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Perry rhodan
O FALSO RHODAN 1
A DROGA DA JUVENTUDE
KURT MAHR
KURT BRAND
WILLIAM WOLTZ
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Sumário:
1. No deserto da morte. Pág. 04
2. O bloqueio de Lepso. Pág. 58
3. Na pista dos Antis. Pág. 113
4. Sob uma falsa bandeira. Pág. 173
5. O homem de duas caras. Pág. 229
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1. No deserto da morte
Gerard Lobson quis dizer alguma coisa. Mas quando viu a modificação que se realizava
no homem à sua frente, calou-se, todo apavorado.
Fazia uma hora que estava sentado ali, separado apenas pela escrivaninha estreita,
sobrecarregada de papéis, do homem ao qual pretendia fazer uma proposta. Encontrava-se
numa sala grande, mas abafada pois tinha uma única janela. Felizmente esta era
suficientemente limpa para permitir que um pouco de claridade atingisse a escrivaninha.
Fazia uma hora que estava sentado na cadeira pouco confortável, e, até então, não
dissera outra coisa senão: “Olá, doutor, bom dia. Gostaria de fazer-lhe uma proposta.”
Depois disso, o doutor tomara a palavra e — revelando atividade, agilidade e energia,
que fizeram com que Gerard se sentisse tomado por um grande espanto — elucidara a
proposta que nem chegara a ser formulada. E sem perder tempo, provara a Gerard que aquilo
que este pretendia fazer, e sobre o que nem sequer chegara a falar, não era possível pela
forma pretendida.
Por algum tempo Gerard permaneceu calado, de tão perplexo que se sentiu. E agora, que
o doutor finalmente fazia uma pausa, aconteceu aquilo...
Quando vira o Dr. Zuglert pela primeira vez, acreditara que se tratasse de um homem de
pouco mais de quarenta anos. Tinha o aspecto de uma pessoa que costuma praticar esporte
por passatempo. Seu rosto era sadio e não apresentava rugas. E agora?
Gerard teve a impressão de que alguém sugava tudo que o crânio de Zuglert continha. A
pele do rosto encolheu-se, como se tivesse de preencher o vácuo. Os ossos dos maxilares
tornaram-se salientes, e de repente uma terrível caveira sorria para Gerard. A pele
deteriorava-se a olhos vistos. O moreno sadio e robusto transformou-se num amarelo
repugnante. O queixo ficou caído, e Gerard viu uma fileira de dentes encardidos. Minutos
antes, ainda admirara os dentes bem tratados de Zuglert. Gerard levantou-se de um salto. De
repente teve medo do homem que se mantinha imóvel do outro lado da escrivaninha, e o
fitava com os olhos vidrados. Afastou-se da mesa e dirigiu-se à outra extremidade da sala.
Apavorado, notou que ali não haveria salvação para ele. Só havia uma janela, e a sala ficava no
vigésimo-terceiro andar de um antigo edifício.
Apesar disso, Gerard continuou a retirar-se. Poderia abrir a janela e gritar, pedindo
socorro. Era possível que alguém o ouvisse. Gerard virou-se, segurou a maçaneta da janela e
começou a girá-la. Nesse instante, Zuglert começou a falar:
— Não tenha medo, meu jovem — disse com uma voz apagada, que provocou o assobio
típico de um tuberculoso e foi acompanhada por um acesso de tosse.
Assim que o acesso passou, prosseguiu:
— Preciso do seu auxílio, Mr. Lobson. Será que o senhor poderia ajudar-me a levantar?
Gerard soltou um suspiro de alívio. Nem sequer conseguia levantar-se só. Queria fazer
com que ele, Gerard, o ajudasse a pôr-se de pé, para depois enlaçar seu pescoço com as mãos.
Gerard viu a porta às costas de Zuglert. Se conseguisse chegar lá, estaria livre do perigo.
Zuglert voltou a falar, o que lhe custava um esforço enorme, pois as palavras saíam
hesitantes. Muitas vezes uma tosse seca e ofegante interrompia sua fala.
— ...importante para a Terra, jovem... — entendeu Gerard. — Todos devem ser
prevenidos... Meu exemplo prova...
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Zuglert disse mais que isso, mas Gerard não lhe deu atenção. Acenando com a cabeça,
deslocou-se em direção à escrivaninha. Deu uma expressão amável ao rosto, para que Zuglert
acreditasse que pretendia ir em seu auxílio.
— ...solução alcoólica de que ninguém desconfia... — ouviu Gerard.
Naquele instante aproximava-se da escrivaninha.
Com um enorme salto contornou-a. Antes que Zuglert compreendesse suas intenções,
segurava a maçaneta da porta e girava-a. A porta abriu-se imediatamente. Saiu correndo, mas
não se esqueceu de segurar a porta com a mão direita e puxá-la. A porta fechou-se
ruidosamente.
Gerard viu-se no corredor de um velho edifício de escritórios. De ambos os lados havia
portas. Estavam todas fechadas. Ninguém ouvira o que se passara na pequena sala ocupada
pelo Dr. Zuglert. Gerard refletiu sobre se convinha falar a alguém sobre a súbita alteração
ocorrida com Zuglert. Lembrou-se de que, por alguma maneira misteriosa, o doutor ficara
sabendo qual era a sugestão que ele, Gerard, pretendia formular, motivo por que afastou a
idéia. Zuglert acabaria contando isso a uma terceira pessoa que viesse ajudar, e era o que
menos convinha a Gerard.
Não; devia deixar Zuglert entregue a si mesmo.
Gerard caminhou pelo corredor, até chegar ao poço do elevador antigravitacional.
Deixou-se cair e suspirou, aliviado. Teve a impressão de ter escapado de um grande perigo.
Mas sabia que jamais conseguiria esquecer o rosto amarelo-cinzento de uma caveira.
***
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II e que tivesse tamanha urgência de falar com ele. Entretanto concordou em receber o
comunicado.
— Transmita a mensagem — ordenou ao autômato. — Aqui fala o Major Kindsom,
comandante da Flórida.
O grande sinal luminoso desapareceu. A tela começou a tremeluzir, e um rosto surgiu. A
visão fez com que Dick recuasse, apavorado. Santo Deus! A cabeça parecia de uma múmia, de
uma caveira em torno da qual alguém tivesse esticado uma pele rugosa.
Os lábios estreitos da caveira abriram-se, e a múmia começou a falar. Teve de fazer um
grande esforço. Levava cinco segundos para pronunciar uma palavra, e sua fala era
acompanhada de um estertor ofegante.
— Peço a quem quer que me ouça para me ajudar! — disse a múmia. — Encontro-me
numa tremenda dificuldade. Sou o doutor Armin Zuglert. Resido em Zanithon, situada em
Lepso. Ajude-me, eu lhe imploro.
Dick voltou a aproximar-se da tela. Com um gesto seguro, pegou o microfone, sem olhá-
lo, e falou:
— O que podemos fazer pelo senhor, Zuglert? Aqui fala o cruzador Flórida. Qual o tipo de
dificuldade que o envolveu?
Sentiu-se impaciente. Achou que Zuglert, que aparentemente estava próximo ao
esgotamento total, demorou a responder.
— Há doze... — principiou Zuglert.
Depois disso, a comunicação foi interrompida. A tela voltou a tornar-se cinzenta, e o
zumbido do receptor cessou. Dick Kindsom assustou-se.
“Que idiota!”, pensou. “De tão fraco que se sente, certamente encostou o braço a uma tecla
e acabou desligando o aparelho. Bem que poderia ter mais cuidado, ainda mais que sua vida está
em jogo.”
Dick chamou o robô de comunicação. O sinal vermelho voltou a surgir na tela.
— Minha comunicação TTT com Firing II foi interrompida — queixou-se Dick. —
Restabeleça o contato.
— Com que aparelho o senhor falou, sir? — perguntou a voz mecânica.
— Não sei — gritou Dick, em tom furioso. — O nome da pessoa que falou comigo é Armin
Zuglert. Caramba! O senhor deve ser capaz de verificar nos seus registros qual é a procedência
de uma mensagem TTT!?
— Naturalmente, sir. Peço alguns segundos de paciência.
Dick aguardou. Depois de algum tempo, a voz voltou a falar:
— A mensagem veio de um dos aparelhos da missão comercial terrana de Firing II, sir.
Quer que a comunicação seja restabelecida?
— É claro que sim.
Dali a alguns segundos o rosto sério, um homem não muito jovem, surgiu na tela. Este
lançou um olhar indagador para Dick.
— Sou o Inspetor Neary, da missão comercial terrana em Firing II — disse. — O que
posso fazer pelo senhor?
Dick não se deu ao trabalho de apresentar-se.
— Onde está Zuglert? — perguntou em tom exaltado.
O inspetor fitou-o com um ar de perplexidade.
— Onde está quem?
— Zuglert — repetiu Dick, em tom impaciente. — O doutor Armin Zuglert, que falou
comigo há trinta segundos, por esse aparelho.
Via-se que a palestra não era do agrado do Inspetor Neary.
— Escute aí, rapaz — principiou. — Além de iniciar a palestra sem dizer bom-dia e sem
apresentar-se, o senhor me vem com tolices. Receio que, quando seus superiores...
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— Não me venha com essa história de superiores — gritou Dick, aborrecido. — Aqui fala
o Major Kindsom, comandante da Flórida. Há pouco o Dr. Zuglert me transmitiu uma
mensagem TTT, e o sistema de comunicação afirma que o chamado foi feito desse aparelho.
Zuglert estava exausto. Transmitiu-me um pedido de socorro. A comunicação foi
interrompida. Traga o Dr. Zuglert para junto do aparelho.
Neary resignou-se ao inevitável. Como simples inspetor não se permitiu exprimir sua
contrariedade perante um major. Mas fez pé firme na afirmativa de que Zuglert não usara seu
aparelho. Ainda disse que, na missão comercial terrana, nunca fora visto um homem que
correspondesse à descrição fornecida por Dick.
— Nunca ouvi esse nome, major — concluiu. — Quase estou inclinado a acreditar que o
senhor foi vítima de uma mistificação.
Dick percebeu que não conseguiria nada. Interrompeu a comunicação e voltou a chamar
o robô. Este voltou a afirmar que o chamado TTT viera da missão terrana. Dick sabia que seria
inútil voltar a chamar Neary. Ficou refletindo por algum tempo sobre se ele mesmo deveria
tomar alguma providência em relação ao caso Zuglert. Chegou à conclusão de que sua tarefa
mais urgente consistia em levar a Flórida de volta à Terra, onde aguardaria novas ordens. Por
isso fez uma ligação urgente em código com uma das unidades da frota terrana, estacionada
nas proximidades, e apresentou um relato minucioso do incidente. Pediu ao comandante da
nave capitania que fizesse o possível para ajudar Zuglert.
Só depois disso prosseguiu na atividade em que fora interrompido pelo misterioso
chamado. Preparou a transição e programou os dados que se tornavam necessários,
introduzindo-os no dispositivo de pilotagem automática. Era uma operação que podia fazer
até de olhos fechados. Seus pensamentos ficaram presos a Zuglert. Receava pela sua vida. Não
conseguia desvencilhar-se da imagem que mostrava o rosto de múmia.
O fato de a comunicação ter sido interrompida deixou-o bastante preocupado. Quando
apresentasse seu relatório na Terra, não teria muita coisa a dizer.
Naquele momento, ainda não sabia que o pouco que poderia dizer desencadearia, nos
próximos dias e semanas, uma ação importante do governo do Império Solar.
***
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gigantesca escrivaninha, sobre cuja borda apenas sobressaía o rosto rosado e suarento do
coronel.
Ron entrou e acomodou-se numa das poltronas colocadas à frente da escrivaninha. Nike
Quinto gemia enquanto se movia. Depois de algum tempo os ombros também apareceram
acima da escrivaninha.
— O senhor sabe como vai minha saúde, Landry — principiou sem o menor intróito. —
Por isso peço-lhe que fique quieto, preste atenção e não me contradiga. Minha pressão
sangüínea chegou ao limite máximo. Se eu me aborrecer, provavelmente morrerei na hora.
Assim era Nike Quinto, com sua voz aguda e suas lamentações incessantes a respeito de
seu estado de saúde. Ron Landry sabia que, na verdade, o coronel era tremendamente
saudável.
— Sim, senhor — respondeu em tom obediente.
Nike Quinto levantou-se.
— Não fique dizendo “sim, senhor”. Afinal, não lhe fiz nenhuma pergunta — esbravejou.
Acalmou-se tão depressa como se enfurecera e prosseguiu:
— Amanhã de manhã o senhor partirá para Lepso. Recebemos informações estranhas de
lá.
Enquanto Ron concentrava parte de sua imaginação para descobrir quem ou o que seria
Lepso, Nike Quinto relatou o que se passara com Dick Kindsom, a bordo da Flórida. Ron ficou
sabendo que Lepso e Firing II eram a mesma coisa, e esse fato deu asas à sua fantasia. Mas não
compreendia...
— Quer dizer que o senhor já sabe o que tem a fazer, não sabe? — perguntou Quinto,
com sua voz aguda.
— Sim, senhor — respondeu Ron, prontamente. — Precisamos localizar Zuglert.
Nike Quinto soltou um gemido e afundou na poltrona.
— Ai, meu coração! — lamentou-se. — Sabia que o senhor não compreenderia. Por que
não me deram oficiais mais competentes? Caramba! Eu não o mandaria para Lepso por causa
de Zuglert. O que seria de nós se por causa de cada doente, que vive se lamentando,
puséssemos em ação nossos agentes especiais? Não é disso que se trata, Landry.
“O que será?”, pensou Ron.
Nike Quinto não teve pressa. Passou a mão pela testa e contemplou a palma, molhada de
suor. Só depois disso, explicou:
— Nos últimos meses surgiram em Lepso outras figuras mumificadas como a de Zuglert.
Mas as figuras não aparecem nunca duas vezes. A impressão que se tem é que as pessoas
magricelas são transportadas para algum lugar, assim que surgem, e substituídas por outras.
Não sabemos qual é o sentido disso. Parte de seu trabalho consistirá em decifrá-lo. Para falar
com franqueza, devo dizer que ainda não sei o que pensar a esse respeito. Talvez a situação
não represente nenhum perigo. Mas é possível que represente. Em algum lugar, lá em cima...
Quinto apontou para o teto e prosseguiu:
— ...o caso Zuglert levantou muita poeira. A ordem de mandar um dos... bem, dos meus
homens para Lepso veio pela linha direta que liga o administrador com minha pessoa
insignificante.
Ron fez um esforço para controlar-se. Teve vontade de rir. Ficou satisfeito em saber que,
na pressa, Nike Quinto esteve prestes a dizer “um dos meus melhores homens”. Mas o fato de
que o coronel recebera a ordem diretamente de Perry Rhodan não deixou de produzir seu
efeito em Ron.
— Quer dizer que o senhor irá para ali — disse Nike Quinto, apontando para uma porta
lateral do gabinete — a fim de familiarizar-se com tudo que sabemos sobre o misterioso caso
de Lepso. O programa inclui uma matriz da mente consciente do Major Kindsom, comandante
da Flórida, que manteve a palestra TTT com Zuglert. Depois do treinamento, terá a impressão
de que foi o senhor, e não Kindsom que manteve a palestra.
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Ron Landry levantou-se e dirigiu-se para a porta lateral, que se abriu à sua frente. Fitou a
sala pouco iluminada, em cujo interior os aparelhos de treinamento hipnótico esperavam por
ele.
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Dali a três dias, Ron Landry saiu da nave cargueira Efraim, que numa viagem rápida mas
pouco confortável o levara ao espaçoporto da cidade de Zanithon, em Lepso. Da rampa de
carregamento precipitou-se imediatamente para dentro do movimento confuso da metrópole.
Notou que Lepso tinha uma peculiaridade: não havia inspeção alfandegária ou controle
de passaportes, não se exigiam atestados de saúde ou outro qualquer. A pessoa saía de uma
espaçonave, como se sai de um táxi, e começava a andar por aí.
O governo de Lepso reconhecera em tempo a vantagem da posição galáctica do planeta, e
providenciara para que as numerosas naves, que percorriam as rotas próximas, descessem em
Lepso, a fim de comerciar com parte das mercadorias que levavam. Para atrair os mercadores,
deve-se criar o menor número possível de problemas para o acesso ao local de negócios; de
preferência não se deve criar nenhum problema. Por isso não se exigiam nos espaçoportos de
Lepso as formalidades, que nos outros pontos da Galáxia eram obrigatórias e naturais.
Evidentemente, o governo sabia que dessa forma não atraía a Lepso apenas comerciantes
honestos. Isso não lhe doía na consciência, pois cobrava o imposto de vendas tanto sobre os
negócios honestos como sobre os desonestos. E aquilo que se arrecadava — o dinheiro — era
a única coisa que tinha algum valor em Lepso.
Lepso era o segundo mundo-satélite de uma estrela amarela, semelhante ao nosso Sol. A
gravitação superficial do planeta era quase igual à da Terra. Graças à órbita próxima ao astro
central, no planeta reinavam durante todo o ano temperaturas como as que reinam no verão
entre Roma e Cairo.
No curso dos séculos, a política imigratória liberal do governo de Lepso fizera com que
representantes de quase todas as raças galácticas se fixassem nesse mundo. Em Lepso havia
tópsidas, os seres-lagarto do planeta Topsid, os swoons, pequenas criaturas em forma de
pepino vindas de Swoofon, gigantescos naats de três olhos, provenientes do sistema solar
arcônida, e inúmeras outras criaturas, parte das quais vindas de mundos que ainda
conservavam sua independência. Mais ou menos a metade era humanóide, enquanto a outra
metade era formada por seres não-humanos.
Era neste mundo que Ron Landry pisava pela primeira vez na vida. Há muito tempo
tivera o desejo de visitar Lepso. Mas nunca teria sonhado que sua profissão lhe propiciaria a
realização desse desejo. Ao que tudo indicava, entre todos os mundos da Galáxia, Lepso era
aquele que menos precisava do auxílio do Fundo Social Intercósmico de Desenvolvimento.
A pista asfaltada do espaçoporto terminava junto a um traço verde de verniz
fosforescente. Além desse traço, ficava a rua; era um monstro de rua, que tinha pelo menos
duzentos metros de largura. Seguindo-a pela direita, chegava-se à cidade. Logo trás do traço
verde, com as extremidades dos veículos bem acima deste, via-se uma fileira de planadores,
em que havia letreiros, geralmente redigidos em língua arcônida, segundo os quais esses
veículos poderiam ser alugados por pouco dinheiro, juntamente com os motoristas.
Ron resolveu que iria à cidade num desses táxis. Duvidou de que houvesse outra
possibilidade. Mas antes queria observar o movimento do tráfego. Uma curiosa confusão de
veículos deslocava-se numa velocidade infernal e uniforme em ambos os sentidos. Ron
calculou que a velocidade dos veículos devia ser de cerca de duzentos quilômetros por hora.
Isso significava que a rua devia ter sido dotada de um sistema automático de direção do
tráfego pelo rádio. Os carros, que haviam sido adaptados a esse sistema, pertenciam a todas as
marcas conhecidas da Galáxia. Viam-se os elegantes planadores arcônidas com suas janelas
largas e os Fords da Terra, um pouco menos graciosos, mas em compensação mais seguros.
Viam-se veículos antiquados, bastante altos, que ofereciam grande resistência ao ar que
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cobria a rua e provocavam um furacão em sua esteira, bem como veículos achatados, em
forma de barco, vindos dos mundos cuja atmosfera densa exigia esse formato.
De repente Ron Landry pôs-se a rir. Não tinha motivo para isso, e nem sabia por que
estava rindo. Era esquisito ver essa coleção multiforme de inteligências galácticas correr
vertiginosamente por ali, e imaginar que o único motivo dessa tresloucada pressa, era o
dinheiro, já que este, ou melhor, o lucro, representava a única finalidade de quem vinha a
Lepso.
Um rosto também sorridente inclinou-se para fora do táxi-planador que se encontrava
próximo de Ron.
— Ei, homem da Terra — gritou. — Por que está rindo? Está interessado numa viagem à
cidade, mister?
Ron fitou-o com uma expressão de perplexidade. O homem falava em inglês. Ron
aproximou-se do veículo.
— Depende do preço — respondeu.
— Dois solares até o centro da cidade, sir — disse o motorista, prontamente.
Ron franziu a testa.
— Desde quando os preços em Lepso são calculados em moeda terrana?
O motorista hesitou um pouco.
— Santos deuses dos bosques — disse finalmente, em tom indiferente. — A gente pega
aquilo que consegue, e é mais fácil conseguir o que as pessoas trazem no bolso, não o que têm
de cambiar.
Ron viu nisso uma cativante lógica mercantilista.
— O senhor veio do planeta Goszul, não é verdade? — perguntou, dirigindo-se ao
motorista.
Agora foi a vez deste ficar admirado.
— “Santos deuses dos bosques” — respondeu Ron, com um sorriso. — Não conheço
nenhum outro lugar em que estas divindades costumam ser invocadas. Meus parabéns. O
senhor fala perfeitamente nossa língua, sem o menor sotaque.
O motorista fez com que uma porta se abrisse, como se já tivesse certeza de que Ron
seria seu passageiro.
— Isto também pertence ao negócio — disse. — Todos gostam de que os outros falem
em sua língua, se possível sem sotaque. Falo uma porção de línguas, quase todas
impecavelmente.
Ron fez menção de entrar no táxi. Mas, naquele instante, rolou pela rua, em direção ao
traço fosforescente, um veículo que despertou sua atenção. Era, em essência, uma caixa negra
cúbica de quatro metros de aresta, com uma cabina de comando colada à parte anterior. Dos
dois lados do cubo havia, além das escotilhas fechadas com pesados ferrolhos, algumas janelas
amplas, atrás das quais Ron viu um líquido verde que se agitava preguiçosamente.
— É um pisalama — disse o motorista. — Ali... atrás do senhor.
Ron virou-se. Mais um cubo deslocava-se em direção à periferia do espaçoporto. Era bem
menor que o veículo e, segundo parecia, consistia em material elástico. Na parte superior
desse cubo, também havia uma janela, e atrás dela via-se o mesmo líquido verde. Por uma
fração de segundo Ron viu um vulto salpicado de marrom-claro e escuro. Alguma coisa
parecia boiar no líquido verde.
O pequeno cubo aproximou-se do estranho veículo. A escotilha abriu-se
automaticamente. O novo passageiro ergueu-se do solo e pairou para dentro da abertura. A
escotilha voltou a fechar-se. Depois de algum tempo, Ron viu atrás das janelas do veículo o
mesmo vulto salpicado que observara antes. Ao que parecia, havia uma eclusa no interior da
caixa, e o estranho passageiro se havia desvencilhado do traje espacial em forma de cubo.
Dentro do líquido verde que enchia o veículo, parecia sentir-se bem.
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Ron Landry ainda estava olhando, quando o cubo voltou a colocar-se em movimento e
começou a deslocar-se pela rua.
— O que é mesmo? — perguntou, dirigindo-se ao motorista.
— Um pisalama ou pisalamense — disse o motorista de táxi. — O nome verdadeiro é
diferente, desde que reproduzido por um transec. Mas é muito complicado, e por isso
inventamos essa pronúncia.
Ron entrou no táxi.
— De onde vêm essas criaturas?
— De Pisalam. É um mundo que deve ficar além do centro da Galáxia. Ninguém sabe
como souberam da existência de Lepso. O fato é que estão aqui e, pelo que se diz, são
negociantes muito hábeis.
Ron ficou satisfeito com a informação que acabara de lhe ser dada. O táxi pôs-se em
movimento. Ron logo notou que o motorista sempre ficava do lado direito da estrada, onde
podia andar tão devagar como quisesse.
— Por que não segue pelo centro da estrada? — perguntou.
— Não sabia que o senhor tem tanta pressa em chegar à cidade — disse o homem de
Goszul. — Não tem o aspecto de uma pessoa que esteja com pressa.
Ron procurou explicar-lhe que realmente não estava. No entanto, ficou admirado ao
notar que o motorista seguia muito devagar. Caso corresse, poderia pegar logo outro freguês e
ganhar mais dinheiro.
— O senhor não deixa de ter razão — confessou o motorista. — Acontece que não gosto
dessa agitação. Prefiro ganhar um pouco menos. Aliás, não sei o que deu de repente em toda
essa gente.
Ron aguçou o ouvido.
— De repente? Antigamente não era assim?
Um sorriso amargurado surgiu no rosto do homem de Goszul.
— Sempre foram malucos — disse, frisando não ser um habitante de Lepso. — Mas
antigamente os carros só andavam à metade ou à quarta parte de sua potência pelas faixas
centrais. Hoje todos desenvolvem a velocidade máxima permitida pelo sistema de controle.
Ninguém tem tempo a perder. Todos querem chegar o quanto antes a algum lugar e sair o
mais depressa de lá.
Ron refletiu.
— Quando foi isso? — perguntou. — O que quero saber é quando a situação se
modificou.
O motorista refletiu por algum tempo.
— Deve ter sido há uns três ou quatro meses de Lepso — disse. — Não sei exatamente. A
mudança foi muito rápida; aconteceu em poucos dias.
Não quis dizer mais que isso. E Ron tinha tanto assunto para reflexões, que podia
dispensar outras perguntas. A viagem ao centro da cidade correu em silêncio. Ron pagou a
corrida e desceu. Tinha certeza de que nunca mais veria o motorista de táxi.
Escolhera ao acaso o local em que descera. Sua suposição de que, no centro da cidade,
devia haver uma porção de hotéis revelou-se correta. Ainda mergulhado em reflexões,
atravessou uma ampla porta de vidro, que se abriu automaticamente à sua frente, e viu-se
num amplo hall. Olhou em torno para descobrir o robô de recepção, mas notou não haver
nenhum robô. À sua esquerda havia um amplo balcão, e sobre este via-se uma enorme placa
que, em dez línguas diferentes e quatro caracteres de escrita diversos, avisava que este era o
local de recepção. Do outro lado do balcão havia uma mulher, que fitou Ron com um sorriso
amável.
Ron aproximou-se.
— Bom dia, cavalheiro — disse a mulher num inglês que não era tão impecável como o
do motorista de táxi.
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Era uma araucana, ou seja, uma nativa do planeta Arauca. Pelo que Ron pôde notar,
correspondia exatamente à imagem que se costumava fazer na Galáxia sobre as verdadeiras
araucanas: era loura, de olhos negros, bela, selvagem e imprevisível.
— Quero um bom quarto, bem grande — disse Ron, em tom áspero.
Não gostava que uma mulher lhe sorrisse sem que ele desse motivo para isso. Sabia que
era bonito: louro e alto, até muito alto, e de ombros largos.
A araucana parecia não perceber a rejeição que havia no tom de voz de Ron. Seu sorriso
tornou-se ainda mais intenso. Trajava segundo uma moda que Ron não conhecia, mas que não
pôde deixar de considerar fina e sofisticada.
— Só temos quartos bons e grandes — respondeu.
Ron deu de ombros, num gesto de indiferença.
— Está bem. Nesse caso qualquer um serve.
A mulher tirou uma espécie de catálogo de sob o balcão. Virou-o, abriu a primeira página
e empurrou-o para junto de Ron.
— Quer fazer o favor de escolher? — cochichou.
Ron estudou o registro. A variedade das ofertas o confundia. Havia aposentos cúbicos,
retangulares, semi-esféricos e esféricos. Havia quartos de atmosfera uniforme e outros em
que a mesma formava camadas sobrepostas. Havia recintos em que a gravitação era regulada
de 0,1 a 5 vezes o normal. Havia aposentos com temperaturas que variavam de menos setenta
até mais trezentos graus centígrados, e inúmeras outras variantes.
Depois de algum tempo, Ron encontrou aquilo que procurava.
— Quero este — disse, apontando para a linha correspondente.
A araucana nada teve que objetar. Sem que ninguém lhe pedisse, declarou-se disposta a
mandar a bagagem de Ron para o quarto, muito embora a mesma ainda tivesse de ser enviada
do espaçoporto. Depois disse alguma coisa que Ron achou muito estranha, principalmente
porque não compreendeu:
— Quero dar-lhe um conselho, cavalheiro. Se estiver aqui para tratar de negócios e
quiser ser bem-sucedido, escolha sempre a bebida adequada.
***
Quando abriu a porta do quarto com a chave codificada, Ron ainda estava mergulhado
em pensamentos. Entrou sem levantar os olhos, fechou a porta e deixou-se cair numa
poltrona, que ficava junto a uma mesa baixa, à direita da entrada.
Só depois de algum tempo viu a caixa que estava instalada no quarto. Atrás da grossa
vidraça uma sombra matizada de cinza-escuro e claro movia-se dentro de um líquido verde
viscoso.
Ron assustou-se, não pelo quadro que se lhe ofereceu, mas pelo fato de que fora tolo e
descuidado a ponto de cair numa armadilha — isso caso o pisalama lhe quisesse fazer alguma
coisa.
— Não tenha medo — disse uma voz tranqüilizadora. — Não vim para fazer-lhe mal.
De repente, Ron ficou furioso.
— Como conseguiu entrar aqui? — perguntou.
A voz hesitou por algum tempo.
— Os habitantes de Pisalam dispõem de certas faculdades fora do comum — disse. —
Acho que isso basta para explicar minha presença.
Ron tinha a impressão de que o traje espacial cúbico continha um transec, isto é, um
aparelho que traduz as palavras de uma língua para qualquer outra, desde que seus bancos de
dados sejam alimentados com um volume suficiente de informações. Só assim se explicava
que Ron e o nativo de Pisalam pudessem conversar. Mas o major não sabia explicar como o
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ser estranho conseguira perceber o temor que sentira, e como lhe fora possível penetrar por
uma porta trancada por uma fechadura eletrônica.
— O que deseja? — disse Ron, em tom áspero.
— Talvez o senhor esteja lembrado de que, junto ao espaçoporto, nossos táxis ficaram
próximos um ao outro — disse o ser estranho. — Passei perto do senhor, e então... então
percebi que o senhor veio a Lepso para procurar uma pessoa desaparecida.
Ron sentiu-se perplexo.
— Tolice — disse.
O alto-falante do transec invisível transmitiu uma espécie de risada irônica.
— Por que quer negar? — perguntou a voz. — Não somos telepatas no verdadeiro
sentido da palavra. Mas conseguimos identificar perfeitamente desejos e pensamentos
intensos dos seres que se encontram nas vizinhanças. Tenho certeza absoluta de que no seu
caso não estou enganado.
Ron recostou-se na poltrona.
— Seja lá o que o senhor quer dizer — Falou — tente ser objetivo. O que deseja de mim?
A caixa concordou.
— É uma ótima idéia. Preste atenção.
Tenho que dar uma explicação um tanto prolongada. O senhor não conhece meu mundo
natal, Pisalam; ninguém conhece. Por isso não pode saber que somos um povo muito pequeno.
Para usar sua linguagem numérica, direi que ao todo não somos mais que uns oito mil seres.
Não é que sejamos uma raça em decadência. Nunca fomos muito mais seres, e nunca fomos
muito menos. O número reduzido de nossa raça fez surgir um relacionamento íntimo entre os
membros da mesma. Quando dez deles resolveram vir a Lepso, ficamos muito tristes e
desconfiados. Apesar disso, essa viagem tornou-se necessária. É que daqui, de Lepso,
poderemos obter certas coisas que em outra parte só conseguiríamos com muita dificuldade,
ou não conseguiríamos de forma alguma. Por isso deixamos que os dez seres, que haviam
resolvido vir a este mundo, partissem. Entretanto sempre ficamos em contato com eles.
“Acabamos de saber que um deles desapareceu. Isso provocou muita tristeza em nosso
povo. Cinco seres de nossa raça saíram à procura do desaparecido. Não podemos aceitar
passivos o desaparecimento. A criatura está em perigo, e temos de ajudar. O senhor
compreende?”
Ron confirmou com um gesto.
— Sem dúvida. Apenas não vejo o que eu tenho a ver com isso.
— É simples. O senhor também está à procura de um indivíduo desaparecido. Será que,
caso desse com a pista do ser vindo de Pisalam, poderia avisar-nos?
Ron não teve a menor objeção.
— Como farei para entrar em contato com os senhores?
— Não haverá o menor problema. No momento em que descobrir a pista, o senhor
provavelmente ficará tão surpreso que perceberei seu impulso mental, uma vez que já sei
identificá-los. Quando isso acontecer, entrarei em contato com o senhor o mais depressa
possível.
— Está bem — disse Ron. — O senhor deve saber que provavelmente não poderei lazer
nada para ajudá-lo. O desaparecimento de dois seres não prova que tomaram a mesma
direção. É possível que eu encontre a pessoa que procuro, sem dar com o menor vestígio do
indivíduo de sua raça.
— Isso pode acontecer — disse o ser de Pisalam. — Apenas estou aproveitando uma das
muitas possibilidades que tenho pela frente. Sinto-me satisfeito pelo fato de o senhor me ter
ouvido e mostrar-se disposto a ajudar. Espero que um dia também lhe possa ser útil.
Ron esteve a ponto de formular uma pergunta. Porém, naquele instante, o ser estranho
desapareceu juntamente com o liquido verde e a caixa em forma de cubo. Ron ficou só no seu
quarto.
14
Levantou-se com um suspiro. “Mais um desses teleportadores”, pensou um tanto
contrariado. “É assim que sempre encerram uma conversa. Desaparecem de repente, de forma
que ficamos sem possibilidades de formular outras perguntas.”
Ron Landry não estava nem um pouco satisfeito consigo mesmo. Desde o momento em
que se encontrava em Lepso, tinha a impressão de não estar seguindo pistas, mas de
encontrar-se preso a um fio, que estava sendo puxado por outra pessoa.
Isso não podia continuar assim. Ron resolveu entrar em atividade, dando início, sem
mais demora, à execução de sua tarefa. Naquele instante ouviu um zumbido junto à porta. A
mão direita de Ron apalpou a pequena arma que trazia no cinto. Depois disso procurou
inteirar-se de como abrir a porta. Encontrou um quadro de comando na borda da mesinha de
cabeceira que se achava junto à cama larga. Comprimiu o botão sobre o qual estava desenhada
uma porta.
A porta abriu-se. Viu uma araucana com uma bandeja, sobre a qual havia dois copos e
várias garrafas.
— Acho que o senhor não se esqueceu do meu conselho, sir? — indagou. — Escolhi a
bebida apropriada para o senhor.
Viu os dois copos, que se destacavam provocadoramente na beira da bandeja, e a fileira
de garrafinhas reluzentes com os rótulos amarelo-violeta. Mal acabara de dar-se conta de que
em Lepso deixara de desempenhar o papel de ator para transformar-se em marionete, quando
aparecia mais alguém que lhe dizia o que devia fazer.
Era demais!
— Leve isso e beba sozinha — gritou para a moça, esforçando-se para reprimir a cólera.
— Quando quiser tomar alguma coisa, saberei pedir. E quando isso acontecer, quero que a
bebida me seja fornecida pelo serviço de entrega nos apartamentos. Entendido?
O sorriso desapareceu do rosto da moça. Ron ainda a viu estreitar os olhos e fitá-lo com
uma raiva incontida. Depois disso, a araucana virou-se rapidamente e saiu.
Ron comprimiu outro botão do quadro de comando e ouviu a porta fechar-se com um
ruído surdo.
— Lepso! Que mundo louco é este! — balbuciou.
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3
Na noite do mesmo dia, Ron Landry descobriu onde ficava o escritório do Dr. Zuglert e
resolveu que ainda nessa noite faria uma visita ao local. Antes disso tivera uma palestra de
telecomunicador com a unidade mais próxima da frota terrana e soubera que nada mais se
descobrira sobre o paradeiro de Zuglert.
Os dados pessoais do doutor eram conhecidos, já que ele os tivera de fornecer à polícia
de Lepso, a fim de obter o visto permanente. Zuglert era médico-biólogo, que dedicara suas
pesquisas à obtenção de novas substâncias medicinais. Suíço de nascimento, possuía o título
de doutor fornecido pela Universidade de Bolonha. Tinha cinqüenta e dois anos e, até o
momento de seu desaparecimento, vivera quatorze anos e meio em Lepso. Conforme constava
à polícia, durante esse tempo só deixara Zanithon por três ou quatro vezes. Tinha escritório na
Rua Oitenta e Seis. Todos sabiam que um homem como Zuglert não poderia deixar de ter um
laboratório. Mas ninguém sabia onde este se localizava.
Aliás, a polícia de Lepso recusou-se a realizar diligências destinadas a encontrar o
desaparecido. Argumentava que, em Lepso, qualquer pessoa tinha o direito de desaparecer e
reaparecer à vontade, e que era bem possível Zuglert considerar qualquer busca como uma
restrição à sua liberdade individual.
O oficial com o qual Ron Landry estava conversando acrescentou, finalizando:
— É claro que isso não passa de uma desculpa barata, major. Essa gente simplesmente
não quer incomodar-se com o caso. Talvez as investigações venham revelar algo que eles
preferem ver sepultado.
Essas palavras não saíram da cabeça de Ron, enquanto este se dirigia à Rua Oitenta e
Seis. Uma araucana encontrava-se atrás do balcão de recepção, no hall de entrada. Era tão bela
como a que quisera levar Ron a tomar alguma coisa. Mas não lhe sorriu. Provavelmente fora
avisada pela colega.
Ron foi a pé. Já ficara escuro, e as fontes de luz de todas as cores inundavam a cidade.
Nos vinte minutos que levou para circundar metade da praça que formava o centro da cidade
de Zanithon viu a maior variedade de habitantes da Galáxia da sua vida.
Durante o caminho usara todos os truques, que costumam ser ensinados a um agente
treinado. Sentia-se, assim razoavelmente seguro de não estar sendo seguido. Pegou um táxi,
dirigido por um gigantesco naat, que meteria medo a qualquer pessoa, e pediu que este o
levasse à Rua Oitenta e Quatro. Voltou a caminhar para percorrer os últimos dois quarteirões.
A Rua Oitenta e Seis era uma rua típica de edifícios de escritório. As velhas construções
dos mais variados estilos erguiam-se de ambos os lados, e os milhares de anúncios luminosos
tornavam dispensável qualquer tipo de iluminação pública. A Intensidade do tráfego de
veículos era tão Impressionante quanto em outros lugares da cidade. Em compensação, o
número de pedestres era reduzido.
No edifício em que ficava o escritório de Zuglert, algumas janelas continuavam
iluminadas. O fato divertiu Ron.
“Deve ser alguém que corre tanto atrás do dinheiro que chega a trabalhar até de noite”,
pensou.
Subia os amplos degraus que levavam à gigantesca entrada fechada por uma porta de
vidro. Não se admirou por ter de abri-la manualmente. O mecanismo de abertura era
desligado depois das horas do expediente.
Atrás da porta de vidro ficava um hall de recepção igual ao de outros edifícios desse tipo,
com o robô de informações à esquerda e a fileira de poços de elevadores antigravitacionais à
direita. Ron não tinha motivo para formular qualquer pergunta ao robô. Sabia que o escritório
de Zuglert era no vigésimo-terceiro andar, sala número 23.048. Comprimiu o botão
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correspondente ao número 23 no quadro de comando do elevador mais próximo e aguardou
até que a luz de controle se acendesse. Entrou no poço e teve certeza de que a sucção suave do
campo de gravitação artificial o atingiria e o levaria ao destino por ele escolhido. Ron não
sentiu nenhuma sucção: caiu. Não houve nenhum campo gravitacional, e Ron passou por
aquilo que acontece com qualquer pessoa que salta para dentro de um poço. A velocidade da
queda foi aumentando. Ron entesou os músculos para absorver o inevitável impacto.
Seguiu-se um baque, e Ron Landry, membro da Divisão III, foi colocado fora de combate.
***
Quando recuperou os sentidos, viu um rosto moreno bem à sua frente, no qual um par de
olhos cinzentos também o fitavam com uma expressão desconfiada. A testa, circundada por
uma cabeleira negra muito bem tratada, não era muito alta. O homem que o observava estava
ajoelhado.
— O senhor teve uma sorte inacreditável — disse o homem.
Ron procurou erguer-se. Sentiu dores que não conseguiu localizar. A cabeça funcionava
perfeitamente, mas o resto do corpo parecia ter sido atingido por um martelete mecânico.
— Onde estamos? — perguntou, totalmente confuso.
— No vigésimo-terceiro andar — respondeu o homem de cabelos negros. — Na sala
número dois-três-zero-quatro-oito. Acho que isto não significa nada para o senhor...
Ron ergueu-se abruptamente e interrompeu seu interlocutor em meio à frase.
— Por que vim parar justamente aqui?
O homem de cabelos negros fitou-o com uma expressão de perplexidade.
— Presenciei a queda. O senhor usou o poço que não estava em funcionamento. Não viu
a placa de aviso? Desci ao portão, usando outro poço, e trouxe o senhor para cima. Uma vez
que estava a caminho desta sala, resolvi trazê-lo comigo. No momento em que pretendia
chamar um médico, o senhor recuperou os sentidos.
Ron sentou-se. Não conseguia ver toda a sala. Mais atrás havia uma lâmpada colocada a
cerca de um metro e meio de altura, que derramava uma luz ofuscante sobre ele e o homem
de cabelos negros. Fora o círculo de luz projetado pela lâmpada, tudo estava mergulhado em
escuridão. Ron não se sentiu muito à vontade.
— Está sentindo alguma coisa? — perguntou o homem de cabelos negros, em tom
preocupado. — Será que precisa de um médico?
Ron balançou a cabeça. Tinha certeza de que a queda só lhe causara algumas escoriações.
Mas não tinha tanta certeza sobre outras coisas...
— Quem é o senhor? — perguntou.
— Meu nome é Gerard Lobson — respondeu o homem de cabelos negros. — Sou
proprietário desta sala.
— O senhor disse que o número da mesma é dois-três-zero-quatro-oito?
— Isso mesmo.
— Desde quando é proprietário da sala?
Gerard Lobson franziu a testa; parecia não gostar da pergunta.
— Há... há quatro anos — respondeu cm tom hesitante.
— Por que está mentindo? — perguntou Ron.
Lobson recuou. Arregalou os olhos. De repente pareceu sentir um medo tremendo.
— Por que estou mentindo? — respondeu ofegante. — Não estou mentindo coisa
alguma. Por que...?
— Até poucos dias atrás esta sala pertencia ao doutor Zuglert — disse Ron, em tom
áspero. — Exijo...
17
Foi interrompido por um ruído. Tinha-se a impressão de que alguém arranhava o soalho,
muito além da lâmpada que produzia a luz ofuscante. Antes que Ron tivesse tempo de fazer
qualquer movimento, ouviu-se uma voz grave e retumbante.
— Basta! Acendam a luz.
As luzes do teto acenderam-se. Depois do primeiro momento de confusão, Ron deu-se
conta de que o desconhecido falara em arcônida. Virou a cabeça e viu uma escrivaninha à sua
direita. Sobre essa escrivaninha encontrava-se a lâmpada que o ofuscara. Atrás da mesa havia
três pessoas. Duas delas eram robustas e a outra, magra, enrugada e ainda mais alta que as
outras.
Ron compreendeu que caíra numa armadilha.
***
Um dos homens de ombros largos saiu de trás da escrivaninha. Ron viu que tinha alguma
coisa na mão. Inclinou-se sobre ele, estendeu a mão e disse: — Tome isto.
Continuava a falar em arcônida. Entre o polegar e o indicador da mão direita segurava
uma garrafinha, na qual se via um rótulo colorido em amarelo-violeta.
A recordação teve a força de um impacto em Ron. Era a mesma substância que a
araucana lhe oferecera no hotel. Era estranho que tanta gente desejasse que ele sorvesse tal
bebida.
Dirigiu-se a Gerard Lobson, que se afastara, permanecendo de joelhos.
— O que é que ele está querendo? — perguntou em inglês.
Gerard parecia surpreso.
— Diz que o senhor deve tomar isso.
— Por quê?
Gerard voltou a mostrar medo.
— Pelo amor de Deus, beba sem formular perguntas. Ele...
Com a mão direita, Ron afastou o braço do homem de ombros largos.
— Tome você! — gritou. — Eu mesmo costumo escolher minhas bebidas.
Continuava a falar em inglês, mas tinha suas dúvidas de que conseguisse convencer os
três desconhecidos por muito tempo de que não sabia falar o arcônida. Evidentemente dois
deles eram saltadores, ou seja, membros da raça dos mercadores galácticos, que estavam
metidos em quase tudo quanto era negócio. O terceiro homem talvez fosse um ara. Os aras
eram uma raça aparentada à dos saltadores, que se dedicara às ciências, especialmente às
ciências biomédicas, com o mesmo entusiasmo que os saltadores demonstravam em relação
aos negócios.
O saltador que estava inclinado sobre Ron ficou furioso.
— O senhor vai beber isto! — gritou em inglês.
“Se não sentisse tantas dores pelo corpo, eu lhe mostraria o que vou e o que não vou fazer”,
pensou Ron, dominado pela cólera.
Procurou pôr-se de pé. Sentiu-se admirado ao notar que o saltador não fez o menor
esforço para impedi-lo. Este chegou até a afastar-se. Ron procurou abafar as dores e encostou-
se à parede. O saltador continuava a segurar a garrafinha.
— O que é isso? — perguntou Ron.
— Licor — respondeu o saltador. — Tome.
— O senhor quer que eu morra dentro de três segundos, não é? — perguntou Ron, em
tom irônico.
O saltador balançou a cabeça.
— Se quiséssemos matá-lo poderíamos usar um método menos inconveniente que o
veneno — disse.
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Era verdade. Realmente, Ron não acreditava que na garrafinha houvesse um veneno
mortal. Devia conter alguma droga que eliminasse a vontade de Ron, e fizesse com que o
terrano se tornasse loquaz ou produzisse um efeito análogo.
Gerard Lobson suplicou com a voz trêmula que Ron tomasse o líquido, mas este se
manteve inflexível.
— Não — disse. — É minha última palavra.
O ara que se encontrava atrás da escrivaninha ficou possesso. Ron notou um movimento
rápido nos fundos da sala. Empurrando-se com o ombro, atirou-se para a frente. Mas a queda,
que antes havia sofrido, eliminara a atuação de muitos dos seus músculos e tornara suas
reações mais lentas. Enquanto caía para a frente, foi atingido por um golpe fulminante. Um
sino parecia ressoar no interior de seu crânio, e a escuridão voltou a envolvê-lo.
***
Quando Ron voltou a despertar, a cena estava modificada. Mas era mais uma vez Gerard
Lobson que se inclinava sobre ele.
— Introduziram o líquido à força em sua boca.
Ron ergueu-se. Não sabia o que haviam leito com ele, mas o fato é que não produzira
maiores efeitos. Encontrava-se bem-disposto. As dores tinham sumido, e sentiu-se como
quem está em condições de enfrentar todo o mundo. Se os saltadores aparecessem, ele lhes
mostraria em que tipo de homem haviam posto as mãos.
Provavelmente o ara atirara nele com uma arma paralisante. Ficara inconsciente e
aproveitaram-se disso para fazer com que engolisse o líquido.
— Que bebida é essa? — perguntou, dirigindo-se a Gerard.
— É um licor — respondeu Gerard. — E é só o que eu sei. É vendido livremente em
Lepso e é bastante apreciado.
Isso parecia estranho.
— Já tomou esse licor?
Gerard fez que sim.
— Só depois de eles terem posto as mãos em mim. Obrigaram-me a tomá-lo, da mesma
forma que fizeram com o senhor.
— E qual foi o resultado?
— Hum — disse Gerard, em tom hesitante. — Parece ser uma cachaça muito forte.
Depois de tomá-la a gente tem a impressão de que é capaz de arrancar árvores e enfrentar
todo o mundo.
Ron confessou que no momento sentia a mesma coisa.
— Quanto tempo dura isso?
— Não sei — respondeu Gerard. — Estão sempre me dando mais um gole, antes que o
efeito passe.
Ron olhou em torno. Encontravam-se num recinto amplo em que não havia nenhuma
janela. O chão era de pedra dura e lisa. As paredes e o teto eram do mesmo material. Duas
fileiras de colunas toscas saíam do chão e sustentavam o teto. Uma velha lâmpada de gás,
pendurada entre as duas fileiras de colunas, espalhava sua luz pela sala. Numa das paredes
havia uma porta. Era de metal. Ron pôs a mão no lugar em que costumava guardar a arma, e
notou que esta não se encontrava sob o casaco. Naquele momento compreendeu, mesmo sem
examinar a porta, que não conseguiria abri-la sem auxílio.
— Isto é um porão, não é? — perguntou.
— É sim — confirmou Gerard.
— Onde se localiza?
— Não sei. Toda vez que venho para cá meus olhos são vendados.
De repente, Ron soltou uma risada.
19
— Então usam métodos já ultrapassados?
Apesar da aparente resistência da porta, Ron, sentindo-se atraído, foi tentar abri-la.
Passou entre as colunas e procurou girar a maçaneta antiquada. Aconteceu o que esperara:
sua tentativa não foi bem-sucedida. A porta estava trancada; a maçaneta não girou nem um
milímetro.
— O senhor já esteve aqui muitas vezes? — perguntou, dirigindo-se a Gerard.
— Uma vez. Antes que viessem buscar-me para...
— Para quê?
— Bem, para arrancar do senhor a informação sobre se...
De um momento para o outro, a cena que se desenrolara no escritório de Zuglert surgiu
nitidamente na mente de Ron. Gerard contara-lhe uma mentira e assim fizera com que
dissesse que a sala, onde se encontravam, era o escritório do Dr. Zuglert. Logo após isso, os
saltadores acenderam a luz e se identificaram.
“Isso faz sentido”, constatou Ron. “Não queriam que ninguém se interessasse pelo
desaparecimento de Zuglert. Por quê?”
O terrano teve a impressão de que já conseguira um bom progresso, depois de ter
chegado a Lepso. É bem verdade que tal acontecera sem qualquer atuação consciente de sua
parte. Além disso, face à situação em que se encontrava, tornava-se duvidoso que jamais os
conhecimentos adquiridos lhe pudessem ser úteis.
Mas, por enquanto, precisava saber de Gerard tudo que este soubesse, quer houvesse
uma saída, quer não, Gerard encontrava-se em poder dos saltadores há mais tempo que ele
mesmo.
De início Lobson mostrou-se hesitante, mas acabou relatando fielmente o que se passara
no escritório de Zuglert. Não deixou de revelar que de tanto medo fugira, deixando Zuglert
entregue ao seu destino.
Ron procurou unir os fatos, para descobrir o que deveria ter acontecido. Provavelmente
Zuglert conseguira pôr-se de pé. E sem que ninguém o ajudasse, saíra do edifício e chegara a
um lugar do qual realizara a palestra TTT com a Flórida.
Talvez durante a palestra o doutor desaparecera. Restava saber por que motivo o robô
de comunicações chegara à conclusão de que a ligação fora feita do terminal da missão
comercial terrana. No entanto, Gerard não saberia esclarecer este ponto.
