior do seu inimigo. Ele não podia
mais esperar. Começava a anoitecer e não dormiria ali com
ninguém. Aquilo estava fora de questão.
Além disso, precisava subir ao farol, pois um ataque
noturno sem que estivesse vigiando o raio de guarda, seria uma
falha imperdoável.
Estava decidido. Ele subiria ao terceiro andar, apagaria
todo o farol e desceria até o primeiro piso. Se havia alguém ali
que conhecia aquele lugar melhor do que ele, ele duvidava.
Conhecia cada canto, cada degrau e cada peça de cor. No escuro,
sua vantagem seria ainda mais evidente. Além disso, tinha uma
lanterna se precisasse. Se precisasse.

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Ele respirou fundo. Lentamente, retirou o olho da mira.
Ergueu um pouco o tronco e removeu a mão esquerda de cima
do rifle. Apoiou-a no chão e tirou o pente com a mesma mão.
Aos poucos, afastou a mão direita do gatilho. Tateou pela faca na
lateral do corpo e a posicionou em sua mão assim que a tirou da
arma.
Agora, precisava se levantar e correr até o terceiro andar.
Ainda não havia razões para suspeitar que havia gente ali em
cima. Naquele andar, a madeira estalava mais que palha em fogo
alto e seria fácil ouvir. Estava na hora.
Prontamente, com uma destreza que ele mesmo se
surpreendeu, pulou de pé com a faca nas mãos, chutou o rifle
para o lado e correu em direção à escada. Numa cena digna de
filme. Finn subiu numa rapidez incomparável. Nenhum tiro foi
disparado. Ele suspirou aliviado. O coração batendo a toda
velocidade. Sua garganta pulsava desesperadamente.
Ele olhou rapidamente ao redor: ninguém.
Ótimo, pensou. E quando é que esses filhos da puta vão
me resgatar?
Ele alcançou a lanterna e caminhou rapidamente até o
quadro de controle no terceiro andar. Contou quatro chaves de
cima para baixo e a desligou.

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Todo o lugar se apagou. Só enxergava uma leve entrada
de luz do crepúsculo iluminando um pedaço do piso, numa
fresta logo abaixo das janelas.
Ele ligou a lanterna e tornou a pôr a faca nas mãos. Sua
pistola havia parado de funcionar, não havia porque perder
tempo com ela. Já havia tentado desemperrá-la por vários dias.
De qualquer forma, tirou a pistola do coldre, abriu a gaveta da
escrivaninha e a escondeu lá dentro. Armas inimigas eram
sempre boas relíquias.
Finn apontou a lanterna para a escada e tornou a chamar.
- Quem está aí? - perguntou.
Nenhuma réplica ou qualquer som audível.
Pé-ante-pé, desceu a escada agachado para ter uma visão
rápida antes que um tiro lhe acertasse a barriga. Mesmo tentando
evitar o ranger dos degraus, o ruído era alto e claro.
Ele iluminou o segundo andar. Livre.
Se esgueirando pelas paredes, onde provocava um ruído
menor, apagou a lanterna quando chegou bem ao lado da escada.
Se alguém subisse, uma facada o aguardava.
Ele se encolheu o máximo que pôde entre o corrimão da
escada circular e a parede de madeira do farol.
Por dez minutos nada aconteceu. Seu estresse lhe agitava

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e começava a chegar a níveis extremamente altos. Sentia o
coração bater apressadamente. Suas mãos tremiam e ele suava
frio. A lanterna, mesmo apagada, continuava em punhos,
trêmula.
Seria um teste? A esta altura?! Estavam me testando?
Mas não conseguia acreditar naquela hipótese. Seria uma
tortura emocional mortal e estúpida. Aquilo estava
completamente fora do escopo do 1º Batalhão de Fuzileiros.
Seria uma brincadeira de algum amigo?, pensou
Várias perguntas passavam pela sua cabeça, mas não
conseguia responder a nenhuma delas.
Ele tentou um diálogo de novo, desta vez blefando.
- Eu estou armado! Afaste-se deste farol! Vou atirar para
todo o lado ao chegar no “dez”! Um! – ele começou de fato a
contagem – Dois! – Talvez ele pudesse mesmo correr para o rifle
e atirar para todos os lados. Mas provavelmente algo
ricocheteasse – Três! Você tem pouco tempo! Quatro! Cinco! -
seu coração disparava. A faca quase caindo da sua mão trêmula –
Seis! Sete!
Naquele instante veio a primeira resposta.
- Miau!
Finn tornou a se espremer contra a parede. Ele não estava

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acreditando que alguém poderia estar fazendo aquela brincadeira
ridícula.
Imitar um gato?
- Quem está aí? Isso é algum tipo de brincadeira?! –
tornou a perguntar.
Ele se esgueirou tateando as paredes e alcançou uma lata
de comida. Sem pensar duas vezes, a arremessou com força no
andar de baixo. A lata saiu quicando pela escada, bateu contra a
parede e um novo ruído surgiu.
- Miauuu!! - o som esganiçado como um gato que foge do
perigo.
Desta vez, o som pareceu mais real que da primeira. Ele
passou por baixo do corrimão e ligou a lanterna em direção ao
primeiro andar. Calmamente, foi descendo os degraus,
procurando iluminar tudo ao redor.
Foi quando ele viu o inesperado. Um gato cinza e preto
acuado contra parede, em meio às várias latas abertas de comida.
Puta que pariu! Era mesmo um gato?!, se espantou.
Ele jogou o facho da lanterna contra o animal. O outro
fechou os olhos e pôs as patas sobre a cabeça. Era de fato um
gato, mas não era um gato qualquer. Em cima do dorso quatro
dispositivos detonadores e um controle de bomba piscavam

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sobre ele.
Finn correu imediatamente para o último andar.
- Puta que pariu! Puta que pariu! - gritou enquanto
escalava o farol até o topo.
A quantidade de bombas que havia sobre aquele gato
talvez não fosse possível explodir todo farol, mas faria um bom
estrago. Finn não era um expert em bombas ou como desarmá-
las, porém havia feito treinamentos mais de uma vez.
Provavelmente estava a salvo lá no alto. Contudo, se aquele bicho
detonasse mesmo aquelas bombas todas, muito daquela estrutura
antiga desabaria.
Uma enxurrada de pensamentos tomou conta de si, numa
cachoeira de confusão mental. Pensou em pular. Ele se debruçou
sobre a janela. Dezesseis metros. Era uma altura considerável.
Além disso, quem quer que tivesse enviado aquele gato, não
deveria estar longe. Sair a pé pelas plantações seria uma ideia
estúpida. Havia visto muitos de seus amigos morrem por snipers
camuflados no alto das árvores. Parecia uma tradição por ali.
Se eu ficar, eu morro. Se eu pular, fico paraplégico e, aqui
sozinho, morro logo depois, pensou.
O farol ainda se encontrava completamente no escuro,
mas àquela altura suas pupilas já haviam se acostumado à

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escuridão. A sala envidraçada permitia que alguma luz do luar
entrasse. No centro, a imensa lente com mais de um metro de
diâmetro.
Era raro Finn não saber o que fazer, mas naquele
momento não sabia mesmo. Tentaria a sorte descendo mais uma
vez e fuzilaria o animal? E se os tiros detonassem a bomba?
Estaria bem encrencado, pois estaria mortalmente perto.
Tentaria descer, pegá-lo de surpresa e matá-lo a facadas?
Um misto de raiva, pena, impotência e falta de soluções o
consumia por dentro. Pensou no que aconteceria se
simplesmente deixasse as coisas como estavam. Ele não podia
descer, nem podia pular, mas podia ficar ali aguardando o dono
daquele gato entrar. Aí sim tomaria alguma atitude.
Por fim, se sentou. Ligou a lanterna e a deixou apontada
para a escada, os olhos vidrados naquele ponto.
Foi quando lhe veio o pensamento de que aquele gato
poderia muito bem subir as escadas até onde estava quando bem
quisesse. Um calafrio que arrepiou o corpo todo. Queria mesmo
era fugir dali. Queria chorar, espernear. Queria estar em casa,
tomando um banho ou ouvindo rádio. Mas algum comandante
idiota achara que seu soldado não merecia. Seu soldado.
Afinal, ainda mais bela que a guerra eram as atitudes

