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Autor Desconhecido - 34821-Texto Do Artigo-40786-1!10!20120723pdf
Autor Desconhecido - 34821-Texto Do Artigo-40786-1!10!20120723pdf
Um texto
anônimo, em
língua geral
amazônica, do
século XVIII
EDUARDO DE
ALMEIDA NAVARRO
é professor de Tupi
Antigo e Nheengatu
(Língua Geral) na
FFLCH-USP e autor
de, entre outros,
Método Moderno de
Tupi Antigo – a Língua
do Brasil dos Primeiros
Séculos (Global).
e bandeiras. Essas línguas gerais deixaram
traços profundos nos nomes geográficos e
na língua portuguesa do Brasil.
O manuscrito donde colhemos o texto
que ora traduzimos está guardado na Bi-
blioteca Nacional de Portugal, em Lisboa,
sob o número 569. É anônimo, mas sua
leitura permite-nos concluir que foi escrito
por um missionário, talvez jesuíta, poucos
anos antes da expulsão de sua ordem re-
ligiosa do Brasil, ocorrida em 1759. É a
única literatura conhecida em língua geral
amazônica que nos veio do Brasil colonial.
É, portanto, texto preciosíssimo. Divide-se
em três partes. A primeira e a terceira já se
encontram editadas, com suas respectivas
Vocabulario da Lingoa é um traduções1. Publicamos, agora, a segunda
dicionário manuscrito da parte, que porta, no manuscrito, o título de
língua geral falada no século “Narração que Faz um Sertanejo a um Seu
XVIII em quase toda a Ama- Amigo de uma Viagem que Fez pelo Sertão”.
zônia brasileira e também em As três narrativas, em versos, foram
territórios hoje pertencentes à escritas por um mesmo autor. Nas duas
Venezuela, ao Peru e à Colômbia. Essa primeiras, temos um narrador a falar em
língua foi aquela em que se expressou a primeira pessoa e, ao que parece, em caráter
civilização amazônica, que se definiu a autobiográfico. Na terceira história, vemo-
partir da inserção dos índios no mundo do -lo a narrar fatos na pessoa de um outro
colonizador branco mediante sua escraviza- indivíduo, real ou imaginário. A intenção
ção ou pela mestiçagem. Dezenas de povos literária fica, assim, explícita.
indígenas diferentes a falaram. Índios de Na presente narrativa, vemos um antigo
diferentes línguas e culturas conheciam- apresador de escravos a falar de suas pe-
-na. Com ela passou a se formar o Brasil ripécias pelo interior do Grão-Pará. Ela é
caboclo do Norte, a civilização ribeirinha um retrato da vida quotidiana na Amazônia
da maior região do país. e, especificamente, no Pará, em meados
Até 1877 essa língua foi mais falada que do século XVIII. Ali vemos o catolicismo
o português na Amazônia, inclusive nas suas popular com seus santos, seus sincretismos
cidades, grandes ou pequenas, situadas às e práticas mágicas, suas desobrigas, que
margens dos seus rios e igarapés: Belém, aquietavam as consciências dos católicos
Manaus, Macapá, Santarém, Tefé, Óbidos, com os sacramentos, mas sem transformar
etc. Somente naquele ano é que o português suas vidas. Vemos também a escravização
a sobrepujaria no norte do Brasil, quando dos índios com a cumplicidade de seus
mais de quinhentos mil nordestinos, fugidos pares, os conflitos dos traficantes com os
1 Eduardo Navarro, “A Es- da seca, migraram para a Amazônia. padres em aldeamentos, a corrupção dos
cravização dos Índios num A língua geral amazônica, ainda falada agentes do Estado, a vida nos aldeamentos e
Texto Missionário em Lín-
gua Geral do Século XVIII”, no vale do Rio Negro e, desde o século comunidades ribeirinhas, a menção a antigas
in Revista USP, 78. São XIX, chamada também nheengatu, é irmã localidades, a prostituição e, até mesmo, a
Paulo, CCS-USP, junho-
-julho-agosto de 2008, pp. da língua geral meridional, que desapareceu carência alimentar dos tempos coloniais.
105-14. Idem, “O Corista no início do século XX. Esta se irradiara a
Europeu. Tradução de um
Texto Anônimo, em Língua partir da capitania de São Vicente para Minas Eis o texto e sua tradução. Não segui-
Geral da Amazônia, do Gerais, Goiás, Mato Grosso e para as capi- remos a pontuação do texto original na
Século XVIII”, in Língua
tanias do sul do país, seguindo o rastro dos tradução por ter sido ele escrito de forma
e Literatura. São Paulo,
FFLCH-USP, n. 27, 2009. paulistas, que avançavam com suas entradas muito livre.