— Dali a algumas horas — prosseguiu Gerard — minha consciência começou a acusar-
me. Procurei descobrir o que era feito de Zuglert. Pus-me a caminho. O escritório estava
aberto. Entrei. Bem... lá dentro estavam os três indivíduos que o senhor já conhece.
Perguntaram o que eu desejava, de onde conhecia Zuglert, por que havia voltado, e assim por
diante. Levaram-me para baixo. Uma vez no carro, obrigaram-me a tomar o licor que também
foi introduzido na sua boca. Depois vendaram meus olhos e trouxeram-me para cá. Fiquei aqui
cerca de quatro horas.
“Depois vieram buscar-me. Mais uma vez, meus olhos foram vendados. Quando a venda
foi retirada, o carro encontrava-se à frente do edifício em que fica o escritório de Zuglert.
Subimos e esperamos. Não sabia por quê. Ninguém respondeu à pergunta que formulei a este
respeito. Ficaram mexendo bastante na escrivaninha de Zuglert. De repente pareceram muito
surpresos. Um deles saiu correndo, e, quando voltou, catava carregando o senhor. Depois
obrigaram-me a ajoelhar a seu lado e contar-lhe algumas mentiras assim que despertasse.
Assim o senhor acabou revelando que viera por causa de Zuglert. O resto, o senhor já sabe.”
Sim, Ron sabia o resto, mas parecia haver alguns pontos obscuros nas informações de
Gerard. Será que os saltadores haviam desativado os elevadores antigravitacionais, fazendo
com que todos os retardatários, que visitassem o edifício, caíssem no porão? Em caso
negativo, como poderiam saber a que hora ele chegaria e qual o elevador que utilizaria?
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Dirigiu-lhe mais algumas perguntas. Não confiava muito naquele homem de cabelos
negros, motivo por que Gerard teria de trair-se, a não ser que soubesse mentir com muita
habilidade. Mas Ron não conseguiu nada. Gerard ficou firme em suas afirmações.
Finalmente, o agente terrano deu-se por satisfeito. Descobrira tudo que ele poderia
revelar-lhe e estava na hora de pensar na elaboração de um plano.
Provavelmente os saltadores começariam a interrogá-lo. Se suas respostas não fossem
satisfatórias, recorreriam a algum truque para eliminar sua vontade e extrair todo o conteúdo
de sua consciência, inclusive o fato de que aquele homem louro e alto era um agente especial
da Divisão III. Descobririam até o que realmente vinha a ser a Divisão III.
As coisas não deveriam chegar a este ponto. Ron tinha de encontrar um meio de escapar
aos saltadores.
Não deixou de reconhecer que se encontrava numa situação difícil.
Os instrumentos, que poderiam facilitar-lhe a fuga, encontravam-se na sua bagagem, e
ele saíra do hotel antes que esta chegasse. Nem sequer tinha em seu poder o pequeno
transmissor que lhe permitiria irradiar um pedido de socorro. Dependia exclusivamente de si
mesmo, da sua imaginação e de suas mãos.
Mal acabara de concluir o balanço da situação, a porta de aço foi destrancada e abriu-se
ruidosamente. Dois gigantescos saltadores entraram, carregando uma mesa estreita e
comprida de plástico sobre a qual havia uma série de aparelhos. Os saltadores não disseram
uma única palavra. A porta fechou-se atrás deles — automaticamente, ao que parecia — e
Ron, que prestara atenção a tudo, notou que seu caminho voltara a ser bloqueado. A mesa foi
colocada no centro da sala, entre as duas fileiras de colunas. Ron fizera um estudo intensivo
de tecnologia extraterrena, motivo por que reconheceu os dois encefaloceptores. Sentiu-se
dominado pelo pavor.
Os saltadores haviam tomado sua decisão com uma rapidez assustadora. E, o que era
pior, dispunham de todo o arsenal de aparelhos que, segundo acreditava, levariam alguns dias
para serem trazidos.
Os dois saltadores colocaram-se ao lado da mesa. Um deles tirou uma arma e apontou-a
para Ron. O outro disse:
— Agora vamos interrogá-lo, homem da Terra. Supomos que não se disponha
espontaneamente a revelar-nos a verdade. Portanto, usaremos este aparelho. Venha cá!
Num instante, Ron avaliou suas chances. Se ele se recusasse, obrigá-lo-iam a submeter-se
ao interrogatório. De que forma? Com a arma que um dos saltadores tinha na mão. Tratava-se
de um radiador térmico. Se este disparasse, já não haveria nenhum Ron Landry que pudesse
ser interrogado.
Ao dar-se conta disso, Ron sentiu-se amargurado e deu um passo em direção à mesa com
os instrumentos.
Nesse instante aconteceu o inacreditável.
21
4
Um dos dois saltadores caiu para o lado e bateu fortemente no chão. O outro, que
segurava a arma, parecia hesitar. Lançou um olhar desconfiado e apavorado para Ron.
Contornou apressadamente a mesa, a fim de ajudar o companheiro. Deu dois saltos, mas uma
terrificante força invisível parecia impedi-lo de dar o terceiro salto. Ron viu que se esforçou
para entesar os músculos. Soltou um grito de raiva e surpresa e procurou empurrar-se com
ambos os pés, numa tentativa de avançar. Mas a força invisível foi mais forte. Puxou-o para
baixo, atirou-o ao chão e comprimiu-o até que perdesse os sentidos.
Sem dizer uma palavra, Ron acompanhara o incidente. Fitou o saltador que caíra em
primeiro lugar. Também parecia inconsciente. Ron aproximou-se e, para ter certeza, sacudiu-
o. O homem não fez o menor movimento.
Ron compreendeu que sua chance havia chegado.
— Vamos dar o fora! — gritou, dirigindo-se a Gerard.
— Mas... mas... — gaguejou este, perplexo.
Ron agarrou-o pelo ombro e puxou-o em direção à porta.
Desta vez, a maçaneta não ofereceu qualquer resistência. Girou facilmente. A porta
abriu-se. Lá fora havia um corredor estreito, escassamente iluminado.
Com a arma em punho e depois de ter deixado para trás a porta que impedia seus
movimentos, sentiu de repente a tremenda ânsia de entrar em atividade que, segundo
afirmava Gerard, provinha do estranho licor. Naquele momento desejava que, do outro lado
do corredor, aparecessem alguns saltadores, a fim de que pudesse mostrar aos mesmos o que
acontece a quem rouba a liberdade de um agente especial da Divisão III.
Teve de abandonar a idéia. Deveria dedicar sua atenção a dois pontos. Se possível, queria
sair do edifício sem que ninguém o notasse. Além disso, teria que cuidar de Gerard, para que
este, de tão apavorado que ficara com aquilo que acontecera no porão, não fizesse tolices ou
saísse correndo.
Por enquanto Gerard deixava que Ron o dirigisse.
Parou quando este o segurou a fim de olhar o que havia além da curva, que ficava a uns
dez metros da porta pela qual haviam escapado. Não viu o menor sinal de perigo. Um pouco
adiante, o corredor terminava junto ao poço de um elevador antigravitacional. Ron não teve a
menor dúvida em utilizá-lo. Comprimiu o botão do andar térreo e empurrou Gerard para
dentro do poço, seguindo-o de perto.
Viram acima de suas cabeças a luminosidade da saída, que dava para o andar térreo.
Conforme devia, a sucção do campo gravitacional cessou quando Gerard se encontrava na
altura da saída. Lobson pegou a barra de apoio e puxou-se para fora. Ron seguiu-o
imediatamente. Viu-se no hall de recepção profusamente iluminado de um grande edifício de
escritórios. Escondeu o mais depressa possível a arma térmica que arrebatara do saltador.
Gerard parou, aguardando novas instruções. Ron olhou em torno e viu apenas o público
que costumava movimentar-se pelos edifícios desse tipo. Uma profusão de seres de todas as
espécies passou por uma das duas fileiras de portas, e uma outra profusão tão grande como a
primeira deixava-o pela fileira de portas da outra parede. Os que passavam perto de Ron e
Gerard fitavam-no com uma expressão de espanto ou de desconfiança. O agente terrano não
demorou a perceber que isso acontecia unicamente porque sua roupa ficara bastante
estragada com a queda sofrida no poço do elevador.
Chegou à conclusão de que não havia inconveniente em se afastarem o mais depressa
possível. Misturaram-se aos indivíduos que iam saindo e, dali a alguns segundos, viram-se na
pomposa faixa de pedestres que ficava ao lado de uma rua larga.
Ron olhou em torno.
22
— Que lugar é este? — indagou, dirigindo-se a Gerard.
Teve de repetir a pergunta para obter uma resposta.
— O setor norte da cidade — disse Gerard, laconicamente. — Na Avenida dos Cinco
Mares.
Havia vários táxis junto ao meio-fio. Ron achou que seria muito arriscado pegar um dos
veículos estacionados junto ao edifício, pois com isso poderia voltar a cair nas mãos das
pessoas às quais mal e mal conseguira escapar.
Foram caminhando pela calçada. Estava anoitecendo. A claridade pálida, que o céu ainda
conseguia espalhar, era abafada por milhares de anúncios luminosos. Ron viu vários
restaurantes nas proximidades e deu-se conta de que estava com fome. Contemplou suas
roupas. Se escolhesse um local adequado, ninguém teria uma objeção contra as mesmas.
A fim de gravar na memória a imagem do edifício do qual haviam saído, virou-se. Ficou
tão surpreso com aquilo que viu, chegando até a esbarrar em Gerard, que parara.
Bem alto, na fachada da gigantesca torre, lia-se em caracteres latinos de pelo menos
cinco metros de altura a inscrição pomposa: Missão Comercial Terrana.
***
O fato deixou-o bastante impressionado, mas não prejudicou seu apetite. Gerard recusou
em tom mal-humorado a sugestão de comerem alguma coisa.
— Não tenho dinheiro — resmungou.
Ron bateu na testa.
— Santo Deus, o senhor acaba de me dar uma idéia. Quem sabe se essa gente...
Interrompeu-se em meio à frase e pôs a mão no bolso. Encontrou a carteira. Ao abrir o
fecho magnético, viu que o dinheiro estava intato.
— Eu o convido — disse alegremente, batendo no ombro de Gerard.
Por uma fração de segundo, os olhos deste iluminaram-se. Ron notou-o, mas apenas
desconfiou de que a fome de Gerard Lobson não fosse menor que a sua.
A algumas centenas de metros do edifício da Missão Comercial Terrana, encontraram um
restaurante que servia refeições rápidas, e que parecia não ser muito exigente quanto aos
trajes dos seus freqüentadores. O robô porteiro indicou-lhes uma mesa nos fundos do salão.
Enquanto Ron girava rapidamente o disco seletor embutido na mesa, a fim de compor um
menu bastante rico em conformidade com o código exposto nas proximidades, aconteceu pela
primeira vez que Gerard Lobson dissesse algo sem ser perguntado.
— O que foi isso? — perguntou; sua voz ainda estava insegura. — Refiro-me ao que
aconteceu no porão.
— Ora, não foi nada de especial. Um amigo meu agiu no momento apropriado.
Ron virou a cabeça e procurou olhar pela janela que dava para a rua. Não teve muita
certeza, mas parecia que naquele momento um recinto cúbico com uma grande vidraça
passava à frente da ampla janela. Resistiu ao desejo de levantar-se e ir até a porta.
Era preferível não revelar todos os detalhes a Gerard Lobson — ao menos por enquanto.
Gerard fez questão de pedir um licor idêntico ao que os saltadores haviam introduzido
em sua boca e na de Landry. Ron disse:
— Eu o convidei, Gerard, mas o convite não inclui a misteriosa bebida. O senhor já deve
ter percebido que há algo de errado com aquilo. Contém uma droga.
Gerard fitou-o prolongadamente.
— Pode ser. Acontece que eu gosto — respondeu.
Como Ron tivesse o dinheiro, seu desejo prevaleceu. Gerard não recebeu o licor. Não
parecia importar-se muito com isso. Tomou cinco copos de cerveja terrana de alta
fermentação, isso em trinta minutos. Quando Ron concluiu a refeição, sentiu-o ligeiramente
tocado. Ron não se importou. Deu-se por satisfeito ao notar que Gerard se mantinha num
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estado de modorra. Isso lhe ensejou a oportunidade de pôr seus pensamentos em ordem. E o
volume destes era tamanho que se tornava difícil processá-los de uma só vez.
Quer dizer que os saltadores se haviam fixado no edifício da Missão Comercial Terrana.
A palestra que o Dr. Zuglert mantivera com a Flórida, pouco antes de seu
desaparecimento, fora registrada num dos números da Missão. E o Inspetor Neary afirmara
que na Missão nunca existira nenhuma pessoa que correspondesse à descrição de Zuglert, e
que muito menos este chegara perto de seu fone particular, do qual, segundo se dizia, fora
mantida a palestra.
Nesse meio tempo, Ron soubera, que o serviço de rádio do governo de Lepso debitara a
Missão Comercial Terrana por uma ligação TTT de telecomunicação com a duração de
cinqüenta segundos. Concluía-se que não havia nenhum mistério, e a essa hora o Inspetor
Neary já devia ter percebido que cometera uma injustiça contra Dick Kindsom, quando
manifestou a suspeita de que o major queria fazê-lo de bobo.
Será que Neary estava ligado aos saltadores? Será que estes se haviam apoderado de
Zuglert? Como foi que este conseguiu aproximar-se do aparelho de telecomunicação? Teriam
relaxado em sua vigilância? Ron teve a impressão de que não poderia deixar de aceitar esta
última tese, pouco importando o que pensasse a respeito dos acontecimentos passados.
Zuglert só conseguira entrar em contato com a Flórida por ter escapado à vigilância, durante
alguns instantes. Provavelmente julgaram que uma pessoa semimorta já não seria capaz de
desenvolver qualquer atividade.
“Até aqui não há a menor dúvida”, concluiu Ron. “Mas de onde Zuglert teria chamado?”
De início quis afastar a idéia de que Neary pudesse estar ligado aos bandidos. Os
funcionários terranos, que iriam servir no exterior, eram cuidadosamente selecionados e
submetidos a um treinamento intensivo, que os preparava para suas funções. Dificilmente um
deles falharia no desempenho de suas missões.
“Isso em condições normais”, apressou-se Ron a retificar.
Lembrou-se do ara que vira no escritório do Dr. Zuglert. Sempre que um ara estava
metido em alguma coisa, devia-se ter o maior cuidado. Os médicos galácticos eram mestres no
preparo de modernos caldos de bruxas. Era possível que Neary cooperasse com os saltadores
por estar submetido à vontade de outra pessoa.
Mas havia outra possibilidade. Talvez Neary nem soubesse o que se passava em torno
dele. Talvez os saltadores, que tinham seu esconderijo no mesmo edifício em que ficava a
Missão dirigida por Neary, se tivessem apoderado do canal de comunicação terrano e
possuíssem um aparelho que lhes permitisse realizar palestras sob o mesmo número-código
da Missão Comercial... Seriam perfeitamente capazes disso, ainda mais que a ligação
clandestina lhes permitiria ouvir as palestras que Neary realizasse em seu aparelho.
Ron resolveu procurar o inspetor o quanto antes e falar-lhe a respeito daquilo em que
acabara de pensar. Ficou refletindo sobre se valeria a pena voltar imediatamente ao edifício
da Missão Comercial e entregar à polícia de Lepso os dois saltadores inconscientes, que se
encontravam no subsolo. Mas chegou à conclusão de que nem deveria pensar nisso. Os
saltadores saberiam o que dizer à polícia. E ele, que podia contar apenas com Gerard Lobson
— uma testemunha nada segura — ainda poderia ser acusado de autor da agressão.
Não era este o caminho que devia seguir. Mas de qualquer maneira tinha de falar o
quanto antes com Neary.
Levantou os olhos. Gerard começou a resmungar sons ininteligíveis. Seus olhos estavam
injetados de sangue. Seu aspecto não era nada atraente. De repente levantou a cabeça e olhou
para além do ombro de Ron.
A expressão de seu rosto alterou-se. Os olhos, que até então pareciam vidrados e
inchados, arregalaram-se e fitaram com uma expressão de pavor um ponto situado além das
costas de Ron. Este teve imediatamente a impressão de que Gerard estava lançando mão de
um velho truque para desviar sua atenção, a fim de fazer alguma coisa que ele, Ron, não
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deveria saber. Mas, de repente, ouviu as cadeiras serem empurradas em torno dele pelas
numerosas pessoas que se levantavam ao mesmo tempo. Alguém gritou:
— Chamem um médico! Depressa!
Só então Ron virou a cabeça. Olhando por entre duas pessoas, que se dirigiam a outra
mesa, viu por um instante o vulto de um homem que, segundo parecia, acabara de levantar-se
da cadeira. Provavelmente concluíra sua refeição e pretendia sair do restaurante.
Mal e mal, o tal homem tinha forças para manter-se de pé. Segurou-se com ambas as
mãos na borda da mesa. Cambaleou e abriu a boca, respirando com dificuldade. A boca era
apenas um buraco escuro em meio a uma horrível máscara marrom-amarelenta, que antes
parecia uma caveira que a cabeça de uma pessoa viva.
A memória de Ron começou a funcionar. O setor implantado pelos aparelhos misteriosos
do Coronel Nike Quinto entrou em atividade. Lembrou-se da palestra que Kindsom mantivera
com o Dr. Zuglert, e do aspecto que este último oferecia.
Zuglert tinha exatamente o aspecto do homem que se encontrava à sua frente.
Ron agiu com uma rapidez fulminante. Com um gesto rápido arrancou Gerard Lobson de
cima da cadeira.
— Fique logo atrás de mim — ordenou.
Gerard confirmou com um gesto automático. Continuava a dirigir os olhos para o lugar
onde se encontrava o homem-caveira, que agora estava escondido atrás de um grupo de
pessoas.
Ron afastou os que se encontravam mais próximos.
— Abram caminho! — exclamou. — Aqui vem um médico.
Olhando de relance, viu que Gerard o seguia conforme ordenara. As pessoas abriam
caminho.
Ninguém pediu documentos que os identificassem. Tratava-se de pessoas desconhecidas,
que se encontravam por acaso em determinado local, e testemunharam o desenvolvimento da
doença de um deles. Estariam dispostos a aceitar a atuação de qualquer pessoa que se
apresentasse como médico.
Ron avançou habilmente até a mesa em que se achava o desconhecido. A caveira parecia
nem notar sua presença. Não havia a menor dúvida de que era um terrano. Ron segurou-o
pelo braço direito.
— Venha comigo; sou médico — disse em inglês. — Estou disposto a ajudá-lo.
O homem girou ligeiramente a cabeça.
— Ajudar...? — disse num estertor.
— Sim, pretendo ajudar — confirmou Ron. — O senhor pode andar, ou prefere ser
carregado?
Em vez de responder, o homem deu um passo para a frente, soltando a mesa. Teve de
apoiar-se no braço de Ron, mas conseguiu manter-se de pé. Quando se dispôs a dar o segundo
passo, os circunstantes afastaram-se.
Ron olhou para Gerard, que se encontrava a seu lado, e suplicou aos deuses para que o
parceiro não fizesse tolices.
De início tudo foi bem. Acompanhado do homem com aspecto de caveira e de Gerard e, a
uma distância maior, do grupo de curiosos que ia diminuindo, Ron dirigiu-se lentamente para
a saída do restaurante.
Finalmente viram-se na rua. Ron olhou em torno, à procura de um táxi, mas não havia
nenhum por ali. O fato deixou-o espantado. Percebeu que, naquele trecho da calçada, não
havia pedestres.
De repente, Gerard soltou um grito de espanto abafado. Ron imaginou, mesmo sem ver,
que seu parceiro pretendia fugir. Num movimento rápido, sua mão livre agarrou a jaqueta do
bêbado.
— Fique aqui! — gritou.
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Mal pronunciara estas palavras, uma voz áspera, vinda de detrás dele, disse:
— Entregue-me este homem!
Ron virou-se abruptamente. Às suas costas, um homem uniformizado saíra da sombra
projetada pelo restaurante. Reconheceu o uniforme da polícia de Lepso.
— Por quê? — perguntou o terrano. — Este homem está doente. Precisa de um médico,
não de um policial.
Um sorriso de escárnio surgiu no rosto do homem.
— O senhor é médico? — perguntou num péssimo inglês.
Ron julgou preferível não repetir a mentira.
— Não — respondeu. — Mas pretendo levá-lo à presença de um médico.
— Nós temos condições muito melhores para isso — afirmou o homem uniformizado. —
Olhe.
Não teve necessidade de olhar, pois ouviu. Um potente veículo giromático desceu e
pousou junto ao meio-fio, num trecho do qual todos os veículos haviam sido removidos. De
repente apareceram mais alguns policiais e cercaram Ron e o homem com aspecto de caveira.
“Bloquearam uma parte da rua”, pensou Ron.
Mais cinco policiais saltaram do veículo giromático. O terrano sabia perfeitamente que
não teria a menor chance contra os milicianos. Isso deixou-o furioso. E, o pior: foi obrigado a
esconder sua raiva.
— Acho que o senhor tem razão — disse, dirigindo-se ao policial que agora se
encontrava à sua frente. — O senhor tem melhores possibilidades. Leve-o.
O policial segurou o braço do velho doente e arrastou-o em direção ao veículo
giromático. Ron ficou parado até que a porta do carro espacial se fechasse atrás do doente e
do policial. Viu que o tráfego noturno voltou a fluir sobre o trecho da rua que até então ficara
bloqueado. O veículo giromático subiu num salto arrojado, ganhou altura em meio à luz dos
anúncios luminosos e acabou desaparecendo num mar colorido de luminosidade.
Só agora Ron deu-se conta de que continuava a segurar a jaqueta de Gerard. Fez sinal
com a mão livre, a fim de chamar um táxi que seguia lentamente junto ao meio-fio. O carro
parou e a porta lateral traseira abriu-se. Ron empurrou Gerard para dentro do veículo escuro
e depois entrou. A porta fechou-se automaticamente atrás dele.
O motorista manteve-se imóvel atrás da direção. Não passava de um contorno vago na
escuridão.
— O senhor viu a viatura policial que acabou de decolar desta rua? — perguntou Ron.
O motorista confirmou com um aceno de cabeça.
— Pode fazer o favor de segui-la? Saberei recompensá-lo.
A cabeça virou-se e inclinou-se para trás.
— Farei isso pelo senhor, homem da Terra — disse o motorista.
Por uma fração de segundo, a luz de um letreiro luminoso iluminou-lhe a face. Era o
homem do planeta de Goszul, o mesmo que levara Ron Landry do espaçoporto à cidade.
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Ron realizou alguns cálculos rápidos. Não fazia mais de trinta minutos que haviam
decolado da Avenida dos Cinco Mares.
— Que velocidade estamos desenvolvendo? — perguntou.
— No momento estamos voando a cerca de dois mil e quinhentos quilômetros por hora,
numa altitude de quinze quilômetros — respondeu Roll, em tom indiferente.
Ron teve a impressão de que, para um simples táxi-planador, esses dados eram
estranhos.
***
Teve certeza de que havia algum mistério envolvendo Roll. Mas acreditava firmemente
que era um mistério agradável. Por isso resolveu não perguntar. Roll lhe revelaria os fatos
quando achasse adequado.
Poucos minutos depois do momento em que Ron teve conhecimento do desempenho
espantoso do táxi, o reflexo luminoso produzido pela viatura policial começou a afastar-se do
centro da tela.
— Estão pousando — anunciou Roll, com a voz tranqüila.
— O senhor conhece o terreno? — perguntou Ron.
— Não. Ninguém conhece. O deserto de Sukussum pode ser considerado tranqüilamente
como área inexplorada. Ninguém jamais penetrou nele mais de vinte quilômetros e as linhas
de navegação aérea traçam suas rotas de maneira a evitar o deserto. Preferem percorrer um
trajeto mais longo.
Ron não teve outra alternativa senão tomar sua própria decisão. Procurou avaliar que
distância da viatura policial, pousada no deserto, representava a combinação mais favorável
entre a prudência e os limites do raio de ação. Instruiu Roll a baixar cinqüenta metros e
prosseguir mais um trecho em direção ao noroeste.
Roll seguiu as instruções. Enquanto o táxi estava descendo, determinou o ponto em que
o veículo da polícia pousara. Assinalou-o num cartão vazio, introduziu-o num traçador de rota
e deixou que este, depois de ter apurado a posição de seu veículo em relação ao da polícia,
registrasse a rota do táxi no cartão.
Dali a alguns minutos, o planador pousou. Ron viu as vagas sucessivas de dunas amarelas
iluminadas pela luz débil das estrelas. Notou as nuvens de areia fina brincarem, tangidas pelo
vento, em torno das linhas de cumeeira e ouviu o canto e o tilintar dos grãos de areia sob a
ação constante do deslocamento do ar.
Roll ligara a luz de posição e entregou a Ron o cartão do registrador de rota. Via-se que o
veículo policial se encontrava quase exatamente na direção norte, numa distância não
superior a um quilômetro e meio do táxi de Roll.
Ron resolveu agir imediatamente. Pediu a Roll que cuidasse de Gerard, que continuava a
dormir, mas Roll recusou-se a isso.
— Quer saber uma coisa? — disse. — Acompanhei o começo da aventura e também
quero assistir ao fim. Por que não o trancamos no carro e deixamos que continue a dormir?
— O senhor sabe o que isso significa? — perguntou Ron, em tom de surpresa. — É
possível que a polícia não goste de que eu fique espionando o que ela está fazendo. Talvez haja
um tiroteio e...
— Não me importo — respondeu Roll. — Para mim, isso é muito interessante.
No fundo, o agente ficou satisfeito em saber que teria um companheiro. Formulou uma
pergunta:
— O senhor pode desligar o mecanismo propulsor de tal forma que Gerard não possa
fazer nada quando acordar?
Roll soltou uma risada.
29
— É claro que posso. Andei pensando a este respeito. Nem precisamos trancá-lo. Não vai
ser idiota a ponto de sair correndo pelo deserto de Sukussum.
Ron ponderou que Gerard nem sabia em que lugar haviam pousado. Resolveram não
trancar o carro e deixar um pequeno recado para Gerard.
Roll desligou o mecanismo de propulsão e tirou a chave codificada. Depois disso
puseram-se a caminho. Tomaram a direção norte, percorrendo um vale formado por duas
fileiras de dunas.
O ar estava fresco. A areia já irradiara o calor do dia anterior. Caminhavam
vigorosamente, a fim de esquentar o corpo. Via de regra, Roll ia alguns passos à frente de Ron,
como se já conhecesse o caminho. Na luz mortiça das estrelas, só se via uma silhueta, dando ao
agente terrano a impressão de que Larry Randall caminhava à sua frente.
A visão teve um efeito tranqüilizador sobre Ron.
Mas este logo chegou à conclusão de que não havia o menor motivo para ficar tranqüilo.
Roll tinha um segredo. E era possível que ele, Ron, estivesse enganado ao supor que tal
segredo fosse agradável.
Como explicar, por exemplo, que ele se mostrara disposto a participar de uma ação
perigosa, como a de aproximar-se furtivamente de uma viatura policial?
***
— Espere até que eu tenha tirado tudo isto que fizeram com meu rosto — falou Larry
Randall, em tom contrariado. — Depois voltarei a ser o Capitão Randall.
Ron tinha uma porção de indagações na ponta da língua. Como veio parar aqui, por que
usou o disfarce de motorista de táxi, qual a missão que lhe foi confiada por Nike Quinto, por
que usou máscara? Mas sabia que teria de deixar as perguntas para outra oportunidade.
— O que há com essa construção? — indagou.
— A frota forneceu-me algumas fotografias aéreas — disse Larry. — Nesta região existe
uma construção, ou melhor, um grupo de construções que nenhuma pessoa em Zanithon ou
em qualquer outro lugar sabe para que servem, quem as ocupa e quem as fez. E, o que é pior,
em Zanithon ninguém parece saber da existência dessas construções.
Ron confirmou com um sorriso.
— Isso mesmo. Pelo que contou meu motorista de táxi, o deserto de Sukussum é uma
área inexplorada.
— Não tenha a menor dúvida — confirmou Larry, em tom tranqüilo. — De qualquer
maneira, tenho certeza de que foi lá que os policiais deixaram o doente. Feito isso, voltaram a
levantar vôo.
— Bem — disse Ron. — Vamos dar uma olhada nesse lugar.
Larry concordou. Ron dirigiu-se até a duna da qual descera há pouco. Subiu-a, e voltou a
olhar em torno. Porém a luz das estrelas não lhe permitiu reconhecer o grupo de edifícios que,
segundo Larry acabara de informar, devia ficar por lá.
O capitão parou a seu lado.
— Pelo que se conclui das fotografias, os edifícios são baixos — disse em tom comedido.
— É bem possível que só consigamos vê-los do ponto mais alto da próxima duna.
Mas Ron acabara de descobrir outra coisa. A fileira de dunas não continuava
indefinidamente na direção oeste. Pelo que pôde ver à luz mortiça das estrelas, só havia mais
dois montes de areia à sua frente. Atrás deles parecia estender-se uma área plana, até onde a
vista alcançava. Se havia algum edifício no meio do deserto, este só podia ficar nessa área.
Voltaram a pôr-se a caminho. Era difícil caminhar na areia. Tiveram de poupar suas
forças, pois, após cada passo, gastavam energias ao puxarem seus pés que afundavam na
massa pulverizada. Apesar do frio raiar do dia, o suor começou a correr por suas testas.
Mas, dali a meia hora, conseguiram. Abrigados atrás da última fileira de dunas, olhavam
por cima do cume. Embaixo deles estendia-se um trecho de muralha cinzenta, que corria na
direção norte-sul, e atrás dela amontoava-se uma quantidade enorme de edifícios de vários
tamanhos. Alguns deles eram cúbicos ou retangulares, enquanto outros imitavam uma
pirâmide ou uma esfera.
Em seu conjunto, o complexo realmente era impressionante. Ron gostaria de saber por
que haviam construído uma cidadezinha nesse lugar, longe do tráfego e das amenidades que a
vida de Lepso oferecia. Só no primeiro instante espantou-se com o formato estranho das
casas. Logo se lembrou de que em Lepso não havia motivo para admirar-se com tal tipo de
construção. Lepso era um cadinho em que se fundiam as raças galácticas. Ao construir, cada
um agia segundo seus hábitos.
Era verdade que Ron não sabia que em Lepso havia cidades inteiras construídas num só
estilo estranho.
Examinou cuidadosamente o núcleo populacional. Se por ali vivia gente ou outros seres,
estes habitantes ainda estavam dormindo ou permaneciam no interior das casas. O lugar
parecia deserto, e se as circunstâncias da descoberta fossem diferentes, Ron teria chegado à
conclusão de que o local era desabitado.
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Acontece que o doente desaparecera por lá. Em hipótese alguma, os policiais o teriam
levado a uma cidade sem população. Quer dizer que lá embaixo devia haver vida.
Ron fitou o maior edifício: uma pirâmide erguida no centro do grupo de construções. De
repente teve a impressão de que um perigo irradiava da cidade construída em meio ao
deserto.
Não sabia explicar por que motivo fora erguido o pedaço de muralha. Bastaria contorná-
lo para atingir a cidade.
O céu começou a mudar de cor. As estrelas empalideceram, e a claridade de um novo dia
raiou no norte. As sombras, que Ron e Larry viam à sua frente, transformaram-se em
silhuetas.
Naquele momento Ron lembrou-se de que, enquanto fora mantido preso pelos
saltadores, devia ter dormido um dia inteiro. Do contrário sua contagem do tempo não dava
certo.
Aproximaram-se cautelosamente do primeiro edifício que se erguia na areia, e que tinha
a forma de um cubo. Não havia janelas. As paredes pareciam ser de pedra. No momento não se
via ninguém junto à entrada.
Contornaram o cubo e encontraram uma fenda do lado voltado para a pirâmide, que
localizava-se no centro do grupo de edifícios. Esta delineava um quadrado de metro e meio
que se desenhava na parede de pedra. Não havia nenhum mecanismo capaz de mover a porta,
se é que realmente se tratava de uma porta. Por isso Larry não teve muita esperança de
sucesso, quando procurou forçá-la com o ombro.
E justamente por isso quase caiu, no momento em que a pedra cedeu, sem oferecer a
menor resistência. A peça cercada pela fenda girou leve e silenciosamente para o lado de
dentro, pondo a descoberto um recinto escuro, quente, úmido e malcheiroso.
Ron segurou a arma que tomara dos saltadores. Larry pulou para o lado. Da escuridão
que reinava no lado de dentro, saiu um forte chiado. Ron esperou. Teve a impressão de que
alguma coisa se movia na escuridão. Dali a alguns segundos viu que não se enganara.
Alguma coisa saiu rastejando.
De início Ron vislumbrou uma figura semelhante a uma vara fina e branca. Acontece que
na parte superior desta havia uma articulação. Seguiu-se mais um pedaço de vara, enrolado
numa espécie de pano.
Era uma perna humana!
Ron obrigou-se a permanecer tranqüilo. Esperou até que aquela incrível criatura
conseguisse deslocar-se totalmente para a claridade do início do dia. Teve de esforçar-se para
fitar a criatura. Sentiu pena como nunca sentira, e repugnância por aqueles que deixavam que
esse destroço humano se acabasse no deserto.
O homem, que haviam visto no restaurante de Zanithon e que fora entregue à polícia, era
um modelo de aparência sadia em comparação à criatura estendida no chão à frente de Ron, o
major, e Larry, o capitão. A triste figura mal conseguiu levantar a cabeça do chão. Fez algumas
tentativas, mas sempre voltava a cair na areia.
Ron abaixou-se e ajudou-o. A caveira fitou-o com os olhos apagados. Os lábios moveram-
se, e num grasnado saíram estas palavras, pronunciadas em inglês:
— Eternamente... eu vos sirvo... meus senhores.
Ron não quis perder tempo.
— Coragem, amigo — disse à criatura. — Nós o tiraremos daqui. Quem é você? Como foi
parar neste lugar?
A cabeça esteve a ponto de cair para a frente, mas Ron segurou-a e obrigou a criatura a
fitar seus olhos.
— Eternamente... — repetiu a criatura, num estertor.
Não teve forças para pronunciar outra palavra.
Ron largou-a cuidadosamente na areia e levantou-se.
32
— Não adianta — disse em tom de resignação. — Vamos ver se encontramos alguém que
tenha mais saúde e vigor.
Caminharam em silêncio. Ron refletiu sobre o significado das palavras que aquela
criatura lhe dissera. Evidentemente achava essas palavras muito importantes, pois continuava
a pronunciá-las num estado de total abatimento.
A quem pretendia servir? Quem eram os senhores a que aludira?
Ron quase chegou a acreditar que se tratava de uma espécie de oração.
Mas não conseguira descobrir qualquer sentido nisso.
Aproximaram-se do segundo edifício, que também tinha a forma de um cubo, e abriram-
no com a mesma facilidade do primeiro.
Mas desta vez uma surpresa lhes estava reservada.
Um pedaço de material com o formato de caixa caiu para fora, vindo de trás da porta, e
parou diante de seus pés. Ron fitou-o, perplexo. Apresentava uma configuração cúbica, tal
qual o edifício no qual estivera deitado e era tão leve que parecia oco. Virou-o e descobriu a
janela quebrada de um dos lados.
Compreendeu que acabara de encontrar uma pista do ser de Pisalam.
Era uma pista triste, pois o destino que aguardava um pisalamense, que perdesse seu
traje protetor em Lepso, só poderia ser um: a morte.
Ron ainda estava refletindo sobre o macabro achado, quando um gongo soou fortemente
em algum lugar, ressonando num zumbido que feriu os ouvidos de Ron.
Virou-se apressadamente. Lançou um olhar indagador para Larry, mas este limitou-se a
dar de ombros.
— Também não sei o que é isso. Ao que parece, o som vem de dentro do chão.
Por coincidência o major olhou para a grande pirâmide, cuja ponta sobressaía sobre os
telhados planos e as cumeeiras dos outros edifícios. Larry ouviu o amigo soltar um grito de
espanto e virou-se abruptamente.
No topo havia um vulto que, do lugar em que se encontravam, parecia muito pequeno.
Até mesmo sob a luz fraca do amanhecer, a figura cintilava de tantas jóias que se encontravam
penduradas em seu corpo. Movia-se. Parecia que se inclinava em diversas direções. De
repente, Ron teve certeza de que sua suposição fora correta. A cidade, os doentes com cabeça
de caveira, que se encontravam no interior das cabanas de pedra, a figura, que acabara de
surgir no topo da pirâmide — tudo isso fazia parte de algum culto. A pessoa, que se achava no
alto da pirâmide, parecia ser um sacerdote. Talvez fosse um daqueles aos quais o terrano
semimorto prometera servir eternamente.
A idéia deixou Ron furioso.
— Vamos até lá — gritou para Larry. — Temos de pegar esse sujeito.
Contornaram apressadamente o cubo mais próximo e correram em direção à pirâmide,
passando por uma viela que seguia entre as construções pequenas. A batida de gongo parecia
não modificar em nada a inatividade que se notava na cidade. Tudo continuava quieto e vazio
como antes.
Com uma única exceção...
Quando chegaram mais perto da pirâmide, ouviram que o homem reluzente no topo
desta estava cantando. Era uma cantoria triste, desfiada em tom de ladainha. Comunicava-se
com um dos pretensos ídolos, em homenagem ao qual deixava que terranos, pisalamenses e
outros seres definhassem.
Era ao menos o que Ron pensava, e sua raiva aumentou.
De cada um dos lados da pirâmide, uma série de largos degraus levava para o alto. Ron
não perdeu tempo. Empunhando a arma, correu escada acima. Larry gritou alguma coisa, mas
Ron não ouviu. Só viu o ser envolto em trajes reluzentes, que continuava de pé lá em cima.
Mas, de tão surpreso que ficou, o “pajé” parou em meio à cantoria.
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— Desça daí — gritou Ron. — Desça para ser responsabilizado por seus atos de
crueldade.
Não esperou para ver se o ser estaria disposto a obedecer à ordem. Continuou a correr
escada acima. Faltavam poucos degraus para chegar ao topo da pirâmide, apenas uns dez ou
doze. Logo estaria lá. Mas de repente...
De repente!
Por alguns segundos Ron viu o rosto daquele ser, do sacerdote, bem à sua frente. A raiva
e o esforço dispendido fizeram com que, na mente do terrano, o rosto do “feiticeiro” se
transformasse numa careta. Por um segundo teve a impressão de que bastaria estender os
braços para agarrar aquele homem.
Mas de repente, o gongo soou pela segunda vez e, de súbito, Ron Landry viu-se num
lugar totalmente diverso.
***
Em torno dele ouviram-se sons estridentes, gritos, guinchos e choros nos mais diversos
tons. Sentiu que alguma força o fazia girar loucamente em torno de seu próprio eixo. Sentiu-se
perdido.
O cérebro recusou-se a pensar.
Deixou-se girar e reprimiu a dor lancinante causada pelo barulho, que se desenvolvia em
torno dele. Com um ligeiro resquício de curiosidade, procurou reconhecer se sentia alguma
coisa além da dor, como por exemplo o deslocamento do ar, já que estava sendo girado
violentamente, ou a dificuldade de respiração, enquanto se sentia cada vez pior.
Mas não havia ar e parecia não estar respirando. Ron procurou mover os braços, mas
não havia nada que pudesse ser movido. Transformara-se em algo de incorporal, que girava
num espaço irreal.
De repente, fragmentos de idéias estranhas começaram a atropelar-se em seu cérebro.
— Você insultou Baalol. Por isso terá a pior das mortes. Você insultou Baalol.
Ron não sabia quem ou o que vinha a ser Baalol. Não se interessava por isso. Mas se
estava prestes a sofrer a pior das mortes, queria que tudo se passasse o mais depressa
possível, principalmente a gritaria em torno dele.
Mas, ao que parecia, o desejo de Ron não iria cumprir-se. Os uivos tornaram-se cada vez
mais fortes. De repente surgiram outros pensamentos.
— Não matem... Vocês não o matarão... Seus idiotas... Encontraram alguém mais
poderoso.
Ron aguçou o ouvido. Eram apenas pensamentos, e o pensamento não tem voz. Mas teve
a impressão de que reconhecia a voz de alguém. Teve a impressão de que sabia quem falava
— ou pensava.
Era alguém que lutava pela sua vida. Isso mesmo, pela sua vida.
Quem seria?
Girava loucamente no nada, sem a menor resistência, e o que mais desejava era que o
sofrimento terminasse o quanto antes.
Reuniu as últimas energias. Começou a recear pela vida. Resistiu ao destino que forças
fantásticas e selvagens lhe haviam atribuído. Ajudou o alguém que lutava a seu lado contra os
estranhos para salvá-lo.
Passou a girar mais lentamente. A gritaria tornou-se mais fraca. Mais uma vez, Ron
captou os pensamentos estranhos:
— Estão vendo? Vocês não conseguem nada... Venci... Maldito seja Baalol!
Subitamente surgiu o silêncio. Por um instante, o major teve uma impressão confusa:
parecia estar caindo num vazio. Realmente devia ter caído, pois bateu fortemente em alguma
coisa. Depois começou a rolar, voltou a declinar e acabou por se segurar numa pedra.
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Abriu os olhos. Sentiu-se ofuscado pelo sol. Viu à sua frente uma pequena superfície de
pedra, seguida de uma aresta abaixo da qual vinha outra superfície de pedra.
Era a escada! Estava deitado nos degraus da escada que subia pela pirâmide.
Ergueu-se sobre os joelhos e olhou em torno. Seu olhar foi atraído por alguma coisa
brilhante, cintilante. Eram as vestes do sacerdote. Estava deitado, pouco acima de Ron. A
cabeça mantinha uma estranha posição e os olhos vidrados achavam-se muito arregalados.
Estava morto. Não havia a menor dúvida. O olhar de Ron continuou a caminhar pela
pirâmide e deu com outro sacerdote, que escorregara escada abaixo, tal qual o primeiro, e se
encontrava deitado, imóvel. Alguns degraus mais embaixo havia um terceiro sacerdote, e um
quarto descera por toda a escada e estava jogado na areia, com o corpo contorcido.
Ron pôs a mão na cabeça.
“O que aconteceu?”, pensou. “Onde estará Larry?”
Viu alguma coisa mover-se na sombra de um dos pequenos edifícios de formato cúbico.
Num gesto apressado, pôs a mão na arma — ou melhor, quis colocá-la, mas teve de constatar
que já não trazia a pistola. Devia tê-la perdido.
A sombra penetrou na luz e transformou-se na figura esbelta e de estatura média de
Larry Randall. Ron levantou-se de vez e desceu a escada com as pernas cansadas. Quando se
encontrava a meio caminho, viu um radiador térmico jogado nos degraus. Levantou-o e
colocou-o no cinto.
Larry lançou-lhe um olhar indagador.
— O que foi isso? — perguntou.
— O que foi o quê? — replicou Ron, por sua vez.
— Esse espaço estranho... o movimento giratório... as vozes...
Ron arregalou os olhos.
— Você também? — perguntou em tom de perplexidade.
Larry fez que sim e relatou:
— Vi você subir os degraus que nem um louco. Gritei para que não o fizesse. Lá no topo
da pirâmide, surgiram mais alguns desses sujeitos reluzentes. Não davam a impressão de que
ficariam quietos enquanto você lhes dissesse umas verdades. Quis preveni-lo, mas você não
me ouviu. E de repente começou... Não estava mais aqui. Flutuava em algum lugar e não via
mais nada. Em torno de mim havia um barulho infernal. Alguém disse que iria matar-me
porque faltei com o devido respeito, ou coisa que o valha, perante... bem, esqueci o nome. Mas
houve outro alguém que se opôs a isso. De súbito tudo cessou, e caí na areia.
Continuava a fitar Ron, como se esperasse que este lhe desse uma explicação. Mas Ron
limitou-se a dizer:
— Vamos voltar.
Lançou os olhos para o sol e viu que pelo menos duas horas deviam ter passado, desde o
momento em que avistara o sacerdote no topo da pirâmide e depressa dirigira-se até ele. O
relógio confirmou a suposição. O movimento giratório consumira bastante tempo.
Lembrou-se de Gerard Lobson. Provavelmente, já havia acordado da embriaguez. Talvez
tomasse uma atitude absurda e saísse correndo por aí. Assim que visse que em torno dele
apenas havia areia, vento e uma cidade-fantasma, naturalmente voltaria. Mas até lá se
perderia tempo, um tempo precioso. E Ron não tinha tempo...
Saíram. A cidade voltara a ficar silente como no momento em que a viram pela primeira
vez. Estava abandonada, com exceção dos vultos imóveis jogados ao pé e nos degraus da
pirâmide.
Ron perguntou a si mesmo o que significava isso. Em pleno deserto havia uma
cidadezinha, ou melhor, uma série de construções, que se agrupavam em torno de uma
pirâmide que, segundo tudo indicava, era um templo. A finalidade das construções parecia
consistir unicamente em abrigar os servos dos sacerdotes, que eram as criaturas semimortas
recolhidas em Zanithon e, provavelmente, também em outras cidades.
35
Que doença seria esta, que atacava as pessoas em plena rua, durante as refeições ou
numa conversa, e transformava criaturas vigorosas em cadáveres ambulantes? E que seita
seria esta, cujos sacerdotes recrutavam estes enfermos como servos, e isso com o apoio da
polícia do planeta?
Ron acreditou ter uma explicação para aquilo que lhe acontecera quando procurara
atacar o sacerdote. Este não utilizara nenhuma arma material. Lutara com as armas do
espírito. Ele e os que acorreram em seu auxílio deviam ser certos tipos de mutantes.
Dispunham de faculdades parapsicológicas. Ao que tudo indicava, entre estas se incluía a de
transportar aquele que os atacasse para uma outra dimensão e fazê-lo girar até que morresse.
O estranho em tudo isso era que ele mesmo pouco sabia a respeito dos tais sacerdotes! Será
que eles apenas existiam em Lepso, ou também estariam em outros lugares, onde
trabalhavam às escondidas como aqui?
Era uma pergunta atrás da outra. Ron teve a impressão de que vislumbrava uma pista.
De repente, o nome Baalol despertou sua memória para alguma coisa. Não sabia o que era.
Mas lembrou-se de que esse nome tivera uma relação nada agradável com a História da Terra
dos últimos meses ou anos.
Quanto à voz estranha, que lutara com os sacerdotes de Baalol pela vida dos dois
prisioneiros e acabara por libertá-los do espaço irreal, cheio de gritos e uivos, não havia por
que fazer conjeturas. Agora Ron poderia até apostar, pois tinha certeza de quem se tratava.
Seu amigo de Pisalam realmente dispunha de faculdades espantosas!
***
Durante a caminhada de volta, não disseram uma única palavra. Atravessaram as fileiras
de dunas e perderam de vista a cidade que se estendia em torno do templo. Vez por outra
voltavam a cabeça, a fim de verificar se, por acaso, os sacerdotes os perseguiam. Mas a luta
espiritual contra o pisalamense parecia ter consumido todas as energias dos tais sacerdotes. O
deserto jazia em silêncio, e o ar tremeluzia sob a ação do calor.
Finalmente o táxi surgiu à sua frente. Cansados e suarentos desceram pela encosta da
última duna. Caminhando lado a lado, foram-se aproximando do veículo.
Subitamente Ron estacou e segurou Larry pelo ombro.
O carro estava vazio. Gerard Lobson havia desaparecido.
— Que idiota! — exclamou Larry em tom furioso. — Para onde será que ele foi?
Procuraram localizar o rastro, mas o vento parecia ter desenvolvido uma atividade
muito intensa. Havia algumas impressões apagadas, que se perdiam entre as dunas, na direção
norte. Mas ninguém poderia dizer se foram as que os dois homens haviam produzido na
manha daquele dia, ou se provinham de Gerard Lobson.
Larry contornou o veículo. Ron parou e refletiu sobre se convinha subir à próxima duna,
a fim de ter uma visão mais ampla. Mas não teve tempo para tomar uma decisão. Ouviu um
ruído atrás de si e virou-se abruptamente.
Mas Gerard Lobson foi mais rápido. Ergueu-se do buraco que ele mesmo cavara na areia.
Gerard estava inclinado para a frente. Achava aquilo divertido. Era ao menos o que se
concluía de seu sorriso.
Mas o pior de tudo: segurava um pequeno radiador de tiro concentrado, e seus efeitos
eram mortíferos.
36
6
Parecia uma situação louca. Gerard se via obrigado a dirigir sua atenção para dois lados,
e os homens à sua frente estavam armados. Não tinha a menor chance de ser bem-sucedido.
Mas a um novo exame crítico, as coisas mudavam de feitio. Gerard tivera tempo para
refletir, e aproveitara bem esse tempo. Encontrava-se a cerca de quinze metros do táxi.
Achava-se bem próximo para realizar um disparo seguro, e bastante longe para ficar de olho
nos dois homens ao mesmo tempo, sem virar a cabeça. Em compensação Larry e Ron não
viam um ao outro. Larry encontrava-se atrás do planador, onde ficara parado. Provavelmente,
Gerard “protestaria” se fizessem qualquer movimento. Isso significava que não podiam
recorrer a gestos ou olhares para combinar uma ação conjunta. Nenhum dos dois sabia o que
o outro estava fazendo.
Ao que parecia, Gerard já se deleitara bastante com a visão dos dois homens. Pôs-se a
falar, e sua voz tinha um timbre estranho.
— Os senhores e eu voltaremos juntos para Zanithon — anunciou. — Irão no assento da
frente, e eu no de trás. Irão sem armas, enquanto eu levarei este radiador.
Ao que parecia, Larry acabara de fazer um movimento. Num rápido giro, Gerard mudou
ligeiramente a direção de sua arma e gritou:
— Pare!
Evidentemente Larry obedeceu, pois Gerard voltou a descontrair-se.
— De qualquer maneira pretendíamos ir para Zanithon — disse Ron, em tom
indiferente. — Para que serve essa palhaçada?
— Acontece que os senhores não iriam ao lugar que eu quero — disse Gerard.
— Para onde pretende ir?
— Para onde estão meus amigos, que, quando eu os entregar, me ficarão devendo
alguma coisa.
— Para onde estão os saltadores, não é? — perguntou o major, em tom irônico.
Aquilo não passara de uma adivinhação. Ron não tinha qualquer prova de que Gerard
colaborava espontaneamente com os saltadores. Mas acertou. Gerard arregalou os olhos.
— Como soube disso? — replicou surpreso.
Ron soltou uma risada irônica.
— Ora, Lobson, o senhor me contou tantas mentiras que tive de construir minha própria
história. O senhor estava sentado com os dois saltadores e o ara no escritório de Zuglert, não
é? De repente um dos saltadores levantou-se e saiu da sala. Não foi o que o senhor disse?
Quando voltou, trazia-me nos braços. Santo Deus, da próxima vez o senhor terá de aprender a
mentir melhor. O senhor estava montando guarda lá embaixo; a verdade é esta.
“Os saltadores desconfiaram de mim, desde que cheguei a Lepso na nave Efraim. O
melhor meio de descobrir se a suspeita era fundada consistia em aguardar para ver se eu faria
uma visita ao escritório de Zuglert. Nem havia necessidade de manter-me sob vigilância.