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heróicas dos soldados mortos.
Ele não se via como um herói. Se achava um belo filho da
puta. Um assassino. Frio e calculista. Só não era mais frio porque
era verão. E isso era tudo o que era.
O fato é que havia um gato repleto de bombas alguns
metros abaixo dele que podia subir a qualquer instante, se assim
quisesse.
Ele se ergueu e começou a descer rumo ao terceiro andar
com extrema cautela.
Dali, se aproximou da escada vasculhando cada canto
com a lanterna. Havia poucos lugares para se esconder. Uma
mesa, uma estação de rádio e duas escadas (uma que subia e
outra que descia, em extremidades opostas). Aquela disposição
permitia que houvesse um alçapão tampando as escadas entre
cada um dos andares. Era exatamente à procura da alça de um
deles que ele estava em busca.
Finalmente, encontrou o pedaço de couro retorcido no
chão. Puxou com força para si, jogando o peso do corpo para
trás. Uma grande tampa de madeira maciça, presa numa das
extremidades por uma espécie de dobradiça arcaica, se ergueu.
Ele puxou com mais força e a tampa bateu seca contra o batente.
Finalmente a escada que ligava o segundo ao terceiro piso estava

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fechada.
Finn respirou aliviado. Seu rifle continuava no segundo
andar, mas chegar lá embaixo já seria arriscado demais. Não
queria ir pelos ares naquela noite. Estava tão perto de voltar para
casa...
Dali onde estava no terceiro piso, conferiu se havia algum
sinal no equipamento portátil de recepção de ondas de rádio.
Sem sucesso. Talvez fosse parte do sistema que ele desligara por
completo.
Estressado e exausto, subiu ao último andar, recostou-se
nas lentes que protegiam a lâmpada do farol e adormeceu ali
mesmo com a faca nas mãos.

Acordou três horas depois. Olhou ao redor. Sua lanterna


havia se apagado. Precisava descer para pegar uma bateria extra
na gaveta da sala de rádio. O mesmo local onde deixara sua
pistola emperrada.
Ele desceu lentamente, tateou a mesa, apoiou a faca sobre
o tampo e abriu a gaveta. Puxou a pistola e a colocou na cintura.
Depois, pegou duas baterias. Substituiu uma na lanterna e
guardou a outra como reserva no bolso.
O alçapão continuava, felizmente, fechado.

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Pensava onde estaria o gato naquele momento. Teria
fugido? Teria ido dormir? Teria sido resgatado, ao contrário dele
próprio que continuava ali aguardando? O que pensava aquele
gato? Queria ainda matá-lo? Queria detonar a bomba? E o que
será que o gato pensava que ele estava pensando também?
Ele tirou a pistola da cintura e a girou nas mãos.
- Arma de bosta!
Precisava dormir mais um pouco, mas não conseguia.
Será que havia algum sniper esperando a hora em que ele
colocaria a cabeça para fora de uma daquelas janelas?
O que mais o intrigava, contudo, era por que a bomba
ainda não havia sido detonada. Ora, se tivesse sido detonada
assim que o gato tivesse entrado, já teria provavelmente o
matado. Ou, ao menos, feito o farol colapsar. Bem, talvez
estivessem esperando a noite, quando os soldados geralmente
buscavam comida no primeiro piso. Mas Finn já havia feito um
segundo depósito no andar de cima, caso ficasse impedido de
descer por alguma razão.
Ele passaria então aquela noite acordado, esperando
alguém mais aparecer, ou a morte chegar.
Alguém morre essa noite. Ou ele ou eu!, pensou.
Enquanto tentava se manter acordado, sentado sobre o

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chão longe das janelas abauladas que circulavam todo o quarto
andar, seus olhos insistiam em pesar. Cada vez mais. Havia dias e
mais dias em que não dormia bem. Vigilantismo permanente,
resquícios de exaustão física, confusão mental e guerra. Não
necessariamente naquela ordem.
Quando a faca caiu da sua mão, percebeu que havia
novamente adormecido. Ele ergueu a cabeça e olhou em volta.
Tudo em silêncio. Tudo perfeitamente normal. Nem mesmo o
gato lá embaixo parecia dar sinais.
Se Finn estivesse do lado de fora, talvez fosse interessante
ver um farol explodindo, lançando-se ao ar. Talvez vazio. Apesar
de que conseguia pensar em muita gente para colocar ali dentro.
Ele continuou a se perguntar algumas questões triviais.
Pensava também se não haviam se esquecido dele naquele farol.
Mais quatro dias para o seu resgate...
Porém, tinha dúvidas se sua alma ainda tinha resgate.
Senão, seria somente seu corpo que retornaria.
Ele lutava contra o sono, mas seus olhos pesavam mais
que balas de chumbo.

Acordou com uma fresta do sol em seu rosto. A luz


refletida nas lentes do farol iluminava todo o quarto andar. Ao

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menos era um dos primeiros raios de sol após tantos dias
cinzentos.
Ele se aprumou e tomou a faca na mão direita. Havia sido
a primeira noite em que não dormira com seu rifle. Em tempos
passados, também mantinha sua pistola carregada e pronta sobre
o colo.
Finn não se lembrava de ter dormido tantas horas
seguidas nos últimos dias. Era verdade. Estava cansado pela e,
principalmente, da guerra. Mas ao menos não era como seus
inimigos, tomando uma incontável soma de drogas sintéticas para
se manterem acordados durante dias a fio nos campos de batalha.
Uma forma de forçar as tropas a fazerem coisas as quais
normalmente não fariam. E a maioria de seus atos não vale a
palavra que gastaria para descrevê-los.
A primeira sensação que teve foi uma certa felicidade por
estar vivo. Ele olhou o relógio: 5:42h. Estava confuso por ter
perdido todos os alarmes pré-programados a cada três horas para
as vigílias.
Às vezes, imaginava se tudo aquilo não passava de um
imenso pesadelo. Mas a guerra lhe havia mostrado pesadelos
mais reais que qualquer pesadelo poderia sonhar.
Os alarmes estavam ativados, mas os ponteiros haviam

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parado. Ele checou o relógio novamente: 5:42h.
- Merda! Parou meu relógio? - perguntou alto para si.
Ele se encaminhou para a janela agachado, evitando se
tornar um alvo. Sentou-se sob o parapeito e ergueu a mão acima
da cabeça na esperança de algum tiro que não veio.
Aos poucos, se ergueu, deixando-se totalmente exposto
na janela do quarto andar.
Arrastou para si um binóculo e vasculhou todo o
horizonte. Nenhuma movimentação, nenhum pelotão, fuzis,
fumaça ou tanques. Aquela calmaria era mais perturbadora que a
própria guerra em si, onde estava treinado a ver o perigo. Uma
espécie de constante terror psicológico que o angustiava,
temendo pelo próximo projétil saído de onde menos imaginava.
As plantações, com seus campos amarelos, brilhavam sob
o sol. O astro já estava mais alto do que calculara mentalmente.
Ele se debruçou na janela e deixou o sol bater em seu rosto.
Foda-se se morreria depois daquilo.
Ele fechou os olhos e encheu os pulmões com ar quente.
Depois, tornou a olhar para o sol.
Nove da manhã, supôs.
Ele fez a ronda completa, passando por todas as janelas.
Não havia nada em trezentos e sessenta graus ao redor do farol.