Ixé abé anhemopurãtã, Eu também me deleitei a valer. 35 Antigo tecido fino, de linho
ou de algodão, proveniente
Tres àra catú äépe aicó, Três dias ali estive. da região francesa de Bre-
Mocõi ruão peça aipyçó, Duas peças de Ruão34 estendi tanha. O traficante estendeu
pelo chão panos finos para
De bertanha bé moçapýr, e três de Bretanha35. se deitar com prostitutas.
Aanangài rüã aimoiapýr. De modo algum eu as dobrei36. 36 Isto é, não dobrou os panos
Cavados de primavéra abé Cávados de primavera37 também, depois do comércio sexual
porque as mulheres os
Dozè ogoeraçó opabenhé, doze, levaram todos38, levaram consigo…
Fitta çüí varas cetá, muitas varas39 de fita. 37 Uma variedade de vinho
Napapàr cüáb caöi tatà. Não saberia calcular a aguardente. verde, produzido na sub-
-região de Cávado, no no-
Apytà porëauçúba, Fiquei miserável, roeste de Por tugal, uma
Anhanga remiauçùba, escravo do diabo. das mais importantes re-
giões vinícolas do país. As
Iabé catú xe rerecò, Bem assim me trataram; parreiras ali são cultivadas
Cetá mbäé äé ogoeraçó. muitas coisas elas levaram. com outras plantas, sobre
as quais trepam (vinha de
Anhemombëú uán cecé, Já me confessei a respeito disso. enforcado), desenvolvendo-
Paí xe iacaò eté eté: O padre me repreendeu muitíssimo: -se longe do solo. As que
crescem sobre o milho de
Ereimböacýpe catú? – Arrependeste-te bem? regadio desenvolvem-se na
Oporandù Paí Pacicú. perguntou o padre Francisco. primavera e no verão. Daí
cremos provir a expressão
Aimböacý etè Paí guí, – Arrependi-me muito, ó padre; cávados de primavera, por-
Naicòi Tupã recó rupí não agi conforme a lei de Deus. que é vinho que provém
de uvas crescidas durante
Xebo äé Tupã monhyrõ, A mim ele apaziguou a Deus. aquela estação em Portugal.
Xe mbäé coéra aiacëó. Minhas coisas antigas chorei. 38 As prostitutas levaram em-
Acëár Gurupatúba, Deixei Gurupatuba bora doze garrafas daquele
bom vinho…
Umáme naicó pitúba, para onde não estou manchado.
Amò ára pupè äèpe açò, Um outro dia ali fui; 39 Antiga unidade de medida
de comprimento, equivalen-
Xébo cöyté Tupã nhyrõ. a mim, enfim, a paz de Deus. te a cinco palmos, ou seja,
Amondòc ucár muncúba, Mandei cortar uma monguba. 1,10 m. Porção de tecido
com o comprimento dessa
Cecè oicò Iacumáúba, Nela trabalhou um piloto. medida (in Dicionário Caldas
Aulete)
Omonhang cem pocoaçába, Fez cem talhos40. 40 Ele, aí, se refere à construção
de uma canoa a partir de
Çupí ocýc cò papaçàba. Na verdade, bastou esse número. uma única tora de munguba,
Topajópe cöyté acýc, Ao Tapajoz, enfim, cheguei; árvore bombacácea. Com
cem machadadas, somente,
Nãbà äépe xe möapycýc; ninguém ali me fez agrado; o índio piloto do barco fez
Icatú pyrý curabé, era melhor um curabi41. uma canoa.
Naimocucáo xe mbäé. Não fiz passar minhas mercadorias. 41 Pequena flecha ervada, de
uso entre os indígenas do
Pyçaieramé oiepé öúr, De madrugada veio um, norte do Brasil.
Cuias oguerúr moçapýr, e trouxe três cuias. 42 Ele narra, aqui, uma si-
Caöi amëeng ixupé, Dei pinga a ele. tuação de esbulho feito
por soldados. Ele se livrou,
Äé, eimocüár nde iöecé Disse eu: – Cuida de ti. porém, deles, partindo de
Xe pýri öúr soraretá, A mim vieram soldados; madrugada,
Oieruré mbäé cetá, pediram muitas coisas42: 43 Com til sobre o e, no original.
Mocacüí, monição abé, pólvora, munição também, 44 Parati é nome de uma
Petýmabé, e paratíe43. fumo e parati doce44. variedade de aguardente
produzida originalmente na
Pecepiác cöýr carúc üán, Vede agora que entardeceu. localidade de mesmo nome.
BIBLIOGRAFIA
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cunvizinhas. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo/Belo Horizonte, Edusp/Itatiaia. 1975.
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