Bastava colocar um guarda no edifício da Rua Oitenta e Seis, e tomar certos preparativos de
ordem técnica. O guarda foi o senhor, Lobson, e os preparativos foram realizados de tal forma
que o campo antigravitacional de cada poço de elevador pudesse ser desligado a qualquer
momento.
“Quer dizer que seu trabalho era ficar atento e avisá-los quando eu chegasse. Não venha
me dizer que um único saltador me levou para cima. Haveria necessidade de pelo menos dois
homens. Afinal, a ação tinha que ser rápida, pois naquele edifício havia gente que não tinha
nada a ver com aquilo. O senhor o ajudou a carregar-me, não é mesmo?”
Por algum tempo Gerard parecia totalmente perplexo. Mas logo recuperou o
autocontrole e um sorriso atrevido surgiu em seu rosto:
37
— Pois bem. E daí? Tem alguma objeção?
Ron balançou a cabeça.
— Nenhuma — respondeu em tom sério. — Ainda mais que eu sei que o senhor não é
responsável pelo que fez.
Gerard voltou a assustar-se.
— O que quer dizer com isso? — perguntou furiosamente.
Ron fez um gesto de desprezo.
— Deixemos isso para depois — disse. — O senhor, que por assim dizer nos tem nas
mãos, poderia responder a algumas perguntas?
Avaliara corretamente a personalidade de Gerard. Agora, que sentia-se vitorioso, estava
disposto a exibir seus conhecimentos. Fez um gesto benevolente e respondeu:
— Pergunte!
— Seus amigos, os saltadores, violaram uma linha de telecomunicação da Missão
Comercial Terrana, não é?
Gerard fez um gesto afirmativo.
— Zuglert falou por essa linha?
— Pelo que sei, sim. Mas não falou do edifício da Missão. Por uma questão de
comodidade, a linha violada foi transferida para a sede da representação comercial dos
saltadores. Foi de lá que Zuglert falou, num momento em que relaxaram em sua vigilância.
— Como foi parar lá?
— Depois que o deixei, ele conseguiu reunir forças e saiu de seu escritório para pedir
auxílio.
— Um instante — interrompeu-o Ron. — Em seu escritório havia um videofone. Por que
não chamou de lá?
Gerard hesitou.
— Não sei. Provavelmente achava que o assunto era tão importante, que não queria
confiá-lo à primeira pessoa que pudesse alcançar com o videofone de pequeno alcance.
Realmente, quando falou da representação comercial dos saltadores, não chamou ninguém,
mas pediu ao sistema de comunicações que o ligasse com a primeira nave terrana com a qual
conseguisse estabelecer contato. Provavelmente estava fazendo a ligação de telecomunicação,
quando saiu de seu escritório — um sorriso irônico surgiu no rosto de Gerard. — Acontece
que subestimou a vigilância dos saltadores. Dificilmente existe um edifício no centro da cidade
que eles não mantenham sob vigilância. Descobriram-no em tempo e levaram-no.
Infelizmente, depois disso surgiu um contratempo. Manteve aquela palestra com a Flórida...
mas não conseguiu revelar nenhum dado importante.
Desta vez, Ron soltou uma risada de escárnio.
— O senhor já me revelou todos os detalhes, Lobson — disse em tom tranqüilo.
— Eu?
— Isso mesmo. O senhor não repetiu fielmente o que Zuglert disse no momento em que
teve o acesso de fraqueza? “Importante para a Terra... Todos devem ser prevenidos... Meu
exemplo prova... Solução alcoólica de que ninguém desconfia...” Não acha que isso basta para
que se tirem algumas conclusões?
Gerard fez um gesto negativo.
— Não — disse em tom áspero. — Acredito...
— Diga-me mais uma coisa. Por que os doentes são levados ao deserto? — perguntou
Ron. — O que é que os sacerdotes de Baalol fazem com eles?
Gerard estremeceu num gesto nervoso e seu rosto ficou muito pálido.
— Não sei! — exclamou em tom exaltado. — Nunca mais pronuncie esse nome. Baalol
representa um poder terrível.
Ron lembrou-se daquilo que acabara de acontecer com Larry e ele. Estava disposto a dar
uma ênfase toda especial às últimas indagações.
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— Pois bem — respondeu em tom frio. — Vejo que o senhor ainda não sabe.
Fitou Gerard e prosseguiu:
— Acontece que eu sei alguma coisa. O senhor é um viciado em drogas, e é só por isso
que se dispõe a colaborar com os saltadores. A droga de que precisa não é muito cara, mas
acontece que o senhor não tem dinheiro. Foi por isso que entrou em contato com Zuglert.
Precisou de que ele o ajudasse em algum truque grosseiro que lhe renderia algum dinheiro.
Mas Zuglert já conhecia sua fama e sabia o que o senhor desejava dele. Pelo que me contou, ele
se dispôs a ajudá-lo, mas só de maneira decente.
“Quando Zuglert adoeceu, o senhor fugiu. É possível que os saltadores realmente o
tenham agarrado, quando voltou ao escritório de Zuglert, mas também é possível que se tenha
unido espontaneamente a eles. De qualquer maneira os saltadores lhe deram as quantidades
de droga de que o senhor necessitava. Por isso mostra-se submisso a eles. Por alguns goles de
uma bebida semelhante a um licor, que é vendida em garrafinhas com etiqueta amarelo-
violeta.”
Gerard fitou-o. Parecia perplexo. Recuou um passo, como um sonâmbulo. Sua boca
movia-se. Esforçou-se para formular palavras, mas estas não eram articuladas.
Ron esforçou-se para não mexer-se. Tinha de manter preso ao seu o olhar de Gerard. A
maior parte do que acabara de dizer não passava de suposições. A reação de Gerard provava
que todas eram corretas. Gerard estava terrivelmente assustado porque seu segredo fora
descoberto.
“Que diabo!”, pensou o major. “Está na hora de Larry agir.”
Uma fração de segundo depois disso percebeu que não se enganara em relação a Larry.
De repente Gerard teve sua atenção despertada para alguma coisa que aconteceu fora do
campo de visão de Ron. Fez menção de saltar para o lado, mas tropeçou e caiu.
Naquele instante, o disparo ofuscante do capitão saiu com um chiado de trás do veículo.
Ron entesou-se para dar um salto, a fim de desviar a atenção de Gerard, caso Larry errasse o
tiro.
Acontece que Larry fizera boa pontaria. O tiro atingiu o braço direito de Gerard. Este
soltou um grito de dor.
Ron caminhou lentamente em sua direção. Segurou-o pelos ombros, puxou-o para cima e
colocou-o de pé.
— Vamos voltar para Zanithon — disse em tom tranqüilizador. — O senhor receberá seu
licor, mesmo sem ser dado pelos saltadores.
***
A viagem correu sem incidentes. Gerard Lobson recebeu aquilo que queria. Ron Landry
teve oportunidade de verificar que a droga, denominada liquitivo, era livremente vendida no
comércio de Lepso. Era um licor. Ao que parecia, ninguém desconfiava do perigo que a bebida
representava.
Depois de sorver sua dose, Gerard modificou-se. Não pensava mais em voltar para junto
dos saltadores, ainda mais que Ron adquiriu uma grande provisão de liquitivo, a fim de
abastecê-lo por algum tempo e também poder fornecer algumas amostras aos analistas
terranos. Gerard até chegou a concordar para que fosse levado o quanto antes à Terra, onde
procurariam libertá-lo do vício.
Ron transmitiu um extenso relatório em código destinado a Nike Quinto. Enquanto
aguardava a resposta, manteve a planejada palestra com o Inspetor Neary, da Missão
Comercial Terrana.
Neary parecia muito surpreso com o fato de que seus canais de telecomunicação haviam
sido violados. O local da violação logo foi descoberto, pois os técnicos estavam a par dos
acontecimentos. Encontraram uma estação retransmissora num pequeno escritório, situado
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quatro andares abaixo, e que pertencia à Transall Import and Export Company. O proprietário
não estava presente no momento da descoberta, e nunca mais foi visto no local. Dali em
diante, os saltadores já não tinham a possibilidade de escutar as palestras da Missão
Comercial.
As investigações realizadas por Neary revelaram que o produto denominado liquitivo
era de origem desconhecida e aparecera pela primeira vez no comércio de Lepso há cerca de
doze anos terranos. Neary tinha seus meios de descobrir isso. Bastava recorrer às listas de
compras dos negociantes de bebidas, aos fregueses dos grandes restaurantes da cidade e a
alguns policiais de Lepso.
Era verdade que fazia apenas alguns meses que o liquitivo fora colocado ao alcance do
grande público. O movimento de vendas do produto se centuplicara, por assim dizer, da noite
para o dia. Era a mesma observação que Larry lhe comunicara, enquanto executava o papel de
motorista de táxi, embora ele mesmo não a tivesse feito, já que lhe fora transmitida por
terceiros. Há alguns meses, Lepso enlouquecera de repente. Uma tremenda ânsia de atividade
apoderou-se dos habitantes daquele mundo. Ninguém queria andar devagar. Todos pareciam
ter pressa, pois sentiam-se com forças para ter pressa pelo resto da vida.
Ainda se constatou que um total de quarenta e oito terranos registrados na Missão
Comercial estavam desaparecidos. Ao que tudo indicava, encontravam-se na cidade onde
ficava o templo dos sacerdotes de Baalol. Era bem verdade que, segundo os cálculos de Ron
Landry, essa cidade devia ter alguns milhares de habitantes, admitindo que cada uma das
casas tinha pelo menos três ocupantes. Dali se concluía que também havia membros de outras
raças galácticas, vítimas do perigoso licor.
Quando as investigações de Neary ainda estavam em curso, Ron recebeu ordens da Terra
para regressar imediatamente com Larry Randall. Avisou Larry, que estava realizando
investigações por conta própria, juntamente com Gerard, e combinou um encontro em seu
hotel.
Depois disso despediu-se de Neary. Nos últimos tempos vira vários funcionários da
Missão Comercial e falara com todos eles. Saiu da sede com a impressão de que ali também se
verificava uma estranha pressa e ânsia de atividade. Mas não falou com Neary a este respeito.
Sabia que a droga, denominada liquitivo, já tinha um círculo de consumidores muito
mais amplo do que supusera.
***
A araucana alta estava novamente atrás do balcão da recepção. Ron sabia que cometera
uma injustiça contra a moça, ao supor que ela era uma colaboradora dos saltadores. O
liquitivo apenas era uma bebida entre muitas. Naqueles tempos tornara-se a bebida da moda
em Lepso, e tinha um enorme efeito revitalizante. Ninguém sabia — ou ninguém parecia saber
— que certos consumidores se tornavam viciados. Era por simples cortesia que a direção do
hotel oferecia aos hóspedes recém-chegados uma dose de liquitivo — cujo preço
evidentemente lhes seria debitado.
“Todavia”, pensou Ron, com um sorriso, “o segundo copo que a araucana traz agora na
bandeja, sem dúvida não está previsto nas instruções de serviço!”
Sorriu para a moça ao passar por ela. Quando chegou ao quarto, Larry Randall e Gerard
Lobson já se encontravam lá. Como sempre, Gerard estava animado e impaciente. Não se
tranqüilizou, nem mesmo quando Ron lhe asseverou que deixariam Lepso ainda naquele dia.
Larry descobrira que, em linhas gerais, os dados fornecidos por Neary eram corretos.
Fazia pouco mais de doze anos que o liquitivo aparecera no comércio pela primeira vez.
Ninguém sabia de onde vinha. O dono do restaurante adquiria o produto do varejista, este o
comprara do atacadista, o atacadista o recebera de um distribuidor geral, que fazia suas
compras no lugar denominado Cinema, no sistema de Lorraine. Não havia a menor dúvida de
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que os habitantes de Cinema não eram os verdadeiros produtores. O licor passava por um
número muito grande de mãos, e chegava a ser um milagre que o vendedor final ainda
pudesse fornecê-lo a um preço acessível.
— Quer dizer — concluiu Ron, em tom pensativo — que o liquitivo provoca duas reações
diversas.
Larry arregalou os olhos.
— Você já chegou mais longe que eu — disse com um sorriso. — Poderia fazer o favor de
explicar?
Ron fez que sim.
— Preste atenção. Armin Zuglert era um homem robusto e esportivo. Ninguém
desconfiava de que fosse um viciado em liquitivo. De repente sua saúde se arruína; ele se
torna um cadáver vivo. Por quê?
— Porque não recebe mais liquitivo — disse Larry, apressadamente e em tom convicto.
Ron negou com o dedo.
— Não é nada disso! O liquitivo pode ser comprado em qualquer lugar, e Zuglert tinha
dinheiro. Sabia que estava viciado, e também sabia que um viciado não pode parar de uma
hora para outra de tomar a substância à qual o corpo está acostumado. Portanto, não tinha
nenhum motivo para deixar de adquirir novas provisões de liquitivo, assim que suas reservas
da bebida se esgotassem.
“Porém, além de viciar, o liquitivo produz outro efeito, depois de um período de
consumo regular. Transforma o homem e outros seres em cadáveres vivos. Quanto tempo
dura isso? A única coisa que podemos dizer é que esse efeito surge no máximo depois de doze
anos e alguns meses de uso. E que antes disso Zuglert não poderia ter conseguido a droga em
Lepso.”
Larry refletiu por algum tempo. Finalmente confirmou com um gesto.
— Acredito — disse como quem fala para si mesmo — que poderemos descobrir muita
coisa se nos ocuparmos detidamente com os habitantes da cidade templária de Baalol.
Ron levantou-se e dirigiu-se a uma das janelas.
— Acredito — disse com um suspiro — que é por isso que Nike nos chama de volta à
Terra. Quer apostar que não ficaremos em paz por muito tempo?
— Não aceito a aposta — disse Larry, que continuava sentado na poltrona. — Não posso
fazer uma aposta contra alguém que pensa da mesma forma que eu.
Ao que parecia, Gerard sentiu-se entusiasmado com a idéia de voltar para Lepso e
examinar a cidade templária. Estava a ponto de iniciar um discurso prolongado a este
respeito, quando aconteceu uma coisa estranha.
Ron olhou para trás e viu uma neblina tremeluzente que surgiu no meio do quarto.
Surpreso, deu um passo na direção da mesma para examiná-la melhor. Naquele momento, a
neblina transformou-se numa caixa de formato cúbico, que desceu tranqüilamente sobre o
tapete e se acomodou. Na parte dianteira da caixa havia uma grossa vidraça, atrás da qual se
movia um líquido verde viscoso. No interior do líquido boiava uma sombra matizada de cinza-
claro e cinza-escuro, que executava uma série de movimentos elegantes.
Ron logo se recuperou da surpresa.
— Fico satisfeito em revê-lo mais uma vez — disse.
— Vim para despedir-me.
— Vai voltar para Pisalam?
— Isso mesmo. Quero agradecer-lhe. Você encontrou a pista de nosso irmão
desaparecido.
— Uma pista muito triste...
— Foi o destino. Quando lhe pedi que procurasse localizar nosso irmão, tinha certeza
quase absoluta de que não poderíamos salvá-lo.
— Por quê? — perguntou Ron, em tom de surpresa.
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— Do contrário teria sido possível estabelecer contato com ele — disse o ser de Pisalam.
O transec conferiu um tom alegre à sua voz, quando acrescentou:
— Afinal, mantive contato com você, que é um estranho, por mais afastados que
estivéssemos um do outro. Por isso, quando você esteve para ser interrogado no interior de
um edifício desta cidade e quando correu perigo no deserto, pude intervir em tempo. Teria
sido muito mais fácil estabelecer contato com meu irmão, se nada lhe tivesse acontecido. No
momento em que cheguei a Lepso, as emissões dele estavam reduzidas a um zumbido surdo e
ininteligível. Supus que não poderíamos fazer mais nada por ele. Mas quis ter certeza.
Seguiu-se uma ligeira pausa.
— Voltarei para Pisalam — continuou o ser estranho, em tom triste. — O nome de nosso
irmão será riscado das listas.
— De qualquer maneira fico-lhe muito grato pelo auxílio que me prestou — disse Ron. —
Se não fosse este auxílio, não teria conseguido muita coisa.
— Não diga isso — objetou o pisalamense. — Seu espírito é muito forte. Você é capaz de
enfrentar muitos inimigos.
Ron refletiu sobre o que deveria dizer.
— Se você permitir, um dia lhe farei uma visita — disse.
— Você sempre será bem-vindo — respondeu o ser. — Você e seus amigos.
Depois disso, o incrível se repetiu. De repente, o lugar em que pouco antes se encontrava
o cubo, ficou vazio. Lá embaixo, junto à entrada do hotel, um veículo de formato cúbico pôs-se
em movimento, seguiu rua a fora e afastou-se rapidamente.
Ron olhou para o relógio.
— Está na hora — disse em tom cansado. — Iremos numa nave-correio da Missão
Comercial. Preparem-se, amigos.
42
7
Ron teria ganho a aposta, se tivesse encontrado alguém disposto a aceitá-la. Quando a
nave-correio pousou, Nike Quinto encontrava-se no espaçoporto. Depois de um ligeiro
cumprimento, disse a Ron Landry e Larry Randall que só disporiam de cinco horas para
descansar. Levou-os a um hotel e mandou que, depois desse tempo, se apresentassem em seu
escritório.
Imediatamente pôs as mãos em Gerard Lobson, que pouco antes do pouso recebera a
última dose de liquitivo e estava muito exaltado. Se Nike Quinto sugerisse que se dirigissem à
cidade e assaltassem a sede do General Cosmic Bank, provavelmente teria ficado encantado
com a idéia. Não se interessou em saber o que Nike Quinto pretendia fazer com ele. O que lhe
importava era que acontecesse alguma coisa.
Naquela oportunidade houve um incidente que provavelmente ficaria gravado pelo resto
da vida na memória de Ron e de Larry. É que Nike Quinto se sentiu incomodado com a
atividade excessiva de Gerard. Procurou restringi-la pela forma a que estava habituado.
Começou a queixar-se da pressão sangüínea e responsabilizou Gerard pelo fato de que seu
estado de saúde se deteriorava rapidamente, motivo por que, dentro de uma hora,
provavelmente sofreria um infarto.
Gerard ouviu as queixas, Mas finalmente irrompeu:
— Pare com essa choradeira. Se sua pressão sangüínea realmente é tão miserável,
aposente-se e deixe que outra pessoa ocupe seu cargo.
Nike Quinto engoliu várias vezes em seco e seu rosto tornou-se ainda mais vermelho.
Ficou calado. Enquanto Gerard estava por perto, não disse mais uma única palavra sobre sua
pressão.
***
Dali a cinco horas, Nike Quinto falou em atitude muito séria, e fazendo um esforço inútil
para dar um tom grave à voz, que saía aos guinchos:
— O assunto em que estamos envolvidos é tão importante que recebi minhas instruções
diretamente do administrador. É bom que isso fique bem claro, para que não pensem que
podemos discutir os planos que lhes serão apresentados. Cabe-lhes exclusivamente tomar
conhecimento dos mesmos e executá-los.
Moderando o tom de voz, acrescentou:
— Não é porque o administrador em pessoa deu as instruções. Como sabem, ele não
acredita que é um super-homem e nem que entende de tudo melhor que qualquer outra
pessoa. É porque todo o potencial positrônico da Capital foi utilizado na elaboração dos
planos. Não podemos descobrir nenhum erro nos mesmos. Nossos cérebros são muito
pequenos para isso. Entendido?
Ron confirmou com um gesto distraído. Como de costume, Larry preferiu não dizer nada,
nem fazer qualquer gesto. Ron não pôde deixar de confessar que se sentia impressionado com
a exposição de Nike Quinto. Via de regra Perry Rhodan, o administrador, costumava ser
considerado um homem ao qual todos se referiam num tom de voz de uma criança que alude
ao grande mágico da fábula. O administrador não estava sujeito à pressa e insegurança deste
mundo. Estava sentado em seu trono, bem acima das nuvens, em algum país nebuloso e
distante. Nunca intervinha em qualquer assunto. Suas atividades restringiam-se ao plano mais
elevado da política interestelar. Era esta a imagem que a maioria das pessoas havia formado
de Perry Rhodan. Por isso, o fato de ele ter intervindo no problema de Lepso era espantoso.
— De onde vem a ordem? — perguntou.
43
Nike Quinto inquietou-se.
— De onde vem o quê? — esbravejou. — Faça o favor de exprimir-se com maior clareza.
Uma pergunta confusa sempre me deixa nervoso, e o nervosismo faz subir minha pressão. O
que deseja saber?
Ron sorriu.
— Por que — perguntou, usando uma linguagem mais precisa — o assunto é tão
importante que o administrador teve de cuidar pessoalmente do mesmo?
— É simples — respondeu Nike Quinto. — Os sacerdotes do culto de Baalol ocupam um
lugar de destaque no problema de Lepso. O culto de Baalol já desempenhou seu papel na
História da Terra, isso há cerca de sessenta anos. Houve uma tentativa de atentado contra o
Imperador de Árcon. Furtaram-lhe o ativador, a fim de obrigá-lo a abdicar. A iniciativa partiu
dos sacerdotes de Baalol. E o aparelho foi encontrado em poder de um sacerdote desse culto,
depois da perseguição até o sistema de Gela e da luta violenta. Os sacerdotes de Baalol são
mutantes poderosos, com uma variedade tremenda de capacidades paramentais. Nenhum dos
mutantes terranos está em condições de enfrentá-los. Com a maior facilidade absorvem
outras capacidades parapsicológicas e as dirigem contra o indivíduo que é portador das
mesmas. Face a este efeito de reversão, também costumam ser chamados de antis.
“Sabemos que os antis montaram uma extensa rede de locais de culto em todos os
pontos da Galáxia. Acontece que não conhecemos seus objetivos, nem a natureza de seu culto.
A respeito deste, apenas sabemos que não gira em torno de uma ou algumas divindades
definíveis. Manifesta, de forma mística, a pretensão de incutir nos crentes a sabedoria final e
livrá-los de todo sofrimento físico e psíquico.
“Ainda sabemos que os antis são hábeis negociantes. Não é de se admirar que
mantenham relações com os saltadores, pois, ao que tudo indica, estão em condições de
fornecer mercadorias importantes a estes. Os biomédicos, conhecidos como aras, também
foram vistos muitas vezes em companhia dos sacerdotes de Baalol. Ambas as raças, ou seja, os
saltadores e os aras, têm intenções nada amistosas para com a Terra. Por isso, a lógica nos faz
concluir que não devemos esperar nada de bom dos antis.
“Em Lepso, eles se envolveram num negócio. Provavelmente são os saltadores que
fornecem as matérias-primas para o liquitivo. Os aras usam estas matérias-primas para
fabricar a bebida diabólica e os antis tiram proveito dos viciados semimortos que são
recolhidos pela polícia de Lepso e levados à cidade templária. Certamente Lepso só participa
da operação porque isso lhe traz uma vantagem financeira.
“Isso basta para que possam avaliar a situação. Cabe-nos agora impedir a disseminação
do tóxico pela Galáxia, especialmente pelas áreas de influência terrana. As amostras de
liquitivo, que os senhores trouxeram de Lepso, já foram submetidas a uma análise provisória.
Os analíticos são de opinião que não poderão fazer muita coisa, enquanto só dispuserem
dessas amostras. Precisam dos viciados para realizar seus estudos. Portanto, os senhores
terão de voltar para Lepso e libertar o maior número possível de prisioneiros da cidade
templária. Concordam em fazer isso?”
Ron estremeceu. Lembrou-se do que lhe acontecera quando pela primeira vez procurou
penetrar no templo. Já conhecia o terrível poder dos sacerdotes de Baalol. Face ao que Nike
Quinto acabara de dizer, nenhum mutante os acompanharia durante a missão. Ele e Larry
ficariam sós. Dependeriam exclusivamente de suas capacidades para enfrentar um grupo de
antis que dispunha de dotes sobrenaturais. Sentiu um calafrio.
— Não é que eu goste disso, coronel — respondeu, depois de algum tempo. — Mas sou
de opinião que sempre se deve concluir o que foi começado.
Nike Quinto acenou com a cabeça. Parecia satisfeito.
— Apenas lhe peço que responda a uma pergunta — prosseguiu Ron.
Nike Quinto franziu a testa.
44
— Compreendo perfeitamente que o assunto cause repugnância — disse Ron. — Alguns
milhares de seres vivos de todas as raças desapareceram em Lepso, entre eles quarenta e oito
terranos, e as vendas da bebida diabólica crescem constantemente. Mas por que motivo o
administrador, em pessoa, resolveu participar da solução do problema?
Quinto pôs-se a brincar com um estilete de escrever. Ao que parecia, esforçava-se para
formular uma resposta lacônica.
— É simples — começou sentencioso. — Na Terra surgiram indícios da realização de
atividades suspeitas. Ao que parece, o liquitivo já encontrou um caminho para cá.
***
***
***
47
8
Dormiu algumas horas. Foi despertado pela batida retumbante do gongo. Espantado,
virou-se para o lado. Por uma fração de segundo viu o doente pálido que estava deitado a seu
lado. Mas este logo desapareceu. Outro quadro surgiu. Viu um recinto amplo, escassamente
iluminado, que estava totalmente vazio, com exceção de três sacerdotes enfileirados, em trajes
reluzentes e esvoaçantes. Os três “feiticeiros” se encontravam na outra extremidade do recinto
e dirigiam os olhos sobre Ron.
Por estranho que pudesse parecer, Ron não teve a impressão de encontrar-se no interior
do recinto. Tinha certeza de que continuava deitado na cabana de pedra, e de que o quadro do
pavilhão com os sacerdotes estava sendo incutido em sua mente. Parecia até alguém
segurando um quadro colorido e vivo à frente dos seus olhos. Permaneceu indiferente.
Subitamente, os sacerdotes começaram a falar. Ron viu que não moviam a boca. Mas,
como da primeira vez, ouviu suas vozes e entendeu as palavras proferidas.
— Alegre-se! Você foi eleito para servir à verdade eterna e aos seus servos.
Ron sentiu que essas palavras haviam sido dirigidas a ele, e que as compreendia da
mesma forma que, em outra oportunidade, compreendera o turbilhão de fragmentos de
idéias, que lhe prometiam uma morte horrível.
Ron não disse nada. Limitou-se a fitar o quadro com uma expressão de espanto.
— Mas a fé exige obediência — emitiu um dos sacerdotes. — Ninguém alcança o
conhecimento sem obediência. Você nos obedecerá, senão...
Não prosseguiu. Ron sentiu uma dor lancinante atravessar seu corpo. Quis gritar. Mas
como se encontrava em estado incorpóreo naquele recinto, não teve boca, pela qual pudesse
sair seu grito.
Compreendeu o sentido da demonstração. Toda vez que desse mostras de falta de
dedicação, sentiria a mesma dor, ou talvez até uma dor ainda mais violenta.
“Nestas condições sou obrigado a ser obediente”, pensou.
Os três sacerdotes pareciam ter captado a idéia.
— Não existem condições — voltou a emitir um deles, e Ron percebeu que a dor se
tornava mais intensa. — Você servirá incondicionalmente à verdade, e a nós, que somos seus
guardiões.
Ron contorceu-se e não ouviu mais nada. Não sabia o que estavam fazendo com ele, mas
tinha certeza de que era horrível. Não era possível localizar a dor. Parecia que seu corpo fora
atirado num espaço, onde dor e martírio o envolviam.
“Sim, obedecerei”, pensou Ron.
A dor passou. A voz dos sacerdotes tornou-se audível.
— Pratique a humildade. As portas da verdade só se abrem aos humildes. Retorne ao seu
lugar.
Ron abriu os olhos. Esperava ver à sua frente o rosto do doente que estivera deitado a
seu lado. Mas o chão de pedra estava vazio. Ron virou-se de costas e viu um dos quatro
companheiros de sofrimento, ajoelhado a seu lado.
— Meu Deus... foi demorado — disse o homem, em tom apavorado.
Ron levantou o braço e olhou para o relógio. Não sabia quando fora despertado pela
batida do gongo, mas acreditava que não eram mais de cinco horas. E agora já passava das
oito. Quer dizer que passara pelo menos três horas com o sacerdote, no interior daquele
recinto.
Os outros doentes garantiram que isso não era comum. Nenhum deles “ficara longe”,
conforme costumavam exprimir-se, por mais de uma hora e meia. Ron começou a desconfiar.
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Será que os sacerdotes notaram que era diferente das outras pessoas que a polícia de Lepso
costumava entregar-lhes?
Era um risco que tinha de aceitar. Os sacerdotes de Baalol dispunham de intensas
capacidades psíquicas. Era bem provável que soubessem distinguir entre o espírito de um
homem sadio e o de um doente. Segundo informaram seus quatro companheiros de prisão,
seu corpo girara várias vezes de um lado para outro, enquanto os sacerdotes trabalhavam
com seu espírito. Era outro fato extraordinário, ao qual nunca haviam assistido. Ron resolveu
que teria de imitar ainda melhor o comportamento de uma pessoa realmente doente.
Assim, por exemplo, deixou que o dia se passasse sem fazer nada. Durante esse dia
apareceram por três vezes cinco bacias, trazidas por mãos invisíveis. Nessas bacias havia um
mingau cinzento, sobre o qual seus companheiros se precipitaram vorazmente. Ron não
estava com fome. Teve de fazer algum esforço para comer. Esvaziou sua bacia, tal qual os
outros. Sentiu que o mingau saciava tanto a fome quanto a sede. As vasilhas desapareceram ao
mesmo tempo, sempre quinze minutos depois do momento em que haviam surgido.
Isso deixou Ron mais tranqüilo, já que o fato o levou a concluir que os sacerdotes não
exerciam uma vigilância ininterrupta sobre o interior das cabanas. Do contrário veriam
quando cada prisioneiro concluía sua refeição, e retirariam as bacias, seguindo a ordem.
Face a isso, assim que escureceu, criou coragem para sair da cabana e dar uma olhada
pelas outras construções da cidade templária. Ele o fez com uma finalidade definida. Queria
descobrir quem havia chegado no dia anterior, além de desejar encontrar-se com o Dr.
Zuglert.
Revistou várias cabanas de pedra. Todas elas eram ocupadas por seres não-terranos. Na
sua maioria, os ocupantes eram membros das raças de colonos arcônidas, mas também havia
alguns swoons e outros prisioneiros não-humanóides.
Ron levou mais de uma hora para encontrar outra cabana habitada por terranos. Seus
olhos já estavam habituados à luz mortiça das estrelas. Bastaria deixar a porta aberta e logo
reconheceria perfeitamente os prisioneiros, que se achavam mais próximos.
Pôs-se de joelhos e disse num cochicho para dentro do recinto escuro:
— Nike Quinto tem uma enorme barriga...
Dali a alguns segundos ouviu a resposta, proferida em voz baixa:
— ...e apenas dezessete fios de cabelo na cabeça.
Alguém mexeu-se. Ron viu uma cabeça emergir da escuridão. Reconheceu um dos cinco
homens que Nike Quinto enviara a Lepso juntamente com ele.
— Tudo bem, sir — anunciou o homem.
— Sabe alguma coisa a respeito dos outros? — indagou Ron.
— Lester e Harrings chegaram “bem”. É só o que eu sei.
— Muito bem. Zuglert está na sua cabana?
— Sim, senhor. Até se mantém bastante ativo.
— Está bem. Preciso falar com ele.
Rastejou para dentro da cabana. Um dos ocupantes ouvira a palestra. Ergueu-se e fitou
Ron.
— O senhor é o Major Landry? — perguntou com a voz apagada.
Ron respondeu que sim.
— Meu nome é Armin Zuglert — disse o prisioneiro. — Seu plano já é do meu
conhecimento e fico muito satisfeito com o mesmo. É muito importante que eu volte à Terra.
Ron confirmou com um gesto.
— Não sou autor do plano — respondeu. — E é perfeitamente possível que ele falhe.
Será preferível que me diga logo o que sabe. Talvez, apenas um de nós conseguirá escapar.
Zuglert concordou. Formava um estranho contraste, face aos outros doentes. Parecia ter
uma reserva oculta que constantemente lhe proporcionava novas energias. Era capaz de uma
fala coerente e, depois de cada palavra que pronunciava, não tossia. Explicou o motivo. Era
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médico e havia criado um método de controlar as escassas energias que lhe restavam, a fim de
possuir uma reserva quando precisasse dela.
Zuglert informou que há doze anos trabalhara com um terrano chamado Edmond
Hugher. Hugher também era biomédico, e foi por intermédio dele que pela primeira vez
Zuglert travou conhecimento com o licor liquitivo. A ocupação de Hugher consistia em
examinar o líquido. Ao que parecia, sabia que o licor continha substâncias ativas vegetais, que
produziam um rejuvenescimento do espírito e dos tecidos do corpo. Ambos tomaram o licor, e
Zuglert transformou-se num viciado. Depois de pouco tempo, Hugher desaparecera sem
deixar o menor vestígio. Zuglert não saberia dizer se o liquitivo produzira nele o mesmo efeito
que em sua pessoa. Mas no seu íntimo tinha certeza disso, já que não havia ninguém que
tomasse o liquitivo por mais de quatro vezes sem transformar-se num viciado.
Após isso, Zuglert estudara atentamente as características do vício até o momento em
que sucumbira, e registrara seus estudos. A maior parte dos registros fora enviada a um banco
da Terra, para ser guardada no cofre. Apenas as informações relativas aos últimos dias
anteriores ao seu colapso haviam ficado em seu escritório, onde os saltadores provavelmente
as haviam encontrado e confiscado.
Das informações de Zuglert, ainda se concluía que doze anos e quatro meses se haviam
passado, desde o momento em que se tornara viciado até aquele em que sobreviera o colapso.
Certa vez, Zuglert interrompera o consumo do liquitivo por um período prolongado, a fim de
estudar os sintomas. Suas experiências levaram-no a afirmar que ninguém suportaria uma
interrupção por período superior a seis dias terranos. A conseqüência imediata da suspensão
eram as manifestações de esgotamento, que se tornavam mais patentes, face ao período
antecedente de superexcitação. A elas, seguia-se a decadência psíquica.
Descreveu seu ex-colaborador, o Dr. Edmond Hugher, como um homem calmo, sempre
bem-humorado, que costumava exibir um sorriso malicioso e parecia saber certas coisas que
não queria revelar. De qualquer maneira, o Dr. Zuglert surpreendera-se com a variedade e a
quantidade de seus conhecimentos.
Depois disso, Zuglert fez uma revelação surpreendente.
— Aliás, ainda tenho um retrato dele — disse. — Sempre o trago comigo, já que para
mim o Hugher foi um colaborador precioso. Guardo uma boa lembrança dele.
Ron estendeu a mão.
— Dê-me o retrato — pediu. — Tenho a impressão de que esse Hugher não é tão
inocente como pode parecer.
Zuglert obedeceu imediatamente. Sua mão débil tirou o retrato do bolso da jaqueta e
entregou-o a Ron. Este examinou-o ligeiramente e guardou-o.
Depois disso saiu da cabana. Prosseguiu em sua ronda e constatou que os cinco agentes
disfarçados de doentes haviam chegado à cidade templária, conforme previam os planos.
***
O Capitão Larry Randall, que estava na sala de comando da Flórida, voltou a fitar o
mostrador luminoso do grande relógio. Desta vez, os dois ponteiros se encontravam na
posição desejada por ele. Soltou um suspiro de alívio e levantou-se. Dick Kindsom, oficial
superior, que também se achava na sala de comando, perguntou:
— Está na hora?
Larry fez que sim.
— Vamos passar para a outra nave e prosseguir com a ação.
Dick Kindsom lançou um olhar extremamente desconfiado para a nave arcônida, que se
destacava nas telas da Flórida sob a forma de uma mancha escura no mar de estrelas.
— Quem dera que eu não tivesse uma sensação tão desagradável — observou.
Larry fez um gesto de desprezo.
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— Se mantivermos a máquina constantemente guarnecida e em recepção, dificilmente
poderá acontecer qualquer coisa. Na pior das hipóteses, chegarão algumas pessoas a menos
do que esperávamos.
Dick Kindsom fez uma careta.
— Seja como for... — disse — rezo pelo senhor.
Larry agradeceu. Depois disso dirigiu-se ao intercomunicador e chamou os homens, que
deveriam transferir-se, juntamente com ele, para a nave robotizada arcônida.
Não houve perda de tempo. Trinta minutos depois do momento em que Dick Kindsom’
dissera que rezaria por Larry, a nave robotizada recebeu uma tripulação orgânica. A seguir,
afastou-se da Flórida, acelerando fortemente. Deslocou-se em direção a Lepso.
***
Na manhã do dia seguinte, Ron Landry passou por outra sessão de instrução.
Mais uma vez viu-se no interior do gigantesco recinto, à frente dos três sacerdotes, que
lhe haviam explicado que a obediência prevista no culto de Baalol exigia principalmente que
nunca tentasse abandonar a cidade templária.
Esta exposição foi apresentada com uma força de persuasão quase hipnótica. Ron teve
certeza de que o espírito dos doentes, muito mais débil que o seu, sucumbiria sem a menor
resistência a este tipo de influência. Mesmo após a sessão de instrução, continuariam presos à
ordem quase hipnótica; nem pensariam em sair da cidade.
Ron concluiu que os antis estavam interessados em que o público não tivesse
conhecimento dos resultados de sua ação malévola. Os semimortos nunca mais deveriam sair
do templo. De outro lado, porém, o templo deveria ter um aspecto místico, não de uma prisão.
Além disso, os sacerdotes provavelmente eram poucos para vigiar os milhares de prisioneiros.
Por isso usavam suas faculdades parapsicológicas a fim de que estas criassem uma barreira,
impossível de ser rompida pelos doentes.
Ao dar-se conta disso, Ron Landry voltou a ficar com raiva, e foi esta raiva que acabou
por traí-lo.
***
Nenhum dos doentes possuía energia para sentir raiva. Os sacerdotes registraram a
presença das fortes irradiações hostis daquele espírito pretensamente enfermo e passaram a
exercer uma vigilância mais intensa sobre ele.
No mesmo dia, Ron Landry foi levado a uma segunda sessão de instrução, e desta vez os
sacerdotes armaram-lhe uma cilada. Expuseram as características do culto de Baalol.
Explicaram que, segundo este culto, a verdade-última, até o fim dos tempos, sempre seria
acessível apenas a uns poucos eleitos.
Um deles emitiu:
— Um dia os mundos reconhecerão a importância de nossa tarefa. Os donos dos
planetas, os que governam os grandes impérios, inclinar-se-ão à nossa frente e sentir-se-ão
satisfeitos se puderem beijar nossos pés.
E Ron Landry cometeu um grande erro!
Por mais que se esforçasse, não conseguiu ouvir esse tipo de conversa-fiada, sem que lhe
surgissem idéias próprias. E naquele momento, sua idéia foi mais ou menos esta:
“Eles vão-me dar uns puxões de orelhas!”
Depois disso os sacerdotes, perplexos, mantiveram-se em silêncio por alguns minutos.
Finalmente um deles voltou a emitir:
— Este homem é um traidor! Matem-no!
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Ron recuou. Por um instante esqueceu-se de que sua presença naquele recinto era
incorpórea.
As paredes do pavilhão desfilaram diante de seus olhos. Parecia que se deslocava. Os
sacerdotes foram ficando menores: afastava-se deles. Enquanto recuava, aqueles homens à
sua frente começaram a movimentar-se. Agitaram violentamente os braços e emitiram:
— Segurem-no! Ele não deve escapar. É um traidor, e por isso deve morrer.
Por um instante, o fato da fuga ser tão fácil deixou Ron espantado. Nunca acreditaria que
o simples desejo de não morrer bastaria para resistir à vontade dos sacerdotes.
Não sabia que, por meses a fio, estes haviam lidado apenas com doentes, incapazes de
oferecer qualquer resistência. Não sabia que as forças espirituais dos “feiticeiros” haviam se
acostumado à constituição débil dos doentes, motivo por que levariam algum tempo para
habituar-se à nova situação e enfrentar a luta com um espírito sadio e vigoroso.
52
9
Saiu do pavilhão, passando por um amplo portão. Viu diante de si uma praça redonda, na
qual desembocavam corredores vindos de todas as direções. O fato de acreditar que se tratava
de corredores provava que tudo fora bem tramado. Naquele instante, não percebeu o que se
encontrava acima de sua cabeça.
As emissões dos sacerdotes tornaram-se mais fracas. Ron teve uma sensação de triunfo.
Num caso como este, as vozes mais fracas significavam que o poder que os sacerdotes
exerciam sobre seu espírito estava desaparecendo. Quando deixasse de ouvi-las de vez,
estaria livre de todo perigo — exceto, talvez, o de não mais encontrar seu corpo.
Escolheu um corredor, que formava um ângulo reto com o eixo longitudinal do pavilhão
e levava para a direita. Bastou seu desejo para que o chão da praça deslizasse sob seus pés e o
corredor se aproximasse.
No interior do corredor reinava uma estranha escuridão, que não lhe permitia perceber
os detalhes. A única coisa que viu foi uma mancha luminosa amarela, que ficava bem ao longe
e levava à conclusão de que o corredor saía ao ar livre. Deslocou-se em direção a essa mancha
luminosa. Sentiu um desejo ardente de alcançá-la o quanto antes.
Segundo seus cálculos, havia percorrido mais ou menos metade do caminho. Naquele
instante, sentiu que alguém se encontrava atrás dele. Face ao nervosismo dos últimos
minutos, deixara de prestar atenção às vozes dos sacerdotes.
— Lá adiante, no corredor — gritou alguém. — Apressem-se, senão ele acabará
escapando.
Agora eram vozes mesmo, e não impulsos mentais.
— Não escapará — disse alguém em tom tranqüilizador. — Se necessário, poderemos
recorrer ao fogo da verdade.
— Sim, mas com isso todas as nossas forças...
— Cale-se, seu idiota! Será que você faz questão de revelar-lhe todos os nossos segredos?
Depois disso voltou a reinar o silêncio. Ron compreendeu que ainda estava sendo
perseguido.
***
***
Assim que saiu do corredor e mergulhou na claridade amarelenta, Ron percebeu seu
engano.
Aquilo não era nenhuma saída. Não viu nenhuma extensão de areia banhada pelo sol,
com as pequenas construções enfileiradas. Viu-se num mar de luz amarela, no qual podia
nadar como se estivesse na água. Precipitou-se para o lado, tornou a mergulhar, voltou-se
para a direita e para a esquerda, mas não encontrou outra coisa além da luz amarela. Nem
sequer conseguiu localizar a extremidade do corredor do qual saíra há poucos segundos.
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Apenas percebeu que, de repente, a luz amarela se tornou menos intensa e assumiu uma
tonalidade vermelha. Sentiu o calor que o atingia de todos os lados. Olhou em torno e viu os
rostos debochados que o fitavam.
“Recorreram ao fogo da verdade...”, pensou o major.
Ron disciplinou-se mentalmente. Não adiantava andar nadando pela luz e cansar-se em
troca de nada.
O calor foi aumentando. Ron sentiu que começava a transpirar. Era estranho. Como
poderia suar, já que não possuía corpo?
As caretas que o cercavam continuaram no mesmo lugar. Pairavam imóveis. Eram
apenas rostos que o fitavam com um sorriso diabólico. Ron ouviu vozes vindas de longe, que
se divertiam à sua custa:
— Olhem como ele vai se contorcer! Ficará preso no fogo. A verdade final castigará
aquele que dela zomba.
Outra voz gritou em tom estridente:
— Todos aqueles que desprezarem Baalol terão esse destino.
O calor começava a tornar-se insuportável. A luz que o envolvia transformara-se numa
incandescência vermelha. Teve a sensação de quem está preso num forno, mas sabia que o
martírio estava longe de ter chegado ao fim.
Voltou a movimentar-se. Foi subindo lentamente e tornou a descer. Mas o calor
continuava inalterado. A temperatura crescia rapidamente.
Ron viu que as caretas dos sacerdotes se aproximavam. As vozes estridentes tornavam-
se mais fortes. Sabia o que significava isso. Eles o haviam prendido.
Seus pensamentos começaram a ficar confusos. Já não sabia onde estava. A impressão de
que seu corpo sofria todos esses martírios tornava-se cada vez mais nítida. Sentiu uma
comichão na pele e o suor entrava-lhe pelos olhos. Contorceu-se. Só teve um desejo, o de
poder levantar as mãos para coçar-se em todos os lugares em que sentia comichão e
mordidelas...
Começou a gritar.
***
***
Os agentes de Nike Quinto costumavam ser treinados para agir com total independência.
Ouviram o uivo da nave que caíra. Quase ao mesmo tempo escutaram o estrondo provocado
pelo impacto do veículo espacial e sentiram o solavanco que sacudiu o solo, como se fosse um
terremoto.
Cada um deles segurou dois dos doentes mais fracos, retirou-os da pequena casa e levou-
os pelo deserto a fora, em direção à gigantesca nuvem de pó que cobria o local da queda. Os
outros, que dependiam das energias que lhes restavam, arrastavam-se pesadamente atrás dos
primeiros. Se não fosse a esperança da salvação, não conseguiriam dar mais que dois ou três
passos.
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Tudo correu conforme fora planejado. A nuvem de pó continuava a ocultar a nave que
acabara de realizar o pouso de emergência. Naquele momento, o último dos quarenta e oito
doentes atravessou a única eclusa da nave que continuava intata e entrou na sala de comando.
Larry Randall encaminhava os doentes imediatamente para uma espécie de cerca de arame,
que havia nos fundos da sala. No meio da cerca abria-se uma porta. Braços prestativos
empurravam os doentes por essa porta e fechavam-na atrás deles.
No mesmo instante, o local junto à cerca ficava vazio. O doente desaparecia.
Larry observou a tela. Viu a nuvem de pó baixar lentamente. Já reconhecia o topo da
pirâmide do templo.
E Ron Landry ainda não chegara!
***
Ron levou algum tempo para entender o que as caretas já tinham compreendido. O major
só conseguia raciocinar perfeitamente porque o calor diminuíra.
Ficou espantado. Alguma coisa devia ter acontecido. Os sacerdotes já não se
interessavam por ele. Será que sua pessoa e seus pensamentos e ações deixaram de ter
importância? Ou será que a atenção dos “feiticeiros” fora desviada?
Não sabia. Sentiu-se aliviado ao notar que a luz que o envolvia voltava a tornar-se mais
intensa. Nadava com movimentos vigorosos pelo mar de luminosidade. Agora, que escapara
ao maior perigo, voltou a lembrar-se da tarefa que devia cumprir. Antes de mais nada, teria de
reencontrar seu corpo.
Até parecia que o reconhecimento da tarefa fora suficiente para realizar o milagre. De
repente, o mundo que o cercava começou a modificar-se. Perplexo, Ron notou que a luz se
afastava. Os contornos dos pequenos cubos, esferas e pirâmides, que abrigavam os doentes,
surgiram diante de seus olhos.
A escuridão voltou a reinar em torno dele, mas agora ele possuía mãos que lhe
permitiam tatear para orientar-se na escuridão. Possuía pés, que lhe permitiram apoiar-se
contra uma parede invisível. Agora ele podia usar os cotovelos e erguer-se. Viu a pequena
abertura iluminada acima de sua cabeça e sabia que se encontrava novamente no interior da
cabana de pedra, da qual fora retirado pelo sacerdote, a fim de assistir à sessão de instrução.
Retornara para seu corpo. Num movimento instantâneo pôs-se de pé. Sentiu que estava
banhado em suor. Por um instante, o fato o deixou espantado, mas logo compreendeu que seu
espírito dirigira de longe as reações do organismo.
Por uma fração de segundo, Ron Landry estremeceu diante do quadro de um mundo
estranho e irreal, no qual o espírito e o corpo levavam uma existência separada.
O fato de seus quatro companheiros de prisão terem desaparecido provava que, neste
meio tempo, a segunda parte da missão, que representava a fase decisiva, começara a ser
posta em execução. Contornou a cabana e viu os restos da gigantesca nuvem de pó, levantada
pela nave que acabara de realizar o pouso de emergência. Também viu o vulto esférico da
própria nave.
Saiu correndo em direção à mesma. Era maravilhoso conseguir correr, usando as
próprias pernas, sem depender da força e do poder do espírito inteligente.
Levou cinco minutos para chegar à nave. Entrou apressadamente pela eclusa aberta, e
abriu os braços para cumprimentar Larry Randall, que já o esperava.
— Lá atrás! — exclamou Larry, em tom insistente. — Meu Deus, você está com um
aspecto horrível.
Ron confirmou com um sorriso. Passou pela porta gradeada de um transmissor. Do lado
de fora alguém moveu uma chave. Por uma fração de segundo, Landry sentiu a dor da
desmaterialização. Os contornos dos objetos que o cercavam desmancharam-se. Quando
voltou a enxergar, encontrava-se a bordo do cruzador Flórida.
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Dick Kindsom em pessoa abriu a porta do receptor conjugado com o transmissor.
Estendeu-lhe a mão e disse:
— Seja bem-vindo a bordo! Sinto-me feliz de saber que no fim tudo deu certo.
***
***
— Não — disse Nike Quinto, em tom resoluto. — Por enquanto não temos nenhuma
explicação para as experiências pelas quais acabam de passar.
Ron Landry e Larry Randall estavam sentados à sua frente. A resposta de Nike Quinto
fora dirigida a Ron. Este recuperara o aspecto normal, assim que regressara à Terra.
— Existem certas coisas — acrescentou Nike Quinto — que a ciência terrana ainda não
consegue enxergar. Devem estar cientes de que, por enquanto, não existe nenhuma explicação
científica para as faculdades dos nossos mutantes. Os sacerdotes de Baalol são indivíduos do
mesmo tipo, com a única diferença de que possuem uma variedade muito maior de faculdades
que os membros do Exército de Mutantes da Terra.
Ergueu os olhos e sentenciou:
— Major, o senhor ainda terá que ter alguma paciência até que alguém lhe possa
fornecer uma teoria viável. Diria que isso deve demorar uns trezentos a quatrocentos anos.
Ron retribuiu a ironia com um ligeiro sorriso.
— Muito bem — disse em tom tranqüilo. — Mesmo que não haja nenhuma explicação,
valeu a pena passar pela experiência. O espírito e o corpo levaram uma existência separada.
Que aventura!
Nike Quinto interrompeu-o com um gesto.
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— Não se entusiasme sem motivo — replicou com sua voz aguda. — Posso imaginar
perfeitamente que, quando estava sendo aquecido pelo fogo da verdade, não se sentiu muito
bem.
Ron confessou a si mesmo que Nike Quinto tinha razão.
— Uma autoridade muito importante autorizou-me a manifestar-lhe os agradecimentos
do administrador. Sem que o soubéssemos, nós nos envolvemos num assunto que cobre áreas
cada vez maiores. Ao que parece, trata-se de um complô contra o Império Solar. É como acabo
de dizer: ao que parece. Ainda não dispomos de dados precisos. Mas libertamos quarenta e
oito terranos, que iriam morrer nas garras dos sacerdotes de Baalol, e descobrimos uma pista
importantíssima. E é por isso que o administrador manifesta seus agradecimentos.