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Nem mesmo os navios que às vezes passavam no horizonte
estavam ali naquele dia. O mar estava calmo e as águas
transparentes. As ondas espraiavam como lençóis encobrindo as
rochas, ao contrário dos dias anteriores cujos esguichos violentos
subiam em névoas até o farol.
No céu, pouquíssimas nuvens. Estavam brancas e
esticadas como se fossem rabos em ganchos preenchendo todo o
azul. Nenhum bombardeiro. Nenhum avião-caça dando rasantes.
Nenhum piloto nazista descendo a noventa graus, atirando para
todos os lados.
Assim que terminou a vigília, a primeira coisa que veio
em sua cabeça foi: onde estaria aquele gato àquela hora? O que
fizera durante a noite? Estaria escondido? Por que aquela merda
não havia explodido ainda?!
Finn já havia passado por muita coisa naquele guerra e
morrer bem no final, por causa de um gato, seria uma grande
sacanagem.
Ele sabia que manter aquele bicho ali embaixo, preso, era
como dormir sobre um barril de pólvoras, separado de uma
fogueira apenas por uma fina parede de madeira. Na verdade, a
analogia era perfeita, pois não só o alçapão que os separava era
de madeira, como também havia uma infinidade de munição no

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primeiro andar que ele mal sabia o que aconteceria se a bomba
fosse detonada.
Uma coisa era certa: ao menor ruído de explosão, ele
pularia dali. Mas antes disso, tentaria impedi-la. Precisava
arriscar. Não conseguiria conviver mais três dias com aquele
animal ali com capacidade de pôr o farol abaixo.
Finn deixou o binóculo sobre o parapeito da janela e
desceu com a faca para o andar subjacente. A tampa da escada
para o nível de baixo continuava fechada.
Ele tornou a olhar para a estação de rádio. Tentou o
equipamento portátil de curto alcance... nada. Sentou-se na
cadeira e tentou alguns botões. Sequer acendiam. Ele se agachou
e procurou por algum fio desacoplado ou partido no chão. Nada.
Ele se levantou e deu um soco na placa de metal junto ao fone.
Em seguida, se encaminhou para os disjuntores e voltou a
ligar o farol. No momento, só queria saber onde estava seu
presentinho bomba.
Em sua cabeça, pensava quantos soldados já não haviam
sido mortos por gatos como aquele. Assim como quantos gatos
haviam morrido somente durante o treinamento. Sabia que no
futuro as guerras seriam feitas por robôs, não homens. A
humanidade estava se tornando cada vez mais cagona.

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Mandavam animais em vez de gente, tiros em vez de gritos e
máquinas em vez de almas.
Que falta de personalidade numa guerra!
Com cuidado, Finn abriu o alçapão para o segundo
andar, erguendo a tampa como se houvesse um tigre por debaixo
dela. Pela escada, avistou seu rifle jogado para o lado na mesma
posição em que caíra quando subira correndo as escadas na noite
anterior.
Rapidamente, desceu os degraus e o tomou nas mãos.
Tudo em ordem no segundo andar. Sem tirar os olhos da escada
que descia ao primeiro andar, atravessou a cinta do BAR no
ombro.
O bicho pelo visto não havia subido. Tampouco fizera
qualquer barulho durante a noite.
Lentamente, Finn foi se aproximando da escada que dava
para o térreo como quem se aproxima de uma mina terrestre
suspeita ou mal-desarmada.
O chão rangeu e instantaneamente o animal miou lá de
baixo. Finn recuou aos tropeços, mas não pôde evitar a queda.
Caiu sentado num estrondo contra o chão. O gato miou
novamente.
Ele recuou e subiu até o terceiro andar. Desta vez, com

26
seu rifle. Foi o tempo de respirar algumas vezes até acalmar os
batimentos.
Filho da puta!
Aquilo poderia lhe custar a vida, mas se o gato ainda não
havia explodido, havia algo de errado com a bomba.
Ele empunhou o rifle, ajeitou o pente e carregou a arma.
Desceu uns poucos degraus da escada e mirou no chão do
segundo andar.
Onde será que ele deve estar aqui embaixo?
Uma salva de tiros disparou de sua arma, numa rajada
que consumiu um pente de ao menos vinte balas.
Ele parou. Nem um miado.
O chão de madeira do segundo andar totalmente
perfurado.
As balas atravessaram o piso fazendo buracos de bom
calibre, de onde era possível ver o primeiro andar.
Havia morrido?
Finn não sorriu, mas sentiu-se satisfeito.
Não sabia por que não havia pensado naquilo antes.
Talvez ainda estivesse com medo de detonar a bomba com os
tiros. Também havia acabado de se lembrar que havia pólvora no
andar de baixo. Sorte sua. Sua inquietação o deixava cada vez

27
mais susceptível a erros. E ele sabia disso.
Finn desceu o restante dos degraus e se agachou ao lado
de um dos buracos feitos pelas balas. Pôs o olho na fresta e
tentou enxergar alguma coisa.
Alguns barris haviam sido revirados, algumas latas
estavam espalhadas pelo chão e os barris de pólvora intactos
encostados contra a parede. Nenhum sinal do gato.
Ele tentou observar por um novo buraco, próximo à
escada.
Desta vez ele viu.
O gato estava acuado em frente à porta, como se quisesse
sair. Como se houvesse desistido de sua missão. Uma bola de
pêlos cinza com manchas pretas ao longo do corpo. Um rabo
espesso e comprido. Nunca havia visto aquele tipo de bicho por
aquela região. Devia ser de fora.
Finn deitou-se sobre o chão e pressionou a vista ainda
mais contra o buraco.
O ruído fez o animal olhar em sua direção, fazendo o
soldado se erguer no mesmo instante.
Pensou em usar o buraco causado pela bala para enfiar
seu rifle e atirar, mas somente o cano passaria e ele perderia a
mira.

28
Ele tornou a observá-lo. Estranhamente, os detonadores
não piscavam mais. Todas as luzes estavam desligadas. Não havia
qualquer sinal de atividade. Enquanto isso, o bicho continuava
acuado no canto, observando-o com a cabeça baixa.
Poderia ser uma armadilha... mas que se foda!
Bastava agora abrir a porta principal do farol que aquela
encrenca sairia fugindo dali em direção aos campos.
Já tinha ouvido que os gatos-bomba eram treinados para
atacar com suas garras e cegar, mas ele atiraria antes daquilo
acontecer.
Como um soldado que aguarda calmamente pela chegada
do próximo comboio inimigo, manteve a arma em mãos e os
olhos na mira. Desceu o primeiro degrau com a mira no alvo.
Mais um. No terceiro degrau, parou.
O gato havia se mexido. Ele tirou o olho do BAR.
Acompanhou o bicho com o rifle e desceu mais um.
Grrrii! - o gato se ouriçou por completo num miado
estridente. Os detonadores sobre seu dorso pendendo um pouco
para o lado.
Ele fechou a pontaria bem em sua cabeça. Mas naquele
exato instante, o animal recuou. Se esgueirou pelo canto da
parede e se escondeu entre dois barris de pólvora. Depois, se

29
encolheu mantendo somente seus olhos brilhantes para fora.
- Maldito! Você sabe bem o que está fazendo não é?! -
Finn disse e riu no final, talvez de nervoso.
Ele desceu mais alguns degraus. Agora, era uma escolha
difícil, pois se atirasse certamente mataria os dois. Se não atirasse,
corria o risco de ser atacado. Além disso, não podia mais virar as
costas e recuar.
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
Poucas alternativas. Não havia sido treinado para aquele
tipo de coisa.
Ele manteve a posição: de pé, num dos últimos degraus
da escada, com o rifle apontado para o meio dos barris, a
respiração rápida.
O gato levantou a cabeça e passou a encará-lo
firmemente. Os olhos verdes, vivos, porém frios. Havia naquele
olhar uma certa desesperança.
Um olhar vivo porém opaco.
Triste, como se aquele bicho tivesse passado por tanta
coisa quanto ele.
Finn tornou a olhar através do BAR. O gato agora já
ocupava mais da metade da mira.
O outro se esgueirou ligeiramente para fora dos barris e