— Sinto-me muito honrado — disse Ron. — É bem verdade que eu gostaria...
— É bem verdade que gostaria de quê? — gritou Nike Quinto. — Não se esqueça da
minha pressão; não me enerve. Faça o favor de exprimir-se com mais clareza.
Ron reclinou-se na poltrona.
— Sei perfeitamente que libertamos quarenta e oito terranos — disse Ron. — Mas qual é
a pista importantíssima que teríamos descoberto? O senhor poderia fazer o favor de explicar?
Um sorriso surgiu no rosto de Nike Quinto.
— Ah, então o senhor ainda não sabe — disse com uma risadinha. — Lembra-se do
retrato que lhe foi entregue por Armin Zuglert?
— Naturalmente.
— Esse retrato corresponde ao homem que pela primeira vez colocou Zuglert em
contato com o liquitivo, não representa?
— Perfeitamente.
— Esse homem disse ser biomédico e apresentou-se com o nome de Edmond Hugher?
— Isso também é verdade — respondeu Ron Landry, desejando que Nike Quinto lhe
dissesse finalmente o que sabia.
— Pois é aí que está a pista — disse Nike. — O retrato foi examinado pelos órgãos
competentes. Sabe quem é a pessoa da fotografia?
Ron negou com a cabeça.
— Não senhor. Não tenho a menor idéia.
Nike Quinto deleitou-se com a tensão que estava criando.
— Pois fique sabendo — disse, esticando as palavras — que não existe a menor dúvida
de que essa pessoa é... Thomas Cardif, o filho do administrador.
57
2. O bloqueio de Lepso.
O Dr. Edmond Hugher sentia-se muito bem em sua casa. Estendido confortavelmente na
poltrona anatômica, com os pés apoiados sobre a mesa oval baixa, tinha o número do fim de
semana da Terrania Post aberto no colo. Só se interessava pela edição de sábado, e, dentro
desta, pela seção de palavras cruzadas.
O passatempo predileto do Dr. Hugher consistia na coleção das palavras cruzadas, que às
vezes faziam aquele homem quieto e amável esquecer o trabalho, especialmente quando se
defrontava com uma série desses entretenimentos de primeira qualidade. Segundo sua
opinião a Terrania Post era o jornal que publicava as melhores produções no gênero.
Já solucionara o quebra-cabeça, com exceção de duas posições:
Horizontal, posição 45: Engaste ornamentado do emblema, oito letras. A terceira e a quarta
letra são conhecidas: R e T.
Vertical, posição 109: Luta islandesa, cinco letras. Apenas a terceira letra é conhecida: I.
O Dr. Hugher soltou um gemido sem que o quisesse. Era sempre a mesma coisa com as
palavras cruzadas da Terrania Post. Elaboravam os problemas de tal maneira que era
praticamente impossível solucioná-los, sem recorrer ao posto central de informações do
dicionário positrônico. Acontece que isso era uma coisa que Hugher nunca fazia. Queria
resolver o quebra-cabeça usando sua própria capacidade.
— Pelos deuses de Árcon! — exclamou. — O que será um engaste ornamentado de um
emblema? — nem se deu conta de que pronunciara parte da pergunta em intergaláctico e
parte em língua terrana. — Como é mesmo o nome dessa luta islandesa?
Levantou os olhos do jornal. Seus pensamentos começaram a vaguear. Teria de liquidar
hoje, sem falta, uma importante tarefa.
— Ora veja; é isto. Cartucho! — soltou uma risada de alívio. Contou nos dedos o número de
letras da palavra cartucho. Eram oito letras. No mesmo instante registrou a palavra na posição
45, horizontal. Enquanto escrevia, lembrou-se do nome da luta islandesa: glima.
— Glima — disse em voz alta. — Como fiquei conhecendo esta palavra? Por que adquiri um
domínio tão extraordinário do vocabulário terrano?
Guardou o jornal. Começou a pensar no passado.
Estivera doente. Mas os médicos de Árcon nunca lhe contaram qual foi a doença de que
sofrera. Repetiu o que tais médicos lhe disseram:
— “É um verdadeiro milagre que o senhor se tenha restabelecido, Hugher. Mas não podemos
garantir que com o tempo não se manifestem certas afecções cerebrais.”
Naquela oportunidade não dera maior importância ao fato — isso se dera há cinqüenta e
oito anos. Seu nome era Edmond Hugher, mas será que realmente era mesmo Edmond
Hugher? Às vezes acreditava lembrar-se dos pais ou dos irmãos, mas nunca conseguira
visualizar o pai ou a mãe. Os contornos dos seus rostos sempre lhe surgiam sem muita nitidez.
Não tivera três irmãos? Mas nem sequer sabia dizer em que planeta nascera, e nem poderia
afirmar se realmente tivera três irmãos.
Tudo que vivera há cinqüenta e oito anos atrás ficava envolto numa névoa.
58
“Onde nasci? Não sou arcônida, ekhônida, saltador ou ara, mas pareço ter herdado alguma
coisa de cada uma dessas raças. Mas de onde provém a outra parte do meu ser?”, interrogava-se
o Dr. Edmond.
Retirou os pés de cima da mesa. A poltrona anatômica adaptou-se automaticamente à nova
posição.
No mesmo instante cessaram os pensamentos martirizantes relativos ao passado. Não se
deu conta de que uma rede invisível voltara a cobrir a fresta, que se abrira em virtude do
termo glima.
Os pensamentos do Dr. Edmond Hugher ainda se moviam no passado, mas permaneciam na
faixa dos últimos cinqüenta e oito anos.
Viu-se, trabalhando em Zalit, de início como ajudante. Depois de algum tempo confiaram-
lhe tarefas de grande responsabilidade, mas continuou a ser ajudante. Não progredia.
Constantemente tinha arcônidas sonolentos pela frente. Seus protestos não adiantaram nada.
Não tinha meios de impedir o funcionamento da política de favoritismo dos arcônidas.
Quando percebeu isso esforçou-se para entrar em contato com seres não-arcônidas. Aceitou
com o maior prazer a proposta de um clã dos saltadores, que lhe ofereceu o lugar de chefe, em
uma de suas filiais planetárias.
Árcon interpôs seu veto e destruiu o projeto. Invocaram o contrato ignominioso pelo qual
ele era obrigado a dedicar toda sua capacidade de trabalho a Árcon, em serviços a serem
executados no planeta Zalit.
Naquela época já sabia sorrir, como sorria hoje. Com uma amabilidade inquietante declarou
que não se lembrara do contrato, e continuou a exercer sua atividade em Zalit com a mesma
diligência de sempre.
Um belo dia ficou totalmente perplexo ao entrar em sua residência e ver diante de si a cópia
exata de sua pessoa. De início não acreditou em tal aparição. Numa reação natural apalpou seu
segundo eu, examinou-o de todos os lados e não pôde deixar de conhecer que a imitação
robotizada era perfeita.
À sua frente estava sentado Loó-o, que há mais de vinte anos foi dado como morto. Loó-o
era um adepto do culto de Baalol. Recorrera ao robô para entrar à força na residência de
Hugher, e seduziu este com a oferta de estudar Medicina no mundo central dos aras, à custa
da organização religiosa.
— Hugher, ninguém perceberá sua ausência. Seu sósia evitará que notem sua falta.
Evidentemente não estamos agindo assim apenas por amor ao próximo. Esperamos que,
depois de concluídos seus estudos, o senhor trabalhe para o culto de Baalol. Nós o
observamos por mais de dois anos em Zalit e controlamos discretamente seu trabalho.
Edmond Hugher, o senhor não está no lugar em que deveria estar. Nós, os servos de Deus,
queremos conduzi-lo ao lugar que corresponde às suas faculdades naturais.
O Dr. Hugher nunca se esquecera dessa cena. Muitas vezes sonhava com o rosto severo de
Loó-o. Depois de várias marchas e contramarchas acabara por desaparecer com o auxílio dos
servos de Deus para aparecer em Aralon, enquanto em Zalit seu lugar era ocupado por seu
sósia robotizado.
Iniciara seus estudos em Aralon com o sorriso encantado de uma criança. Perseguido,
durante meses, pelo medo de fracassar, vivera a medicina sem percebê-lo. Quando ainda se
encontrava no segundo ano de estudo, foi elogiado publicamente pelo célebre hematólogo Ur-
Gif.
Hugher lembrou-se de que forma os colegas aras costumavam olhá-lo. Até então não
haviam levado a sério aquele sonhador com seu eterno sorriso. Sempre se mantivera em
posição secreta e nunca se esforçara para chamar a atenção de quem quer que fosse. Mas
agora o professor ara, Ur-Gif, o elogiara publicamente por um pequeno trabalho intitulado
Hematofobia, Uma Repugnância Sangüínea dos Ekhônidas. Edmond Hugher foi apresentado
como um talento promissor.
59
Face à sua modéstia sentira-se constrangido com o elogio. Depois disso, seus colegas
começaram a caçoar dele mais do que nunca. Esses colegas dificilmente conseguiam
estabelecer contato com aquele homem quieto e amável. Edmond Hugher recolheu-se cada
vez mais dentro de si mesmo e passou a dedicar-se exclusivamente ao estudo.
O contrato com os servos de Deus nunca fora interrompido. Era visitado constantemente
por Loó-o. Às vezes, este era substituído por Tu-Poé, um servo fanático e muito jovem do culto
de Baalol.
Durante nove anos, Edmond Hugher estudara em Aralon. Um curso normal costumava
durar uns três ou quatro anos. Após realizar o último exame especializado, viu-se diante de
mais de vinte célebres professores aralenses, que lhe manifestaram suas congratulações pela
excelente conclusão do curso. O último a apertar sua mão foi Loó-o.
Depois disso, Hugher permanecera por muitos anos no lugar em que se encontrava, em
Lepso, e nunca se arrependera de ter dedicado sua atividade ao culto de Baalol.
Hugher abandonou os sonhos, que o haviam levado ao passado, e retornou ao presente. Riu
de si mesmo, até que seu olhar caísse novamente sobre as palavras cruzadas da Terrania Post.
Ainda não registrara a palavra glima.
— Bem — disse, enquanto o estilete gravava as letras — essa está morta. Gostaria de saber
qual é o acaso feliz que me fez conhecer tão bem a língua terrana. Só há uma possibilidade.
Durante o ensinamento hipnótico a que fui submetido em Aralon, devo ter travado
conhecimento com o extenso vocabulário que abrange todas as expressões e frases terranas.
Glima? É inacreditável que eu conhecesse essa palavra. Mas o fato é que eu a conhecia, e isso
me diverte.
O Dr. Edmond Hugher esticou os braços e bocejou gostosamente. No seu íntimo já se
deleitava com a próxima charada de palavras cruzadas do Terrania Post.
***
A propaganda comercial estava sendo exibida pela televisão. Desde que surgiu a televisão,
existiam os comerciais. Pouco importava que o respectivo transmissor ficasse no Império
Solar ou no Império Estelar de Árcon. As inteligências de todos os mundos habitados eram
atingidas pelo poder sugestivo da propaganda e nunca mais se libertavam.
Mas era de admirar que Perry Rhodan, Reginald Bell, o Marechal Solar Allan D. Mercant e
Nike Quinto, que formavam o grupo dos grandes cérebros pensantes, se houvessem reunido
para enfrentar os comerciais.
Naquele momento estavam sendo exaltadas as virtudes do Cocã, que era um adubo
maravilhoso, de efeitos inacreditáveis. A locutora acabara de afirmar que o produto tornava
dispensável até mesmo o trabalho das minhocas.
Nike Quinto fez uma análise mental. Uma pessoa bela como aquela jovem, uma pessoa que
tinha um olhar tão leal, uma pessoa tão comedida nos gestos seria incapaz de mentir.
“Caramba!”, pensou. “Com que habilidade são apresentadas essas mentiras.”
Bell mantinha uma atitude totalmente defensiva. Não se entregou a qualquer forma de
análise. Limitou-se a dizer:
— Que idiotice!
Mas aquilo ainda não era o pior.
O anúncio do Yttigitt surgiu na tela. O Yttigitt não deveria faltar em nenhum lar.
“Pense no que terá de fazer quando seu filho tiver perfurado a porta da geladeira com um
radiador térmico de brinquedo e...”
— Deverá dar-lhe uma boa sova — esbravejou Bell. — Pela Via Láctea, Perry! Estas coisas
nos vêm sendo oferecidas há cento e cinqüenta anos?
Mas o locutor não deixou que a observação exaltada de Bell o perturbasse.
60
“Coloque o Yttigitt com nossa espátula especial. Já devem saber que o Yttigitt é uma
substância pensante! Depois disso, o senhor pegará nossa pistola de pintura, regulará a
tonalidade da cor, fará a aplicação, e não restará o menor vestígio do acidente. Nem sequer
haverá necessidade de repreender seu filho. O Yttigitt evitará que seu filho sofra o choque
psicológico produzido por uma repreensão violenta. O ouvinte deve estar interessado em que
seus filhos sejam sadios. Por isso, o Yttigitt não deve faltar em nenhuma casa.”
— Essa gente representa um perigo público — exclamou Bell, fora de si. — Isso já não é
nenhuma propaganda. Com essas brincadeirinhas acabarão por deixar metade da
Humanidade maluca.
— Espere aí, gorducho — disse Rhodan. — Acho que está na hora.
A tela mostrou o rosto de uma mulher de idade um tanto avançada. Ao que parecia, o som
fora eliminado durante esse anúncio. Mas a legenda mencionava o nome completo da mulher
e ainda informava onde e quando a mesma nascera e onde vivia atualmente. Dali se concluía
que a eliminação do som fora proposital.
A imagem mudou. Uma mulher jovem exibiu-se para muitos milhões de telespectadores.
Outra vez surgiu uma legenda, e esta dizia o que todos imaginavam: era a mesma mulher, mas
estava rejuvenescida, seu rosto não tinha rugas e vendia saúde.
Seguiu-se uma frase:
“Faça como eu; tome liquitivo.”
Depois apareceu uma garrafinha, que acabou por sobrepor-se ao rosto da jovem mulher e
quase ultrapassou o quadro da tela. A garrafa, desenhada com muito bom gosto, não trazia
qualquer rótulo. Nela apenas se lia, em letras luminosas, o nome Liquitivo.
Seguiu-se outra superposição de imagem, e as virtudes de outro produto foram exaltadas.
Mercant desligou o televisor.
— Então, Mr. Bell, o senhor achou esta propaganda normal?
O homem esquentado e atarracado lançou um olhar furioso para o Marechal Solar Mercant.
Mas, contrariando todas as expectativas, manteve-se em silêncio.
Rhodan pegou alguns documentos, que se encontravam sobre a mesa, e entregou-os ao
amigo.
— Isso é para você, Bell. Para sua informação.
O primeiro relatório fora elaborado pela sede da General Cosmic Company. As linhas do
texto não eram muito numerosas, mas em compensação apresentava extensas colunas de
algarismos. Aquilo era um símbolo frio e objetivo das quantidades de licor liquitivo que
haviam sido importadas pelo Império Solar nos últimos anos.
Quando largou a folha, a mão de Bell tremia ligeiramente.
O segundo relatório era um documento oficial. Continha um resumo das declarações mais
importantes, formuladas pelos quarenta e oito seres humanos, libertados no planeta Lepso.
Junto a muitos dos nomes havia uma cruz. Tratava-se de pessoas falecidas.
Bell sentiu que estava sendo atentamente observado por Perry Rhodan, e também por
Mercant e Nike Quinto.
“Tomei o licor pela primeira vez em fins de 2.090 ou no início de 2.091. Depois da terceira
dose percebi que, além de adquirir um aspecto juvenil, notei um rejuvenescimento psíquico. Por
isso passei a tomar regularmente o licor, de dois em dois dias. Sou médico, e realizei observações
em minha pessoa pelo espaço de dezesseis meses. Como depois desse tempo não notasse o menor
efeito colateral, passei a recomendar o liquitivo aos meus amigos e conhecidos, apresentando-o
como um preparado inofensivo, que produzia uma intensa ativação e regeneração celular.”
Bell já conhecia parte das declarações, mas resumidas como estavam assumiam
subitamente o aspecto de uma ameaça invisível. Todas as vítimas haviam feito a mesma
observação: tratava-se de um produto totalmente inofensivo, que não causava o menor efeito
colateral, do qual resultava um espantoso rejuvenescimento.
61
Na terceira e quarta folha estavam registrados os resultados dos exames realizados por
mais de vinte clínicas. Bell estacou ao ler a data em que certo relatório fora entregue pela
clínica, mas deixou de comparar tal data com as dos demais relatórios, motivo por que não
notou que todos os relatórios haviam sido elaborados há vários anos.
Depois de percorrer metade do relatório, colocou os documentos sobre a mesa e disse em
tom de desânimo:
— Já não compreendo mais nada. Como é que as clínicas podem afirmar que o licor é um
excelente preparado rejuvenescedor, totalmente inofensivo, se em Lepso recolhemos
quarenta e oito ruínas humanas, todas viciadas pelo liquitivo? A contradição não quer entrar
na minha cabeça. Será que o liquitivo fornecido ao Império Solar não é aquele vendido nos
outros mundos?
Nike Quinto respondeu:
— Já verificamos este ponto, mister Bell. Fomos ainda mais longe. Realizamos exames
comparativos, submetendo o material a outro controle químico rigoroso. Refiro-me ao
material que constituiu objeto do exame realizado pelas clínicas, no curso de dois anos.
Depois disso pegamos duzentas garrafinhas de dois centímetros cúbicos, vindas na última
remessa, e também as examinamos. O resultado foi consignado na última página: o liquitivo,
que vem sendo remetido à Terra nos últimos anos, é o mesmo produto vendido em outros
mundos. A composição química é uma só.
— Hum — resmungou Bell com o rosto contrariado. — Se a maior parte dos quarenta e oito
viciados não tivesse morrido sob nossas mãos, diria que nem vale a pena falar sobre esta
droga. Admitamos, porém, que as declarações são verdadeiras. Por que nunca fizeram uma
experiência com seres humanos que consomem o licor há vários anos? Bastaria privá-los da
bebida durante alguns meses e observar os resultados. Se não surgissem sinais de
dependência, já teríamos avançado um pedaço.
Um sorriso amargo surgiu no rosto de Perry Rhodan.
— Isso já foi feito há muito tempo, Bell. Acontece que esta bula acompanha cada frasco de
licor. Leia-a, e você compreenderá por que até hoje não surgiu nenhum voluntário disposto a
submeter-se à experiência.
Entre outras coisas, Bell leu o seguinte:
— “Alertamos o consumidor para que não deixe de beber por muito tempo o liquitivo, pois
qualquer interrupção representa um risco para o processo de rejuvenescimento. A ocorrência de
outros danos à saúde, porventura resultantes da interrupção, dependerá da constituição
orgânica do indivíduo.” Por causa dessa advertência não surgiu nenhum voluntário?
Quinto confirmou com um gesto. A estação de hiper-rádio chamou. Transmitiu um sinal de
urgência, que indicava que Atlan, ou seja, o Imperador Gonozal VIII, desejava manter uma
palestra com Perry Rhodan. O sinal não representou nenhuma surpresa, pois fazia apenas dez
minutos que Rhodan pela primeira vez chamara a atenção do arcônida para o misterioso
liquitivo.
O rosto inteligente do arcônida surgiu na tela ligeiramente abaulada. Logo ao primeiro
lance de olhos, Atlan notou quem eram as pessoas que se encontravam em companhia do
Administrador do Império Solar. Depois de um ligeiro cumprimento passou diretamente ao
assunto.
— Perry, não sei mais o que fazer diante de tantas notícias alarmantes. Quando mandei
irradiar a mensagem, para todos os mundos do Império de Árcon, não contava com o que
poderia advir. Acontece que as notícias que estamos recebendo retratam uma verdadeira
catástrofe. Não cometo nenhum exagero ao afirmar que meu império estelar está
contaminado pelo liquitivo. Os receios, que você manifestou por ocasião de nossa última
palestra, já representam uma realidade.
“Em muitos mundos coloniais, que não são visitados regularmente pelas espaçonaves, a
situação é calamitosa. Nestes mundos o vício do licor assumiu proporções que me dão
62
calafrios. O planeta 0,56 do mundo de Fal, por exemplo, informa que na última semana houve
duzentos e dezoito óbitos, precedidos de alucinações, delírios violentos e de uma acentuada
decadência orgânica. Vinte por cento da população do planeta, que chega a cerca de três
milhões de habitantes, pedem aos berros que lhes deem a droga.
“Isto apenas representa um exemplo, Perry. E, a esta hora, já poderia citar centenas de
exemplos deste tipo. Dirigi uma indagação ao grande centro de computação. Este não
forneceu nenhuma informação. Coloquei os aras em estado de alarma e com eles tive uma
conversa mais que franca. Afirmam que se encontram diante de um mistério, e existe uma
circunstância que parece confirmar suas declarações. O vício do licor também existe nos
mundos pertencentes aos médicos galácticos, com a única diferença: nesses mundos ainda
não se verificou nenhum óbito.
“Sinto-me cada vez mais inclinado a concordar com sua suspeita de que nos encontramos
diante de um atentado praticado pelos antis, os adeptos do culto de Baalol. Neste caso não
seria esta a primeira vez que Lepso, o planeta dos atravessadores e falcatrueiros, constitui um
perigoso fator de perturbação. No entanto, não será nada fácil provar que aquilo que os antis
vendem não é um simples preparado biológico, mas sim um tóxico. Conforme apurou meu
Serviço Secreto, Lepso não é o único mundo do qual é expedido o liquitivo.”
— Atlan, quantos locais de distribuição foram identificados no interior do grupo M-13? —
perguntou Perry Rhodan.
— Por enquanto meu Serviço Secreto constatou a existência de três entrepostos. Talvez o
liquitivo seja trazido diretamente de Lepso, Perry. De outro lado, porém, também é possível
que a droga seja fabricada num mundo que ainda não conhecemos. Ainda não estou
informado dos possíveis desdobramentos da situação. Seja como for, concordo com seu plano
de recorrer a formações maciças de nossas frotas, a fim de bloquear os mundos mais
importantes de nossos impérios estelares, impedindo que neles seja introduzida uma única
garrafa de liquitivo.
— O Serviço de Segurança Solar elaborará a curto prazo um plano detalhado para a área de
influência terrana, plano este que será apresentado a você. Eu mesmo cuidarei do planeta
Lepso, caso isso se torne necessário. Quais são os resultados das investigações relativas ao
outro ponto, Atlan?
Reginald Bell, Mercant e Nike Quinto já esperavam por essa pergunta.
— Nada de importante, bárbaro — respondeu Atlan, que se encontrava no mundo de
cristal, situado a 34 mil anos-luz. — Cardif continua em Zalit e desempenha suas funções de
ajudante. Não está satisfeito com a informação que acabo de dar, Perry?
Rhodan fitou o arcônida com uma expressão séria.
— Atlan, eu gostaria de dar-me por satisfeito com a notícia que você acaba de dar, se um
certo doutor Armin Zuglert não nos tivesse falado de um homem sorridente, sempre amável,
que encontrara em Lepso. Esse homem usa o nome Edmond Hugher e serve aos sacerdotes.
Há mais de doze anos, ele declarou ser cientista, e ter realizado trabalhos com o licor.
— Estes fatos já são do meu conhecimento, Perry — respondeu Atlan.
O imperador deu mostras de seu espanto. Até então poucas vezes notara uma forte
exaltação interior em Rhodan, e quando isso acontecia, a causa sempre fora seu filho Thomas
Cardif.
— Além disso, tenho uma cópia do retrato que mostra um homem que sorri amavelmente.
Perry, você receia que esse homem possa ser seu filho, não é? Peço-lhe, porém, que examine
esta foto.
A tela mostrou o rosto de um homem, aparentando pouco mais de trinta anos.
— Perry — disse a voz transmitida pelo telecomunicador. — Este é seu filho, que há
cinqüenta e oito anos trabalha no planeta arcônida de Zalit e vem sendo vigiado. Isso o deixa
mais tranqüilo?
63
Além de Rhodan, Bell, Mercant e Quinto viram a foto. A pessoa representada na mesma já
não apresentava a espantosa semelhança com o pai, mas os traços inconfundíveis daquele
rosto pareciam dizer: eu sou o filho de Perry Rhodan!
O retrato continuava a ser mostrado na tela.
— Perry — voltou a falar Atlan — alguém me explicou por que essa semelhança espantosa
entre você e Thomas desapareceu quase por completo no curso dos decênios. A modificação
artificial da personalidade fez dele um homem completamente novo. Depois de decorridos
cinqüenta e oito anos, um sorriso sonhador passou a surgir cada vez mais nítido em seu rosto.
Já a foto que você me mostrou, e que representa um certo Doutor Edmond Hugher, é de uma
pessoa estranha. Não compreendo como Mercant tenha afirmado, depois de um ligeiro exame
dessa foto, que a mesma retrata Thomas Cardif. Esse rosto inexpressivo, superficial, que exibe
constantemente um sorriso estúpido, não apresenta qualquer traço que represente o menor
indício de uma relação de parentesco com você.
A foto desapareceu da tela, e o Imperador Gonozal VIII voltou a presentificar-se.
— Vejo que você se envolve em silêncio, amigo. Pois bem. Quero chamar sua atenção para o
fato ao qual, no meu entender, você não atribuiu a importância que o mesmo merece.
— Perry, não se esqueça de que a personalidade de seu filho foi modificada por um
psicolador arcônida. E uma modificação desse tipo nunca é passível de regressão. Mesmo
depois de cem anos continua tão pronunciada como no primeiro dia. Pelos deuses de Árcon,
por que estou falando tanto, Perry? Desde o bloqueio, seu filho vive em Zalit. Meu Serviço
Secreto e seu Serviço de Segurança o mantêm constantemente sob observação, e isto prova
que Thomas não saiu do planeta de Zalit e ainda hoje continua por lá.
A fim de aproximar-se de Rhodan e dizer-lhe alguma coisa relativa ao assunto, Mercant
levantou-se. Naquele momento, Bell segurou o marechal solar e cochichou-lhe algo.
— Não é necessário, Mercant. Perry continua desconfiado e cético. Ouça o que está dizendo
a Atlan.
— Atlan, bem que eu gostaria que você tivesse razão. De qualquer maneira peço-lhe que
envie um comando especial a Zalit, para que examine Thomas, aplicando os padrões mais
rigorosos. Faço-lhe este pedido como amigo.
— Que droga! — esta expressão do arcônida provava que o agora Imperador Gonozal VIII
vivera por muito tempo entre os terranos. — Perry, você com sua obstinação conseguiu que
até eu me sentisse inseguro. Está bem. Mandarei submeter Thomas a um exame, conduzido
segundo todas as regras da arte médica. Oportunamente lhe comunicarei o resultado.
Aguardo o plano de seu Serviço de Segurança, relativo ao bloqueio. Quero adaptar minha
atuação ao mesmo. Aliás, no sistema solar ainda continua a ser feita a propaganda do liquitivo
pela televisão?
— Continua, arcônida. Mas no momento em que anunciarmos o bloqueio e fecharmos o
anel em torno dos vários planetas de tal forma que nem mesmo um caça de um só tripulante
consiga passar, acabará.
— Nesse caso agirei da mesma forma.
A transmissão de hipercomunicação chegou ao fim. Rhodan voltou ao seu lugar.
— Mercant — disse, dirigindo-se ao marechal solar. — Mostre-me mais uma vez a foto que
lhe foi entregue por Zuglert.
Mercant abriu uma pasta, tirou a foto e entregou-a ao chefe.
Nos últimos dias, Perry Rhodan examinara essa foto vezes sem-número, e vezes sem-
número sentira-se torturado pela dúvida.
Um homem com as feições um tanto apagadas, um homem que tinha um rosto inexpressivo
e flácido, que sorria, fitava Rhodan. O retrato não mostrava um semblante de traços
marcantes, e parecia não ter a menor semelhança com seu filho.— Mercant, este retrato já me
trouxe muitas horas de preocupação. Vivo perguntando o que levou o senhor a afirmar que
este é meu filho. O senhor disse que não pode explicar por que motivo fez essa afirmativa.
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Aceito isso. Às vezes, a mesma coisa acontece comigo — devolveu a foto com um gesto de
desolação. — Mas aqui não consigo acompanhá-lo. Não consigo estabelecer contato com o
homem que se encontra neste retrato. Em compensação sinto uma inquietação que nunca
senti. Mercant, elabore o plano do bloqueio. Peça a Freyt que lhe ajude. O plano tem de ficar
pronto até hoje de noite. Quanto mais cedo agirmos, mais vidas humanas poderemos salvar.
Coronel Quinto, ainda preciso falar com o senhor. Bell, quero que você esteja presente durante
a palestra. Mais alguma coisa, Mercant?
— Sim, senhor.
Mercant levantou-se e pegou os documentos que trazia. A foto de Hugher caiu sobre a
mesa. Segundo as declarações de Zuglert, um homem condenado à morte, Dr. Edmond seria
um cientista que trabalhava em Lepso e um especialista no licor liquitivo.
— Um momento! — gritou Rhodan. — Não se mexam! Fiquem onde estão.
Nenhum daqueles três homens sabia quais eram as intenções do chefe. Notaram que fitava
intensamente a foto. Dali a pouco aproximou-se lentamente da mesa.
— Desapareceu! — disse.
Num gesto preocupado passou a mão pela testa. Pegou a foto, entregou-a a Mercant e
completou:
— Mercant, já compreendo como o senhor à primeira vista pôde reconhecer Thomas nesta
foto. Também acabo de reconhecê-lo. Isto mesmo, eu o reconheci de relance. Mas quando me
aproximei alguns milímetros, voltei a enxergar um rosto desconhecido. O que é que o senhor
pretendia dizer, Mercant? Eu o interrompi.
Rhodan recuperou-se do choque mais rapidamente que os outros. Bell fitou-o com os olhos
arregalados e nem se deu conta de que seu gesto exprimia o desejo de que Perry estivesse
enganado.
— Sir, eu gostaria que o senhor pedisse ao centro de computação de Árcon III que nos
fornecesse todas as informações disponíveis sobre o planeta Lepso, situado no sistema de
Firing. Era só.
— Dentro de uma hora terá todos os dados, Mercant. Coronel, queira acompanhar-me. Você
também, Bell.
Rhodan caminhou à frente dos outros. Mercant saiu por outra porta. Não estava pensando
na tarefa que teria de cumprir. Ainda se sentia abalado pelo fato de que o chefe também
reconhecera o filho naquela foto.
***
O Dr. Edmond Hugher saiu de sua residência, que ficava numa das extremidades do edifício
retangular, e dirigiu-se à rua. Continuou caminhando lentamente em direção ao templo em
forma de pirâmide, que se distinguia no centro da cidade templária como um gigantesco
monumento, e constituía prova evidente de que a seita, que praticava o culto de Baalol,
dispunha de recursos financeiros consideráveis.
Hugher nunca se interessara por essa doutrina. Não sabia nem se tinha religião; se era um
ateu ou um crente; adepto de uma seita ou um homem que se mostra totalmente indiferente,
diante de qualquer professar religioso. Acontece que, para ele, seu trabalho representava uma
missão que tinha de cumprir, a fim de desvendar os mistérios da natureza.
Nem mesmo Tu-Poé, o fanático, fizera a menor tentativa de convertê-lo num adepto do
culto de Baalol. No entanto, este vivia procurando Hugher, com a intenção de informar-se
sobre o andamento de suas pesquisas.
Tu-Poé não era apenas sacerdote; também era médico. No entanto, não dispunha daquela
intuição que muitas vezes permitia que Hugher resolvesse os problemas com uma segurança
de sonâmbulo, reduzindo-os à sua expressão mais simples.
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Aquele homem quieto e amável, com o sorriso eterno do rosto, o Dr. Edmond Hugher,
representava a pessoa mais importante da zona templária, depois dos sacerdotes.
Hugher passou lentamente pelo templo, cumprimentando amavelmente as pessoas que
avistava. Eram quase todos seus conhecidos, mas nenhum deles era seu amigo. Não sentia a
menor necessidade de ter amigos. Levava a mesma vida retraída que levara em Aralon.
No entanto, sua posição e seu trabalho formavam um contraste formidável com sua vida
privada.
Era o chefe da Divisão Médica, e também do setor de produção farmacêutica. Distribuía as
tarefas e supervisionava sua execução. Da área templária não saía nenhum produto que não
tivesse sido liberado por ele.
Trabalhava com a precisão de um equipamento de controle positrônico. Sua visão de
conjunto, tanto na área médica como na tecnológica, era fenomenal.
Não havia na cidade templária nenhum ser inteligente que já tivesse visto o Dr. Hugher
zangado ou exaltado. Aquele homem distinguia-se por uma amabilidade constante.
Hugher tinha outra qualidade notável. Era a gratidão para com os antis, que o haviam
ajudado a sair do planeta de Zalit e a tornar-se um médico em Aralon.
Sua gratidão não conhecia limites; para ele, tornar-se médico foi mais importante que
qualquer outra coisa. E, no seu subconsciente, refugiara-se numa relação de dependência e se
envolvera numa ética das aparências, segundo a qual vivia dizendo a si mesmo que os antis
agiam corretamente e que como médico lhe cabia cumprir as ordens dos mesmos.
Entrou em seu laboratório com um cumprimento amável. Dois sacerdotes levantaram os
olhos do trabalho, que estavam executando, e retribuíram o cumprimento.
Acomodou-se tranquilamente atrás da escrivaninha. Passou os olhos pelas folhas de
plástico, bem arrumadas à sua frente. Reconheceu à primeira vista o que era mais importante,
a fim de armazenar essa matéria para todo o sempre em sua mente.
O Dr. Edmond Hugher nem desconfiava de que havia na Galáxia outro homem que tinha a
capacidade de extrair ao primeiro relance de olhos, o que existia de mais importante numa
série de documentos e conservá-lo na memória: era seu pai, Perry Rhodan, Administrador do
Império Solar.
Olhou para U-Za.
— U-Za, os carregamentos 10.X-399 a 11.X-999 devem ser colocados a bordo dentro de
duas horas e terão de chegar à Terra hoje de noite.
O sacerdote lançou-lhe um olhar de perplexidade. Ao que tudo indicava, acreditava não ter
ouvido bem. Cada carregamento de liquitivo — e Hugher só poderia ter aludido ao licor
porque, como de costume, deixara de mencionar o preparado — era formado de mil garrafas
de dois centímetros cúbicos. Dessa forma a quantidade a ser remetida à Terra compreenderia
dezesseis milhões de unidades standard. Esse número correspondia a oitenta por cento de seu
estoque.
— T-Moll — disse Hugher em tom amável, dirigindo-se ao outro sacerdote. — Faça o favor
de entrar em contato com Tu-Poé e exponha-lhe o caso. Quer fazer o favor de ficar com esta
folha?
T-Moll ainda não sabia a respeito de que assunto deveria falar com Tu-Poé, o fanático. Mas
bastou que lançasse um olhar mais detido para a folha, a fim de que compreendesse a enorme
importância da missão.
— T-Moll, faça o favor de entrar em contato comigo, usando o aparelho de Tu-Poé, assim
que tiverem concluído a palestra.
Enquanto fazia esta advertência, Hugher sorria, mas já ia calculando mentalmente, a fim de
verificar quanto tempo levaria para restaurar o estoque de reserva de liquitivo, constituído de
vinte milhões de unidades standard.
66
Enquanto isso, U-Za entrou em contato com o espaçoporto central de Lepso. O rosto
encarquilhado de um velho saltador surgiu na tela. O mercador galáctico esboçou um sorriso
de satisfação ao ouvir a ordem de U-Za.
— Enviarei imediatamente alguns planadores de carga — disse com a voz profunda. —
Acho que cinqüenta desses veículos, com uma grande capacidade de carga, devem ser
suficientes.
U-Za fez um cálculo rápido.
— Mande sessenta planadores de carga, Singoll. Será mais seguro. Qual das suas naves
levará a carga à Terra?
— A Sin XI, que é a mais nova das minhas espaçonaves. Ainda não tem um ano —
respondeu o chefe dos saltadores, em tom de orgulho. — Farei o transporte pela tarifa D. Não
posso fazer mais barato.
Os saltadores sempre foram bons comerciantes, e não hesitavam em explorar
vergonhosamente os adeptos do culto de Baalol.
A tarifa D era a mais cara. U-Za protestou imediatamente, mas Hugher interveio com um
sorriso amável e, sentado junto à sua escrivaninha, gritou para o sacerdote:
— Aceite a tarifa D, U-Za. Peça ao saltador Singoll que prepare imediatamente os
documentos de carga e nos remeta os mesmos pelo rádio.
Levantou-se e mais uma vez olhou para além do rosto surpreso de U-Za.
— Irei ao setor de acondicionamento, U-Za. Se alguém precisar de mim, poderei ser
encontrado no setor F-54. Faça o favor de transmitir à central a notícia de meu deslocamento
e dê meus cumprimentos ao chefe saltador Singoll.
Apesar de seu gênio amável, o Dr. Edmond Hugher não tinha um único amigo. Saiu
tranquilamente e, sem demonstrar uma pressa excessiva, dirigiu-se ao setor F-54, onde vinte
e oito séries de autômatos, cada uma formada por trinta unidades, enchiam a cada segundo
dez garrafas de licor, e as fechavam, contavam e acondicionavam nas caixas de plástico, que
passavam pelas fitas transportadoras.
O chefe do setor F-54 era Magitt, um homem de aspecto sombrio vindo de Zalit, um planeta
arcônida. Quando reconheceu o Dr. Hugher cumprimentou-o com uma estranha cortesia, mas
não modificou a expressão sombria de seu rosto. Hugher prosseguiu sem deter-se junto ao
zalita, puxou de cima da fita transportadora três das caixas de plástico, que acabavam de ser
fechadas, e retirou uma garrafa de licor de cada uma das mesmas. Depois colocou outra vez as
três caixas abertas em cima da fita transportadora e seguiu despreocupadamente.
Chegando ao fim da fita transportadora, saiu por uma porta depois de abrir a trava de
segurança, usando uma complicada chave magnética. A porta fechou-se atrás dele com um
leve chiado. Hugher encontrava-se só em seu pequeno laboratório. O equipamento do mesmo
destinava-se exclusivamente ao controle de qualidade do licor.
Hugher realizou o exame da primeira garrafa com a concentração de um homem
convencido da importância do trabalho que está realizando. Moveu uma chave, fez alguns
ajustes, observou um aparelho de medição de ondas e depois dedicou sua atenção a um
contador. Quando este parou, leu duas fileiras de números iguais.
O segundo e o terceiro exame foram realizados na mesma sequência. Depois disso, Hugher
saiu da pequena sala, voltou a entrar no setor F-54 e dirigiu-se a Magitt.
— Magitt, faça o favor de deixar funcionar todas as séries no nível oito. Até amanhã de
manhã precisamos ter em estoque mais dezesseis milhões de unidades.
O zalita estremeceu ligeiramente.
— Esta produção se destina à Terra, doutor Hugher?
— Naturalmente, meu caro Magitt. Pois, no momento, é o negócio que está dando. Tem
alguma preocupação?
67
— Não tenho preocupações, mas o caso é que não tenho garrafas. Se regulo no nível oito,
dentro de três horas tudo cessará. A remessa de garrafas só chega a Lepso hoje de noite, e,
depois disso, ainda nos restará ter de transportá-las para cá.
— Sinto muito pelo senhor, Magitt — respondeu Hugher, em tom extremamente amável. —
Com isso, o senhor cometeu uma infração contra as normas de estocagem, e fico muito triste
por ver-me obrigado a comunicar o fato à direção central. Não é a quarta vez que desobedece
às minhas instruções? Magitt, o senhor pode ter certeza absoluta de que ser-me-á muito difícil
cumprir meu dever, porque isso lhe causará problemas. Desejo-lhe um bom trabalho.
O Dr. Edmond Hugher saiu do setor F-54 com a mesma tranquilidade com que havia
chegado. Mal a porta fechou-se atrás dele, o zalita praguejou violentamente, concluindo com
uma ameaça:
— Quem dera que aparecesse alguém que torcesse o pescoço deste risadinha!
Hugher voltou ao seu laboratório. Viu à sua frente os conhecimentos de carga do saltador
Singoll, transmitidos pelo rádio. Mais uma vez, aquele homem sorridente examinou tudo num
só relance, empurrou os papéis para a direita e, apertando uma tecla, imprimiu neles o sinete
luminoso. Com isso, o contrato de carregamento fora concluído, e os dezesseis milhões de
unidades de licor praticamente já se encontravam na Terra.
— U-Za — disse Hugher, dirigindo-se a seu colaborador. — Avise a direção central de que
pela quarta vez Magitt não cumpriu as determinações relativas à estocagem. Depois disso
chame o terceiro planeta do sistema Go-123. Peça que o liguem com Algo-Essa. Peça-lhe que
faça chegar aqui, dentro de cinco horas, tempo padrão, cinqüenta milhões de garrafas de
plástico. Neste caso, o custo do transporte não assume a menor importância.
— Não assume a menor importância? — procurou certificar-se U-Za.
— Isso mesmo; não assume a menor importância — respondeu o amável doutor.
Em seus olhos vermelhos de arcônida surgiu um brilho que U-Za nunca observara naquele
homem.
T-Moll, que se encontrava em companhia de Tu-Poé, chamou.
— Discuti todos os detalhes com Tu-Poé, doutor. Concorda com seu plano de, antes do
bloqueio, inundar o mundo de cristal com uma grande remessa de liquitivo. A medida
mereceu os aplausos do Conselho. Querem que o senhor dirija tudo pessoalmente, sem
considerar os custos. Tu-Poé gostaria de saber quando o liquitivo poderá ser entregue em
Árcon I.
— Amanhã ao meio-dia, tempo padrão de Lepso, T-Moll!
Até mesmo na voz de Hugher havia um tom sonhador, mas seus pensamentos não
sonhavam. Viu diante dos olhos de sua mente como as coisas se encaixavam, e seu plano se
completava. As medidas de proteção dos terranos e arcônidas chegariam tarde.
Não teve pena deles. Afinal, sempre foram inimigos do culto. Seriam atingidos em cheio
pela vingança, e Edmond Hugher sentiu-se feliz por ter fornecido o instrumento dessa
vingança aos sacerdotes de Baalol.
No mesmo instante esqueceu tanto os terranos como os arcônidas. No fundo não se
interessava por esses povos. Queria mergulhar totalmente no trabalho, a fim de demonstrar
sua gratidão aos sacerdotes, já que foi só graças a eles que se tornara médico.
Olhou pela janela. Seu olhar perdeu-se pelo deserto, mas ele não o viu. Sonhava com os
olhos abertos. Procurou imaginar a Islândia, onde existia uma luta livre denominada glima...
68
2
O segundo planeta do sol amarelo de Firing, denominado Lepso, era o Eldorado dos
traficantes, estelionatários e negocistas.
Este planeta, que sempre soubera conservar a independência, vangloriava-se de ser o mais
liberal de toda a Galáxia, e muitos dos clãs mais novos dos saltadores confirmavam isso.
Havia uma circunstância inexplicável. No interior do Império de Árcon havia muitas
potências, grupos de interesses e inteligências muito influentes que mantinham sua mão
protetora sobre Lepso e cuidavam com olhos de lince, para que a autonomia e a
independência desse mundo não fossem violadas.
O computador-regente desalmado dissera, em sua informação sobre Lepso, que se tratava
de um centro de grupos de poder e, com base em exemplos, mostrara quantos procedimentos
criminosos tiveram seu início naquele mundo. Até então nem mesmo Árcon conseguira
remover este centro de infecção, e o mundo de Lepso sentia-se mais forte do que nunca.
Em nenhum lugar havia um contingente tão numeroso e estranho de mestiços como aqui.
Ninguém se admirava com isso, a não ser as pessoas que pela primeira vez punham os pés em
Lepso. Nesse mundo as cargas eram desviadas, confeccionavam-se conhecimentos de
embarque com toda a aparência de genuínos, imprimia-se dinheiro falso, os manifestos de
carga eram falsificados.
Mas Lepso não era apenas o solo em que melhor se desenvolviam as criaturas que
costumam viver na penumbra. Também era um gigantesco centro distribuidor de
mercadorias. Os espaçoportos enfileiravam-se um ao lado do outro. Havia inúmeros estaleiros
para reparos. Neste mundo não se lançavam novas naves. Mas a pessoa, que não pudesse
aparecer em qualquer mundo de Árcon se não quisesse ser presa, poderia vir a este mundo e
aguardar tranquilamente o dia em que sua espaçonave fosse colocada em condições de
navegar pelo espaço, desde que dispusesse de bastante dinheiro.
Havia um número impressionante de naves dos aras e de veículos espaciais cilíndricos dos
saltadores. Até mesmo os superpesados pareciam apreciar este mundo, em que costumavam
fazer escala para combinar as ações guerreiras a serem empreendidas e negociar o respectivo
preço.
Os adeptos do culto de Baalol submergiam por completo em meio a esta confusão de raças.
Quase nunca apareciam e raras vezes interrompiam a vida solitária que levavam na quietude
da área templária, situada nos confins do grande deserto.
O centro robotizado de informações nem sequer mencionava suas presenças; apenas aludia
ao templo da seita. Perdia apenas uma frase com o assunto.
Mercant, que examinou pela segunda vez o extenso relatório, estacou de repente. Dirigiu-se
a John Marshall, que aparecera há uma hora apenas para cumprimentar o Marechal Solar
Allan D. Mercant, mas ainda continuava sentado em sua poltrona.
— Olhe estes números, Marshall! Não tenho o menor motivo para dizer que sejam falsos.
Mas deles se depreende que há constantemente oito a nove mil espaçonaves que permanecem
por pouco tempo nos espaçoportos de Lepso. Sabe lá o que são oito ou nove mil naves, John?
Basta calcular o que isso representa em taxas de pouso, de permanência e de decolagem.
Basta que cinqüenta por cento dessas oito ou nove mil naves consista nas espaçonaves
cilíndricas, teremos diante de nós um potencial de luta equivalente a quatro mil cruzadores
pesados de nossa frota.
John Marshall balançou a cabeça com tamanha energia que Mercant calou-se de espanto.
— Sua conta não está certa, marechal solar. O senhor apenas se baseou no número de
naves, que, em dado momento, se encontram em Lepso. Resta saber quantas unidades
poderão aparecer em Lepso dentro de uma, duas ou dez horas.
69
Mercant sorriu.
— Nunca teria deixado de considerar este ponto, meu caro. Mas se não fosse sua objeção
não teria cogitado mais do problema. Se partirmos do pressuposto de que nos veremos diante
de quatro mil naves armadas, terei de cumprir uma tarefa nada agradável. Serei obrigado a
comunicar ao chefe que nosso plano é inexequível na forma prevista. Marshall, o senhor
conhece Rhodan quase há tanto tempo quanto eu, e por isso sabe o que ele dirá. Atlan, que
dispõe da frota robotizada de Árcon, será o único que poderá ajudar-nos. O que houve com o
senhor?
A expressão do rosto de John Marshall modificara-se de um instante para outro. Mercant
sabia o que significava isso. O mutante estava recebendo uma mensagem telepática, ou então
se insinuara nos pensamentos de outrem.
A paciência de Allan D. Mercant foi submetida a uma prova muito dura. Os minutos foram
passando, e Marshall continuava a escutar. Suas mãos nervosas revelavam que estava
captando informações da maior importância. Ao notar o suor que porejava na testa do
telepata, Mercant sentiu-se preocupado. Compreendeu que não podia tratar-se de uma notícia
alarmante do tipo das que o chefe dos mutantes costumava receber graças às suas faculdades
paranormais.
O que seria?
John Marshall saiu do quase-transe com a respiração difícil, voltando ao dia-a-dia normal.
— Mercant! — exclamou. — O Thomas Cardif, que se encontra no planeta arcônida de Zalit,
é um robô de construção não-arcônida.
O rosto de Mercant pareceu estupefato pelo espaço de dez segundos.
— Eu sabia — disse num cochicho. — Eu sabia desde o momento em que pela primeira vez
olhei aquela fotografia. O que será agora, Marshall?
Aquela pergunta do marechal solar não era igual a qualquer outra. Se havia uma indagação
que tinha sua razão de ser era esta.
Mercant também enxugou o suor da testa. Quando se dirigiu a Marshall, parecia
desesperado.
— Atlan ainda está falando com o chefe. Só entrei na primeira parte da transmissão de
emergência. O arcônida não sabe dizer se foi há dez, vinte, trinta ou quarenta anos que Cardif
desapareceu de Zalit. Até agora ninguém desconfiou. Até mesmo nossos homens deixaram-se
enganar pela imitação robotizada.
— Como foi que Rhodan recebeu a notícia, John?
Existe uma velha ordem, segundo a qual nenhum telepata deve intrometer-se nos
pensamentos das personalidades dirigentes do império, sem que tenha sido autorizado para
tanto. Dificilmente ocorria alguma violação desta ordem. Quando muito Gucky, o rato-castor,
permitiu-se algum deslize, mas sempre conseguiu escapar do castigo.
Marshall deu-se conta de que acabara de praticar um ato proibido. Mas o marechal solar
era de outra opinião.
— Deixe as ordens para lá, John! Como foi que o chefe recebeu a notícia? Vamos! Fale logo.
— Por algum tempo tornou-se incapaz até de pensar, marechal solar.
— Abstenha-se de comentários, John. O que houve depois?
— O chefe não quer dar mais uma única chance a Cardif.
Mercant apoiou a cabeça em ambas as mãos.
— Hum — resmungou.
— O chefe quer ir a Lepso, com toda a frota. Quer que Atlan nos envie grandes frotas
robotizadas, que deverão proteger o sistema solar durante nossa ausência.
— Hum.
— Atlan concordou. No Império Arcônida e entre nós, os estoques de licor liquitivo serão
confiscados e a venda será proibida. Haverá um bloqueio preventivo nos planetas mais
importantes.
70
— O que será dos mundos que ficarão sem proteção? — perguntou Mercant, em tom
amargurado. — Esse Thomas Cardif já fez tanto mal. É incompreensível! Marshall, o chefe já
recuperou a calma? Faça o favor de controlar seus pensamentos. Responsabilizo-me por esta
ordem. Não estou sendo movido pela curiosidade. Então?
No mesmo instante viu o telepata balançar a cabeça com uma expressão de espanto.
— O chefe bloqueou seus pensamentos, Mercant.
— Isto é um bom sinal, mas representa um consolo muito fraco, John.
A notícia de que Thomas Cardif conseguira, numa época impossível de ser determinada,
deixar o planeta Zalit, representava mais para o marechal solar que uma das notícias
catastróficas que estava acostumado a receber.