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se aninhou exatamente entre eles. Como um bebê, deitado e
enrolado em volta do próprio umbigo.
Finn suspendeu o rosto, tirando a vista da luneta do rifle.
Não esperava por aquilo. Pôs o cano para o lado e o observou.
Já havia matado tanta gente como se fossem ratos, que se
sentia o próprio gato. Corpos que subiam e caíam todos os dias.
Como o sol, ou a lua. Embora acontecesse a qualquer hora do
dia e da noite, repetidamente. Gente que passava pelo campo
como se não tivesse alma.
Ele tornou a observar o gato. Continuava enrolado em
volta de si, quatro detonadores e uma bomba. Todos os sinais
luminosos apagados.
Ele baixou mais um degrau. O gato não se moveu.
Desceu mais um, dois... O outro levantou as orelhas, mas não se
mexeu. Finalmente, estava no primeiro andar.
De certa forma, a guerra parecia ter ficado para trás. Só
havia ali um farol, um soldado, um gato e uma tensão mortífera
entre eles. Em que, ao menos, um sucumbiria.
Estava perto demais dos barris para tentar um tiro.
Porém, a porta estava a poucos passos. Seria melhor tentar abri-
la.
Ele caminhou se esgueirando pela parede. Agora, já seria

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estúpido demais manter um rifle daquele tamanho na curta
distância entre eles. Qualquer ataque que o gato tentasse, não
teria tempo para reagir.
Finn desceu o rifle cuidadosamente. Pegou a faca e o
apoiou no chão. O animal continuava imóvel, embora atento aos
barulhos como um animal de caça.
Caminhou mais dois passos em direção à porta. Puxou as
chaves da roupa. O gato ergueu a cabeça com o tilintar. Finn
parou onde estava, olhando-o fixamente. O outro tornou a se
enrolar, numa perda súbita de interesse.
Ele introduziu a chave na fechadura e girou. Um claque
de metal destrancou a porta. Finn respirou profundamente e a
abriu.
Um ar morno passou pela abertura numa leve brisa vindo
dos campos já ensolarados. O gato continuou parado.
- Ei! Sai! Xiu! - gritou.
Imobilidade.
Ele tornou a fechar a porta. Não podia dar tanta sorte ao
azar. A entrada de um inimigo seria a pior coisa que poderia
acontecer naquele momento. Além disso, se Finn morresse e
alguém tomasse o farol, poderia afundar a corveta que faria sua
extração com alguma facilidade.

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Ele pegou uma lata e a arremessou contra o bicho que
saiu do lugar, mas se instalou entre uma pilha de cartuchos e a
pólvora.
Tentou tacar uma outra lata, mas, desta vez, já não
conseguia mais ver para aonde o gato havia ido.
Finn recuperou o rifle e se sentou no terceiro degrau da
escada. Assim que o piso da escada rangeu, o gato pôs o rosto
para fora. Seus olhos brilharam verdes entre as caixas de
munição, dando-lhe uma aparência pior do que o soldado
preferiria. Finn o fitou como quem observa um fantasma
perigoso.
Naquele momento, não tinha mais certeza quem era a
presa e quem era o predador. Eram, ali, dois animais acuados.
Animais de guerra. Ambos treinados para matar. Ambos
temendo seu inimigo. Ambos adestrados para eliminar o outro,
mesmo que lhes custassem as vidas.
O animal tornou a baixar a cabeça, esparramando-se no
chão com o olhar ainda fixo nele.
Finn podia tentar arremessar a faca, mas não só ficaria
sem ela caso errasse, como, de alguma forma, estava começando
a achar a situação divertida. Sua presença ali o agradava, depois
de tantos dias sem um pingo de vida por perto.

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Na verdade, numa guerra só havia morte, e a única vida
que havia encontrado era um gato-bomba. Soava irônico, e era
mesmo. O único ser ali com certa razoabilidade num raio de
muitos quilômetros era menor do que o seu rifle e fazia “miau”.
Finn nunca confiou nos homens. Talvez tenha piorado
depois da guerra. Sabia do que ele era capaz, e sabia do que eram
capazes os outros homens.
Certa vez, durante a Operação Dínamo, atacou um
veículo do seu próprio exército. Sempre odiou mesmo o tal de
Robert. Foi o único que morreu. Ninguém nunca soube de onde
veio o tiro disparado pelo seu rifle. Mas não havia quem culpar.
Ele ficou ali fitando o gato. Os dois se encarando. Podia
ter sido morto por aquele bicho horas atrás, mas não aconteceu.
Talvez Deus tivesse um plano melhor para ele, mas ele não
acreditava nem no inferno, que dirá em Deus.
Na verdade, acreditava que qualquer comandante de
tropa podia assumir o trono do rei das trevas com mais louvores
do que o vilão do livro. E sobre o inferno, Finn mesmo podia dar
aulas, com fotos.
Naquele momento, sentia pena do animal.
Que sacanagem fazer isto com um gato!
Ficou com pena de dar um tiro de rifle naquele ser. Na

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verdade, não sabia se era pena ou medo de detonar a bomba.
Mas, se ao menos pudesse chegar até ele, poderia remover os
explosivos de suas costas. E o gato se tornaria somente um gato
novamente.
- Vou te chamar de Fortuna – disse numa voz tão rouca
que se assustou ao ouvi-la.
O nome era tanto o que realmente almejava após sair
daquela guerra imbecil, quanto, de fato, o quanto aquele gato
representava para ele. Talvez um preenchimento emocional.
- Venha cá, Fortuna! – ele sorriu, e adorou a frase.
O gato não se mexeu.
- Fortuna, preciso que você me ajude na guarda do farol.
Você é capaz de fazer isso?
Estava adorando ter com quem conversar.
Coincidentemente, naquele mesmo instante, Fortuna
miou. Um miado esganiçado e longo. E Finn tomou aquilo como
um sim.
- Ótimo! Bem, eu não esperava que pudesse convertê-lo
tão rápido – Finn sacodiu a cabeça – Você prefere mesmo ficar?
Mas dessa vez o outro não respondeu. Finn achou que ele
ainda estava pensando.
- Vou lhe dar mais um tempo, mas você não pode me

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trair depois disso. Para ser sincero – ele baixou a voz e olhou
para os lados como se procurasse alguém os escutando – Confio
mais em você do que no Comandante Daufresne.
Finalmente, ele apoiou o BAR no chão e ficou
observando-o por longos minutos. Apesar dos detonadores
parecerem desabilitados, queria dar uma boa checada e retirá-los
o quanto antes de cima de Fortuna.
Finn perdeu as contas por quanto tempo ficou ali sentado
na escada. Em algum momento, acabou cochilando.
Quando abriu os olhos, Fortuna estava mais perto do que
gostaria. Havia se enroscado próximo à porta a cerca de dez
metros dele.
Ele se levantou num pulo. Fortuna se assustou e correu
para as caixas de mantimento.
Finn subiu as escadas de volta, fechou o alçapão e foi se
deitar no terceiro andar.
Se aconchegou na manta improvisada no chão e olhou
para o teto: as madeiras escuras em ripas desgastadas cheias de
mofo.
Fortuna miou. Finn parou para escutar novamente. Um
novo miado, seguido de outro, seguido de outro.
Finn sentiu um aperto no coração.