Thomas Cardif era filho de Rhodan, e por isso não era igual a qualquer outra pessoa que
provocava distúrbios. Mercant teve de reconhecer, a contragosto, que as ações de Cardif
sempre foram bem planejadas. Há cinqüenta e oito anos a vida do imperador estivera por um
fio. Naquela oportunidade Atlan teve de constatar, depois de um assalto, que já não possuía o
ativador celular que conservava sua vida. Os antis lhe haviam furtado o misterioso aparelho. O
plano do furto, porém, fora elaborado por Thomas Cardif, que queria causar o
desmoronamento do Império de Árcon, a fim de destruir o sistema solar e atingir seu objetivo,
que consistia em eliminar Perry Rhodan.
O plano frustrou-se no último instante. Cardif não foi condenado à morte por seu ato, mas
colocado sob a ação de uma máquina hipnótica, que o privou do conhecimento do passado. Já
não sabia quem era, de onde viera e qual fora o curso de sua vida até aquele dia. O ódio contra
o pai fora soterrado para todo o sempre, sob um bloqueio hipnótico.
Era ao menos o que pensavam Rhodan, Atlan e os principais colaboradores do
administrador. Durante cinqüenta e oito anos embalaram-se numa sensação de segurança,
mas de repente defrontaram-se com uma terrível realidade.
— Marechal solar, devemos apresentar-nos ao chefe — disse John Marshall, interrompendo
as reflexões de Mercant. — A palestra entre Rhodan e Atlan já chegou ao fim. Eu lhe disse que
acompanhei a primeira parte da palestra travada pelo hiper-rádio, e que a seguir informei o
senhor a este respeito. Rhodan não formulou nenhum comentário, sir.
— Vamos andando — disse o chefe do Serviço de Segurança Solar, pegando seus
documentos e retirando-se com o telepata.
O elevador antigravitacional levou-os para cima. Enquanto se dirigiam ao gabinete de
Rhodan encontraram-se com Bell, cujo rosto tenso dizia mais que várias informações.
Quando entraram no gabinete do chefe, ouviram-no transmitir uma ordem de emergência
que interditava a venda do licor. Todos os estoques de liquitivo seriam confiscados
imediatamente. Não seria permitida a propaganda do licor.
— Sentem! — foi só o que Rhodan pôde dizer naquele momento aos seus colaboradores.
Não o acharam nem um pouco mudado. O brilho de seus olhos cinzentos era o único sinal
do forte nervosismo de que se sentia possuído.
— Toda a frota entrará em prontidão. A partir deste momento está em vigor a diretiva
número seis. A ordem de prontidão deve ser transmitida pelo código mais rigoroso. Todas as
naves, que se encontram no espaço, interromperão imediatamente a viagem. Deve-se tomar
todos os preparativos para uma transição em direção ao sistema de Firing. A ordem para o
salto será transmitida em separado. Observar prontidão absoluta para entrar em combate. As
gazelas, jatos espaciais e destroieres deverão ser colocados em estado de entrarem em ação
imediatamente. Fim.
Mercant aguçou o ouvido diante da passagem que se seguiu. Rhodan entrara em contato
com o Serviço de Segurança Solar, do qual, ele mesmo, como marechal, era o chefe.
— Aqui fala Rhodan. Acredito que tenham ouvido a ordem que transmiti ao quartel-general
da frota. Utilize uma dezena de estações retransmissoras para colocar nossos agentes de
71
Lepso em estado de alarma. Trata-se do segundo planeta do sistema de Firing. Aqui vai a foto
do homem que deve ser procurado.
Ouviu-se um chamado vindo da estação central do Serviço de Defesa Solar:
— Sir, mas este é seu filho!
O rosto controlado de Rhodan manteve-se impassível. Estendeu o braço e, sem mover a
cabeça, dirigiu estas palavras a Mercant:
— Faça o favor de me dar a foto que nos foi entregue pelo doutor Zuglert.
No mesmo instante, Mercant tirou a foto da pasta com documentos e entregou-a ao chefe.
Rhodan colocou-a diante da tela levemente abaulada.
— Vejam como Thomas Cardif é hoje em dia. A fotografia foi transmitida, não é?
Passou a foto a Bell, que se encontrava atrás dele, a fim de que este a entregasse a Mercant.
Fez como se não percebesse a expressão de perplexidade no rosto do homem que se
encontrava na estação da central do Serviço de Segurança Solar.
— Nossos agentes procurarão localizar este homem, que provavelmente vive em Lepso e
usa o nome Doutor Edmond Hugher. Existe uma forte suspeita de que colabora com os antis e
vive na área templária.
“Segue uma ordem especial, destinada a todos os agentes que se encontram em Lepso. Em
hipótese alguma devem usar violência contra Thomas Cardif. Repito. Em hipótese alguma
deverão usar violência contra Thomas Cardif, ou seja, contra o Doutor Edmond Hugher. Fim.”
No momento em que Rhodan se levantou, a fim de abandonar o lugar junto ao aparelho de
telecomunicação, Deringhouse e Julian Tifflor entraram na grande sala de conferências. Sem
dizer uma palavra, sentaram-se atrás de Mercant e Marshall. O ar tremeluziu à frente de
Rhodan, enquanto este se dirigia a uma poltrona, e Gucky, o rato-castor, apareceu na sala. Saiu
de perto de Rhodan o mais depressa que pôde e acomodou-se no sofá que ficava junto à
parede.
Rhodan lançou um olhar indagador para o telepata Marshall. Quase no mesmo instante,
este balançou a cabeça. Utilizando seus dons parapsicológicos, comunicou a Rhodan, que
possuía uma capacidade telepática pouco desenvolvida:
— Gucky bloqueou seus pensamentos, sir.
Rhodan sentou-se.
— Senhores! Apenas aguardo que Atlan me comunique a chegada de cinco mil naves
robotizadas de Árcon ao nosso sistema. Conforme já terão depreendido das instruções que
acabo de transmitir, a Frota Solar aparecerá em peso sobre o planeta Lepso e o cercará.
Enquanto isso, as unidades robotizadas de Árcon protegerão a Terra. Quer dizer alguma coisa,
Mercant?
Rhodan notara a expressão de dúvida no rosto do marechal solar.
— Sir — principiou o chefe do Serviço de Segurança Solar. — No momento em que dermos
início à ocupação de Lepso, teremos de contar com a presença de quatro mil unidades que
estão em condições de combater. Provavelmente estas procurarão impedir nossa ação.
Rhodan levantou a mão para interromper Mercant.
— Estamos dispostos até mesmo a assumir o risco de uma guerra galáctica, Mercant! —
exclamou. — Devemos contar com a hostilidade declarada dos saltadores, dos superpesados,
dos povos coloniais insatisfeitos com o domínio de Árcon e dos anti-mutantes. Eles recorrerão
a todos os meios para opor-se à nossa tentativa de modificar as condições reinantes em Lepso.
No nosso argumento de que apenas estamos realizando uma ação policial, destinada a
prender um único homem, verão um sinal de que se trata de uma ocupação dissimulada do
planeta dos contrabandistas, e adaptarão sua ação a essa circunstância. Por isso Atlan e eu
combinamos que faremos entrar em atividade na área de Lepso não apenas todo o
contingente da Frota Solar, mas ainda recorreremos às naves robotizadas arcônidas, para
criar mais duas ou três áreas de bloqueio exteriores, cujo raio será muito maior. Ainda
poderemos contar com uma reserva, constituída por um grupo de naves do Imperador.
72
“Sob o ponto de vista militar esta ação não representa o menor risco para nós, mas
acontece que raramente as guerras são ganhas nos campos de batalha. Não temos nada de
equivalente que possamos contrapor ao poderio econômico dos saltadores, dos superpesados
e dos antis, a não ser que consigamos concluir a ação em Lepso, dentro de três dias padrão.
Tenho certeza de que nem chegaremos a esgotar este prazo.”
Nos últimos minutos, Bell não tirara os olhos de cima do amigo. Aproveitou a pausa para
formular a objeção que preparara.
— O que acontecerá se os saltadores, os superpesados e os antis, em vez de defender Lepso,
resolverem usar todas as naves disponíveis num ataque à Terra? O que representam cinco mil
naves tripuladas por robôs, Perry?
Essa pergunta fez com que o olhar de Rhodan assumisse uma expressão dura.
— A Terra vem sendo atacada há anos. Apenas, o ataque não é desfechado pelos meios
convencionais, mas por meio de veneno. Será que ainda temos alguma coisa a perder, ou
teremos tudo a ganhar? Sabe qual é, segundo as estimativas, o número dos viciados, só na
Terra, bem visto? Ainda não se chegou a um acordo sobre se são vinte ou trinta milhões. Mais
dia menos dia teremos na Terra um gigantesco exército de viciados, condenados à morte. A
estes milhões foi prometida saúde e a eterna juventude; atraíram os homens por meio de uma
isca da qual dificilmente escapa alguém para, em vez daquilo que lhes foi prometido, trazer-
lhes a doença, o vício, a loucura, os tormentos e a morte.
“Bell, vivo dizendo: respeitem a vida sob todas as formas, pois qualquer vida vem de Deus.
Temos o dever de proteger todas as formas de vida.”
A estação de hiper-rádio de Terrânia transmitiu um sinal insistente, que anunciava um
chamado de Atlan.
Rhodan mudou de lugar, voltando a colocar-se diante da tela.
— Perry — disse a voz potente do almirante. — Às 17:20 h, tempo da Terra, a frota
robotizada sairá da transição e começará a penetrar no sistema solar. As outras unidades
colocadas em prontidão aguardam sua ordem para entrar em ação.
O intercomunicador berrou em meio a estas palavras. Patrício Angustos — incumbido por
Rhodan de, numa ação-relâmpago bem conduzida, confiscar o liquitivo em todos os mundos
do Império Solar — chegava a gritar:
— Sir, acabamos de constatar que, ainda ontem, foram levados dezesseis milhões de
unidades de liquitivo de Lepso para a Terra. Acontece que até o momento não conseguimos
localizar esta remessa gigantesca.
Rhodan empalideceu. Fitou a tela do intercomunicador com uma expressão distraída.
— Entre em contato com o Serviço de Segurança e com as unidades policiais, Angustos. O
veneno tem de ser encontrado. Utilize as forças que julgar necessárias. O custo da operação
não vem ao caso. Espero que o tóxico seja encontrado. Fim.
Respirou profundamente e entesou o corpo.
— Você ouviu, arcônida? Dezesseis milhões de unidades entregues ontem desapareceram
hoje, sem deixar a menor pista. Por que faz esse gesto?
Rhodan estava só à frente da tela.
— Já estou há muito preocupado, Perry! Há menos de três horas, tempo de Árcon, meu
Serviço Secreto apurou que quarenta e um milhões de garrafas de licor chegaram ao mundo
de cristal. Até o momento nem uma única delas foi localizada. Nossos inimigos golpeiam em
cheio. Será que isso não prova que conhecem nossos planos, ou ao menos imaginam como
sejam?
Rhodan respondeu com a voz dura:
— Faço votos de que sejamos subestimados em Lepso, Atlan.
Na tela viu-se que o Imperador Gonozal VIII se ergueu repentinamente. Estreitou os olhos
e, a uma distância de 34.000 anos-luz, fitou seu amigo terrano. Abriu a boca para responder,
73
mas não disse nada. Apenas acenou com a cabeça, a fim de exprimir sua concordância. Um
sorriso surgiu no rosto marcante de Atlan.
— Perry, acho que no momento até eu o subestimo.
Depois disso a ligação de hipercomunicação com Árcon I foi interrompida.
Mais uma vez, o destino colocara tudo nas mãos de Perry Rhodan.
O Coronel Nike Quinto, chefe da Divisão Secreta III do Fundo Social Intercósmico de
Desenvolvimento, chamou pelo intercomunicador. Não estava de acordo com a proibição
imediata da venda do licor, ordenada por Rhodan.
— O senhor deve estar lembrado do que informam os quarenta e oito viciados em liquitivo,
vindos de Lepso. A pessoa, privada do uso do licor pelo prazo de seis dias, sofre um ataque
que pode levar à morte. Pelo que dizem o processo estende-se por um período de trinta dias, a
partir do início do ataque até o estado de perturbação mental ou a morte.
— Não se preocupe com isso, Quinto. Dentro de três dias estaremos de volta de nossa
missão em Lepso. Depois disso voltaremos a conversar sobre isto, mas dentro de um círculo
de pessoas qualificadas. Posso garantir que só emiti a proibição de venda do licor depois de
ter conferenciado com alguns médicos. Mais alguma coisa, coronel?
O Coronel Nike Quinto apressou-se em desligar o aparelho. Entendera a repreensão que o
chefe acabara de exprimir.
Rhodan voltou para junto de seus colaboradores.
— A última notícia de Atlan, relativa a quarenta e um milhões de garrafas de licor, fala por
si e facilita nossa decisão. Se necessário, aceitarei uma guerra galáctica. Vamos agir de modo
rápido e eficaz. Não deixaremos lacunas, onde os saltadores, os superpesados e os antis
possam atuar. Se os médicos galácticos resolverem tomar partido na luta, não cessarei esta,
antes que tenha obrigado todos eles a tornarem-se razoáveis. Sei perfeitamente o que estou
arriscando, mas se me lembro de que só na Terra já existem alguns milhões de viciados, não
tenho a menor dúvida em lançar mão de todos os recursos para fazer com que nunca mais se
torne possível um crime como este.
“Daqui a uma hora e meia decolará a formação de nossa frota que está pousada no
espaçoporto. Iremos na Ironduke, motivo por que sairemos de Terrânia três horas depois.
Ainda tenho alguma coisa a fazer. Muito obrigado.”
Nunca haviam visto Perry Rhodan assim. E não gostaram de vê-lo dessa forma. Perry
Rhodan transformara-se num homem que se sentia só e, em meio à solidão, tomava decisões
sobre as quais normalmente teria conferenciado com seus colaboradores mais chegados.
Mas havia mais alguém que se comportara de maneira diferente da usual. Era Gucky, o rato-
castor.
Aquele sujeitinho, que geralmente soltava as suas, não dissera uma única palavra, durante a
reunião. E o rato-castor desapareceu pela mesma forma que viera: por teleportação.
Os colaboradores de Rhodan pararam junto ao elevador antigravitacional. Cercaram Bell,
que não parava de balançar a cabeça.
— Também notaram alguma coisa? — perguntou em tom contrariado.
— Notamos — disse Julian Tifflor. — Perante nós, o chefe não citou o nome Thomas Cardif,
nem aludiu a um certo Dr. Edmond Hugher, nem comentou nada a este respeito.
Mercant, Marshall e Deringhouse pensavam da mesma forma.
— Esse rato de desenho animado, que sempre gostou de Cardif, deve estar doente, já que
não deu um pio. Ou então trama mais uma das suas, para colocar-nos diante de um fato
consumado. Mercant, será preferível mantê-lo constantemente sob vigilância — ordenou Bell.
Mercant soltou uma risada; parecia contrariado.
— Obrigado. Devolvo esse trabalho ao senhor. De que forma poderíamos manter Gucky sob
controle?
74
Nesse instante o ar tremeluziu, e o rato-castor apareceu. Todo convencido, ergueu o corpo
entre Bell e Mercant. Os olhos ingênuos de rato exibiam um brilho de contrariedade, e sua voz
estridente chiou para Bell:
— Você não está em condições de instigar quem quer que seja contra mim, meu caro. E
digo-lhes mais uma coisa que devem guardar bem. Thomas Cardif não pode ser condenado,
sem ser ouvido. Isso não se faz, mesmo que todas as circunstâncias pareçam incriminar a
pessoa. Seus fariseus!
Muito nervoso, Bell pôs as mãos no vazio.
Gucky preferira desaparecer por meio da teleportação.
— Que sujeito atrevido! — exclamou o homem ruivo. — Às vezes esse ratinho de desenho
animado se torna insuportável. Caramba, Mercant! Por que me olha com essa cara de quem
não está satisfeito com alguma coisa? Será que passou a ser amigo do peito de Gucky?
— Não é isso, mister Bell — respondeu o Marechal Solar Mercant, com a voz tranqüila. —
Acontece que realmente tenho motivo para envergonhar-me. Merecemos a bofetada moral
que o rato-castor acaba de nos dar.
— Ah, é? — disse Bell, em tom agressivo. — Quando os vinte milhões de viciados tiverem
morrido, o senhor talvez passe a usar uma linguagem diferente, Mercant. E quando isso
acontecer sua opinião sobre Thomas Cardif também mudará.
— Talvez, mister Bell, mas isso só depois que tiver sido provado, primeiro, que Thomas
Cardif se encontra no gozo pleno de suas faculdades mentais, e depois, que, no curso dos
últimos cinqüenta e oito anos, ele tenha estudado Medicina e, graças a tais conhecimentos,
esteve em condições de ter uma participação decisiva na produção do liquitivo.
Bell fez um gesto impulsivo e olhou para John Marshall, esperando que este o apoiasse. Mas
o telepata lançou o olhar para além de Bell.
— Ah, então todo mundo é da mesma opinião que Mercant? Que interessante! Desta vez
não estou disposto a acompanhá-los. Digo e repito que Thomas Cardif está por trás desse
tráfico de veneno. Pouco importa que os antis o ajudem nessa atividade ou não. Se não
pusermos fim à sua atuação maléfica, ainda acabará empurrando o Império Solar para o
abismo. Não nos esqueçamos de que é filho de Rhodan.
Virou-se instantaneamente, entrou no elevador antigravitacional e deixou-se levar para
baixo.
— Quero fazer uma pergunta — disse Julian Tifflor. — Como se explica que Cardif
praticamente não tenha envelhecido nesses sessenta anos? Apenas a expressão de seu rosto
sofreu uma modificação que quase o torna irreconhecível!
— Vivo pensando sobre isso desde o momento em que Zuglert me deu a fotografia. A mãe
de Cardif era arcônida. Os arcônidas vivem mais tempo que nós, os terranos. Com isso, talvez
se explique que nos últimos cinqüenta anos Cardif não tenha envelhecido, mas não sei explicar
por que seu rosto está totalmente alterado, a ponto de ser feio e inexpressivo.
— Será uma máscara de plástico? — perguntou Deringhouse.
Marshall foi contra essa opinião.
— Isso é pouco provável, general. Até mesmo os aras recomendam que uma máscara não
seja usada por mais de um ano, pois, do contrário, surgirão graves danos para os tecidos, que
são praticamente incuráveis.
— É possível que, atualmente, Cardif esteja bem diferente desta velha fotografia —
ponderou Tifflor.
— Talvez. Aguardemos a surpresa — disse Mercant, dando a perceber que não estava
interessado em prosseguir na palestra.
John Marshall foi o único que caminhou pelo corredor largo. Mercant, Deringhouse e Tifflor
desceram lentamente pelo elevador antigravitacional, que os levou aos andares onde ficavam
seus escritórios.
75
***
Rhodan saíra de seu gabinete, e se dirigia ao setor residencial. Parou junto à janela do
último andar do grande edifício da administração e contemplou a cidade de Terrânia.
“É mais uma cidade de viciados”, pensou e ainda mais entristeceu-se.
Os pensamentos transformaram-se em palavras articuladas.
— Thomas, estou a caminho. Você não precisará confessar nem calar coisa alguma. Nada
poderá esperar de mim, uma vez que se confirmem as informações, segundo as quais você tem
alguma relação com o liquitivo.
Rhodan ouviu sua própria voz e sentiu que isso aliviava sua tensão.
O trovejar dos propulsores colocados em funcionamento veio do lado do espaçoporto.
Rhodan viu três cruzadores pesados subirem ao céu e desaparecerem. Olhou o relógio.
Faltavam vinte e dois minutos para a hora da decolagem.
Em local um tanto afastado do grosso da frota, estava pousado o couraçado Ironduke,
equipado com o mecanismo de propulsão linear. Aquela nave de oitocentos metros de
diâmetro parecia insignificante ao lado dos gigantescos supercouraçados, mas os olhos de
Rhodan exprimiam orgulho, enquanto fitava a Ironduke.
Era a nave mais veloz da frota de guerra solar e a primeira equipada com o fantástico
mecanismo linear de hiperpropulsão. Tal aparelho permitia que o veículo espacial atingisse
velocidades inacreditáveis, que excediam a da luz. Até então não se havia constatado nenhum
limite para essa velocidade. Esse sistema de propulsão tinha outra vantagem: dispensava a
transição e o desmaio produzido pela mesma. Assim, quando da viagem superveloz, o céu
estrelado não desaparecia e a estrela, que representava o ponto de chegada, continuava
visível.
Mesmo que desenvolvesse milhões de vezes a velocidade da luz, a nave linear não
penetrava no espaço de cinco dimensões. Permanecia num semi-espaço instável, situado entre
a quarta e a quinta dimensão.
O trovejar dos propulsores que estavam sendo aquecidos fez com que o espírito de Rhodan
retornasse à cruel realidade. De repente teve a impressão de não estar só. Virou-se.
Gucky encontrava-se agachado atrás dele.
“Há quanto tempo já estará aqui?”, pensou Rhodan. “Decerto leu os meus pensamentos.”
— Perry, você dispensa metade do castigo se eu lhe disser que suas suspeitas têm
fundamento? — piou o rato-castor e inclinou a cabeça.
— O que veio fazer aqui, Guck?
Isso não soava bem. Mais uma vez Perry Rhodan deixara de pronunciar o ípsilon do nome
de Gucky e, contrariando seus hábitos, não lhe dera o tratamento de tenente.
Fazia muitos decênios que o rato-castor era tenente. Outras pessoas, que obtiveram a
patente na mesma época que ele, já haviam subido a escala da carreira militar, mas com Gucky
isso não acontecera. Sentia-se satisfeito por ser tenente do Exército de Mutantes. Não tinha a
menor ambição hierárquica e dispensava as estrelas, asas ou caudas de cometa nas ombreiras
do uniforme. Quando necessário passava por cima dos seus superiores, deixava de lado tanto
as normas de serviço como as vias oficiais, atendo-se exclusivamente aos fatos.
— O que veio fazer aqui? — voltou a perguntar Rhodan, em tom áspero.
— Queria olhar pela janela e contemplar Terrânia juntamente com você, Perry. Poderia ter
escolhido um momento mais apropriado, não acha, chefe?
Não exibiu o dente roedor, o que constituía sinal evidente de não estar brincando e nem
pretender fazer uma das suas.
— Pois venha — convidou Rhodan, compreendendo que Gucky viera com uma intenção
definida. — Mas não esmague a flor, baixinho.
Com um salto, o rato-castor colocou-se em cima do peitoril da janela. Contemplou o oceano
de prédios, enquanto tagarelava:
76
— O pedido de não esmagar a flor era dispensável. Não sou nenhum vândalo, mesmo que
outras pessoas sejam fariseus.
— Quem é fariseu? — perguntou Rhodan, em tom apressado.
De forma alguma essa observação do rato-castor fora largada ao acaso. Quando quis
controlar os pensamentos de Gucky, Rhodan esbarrou num potente fluxo defensivo, que
representava um obstáculo intransponível para suas reduzidas energias parapsicológicas.
— O gorducho em primeiro lugar. Mercant, Marshall, Deringhouse e Tifflor também
pertencem ao grupo. Eu até lhes disse o que eles são, Perry. Depois larguei-os por aí.
— Por que você os chamou assim? — a voz de Rhodan tornou-se mais áspera.
— Porque em pensamento não viram mais nada de bom em Thomas, chefe.
— Hum — fez Rhodan. — Será que você imaginava que poderia fazer-me ver que Cardif é
inocente?
— Não — respondeu Gucky e virou-se sobre o peitoril, para fitar Rhodan. — Mas imaginei
que tanto você como eu temos certa suspeita. Nessa questão de Thomas e liquitivo, algo não
está certo. Perry, peço-lhe que não fique zangado comigo se eu lhe disser que, em certas
considerações, vez por outra tenho sido mais inteligente que você. Você sabe perfeitamente
que sei ficar calado que nem um túmulo, e também sabe que nunca usei uma boa idéia para
fazer propaganda de minha pessoa. Veja...
Rhodan segurou-o firmemente pelos ombros e lançou-lhe um olhar penetrante.
— Ouça, baixinho — disse em tom lacônico, mas inconfundível. — Pare de tagarelar. Diga
logo por que resolveu aparecer aqui, senão eu o ponho para fora.
— OK, chefe. Quem manda aqui é você, não eu.
O baixinho fitava-o ininterruptamente.
— Perry, tenho um medo terrível de que Thomas esteja numa posição bastante complicada.
— Você quer dizer que Thomas está por trás dessa patifaria? Se é assim, por que afirmou
que o gordo e os outros são fariseus? Por quê?
— Não sei. Quando li os pensamentos deles, tive uma raiva tremenda, pois formularam um
juízo precipitado sobre Thomas. Não pude deixar de dizer-lhes aquilo. É o melhor meio de
obrigá-los a irrigarem suas circunvoluções cerebrais.
— Você acha que dessa forma pode obrigá-los a pensar?
— Pode-se exprimi-lo assim. Agora ficam matutando sobre esta questão de tóxicos;
desenvolvem suas reflexões num sentido e noutro. E até mesmo o gordo já chegou à conclusão
de que é impossível Thomas ser responsável por tudo.
Rhodan lançou-lhe um olhar pensativo.
O baixinho viera mesmo para evitar que o pior acontecesse a Thomas Cardif.
— Gucky! — exclamou Rhodan, enquanto seus olhos cinzentos chamejavam. — Será que
você não se importa nem um pouco que vinte ou trinta milhões de seres humanos morram,
lentamente, sob os efeitos das drogas? Como pode empenhar-se a favor de Cardif?
Naquele momento, nem mesmo Perry conseguiria abalar o rato-castor.
— Perry — pediu — não viva dizendo Cardif! Ao menos diga Thomas Cardif. Afinal, ele é
seu filho, mesmo que não queira usar seu nome.
— Não se perca em aspectos secundários, Gucky. Formulei certas perguntas, e exijo uma
resposta imediata.
— Eu já lhe disse que você é o chefe... e pode olhar feio à vontade. Hoje você não me mete
medo. Quer saber por que posso falar constantemente em Thomas Cardif, depois de tudo que
aconteceu? Será que realmente é isso que estou fazendo? Não tento apenas preveni-lo? Perry,
em geral você tem uma excelente capacidade de julgamento. Mas quando se trata de seu filho,
deixa de enxergar os aspectos mais evidentes. Você seria capaz de dizer por que o Thomas
Cardif dos nossos dias não tem semelhança com o de antigamente e nem com você?
— Você é um sujeitinho esperto — disse Rhodan, ao notar a habilidade com que o rato-
castor o colocara na defensiva.
77
Mas no mesmo instante seu rosto assumiu uma expressão rígida.
— Gucky, o que quer insinuar com essa pergunta?
— Quase chego a acreditar que Thomas foi submetido a um bloqueio hipnótico, e que a
constrição exercida sobre sua pessoa conferiu-lhe ao rosto esses traços banais, feios e
insignificantes. Poderá ele ser responsabilizado pelo liquitivo se realmente for assim?
— Ora, Gucky, você vive tentando encontrar uma desculpa para o procedimento de Cardif
— opôs Rhodan, em tom áspero.
— Não! — por surpreendente que fosse, o rato-castor não fez outras observações sobre a
acusação do chefe. — Apenas vivo refletindo há tempo sobre o seguinte: como poderemos
localizar os impulsos cerebrais de Thomas em Lepso, caso ainda se encontre submetido ao
bloqueio hipnótico? É bem possível que nem Marshall nem Lloyd consiga localizar sua pista. O
que acontecerá se os telepatas ou Lloyd, o localizador, falharem?
— Ainda não pensei nisso, baixinho — confessou Rhodan, prontamente. — Ainda bem que
você aludiu a este ponto. Se não fossem suas ponderações, talvez iríamos desferir um golpe no
vazio em Lepso. Em outras palavras, provavelmente não encontraríamos Cardif. Pelo que se
diz, uma pessoa sujeita a um bloqueio constante ou temporário emite vez por outra débeis
impulsos mentais. Quem pode ajudar-nos nas próximas horas são os swoons, os homens-
pepino.
— Ah, você se refere ao localizador individual, Perry? Trata-se de um aparelho formidável
construído por nossos micro mecânicos. — entusiasmou-se com suas próprias palavras, mas
logo mudou de tom e disse de modo indiferente: — Se você pretende fazer Thomas passar
pelo lobo carniceiro...
— Que expressão é essa, Gucky? — gritou Perry, contrariado.
— Estas palavras foram ditas ontem pelo representante do Administrador do Império
Solar, e devo dizer que gostei delas.
— Acontece que eu não gosto. Dê o fora, baixinho. Tenho o que fazer.
— Oh! — exclamou o rato-castor. — Isso é formidável!
E desapareceu. Antes da teleportação, tateara em busca dos pensamentos de Rhodan e leu o
seguinte: Perry Rhodan refletia sobre se uma pessoa, parcialmente hipnotizada, tem a
responsabilidade plena dos seus atos.
E era isto que Gucky queria alcançar com sua visita.
78
3
***
80
A Ironduke, uma nave da classe Stardust, decolou do espaçoporto de Terrânia sob a ação
dos trovejantes propulsores. Era a última nave da Frota Solar que seguia em direção ao
sistema de Firing.
O comandante dessa nave, que dispunha de um sistema de propulsão linear, era o Major
Jefe Claudrin, que nascera em Epsal. No momento não havia cosmonauta ou comandante
melhor que ele.
Estava tranquilamente acomodado na poltrona especialmente feita para ele, no interior da
sala de comando da Ironduke, e prestava atenção ao ruído dos propulsores de impulsos. Por
meio das pequenas telas do sistema de controle, verificou as instalações da protuberância
equatorial, enquanto o veículo espacial esférico acelerava à razão de quinhentos quilômetros
por segundo.
Em torno de Claudrin, desenvolvia-se a atividade normal que costuma acompanhar
qualquer vôo espacial. Mas hoje a tensão parecia impregnar todos os recintos da Ironduke.
Nem mesmo os homens experimentados, que se encontravam de serviço na sala de comando,
não conseguiram escapar à mesma.
O chefe encontrava-se a bordo, e ainda Reginald Bell, Mercant, Deringhouse, Marshall com
todo o Exército de Mutantes e alguns agentes especiais do Serviço de Segurança Solar.
Rhodan e Bell eram os únicos dentre eles que se encontravam na sala de comando. Os
outros haviam-se recolhido aos camarotes e estavam deitados. O fato de que teriam de
realizar uma ação difícil não os impedia de dormir um pouco, antes que a mesma tivesse
início.
A tensão, que apesar de tudo reinava a bordo, era causada pelos antis. Estes chamados
sacerdotes do deus Baalol eram descendentes da raça arcônida, que em tempos idos haviam
sofrido uma mutação. Além da faculdade de, por meio das suas energias mentais, reforçar os
campos energéticos de proteção pessoal a ponto tal que estes dificilmente poderiam ser
rompidos por uma arma energética, ainda eram capazes de impedir a atuação das forças
parapsicológicas de outras criaturas.
Fazia apenas alguns decênios que os antis foram abandonando aos poucos a atitude de
reserva em que se mantinham. Passaram a mostrar que não eram apenas anti-mutantes e
servos de um culto, já que se empenhavam por objetivos ligados ao poder político.
Pretendiam, em última análise, apoderar-se do grande império.
— Sir — trovejou a voz do Major Claudrin em direção a Rhodan, que foi arrancado de suas
reflexões. — Já vou ligar o sistema kalupiano. Desta forma chegaremos dez minutos antes da
frota.
Rhodan compreendeu a finalidade que Jefe Claudrin visava com a manobra. Queria reduzir
ao mínimo o risco de uma guerra galáctica. Se o chefe do império solar atingisse as posições
mais avançadas antes de sua frota, talvez seria capaz de evitar a reação em cadeia causada por
uma eventual batalha que eclodisse por acaso.
O conversor tipo kalup, antes conhecido por sistema kalupiano, que constituía o núcleo da
propulsão linear, não era um motor de aceleração, mas um aparelho que envolvia a Ironduke
num campo esférico. Esse campo neutralizava todas as influências do espaço de quatro e cinco
dimensões, que eram por ele absorvidas e refletidas. Dessa forma, a nave podia penetrar na
área de libração, que era o semi-espaço, situado entre o universo de quatro e o de cinco
dimensões, e nessa área alcançava velocidades milhões de vezes superiores à da luz.
Rhodan assentiu com um gesto.
Claudrin em pessoa moveu os controles. O trovejar dos propulsores cessou e os
conversores de impulsos da nave deixaram de funcionar. Por alguns segundos a Ironduke
deslocou-se em queda livre, à velocidade de 0,6% à da luz.
De repente todos os aparelhos pareciam funcionar novamente, mas o inferno trovejante
das profundezas da nave fora precedido por um ruído ligeiro, ainda não ouvido.
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— É o kalup — disse um dos oficiais que se encontravam na sala de comando, e outros
concordaram com um gesto.
Os homens pertencentes à Frota Solar costumavam simplificar tudo. Kalup era o
sobrenome do professor Dr. Arno, o hiperfísico mais competente do sistema solar, e agora
passara a ser o nome do conversor de compensação inventado pelo eminente cientista. Tal
conversor acabara de envolver a Ironduke num campo esférico, a fim de abrir caminho para
as áreas situadas no semi-espaço.
Para isso, o kalup produzia uma deformação na estrutura das ondas de impulsos. Estas se
tornavam independentes do espaço 4-D ou 5-D e as radiações atingiam uma velocidade que
chegava a aproximadamente vinte e cinco milhões à da luz.
A grande tela de visão global da nave esférica transmitiu uma imagem turva do Universo.
Não se viam mais os pontos luminosos, que foram substituídos por traços de luz.
— Ligar os rastreadores de relevo! — trovejou a voz de Claudrin.
O enorme epsalense não sabia falar baixo.
O copiloto, que se encontrava ao lado do major, mexeu em alguns controles.
Uma tela iluminou-se e a imagem adquiriu contornos estáveis e um pouco mais de nitidez.
Sob o comando da localização de compensação, uma estrela surgiu no centro da tela. Era o sol
de Firing!
— Muito bem — voltou a trovejar a voz de Jefe Claudrin. — Os oito mil, quatrocentos e
sessenta e sete anos-luz logo serão percorridos.
Olhou em torno. Cada um dos oficiais sentiu o olhar do comandante pousado em si, e todos
o retribuíram.
— OK! — trovejou o major, depois que voltou a assumir sua posição normal na poltrona. —
Vamos continuar assim!
Isso não era apenas uma frase. Falara na primeira pessoa do plural; logo, essas palavras
também foram dirigidas a ele mesmo.
Sem qualquer modificação na cor e na intensidade, continuava acesa na tela do rastreador
de relevo a imagem do sol de Fering, cujo segundo planeta era conhecido pelo nome de Lepso.
Os homens da sala de comando da Ironduke viram seu destino a uma distância superior a
oito mil anos-luz. Era uma das grandes maravilhas do sistema de propulsão linear, que
permitia a visão da estrela-destino, enquanto a nave corria a uma velocidade milhões de vezes
superior à da luz, deslocando-se pelo semi-espaço.
O tempo foi passando. Subitamente, o sol começou a crescer na tela do rastreador de
relevo. O Major Claudrin modificou a regulagem. A Ironduke voltou a penetrar no Universo
normal sem provocar o menor abalo estrutural. No mesmo instante, as imagens projetadas na
gigantesca tela de visão global assumiram contornos ainda mais nítidos, e a faixa luminosa da
Via Láctea iluminou-se em todo o esplendor. Uma das miríades de estrelas era o sol de Firing.
— Fortes abalos estruturais — avisou o oficial que se encontrava junto aos aparelhos de
localização.
Do outro lado da sala de comando passaram a ser transmitidas as posições galácticas. O
aparelho de contagem acoplado ao localizador constatara o número de naves que naquele
instante deixavam o hiperespaço.
— Cento e oitenta espaçonaves. Segue a identificação, major. Trata-se de uma formação da
frota dos superpesados.
Os superpesados eram mercenários contratados pelos mercadores galácticos.
Face às condições ambientais reinantes nos planetas por eles escolhidos como habitat, os
superpesados, que também descendiam da raça arcônida, haviam passado por uma evolução
totalmente diferente da de outros seres. Transformaram-se em gigantes: pesavam de
quinhentos a novecentos quilos. Ao contrário dos mercadores, faziam da arte da guerra um
negócio. Qualquer um que pagasse poderia contar com seu auxílio. Quem os chamasse sabia
que seria obrigado a despender somas imensas. Os superpesados só agiam mediante
82
pagamento à vista; não se interessavam por promessas. Mas quem os tivesse pago poderia
contar com sua atuação, tanto preventiva como repressiva. Lutavam com uma bravura digna
de melhor causa.
— Claudrin, coloque os mutantes em estado de prontidão — ordenou Rhodan, uma vez
concluída a transmissão dos últimos dados relativos à frota dos superpesados.
Um dos oficiais adiantou-se, e, chegando perto do microfone, assim que a central telefônica
respondeu, pediu que o ligasse aos camarotes dos mutantes.
— Será que isso não poderia ser feito mais depressa? — perguntou Rhodan, um tanto
contrariado com a demora.
Quem respondeu no lugar do jovem oficial foi Jefe Claudrin, que se sentiu embaraçado face
à recriminação de Rhodan.
— Fui eu que dei ordem para isso. Enquanto tivermos tempo, praticaremos a teoria
ocupacional. Quando não tivermos mais, meus homens saberão trabalhar ainda mais
depressa. De acordo, sir?
— Tenho de concordar, major — respondeu Rhodan, com um sorriso. — Afinal, não passo
de um visitante a bordo da Ironduke.
— Não me esquecerei disso — respondeu Claudrin com uma risadinha sem tirar os olhos
dos controles.
Naquele momento, a nave estava passando junto ao quarto planeta do sol de Firing e corria
a 0,8% da velocidade da luz em direção à órbita do terceiro planeta. Com uma rapidez
espantosa, o comandante pegou outro microfone, comprimiu uma tecla e gritou:
— Alkher. Está dormindo? Por que não recebo nenhum aviso do setor de comando de tiro?
Brazo Alkher era o mais jovem dos oficiais a bordo da Ironduke. Era um homem grande, um
desajeitado e muito modesto. Mas quando surgia uma situação crítica não havia um oficial de
tiro mais frio e arrojado. Não entrava em pânico, nem mesmo quando só restava um único
canhão de sua nave, em condições de disparar.
— Major — disse a voz de Brazo Alkher saída do alto-falante da sala de comando. — Peço
licença para lembrar que, por ocasião da decolagem da Ironduke, já anunciei que estávamos
prontos para disparar. Não me consta que este aviso tenha sido revogado por outro.
Num gesto instintivo o Major Claudrin virou-se para o chefe. Rhodan disse com um sorriso:
— Isso também já aconteceu comigo, major.
O setor de rastreamento estrutural transmitiu um aviso:
— Localização! Nossa frota está saindo do hiperespaço. Velocidade: 0,85% da luz. A última
formação está mergulhando no espaço.
A sala de rádio chamou. A mensagem foi dirigida a Rhodan.
— Sir, há um chamado do governo planetário de Lepso, que nos ameaça com represálias
militares caso a frota do Império Solar não modifique imediatamente sua rota.
Muito tranqüilo, Rhodan aproximou-se do intercomunicador.
— Diga ao governo, em meu nome, que as intenções do Império Solar não são hostis.
Apenas queremos prender alguns criminosos. Não se envolva em qualquer palestra com
Lepso, operador de rádio.
Um sorriso largo surgiu no rosto do Major Jefe Claudrin.
— O senhor acha que alguém acreditará nisso?
Seguiu-se outro chamado do setor de rastreamento estrutural.
— Frota robotizada mergulhando no Universo. Há uma acentuada superposição dos abalos.
Fator de insegurança na determinação do número chega a cerca de mil. Número de naves é de
cinco ou seis mil.
A voz anunciou o ponto em que a frota robotizada penetrou no Universo normal. Enquanto
isso, a Ironduke continuou a acelerar. Acabara de cruzar a órbita do terceiro planeta e
deslocava-se em direção a Lepso. Visto da nave, o planeta ficava à direita do sol de Firing, que
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por intermédio da tela de visão ótica derramava quantidades cada vez maiores de luz
ofuscante e amarelenta para dentro da sala de comando.
Quando se encontrava a cento e trinta milhões de quilômetros, Rhodan transmitiu pelo
hiper-rádio uma mensagem destinada a Lepso.
Falando com a voz metálica, Perry disse:
— Em nome do Império Solar e por ordem de Rhodan, o administrador, a partir deste
instante fica proibida a decolagem de qualquer espaçonave que se encontre em Lepso. Sempre
que esta ordem for violada, a nave que tiver decolado será obrigada pela força das armas a
retornar para Lepso. Aqui fala a Ironduke, em nome de Rhodan, o administrador...
O Major Claudrin fez um gesto de assentimento; parecia satisfeito. Já se sentira contente ao
notar que Rhodan irradiara a mensagem, sem estabelecer contato visual. O tom de Rhodan
parecia mais grave que de costume. Era pouco provável que alguém o tivesse reconhecido
pela voz.
— Sir — disse o operador de rádio. — A frota anuncia que está preparada para abrir fogo.
Os supercouraçados ganham terreno. Dentro de cinco minutos estarão ao nosso lado.
Naquele instante John Marshall, chefe dos mutantes, entrou na sala de comando
acompanhado dos telepatas mais potentes do exército por ele chefiado. Apenas um deles
preferira não se locomover sobre as pernas. Era Gucky, o rato-castor. Escolheu como ponto
final do pequeno salto de teleportação justamente o colo do enorme epsalense.
— Não me abrace com esse feixe de músculos, Jefe — piou o rato-castor, quando Claudrin,
num movimento instintivo, fez menção de enlaçá-lo.
— Dê o fora, sua criatura enervante — esbravejou o major, mas sorriu interiormente ao ver
que seu berro fizera com que o rato-castor saísse de seu colo.
Jefe ouviu os protestos que o rato-castor formulou às suas costas:
— Afinal, as boas maneiras são uma questão de sorte. E olhe que eu não teria nenhum
problema em enfrentar esse colosso.
O Major Claudrin não teve tempo para dar atenção à observação de Gucky. Naquele
momento, o setor de localização anunciava que oito naves tentavam sair de Lepso numa
decolagem de emergência. Em compensação Rhodan resolveu dar uma lição no rato-castor.
— Aproxime-se, Tenente Guck!
Gucky encolheu-se sob o brilho dos olhos cinzentos de Rhodan, mas logo colocou-se à
frente do administrador.
— O Tenente Guck está presente conforme lhe foi ordenado, chefe. Aconteceu alguma
coisa?
Era um atrevimento inacreditável. Alguns oficiais irromperam numa estrondosa
gargalhada, e naturalmente Bell não conseguiu ficar sério. O rato-castor exibiu um pedacinho
do dente roedor, dando a entender o princípio de uma risadinha. Rhodan foi o único cujo rosto
continuou inalterado.
— Ora, meu caro... — disse em tom enérgico, mas viu-se interrompido.
Uma mensagem transferida para a sala de comando foi a salvação do rato-castor. Quando a
tela começou a tremeluzir, Rhodan saiu do ângulo da objetiva, pois não queria que o vissem e
soubessem que se encontrava a bordo da Ironduke.
— Aqui fala Gal-Tam, primeiro-ministro de Lepso — disse uma voz nasal desagradável,
vinda do alto-falante. — Exigimos que a frota do Império Solar saia imediatamente do sistema
de Firing, pois, do contrário, abriremos fogo com todas as armas de que dispomos. Se a rota
atual da Frota Solar for mantida por mais de cinco minutos, tempo padrão, o ultimato do
governo de Lepso terá chegado ao término.
O Primeiro-Ministro Gal-Tam nem sequer esperou a confirmação de que seu ultimato fora
recebido.
A guerra galáctica parecia inevitável.
84
***
86
Os sinais foram aparecendo em série. O maior centro positrônico da Galáxia não se
interessou pelo fato de que os sócios, que pediam informações, eram seres humanos. Mas
nessa hora decisiva Rhodan e Bell ultrapassaram suas limitações. Leram os sinais em código à
medida que estes eram exibidos. Finalmente o modelo linear do gigantesco centro de
computação voltou a aparecer na tela.
Perry Rhodan e Reginald Bell fitaram-se prolongadamente. Suas suspeitas foram
confirmadas. Essa ação — o apoio geral de todas as raças e todos os mundos da aliança estelar
arcônida — era uma ação deliberadamente orientada.
— Antis — limitou-se Rhodan a dizer.
— Mais uma vez — disse Bell.
Às costas dos dois dirigentes, o ar tremeluziu e ouviu-se um chiado. Quando Rhodan virou-
se para ele, o rato-castor parecia esgotado.
— Perry — disse em tom de desânimo. — Não consigo encontrar Thomas. Fiz tudo que
pude. Lloyd já desistiu.
O mutante localizador fez um gesto de desânimo em resposta ao olhar indagador de
Rhodan. Marshall enxugou o suor da testa.
— Está bem — disse Rhodan. — Não desperdicem suas forças — colocou-se junto ao
microfone. — Aqui fala o chefe. Transmitam uma mensagem codificada destinada à frota.
Todas as naves pertencentes ao primeiro destacamento realizarão um pouso-relâmpago
dentro de trezentos segundos. Fim.
Dali a meio minuto, o oficial que estava de plantão na sala de rádio fez um chamado.
— Sir, a ordem foi irradiada. A contagem regressiva foi iniciada há oito segundos.
O Major Jefe Claudrin achou que aquilo lhe dizia respeito.
— Quer dizer que também está na nossa vez.
Com um gesto tranqüilo, o comandante comprimiu um botão vermelho. O alarma soou no
interior da Ironduke. No momento em que sua voz trovejou em todos os compartimentos da
nave, esta baixou sobre Lepso como se fosse uma pedra:
— Atenção, todos os tripulantes! Realizaremos pouso-relâmpago dentro de
aproximadamente duzentos e cinqüenta segundos. O plano Eldorado entra em vigor. Fim.
A voz tranqüila de Brazo Alkher, oficial de direção de tiro, soou no alto-falante:
— Major, o chefe está a bordo. A ordem zero três permanece em vigor para o setor de
comando de tiro?
Rhodan interveio no mesmo instante.
— De forma alguma, Alkher! A ordem de abrir fogo lhe será transmitida, quando se tornar
necessária. Hoje não será observada a ordem adicional zero três.
Os oficiais lançaram um olhar de veneração para o chefe. Muitos exprimiram sem rebuços a
admiração que sentiam. A ordem zero três determinava que em hipótese alguma se devia pôr
em perigo a vida do chefe. Face à presença de Rhodan a bordo da Ironduke, Brazo Alkher
concluíra que automaticamente tinha ordem de abrir fogo, quando achasse necessário. Mas o
chefe em pessoa acabara de revogar tal ordem, elaborada não por ele, mas pelo quartel-
general da frota.
Acompanhada de mais de mil naves de guerra de todos os tipos, a Ironduke atravessou as
camadas mais densas da atmosfera e desceu sobre o quinto planeta. Pousou no maior dos
espaçoportos situados junto à capital, juntamente com cinco supercouraçados. Quando as
naves atingiram de cinco a três mil metros de altitude, suas eclusas abriram-se por pouco
tempo, e delas choveram robôs de guerra, que planaram em direção à superfície.
Um impulso especial, irradiado pela Ironduke, fez com que os campos energéticos
defensivos fossem desligados em momentos diferentes, mas sempre pelo mesmo espaço de
tempo, a fim de permitir às pesadas máquinas de guerra cumprirem sua programação,
deslocando-se para os pontos da cidade onde deveriam entrar em ação.
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Esses quatorze segundos, durante os quais cada uma das naves que executavam a manobra
de pouso só dispunha do casco de aço para defender-se de um tiro de radiações vindo da
superfície, foram carregados de grande tensão. Mas os campos defensivos logo foram
restabelecidos, enquanto os robôs de guerra saíam apressadamente em todas as direções e,
vez por outra, já se dispunham a pousar sobre o oceano de casas.
Houve pousos simultâneos em todos os núcleos maiores de Lepso, acompanhados da
atuação de gigantescos contingentes de robôs.
Houve um único incidente mais sério.
Mal os oito cruzadores pesados, que acompanhavam o couraçado Winnipeg, acabavam de
reativar seus campos defensivos, três baterias — bem camufladas e protegidas contra a
localização energética — dispararam raios de desintegração de vários metros de espessura,
que atingiram ruidosamente o campo energético de proteção da Winnipeg. O impacto
representou uma solicitação de noventa e três por cento da capacidade do campo defensivo. A
nave correu perigo de ser destruída. Mas os oficiais de comando de tiro de três cruzadores
pesados não deixaram que o ataque de surpresa, desfechado contra a Winnipeg os abalasse.
Dispararam uma salva mista com os canhões polares e as baterias de costado. No local em
que, um segundo antes, ainda havia uma bateria superpotente de canhões de radiações, só
restava uma cratera, por cujas paredes íngremes corria a rocha liquefeita, que foi
endurecendo lentamente no fundo da cratera.
— Utilizaram robôs — constatou laconicamente o setor de localização da Winnipeg.
O comandante do couraçado soltou um suspiro de alívio, pois as ordens mais importantes
de Rhodan determinavam que se poupassem as vidas humanas. O comandante inclinou-se em
direção ao microfone e ordenou:
— Avisar o chefe do acontecido. Não houve outros incidentes.
Naquele momento, a Winnipeg seguiu o exemplo dos oito cruzadores pesados, pousando ao
norte do deserto pedregoso. A segunda fase da operação teve início.
A dez mil metros de altitude, cruzava o segundo destacamento de Rhodan, e cinco mil
metros acima deste o terceiro. O rugido dos inúmeros motores de impulsos, o uivo provocado
pelo deslocamento das massas de ar e as ondas de choque enervantes, produzidas pela
ultrapassagem da barreira do som, deviam levar os habitantes de Lepso a acreditarem que o
inferno estava desabando sobre eles.
A Ironduke balançou-se ligeiramente sobre o anel das colunas de apoio telescópicas e
finalmente imobilizou-se sobre o sólido pavimento de plástico do espaçoporto. A tela de visão
global mostrou um verdadeiro oceano de espaçonaves dos mais diversos tipos. Quase não se
viu nenhum veículo dos superpesados, mas em compensação havia grande número de naves
cilíndricas dos saltadores, naves-hospital dos médicos galácticos e vários outros modelos de
alguns dos povos da Galáxia.
Todas as naves, com exceção das dos aras, estavam armadas. No entanto, nenhuma delas se
dispôs a entrar em combate com os super couraçados de Rhodan. Sabiam avaliar o perigo que
circulava a dez e quinze mil metros acima de suas cabeças.
Mas um dos mercadores galácticos devia ter perdido o juízo. Um minuto após o pouso da
Ironduke, uma nave cilíndrica de apenas cem metros de comprimento procurou escapar.
Disparou para o céu azul que nem uma bala. Mas no momento da decolagem, os destroieres
pertencentes ao primeiro anel de bloqueio aproximaram-se velozmente. O comandante
saltador da pequena espaçonave abriu fogo com radiações térmicas e de impulsos. Atingiu
dois destroieres.