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O deixaria sozinho lá embaixo, com fome e frio naquela
noite ligeiramente mais amena que os dias anteriores?
Sentia, também, um vazio interno gigante. Como se
estivesse sozinho no mundo. Sem saber se realmente seu resgate
chegaria. Sem saber quem eram seus amigos ou inimigos. A
única certeza que tinha era que Fortuna tinha tudo para matá-lo,
mas não o fez. E isso fazia dele um amigo.
Não era justo deixar ali para a morte a única vida que
conhecia.
Finn desceu as escadas, abriu uma lata de carne e jogou-a
no canto da sala. Fortuna hesitou. Ele se afastou e o gato correu
para o pote.
Comeu tudo numa fração de segundos.
Finn o observava como quem olhava, agora, uma
aberração, com uma curiosidade misturada com certa admiração.
Fortuna o fitou profundamente após terminar e miou. Ele
ainda guardava uma certa distância. Finn abriu uma nova lata e se
aproximou bem lentamente. Fortuna sequer se moveu.
Permaneceu sentado, olhando-o nos olhos, com aquelas bolas
verdes parecendo vidro.
Ele estava a menos de dois metros de Fortuna, que ainda
o encarava, mas sem demonstrar uma posição de ataque. Ele

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colocou a comida no canto e, imediatamente, Fortuna se
encaminhou para a pasta de carne.
Devorou quase como da primeira vez.
Finn não sabia a quantidade que aquele bicho deveria
comer, mas achou que já era o suficiente, apesar de seus miados
discordantes.
Em seguida, subiu para pegar uma manta e a estendeu no
chão do primeiro andar para abrigá-lo do frio. Seu papel estava
cumprido.
Tornou a subir para o segundo piso e adormeceu.

Ao final da madrugada, sentiu algo quente no meio de


suas pernas. Antes de abrir os olhos, Finn se virou ligeiramente
para o lado. Foi quando seu pé esbarrou em algo.
Ele tomou um susto, prendeu a respiração, mas preferiu
não se mover bruscamente. Fortuna continuava dormindo
enrolado como um bebê no útero. Uma pata sobre seu pé e a
outra esparramada no chão. Os dois detonadores ainda sobre
suas costas, apesar de aparentemente desligados.
Finn não sentia medo, contudo. Sentia pena. Pena pois,
assim como ele, levara uma vida de treinamentos mais duros do
que a própria vida poderia apresentar. Adestramentos. Porém,

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naquele momento, ele também parecia ter se entregado.
Finn pensou numa nova tática. Naquela distância podia
tocá-lo se quisesse.
Com cuidado, tateou a procura das cintas dos
detonadores em volta da sua barriga.
Tocando-o para checar sua reação, Fortuna permaneceu
imóvel. Havia um fecho para cada cinta.
Ele abriu o primeiro. Fortuna se moveu e ele parou
instantaneamente. O outro se enroscou ainda mais em seu pé e
tornou a dormir. O soldado respirou aliviado e continuou a
buscar o fecho da segunda cinta. Calmamente, o desabotoou.
No instante em que Fortuna se remexeu violentamente,
Finn puxou com força os últimos fechos e pulou para trás,
aterrissando de costas no chão.
Fortuna se encolheu e ouriçou o pêlo, mas Finn já havia
arrancado os detonadores e explosivos do seu dorso.
Ele caminhou devagar para trás, enquanto segurava nas
mãos, triunfantemente, o sistema de explosivos.
O outro se balançou, como se sentisse a falta de peso e
começou a se lamber entusiasmadamente.
Finn examinou por alguns segundos o dispositivo. Uma
pequena luz reacendeu em um dos detonadores.

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Ele se virou para trás, correu até o parapeito e arremessou
tudo pela janela.
Ao contrário do que esperava, o único barulho que ouviu
foi o baque dos detonadores colidindo com as rochas lá embaixo.
Ele tornou a olhar para dentro.
E, pela primeira vez, viu aquele animal que se lambia
como o que realmente era. Não uma máquina viva cheia de
detonadores.
Por algum momento, quis que alguém também fosse
capaz de tirar de cima de si todas as armas e memórias que
faziam dele mais máquina que homem.

Finn tornou a se sentar com as costas apoiadas na parede.


Fortuna continuava lambendo o dorso e o local onde as antigas
cintas o apertavam.
Depois, Fortuna passou a fitá-lo. Um olhar suave, como
quem observa uma paisagem. Os olhos brilhantes e
contemplativos. Era um ser diferente, pois Finn nunca mais vira
alguém ao seu lado sem aquela cara de medo e olhos
esbugalhados. Havia nos dois lados da guerra sempre a mesma
expressão de desesperança, medo e tristeza.
E como podiam os animais serem mais serenos do que o

40
próprio homem? Era incompreensível. Seriam os deuses ainda
mais conturbados do que nós mesmos? Ou seria um traço
bizarro exclusivamente nosso?
Fortuna continuava o observando do outro lado do salão.
Finn olhou ao redor.
Entre as ripas velhas de madeira, várias pequenas
pedrinhas se amontoavam nos espaços corroídos pelo tempo
entre o piso. Ele buscou uma delas ao seu lado e começou a jogá-
la de uma mão para a outra. Os olhos felinos atentos a todos os
seus movimentos.
Finn continuou passando de um lado para o outro o
pequeno brinquedo improvisado. Fortuna se agachou sobre as
patas da frente e tomou a posição de ataque.
Ele parou, mas continuou sendo observado.
- Você quer brincar, Fortuna? – perguntou numa voz
esganiçada.
Imobilidade.
Ele sacodiu o punho e arremessou a bolinha no outro
lado da sala. Fortuna imediatamente foi atrás. Correu e bateu
nela com a pata dianteira. A pedrinha rolou para o lado e ele a
acompanhou enquanto brincava de movê-la de posição com as
patas.

41
Finn buscou no assoalho uma nova bolinha. Balançou-a
na mão e arremessou longe. Fortuna deu um salto e, desta vez, a
agarrou no ar.
Depois, a trouxe na boca. O soldado manteve-se parado
enquanto ele largava a rocha bem ao seus pés e recuava à espera
de um novo lançamento.
- Então você gosta de brincar de pega-e-traz? – Finn riu.
Se inclinou para pegar a bolinha e a arremessou novamente.
Fortuna se esgueirou ainda mais rápido desta vez.
Abocanhou a pedra e trouxe novamente aos pés de Finn.
Perdeu as contas de quanto tempo ficou ali com Fortuna
repetindo a mesma brincadeira. O outro parecia se divertir, e ele
também.
Após um par de horas, se levantou do chão e vasculhou o
horizonte com os binóculos.
Depois subiu, sentou-se na mesa do terceiro andar e fez
as anotações de rotina sem nada novo para descrever.
Enquanto escrevia, Fortuna se enrolou em seu pé e
adormeceu.
Finn ficou com pena de se levantar e acordar seu novo
amigo. Preferiu continuar sentado ali.
Passou o dia na escrivaninha, tomando notas,

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desenhando, comendo algumas latas de comida que estavam nas
gavetas, remontando a pistola e olhando o pobre gato enrolado
de forma tão conquistadora em volta do seu pé.
Em algum momento, compartilhou com seu
companheiro, e ex-gato-bomba, a sua comida. Por fim, Fortuna
pulou e se aninhou em seu colo. Finn começou a acariciá-lo até
dormir na cadeira.

Quando acordou, não acreditou que havia adormecido


sem a necessidade de remédios. Fortuna ainda dormia em seu
colo de barriga para cima.
Finn sentia uma tremenda dor nas costas. O acariciou e
observou o outro se remexer num longo espreguiçamento.
Aos poucos, os dois se ergueram. Finn, ainda com os pés
dormentes, foi logo ao quarto andar tomar as posições de
possíveis embarcações, a altura do sol e avistamentos inimigos.
Fortuna miava como se tentasse falar. Era engraçado vê-lo
murmurando daquele jeito, assim como sua avó fazia antes de
tomar os medicamentos.
Não havia barcos na água.
Somente um único avião passou no intervalo de trinta
minutos, mais distante do que dez milhas dali. Era, inclusive,

43
deles mesmos.
Enquanto olhava ao redor com os binóculos, Fortuna deu
um pulo e se equilibrou no parapeito da janela bem ao seu lado.
Finn recuou e pensou em tirá-lo dali, mas preferiu deixá-
lo à própria experiência. Ele se esparramou na janela no ponto
exato onde batia um fio de sol. Fortuna fechou os olhos e deixou
as patas penderem para dentro.
- Achei que você fosse mais burro, Fortuna. Agora acho
que não. Eu que deveria fazer o mesmo. Sabe de uma coisa?
Não sinto o sol há mais de dez dias. Talvez eu devesse mesmo...
O gato sequer abriu os olhos.
Finn fez uma ronda completa. Não havia mais nada a
fazer nas próximas duas horas, pelo menos.
De qualquer forma, já estava com fome. Ele desceu e
preparou, desta vez, uma refeição quente. Arrumou uma lata
velha e vazia, a envolveu em uns panos e ateou fogo. Depois, pôs
a lata de espaguete com carne sobre a fogueira improvisada e
subiu novamente para o andar de cima enquanto a comida
esquentava.
Fortuna permanecia na janela. Finn se sentou no chão
próximo à janela onde seu amigo se encontrava em sono
profundo. Ficou ali o observando enquanto aproveitava uma

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fresta de sol que escapulia por entre as nuvens.
Era bom sentir o sol no rosto. Algo que ainda não tinha
feito. Extremamente renovador.
Enquanto curtia aquele momento, ouviu um estouro
vindo do andar de baixo. Finn pulou num susto e se encolheu
junto à parede. Fortuna abriu os olhos, saltou para dentro e
sumiu.
Que merda é essa?!
O barulho provavelmente vinha do andar de baixo,
justamente onde estava seu BAR. Havia esquecido de trazê-lo
para cima na noite anterior.
Outro animalzinho-bomba? Ora essa! Ou será que
alguém pegou meu rifle? Bandidos! Puta merda! Sou um
desequilibrado. Que soldado de merda!
Ele empunhou a faca e desceu as escadas lentamente.
Antes que chegasse ao andar de baixo, já havia percebido
o que ocorrera.
Esquecera o almoço no fogo e a lata fechada explodira
com a pressão.
- Merda! – exclamou, batendo com a mão na cabeça.
Parecia merda, mas era carne. Por todos os lados. Com
espaguete. Fortuna já se encontrava comendo tudo o que havia

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pelo chão. E aquela deve ter sido a melhor refeição que fizera na
vida. Quente e com carne inimiga.
Ao menos não preciso limpar esta droga. Vou abrir uma
nova lata. Comida fria desta vez.
Ele comeu meia lata e foi brincar com Fortuna, que
procurava em cada fresta do piso resquícios de carne moída com
massa.
Finn não sabia se eram piores as latas enviadas pela
Inglaterra ou pelos Estados Unidos. Mas procurava alterná-las
quando comia, de forma a não ficar com raiva de um país
específico.
Assim que achou uma nova pedrinha, jogou-a longe. E
Fortuna não se recusou a brincar. Correu atrás como se fosse um
rato em fuga. Abocanhou a pedra e trouxe de volta como se
pedisse um novo lançamento. Parecia ter esquecido da refeição
que havia acabado de comer.
Que coisa fofa! Gosto de você, Fortuna!, falou
internamente como se o gato o pudesse ler por telepatia.
Finn inovou nos lançamentos. Fez vários. Rolados, no
alto e quicados. Mais de cem. Contou desta vez. Por fim, Fortuna
se deitou no chão, entregue ao cansaço. Ainda assim, Finn quis
tentar uma nova brincadeira.

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Ele se levantou repentinamente, deu um gritou e saiu
correndo para o andar de cima. Fortuna o acompanhou,
correndo logo atrás, mas provavelmente sem compreender o
ataque repentino que Finn tivera em sua incorporação de
maratonista.
Ao chegar lá em cima, olhou para Fortuna. Seus olhos
verdes brilhantes meio incompreensíveis. Ele bateu palmas, abriu
os braços e começou a persegui-lo escada abaixo.
Era uma brincadeira perigosa em alta velocidade nas
escadas, mas era divertida. Na subida, Fortuna o perseguia. Na
descida, Finn o caçava enquanto ele se esgueirava para os lados e
fugia numa velocidade incrível.
Depois de vários sobe-e-desce, o soldado parou para se
recompor. Sentou-se no chão e secou o suor do rosto.
- Você é um companheiro divertido! - riu.
Tentou lhe dar um aperto de mãos tocando a sua pata,
mas Fortuna recuou.
Finn abriu uma lata de comida para cada. Ele veio para o
seu lado e, desta vez, saboreou pacientemente a refeição. Finn
devorou sua lata, com o garfo já sem dentes, em poucos
segundos.
Nunca mais tinha se divertido assim. Talvez a última vez

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que rira de verdade fora durante um festejo de fim de batalha,
um ano atrás, onde bebeu mais do que conseguia, falou mais que
podia e... comeu até quem não devia.

Enquanto o acariciava, pensava quem estava fazendo um


favor a quem ali. Aquele gato que haviam mandado para matá-lo,
lhe trouxera mais alegria, coragem e vivacidade que havia tido em
todo o ano.
Sabia que gatos eram usados como companhia para os
snipers em seus esconderijos durante longas estadias, mas estórias
de gatos-bomba enviados para matar soldados que se tornaram
companheiros, jamais tinha ouvido falar.
Na verdade, mal ouvira histórias durante a guerra. Ouvira
muitos tiros, muitos gritos e muitas ordens. Ouvira poucas
piadas, poucas risadas e poucos elogios.
Sentira mais vergonha do que orgulho, desilusão que
esperança e mais solidão que companheirismo.
Vira estampado em cada homem, mais dor do que
alegria, mais raiva do que compaixão e mais ódio do que
respeito.
Aspirara mais enxofre do que perfume, mais urina do que
flores e mais pó do que ar.

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Saboreara mais amargor do que doçuras e mais remédios
do que travessuras.
E tinha certeza que mesmo para o vencedor, o saldo, em
todos os sentidos, seria sempre negativo. Buscava sentidos, mas
não havia.

Fortuna o seguiu o dia todo. Para onde fosse, o outro


caminhava junto a ele. Hora ronronando, hora trazendo uma
pedrinha qualquer entre seus dentes afiados. E Finn estava
totalmente apaixonado por aquele ser de caminhar sereno, olhar
profundo e de uma parceria inegável.
Pela primeira vez, sentia que tinha um amigo, pois ali na
guerra era difícil distinguir. Naquele momento, mal sabia se
queria ser mesmo resgatado pelos seus. Já mal sabia funcionar
sem ordens, documentos contendo comandos e vozes de
“recuar” ou “avançar” que ainda ressoavam em sua cabeça. Sua
família também estava provavelmente morta. Sobravam poucos
atrativos para sua volta.
De qualquer forma, após o agradável dia ao lado de
Fortuna, se deitou na cama e aguardou o dia de seu resgate. Sua
mandíbula ainda doía de tanto que rira. Assim como suas pernas
que latejavam do sobe-e-desce pelas escadas. Em seu colo,

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dormia tranquilamente o seu gato da sorte.
O soldado o fitou. Em paz. O corpo inerte e macio. Suas
lindas manchinhas pretas e o rabo maior que o corpo enrolado
entre as suas pernas.
Tão sereno... como a própria vida devia ser. Por pouco,
não o havia matado. Que tristeza. A humanidade era mesmo a
pior coisa que havia no planeta. Se orgulhava muito pouco de si
mesmo.
Para cada homem que matara, atirara pensando se não
estaria matando o próximo gênio da matemática, da medicina ou
algum Nobel da Paz.
E ali, olhando Fortuna adormecido em seu colo, ele
chorou. Chorou muito. E aquele pequeno amigo se enroscou
ainda mais em sua perna, como se o sentisse também. Suas
memórias e imaginação, aos poucos, foram substituindo a
realidade.