A essa hora, a nave cilíndrica já estava cercada por dezesseis destroieres. Alguns destes
abriram fogo contra seus propulsores, enquanto outros levantaram uma grade de radiações
em torno dele. Subitamente, parte do mecanismo propulsor desfez-se numa chama ofuscante.
No mesmo instante, a velocidade da nave reduziu-se, esta descreveu uma curva
excessivamente fechada e, desgovernada, tentou realizar um pouso de emergência.
88
Na grande eclusa da Ironduke, o oficial que comandava os robôs de guerra enviou ao local
duas dezenas de máquinas. Estes receberam ordem de cercar a nave fugitiva, que realizara o
pouso de emergência e não permitirem que nenhum dos seus ocupantes saísse de bordo.
A Ironduke recebeu o chamado da última nave. Todas as formações pertencentes ao
primeiro destacamento haviam pousado em Lepso, e os robôs já ocupavam os pontos mais
importantes desse mundo.
Para Perry Rhodan, isso representava um sinal de que deveria entrar pessoalmente em
contato com o governo de Lepso.
Sua mensagem de rádio não obteve resposta. Um novo chamado também não provocou a
menor reação. Em compensação, todas as emissoras do planeta enviavam pedidos de socorro
para o espaço. Designaram a Frota Solar como um grupo de naves piratas, e os terranos foram
apontados como bandidos.
Além dos pedidos de socorro, a nave de Rhodan captava um volume cada vez maior de
notícias, vindas de todos os pontos do grande império. Todos os superpesados anunciaram
sua chegada. As gigantescas frotas dos saltadores estavam a caminho do sistema de Firing.
Rebeldes ekhônidas prometeram auxílio. Houve ameaças indisfarçadas dirigidas a Árcon. O
Imperador Gonozal VIII teve de conformar-se em ser chamado de lacaio de Rhodan.
O rosto marcante de Perry Rhodan não demonstrava a menor exaltação. Em seus olhos
cinzentos não se via qualquer brilho estranho. Virou a cabeça e, dirigindo-se a Bell, disse em
tom tranqüilo:
— Acho que está na hora de darmos uma olhada por aqui. Quase chego a ter a impressão de
que essa droga maldita é fabricada neste planeta. É a única explicação, que consigo encontrar,
para os protestos provocados pela ocupação do mesmo.
Não aguardou a opinião de Bell. Fitou John Marshall, que se mantinha de pé, na parte dos
fundos da sala de comando, e conversava em voz baixa com Fellmer Lloyd. Dirigiu-se a ele por
via telepática:
— John, mande entrar em ação o rastreador individual dos swoons. Leve os melhores
telepatas. Aconteça o que acontecer nestas próximas horas, o senhor e seu grupo não deverão
preocupar-se apenas com a busca...
— OK, chefe — respondeu Marshall por via telepática. — Faço votos de que o encontremos.
— Também faço votos — foi o desejo que Rhodan transmitiu ao chefe dos mutantes, mas
este desejo não o deixou feliz.
Dirigiu-se a Claudrin, o epsalense.
— Vamos decolar, major. Faça a Ironduke pousar na grande praça fronteira à sede do
governo. Tenho que provar a essa gente de Lepso que desejo ser recebido.
Claudrin inclinou o corpo em direção ao microfone do sistema de intercomunicação e
informou Brazo Alkher, oficial de direção de tiro.
89
4
O Dr. Edmond Hugher tomou conhecimento dos acontecimentos mais recentes, que
provocavam medo e pânico em muitas cidades do planeta Lepso. Era pacato por natureza e
não havia nada que o exasperasse. Por isso aguardou os acontecimentos, continuando a
dedicar-se às pesquisas no laboratório da área do templo.
Dera apenas uma ordem. Esta tinha ligação com o aparecimento da Frota Solar nos céus de
Lepso. Mandara transferir temporariamente os serviços de engarrafamento do liquitivo para
o setor TT-1.
O setor TT-1 ficava na grande cadeia de montanhas nuas que dividia o deserto.
Uma galeria de mais de dez quilômetros de extensão levava a um conjunto de cavernas
naturais, nas quais os antis haviam despendido uma soma considerável, a fim de transformá-
las num dos mais modernos centros de fabricação de produtos medicinais da Galáxia.
Com exceção de uma pequena equipe de técnicos, que supervisionava os autômatos
positrônicos e os robôs, não havia nessa unidade de fabricação nenhum ser humano, nem
mesmo antis ou aras.
Há mais de um decênio o astromédico Dr. Nearman era um dos membros da equipe técnica,
formada por oito pessoas.
Havia trinta e oito anos que os agentes do Serviço de Segurança Solar quiseram prender o
Dr. Nearman e fazer com que este nunca mais recuperasse a liberdade. Mas o espertalhão
desaparecera e jamais voltou a ser encontrado na área submetida à soberania do Império
Solar.
A odisseia que enfrentara em vários pontos do grande império não fizera bem ao Dr.
Nearman. Seu caráter sempre fora instável, acabou resvalando de vez para o ilícito, e teve
muito trabalho para escapar aos tribunais arcônidas. Naquela época, isto é, há pouco mais de
dez anos, alguns sacerdotes do culto de Baalol entraram em contato com ele. Os “feiticeiros” o
surpreenderam por estarem muito bem informados sobre os atos reprováveis cometidos por
ele, no curso dos últimos vinte e oito anos. Entretanto Nearman os surpreendeu por mostrar-
se imediatamente disposto a aceitar a proposta de supervisionar, com mais algumas pessoas
inescrupulosas, a fase final do processo de fabricação do entorpecente. Já cometera atos muito
piores.
Seu engajamento caiu como uma luva nos planos dos cultores de Baalol. Ele possuía
excelentes conhecimentos na área médica, era uma sumidade em matéria de Biologia e não
tinha o menor problema em calcular as posições galácticas.
Fazia algumas horas que Hugher informara o Dr. Nearman, pelo telefone direto, que o
último estágio da fabricação também seria transferido para TT-1. Ao mesmo tempo recebera
ordens de transferir todo o estoque de liquitivo puro para o grande tanque de plástico.
Edmond Hugher desligara sem qualquer comentário. Nearman cumpriu as ordens, viu o
conteúdo dos tanques pequenos passar para o recipiente grande e avisou o templo de que as
instruções haviam sido cumpridas.
Depois iniciou sua ronda.
Era um viciado, mas este fato não o preocupava. O que realmente o preocupava era que
Rhodan pousara em Lepso com toda sua frota, prendera os membros do governo, e pretendia
iniciar uma ação policial que visava à prisão de criminosos fugidos do Império Solar. Ele,
Nearman, corria perigo de ser uma das pessoas presas durante a operação.
Ao lembrar-se mais uma vez disso, um sorriso de deboche desenhou-se em sua face.
Confiava nos antis. Tinha certeza de que estes saberiam enfrentar Rhodan, e isso significava
que, dificilmente ele, Nearman, seria preso pelos agentes do Serviço de Segurança Solar. Se
não fosse assim, Hugher o teria prevenido, pois afinal de contas ele também corria perigo. Há
90
alguns anos ouvira boatos a este respeito, mas quando indagara Hugher sobre isso, só
encontrou uma reação de espanto misturada com incompreensão.
— Não, Nearman — dissera o cientista na oportunidade. — Posso garantir que não sou
terrano. Nasci em outro planeta, mas ninguém sabe dizer que planeta é este. Bem, desde o dia
em que saí de Zalit nunca mais me interessei por isso. Meus pais e irmãos transformaram-se
em estranhos. Para que realizar investigações?
“Este Hugher é mesmo um esquisitão cósmico”, pensou Nearman.
Pegou a garrafa de liquitivo, abriu o fecho lacrado e encostou aos lábios o recipiente de
plástico. Sorveu gostosamente dois centímetros cúbicos de licor. Depois disso passou a mão
pelos lábios e jogou fora a garrafa.
Houve uma modificação instantânea em sua pessoa. Seu andar, que até então fora
arrastado, passou a ser vigoroso. Seu rosto entesou-se, e as preocupações que até então o
martirizavam haviam desaparecido. Pôs-se a assobiar uma melodia e sentiu-se como se ainda
estivesse nos tempos mais felizes da juventude.
Um drogado assumia o controle do setor TT-1!
***
A praça, que ficava defronte à sede do governo, transformara-se num local de devastação.
Máquinas terranas de guerra, todas destruídas, estavam espalhadas pelo local, e a mesma
coisa acontecia com robôs fabricados pelos mercadores e pelos superpesados.
Pouco depois do pouso da Ironduke, uma espaçonave de oitocentos metros de diâmetro, o
governo, que se recolhera à zona diplomática, resolvera capitular. Gal-Tam, o primeiro-
ministro, voltou a protestar contra a ocupação realizada pela Frota Solar, pois contrariava as
normas vigentes.
O lepsonense encolheu-se sob os efeitos do olhar frio de Rhodan, que gritou para ele num
arcônida impecável:
— O senhor sabe perfeitamente por que viemos.
O mini comunicador de Rhodan emitiu o sinal de alarma. O administrador trazia o aparelho
no braço esquerdo. Num movimento rápido ajustou-lhe o ângulo. A voz saída do pequeno, mas
potente alto-falante, disse:
— Sir, lutas pesadíssimas estão sendo travadas antes e depois do círculo de naves
robotizadas. Mais de três mil superpesados e cerca de quatro mil naves cilíndricas procuram
romper o bloqueio. A frota robotizada sofreu perdas assustadoras. Atlan prometeu reforços,
mas estes só poderão chegar dentro de seis horas. Sir, o terceiro destacamento de nossa frota
deve intervir no combate?
A mensagem estava sendo transmitida pelo General Conrad Deringhouse, que se
encontrava a bordo da Ironduke. Contrariando o costume, ele não comandava sua nave, a
Drusus.
A hesitação de Rhodan não teve sua origem em qualquer tipo de insegurança. Passou um
olhar pelos representantes do governo de Lepso que, juntamente com seus antecessores,
haviam transformado o planeta num covil de criminosos e piratas e, o que era mais
assustador, dele fizeram o centro de uma organização de tráfico de entorpecentes de âmbito
galáctico.
Passou a fitar o telepata Marshall. Irradiou seus pensamentos em direção ao mesmo.
— Marshall, vou dirigir-lhe a palavra em inglês. Verifique se algum dos lepsonenses entende
esta língua.
Falando para dentro do microfone do mini comunicador, disse:
— Espere.
Depois disso dirigiu-se a Marshall em inglês, formulando a pergunta-teste:
— O senhor não se esqueceu de ordenar o ataque ao objetivo quatro?
91
Marshall fingiu ficar confuso e espantado. Insinuou-se nos pensamentos dos membros do
governo de Lepso. Não demorou em informar Rhodan:
— Quatro deles entendem o inglês, sir.
Rhodan tomou conhecimento desse fato. Já preparara a solução desse tipo de problema.
Tanto Deringhouse como ele eram norte-americanos. Ainda dominavam a gíria de seu país.
Falando um “dialeto” terrível, Rhodan ordenou ao general que só se a situação assumisse
proporções catastróficas, poderia intervir com as unidades da frota terrana, na luta entre as
naves robotizadas de Árcon e os superpesados e saltadores.
— Sir — transmitiu Marshall por via mental. — O senhor fala uma gíria horrível. Não
entendi uma única palavra.
Depois disso, Rhodan pretendia ocupar-se novamente do primeiro-ministro, mas Marshall
voltou a transmitir uma mensagem telepática:
— Sir, tentam dopar-nos juntamente com esse grupo. Toda essa gente age exclusivamente
segundo as ordens dos antis. A sede destes fica no escritório do clã dos Guvtgol, na esquina das
ruas trinta e três e cento e sete.
Julian Tifflor, que iniciara sua carreira junto a Rhodan, servindo de chamariz cósmico,
sentiu que o chefe o fitava intensamente. Aproximou-se.
— Tiff — cochichou Rhodan ao ouvido do coronel. — Prenda esta gente e providencie para
que os antis, que se encontram no escritório do clã saltador dos Guvtgol, não possam escapar.
Depois de informá-lo onde os feiticeiros poderiam ser encontrados, recomendou:
— Não se esqueça das energias mentais desses tipos. Aja com uma tremenda cautela.
Fez sinal aos companheiros para que se retirassem.
O Primeiro-Ministro Gal-Tam imaginou o que esperava a ele e aos outros membros do
governo.
— Rhodan — gritou Gal-Tam, às costas do administrador. — Rhodan, este planeta será
transformado num inferno para vocês, caso se atreverem a prender-nos.
Perry Rhodan nem sequer virou a cabeça. Acompanhado de trinta robôs de guerra
superpesados, saiu do palácio ministerial e retornou sem qualquer incidente à Ironduke.
O oficial de plantão junto à eclusa fez continência.
— Avise Deringhouse e Claudrin de que estou novamente a bordo. Poderei ser encontrado
no camarote de Marshall. Só devem perturbar-me em caso de extrema necessidade.
***
93
O sistema de intercomunicação de bordo transmitiu o sinal de alarma. Os contornos
projetados na tela estabilizaram-se. Nela surgiu o rosto do Coronel Myler, comandante do
terceiro grupo de naves da Frota Terrana. Tal grupo circulava ininterruptamente em torno de
Lepso, a quinze mil metros de altura.
— Sir — principiou o coronel, visivelmente nervoso. — Cinqüenta por cento da frota
robotizada, que se encontra nos limites do sistema de Firing, já foi destruído. Três grupos de
superpesados, formados por cerca de seiscentas espaçonaves, romperam o bloqueio e
chegarão a Lepso dentro de trinta minutos.
— Poderão chegar a Lepso dentro de trinta minutos, coronel — retificou Rhodan. — De
qualquer maneira, o terceiro círculo, comandado pelo senhor, não intervirá nisso. Não se
preocupe. Continue a manter o bloqueio. Fim.
Para o Coronel Myler, isso representava uma ordem de desligar. Mas a ligação de
intercomunicação no interior da Ironduke foi mantida.
— É Deringhouse? — perguntou Rhodan para dentro do microfone.
A cabeça marcante de Conrad Deringhouse apareceu na tela.
Não teve tempo nem de se apresentar.
— Deringhouse, use todos os supercouraçados, com exceção da Drusus, para enfrentar os
superpesados que romperam o bloqueio. Fim.
Desligou e, no mesmo instante, parecia esquecer-se de que, a cada minuto que passava, a
situação da frota terrana em Lepso se tornava mais inquietante.
Voltou a dirigir-se a Fellmer Lloyd. Repetiu a mesma pergunta:
— Tem certeza absoluta de que Thomas Cardif ainda se encontra submetido ao mesmo
bloqueio hipnótico que lhe foi aplicado há cinqüenta e oito anos, em Árcon?
Mais uma vez, a resposta do localizador, proferida em voz firme, foi imediata:
— Sir, não tenho a menor dúvida.
Perry Rhodan passou as mãos pelos olhos. Balançou a cabeça e falou:
— Não consigo acreditar nisso, Lloyd, mas devo acreditar. Preciso...
Não disse o que mais precisava, e nenhum telepata, nem mesmo Gucky, atreveu-se a
insinuar-se, nesse instante, nos pensamentos do chefe.
— Ouçam, meus amigos — disse Rhodan, fitando seus mutantes um por um. — Ninguém
pôde saber onde se encontra Thomas Cardif? O rastreador individual deve facilitar a
determinação da direção e...
— O senhor parte de um falso pressuposto, sir — interrompeu Marshall. — O rastreador
individual é apenas um amplificador de potência. Traz para junto de nós os impulsos mentais,
mas não indica a direção da qual estes provêm. A antena esférica de cristal não tem
capacidade para isso. A determinação só pode ser realizada por nós, desde que disponhamos
de um tempo mínimo. Infelizmente, no momento, não dispomos desse tempo...
— Pois eu sei — piou o rato-castor, para surpresa de todos. — Neste momento tomei
consciência disso. A direção do impulso cerebral é a seguinte: nor-noroeste, isso naturalmente
se meu senso de orientação não me tiver pregado uma peça.
Rhodan chamou a sala de comando, a fim de saber o que ficava na direção nor-noroeste.
O computador positrônico da Ironduke forneceu a resposta. Depois de alguns segundos, a
voz metálica disse:
— Tu-Ki, uma cidade de trinta mil habitantes; o lago Frugid, com uma área de duzentos e
dez quilômetros quadrados. Depois vem a grande cadeia de montanhas de Glogu, e a seguir o
extenso deserto. Após isso temos as montanhas de Cif, que dividem o deserto em dois. A
quinhentos e dezoito quilômetros dali, começa a selva de Morw...
Rhodan teve a impressão de que as informações que acabara de ouvir já bastavam. Quando
o computador positrônico da nave mencionou o templo de Baalol, notou-se um ligeiro
estremecimento em todas as pessoas que se encontravam na sala de comando.
— Esses bandidos! — piou Gucky em tom ameaçador.
94
A tela do sistema de intercomunicação de bordo voltou a iluminar-se. O rosto de Julian
Tifflor apareceu.
No momento em que viu esse rosto, Rhodan já sabia qual era a informação que lhe seria
fornecida por Tifflor.
— Sir, mais de oitenta antis escaparam. Não conseguimos prender um único anti-mutante
no escritório dos saltadores. Fugiram na direção noroeste, utilizando quatro planadores. Três
tiros de radiações da Ghandi atingiram o alvo em cheio, mas não tiveram força para romper os
campos defensivos.
— Tiff — disse Rhodan para consolá-lo. — Apesar de tudo, sua ação foi coroada de êxito.
Esse êxito reside na informação de que os antis fugiram na direção noroeste. Foi o maior favor
que os antis poderiam nos ter feito.
Ao desligar, virou-se para seus telepatas.
— Quero que façam mais uma tentativa conjunta de localizar a frequência cerebral de
Thomas Cardif. Usem o rastreador individual.
Perry Rhodan nem desconfiava quais seriam as consequências dessa ordem...
***
96
— Mais tarde, Hugher; deixemos isso para mais tarde. Está correndo um grande perigo. Eu
sei, mas o senhor não sabe. Mas está ciente de que os impulsos mentais de qualquer criatura
podem ser violentados por meio de forças parapsicológicas. Deseja que a espada chamejante,
que o senhor colocou nas mãos de Baalol, seja roubada por Rhodan, o terrano?
Enquanto Hugher caminhava pelo espaçoso corredor, acompanhado por oito antis, fez um
gesto afirmativo. Um sorriso contemplativo surgiu em seu rosto.
— Então Rhodan quer arrancar-me o segredo do licor? Que coisa! De repente fiquei
interessado em descobrir se Baalol é mais poderoso que esse terrano agressivo. Por isso estou
perfeitamente disposto a fazer qualquer coisa que possa impedir Rhodan de apoderar-se do
que eu sei.
O Dr. Edmond Hugher nem desconfiou do alívio que suas palavras provocaram nos antis
que o acompanhavam.
A terrível suspeita de Tu-Poé transformou-se em certeza. Rogou pragas contra os arcônidas
de Árcon, que há cinqüenta e oito anos haviam espalhado pelo grande império a notícia de que
o filho de Perry Rhodan sofrera um acidente que afetara gravemente seu cérebro, motivo por
que seria duvidoso que jamais viesse a recuperar a plenitude de suas faculdades mentais.
Acreditaram nessa informação, e julgaram que esse fato tivesse causado as espantosas
modificações que se verificaram com Hugher, enquanto este convalescia de sua doença.
Todos acreditaram nisso, inclusive os antis.
Um deles, porém, devia ter conhecido a verdade, ou ao menos desconfiado da mesma. Era
Loó-o.
Por que motivo Loó-o não teria transmitido aos outros aquilo que sabia? Será que desejava
que o filho de Rhodan devesse concluir seus estudos de Medicina em Aralon, para somente
depois disso tomar conhecimento de quem era seu pai? Será que a morte inesperada de Loó-o
representava uma interferência do destino, que conduzia o plano há tanto tempo preparado
para um objetivo totalmente diverso?
Tu-Poé sentiu uma exaltação selvagem ao entrar, juntamente com seus irmãos e com
Hugher, na sala misteriosa da pirâmide que servia de templo.
Quando pediram a Edmond Hugher que tomasse lugar na poltrona destinada às
intervenções psíquicas, os antis demonstraram uma pressa que nunca antes haviam revelado.
O cientista sentiu-se cada vez mais assustado com a preocupação dos antis. Sentia que, atrás
de seus atos, havia algo que ainda não lhe tinham revelado. Mas toda desconfiança, que nasceu
em seu interior, foi afastada em virtude da gratidão que sentia pelo culto, pois os adeptos de
Baalol o haviam ajudado a abandonar o planeta Zalit e, com isso, o ambiente desgastado dos
arcônidas decadentes.
Deixou que o atassem à poltrona. Dois contatos metálicos redondos e flexíveis foram
colocados em suas têmporas, enquanto um terceiro polo se prendia no peito, sobre o coração.
Edmond segurava dois reluzentes objetos metálicos, de formato cônico. De repente, suas mãos
foram cingidas por travas que lhe impediam qualquer movimento.
Um conversor começou a zumbir às suas costas. Além de Tu-Poé havia mais dois antis junto
à mesa de comando. Tu-Poé regulou o aparelho. O zumbido tornou-se mais forte. O Dr.
Edmond Hugher acompanhava todos os movimentos com um sorriso. Não percebeu qualquer
modificação em sua mente. Aos poucos os contatos metálicos colocados nas têmporas
passaram a adaptar-se à temperatura de seu corpo.
De repente, o mundo desmanchou-se à sua frente.
A última coisa que percebeu foi um raio fulgurante, que seus pensamentos
compreenderam, mas seus olhos não viram.
Tu-Poé parecia estarrecido à frente do quadro de comando. Mantinha os olhos presos num
diagrama. A grande curva, que se apresentava com uma extraordinária nitidez, formava um
estranho ângulo na parte inferior.
— Está bloqueado! — exclamou Tu-Poé, em tom exaltado.
97
O rosto do fanático adquiriu uma expressão diabólica.
— Sua personalidade foi bloqueada. Não sabe que é filho de Rhodan. Chamem o Senhor!
A última frase foi proferida num grito, enquanto o zumbido do conversor se tornava cada
vez mais forte e três aparelhos blindados emitiam estalos, ruídos estes que não conseguiram
superar o uivo repentino de outro aparelho...
Os passos do anti, que apressou-se em ir chamar o velho, submergiram em meio a esse
ruído.
A atitude rígida de Tu-Poé não durou muito.
Revelando pânico, realizou exames de controle. Tal qual um comandante de espaçonave,
cujo veículo estelar se achasse envolvido numa batalha, transmitiu uma ordem após a outra.
Novos aparelhos foram ligados. Um som retumbante começou a encher o recinto.
O Dr. Edmond Hugher estava inconsciente na sua poltrona.
Finalmente chegou o velho, o chefe supremo dos antis do templo de Baalol, construído em
Lepso. Tu-Poé só compreendeu quem se encontrava a seu lado quando notou que alguém
procurava afastá-lo.
— Faça o favor de não me perturbar, senhor — pediu.
O velho obedeceu. Contentou-se em olhar por cima do ombro de Tu-Poé. Seu
comportamento constituía prova evidente da importância que Edmond Hugher assumia para
os antis.
O identificador de bloqueios foi posto a funcionar. Tu-Poé em pessoa manipulou os
controles. Os impulsos desse aparelho passaram a tatear o cérebro de Hugher, a fim de
localizar o bloqueio hipnótico e verificar suas influências sobre as áreas adjacentes.
O cientista, que continuava inconsciente em sua poltrona, não tinha a menor idéia de que
estava passando pela hora mais perigosa de sua vida. Um único erro na manipulação dos
controles ou na interpretação dos resultados do identificador de bloqueios faria com que, ao
despertar, estivesse reduzido a uma ruína espiritual.
O rosto fanático de Tu-Poé não via outra coisa, senão os ponteiros oscilantes dos
instrumentos, a rotação da escala colorida, que retratava os resultados das medições, e os dois
diagramas comparativos. O diagrama da esquerda indicava a força do bloqueio a que Hugher
estava submetido, enquanto o da direita indicava, em forma de curva, o volume de energia que
se tornaria necessário para romper esse bloqueio.
Na extremidade inferior do pequeno quadro de comando, via-se o instrumento de mira.
Tratava-se de uma espécie de dispositivo de frequência ótica, que permitia o ajustamento dos
raios de ruptura com a precisão de uma fração de milímetro, fazendo com que os tais raios
atingissem a área de bloqueio existente no cérebro de Hugher, mas não certos pontos vitais.
O tempo parecia correr vertiginosamente, embora, na verdade, só se tivessem passado
alguns minutos. Tu-Poé voltou a verificar todas as regulagens do identificador de bloqueio.
Momentos depois respirou profundamente e acionou a chave principal.
Às suas costas, um homem soltou um berro. Aquele grito não tinha nada de humano. Tu-
Poé e os outros antis viraram-se imediatamente, tomados de pânico.
Os olhos de mestiço do Dr. Edmond Hugher faiscavam.
Num gesto instintivo, Tu-Poé recolocou a chave principal na posição zero. Nem se deu
conta disso. Resolveu certificar-se. Virou o rosto e sentiu-se aliviado ao notar que o
identificador de bloqueios já não estava funcionando.
— Soltem-me! — disse uma voz enérgica de comando, habituada a ver suas ordens
cumpridas, fazendo-se ouvir por toda a sala.
Os antis fitaram o cientista, perplexos.
O que era feito do sorriso sonhador de Edmond Hugher? E de sua modéstia? Onde estava
aquela calma inabalável?
— Caramba! Vão soltar-me ou não? — gritou.
Os antis mantiveram-se imóveis.
98
A pessoa sentada na poltrona-psíquica era um estranho. Quem fora amarrado a ela havia
sido o Dr. Edmond Hugher. E agora um homem, cujo rosto se modificava a cada segundo que
passava, sacudia furiosamente os grampos que o prendiam à poltrona. A expressão macia e
indiferente de seu rosto foi desaparecendo, sendo substituída por traços que revelavam uma
vontade inflexível.
— Soltem-me!
A voz tilintava como gelo. Seus olhos cintilavam. A expressão de seu olhar possuía certa
força hipnótica.
— Tu-Poé, será que tenho que ordenar mais uma vez que me soltem? — gritou Hugher.
Tu-Poé aproximou-se da poltrona. Acionou a chave. Os grampos abriram-se, e Hugher
levantou-se sem dizer uma palavra.
A placa metálica, que se encontrava na altura de sua cabeça, refletiu seu rosto. Hugher
estremeceu como se tivesse levado uma pancada. Pôs as mãos no rosto e apalpou-o com as
pontas dos dedos.
— Será que sou eu? O que você fez de mim, Rhodan? Primeiro matou minha mãe, e depois
roubou cinqüenta e oito anos de minha vida.
Virou-se lentamente e fitou os antis que o cercavam, perplexos. Citou o nome de cada um. O
último a quem se dirigiu foi Tu-Poé.
— Estou lembrado de tudo, Tu-Poé. Ainda me recordo do dia em que você apareceu pela
primeira vez em Aralon e me fez uma visita. Sei tudo que aconteceu nos últimos cinqüenta e
oito anos e não me esqueci do que aconteceu antes e de quem eu sou.
“Meu nome é Thomas Cardif. Minha mãe foi Thora, uma princesa arcônida. E Rhodan, esse
terrano sem escrúpulos, foi quem me gerou e quem assassinou minha mãe. Basta. Vocês já
sabem tudo a meu respeito.”
Voltou a fitar a placa reluzente, e, mais uma vez, Cardif viu-se refletido. Sentiu-se um
estranho.
— Você me transformou numa figura ridícula, Rhodan. Ainda terá a paga por isso.
Enquanto falava, fitou seu corpo.
— Meu corpo não sofreu grandes modificações.
— Mas seu rosto, Hugher, alterou-se bastante, depois que o bloqueio foi rompido! —
exclamou Tu-Poé, sentindo-se possuído de uma exaltação fanática.
— Meu nome é Cardif, Tu-Poé — retificou o filho de Rhodan, em tom áspero. — E agora?
Vamos esperar até que Rhodan e sua frota apareçam por aqui e nos obriguem a pôr as mãos
para o alto?
Os antis tiveram dificuldades em adaptar-se dentro de poucos minutos à nova
personalidade de Edmond Hugher, ou melhor, de Thomas Cardif. E acharam ainda mais difícil
acreditar que não se tivesse importado com nada do que lhe acontecera nos últimos cinqüenta
e oito anos.
O velho quis ter certeza sobre certo ponto.
— Cardif, o senhor sabe o que criou por gratidão pelo Baalol?
— Por gratidão? Ah, sim, é verdade, senhor — refletiu ligeiramente e entesou o corpo,
mostrando pela primeira vez seu porte altivo. — Mas agora exijo que a espada flamejante me
seja devolvida, senhor. Com o auxílio de Baalol, quero brandi-la contra o Império Solar, de tal
forma que o mesmo fique reduzido a um bando de furiosos viciados. Os mundos coloniais
terranos foram inundados de liquitivo, enquanto Rhodan retirou suas espaçonaves de todos
os lugares e fez sua frota pousar em nosso planeta?
Uma vez libertado seu espírito da personalidade artificial que lhe foi imposta, a herança do
pai voltou a manifestar-se. Quase chegara a equivaler a Rhodan em termos de estratégia e
planejamento. Por mais de uma vez colocara o Império Solar em crises gravíssimas, e, nestas
oportunidades, quase sempre conseguiu anular, por meio de manobras hábeis, as medidas
defensivas adotadas por Rhodan.
99
O velho fitou-o com uma expressão de perplexidade.
Um sorriso de desprezo surgiu no rosto de Cardif.
— Quer dizer que a resposta é não? Não aproveitaram a maior chance que já tiveram? Mas
ainda está em tempo de aproveitá-la. Transmitam uma ordem para que os mundos coloniais
do Império Solar sejam inundados de licor liquitivo. Dêem a droga de presente aos terranos
que anseiam pela juventude eterna. Será que vocês ainda não compreenderam que estamos
prestes a perder uma rara oportunidade?
Havia muita persuasão em sua voz, mas seus gestos eram comedidos. Depois de despertar
de uma hipnose parcial que durara cinqüenta e oito anos, Thomas Cardif voltara a
transformar-se no inimigo implacável de seu pai.
Odiava-o mais que nunca, votava-lhe um desprezo que jamais sentira. No momento em que
acordou, jurara que faria Rhodan pagar pelos quase seis decênios de vida que lhe foram
roubados.
Tu-Poé estremeceu ao ver que Cardif se colocou à sua frente.
— Tu-Poé, por que fui colocado na poltrona-psíquica?
A expressão coercitiva dos olhos avermelhados de Cardif obrigou o anti a falar.
O filho de Rhodan não deu mostras da surpresa de que se sentia possuído. Só depois que o
anti concluiu sua fala, manifestou-se.
— Quer dizer que ele ainda dispõe do Exército de Mutantes? Tu-Poé, a frequência dos meus
impulsos mentais foi ou não foi alterada?
O sacerdote não pôde deixar de confessar que ignorava isso.
Thomas Cardif deu três passos largos e voltou a acomodar-se na poltrona.
— Realize o controle, Tu-Poé!
Dois sacerdotes aproximaram-se apressadamente e voltaram a colocar os contatos em
Cardif. Subitamente tinha-se a impressão de que naquela sala, não muito grande, havia apenas
uma pessoa capaz de dar ordens: Thomas Cardif.
Dali a alguns minutos constatou-se que sua frequência cerebral sofrera uma minúscula
alteração em virtude do afastamento forçado do bloqueio hipnótico.
— Obrigado — disse ao levantar-se da poltrona.
Um sorriso de triunfo surgiu em seu rosto. Os telepatas pertencentes ao Exército de
Mutantes de Rhodan já não estariam em condições de localizá-lo. Bastava uma alteração de
frequência correspondente a uma vibração por período, para fazer com que seus impulsos
mentais submergissem no oceano de bilhões de irradiações.
— Rhodan! — pronunciou este nome com um sorriso, pois lembrava-se da droga
rejuvenescedora biológica, do seu liquitivo.
Mas seu triunfo fora de curta duração.
Os elementos da Frota Solar ainda não tiveram tempo de ocupar todas as emissoras de
Lepso. Uma delas transmitiu a notícia de que as unidades dos superpesados, que haviam
rompido o bloqueio e se dirigiam a Lepso, foram obrigadas a fugir dos supercouraçados de
Rhodan.
Outra notícia dizia que uma nave esférica do Frota Solar decolara da capital, em direção ao
templo de Baalol.
Quando o sistema de intercomunicação do templo transmitiu a notícia de que os antis que
haviam fugido do escritório dos saltadores, acabavam de pousar junto ao templo, a voz
exaltada do locutor lepsonense ainda não havia silenciado. Vinham em quatro planadores-
relâmpagos.
O velho ordenou a fuga.
— Um momento! — ordenou Cardif, em tom enérgico. Não lhe restava nada daquele sorriso
sonhador que exibira quase durante seis decênios. — Não temos pressa. Será que ainda não
conhecem Rhodan? Não estudaram sua personalidade? Antes de dar ordem para abrir fogo
contra o templo, ele nos dará um ultimato. Mesmo que esse aviso só nos conceda um prazo de
100
trinta minutos, este prazo será suficiente para destruir tudo que há de importante por aqui e
preparar nossa fuga.
Os antis fitaram-no com uma expressão de surpresa. Sua mente ainda não se adaptara ao
fato de que Edmond Hugher, sempre sorridente e sonhador, se transformara no estrategista
Thomas Cardif, que era um homem genial como seu pai.
101
5
A Ironduke pairava menos de dez metros acima da praça situada no bairro administrativo.
Seus motores a jato uivaram. A nave com seus oitocentos metros de diâmetro foi acelerando
cada vez mais, atingiu a altitude de três mil metros e tomou o curso nor-noroeste. Dirigia-se
ao templo de Baalol, no deserto pedregoso.
A segunda e última tentativa de localizar Thomas Cardif por meio do rastreador individual
fracassara. Nem mesmo Perry Rhodan desconfiava das consequências que resultariam dessa
segunda tentativa, e da perda de tempo causada pela mesma.
Voltou à sala de comando da nave e acomodou-se ao lado de Bell. O hiper-receptor acabava
de transmitir a notícia de que a frota dos superpesados, formada por mais de seiscentas
naves, acabara de fugir.
Após isso, uma tranquilizadora mensagem robotizada chegou do círculo de bloqueio.
Contrariando as expectativas de
Rhodan, os reforços haviam vindo antes do tempo. Eram três mil, duzentos e dez
cruzadores pesados tripulados por robôs. Estes seriam capazes de rechaçar qualquer
atacante.
Rhodan notou o olhar preocupado de Bell.
— Nada — disse. — Só conseguimos estabelecer um contato ligeiro com Cardif. Os antis
devem ter percebido imediatamente, e por certo lançaram mão de suas energias mentais, a
fim de proteger os impulsos de Cardif.
— É só isso? — perguntou Reginald Bell, em tom enfático.
Rhodan disse que não.
— Fellmer Lloyd continua a afirmar que o bloqueio de Cardif continua forte como antes.
A Ironduke arrastava-se na direção nor-noroeste a uma velocidade pouco abaixo à do som.
A pequena altitude, a nave esférica de oitocentos metros de diâmetro não poderia desenvolver
velocidade maior, pois, do contrário, o deslocamento de ar provocado pelo seu volume
causaria danos gravíssimos na superfície de Lepso.
O Major Jefe Claudrin sabia como o chefe pensava a este respeito, e por isso nem pensava
em ultrapassar a velocidade do som, antes de alcançar o deserto.
Mais uma vez, a nave esférica sobrevoou um gigantesco porto espacial, cujo campo de
pouso estava repleto de veículos cósmicos de todos os tipos. Naquele momento, um número
inacreditável de espaçonaves estava preso em Lepso. Calculava-se que a quantidade total
oscilava entre quatro mil e quinhentas e cinco mil e quinhentas unidades. Esse fato tornava
patente a importância de que o planeta Lepso assumia como entreposto comercial galáctico, e
tornava compreensível, em parte, a exaltação que a operação desencadeada por Rhodan
provocara em muitos dos habitantes da Via Láctea.
Acontece que essa exaltação fora provocada deliberadamente. Isso resultava não só da
interpretação dos dados, realizada pelo computador positrônico, como também da fuga de
oitenta antis, que se encontravam no escritório de um clã dos saltadores.
Bell fitou o amigo, totalmente perplexo. Então Thomas Cardif ainda se acharia sob os efeitos
do bloqueio hipnótico que lhe fora aplicado em Árcon, a fim de evitar que continuasse a ser
um elemento perturbador da ordem na Galáxia?
— Perry — disse o gorducho, procurando falar baixo. — Se é assim, não compreendo como
foi que ele deixou o planeta Zalit. E, se é verdade que ainda está bloqueado, poderá ele ser
responsabilizado, plenamente, pela invenção do entorpecente?
Rhodan manteve-se calado. Não revelou a agitação que o revolvia. Estava com medo.
102
Pensou no que aconteceria se os antis descobrissem que Cardif estava bloqueado, e ainda
pensou nas possíveis consequências dessa descoberta, se os antis liberassem Cardif do
bloqueio hipnótico.
Nesse caso, depois de quase sessenta anos de calma enganadora, as coisas não seriam
piores que antes?
— Por que não responde, Perry? — insistiu Bell.
Sem querer, o vice administrador olhou para a grande tela de visão global da Ironduke e
notou que a nave sobrevoava uma cidade não muito grande, junto à qual se estendia um
imenso lago.
O nome da cidade era Tu-Ki, e os lepsonenses costumavam chamar o lago de Frugid. Tu-Ki
era o último núcleo populacional, depois vinha o templo de Baalol. Entre a cidade e o local de
culto dos antis só havia as montanhas de Glogu e uma parte do grande deserto.
— Bell, não posso responder. Quero formular uma pergunta. Admitamos que os antis
descubram o bloqueio hipnótico de Thomas e o removam. O que pensará meu filho a meu
respeito, se depois de cinqüenta e oito anos subitamente voltar a ser o homem que foi desde o
tempo de cadete? Não verá nos meus atos uma prova de que realmente causei a morte de
Thora?
Enquanto Rhodan falava, Bell levantou-se de um salto e colocou-se atrás do Major Claudrin.
— Jefe, por que não voa mais depressa? Será que temos de continuar a arrastar-nos? —
perguntou em tom áspero.
O epsalense apontou com a maior tranquilidade para a tela, na qual se via o lago Frugid e
alguns navios que singravam o mesmo.
— Quer que faça virar esses navios, mister Bell? — perguntou Claudrin, com sua voz
potente.
A sala de rádio transmitiu uma notícia. O Coronel Myler, que chefiava o terceiro círculo de
naves, avisou que, apesar de todos os controles, três aparelhos espaciais dos saltadores
haviam conseguido decolar de Lepso.
— Quando nós as atacamos, uma das naves explodiu. As outras duas capitularam. Enviamos
comandos de robôs para tomarem conta das mesmas. A carga dessas naves consiste em
liquitivo. Os robôs foram programados para fazer pousar as naves cilíndricas no porto
espacial, entre nossas naves. Fim da transmissão.
Bell voltou a sentar-se ao lado de Rhodan. O amigo continuava imóvel em sua poltrona.
Seus olhos pareciam vagar pelo infinito.
— Você também não diz mais nada, Bell!
Foi só, e foi uma constatação. Reginald Bell não tinha o que dizer. Milhares de indagações
atropelavam-se em sua cabeça, e todas elas giravam em torno de Thomas Cardif. Também,
para ele, a indagação principal era a seguinte: O que pensará Thomas a respeito do pai,
quando despertar da hipnose depois de seis decênios?
Nem um nem outro desconfiava de que poucos minutos antes, Thomas Cardif já respondera
a esta indagação.
***
***
109
Depois disso não se ouviu mais nada. A Alexander, uma nave da classe Império, atingiu a
nave saltadora desgovernada com todas as peças de artilharia. Os impactos diretos deveriam
ter rompido qualquer campo energético. Acontece que não romperam coisa alguma.
Esfacelaram-se no campo defensivo incrivelmente resistente e absorvente da nave dos
mercadores e fizeram com que a nave deixasse de rodopiar e fosse impelida pelo espaço a
fora.
O rastreador estrutural da Ironduke registrou um hipersalto.
Não houve possibilidade de determinar o ponto de retorno ao Universo normal. Para
Rhodan e Bell, isso não representava nenhum segredo. Sabiam que as energias mentais dos
antis eram capazes de absorver um abalo estrutural.
***
O Dr. Nearman sobressaltou-se em meio ao seu estado de embriaguez. Fora despertado por
um ruído estranho, nunca antes ouvido em TT-1.
— Tolice! — disse para si mesmo e voltou a deitar de lado, para entregar-se à primeira
“fase vivificadora”, que costumava deleitá-lo sempre que bebia duas garrafinhas de licor no
espaço de uma hora. — Que droga maravilhosa!
Não pensou em Perry Rhodan, e nem se preocupou com o fato de que era o único membro
da pequena equipe técnica que ainda permanecia em TT-1. Os outros haviam fugido.
Também preparara sua fuga. Pretendia abandonar TT-1, depois de passados os primeiros
efeitos da droga, quando então teria forças suficientes para isso.
Continuou na sua modorra, mas voltou a sobressaltar-se com um tinido surdo. Ergueu-se
na cama e aguçou o ouvido.
Ouviu o passo pesado das colunas de robôs que marchavam.
O ruído vinha do corredor comprido.
“Rhodan”, pensou e levantou-se de um salto.
Havia sobre a mesa uma sacola de plástico com cinqüenta garrafas de liquitivo, além de
pílulas nutritivas, cigarros e dinheiro. Pegou tudo e saiu correndo do quarto, dirigindo-se à
saída de emergência. Tratava-se de um poço antigravitacional de um metro de diâmetro, que
depois de um percurso de oitocentos metros o deixaria sobre o platô, junto ao cume das
montanhas de Cif.
Teria de percorrer duzentos metros para chegar ao poço antigravitacional. Acreditava que
ainda não havia um perigo mais sério. Por enquanto não demonstrou muita pressa. Mas no
momento em que ouviu o passo metálico de um robô, sentiu-se dominado pelo pavor. Quando
alguém o chamou e mandou que parasse, nem se atreveu a olhar para trás. Reunindo as
energias do desespero, correu em direção ao poço salvador.
“Pronto”, pensou ao saltar para dentro do mesmo.
Naquele instante soltou um grito. Fora atingido na coxa por um tiro de radiações. O
segundo tiro errou o alvo.
A dor martirizava seu corpo. Teria gritado, se não estivesse sob os efeitos da droga. Graças
a esta, o Dr. Nearman conseguiu suportar a dor e, enquanto o campo antigravitacional o
levava para cima, examinou o ferimento produzido na parte acima do joelho. Era médico, e
por isso sabia que os ferimentos neste lugar facilmente podiam causar hemorragia.
Quase chegou a sentir náuseas, quando notou o que o robô lhe havia feito.
“Preciso ir ao planador-relâmpago”, pensou.
O elevador de emergência, construído exclusivamente para servir de caminho de fuga,
estava regulado para duas velocidades diferentes. Nos primeiros e nos últimos cinqüenta
metros, havia um campo antigravitacional que produzia a velocidade adotada em Árcon. Mas
no trecho intermediário, a pessoa que usasse o elevador antigravitacional poderia
desenvolver o quádruplo dessa velocidade.
110
Foi a sorte do Dr. Nearman.
Segurando a sacola de plástico na mão esquerda, arrastou-se até o planador-relâmpago.
Teve de reunir as últimas forças para entrar no mesmo. Abriu a gaveta-ambulatório e, ao ver o
amplo suprimento de medicamentos, soltou um gemido de alívio. Tratou imediatamente da
ferida.
Levou nada menos de uma hora para sentir-se em condições de pilotar o planador.
Mantendo-se junto às encostas rochosas de Cif, procurou escapar a Rhodan.
Perry encontrava-se próximo dos gigantescos tanques de TT-1, enquanto os robôs de
guerra revistavam todos os cantos do conjunto de cavernas, à procura de gente. A equipe
médica da Ironduke tentou a sorte com estranhos instrumentos de controle. Um grupo de
engenheiros procurou verificar a quantidade de licor existente no único tanque grande. Todos
os tanques por eles verificados estavam vazios.
Chegaram à conclusão de que havia de trinta a trinta e cinco mil litros.
— Só isso? — perguntou Rhodan, Realmente não há mais que isso?
Estava rodeado por cerca de cinqüenta homens, que aguardavam suas explicações.
— Isso mesmo — principiou. — Infelizmente o fato prova que Lepso não é o principal
centro do tráfico de drogas dos antis, mas apenas um local de distribuição. O estoque de
liquitivo que encontramos aqui não basta sequer para suprir as necessidades de um dia dos
mundos viciados do Império Solar.
— O quê? O Império Solar consome trinta mil litros por dia? Trinta mil litros dessa droga?
— perguntou o Major Claudrin, apavorado, e recuou um passo.
— É mais do que isso, major. Infelizmente é muito mais. Acho que o senhor já compreende
quanto lamento não ter achado aqui o centro capital dos traficantes.
Encontravam-se naquele lugar há duas horas, e nessas duas horas Rhodan nunca
mencionara o nome de seu filho, nem aludira ao mesmo. Falava exclusivamente nos antis.
Um médico da Ironduke aproximou-se dele.
— Sir — anunciou — conseguimos manipular os aparelhos dos antis. Examinamos o
liquitivo. Trata-se da mesma substância que é vendida na terra como droga rejuvenescedora.
— Não descobriu do que é feita essa substância diabólica, doutor? — perguntou Rhodan.
Cinqüenta pares de olhos ficaram presos ao médico, que balançou lentamente a cabeça.
— Não senhor.
— Verificou o conteúdo dos tanques menores, doutor? — indagou Rhodan.
— Sim senhor. Em todos eles havia apenas alguns litros de entorpecente. Os frascos eram
idênticos.
Com isso, Rhodan viu-se obrigado a sepultar mais uma esperança.
Seu mini comunicador chamou. Allan D. Mercant, que se encontrava na Ironduke, queria
falar com ele.
— O que houve? — perguntou Rhodan para dentro do pequeno microfone e fitou o rosto de
Mercant, que aparecia na minúscula tela.
O chefe da Segurança Solar aparentava nervosismo.
— Sir — disse com a voz rouca. — Acabamos de receber uma informação transmitida por
um dos nossos agentes de Aralon. Há mais de quarenta anos Edmond Hugher estudou na
maior universidade de Aralon, por conta dos antis, e conseguiu passar pelos exames finais.
Depois da saída de Cardif, os anais da Universidade nunca mais registraram um caso como o
dele. Sua especialidade era...
Rhodan interrompeu-o.
— Os milhões de viciados sabem disso melhor que nós, Mercant.
Separou-se do grupo e saiu andando. Gucky quis segui-lo, mas Reginald Bell segurou-o.
— Fique aqui, pequeno. Num momento como este Perry tem de ficar só.
— O que acontecerá agora? — perguntou Gucky, depois que Rhodan se havia afastado.
111
— O que pode acontecer? — respondeu Bell em tom deprimido, contrariando seu
temperamento. — Perdemos a pista de Thomas Cardif. Não existe a menor dúvida de que a
nave dos saltadores conseguiu escapar. Sou capaz de garantir que em Lepso não
encontraremos um único anti.
***
Thomas Cardif estava só, no camarote da pequena nave dos saltadores, enquanto o
pequeno veículo espacial cilíndrico procurava fixar seu curso entre dois sóis e voava, em
direção ao seu destino, a velocidade pouco inferior à da luz.
Sentado na poltrona, Cardif refletia intensamente.
— Glima — disse, e só depois disso se deu conta de que pensara em voz alta.
Balançou levemente a cabeça.
— Finalmente compreendo por que sempre gostei de resolver palavras cruzadas terranas.
Luta islandesa, cinco letras. O nome dessa luta é glima. E meu nome é Thomas Cardif. Thomas
Cardif.
Proferiu o nome em voz alta e procurou ouvir o som das palavras. Repetiu mais alto ainda:
— Thomas Cardif.
Depois cerrou os punhos e voltou a balançar lentamente a cabeça.
112
3. Na pista dos Antis
O plano de Mulvaney fora fruto de um profundo desespero. Sob o ponto de vista legal era
um plano considerável, já que previa a possibilidade de Mulvaney assassinar o velho Lansing.
Se estivesse em seu estado normal, Mulvaney nunca teria pensado em matar quem quer que
fosse. Acontece que se encontrava num estágio que tornava impossível qualquer forma de
raciocínio sensato. Estava em vias de ficar irremediavelmente louco.
De forma alguma, o motivo das intenções de Mulvaney consistia na pessoa do velho
Lansing; ninguém tinha motivo para odiá-lo. O objetivo visado por Mulvaney eram algumas
garrafinhas de plástico, que, segundo supunha, se encontravam em poder de sua vítima. Não
era de se imaginar que Lansing entregasse voluntariamente as garrafas que possuía. Depois
de o governo ter proibido a venda do licor, os estoques restantes foram guardados
cuidadosamente pelos possuidores. Até que a última garrafa de liquitivo tivesse sido
consumida pelos viciados, era apenas uma questão de tempo.
Henry Mulvaney não pensava nisso. Nem se lembrava de que mais de cinqüenta milhões
de terranos estavam viciados, e dariam tudo para conseguir apossar-se de uma garrafinha do
licor.
As mãos trêmulas de Mulvaney seguraram a coluna que ladeava a porta da casa de
Lansing. Já passava da meia-noite. A rua estava deserta.
Albert Lansing era um velho esquisitão. Seu corpo achava-se paralisado da cintura para
baixo. De dia, o doente dispunha de um robô de serviço. Mas de noite, a máquina tinha que
abandonar a casa. Esse robô representava a única concessão que Lansing fizera ao
desenvolvimento tecnológico. Sua cadeira de rodas era de um modelo antigo; apresentava
uma grande roda de cada lado. A habilidade com que Lansing movimentava seu veículo
dificilmente seria excedida por um produto automático da mesma espécie.
Mulvaney puxou o corpo para cima, segurando-se à coluna. A pedra parecia fria e áspera;
a casa, quieta. Mulvaney virou a cabeça. A luz fosforescente que vinha do outro lado da rua
provocou um reflexo em seus olhos. O rosto demonstrava uma estranha tensão.
Por um instante, Mulvaney ficou em cima da coluna. Finalmente saltou para o quintal da
casa. A terra mole evitou o ruído. Ergueu-se. Ao arrastar-se, não se preocupou com as flores e
os arbustos que seus pés esmagavam. Seus passos rangiam sobre o caminho coberto de areia
colorida. Tirou a chave magnética do bolso. Foi acolhido pela sombra da casa, que o retirou do
âmbito de visão de quem se encontrava na rua e lhe conferiu tranquilidade e segurança. Um
gato com o rabo muito levantado passou pelo jardim. Seus olhos faiscaram enquanto virava a
cabeça ligeiramente em direção a Mulvaney. Mas seu corpo ágil logo desapareceu em meio às
flores.