Fortuna ainda cochilava entre suas pernas com a barriga


para cima quando ele despertou.
Pela primeira vez tivera um sonho. Não um pesadelo. Já
havia esquecido que era possível sonhar.
Esquecera novamente do seu remédio anti-estresse para

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dormir. Na verdade eram remédios recomendados para fadiga
mental, e Finn se surpreendeu como eram desnecessários.
Sonhara com uma vida nas montanhas, uma casa cercada
por ovelhas, cabras e... Fortuna.
Ele se levantou de forma a não removê-lo de seu sono e
foi logo pegando o binóculo.
Vasculhou cada centímetro do horizonte. Não havia nada.
Ele desceu, pegou uma lata com queijo, ovo e manteiga para o
café da manhã.
Décimo quinto dia! A última refeição, pensou.
Pegou o binóculo e continuou à procura do seu resgate.
Enquanto acariciava Fortuna, vistoriou todo o horizonte
naquele dia. À tarde, uma pequena embarcação de pesca quase o
fez dar saltos de alegria.
Foi somente às 20:04h que finalmente uma mancha cinza
apareceu iluminada no horizonte.
A bandeira belga juntamente com a da Marinha Real
hasteada na popa não deixava dúvidas. Eram eles!
- IUHUL! - deu um pulo.
Fortuna se assustou e correu para o outro lado.
- Estamos indo para casa! Para casa! - gritou sorrindo para
ele, mas Fortuna pareceu não entender.

51
Finn correu para trás das lentes onde se encontravam os
controles da lâmpada. Lampejou duas vezes rapidamente e três
vezes mais lentamente. Era o sinal que estava vivo no farol.
Ele continuou a observar as luzes do navio, à espera de
uma resposta. Alguns segundos depois, um forte holofote brilhou
na proa. Dois lampejos rápidos e três longos.
- São eles! - gritou animado.
Em seguida, tentou uma comunicação em Código Morse
com as luzes.
Estou vivo. Aguardo resgate.
Após dois minutos, veio a resposta. Ele puxou um bloco
de notas e escreveu cada letra.
Rádio de pequeno alcance, leu ao final.
Finn desceu correndo pelas escadas, buscou o rádio
portátil e o ligou.
- Corveta K193. K193. Aqui soldado Janssens. Câmbio.
Os poucos segundos de estática que se seguiram
pareceram uma eternidade.
- Aqui Corveta K193 - ele comemorou - Há alguém mais
com você, câmbio?
- Estou só! Câmbio.
- Soldado Janssens, existe um animal com você?

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Finn engoliu em seco.
Como eles sabiam daquilo?
- Há um gato no farol. Câmbio.
- Você precisa se livrar dele, soldado. É um gato-bomba.
Câmbio.
- Negativo. A bomba já foi desarmada. Câmbio.
- Você precisa se livrar dele, isto é uma ordem.
- É somente um gato. Vamos deixá-lo aqui. A bomba já
foi desarmada. Câmbio.
- Negativo, soldado Janssens. Você só será resgatado
sozinho. O inimigo que está com você oferece risco e deve ser
eliminado.
Ele não podia acreditar no que estava ouvindo.
Inimigo? Ele já havia desarmado a merda da bomba. Que
palhaçada era aquela? Era só um gato!
- Soldado Janssens na escuta? Câmbio.
- Na escuta. Câmbio – sua voz parecera ter perdido o
brilho. Sentia uma raiva tremenda.
- Elimine o inimigo e volte a nos contatar. Chegaremos
em uma embarcação de apoio que fará a sua extração na praia.
Elimine o inimigo. Elimine.
Aquela frase ficou repercutindo em sua cabeça. Fortuna,

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que estava no chão enrolado próximo ao seu pé, o fitou de baixo
para cima.
- Não posso levá-lo. Mas você ficará bem. Isto eu
prometo. Não vão lhe fazer nenhum mal, Fortuna. Não vão.
Fortuna miou de volta.
- Mas vou precisar escondê-lo por algum tempo.
Ele o pegou no colo, Fortuna não reagiu.
Desceu até o terceiro andar, abriu uma das grandes
gavetas da estação de rádio e o colocou ali dentro.
Fortuna pôs a pata para fora, como se o impedisse de
fechar a gaveta.
- Não vou fechar tudo – Finn suspirou. O coração na mão
- Deixarei um pouco de ar...
Ele encostou a gaveta e deixou uma fresta para que
pudesse respirar. Além disso, sabia que, quando quisesse,
Fortuna teria forças para abrir a gaveta.
- Eu te amo! Voltarei muito em breve para te resgatar. Eu
juro...
Finn estendeu a mão e apertou a pata que ficara de fora
da gaveta.
Em seguida, se afastou com lágrimas nos olhos e subiu
para o farol.

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- Eliminado, K193. Câmbio – Finn falou pelo rádio
portátil.
- Identifique-se na praia ao Tenente Meyers e traga o
animal desabilitado com os detonadores. Câmbio.
Finn sentiu o coração saltar. Começava a suar frio.
Como assim levar o animal? Aquilo não fazia sentido!
- Isto não será possível, senhor. O detonador foi
arremessado nas plantações e o animal está estraçalhado.
Câmbio.
- É essencial que traga o corpo do animal e os
detonadores para análise.
- Isto não será possível! – repetiu, sentindo os dedos
apertarem o botão com força, enquanto enxugava a testa com a
outra mão.
- O farol será bombardeado em caso de desobediência,
soldado Janssens.
Ele não podia acreditar no que estava ouvindo. Iriam
matá-lo por que não levara um maldito gato morto para eles?
Sentiu um arrepio na espinha. Mas numa brisa de
confiança, finalmente tomou coragem.
Que se foda!
- Corveta K193, procurarei pelos detonadores no campo.

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Mas o animal não foi eliminado. Ainda está vivo. Ele é meu
amigo e não posso matá-lo. Câmbio.
- Soldado Janssens, isto é uma ordem. Mate-o agora
mesmo!
- Não posso Corveta K193. Eu sinto muito, é que...
- Isto não é uma brincadeira – o homem do outro lado
interrompeu – O animal representa perigo e os detonadores
possuem uma tecnologia avançada de difícil neutralização. O
inimigo pode estar aguardando o momento correto para a
detonação. Você está fora de controle, soldado.
Por tudo o que Finn já havia passado, não acreditava
naquilo. Havia jogado os detonadores janela afora, e aquele gato
sem bomba parecia mais inofensivo que uma arma com um
pente sem balas.
Ele tentou novamente.
- Senhor, o único a morrer serei eu, caso os inimigos
ativem os detonadores enquanto passo pelas plantações, senhor.
- Esta não foi a ordem, soldado. Lhe darei quinze minutos
para eliminar o alvo e tornar a se comunicar para que
prossigamos com o resgate. Caso contrário, iniciaremos o contra-
ataque. Câmbio desligo.
Finn ouviu aquele som agudo ao fundo da comunicação

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recém-cortada.
- Estúpidos! – deu um soco no ar – Que se fodam as suas
ordens!
Não havia outro jeito, precisava sair dali com Fortuna
morto em seus braços. Mas não o seu Fortuna. Não. Aquilo não
iria acabar daquele jeito.
Ele se agachou, abriu a gaveta e pegou o amigo nos
braços.
- Fortuna, não posso te deixar aqui. Eles o matarão. Vou
levar você comigo até a porta. Dali, o libertarei. E você corre.
Corra o máximo que você puder. Corra para a vida. Para a sua
liberdade, pois pra mim não restam mais escolhas agora...
Fortuna o encarava com aqueles olhos verdes arregalados
em seu colo, como se compreendesse cada uma de suas palavras.
- Leve meu amor com você, Fortuna. Amanhã talvez não
estejamos juntos, mas temos nossos momentos em nossas
memórias e corações. Jamais o esquecerei! – ele enxugou as
lágrimas - Você me ensinou a sentir algo aqui dentro. Algo que
nem uma guerra pode destruir, Fortuna. Eu te amo!

Finn pegou uma capa do chão e a colocou sobre as


costas, envolvendo Fortuna no casaco, junto ao seu peito.

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Por fim, alcançou o rádio e disse com calma:
- Sairei sozinho pela porta. Câmbio – disse
pausadamente.
- Afirmativo, soldado Janssens. Autorizado. Câmbio.
Finn desceu até o primeiro andar e abriu a porta
lentamente. Agachou-se no chão de forma que o capim alto ainda
encobrisse o seu corpo.
Em seguida, abriu o casaco próximo à porta e sussurrou
dando-lhe um empurrão pela bunda:
- Vá, Fortuna. Vá!
Ele lambeu sua mão e saiu caminhando pelas plantações
secas, como se soubesse que correr moveria a vegetação que o
escondia.
Fortuna olhou para trás somente uma vez. Deitado no
chão, Finn movimentou as mão como se pedisse para ir embora.
Sentindo os olhos encherem de lágrimas, perdeu Fortuna
de vista pelos campos de trigo.
Ele se ergueu com as pernas trêmulas, jogou o rifle no
chão e, pela primeira vez em vários dias, pisou para fora do farol.
Imediatamente, o rádio soou:
- Temos visual, soldado Janssens. Câmbio.
Ele continuou a caminhar em direção à costa, onde já via

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o pequeno barco de apoio parado junto à praia.
A brisa estava agradável e a temperatura começava a
subir. Apesar de querer olhar para trás à procura do amigo,
conseguiu controlar o impulso.
Os campos dourados sob o sol quente que aquecia sua
face eram uma bonita visão. Ele olhou para cima e respirou o ar
puro que soprava do mar. Que sensação maravilhosa!
Ele se agachou, removeu as botas e as atirou longe. Já
havia esquecido como era bom pisar na grama. Havia esquecido
o prazer de não estar fardado a céu aberto.
Logo à sua frente, o barco de madeira de não mais de dez
metros de comprimento comportava seis soldados e um tenente
no comando. Todos possuíam aquele rifle que tanto conhecia.
Ainda não trocaram essas merdas, pensou sorrindo.
Sabia desmontá-lo de trás para frente em doze minutos.
Geralmente funcionava.
Ele continuou se aproximando. Estava agora próximo o
bastante para identificar o rosto de cada um ali. O Tenente se
aproximou com dois soldados. Os outros quatro mantinham o
barco encalhado na praia.
- Bom dia, soldado Janssens – os dois bateram
continência – Onde está o alvo?

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- Morto no farol – disse seco.
- Bom trabalho. Verificaremos. Aguarde-nos para
embarcar.
Três se afastaram. Finn sabia que não tinha mais escolhas.
Quando percebessem que o inimigo tinha fugido (na verdade,
tinha sido libertado) não poupariam sua vida. Os soldados, por
mais que se recusassem a atirar (como faz a maioria na guerra
por alguns minutos), acabariam obedecendo às ordens.
Os cinco minutos seguintes foram os mais angustiantes de
sua vida. Embora não muito menos do que quinze terríveis dias à
espera de um resgate e cinco sem qualquer comunicação.
Ele olhou para o sol. Resplandecia como se lhe desse as
boas vindas. Finn sorriu de volta e acenou para ele.
Os soldados se viraram para checar o que era, mas
tornaram a se virar para ele e balançaram a cabeça uns para os
outros. Finn estava achando graça daquilo tudo.
Os cinco rádios soaram ao mesmo tempo com o barulho
de estática. Depois, veio a voz do Tenente.
- Senhores, alvo não localizado. Escapou.
- Tenente Meyers, você tem certeza disso? – disse a voz
de um outro homem que Finn já ouvira pelo rádio.
- Precisamente, comandante. Ele mentiu, não há nada

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aqui – veio a resposta.
- Execute. Código 347, Tenente. Câmbio desligo.
Ele já sabia o que aquilo significava. No mesmo instante,
uma salva de tiros saltou da corveta.
Tudo foi tão rápido que primeiro ouviu somente o
barulho das balas de chumbo colidirem contra a madeira e o
granito.
Finn olhou para trás e viu as vidraças do quarto andar
estourarem. Os segundo e terceiro tiros atingiram a base do farol.
A estrutura balançou e veio ao chão logo depois.
Sua casa durante os últimos dias estava… acabada.
Numa questão de poucos minutos.
Ele não acreditava no que estava vendo.
Imediatamente, os soldados à sua frente ergueram o BAR
e miraram em sua cabeça.
Finn sorriu, virou-se de costas, e pôs-se a correr em
ziguezague pelas plantações.
Aqueles filhos da puta para quem trabalhara toda a sua
vida, dando seu sangue em cada batalha, que o deixaram sozinho
naquela merda de lugar sem ter para onde ir. Que o haviam
privado de sua liberdade, de seus namoros e de sua vida. Agora
se voltavam contra ele mesmo?

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Que porra escrota!
Ele continuou correndo em ziguezague e por uma fração
de segundos, parecia que havia conseguido, mas naquele mesmo
instante, sentiu um impacto na costas.
Ele cambaleou e caiu no chão.
Sentiu o calor aquecer as suas costas e avistou os quatro
soldados se aproximarem.
Mais um tiro o acertou em cheio na barriga. Ele ouviu um
zumbido e sua visão embaçou.
Por entre o capim ressecado e o trigo, frestas do céu azul
e do sol atingiram seu olho.
Ao fundo, por entre os arbustos, acreditou ter visto
Fortuna fitando-o.
Ele inspirou profundamente e, pela última vez, sorriu o
sorriso da vida.
Estava, agora, tão invisível quanto o velho farol de Cap
Lévi. De ambos, restariam somente memórias que se apagariam
com o tempo. Ah, e um pequeno desenho do farol que Finn
rascunhou certa vez com Fortuna em seu colo.

***

62
Falarão que o farol foi destruído durante uma batalha.
Só há um morto para provar o contrário.
E, em sua lápide, a visita somente de um gato.

63
Nota do Autor

Apesar de preferir deixar a encargo do leitor quaisquer


interpretações acerca não somente do fim do livro, como
também dos arquétipos carregados por cada personagem, cabe
aqui uma última provocação reflexiva.
O soldado Finn e o gato podem representar,
respectivamente, o externo e o interno. A matéria e a alma. O
mutável e o imutável. O temporário e o eterno. A brutalidade e a
pureza. Disciplina autoritária versus a inocência emotiva...
O soldado, ao reconhecer as limitações da matéria, não
mais se importa com sua aniquilação, pois sabe que o animal – o
metafísico – ainda vive. E prefere dar sua vida em detrimento da
possível morte da alma.
Outras interpretações sugerem que o farol represente
toda as cascas (ego) impostas ao nosso Eu. Protegendo-o (no
caso, o gato) com sua forte estrutura. Contudo, somente uma vez
destruído o farol (ego) e a mente (Finn) que o torna real, a
essência encontra, por fim, sua liberdade.
O autor também salienta o papel do companheirismo e

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do Amor, encarnado no papel do gato. Bem como a fidelidade e
a gratidão. Sem contar, reflexões acerca da brutalidade da guerra,
da violência, e da ética humana e seus valores.
Isto posto, contudo, não exaure a possibilidade de
diversas outras interpretações, levando-se em conta o conteúdo
abstrato e pessoal que pode, e deve, ser extraído destas páginas.

***

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