Mulvaney resmungou baixinho sem dar-se conta disso. O desejo de obter o liquitivo
enchia todo seu pensamento. À medida que se aproximava do objetivo, mais crescia sua ânsia.
Até então tomara regularmente uma garrafa de três em três dias.
Seguiu-se o efeito anunciado: a energia juvenil e a cessação do processo de
envelhecimento. Mulvaney não compreendia por que o governo proibia o uso de um
preparado como este. Não tinha o menor conhecimento sobre o estado dos destroços
humanos, trazidos de Lepso para a Terra, onde se travava uma luta vã por sua salvação. Não
sabia que, mesmo que pudesse continuar a tomar o licor, a decadência e a morte se
113
verificariam doze anos e quatro meses depois do dia em que pela primeira vez experimentara
a droga.
Mulvaney chegou à porta da casa. Parou e aguçou o ouvido. No interior da residência
reinava o silêncio. A moradia era assobradada. Lansing mandara instalar um elevador junto à
escada, a fim de levá-lo para cima e para baixo sempre que o desejasse. Mulvaney conhecia
perfeitamente a divisão das peças da casa, pois muitas vezes estivera com o velho Lansing
para jogar xadrez. Por isso sabia que aquele homem paralítico tomava regularmente o
liquitivo. Lansing confessara perante Mulvaney que esperava que isso lhe trouxesse uma
melhoria ou mesmo a cura de sua doença. No entanto, não houvera nenhuma cura. Lansing
rejuvenescera, sua pele tornara-se mais lisa, e seus poucos amigos acharam-no mais enérgico.
Mas a paralisia continuou inalterada.
Mulvaney empurrou a chave magnética para dentro da fechadura. O dispositivo de
segurança saiu imediatamente do suporte. Sob a pressão leve exercida pelas mãos de
Mulvaney, a porta abriu-se.
O visitante clandestino teve a impressão de que a peça que tinha pela frente era um
buraco negro, já que parecia impossível romper a escuridão. Não hesitou: entrou
imediatamente. Voltou a trancar a porta atrás de si. Conteve a respiração e procurou captar
qualquer ruído que lhe permitisse uma conclusão sobre o paradeiro atual de Lansing. Mas
tudo estava em silêncio.
Mulvaney deu um passo para a frente. A ânsia furiosa tornara-se ainda mais intensa.
“Tenho que arranjar o liquitivo!”, pensou.
Aquele ruído não era da cadeira de rodas que se aproximava?
Mulvaney esgueirou-se para o lado. Mas não havia nada que se aproximasse na
escuridão. Os dedos do intruso tocaram na parede. Mais adiante encontraram resistência: era
um cabide. Mulvaney tateou uma fazenda macia: a da capa de trabalho do robô de serviço. Era
mais uma das idéias esquisitas de Lansing, fazer com que o robô vestisse uma capa. Naquele
momento, Mulvaney não estava em condições de divertir-se com isso. Continuou a apalpar,
até que houvesse uma interrupção na parede.
A entrada da cozinha! No interior da casa não havia portas, já que estas dificultariam a
locomoção de Lansing. As entradas das diversas peças eram fechadas com cortinas duplas.
Mulvaney empurrou para o lado a fazenda pesada e entrou na cozinha. Um cheiro
estranho impregnava o ar. Parecia que alguém havia derramado uma quantidade excessiva de
detergentes no assoalho. Mulvaney esbarrou na mesa, que tinha uma reentrância, na qual
Lansing entrava com sua cadeira de rodas, quando pretendia fazer suas refeições.
“Onde é que o velho esconde o licor?”, pôs-se a refletir.
Não poderia começar a procurar ao acaso. Levaria várias horas. Além disso, seria
impossível realizar esse tipo de trabalho, sem provocar barulho. Por isso tornava-se
necessário localizar Lansing.
Mulvaney contornou a mesa. Tropeçou numa cadeira. Tratava-se de uma peça bastante
rara na residência de Lansing. Felizmente a perna da cadeira achava-se envolta numa massa
elástica, de forma que não houve um ruído mais forte. Mulvaney estava convencido de que
não havia ninguém na cozinha. Lansing não se encontrava por ali. De repente Mulvaney
lembrou-se de que o paralítico talvez já tivesse notado que entrara na casa e o esperava em
algum lugar, de arma em punho. A idéia obsessiva de que o velho possuía uma arma fez com
que Mulvaney sentisse calafrios. Por algum tempo viu-se incapaz de fazer qualquer coisa.
Ficou parado, tremendo por todo o corpo. Mas logo seu organismo deu sinal de vida, exigindo
sua dose de liquitivo. Aquela sensação angustiante era pior que o medo mais terrível.
Saiu da cozinha. No pavimento térreo havia mais duas peças, a biblioteca e o chamado
escritório. Naturalmente Lansing nunca trabalhava, embora quase sempre ficasse no
escritório. Recebia uma renda mensal e, além disso, contava com o apoio financeiro voluntário
de parentes na Europa. Para uma pessoa não avisada, o aspecto do escritório de Lansing era
114
bastante estranho. Da entrada partiam duas barras metálicas, que se dirigiam à janela.
Formavam uma espécie de corredor, que tinha a largura exata para permitir a passagem da
cadeira de rodas. Por uma única vez, Mulvaney tivera oportunidade de ver qual era a
verdadeira finalidade da peça. Para o homem paralítico, representava a única possibilidade de
sair da cadeira de rodas sem auxílio de ninguém. Fazia a cadeira rolar até as barras metálicas,
pendurava os braços sobre as mesmas e arrastava-se até a Janela, onde permanecia por horas
a fio, observando o movimento na rua. Quando Mulvaney o surpreendera nessa posição,
Lansing ficara zangado pelo resto da noite e se mostrara bastante “distraído” durante o jogo.
— Por que não ri de mim? — indagara Lansing, depois que Mulvaney afastara a cortina e
fitara o recinto com uma expressão de perplexidade. — Pelo menos deveria rir de mim.
Essa experiência deixara Mulvaney pensativo por várias semanas. Evitara Lansing, até
que este lhe telefonasse, convidando-o para outro jogo.
Enquanto Mulvaney avançava pela escuridão, em direção ao escritório, lembrou-se
dessas palavras do doente. Sentiu no seu subconsciente um ligeiro temor de afastar a cortina e
penetrar na peça.
Uma vez vencido esse temor, constatou que Lansing não se encontrava nessa peça.
Também não estava na biblioteca. Concluía-se que só poderia estar no pavimento superior.
Um tanto perturbado, Mulvaney caminhou sorrateiramente em direção à escada.
Tropeçou numa das rodas da cadeira e bateu com o rosto no chão. Agitou violentamente
os braços, e suas mãos tocaram em outras peças do meio de locomoção do doente. A cadeira
de rodas de Lansing estava ao pé da escada, totalmente destruída. Mulvaney soltou um
gemido e libertou-se da profusão de peças metálicas.
O barulho não poderia ter deixado de atrair a atenção de Lansing, se este se encontrasse
por ali. Mas tudo continuava em silêncio no interior da casa, com exceção dos ruídos
provocados pelo próprio Mulvaney. O invasor levantou-se com uma terrível pressa. Não se
importava com mais nada. Sentia-se completamente dominado pela ânsia de obter aquilo que,
para ele, era um preparado rejuvenescedor. Cambaleou na direção em que, segundo
acreditava, ficava o interruptor de luz. Sentiu-se gelado de pavor ao lembrar-se da
possibilidade de que outro poderia ter chegado antes dele. Talvez alguém já tivesse roubado o
estoque de Lansing.
Soltou uma praga e acendeu a luz.
Viu que a cadeira de rodas caíra pela escada. Estava completamente destruída.
Albert Lansing estava deitado num degrau da escada...
Estava morto!
Estendido em posição inclinada, estava apoiado no corrimão, com os olhos muito
arregalados e o rosto cor de cera. Mulvaney ficou rígido de pavor. E seu instinto lhe disse que
por ali não encontraria nenhum liquitivo.
Foi-se aproximando de Lansing. Havia um bilhete na mão direita do velho. Mulvaney
pegou-o e leu as poucas frases, escritas com letras trêmulas:
Mulvaney deixou cair o papel. Lansing se suicidara. Não havia nenhum licor naquela
casa. O homem paralítico fizera a cadeira de rodas descer pela escada e capotara várias vezes.
— Por que não ri? — soou a voz de Lansing na mente de Mulvaney. — Pelo menos deveria
rir de mim.
Mulvaney começou a rir que nem um louco. Seu corpo tremia. Precisava de liquitivo.
Precisava da droga com urgência, com muita urgência. Acontece que o governo suspendera as
vendas do produto. Não havia meio de conseguir o licor.
Mulvaney abandonou a casa, cambaleando que nem um bêbado.
115
Era um ser humano solitário. Um ser humano viciado e perdido.
Era um entre mais de cinqüenta milhões.
116
2
121
A idéia de fazer com que os viciados se tornassem razoáveis era como que o plano de um
único homem que vigia um poço e quer evitar que duzentos homens, mortos de sede, bebam a
água do mesmo.
Bell começou a imaginar as terríveis consequências da ação. Ao entreolhar-se com
Rhodan, percebeu que as idéias do administrador deviam ser idênticas às suas. Até então
haviam passado por terríveis experiências sempre que se encontraram com os antis. Mas tudo
isso parecia uma insignificância em comparação com aquilo que agora os ameaçava.
A teia dos anti-mutantes começava a fechar-se.
Uma aranha pode locomover-se para qualquer ponto de sua teia. Ninguém pode prever
onde desfechará seu ataque. E, uma vez que sua vítima está presa na teia, tem tempo de sobra.
Espera que esta se enleie cada vez mais, até ficar indefesa à sua frente.
Rhodan e Bell sabiam que qualquer medida defensiva apenas abreviaria a chegada do
desastre final. A conclusão lógica ora que deveriam agir de outra forma.
Aguardar. Não demonstrar qualquer disposição defensiva.
Nem Rhodan, nem seu representante exprimiram esta idéia. Mas ambos sabiam que
pensavam da mesma forma.
122
3
O policial desceu do veículo. Seu rosto largo movimentava-se no ritmo mastigatório com
o qual empurrava de um lado para outro o pedaço de borracha que trazia na boca. Sua atitude
não exprimia medo, mas antes curiosidade. Agitava lentamente o cassetete elétrico. A outra
mão estava enfiada entre dois botões de seu uniforme.
De ambos os lados de sua viatura havia uma faixa na qual estavam escritas em enormes
letras vermelhas as seguintes palavras:
O negociante tomara o partido do governo e adotara suas divisas. A fúria dos viciados
concentrou-se sobre ele. Naquele instante John Clayton era o único obstáculo que impedia
cinqüenta pessoas de entrarem na loja e a depenarem.
Henry Mulvaney lançou um olhar ansioso para o prédio. Desde que realizara a excursão
mal sucedida à casa de Albert Lansing, dois dias já se haviam passado. Sentia vertigens
constantes, motivo por que sua disposição de ânimo não era das melhores. Atingira o limite do
estágio que precede o desmoronamento total da pessoa.
Seus pensamentos confusos e sua fantasia descontrolada diziam-lhe que naquela loja
devia haver grandes quantidades de liquitivo. A inscrição na vitrina só servia para enganar os
antigos fregueses.
Mulvaney não demorara em encontrar grande número de adeptos que se encontravam
no mesmo estado que ele. Tiveram “muita pressa” em acreditar no que dizia. Numa situação
como aquela os homens desesperados procuravam agarrar-se a uma palha.
O policial interrompeu seus movimentos mastigatórios. Gritou em tom muito calmo:
— Vamos para casa, gente!
O dono da loja, que continuava junto à entrada, brandia ameaçadoramente sua ridícula
pistola, como se com isso pudesse dar um bom apoio às palavras do policial.
John Clayton, que até então só executara serviços leves e rotineiros, agindo contra os
infratores das regras de tráfego, foi-se aproximando lentamente do grupo.
123
Num movimento de lucidez, Mulvaney teve a idéia de que a mão do policial, enfiada
embaixo do uniforme, talvez estivesse segurando uma pistola muito mais perigosa que o
cassetete.
— Saia do nosso caminho! — gritou para o homem de uniforme. — Aquele sujeito está
escondendo seu estoque de liquitivo. Nós o queremos.
Estas palavras foram seguidas de um murmúrio de aprovação. Mais da metade dos
presentes já acreditava firmemente que encontraria o licor. Se não fosse assim, o policial não
teria aparecido.
— Não estou escondendo coisa alguma — gritou o dono da loja, com a voz estridente.
Na placa da loja lia-se que seu nome era Gary P. Mocaaro.
— Está ouvindo? — disse Clayton, em tom apaziguador. — Ele não tem nada para vocês.
Mulvaney sentiu-se tão mal que pensou que teria de vomitar. O uniforme escuro à sua
frente multiplicou-se. Sua vista começou a turvar-se.
— Preferimos dar uma olhada — debochou alguém que se encontrava ao lado de
Mulvaney.
Mulvaney gemeu baixinho. Cambaleou para a frente, em direção ao policial. Nunca se
sentira tão mal como naquele momento.
— Pare! — ordenou Clayton, em tom enérgico.
O cassetete deixou de executar movimentos giratórios. Parecia o prolongamento de seu
braço. Os movimentos mastigatórios cessaram de vez.
“Talvez esteja com medo”, pensou Mulvaney.
Deu mais um passo em direção a Clayton.
— Cuidado, sir! — disse Mocaaro com a voz rouca. — Estão tramando alguma coisa.
Mocaaro não se preocupava com o policial, nem com a viatura. Suas preocupações eram
de natureza egoísta. O negociante temia por sua vida e propriedade. Seu instinto lhe dizia que
Clayton representava a débil resistência que poderia conservar-lhe uma coisa e outra.
Dali surgiu-lhe a idéia de ajudar o homem de uniforme. Levantou o braço, fez pontaria —
o que era completamente inútil numa pistola de efeitos morais — e disparou para além de
Clayton.
Quando Mocaaro compreendeu que acabara de cometer um erro, o tiro ainda estava
reboando. Clayton praguejou e levantou o cassetete. Como se aquilo representasse um sinal, a
massa enfurecida dos viciados começou a movimentar-se.
Clayton esperou-os em atitude resoluta. Mulvaney saiu correndo com os olhos
lacrimejantes. Percebeu que as pessoas que o rodeavam corriam mais depressa que ele. Ficou
apavorado ao pensar que chegariam antes dele ao lugar em que se encontrava o liquitivo.
Sentia-se tão fraco que não conseguia avançar com a mesma rapidez dos outros. Um ódio cego
passou a dominá-lo. Queria ter sua parte. Afinal, fora ele que os conduzira para cá. Nem por
isso deixariam de apoderar-se de todo o liquitivo em que conseguissem pôr as mãos. Ninguém
se interessaria por Henry Mulvaney.
Viu que o policial conseguiu aplicar um choque em três dos atacantes.
“Por que não usa a outra mão?”, pensou Mulvaney, perplexo.
Clayton defendia-se obstinadamente. Pelo menos dez pessoas já haviam passado por
eles. Soltando gritos selvagens, correram em direção à viatura policial e arrancaram a faixa. Os
gritos ressoaram em seus ouvidos. Depois tombaram o carro. Uma nuvem de poeira subiu ao
ar. Clayton ouviu Mocaaro gritar de medo. Brandia o cassetete com movimentos quase
automáticos.
Alguém agarrou-o por trás. Clayton dobrou os joelhos e caiu. Durante a queda conseguiu
lançar um olhar para o interior da loja. Mocaaro havia desaparecido. A vitrina estava
quebrada, e alguns homens se movimentavam entre os cacos de vidro. Um deles enrolara a
faixa de propaganda na cabeça, como se fosse um turbante. O barulho era indescritível.
124
Mesmo estendido no chão, Clayton continuava a defender-se. Alguém arrancou-lhe o
cassetete da mão e deu-lhe um golpe que fez com que perdesse os sentidos. As pessoas que o
rodeavam afastaram-se e precipitaram-se para o interior da pequena loja.
Mulvaney foi o último a chegar ao local onde se encontrava o policial. Viu o homem de
uniforme rasgado, estendido no chão. Os ruídos, que vinham da loja de Mocaaro, davam a
entender que por enquanto não haviam encontrado nenhum liquitivo.
Mulvaney soluçou baixinho. Sentia a boca ressequida. Dobrou os joelhos. Fitou o rosto do
policial por algum tempo. Depois olhou para a viatura tombada.
Retirou cuidadosamente a mão de Clayton de sob o uniforme. Ouviu o ranger e o estalar
de madeira, vindo do interior da loja. Vidros eram quebrados, e os golpes surdos saídos da loja
faziam supor que os viciados tentavam arrombar um armário.
Ouviu a sereia de uma viatura policial. O ruído vinha de longe.
Mulvaney olhou para a mão de Clayton, ou melhor, para aquilo que estava escondido sob
o uniforme do mesmo. Aquele homem estava usando uma prótese.
Tinham derrubado um homem maneta.
“Pobre idiota valente”, pensou Mulvaney.
Levantou-se e cambaleou em direção à loja. A placa estava quebrada. Só se liam as
últimas duas letras do nome do proprietário. Mulvaney pisou em vidro e escorregou. Um
homem saiu da loja. Seu rosto estava borrado de sangue. Seus olhos chamejavam que nem
brasas.
— Não encontramos nenhum liquitivo — disse em tom de desespero.
— Morreremos todos — respondeu Mulvaney, abatido.
O ruído da sereia da viatura policial, que se aproximava, era cada vez mais intenso.
125
4
O funcionário do Império Solar que cuidava do Setor Vermelho III/b 1245 II era um
homem importante. A designação numérica de seu setor destinava-se unicamente aos
fichários e aos bancos de dados positrônicos, motivo por que o setor de que cuidava também
era conhecido pelo nome de sistema Capra. Capra — um sol em torno do qual gravitavam
nada menos de vinte e quatro planetas. O que havia de especial naquele sistema era que seis
dos vinte e quatro mundos eram planetas de oxigênio, e por isso foram ocupados por colonos
terranos. Face à extensão do sistema solar e ao número de planetas, Oliver Gibson simbolizava
poderio.
O fato de encontrar-se ele em Terrânia fazia concluir que havia um motivo muito
importante para isso. Perry Rhodan estava perfeitamente ciente da responsabilidade que
pesava sobre os ombros desses encarregados, e sabia que era bom que permanecessem
ininterruptamente na sua área de atuação.
Naquele momento, Oliver Gibson encontrava-se a vinte mil anos-luz do lugar em que
costumava dirigir os destinos das colônias terranas. Gibson achava-se no grande auditório,
situado no interior de um dos maiores edifícios de Terrânia.
Além dele havia por ali mais cinqüenta homens, que se contavam entre as figuras mais
destacadas do Império Solar. O homem esbelto, bem próximo a Perry Rhodan, devia ser John
Marshall, chefe do lendário Exército de Mutantes. Gibson ainda reconheceu Reginald Bell, o
Marechal Solar Freyt e Allan D. Mercant, comandante do Serviço de Segurança Solar.
Acreditava que havia vários mutantes no recinto. O General Deringhouse entretinha-se numa
palestra com o encarregado do sistema Vega. Atrás de Rhodan estavam sentados dois homens
de jaleco branco. Até parecia que haviam sido trazidos diretamente de seu local de trabalho.
Por um instante, Gibson teve sua atenção atraída para um homem que parecia um
tanque e ocupava duas cadeiras. Seria Jefe Claudrin, o homem que juntamente com Rhodan
fizera a Fantasy, a nave terrana equipada com um sistema de propulsão linear, passar por
dentro de um sol?
De repente Gibson viu o animal!
Tinha cerca de um metro de altura e parecia um rato de dimensões descomunais, que
devia ter parentesco bastante próximo com um castor. Os olhos redondos da estranha criatura
fitaram Gibson. Trajava o uniforme de tenente da Frota Solar. Evidentemente tratava-se de
uma peça feita sob encomenda. Apresentava até uma abertura por onde passava a larga cauda
de castor.
O animal pareceu ter notado o interesse que despertara em Gibson, pois ergueu-se
ligeiramente. O encarregado ficou espantado ao constatar que aquela criatura ocupava a única
poltrona estofada que havia naquele auditório.
Gibson engoliu em seco. Já ouvira falar muitas vezes em Gucky. Mas escutar e ver são
duas coisas muito diferentes.
Os olhos escuros do rato-castor fitaram-no. Depois de algum tempo pôs à vista um dente
roedor muito feio e sorriu para Gibson. O rosto do encarregado ficou vermelho. Não sabia
como agir. Afinal, aquela criatura era um oficial, e as notícias de seus feitos haviam chegado
até o sistema Capra. Muito embaraçado, Gibson fez uma ligeira mesura.
Gucky cumprimentou com um gesto condescendente da cabeça. Seus olhos pareciam
sonolentos.
Perry Rhodan levantou-se, obrigando Gibson a olhar em sua direção. O silêncio passou a
reinar no auditório, onde se achavam reunidos homens cônscios de sua responsabilidade, que
ocupavam posições elevadíssimas.
126
— Há algumas semanas dei ordem para que a importação de liquitivo fosse suspensa,
tanto na Terra como nos planetas coloniais — principiou Rhodan. — Além disso, mandei
proibir a venda do preparado. Sabíamos perfeitamente que não conseguiríamos que, de uma
hora para outra, todos os estoques fossem retidos. Algumas pessoas compraram a bebida às
pressas e o mercado negro começou a florescer. Apesar disso, cinqüenta milhões de seres
humanos já não têm meios de obter a droga. E o número das pessoas que se encontram nessa
situação cresce constantemente. Até tenho medo de pensar no número de viciados que devem
estar entre nós. Prefiro nem falar nos mundos coloniais ou nos planetas de Árcon. Os anti-
mutantes da seita de Baalol executaram um plano diabólico. Antes de inundar a Terra e os
planetas de Árcon com o liquitivo, viciaram mundos afastados.
Rhodan interrompeu sua fala e fitou os assistentes com uma expressão grave. Pegou
algumas folhas de papel que se encontravam à sua frente.
— Ao que tudo indica, dentro em breve teremos uma revolta — informou. — Tenho em
mãos várias notícias que me deixam profundamente preocupado. Em Des Moines, a residência
do prefeito foi saqueada. Em Paris, a turbulência dos homens que participam das
demonstrações cresce a cada hora que passa. As tentativas de assalto aos edifícios públicos
foram abafadas pela polícia por meio de jatos de água. Em Gettysburg houve uma verdadeira
batalha na rua, entre um policial e um grupo de cinqüenta viciados. O policial foi posto fora do
combate e seu veículo foi destruído. Uma loja foi saqueada. Na mesma cidade registrou-se o
primeiro suicídio. Um homem paralítico matou-se porque não conseguia mais liquitivo.
Balançou a cabeça, num gesto de lástima.
— São apenas algumas notícias entre muitas — disse. — Mr. Bell e eu resolvemos iniciar
uma grande campanha de esclarecimento público, que já está sendo levada avante. Devemos
prevenir a Humanidade contra os perigos que a droga envolve.
Existem quantidades gigantescas da bebida que não puderam ser apreendidas. A mesma
é vendida mais ou menos publicamente, a preços absurdos. Por isso torna-se imprescindível
que toda a população seja esclarecida sobre o perigo ligado ao uso do licor.
O General Deringhouse levantou-se.
— Sir, o senhor acredita que, com isso, os homens se tornem menos brutais em suas
tentativas de conseguir o entorpecente?
— É o que espero.
Oliver Gibson pensou que era chegado o momento de falar em seu problema. Levantou o
braço, para pedir a palavra. Rhodan assentiu com um gesto.
— A maior parte dos senhores já me conhece — principiou. — Apesar disso quero dizer
quem sou e de onde venho. Sou o encarregado do sistema Capra, onde seis planetas coloniais
da Terra se encontram em desenvolvimento. A situação dos homens que vivem lá não pode
ser comparada com a da população terrana. A vida dos colonos é muito dura. Sentem-se
felizes e satisfeitos com qualquer tipo de distração, que quebre a monotonia. Por isso é
perfeitamente compreensível que, num lugar como este, o entorpecente tenha sido vendido
em quantidades maiores que na Terra. Acho que a mesma coisa aconteceu com outras
colônias.
Sorriu.
— Senhores — disse — eu mesmo sou um viciado.
Os homens reunidos naquele auditório estavam acostumados a toda sorte de surpresas.
Depois da confissão de Gibson, os rostos continuaram impassíveis. Alguns pareciam mais
sérios e resolutos, enquanto outros só agora pareciam interessar-se pelo encarregado, mas
ninguém fez qualquer aparte.
Gibson olhou para Perry Rhodan. Já informara o administrador, em confiança, sobre a
situação miserável em que se encontrava. Rhodan não era capaz de proferir uma condenação
imediata e total contra qualquer homem. Gibson não viu nenhuma recriminação nos olhos
127
cinzentos do administrador, mas apenas um estímulo mudo para que prosseguisse no seu
discurso.
— Há três dias vivo sem o licor — prosseguiu Oliver Gibson.
Sem que o quisesse, olhou para Gucky. O rato-castor mantinha os olhos fechados. Apesar
disso, Gibson sentiu um fluxo inexplicável de calor humano. Sabia que tinha amigos por ali.
Seus ombros se entesaram.
— Falo em nome de seis planetas coloniais terranos. Quero resumir minha contribuição
nos debates num pequeníssimo discurso: devemos encontrar com a maior urgência uma
solução que atenda às necessidades dos viciados e do resto da Humanidade.
Gibson concluiu com um gesto e voltou a sentar-se. Naquele recinto não havia ninguém
que o desprezasse. Todos se sentiam animados do desejo de ajudar.
Rhodan virou o rosto para os dois homens de jaleco branco. Um deles levantou-se.
Estava muito nervoso. Uma das mãos achava-se escondida no bolso do jaleco, enquanto a
outra endireitava a gola.
— Meu colega, o Dr. Topezzi, e eu, fomos incumbidos de coordenar todas as informações
recebidas da equipe médica que realiza um urgente trabalho de pesquisa, para descobrir as
características perigosíssimas do entorpecente.
Pigarreou fortemente e lançou um olhar de súplica ao Dr. Topezzi que, segundo parecia,
estava satisfeito por não se encontrar no lugar do orador.
— Por enquanto — prosseguiu o médico — não se conseguiu apurar de que forma os
antis fabricam o veneno. Não existe a menor dúvida de que o liquitivo produz um efeito
rejuvenescedor. Há um detalhe interessante: o vício só se manifesta, depois de a droga ter sido
usada umas quatro ou cinco vezes. Isso permite certas conclusões, mas estas são de natureza
puramente teórica e no momento não oferecem o menor interesse. O que parece certo é que o
licor só se transforma num veneno, que afeta os nervos, depois de ter sido ingerido por um ser
humano. Algum fermento do estômago combina-se com o licor. Como sabemos, os fermentes
funcionam como catalisadores. Antes de ser ingerido, o produto não é venenoso. Só depois de
entrar em contato com o fermento, adquire essa qualidade. Acho desnecessário mencionar
que o liquitivo é fabricado com base em hormônios. De outra maneira não haveria como
explicar o efeito rejuvenescedor.
— Está bem, doutor — disse Reginald Bell.
Era o único homem que demonstrava certa impaciência.
— Diga-nos alguma coisa sobre os tratamentos de desintoxicação; qual foi o resultado
dos mesmos? — pediu Rhodan.
— Para resumir, em todos eles o resultado foi negativo — informou o médico. — Os
maiores especialistas em tratamentos de desintoxicação fracassaram. Todos sabemos que
uma pessoa viciada pela morfina ou pelo álcool pode ser libertada do vício. Ao que parece, isso
não acontece com o liquitivo. Depois de trinta dias, a loucura é o destino fatal das pessoas que
adquiriram a dependência.
Fez um sinal com as mãos. Falando muito baixo, acrescentou:
— Só podemos recomendar aos responsáveis que suspendam a proibição da importação
e venda do liquitivo, pois, do contrário, correremos o risco de ver enlouquecer inúmeras
pessoas.
Aquilo que Gibson não conseguira com sua exposição, o médico alcançou com sua
proposta chocante: os ouvintes tornaram-se inquietos. Jefe Claudrin levantou-se
instintivamente. O corpo gigantesco daquele homem de Epsal, parecia querer arrebentar o
uniforme. John Marshall trocou um ligeiro olhar com outro dos presentes. Tratava-se de um
japonezinho, em cujo rosto pairava um sorriso suave.
— Será que o senhor acha que devemos levantar o bloqueio, Dr. Whitman? Sabe o que
significa isso? As organizações mercantis galácticas, especialmente nossos velhos amigos, os
saltadores, voltarão a entrar livremente em nosso sistema.
128
— É verdade, sir — disse o Dr. Whitman.
Deringhouse era dotado de um raciocínio frio. Apesar disso era antes de tudo um
soldado, e suas idéias logicamente se moviam principalmente na área militar. Como general,
achava que sua tarefa consistia em usar a Frota Solar para manter todo mal afastado da Terra.
Não era dado aos lances astuciosos, às intrigas políticas ou às hábeis manobras diversionistas.
— Isso equivaleria a uma capitulação — disse em tom amargurado.
Gucky piscou os olhos; estava bastante interessado pela discussão. Nem mesmo aquele
nativo do planeta Vagabundo, sempre brincalhão, subestimava o significado da palavra
capitulação.
Rhodan foi o único que conservou a calma.
— A palavra capitulação parece muito dura — disse o Dr. Topezzi. — Se falássemos
numa solução de compromisso, talvez estaríamos usando termos mais adequados.
— Pouco importa que palavra queiramos usar — disse o general, em tom exaltado. — O
que adianta encobrir a derrota com palavras bonitas? Sou contra a suspensão do bloqueio.
Uma exclamação surda saiu da boca de Jefe Claudrin. Todos a interpretaram como uma
manifestação de concordância. Era comandante da primeira nave linear terrana, e por isso sua
opinião pesava um pouco.
Perry Rhodan compreendeu que, se não interviesse imediatamente, os homens que se
encontravam reunidos se dividiriam em dois partidos. Estava cônscio de sua
responsabilidade. Era necessário tomar uma decisão, e dela provavelmente dependeria a
existência de toda a Humanidade, tanto da que vivia na Terra como da que habitava os
planetas coloniais.
Naquele momento histórico, o homem que até merecera certo respeito de Auris de Las-
Toor, representante do Conselho de Ácon, e cujo nome estava indissoluvelmente ligado ao
futuro da raça humana, disse:
— O bloqueio será levantado. A partir deste momento voltará a ser permitida a venda do
liquitivo na Terra e em suas colônias. Vamos recomendar a Gonozal VIII, Atlan, para que
adapte seu procedimento ao nosso.
Perry Rhodan fitou prolongadamente os homens ali reunidos. Notou que o General
Deringhouse empalidecera e que Claudrin franziu os sobrolhos, numa expressão de
contrariedade. Alguns homens engoliram em seco, e seus rostos assumiram uma expressão
dura. Mas a confiança que depositavam no administrador pesava mais que seus sentimentos.
A voz de Rhodan cortou o silêncio sepulcral.
— Com isso evitaremos que milhões de seres humanos se transformem em loucos. Nossa
campanha de esclarecimento deverá ser intensificada, a fim de que as pessoas sadias não se
transformem em viciados. O fato de que o uso do liquitivo representa um perigo para a vida
deve ser divulgado em todos os cantos do império.
Sorriu sem demonstrar muito senso de humor.
— Isso evidentemente não significa que admitimos nossa derrota — disse. —
Iniciaremos um programa de pesquisas como este planeta nunca viu igual. Os maiores
cientistas de todos os mundos utilizarão todos os meios para descobrir um antídoto.
Rhodan irradiava resolução. — E eles o descobrirão, da mesma maneira que eu
descobrirei Thomas Cardif.
Apavorado, Gucky pôs à mostra o dente roedor. Mas não disse nada. Quando o chefe se
encontrava neste estado de ânimo, era preferível ficar calado. Todos os presentes sentiram a
feroz resolução que animava Rhodan.
Sua energia espalhou um otimismo que, lace aos acontecimentos posteriores, não tinha a
menor razão de ser.
Alguém que está enleado na teia, dificilmente consegue libertar-se. Mesmo que se
mantenha aparentemente quieto, a fim de não irritar o atacante.
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Dois dias depois dessa reunião, o entorpecente voltava a ser vendido livremente em
todos os pontos da Terra. Para algumas centenas de homens, já era tarde.
Em Gettysburg, um homem foi internado num hospital para doentes nervosos. Seu
espírito estava totalmente perturbado.
Chamava-se Henry Mulvaney.
A semente má, lançada pelos antis, estava germinando. Nos laboratórios da Terra e dos
planetas de Árcon, testes eram realizados. Rhodan não descansava. Interessava-se
pessoalmente pelos resultados de todos os exames.
De repente aconteceu uma coisa que imprimiu um rumo totalmente diferente aos
acontecimentos...
130
5
131
— Voe até o quadrado X45-D-3 — ordenou Desoga. — Recebemos uma informação do
destacamento que vigia a área. Dizem ter descoberto uma pequena base que ainda não
tínhamos localizado.
Desoga não havia localizado uma única base, mas falava como quem tivesse descoberto
todas elas.
— Há um mutante em companhia dos homens, Stephen. É telepata. Pelo que dizem,
existe alguém nessa base. Veja o que pode fazer.
Era a maneira típica de dar ordens daquele espanhol. Não dera nenhuma indicação
precisa sobre o que Elliot deveria fazer. O piloto dirigiu o planador para o ponto que lhe fora
indicado.
— Talvez seria conveniente — observou Desoga em tom bonachão — se conseguíssemos
prender esse sujeito vivo.
Ao que parecia, o espanhol sabia mais do que desejava confiar a Elliot. Desoga sempre
parecia saber mais que os outros. De repente, o piloto se lembrou de que talvez fosse esse o
motivo por que aquele magricela era seu superior, e ficava sentado na central, envenenando-
se com nicotina.
— Sim, senhor — disse Elliot.
Desoga parecia nem ouvi-lo mais. A cidade desapareceu embaixo de Elliot. Olhando para
trás, via apenas sua silhueta sombria desenhada no horizonte. O pequeno sol amarelo de
Firing fornecia bastante luz para iluminar a paisagem que deslizava sob o planador.
Quando chegou ao lugar indicado por Desoga, viu um grupo de homens que agitavam os
braços em meio à desolação. Elliot pousou habilmente. Dos uniformes dos soldados concluía-
se que estes pertenciam à Frota Solar. Estavam armados até os dentes. Dois robôs de guerra
mantinham-se num ponto mais afastado.
Elliot saiu do pequeno veículo aéreo. Lepso era um planeta de oxigênio, motivo por que
os terranos não tinham necessidade de usar traje protetor. Elliot mal conseguia imaginar que
o contrabando intercósmico tivesse florescido justamente num mundo insignificante como
este. Lepso fora o ponto de entroncamento de todos os negócios escusos, até o momento em
que Rhodan aparecera com a Frota Solar. Nem mesmo as naves cilíndricas dos mercadores
galácticos conseguiram impedir a atuação enérgica de Rhodan, dirigida contra os antis.
— O senhor deve ser Elliot — disse um homem baixo a título de cumprimento. — Desoga
já anunciou sua vinda. Recebemos ordem para não fazer nada enquanto o senhor não
chegasse. Sou o cabo Higgins; dirijo este grupo.
Elliot fitou os dezesseis homens que se encontravam à sua frente. Onde estaria o
mutante mencionado pelo espanhol? Elliot julgava-se capaz de reconhecer imediatamente, em
meio a um grupo de homens, um membro desse exército lendário.
Higgins até parecia ter adivinhado seus pensamentos, pois disse:
— O telepata encontra-se num outro grupo, que foi ao encontro do Tenente Lechner e
seus homens. Lechner prendeu alguns arcônidas suspeitos, vindos de alguma colônia, que se
encontravam em Lepso por motivos dificilmente explicáveis quando iniciamos nosso ataque.
Evidentemente Higgins esperava que o piloto assumisse o comando. Elliot lançou um
olhar para a paisagem desolada. Sentia-se inseguro.
— O que aconteceu? — perguntou.
— O mutante constatou que ali deve haver uma base oculta — disse Higgins, em tom
apressado.
Apontou na direção de uma colina baixa, que não parecia nada suspeita aos olhos de
Elliot.
Higgins sentia-se indeciso. Via-se que não compreendia a forma de trabalho dos
mutantes. E, ao que parecia, não se achava muito interessado em compreender. Estava
satisfeito com aquilo que já conseguira. Preferia deixar as decisões mais importantes por
conta de outra pessoa.
132
— O membro do Exército de Mutantes afirma que ali só há um único terrano —
prosseguiu Higgins. — Pelo que diz, está armado. Na opinião do telepata não é perigoso.
— Logo descobriremos — disse Elliot.
O cabo Higgins concordou com o ar sério de um velho soldado.
— Não há dúvida, sir.
Elliot não tinha uma idéia precisa sobre como fariam para atingir a base. Mas, como
aqueles homens esperavam que fizesse alguma coisa, começou a deslocar-se em direção à
colina.
— Já tentamos estabelecer contato pelo rádio com o misterioso terrano — observou
Higgins. — Nossas tentativas não foram bem-sucedidas.
Quando haviam percorrido aproximadamente metade da distância que os separava da
colina, os problemas de Elliot foram resolvidos de forma misteriosa. Um vulto cambaleante
apareceu no topo da colina.
— Vamos — gritou Higgins e passou correndo por Elliot.
O tal vulto era uma figura esquisita. Tinha pernas curtas e tortas. Elliot apressou o passo.
— O homem deve ser este, sir — gritou Higgins, como se estivesse prestes a tomar de
assalto um cruzador dos saltadores.
Pasmo, Elliot perguntou-se por que motivo um homem, que se mantivera escondido por
tanto tempo, resolvera aparecer no momento exato em que surgiam as pessoas das quais
devia ter fugido.
O homem à sua frente estava esgotado ou doente. Cambaleou colina abaixo.
— Tratem-no com cuidado — ordenou Elliot. — Parece que está ferido.
Juntamente com Higgins e dois soldados, foi o primeiro a chegar ao lugar onde estava o
desconhecido. Não havia a menor dúvida de que era um terrano. Era de estatura mediana e
muito magro, quase tão magro como Desoga. O rosto estava encovado e com a barba por fazer.
A roupa estava muito estragada. Uma atadura precária cobria a coxa direita.
O homem fitou os olhos de Elliot. Ao que parecia, nem notava sua presença. O piloto
sentiu que o estado daquele fugitivo não era causado exclusivamente pelo ferimento que
trazia na perna. Elliot tinha a impressão de conhecer o porquê desse olhar vazio.
De repente lembrou-se do que vira em Lepso várias semanas atrás. Já sabia o que havia
com esse homem.
“É um viciado”, pensou. “Encontra-se sob a influência do terrível liquitivo!”
Elliot teve um calafrio. Desoga determinara que esse homem fosse recolhido vivo.
Estava certo de que devia apressar-se bastante se quisesse cumprir essa ordem.
— Apoie-o! — ordenou Higgins.
Reunindo suas forças, arrastaram o homem semimorto em direção ao planador.
Naquele momento, ninguém desconfiava de que aquilo representava o início de uma
nova pista, de uma pista que levava diretamente ao centro da Via Láctea. Desoga, o oficial
magricela que se encontrava na central, lá na cidade, aguardava muito tenso que Elliot
retornasse.
***
Havia uma coisa que Elliot não podia saber, por um motivo muito simples: ninguém lho
havia dito. Desoga era um especialista da Segurança Solar. Depois de uma demorada reunião,
Rhodan e Mercant haviam resolvido colocar em cada cidade de Lepso um mutante e um
especialista em matéria de segurança. Essa resolução prevaleceria inicialmente pelo prazo de
dois meses, até que se tivesse certeza de que, no segundo planeta do sol de Firing, não se
escondia mais ninguém que pudesse fornecer informações importantes.
133
Fazia duas horas que Miguel Desoga pedira ao piloto que se retirasse de seu gabinete.
Naquele momento, só se encontrava presente o médico, que se esforçara para, por meio de
injeções e medicamentos, colocar o homem inconsciente em condições de ser interrogado.
— Perdeu muito sangue — explicou o Dr. Silverman. — Não gosto nem um pouco da
ferida na coxa, provocada por um tiro. Além disso, temos os efeitos desastrosos do
entorpecente. Estou quase certo de que este homem é um viciado de longa data. É ao menos o
que indicam os sintomas.
Os olhos escuros do espanhol estreitaram-se. O eterno charuto, que trazia entre os
lábios, formava um contraste marcante com o rosto magro.
— Quer dizer que ele morrerá? — perguntou Desoga.
O Dr. Silverman lançou um olhar recriminador para o agente, quando este tirou uma
enorme baforada de seu charuto.
— Isso mesmo; não demorará nada.
— Hum! — fez Desoga, lançando um olhar pensativo para o traste humano, encolhido na
poltrona, a poucos metros do lunar onde se encontrava.
Aquele homem moribundo parecia ser uma pessoa culta.
— Está bem, doutor — disse Desoga, em tom rabugento. — Faça-o falar.
O médico sabia perfeitamente que seria inútil discutir com um agente. Fazia vinte anos
que trabalhava com esse tipo de gente. Suas decisões sempre eram bem pensadas.
O Dr. Silverman preparou outra injeção. Desoga parecia interessar-se unicamente pela
cinza de seu charuto. Esperou até que o médico concluísse seu trabalho.
— Se tivermos sorte, recuperará os sentidos dentro de dez minutos — anunciou o Dr.
Silverman. — Depois disso poderá interrogá-lo.
— Por quanto tempo?
Silverman ergueu os ombros angulosos.
— Isso depende de sua resistência orgânica. Se tiver azar, só falará por alguns minutos.
Na melhor das hipóteses, disporá de uma hora.
Desoga resolveu que, de qualquer maneira, faria uma gravação em fita. Ligou o aparelho.
Teria de andar depressa com o interrogatório, caso contrário dificilmente conseguiria tempo
para repetir suas perguntas. O gravador de fita não poderia ser enganado. Registraria todos os
detalhes e, posteriormente, repetiria tudo com muito mais perfeição do que Desoga seria
capaz de fazê-lo.
Assim que o agente concluiu seu trabalho, o Dr. Silverman disse:
— Está recuperando os sentidos.
Desoga puxou uma cadeira e acomodou-se de frente para o encosto. O doente gemia
baixinho. Suas pálpebras tremiam.
— Pode retirar-se, doutor — disse Desoga. — É possível que mais tarde volte a precisar
do senhor. Peço-lhe que se mantenha de prontidão.
— Este homem nunca mais precisará de mim — disse o Dr. Silverman e saiu.
Desoga aproximou a cadeira do desconhecido.
— O senhor me ouve? — perguntou em tom insistente. — Compreende minhas palavras?
O homem fez um gesto afirmativo. Abriu os olhos, que estavam injetados de sangue.
Fitou o espanhol com uma expressão de perplexidade. Desoga resolveu conceder-lhe um
minuto, para que pudesse; recuperar-se.
— Onde estou? — balbuciou o ferido.
— Na Terra — mentiu Desoga. Aquele homem sentia que a morte se aproximava, e
qualquer terrano que se encontra nessa situação anseia por estar na Terra antes que chegue o
fim.
— O senhor está num hospital.
— Num hospital? — repetiu a voz monótona do viciado.
Desoga pegou a mão de seu interlocutor e sacudiu-a suavemente.
134
— Queremos saber quem é o senhor.
— Sou o Dr. Nearman — disse o homem com certo orgulho. — Sou o conhecido biólogo e
astromédico.
Desoga nunca ouvira falar no Dr. Nearman. Este prosseguiu em suas explicações, sem
que tivesse sido formulada outra pergunta.
— Saí da Terra há trinta e oito anos — disse.
Desoga ficou apavorado ao notar que as pupilas do homem se modificavam
constantemente, embora a luminosidade permanecesse sempre a mesma naquele recinto.
Seria o efeito estimulante da injeção, ou seria o prenuncio do fim?
— O que fez em Lepso? — perguntou Desoga.
Nos trinta minutos que se seguiram, o Dr. Nearman apresentou um relato desconexo. A
todo instante, Desoga teve de interrompê-lo com perguntas, a fim de esclarecer determinados
pontos.
O Dr. Nearman fizera amizade com um homem chamado Dr. Edmond Hugher, que não
era outro senão Thomas Cardif. Haviam trabalhado juntos na descoberta e no
aperfeiçoamento do liquitivo. Desoga foi de opinião que deram o liquitivo ao Dr. Nearman
apenas no intuito de prendê-lo à organização criminosa. A suposição do Dr. Silverman,
segundo a qual o doente se encontrava no último estágio, revelava-se correta. Quando a Frota
Solar surgiu em Lepso, a consciência acusou pela primeira vez o Dr. Nearman pelos atos que
praticara. Fugira e, na oportunidade, fora ferido por um robô de guerra. Em meio ao
nervosismo geral conseguira chegar ao esconderijo em que fora localizado pelo mutante.
Totalmente exausto, resolvera entregar-se.
Desoga constatou que o Dr. Nearman era muito entendido na determinação de posições
galácticas. Falava constantemente num misterioso planeta designado pelo nome de Okul.
Desoga estabeleceu uma ligação entre este mundo e Thomas Cardif e os antis, pois o Dr.
Nearman mencionou o fato de que a organização tinha certeza de que Okul representava um
refúgio seguro. O espanhol fez o possível para obter do moribundo os dados sobre aquele
mundo misterioso, que parecia conhecer.
Depois de um ligeiro olhar para o gravador, Desoga soltou um suspiro de alívio. Tinha
certeza de que em Terrânia saberiam fazer muito mais com as informações fornecidas pelo
Dr. Nearman do que ele, ali em Lepso. Desoga resolveu enviar a fita à Terra pelo caminho mais
rápido possível.
— Okul deve ser um planeta coberto por selvas — informou o Dr. Nearman, e sua voz
tornava-se cada vez mais débil. — Pelo que diz o Dr. Hugher, por lá não existem seres
inteligentes. Por isso os sacerdotes da seita de Baalol acharam que seria conveniente criar um
estabelecimento nesse mundo.
Desoga percebeu que seu charuto se apagara.
— Prossiga, Dr. Nearman — pediu com a voz tranqüila.
De repente, o biólogo sentiu a estranha desconfiança que constitui uma característica de
todas as pessoas gravemente enfermas.
— O senhor é médico? — perguntou. — O que deseja de mim?
— Está tudo em ordem — disse o agente, em tom tranquilizador. — O senhor está em
lugar seguro. Nada lhe acontecerá.
Porém os olhos do Dr. Nearman assumiram uma expressão rígida.
Desoga compreendeu que o biólogo estava morto.
Levantou-se e foi até a porta. O Dr. Silverman encontrava-se sentado no corredor, de
pernas cruzadas, e fazia anotações. O bloco estava apoiado sobre o joelho.
— Venha, doutor — disse Desoga.
135
6
A história de todos os impérios galácticos tem algo em comum. Trata-se de um fator que
parece constituir um paradoxo. À medida que um império estelar se expande, a medida que
cresce em tamanho, maiores são os perigos a que está exposto, e isso por dois motivos. Um
pequeno império, guardado por um imperador, não tem muita coisa a recear. Se o império for
desmantelado, a respectiva comunidade passa automaticamente para o inimigo e, sob o
governo deste, prossegue na sua vida tranqüila. Tal procedimento não seria possível para um
grande império. Este deve lutar pela sua existência, enfrentando inimigos tão fortes como ele,
inimigos mais fortes ou mais fracos. Raramente uma raça consegue dominar sozinha a galáxia
que habita.
O motivo disso reside nas imensas distâncias que separam os diversos sistemas solares.
Um império cósmico evidentemente é dirigido a partir do planeta que serve de pátria à
respectiva raça. Dali saem fios invisíveis que unem o centro aos planetas coloniais, aos
entrepostos comerciais e aos mundos habitados pelas raças amigas ou subjugadas. Com o
tempo, a tarefa de coordenar os acontecimentos assume proporções gigantescas. Mesmo que
se disponha de todos os recursos, torna-se impossível controlar permanentemente um
enorme império estelar a partir de um único planeta.
A consequência inevitável disso é a aquisição da soberania política por parte de vários
planetas coloniais, que passam a trilhar seus próprios caminhos. A tarefa de controlar uma via
láctea de dimensões fantásticas a partir de um único planeta excede a capacidade mental de
qualquer criatura inteligente. Nem mesmo o poder militar concentrado será capaz disso, pois
este se perderá em meio às estrelas.
A história das raças que alcançaram um grau elevado de desenvolvimento mental ensina
que o império apenas representa uma fase de transição. É nessa fase que se decide o destino
de uma raça. Alguns povos conseguem, graças ao seu desenvolvimento mental e tecnológico,
recolher-se em sua área e isolar-se contra todos os ataques. Outros são invariavelmente
destruídos.
Uma velhíssima lei cósmica diz que, quanto mais desenvolvida uma raça, mais retraída
se mostra ela na luta pelo poder galáctico.
Mas, para atingir esse estágio, a raça não pode deixar de percorrer o caminho penoso do
império.
O Império Solar encontrava-se no começo desse caminho.
Entretanto, já agora notava-se que as dificuldades cresciam constantemente. Os inimigos
tornavam-se cada vez mais numerosos e poderosos. Um dia, um filósofo arcônida dissera: “A
única coisa que fazemos é estender constantemente nosso campo de batalha. De resto, nada
muda.”
E o Império Solar mais uma vez estava prestes a estender seu campo de batalha. De
repente uma área galáctica, até então inexplorada, passara a oferecer grande interesse.
A 41.386 anos-luz da Terra existia um pequeno sol amarelo, que se situava no centro da
Via Láctea. Em torno dele gravitava um planeta, cuja existência até então era ignorada na
Terra. Era o planeta Okul. O sistema possuía mais dois mundos, que não tinham nome e não
ofereciam o menor interesse.
***
137
— Ponho minha mão no fogo por cada um dos cientistas que realizou os controles —
asseverou Rhodan.
Antes que Freyt tivesse tempo de responder, alguém bateu à porta. Freyt virou a cabeça
e viu Bell entrar. O gorducho parecia esgotado. Caminhou a passos rápidos em direção a uma
poltrona e deixou-se cair com um suspiro.
— Boa noite, sir — disse Freyt, numa cortesia irônica.
Bell sentiu-se indignado.
— Estou morto de cansaço — disse. — Esses aras são gente dura. John Marshall e cinco
dos seus homens trabalharam ininterruptamente até agora, para extrair tudo dos mesmos —
agitava a mão na frente do rosto, como se quisesse transformá-la num leque.
As feições de Rhodan assumiram uma expressão enérgica. Sabia que Bell estava aludindo
aos aras presos em Lepso. Thomas Cardif trabalhara com eles.
— O que foi que os mutantes descobriram? — perguntou Rhodan.
Bell preferiu não olhar diretamente para o amigo. Freyt, que era um observador muito
atento, logo desconfiou que aquele homem atarracado trazia notícias desagradáveis.
— Os aras confessaram quem descobriu a droga maldita — principiou Bell, em tom
deprimido.
Mal Bell concluiu a frase, Freyt sabia quem era o descobridor. Tanto ele como Bell teriam
concordado em mudar de assunto. Mas o orgulho de Rhodan obrigou-o a formular uma
pergunta.
— Quem é?
Bel e Freyt entreolharam-se prolongadamente. Também para eles, o destino trágico do
amigo representava uma carga psíquica. Por algum tempo reinou um silêncio constrangedor.
Finalmente Bell disse:
— É Thomas Cardif.
Qualquer pessoa estranha, que soubesse que o nome que acabara de ser pronunciado
naquele momento pertencia ao filho de Rhodan, acreditaria que o administrador fosse uma
criatura fria como gelo. Bell e Freyt, porém, souberam enxergar através da blindagem do
autodomínio. E viram o que havia atrás da mesma: tristeza e amargura.
Bell levantou as duas mãos.
— Não se esqueça de que Cardif estava submetido a um bloqueio hipnótico.
Quando trabalhava na descoberta do liquitivo, não era dono de si mesmo. Não se esqueça
de que usava o nome Dr. Edmond Hugher. Provavelmente os antis conseguiram romper o
bloqueio hipnótico por meio de suas energias mentais. Os atos de Cardif são dirigidos
exclusivamente contra você e têm por fim destruí-lo. Os boatos insensatos confundiram sua
mente.
— Isso foi uma fala muito eufemística — observou Rhodan, sarcástico. — Para exprimir
a mesma coisa em poucas palavras, podemos dizer que Thomas Cardif, filho de Rhodan, é um
criminoso.
— Isso apenas representa o resultado de uma série de circunstâncias infelizes — disse
Bell, em tom apaixonado.
— Você não se lembra de que tentou trair a Terra, entregando-a aos saltadores? Não se
lembra de um certo saltador que atendia ao nome Cocaze? — Rhodan elevou a voz. — Cardif e
esse patriarca andaram de mãos dadas. Quase conseguiram destruir o Império Solar.
— Houve ao menos uma coisa que ele herdou do pai — disse Bell. — É a arte de colocar o
adversário em situação difícil.
Reginald Bell provavelmente era o único homem que podia arriscar-se a criticar Rhodan
em questões particulares. Não usava esse direito com muita frequência, mas sempre que o
fazia agia da maneira impulsiva que lhe era peculiar. Raramente Rhodan comentava as
acusações de Bell; via de regra recebia-as em silêncio. Já sabia que cometera um erro ao
permitir que seu filho fosse criado por pessoas estranhas. Cardif crescera sem o amor dos
138
pais. O jovem frio transformou-se num inimigo encarniçado do pai. Rhodan já tentara
promover a reconciliação. Oferecera sua mão a Cardif, junto ao túmulo de Thora. Mas sob o
olhar de todos os presentes, inclusive dos telespectadores, Cardif recusara a amizade que lhe
era oferecida. Essa cena dolorosa estava indelevelmente gravada na memória do
administrador do pequeno império, que usava o nome de solar e que estava prestes a
transformar-se num fator decisivo da luta pelo poder que se desenvolvia no interior da
Galáxia.
— Teoricamente existe a possibilidade de que Cardif se encontre em Okul. Uma vez que
de acordo com as informações que conseguimos colher, esse mundo deve ser o centro de
fabricação do entorpecente, não temos outra alternativa senão partir para o ataque.
Rhodan acabara de proferir as palavras decisivas. A época de aguentar quieto chegara ao
fim.
A vítima da aranha começava a deslocar-se na teia, exatamente em direção ao centro da
mesma.
— Provavelmente já formaram certas idéias sobre nosso procedimento, sir — disse
Freyt, que se sentia feliz porque o tema desagradável, que se desenvolvia em torno de Thomas
Cardif, não mais estava sendo mencionado. — Já tem alguma ordem definida para a Frota?
Rhodan fez um gesto de assentimento. Seu rosto expressivo adquirira vida. Os três
homens estavam conferenciando a altas horas da noite. Muita coisa podia depender das
decisões que tomassem — talvez tudo.
— As condições para a ação a ser desenvolvida contra Okul são totalmente diversas
daquelas a que estamos acostumados — disse Rhodan. — Devemos desferir um golpe
fulminante. O inimigo só deve notar nossa presença, quando já for tarde para esboçar
qualquer reação.
Bell endireitou o corpo. O cansaço parecia ter desaparecido.
— A Ironduke — disse em tom enfático. A Ironduke era uma nave de oitocentos metros
de diâmetro, da classe Stardust, equipada com o sistema de propulsão linear. Enquanto a
Fantasy tivera que dispensar parte do armamento usual, a Ironduke dispunha de todo o
arsenal de armas altamente eficientes. Depois de mergulhar no semi-espaço, não podia ser
localizada por qualquer rastreador estrutural. Não havia nenhum aparelho de localização
capaz de determinar sua posição. A nave deslocava-se numa espécie de corredor, situado
entre as dimensões. Esse corredor era criado pelo conversor inventado pelo Dr. Kalup. Um
campo de compensação absorvia as influências da quinta dimensão, que se identificava com o
hiperespaço, a tal ponto que não surgia uma desmaterialização total.
A nave linear percorria uma rota-fantasma, situada numa zona de libração onde as
influências da quarta e da quinta dimensão perdiam seus efeitos. Fazia mais de cinqüenta
anos que se conseguira arrancar o segredo do vôo linear dos invasores, vindos de outra
dimensão temporal. Isto é, dos druufs. Mas muito tempo se passara entre o tempo de
aquisição dos princípios teóricos do sistema de propulsão linear e sua realização prática,
através da construção de uma nave linear terrana.
— Você está com toda razão — disse Perry Rhodan, concordando com o amigo. — Os
campos de absorção evitarão que os antis nos localizem antes da hora. Quando emergirmos da
zona de libração, não terão tempo para esboçar uma reação planejada.
No seu íntimo, Rhodan estava convencido de que qualquer ataque contra Okul seria
inútil, a não ser que se descobrisse logo um antídoto contra o entorpecente. Não adiantava
nada arrasar um templo dos antis atrás do outro, já que o germe da doença estava espalhado
pela Terra e suas colônias.
Na melhor das hipóteses, Okul representava uma débil esperança.
Freyt e Bell pareciam não sentir essas dúvidas. Naquela hora avançada da noite, estavam
desenvolvendo um plano de batalha.
139
Rhodan sabia que havia mais alguma coisa a fazer antes que a Ironduke pudesse decolar.
O detalhe mais importante era o armamento.
Felizmente, por enquanto não havia ninguém na Frota Solar que desconfiasse das
intenções de Rhodan. Perry pretendia armar os tripulantes da Ironduke com velhas carabinas-
metralhadoras. Se estes soubessem do tal plano, ficariam indignados.
Justamente quando se tratava de enfrentar o inimigo mais perigoso do Império Solar, o
administrador pretendia utilizar armas que há muito eram consideradas obsoletas?
140
7
Muita coisa já fora dita sobre o caráter de John Emery. Dizia-se que era preguiçoso, mau,
tagarela, impertinente e egoísta. Era possível que essas acusações tivessem sua origem numa
convicção sincera, mas assim mesmo constituíam indício de falta de senso psicológico.
John Emery não passava de um talento em matéria de organização. E, nessa área,
chegara mais longe que em sua carreira na Frota Solar, onde apenas ocupava o posto de
sargento. Era bem verdade que podia orgulhar-se de pertencer a uma tropa de elite, que só
entrava em ação em casos especiais. Entretanto era a única coisa que podia ser alegada para
enaltecer suas glórias militares.
Sempre que Emery descobria que alguma pessoa conhecida dispunha de algo que lhe
parecia importante, era apenas uma questão de tempo que o objeto desejado pelo sargento
passasse às suas mãos. Na Frota já houve pessoas que quiseram imitá-lo. Alguns homens até
chegaram a manifestar o desejo de também instalar um depósito. Mas em comparação com
Emery, seus concorrentes não passavam de amadores.
O sargento trabalhava com um entusiasmo a que ninguém conseguia resistir. A causa
disso não podia ser procurada em sua constituição física, pois aquele homem pesava mais de
cem quilos e não havia em seu corpo nenhum lugar onde a ossatura se tornasse saliente. Por
outro lado, Emery não era charmoso e trabalhava sem a menor “gentileza”. Era simplesmente
um certo quê que fazia dele o que era.
A lenda — Emery já se transformara numa lenda — dizia que em seu depósito havia de
tudo, desde a trança cortada de um chinês até a obturação eletromagnética do dente de um
nativo de Ferbador.
Se havia alguma coisa que não se encontrasse no depósito de Emery, ele a arranjaria.
Conseguia satisfazer todos os seus mínimos desejos. E sua remuneração era tão sofisticada
como seu trabalho. Sempre exigia alguma peça de propriedade da pessoa que lhe confiava
alguma tarefa.
Dessa forma John Emery, sargento de uma unidade de elite da Frota Solar, transformara-
se no curso dos anos numa verdadeira potência comercial em sua área.
Segundo afirmavam seus amigos, não havia nada que pudesse surpreendê-lo.
No dia 9 de abril de 2.103, Emery sofreu um terrível choque.
Deitado em sua cama simples, estava refletindo sobre como poderia fazer com que
Eduard Gooding, um homem vindo da Nigéria, se desfizesse da máscara trabalhada a mão que
trouxera de sua terra natal. Emery não tinha nenhuma predileção especial por esse tipo de
máscara, mas o soldado Bergota estava louco pela mesma. Como Gooding tivesse
demonstrado a obstinação de um búfalo, Bergota dirigira-se a Emery, para relatar-lhe seu
insucesso.
Emery refletia tão intensamente para descobrir um meio de convencer o negro que só da
terceira vez ouviu o leve zumbido.
O sargento saiu da cama. Tinha idéias bem definidas sobre uma manhã de folga bem
repousante. E um chamado a uma hora dessas não se harmonizava com essas idéias.
Emery ligou a tela do videofone, que fora construída por ele mesmo, e esperou que o
aparelho se aquecesse.
Finalmente viu o rosto contrariado de um homem, que evidentemente não tinha uma
opinião muito favorável sobre o receptor construído por Emery.
— Com o senhor a coisa sempre é tão demorada? — perguntou em tom indignado.
O sargento fitou-o com uma expressão que representava uma mistura de irritação mal
disfarçada e de um débil senso de humor.
— Às vezes isso acontece — respondeu.
141
— O senhor tem de interromper a folga — disse o homem.
Só agora Emery viu que o sujeito da tela usava uniforme. Fez uma tentativa desastrada
de tornar mais apresentável seu pijama, repuxando-o sobre a barriga. Depois disso enfiou o
indicador da mão direita na orelha.
— Está sentindo alguma coceira? — perguntou o homem uniformizado, em tom frio.
Emery teve vontade de dizer que podia sentir coceira em vários lugares, sem que
ninguém tivesse nada com isso. Mas limitou-se a bocejar gostosamente.
— Apresente-se imediatamente ao seu comandante — prosseguiu o homem de
uniforme. — Sua unidade deverá reunir-se dentro de três horas no porto espacial.
A primeira idéia, que lhe veio a mente, estava ligada à sua cama. E a segunda dirigia-se ao
infeliz Bergota, que teria de ficar por um tempo indefinido sem a máscara que desejava.
Finalmente, pensou na folga tão curta.
— Está bem — disse em tom contrariado.
Fez uma ligação e pediu a um amigo que cuidasse de seu depósito de preciosidades. Não
queria que ficasse abandonado durante sua ausência. Depois disso procurou entrar em
contato com Bergota.
Dali a uma hora dirigiu-se ao gigantesco porto espacial de Terrânia. Ainda não sabia que
era um entre cinco mil homens que partiriam na Ironduke. Era uma novidade perfeitamente
suportável.
Mas havia um detalhe que não conhecia: seria armado com uma carabina automática,
antiquada... e há dois anos tentava em vão incorporar tal arma ao seu estoque de
preciosidades!
***
Um tanto aborrecido, Emery contemplava o céu nublado de abril. À sua frente estendia-
se o porto espacial de Terrânia. Era um homem experimentado, e por isso sabia que algo de
especial devia ter acontecido para que sua folga fosse interrompida.
Até então ele e os outros homens, que participariam da ação, não haviam recebido
informações mais detalhadas. Estavam de pé, próximos a um grande pavilhão, que ficava em
local um tanto afastado do gigantesco campo de pouso. O comandante apresentara-se com o
rosto compenetrado, o que levou Emery à suposição de que o tenente também não sabia em
que local a unidade de elite entraria em ação.
Finalmente apareceu outro homem.
E este conhecia o destino da viagem.
Era uma das pessoas que tinha olhos de lince e sabia como lidar com qualquer problema.
Estava acompanhado dos oficiais pertencentes à tripulação da nave. Ele mesmo era de
estrutura gigantesca.
Seu nome era Jefe Claudrin.
Sempre que aquele homem nascido em Epsal falava, sua voz parecia o rugido de um
trovão longínquo. Dispunha de forças titânicas, que se tornavam eficientes principalmente nos
planetas, onde a gravitação era inferior à reinante em Epsal.
O homem ao lado de Emery, chamado Hans Berker, cutucou o sargento. Emery limitou-se
a resmungar.
— É Claudrin — disse Berker. — Isso significa que iremos na nave linear.
Claudrin quase não deu nenhuma atenção aos soldados. Prosseguiu em sua caminhada,
sem dizer uma única palavra. Um dos oficiais conversou com o Tenente Henderson, que era o
comandante da unidade especial. A contribuição de Henderson para a conversa consistia
quase exclusivamente em gestos afirmativos e em respeitosos “sim, senhor”.
Henderson comandava apenas parte dos cinco mil homens que partiriam na Ironduke.
Seu grupo estava treinado em lutas em planetas estranhos, onde reinavam condições hostis à
142
vida. Dessa forma Henderson e seus homens pertenciam à infantaria da Frota Solar. Sua única
ligação com a navegação espacial consistia no fato de que uma espaçonave os levava de um
mundo a outro.
Enquanto Henderson ainda conversava com o oficial da nave, um veículo de carga
equipado com esteiras aproximou-se. O motorista do veículo apresentava uma expressão
indiferente. Estacionou perto dos homens, e o oficial apontou para ele e depois para os
soldados.
Henderson aguardou um pouco, enquanto examinava seus subordinados, sem dizer uma
palavra. Emery sentiu a inquietação que o rodeava.
— Atenção! — gritou Henderson. Berker pigarreou, e Emery lançou-lhe um olhar de
advertência.
— Sargento! — ordenou Henderson.
Emery adiantou-se. Possuía a calma discreta do soldado profissional: não se abalava com
nada.
— Sim, senhor.
— Pegue alguns homens e distribua as armas.
— Às ordens, sir! — disse a voz arranhenta de Emery.
Henderson virou-se sobre o calcanhar. O sargento fez um sinal para que três soldados se
aproximassem.
— Temos de levantar a lona — disse o condutor do veículo de carga em tom contrariado.
— Recebemos ordens para que as armas não ficassem à vista.
Soltou as correias e, ajudado por Emery, levantou a cobertura de plástico. Emery viu as
armas.
— O senhor não se sente bem? — perguntou o motorista, em tom interessado.
O sargento deixou cair o queixo e olhou fixamente para dentro do compartimento de
carga do veículo.
— Não... não é possível — disse depois de algum tempo.
O motorista do veículo fitou-o com uma expressão estranha e recuou um passo. Os
soldados pareciam indiferentes a tudo.
— Será que o senhor vê a mesma coisa que eu vejo? — perguntou o sargento, em tom
cauteloso.
Emery fechou e voltou a abrir os olhos por três vezes. Passou a mão pela testa e mordeu
a língua. Com um gesto hesitante apontou para as armas.
— Tem certeza de que recebeu ordens para entregar-nos estas armas? — perguntou. —
Não terá havido alguma troca?
O motorista do veículo brindou-o com uma fala prolongada, durante a qual ressaltou
expressamente que não havia nada mais impossível que uma troca desse tipo. Informou o
sargento de que todos os cinco mil soldados receberiam armas desse tipo.
— O senhor se espantará ainda mais quando vir a munição — disse ao concluir.
Emery realmente se sentiu espantado. Além das antiquadas carabinas automáticas
entregaram-lhe cartuchos de plástico, cujos projéteis explosivos, segundo se dizia, eram
totalmente antimagnéticos.
Se John Emery não soubesse que o comandante de sua nave seria Jefe Claudrin, poderia
jurar que iriam fazer uma caçada cósmica às lebres. Mas, da forma que estavam as coisas, a
presença daquelas armas patriarcais devia ter seus motivos.
Menos de uma hora depois disso, o grupo de Henderson subiu a bordo da Ironduke. John
Emery, que já percorrera centenas de quilômetros tentando conseguir uma carabina
automática, teve de ver mais de cinco mil armas desse tipo a bordo do veículo espacial.
Para Emery, isso representava um terrível golpe moral, face ao qual resolveu
desmanchar seu depósito de preciosidades assim que voltasse da viagem.
143
***
145
8
A água era rasa e pantanosa. Era tão quente que fumegava e borbulhava. Onde terminava
o pântano começava a selva. Era um mundo colorido e cintilante, feito de árvores, flores,
trepadeiras, samambaias e outras plantas. As raízes das árvores tombadas surgiam acima do
lodo. O ar estava quente e abafado.
Entretanto havia vida nesse mundo. E vida inteligente. Era bem verdade que vinha de
outro planeta, mas sempre era uma forma de vida inteligente.
O céu apresentava-se em cor amarelenta. Só mesmo dali podia-se contemplá-lo. Quem se
encontrasse na selva não o enxergaria.
O homem que deslocava o barco tosco, usando uma vara que encostava a intervalos
regulares ao fundo do pântano, não mostrava-se como quem tivesse vindo a esse lugar tão-
somente para contemplar as nuvens.
Aquele homem solitário fazia a canoa avançar à força de vigorosos empurrões. A
maneira pela qual olhava a paisagem provava que conhecia o lugar.
Era alto e esbelto; quase chegava a ser magro. Acima do nariz adunco havia um par de
olhos cinzentos. No rosto havia uma expressão aristocrática.
O rosto era de Perry Rhodan!
Seu corpo, sua postura e seus movimentos, tudo isso parecia ter sido tomado de
empréstimo de Rhodan.
Acontece que aquele homem não era Rhodan. Seu nome era Thomas Cardif, o filho do
grande terrano. Embora de uma forma diferente, sua vida fora tão variada e cheia de
aventuras como a do pai.
Mas havia uma diferença.
Perry Rhodan lutava pela Terra!
E Thomas Cardif lutava contra.
O sangue arcônida que corria em suas veias fazia com que não envelhecesse tão depressa
como os terranos. Naquele momento parecia-se com o pai sob todos os pontos de vista. Seria
impossível encontrar uma diferença visível entre um e outro.
Cardif levou o barco em direção à margem. Com grande habilidade fê-lo passar entre
duas gigantescas raízes. Ouviu o canto dos pássaros, vindo da selva. Milhões de insetos
dançavam sobre a água. Subiam e desciam em densas nuvens. Na margem havia um lugar raso
e arenoso. Cardif tomou esta direção.
Naquele lugar esperava-o um pequeno avião, semelhante a um helicóptero. Um sorriso
sarcástico surgiu no rosto de Cardif. Ao lado da aeronave havia um homem envolto numa
capa, agitada pelo vento. Mesmo visto de longe, parecia taciturno e fechado. Segurava uma
estranha arma de radiações.
No seu aspecto exterior, o homem se parecia com um arcônida de puro sangue. Acontece
que era um sacerdote da seita de Baalol — um anti. Ao que se supunha, os antis eram
descendentes de arcônidas emigrados há muito tempo, e que haviam sofrido mutações
paranormais.
Cardif chegou ao porto natural e saltou do barco. Amarrou-o e percorreu lentamente a
distância que o separava do avião.
O anti baixou a arma. Seus olhos sombrios não mostravam a menor emoção.
— O senhor acha que esse tipo de excursão é muito interessante? — perguntou,
dirigindo-se a Cardif. — Se cair do barco, estará perdido. Nesse caso, nem mesmo esta arma
poderia salvá-lo.
— Já fiz coisas muito mais perigosas — disse Cardif.
— Poderíamos ter sobrevoado o pântano com o avião — ponderou o sacerdote.
146
Cardif lançou um olhar de desprezo para a máquina voadora. Apontou para a água.
— Só existe uma possibilidade de localizar os animais — disse. — O senhor deveria
saber disso melhor que qualquer outra pessoa, Hekta-Paalat.
O aspecto de Paalat tornou-se ainda mais sombrio. Se é que havia alguma amizade entre
ele e o terrano, os dois faziam questão de não revelá-la. Mas Cardif não deixou que as palavras
mordazes do anti o abalassem.
— Estamos construindo um barco especial — lembrou Paalat. — Se tivesse esperado
mais alguns dias, sua excursão com essa canoa feita pelo senhor teria sido desnecessária.
Um estranho brilho surgiu nos olhos de Cardif.
— Esperar — disse em tom amargurado. — Já esperei demais. Agora é minha vez. Ainda
acontece que sempre sugeri que os animais fossem criados em poças d’água. Dessa forma não
teríamos de caçá-los constantemente.
O anti ouvia-o com uma visível contrariedade.
— Todas as tentativas de manter os animais vivos num ambiente confinado falharam por
completo. Vegetaram por alguns meses e acabaram morrendo. Enquanto não soubermos o
motivo, será inútil tentar criá-los.
O filho de Rhodan entrou no avião, seguido pelo sacerdote. O calor quase insuportável
fazia-os transpirar.
— Se formos lentos e nos mantivermos à espera, não conseguiremos vencer a Terra —
disse Cardif, em tom impaciente. — Devemos atacar em vários lugares ao mesmo tempo,
recorrendo a todos os meios.
Pela primeira vez algo parecido com um sorriso esboçou-se no rosto de Hekta-Paalat.
Dobrou a manta sobre as pernas.
— Existem vários métodos de derrotar um inimigo — disse. — Nem sempre o mais
rápido é melhor. A impaciência do senhor tem sua origem no ódio que sente por seu pai. A
impaciência e o ódio são sentimentos que fazem com que a pessoa aja irracionalmente.
Cardif respondeu em tom de desprezo:
— Normas do Ocultismo! Sua raça já se acostumou tanto a tais lemas que não consegue
livrar-se dos mesmos. O que importa é golpear no momento exato. Será que minhas
recomendações, que representaram um apoio na luta contra Árcon e a Terra, têm algo de
irracional? De forma alguma! No momento até sou o maior trunfo desse jogo oculto. O filho do
homem mais importante do Império Solar está do lado de vocês.
— Evidentemente apenas sob o ponto de vista estratégico — disse Hekta-Paalat, com um
sarcasmo mordaz.
Cardif não respondeu; deu partida no motor. O avião ergueu-se do solo com um ruído
quase imperceptível. Cardif estava acostumado a ouvir respostas irônicas. Raramente estivera
do lado da Justiça, mas nem mesmo os injustos compreendiam que queria destruir seu pai.
Aproveitavam seus sentimentos e seus planos, mas não os respeitavam. Apenas o respeitavam
na sua qualidade de colaborador inteligente e capaz.
147
9
***
Desde o início de sua carreira, Reginald Bell tinha idéias bem definidas sobre a disciplina.
Antes de mais nada, não era amigo do formalismo uniformizado. Achava que um homem de
colarinho aberto pode combater tão bem, ou até melhor, que um soldado impecavelmente
trajado.
Cerrou os olhos, abriu o botão superior da camisa, esfregou o peito e disse:
— Estamos num beco sem saída.
Sem dúvida foi a afirmação mais categórica, formulada no interior da Ironduke, sobre o
resultado até então alcançado por sua missão. E foi também a mais exata.
O quadro oferecido pelos aparelhos óticos e de localização continuava inalterado. A nave
linear, que era um veículo espacial de oitocentos metros de diâmetro, pertencente à classe
Stardust, continuava numa área que ainda pertencia ao sistema da Via Láctea. Embora as
estrelas retratadas na tela panorâmica sempre fossem outras, sob o ponto de vista ótico não
havia a menor modificação. O vôo da Ironduke conferia um triste significado à lendária
procura de uma agulha num palheiro.
— Estamos num beco sem saída.
Nem todas as pessoas que se encontravam a bordo da nave compreenderam todo o
sentido trágico dessas palavras. De repente, a chance de resistir aos antis, que se oferecera à
Terra, voltara a ser mínima. Se a Ironduke regressasse sem ter conseguido nada, o resultado
seria uma depressão profunda e generalizada. Era bem verdade que os cientistas terranos
trabalhavam noite e dia, a fim de encontrar um antídoto para a droga diabólica. Porém
ninguém poderia dizer se seus esforços seriam coroados de êxito.
Jens Averman, o ossudo técnico de goniometria da Ironduke, estremeceu ao ouvir as
palavras de Bell. Lançou um olhar para Perry Rhodan, que era responsável pela ação. Até
mesmo Jefe Claudrin aguardava um pronunciamento de Rhodan. Enquanto o administrador se
encontrava a bordo, era ele quem exercia o comando.
— As informações que Miguel Desoga nos enviou de Lepso contêm um erro num ponto
decisivo, ou então o Dr. Nearman começou a delirar pouco antes de morrer. Já começo a
duvidar da correção das coordenadas fornecidas por ele. Não devemos esquecer-nos de que
nem mesmo os velhos catálogos de Árcon mencionam o planeta Okul.
Rhodan fitou os homens com uma expressão séria e concluiu:
— Ao que tudo indica deixamos arrebatar-nos por uma informação falsa.
Não havia necessidade de explicar a quem quer que fosse qual era o significado dessas
palavras. A ação chegara ao fim. Alguns terranos se haviam arriscado a executar alguns
movimentos no interior da teia de aranha e ficaram irremediavelmente perdidos. O plano dos
antis parecia mais seguro que nunca. Era apenas uma questão de minutos que Rhodan
ordenasse o regresso. O regresso à Terra, a qual, em virtude do criminoso trabalho de sapa da
150
seita de Baalol, vinha sendo transformada progressivamente numa concentração de viciados
em entorpecentes.
Claudrin disse com a voz estranhamente abafada:
— Quer dizer que as buscas serão suspensas?
— Na Terra, precisam desesperadamente de nós — respondeu Rhodan. — Não adianta
perder mais tempo à procura de Okul.
Gucky aproximou-se, arrastando os pés. Seus sentidos paranormais não deixaram de
perceber que seu grande amigo se sentia desesperado. Não houvera nenhum combate, mas a
missão da Ironduke fracassara e se transformara numa derrota para a Humanidade.
— Fizemos o que estava ao nosso alcance, Perry — exclamou o rato-castor, com a voz
aguda.
— Gucky está com a razão, sir — disse John Marshall, cuja tranquilidade continuou
inalterada. — Não se esqueça de que existem outras maneiras de atacar os antis.
— Sem dúvida — confirmou Rhodan, em tom amargurado. — Só falta encontrá-los.
O vulto gigantesco de Jefe Claudrin passou por Bell.
— Quais são as ordens, sir?
Rhodan levantou-se e aproximou-se da tela panorâmica. O brilho das estrelas era frio e
indiferente. Em meio ao silêncio reinante na sala de comando, os homens aguardavam a
decisão de Rhodan.
O administrador entesou o corpo. O rosto continuou impassível.
— Vamos desistir — disse com a voz arrastada.
151
10
Valmonze levantou o copo e fez um gesto para Thomas Cardif. Hekta-Paalat e Rhabol
acompanhavam tudo em silêncio. Não simpatizavam com os saltadores e só os toleravam, pois
eram sócios.
— Possuo alguma experiência em matéria de entorpecentes — disse Valmonze,
passando a mão pela barba e piscando para o filho de Rhodan. — Há um ano fizemos uma
tentativa de usá-los, a fim de minarmos a influência da Terra na Galáxia. Na oportunidade
vendemos os entorpecentes terranos aos outros planetas. Indiretamente todos culpavam a
Terra. Em virtude de um acaso infeliz o plano não deu certo.
O patriarca dos saltadores não mencionou o fato de que o acaso infeliz foi devido, em
grande parte, a um erro cometido por ele.
— Apesar de tudo devíamos pensar sobre minha proposta — disse Cardif. — A esta hora,
os habitantes da Terra já conhecem os perigos do liquitivo, e por isso podemos suspender as
remessas. Segundo os cálculos, o número dos viciados chega a duzentos milhões, só na Terra.
Pelo que sei de Rhodan, isso bastará para exercer pressão sobre ele.
Valmonze bebeu ruidosamente e lançou um olhar indagador para os sacerdotes. Já
constatara que o terrano pretendia desenvolver uma ação implacável contra os seres de sua
raça. Sua fuga arrojada de Lepso não modificara sua opinião. Cardif odiava seu pai, e estendia
esse ódio à Terra.
— Não. Decolarei com a Val I — prosseguiu Valmonze, ao notar que nenhum dos antis se
dignava a dar uma resposta. — Decolarei com liquitivo ou sem ele. Não posso perder tempo
esperando por aqui, até que alguém tome uma decisão. Sugiro que continuemos a abastecer
todos os mundos com o licor.
Cardif sorriu.
— Respeito seu tino comercial, meu caro. Acontece que o senhor se esquece que lemos
outros planos.
Valmonze era igual aos outros saltadores: estava disposto a lutar ferozmente por
qualquer vantagem econômica. Enquanto houvesse possibilidade de continuar a vender o
liquitivo, não via por que os fornecimentos deveriam ser suspensos por razões estratégicas.
Tinha bastante senso diplomático para não exprimir abertamente sua opinião. Mas como
insistisse em decolar imediatamente com a Val I, obrigava os antis a tomarem uma decisão
rápida. Contava com a mentalidade dos sacerdotes, que costumavam refletir bastante antes de
realizarem qualquer modificação em seus planos.
Baaran, que era um dos mais velhos entre os antis presentes naquele momento, fez um
gesto de assentimento.
— O senhor vai decolar — disse em tom frio.
Cardif e o patriarca inclinaram o corpo para a frente.
— E levará o liquitivo — acrescentou Baaran. — Por enquanto as remessas não serão
suspensas.
Valmonze não se esforçou para disfarçar a sensação de triunfo. Conseguira um bom
negócio, e o resto não lhe importava. Cardif fitou o mercador em silêncio, enquanto este
esvaziava o copo e passava a mão pelos lábios.
— Sua hora também há de chegar, meu jovem — disse em tom condescendente,
dirigindo-se a Cardif.
— Sem dúvida há de chegar — interveio Hekta-Paalat, em tom zangado. — Dentro em
breve decidiremos sobre a suspensão dos fornecimentos.
O filho de Rhodan levantou-se e saiu sem dizer uma palavra. Atravessou um corredor e
atingiu a sacada que circundava a abóbada de aço. Aqui em Okul os antis haviam abandonado
152
as construções em forma de pirâmide. As abóbadas de aço eram mais práticas. Do lugar em
que se encontrava, Cardif via o oceano, em cujas orlas praieiras começava a selva. Os
sacerdotes haviam levantado suas construções num planalto. Destruíram toda a vegetação
que lhes representasse um obstáculo.
A Val I estava pousada no espaçoporto ultramoderno. Os saltadores não costumavam
pousar com suas gigantescas naves de formato cilíndrico. Utilizavam barcos espaciais
auxiliares. Acontece que a Val I levava uma carga de entorpecente que teria de ser transferida
para outras naves, e por isso tivera que aterrissar.
As instalações de condicionamento de ar, situadas sob a amurada da sacada, sopravam
ar frio para cima de Cardif. Apesar disso, Thomas sentiu o calor abafado da selva próxima.
O mestiço galáctico não poderia imaginar que, dali a pouco, a calma que desfrutava seria
perturbada.
Indiretamente a Val I seria responsável por esse fato, mas Cardif nunca saberia disso.
***
***
Foi por puro acaso que o Major Hunt Krefenbac, imediato da Ironduke, olhava por cima
do ombro de Jens Averman no momento exato em que se verificou a reação dos rastreadores
estruturais.
O major e Averman gritaram a uma voz:
— Pare, sir!
Averman anotou apressadamente a intensidade da reação, a distância e a duração.
Rhodan, que acabara de dar ordem para regressar à Terra, avançou e colocou-se à frente do
aparelho. Jefe Claudrin, que tinha apenas um metro e sessenta de altura, parecia um barril ao
lado de Rhodan. Até Bell tornava-se esbelto ao lado de Jefe.
Carlos Riebsam, o matemático, colocou-se junto ao computador da nave. Certamente
imaginava que haveria trabalho para ele.
Gucky foi o único a continuar em sua poltrona, em atitude sonolenta, como se não tivesse
nada com aquilo.
— Localizamos um salto, sir! — exclamou Averman. — Sem dúvida trata-se de uma
espaçonave. Os dados são típicos.
— Apurou a distância? — perguntou Rhodan.
— Sim senhor. Os dados exatos só podem ser apurados pela calculadora.
Como todos os operadores de rádio, Averman tinha uma aversão instintiva pelas
máquinas cibernéticas. Nutria um receio inconsciente de que um dia seu trabalho poderia ser
executado por um cérebro positrônico. Dessa forma tornava-se perfeitamente compreensível
que desse o nome de calculadora ao computador de bordo, que afinal era um cérebro
positrônico, dotado de milhões de variantes.
153
— Se por aqui há espaçonave, também deve haver planeta. Afinal a nave deve ter vindo
de um — disse Bell.
— Talvez o planeta seja Okul — retumbou a voz de Claudrin. — Aposto que essa nave
vem de Okul.
Olhou em torno, como se quisesse verificar se alguém duvidava do que acabava de
afirmar.
Não havia ninguém que estivesse disposto a fazer a aposta. Muito tensos, os homens
acompanharam os cálculos. Dentro de alguns minutos Carlos Riebsam poderia realizar a
primeira programação do computador positrônico. Hunt Krefenbac entregou-lhe os dados
apurados por Averman.
Perry Rhodan acompanhava o trabalho do matemático sem dizer uma palavra. Se a
suposição do homem de Epsal fosse correta, seria apenas uma questão de tempo encontrarem
Okul.
Perry Rhodan sabia perfeitamente que um ataque contra o misterioso planeta poderia
representar a morte de seu próprio filho. Sentimentos conflitantes manifestaram-se em seu
interior. Não era nenhum segredo que Thomas Cardif procurava a todo custo matar Rhodan,
mesmo que esse custo representasse o Império Solar.
Para Rhodan, o inverso era inconcebível. Estava colocando em risco a vida do filho, que
constantemente lhe criava terríveis dificuldades. No entanto refletia para encontrar uma
possibilidade de destruir os antis sem arriscar a vida do filho.
O administrador sabia perfeitamente que, assim que encontrassem Okul, daria ordem de
atacar. A vida do filho não poderia impedi-lo de agir dessa forma. Não era a primeira vez que
Rhodan se defrontava com a decisão de sacrificar umas poucas vidas em benefício da
Humanidade. E sempre decidira a favor da última.
Nos momentos de tranquilidade perguntara várias vezes a si mesmo se o plano de
conduzir a Humanidade, sã e salva, através de todos os perigos, em direção ao poder galáctico,
não se transformara numa obsessão em que se empenhava com a fúria de um louco. Sentia-se
aliviado ao cercar-se de homens de cabeça fria, que concordavam com seus planos e os
apoiavam sem restrições. Homens como Freyt, Mercant, Bell e Deringhouse não eram
sonhadores dispostos a acompanhar um aventureiro político.
Essas reflexões fizeram com que Rhodan tivesse certeza de que estava trilhando o
caminho correto. Vez por outra sentia-se torturado pela dúvida. Mas não seria isso apenas
uma prova de que estava cônscio das suas responsabilidades e ponderava cuidadosamente os
seus atos?
A seita de Baalol estava prestes a colocar a Humanidade no estágio da escravidão. O filho
de Perry encontrava-se em suas fileiras, mas isso apenas representava um golpe duro do
destino. Quando desse suas ordens, Rhodan se obrigaria a fazer de conta que Thomas Cardif
não existia.
A voz fria do Dr. Riebsam soou.
— Pronto — disse o matemático. — Sem dúvida havia um pequeno erro nos dados
fornecidos pelo Dr. Nearman.
— Não procure torturar-nos — advertiu Bell.
Riebsam agitou o cartão perfurado que retirara do computador.
— Erramos o alvo por pouco menos de quatro anos-luz — principiou Riebsam. — Isso,
naturalmente, se o ponto de imersão da nave desconhecida corresponder a uma posição
próxima à de Okul.
Claudrin deslocou-se pesadamente em sua direção. Riebsam podia olhar o comandante
de cima para baixo, mas não poderia olhar para além do mesmo. A largura do corpo do Major
Claudrin era quase igual à altura.
O matemático entregou-lhe a fita de plástico.
— Vamos dirigir-nos a este ponto, sir — sugeriu Claudrin.
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Rhodan voltou a ser apenas o homem de raciocínio frio. Balançou a cabeça.
— Não, major — disse. — Observaremos, em silêncio, ao menos por duas horas. Afinal,
sempre é possível que apareçam outras naves.
Um profundo suspiro fê-lo virar-se abruptamente. Gucky lançou-lhe um olhar de
recriminação e apontou sua poltrona incômoda.
— Vamos esperar mais ainda? — gemeu. — Já estou com bolhas.
— Bolhas, tenente? — perguntou o Major Krefenbac.
O rato-castor fez uma careta. Não suportava ser chamado de tenente. Ergueu-se
ligeiramente da poltrona, respirou com dificuldade e lastimou-se terrivelmente.
— É horrível — disse.
— Dirija-se depressa à enfermaria, Tenente Guck — ordenou Krefenbac com o rosto
impassível. — Quero que um caso sério como este seja tratado imediatamente.
O rato-castor não disse uma palavra. Pôs à mostra o dente roedor. Logo agora, que as
coisas começaram a ficar interessantes, teria que abandonar a sala de comando?
— Acho que aguento mais um pouco — disse com a voz mais tranqüila. Encolheu-se na
poltrona.
— O que acha do estado do tenente, sir? — perguntou o major, dirigindo-se a Perry, que
sorria.
— Acho que meus conhecimentos médicos não são suficientes para que eu me
responsabilize pelo mesmo — disse Rhodan, em tom sombrio. — Por isso sou de opinião que
o Tenente Guck deve ficar sob os cuidados do Dr. Gorsizia.
— Muito bem, Guck — disse o Major Krefenbac, em tom enérgico. — Apresente-se ao Dr.
Gorsizia.
Gucky apalpou cuidadosamente as costas. Conseguiu esboçar um sorriso alegre.
— Desapareceram — piou.
— Desapareceram? — perguntou Rhodan, em tom de espanto. — Quem?
— As bolhas — respondeu Gucky.
Rhodan não estava em condições de contradizê-lo, pois ele mesmo acabara de afirmar
que seus conhecimentos médicos não eram suficientes para formular qualquer juízo sobre a
“doença” de Gucky.
— Quer dizer que vamos aguardar por algum tempo — repetiu Rhodan. — Enquanto
isso vou me comunicar com as diversas unidades. Deverão saber contra quem lutaremos e
quanta coisa dependerá do resultado da luta.
Claudrin e Bell afastaram-se, para que Rhodan pudesse tomar lugar à frente do aparelho
de intercomunicação.
O discurso do administrador durou doze minutos. Não teve a menor dúvida em oferecer
um quadro dramático da seriedade da situação. E informou-os sobre os motivos por que
apenas uma nave terrana, a Ironduke, participava da perigosa missão.
Sua voz foi ouvida em todos os cantos da nave.
Rhodan omitiu uma frase. Ansiava por proferi-la, mas dominou seus sentimentos.
“Não atirem contra terranos”, foi o que pensou. “Um deles pode ser meu filho.”
Refletia constantemente sobre o problema que o atormentava. Sob o ponto de vista
puramente objetivo, Thomas Cardif mereceria a morte.
Acontece que os sentimentos de um pai jamais conseguem ser objetivos, cruéis.
***
John Emery apalpou o traje de combate ; arcônida, no qual os técnicos terranos haviam
introduzido muitas melhorias. Agora, seu sistema de propulsão antigravitacional permitia à
pessoa levitar pela atmosfera de um planeta e modificar à vontade a direção do deslocamento.
A qualquer momento poderia tornar-se invisível por meio do defletor. Apesar disso Emery
155
tinha um pressentimento nada agradável. Não sabia se cinco mil homens seriam capazes de
conquistar um planeta ocupado pelos antis.
Afinal, o que eram cinco mil homens num mundo de tamanho médio?
Só podiam fazer votos de que os sacerdotes não se tivessem espalhado por todo o
planeta. Só teriam uma chance de vencer se estes estivessem concentrados numa área
reduzida.
Quando foi acordado por Berker, que chamou sua atenção para a fala de Rhodan, Emery
havia dormido pouco mais de três horas. O fato de que o administrador, em pessoa, se
encontrava a bordo realçava a importância da missão. A fala de Rhodan foi breve, mas Emery
teve a impressão de senti-la preocupada.
Os homens ao seu redor estavam acordados. Alvarez e Dreyer jogavam uma partida de
xadrez convencional. Henderson lia e Bowling escrevia uma carta ou diário. Mas a maior parte
dos homens estava deitada de costas, fitando o teto.
Emery não teve a menor dificuldade de imaginar o que pensavam os soldados. Desde
tempos imemoriais, toda batalha era precedida da indagação relativa à sobrevivência. John
Emery era soldado profissional; os raciocínios filosóficos lhe eram estranhos. Apenas vez por
outra experimentava um sopro ligeiro de uma estranha sensação, que lhe incutia uma repulsa
violenta contra qualquer tipo de luta.
— Ainda bem que o chefe está conosco
— observou Berker, que se encontrava a seu lado.
O chefe era Perry Rhodan. Esse homem experimentado, que conduzira inteligentemente
inúmeras batalhas cósmicas, sem dúvida os levaria à vitória na luta contra os antis.
— Além disso, temos mutantes a bordo — disse Emery. — Os antis terão uma surpresa.
A Ironduke corria vertiginosamente para o destino...
11
156
Três planetas gravitavam em torno do sol sem nome. A Ironduke penetrou no sistema,
protegida pelo campo de absorção da sexta dimensão. Nenhum goniômetro ou rastreador
seria capaz de registrar sua presença.
O segundo mundo do sistema era Okul.
— Conseguimos — disse o Major Hunt Krefenbac, que se encontrava na sala de
comando. — Todas as informações fornecidas pelo Dr. Nearman aplicam-se a este planeta. Se
emergimos num ponto errado, isso foi devido exclusivamente a um erro das coordenadas.
— Colocar em funcionamento os rastreadores de matéria e de energia — ordenou
Rhodan.
A nave esférica entrara numa órbita estável em torno de Okul.
— Ordem cumprida, sir! — exclamou Jens Averman.
— Tentar a localização goniométrica. — disse a voz de Rhodan.
Averman começou a manipular seus aparelhos. Okul possuía um movimento de rotação
independente. Por outro lado, os aparelhos de localização da Ironduke eram capazes de
atingir uma área extensa. Por isso Rhodan conseguiu, num curto espaço de tempo, dados
preciosos sobre o que acontecia na superfície desse mundo.
Depois de a nave ter contornado o planeta pela segunda vez, o ponteiro do indicador de
massa movimentou-se.
— Localização, sir! — exclamou Averman. — Parece que há alguma coisa lá embaixo.
Registramos descargas energéticas de intensidade extraordinária.
— Desça mais um pouco, major — ordenou Rhodan ao homem de Epsal.
Não teve necessidade de explicar a Claudrin o que ele deveria fazer. O major conhecia
seu serviço. Dali a dez minutos não havia mais ninguém a bordo que não soubesse o que fora
descoberto.
Em plena selva, junto de um oceano, havia sessenta e sete abóbadas de aço de dimensões
imensas.
— É uma cidade! — exclamou Bell, em tom exaltado. — Uma cidade de aço. Os antis têm
senso prático nas suas construções, desde que não queiram impressionar ninguém.
— Aqui puderam dedicar-se tranquilamente às suas atividades criminosas — disse
Rhodan. — Lá embaixo são produzidas quantidades gigantescas de liquitivo. Acho que já
chegou a hora de acabarmos com isso.
Claudrin perguntou com a voz grave:
— Vamos atacar, sir?
— Mande todos os homens entrarem em forma, próximos das eclusas. Diga-lhes que
vistam os trajes de combate. Devem ligar o propulsor antigravitacional. Explique-lhes como
devem usar os diversos tipos de arma. Os campos defensivos individuais dos antis só podem
ser atravessados pelos projéteis de plástico.
Bell passou a mão pelo cabelo rebelde. Fez um sinal para os homens da sala de comando.
— O espetáculo vai começar — disse à sua maneira pouco convencional.
***
Casnan viu um ponto escuro no céu. Esfregou os olhos com ambas as mãos e voltou a
olhar para cima. Agora eram três pontos. Casnan estava petrificado. De repente ouviu uma voz
exaltada, vinda do outro lado da sacada. Alguém correu apressadamente sobre o piso
gradeado.
Outros pontos haviam aparecido. Eram centenas. Incrédulo, Casnan fitou o céu límpido.
Segurou a manta.
Naquele instante, uma gigantesca esfera surgiu sobre a cidade abobadada. Era ela que
cuspia os “pontos” que desciam. Naquele momento, Casnan compreendeu o que havia
acontecido.
157
Aquela esfera era uma espaçonave terrana, que se aproximara sem ser notada. Milhares
de homens caíam sobre a reserva dos antis.
— Alarma! — berrou Casnan, desesperado.
Seu grito foi abafado pelo uivo das sereias de alarma.
Finalmente, o pessoal dos postos de vigilância notara a invasão. Casnan preferiu não
lançar outro olhar sobre a desgraça que se aproximava.
Entrou apressadamente na abóbada. Viu-se acolhido por um longo corredor. Outros
sacerdotes saíram de várias salas. Todos pareciam muito perturbados. A maior parte deles
nem sequer parecia conhecer o motivo do alarma.
Naquele instante, uma voz saída dos alto-falantes, espalhados por todos os cantos,
parecia chicotear o ambiente.
— Estamos sendo atacados por uma nave terrana. Todos devem dirigir-se
imediatamente aos seus postos. Devemos procurar destruir os atacantes, antes que consigam
pousar.
A confusão cresceu. Casnan esbarrou em outro sacerdote que se precipitou para o
corredor.
— Terranos? — fungou. — Quantos são?
Casnan não perdeu tempo com explicações. Continuou a correr.
— Suas armas energéticas não conseguem romper nossos campos defensivos individuais
— disse a voz pelos alto-falantes.
Os homens recuperaram a capacidade de raciocínio. Casnan passou a correr mais
devagar. Era verdade. Os terranos haviam perdido a luta antes de pousarem. Não poderiam
atacar cada um dos sacerdotes, que eram mais de mil, com os pesados canhões de sua nave. E
as armas portáteis de radiações não eram capazes de romper os campos energéticos dos antis.
A atividade mental dos sacerdotes influenciava a estrutura dos campos defensivos individuais.
Um sorriso de triunfo surgiu no rosto de Casnan. Tomou uma decisão. Pegaria uma arma
e sairia para a sacada. Os terranos se ofereciam como ótimos alvos, enquanto ele mesmo era
praticamente invulnerável.
Um chiado fê-lo virar-se apressadamente. Bem acima de sua cabeça, uma mancha
incandescente branca surgiu no teto amplo. Cresceu rapidamente. O metal derretido começou
a pingar. Casnan soltou um grito. Sentiu o cheiro do plástico queimado. Atrás dele, um
sacerdote começou a disparar contra a abertura que se formava.
— Já estão sobre os nossos telhados! — gritou alguém.
“Estão abrindo buracos na abóboda”, pensou Casnan, apavorado.
No seu subconsciente sentiu uma espécie de admiração pelo arrojo dos terranos. Apesar
do êxito inicial, aquilo não passava de uma missão suicida.
O número dos buracos aumentou. Casnan continuou a correr. Antes que o primeiro
terrano entrasse na abóboda, queria ter uma arma na mão.
***
Ao lado de John Emery, pairavam cerca de vinte homens que não pertenciam à sua
unidade. Abaixo, viu o clarão dos primeiros tiros. As construções em abóbada pareciam tigelas
emborcadas. Acima delas, viu uma enorme sombra ameaçadora.
“É a Ironduke”, refletiu o sargento.
Por enquanto o inimigo não havia revidado. Conseguiram pegar os antis de surpresa.
Emery tomou a direção do telhado mais próximo. Em torno dele, os homens começavam
também a disparar. Segurou firmemente a arma de radiações e puxou o gatilho. A distância
ainda era muito grande. O ar começou a tremeluzir sob o calor insuportável, provocado pelo
tiro. Em todos os lados viam-se nuvens de fumaça.
— Agora — disse Emery.
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Sem querer falara em voz alta. Precisava ter cuidado para não ferir nenhum dos seus
soldados. Os primeiros homens já se encontravam em cima do telhado. Abriam entrada sem
dar atenção a nada. Em torno da abóbada estendia-se uma espécie de sacada.
Emery viu homens de mantas largas surgirem por lá. Tinham armas e começaram a
disparar contra os terranos que desciam sobre o edifício.
“Então são estes os antis”, refletiu.
Emery perdeu-os de vista quando caiu na cobertura da abóbada. Perto dele quatro
soldados estavam fazendo buracos com suas armas de radiações.
— Atirem contra os sacerdotes. Usem as carabinas automáticas — gritou Emery.
Um homem baixo e magro brandia furiosamente a arma. Seu rosto estava vermelho; o
calor era intenso. Emery correu em direção ao grupo.
— Acho que já podemos entrar — disse um baixote, apontando para o buraco.
Não perdeu tempo. Penetrou na abóbada. Emery seguiu-o com os olhos. Era um homem
pequeno e valente. Os corredores achavam-se enxameados de sacerdotes. Disparou três vezes.
Depois foi atingido, e Emery viu-o inclinar-se para o lado e tombar para a frente. Subitamente
caiu como uma pedra sobre os antis que recuavam.
Emery e os soldados restantes fitaram-se.
Não disseram uma palavra. Saltaram para dentro da abertura... um após o outro.
***
***
— Isso é traição! — gritou Thomas Cardif com o rosto desfigurado. — Alguém nos traiu.
Se não fosse assim, Rhodan não poderia ter encontrado este mundo. Quem são os traidores
que se encontram nas fileiras dos antis?
Falava com os punhos cerrados. A cada palavra que proferia, esmurrava a mesa. Seus
olhos exprimiam ódio. Mais uma derrota começou a desenhar-se diante de si. Já soubera que
seu pai fizera as unidades terranas avançar sobre as três abóbadas, nas quais até então os
antis haviam sido bem-sucedidos na sua defesa.
Nessas abóbadas ficavam as instalações de purificação da matéria-prima do liquitivo. Os
sacerdotes haviam decidido que estas deveriam ser salvas de qualquer maneira.
E agora o êxito desse plano parecia tão duvidoso. Nenhum dos antis teve uma visão mais
trágica da situação que Cardif.
— Entre nós não existe nenhum traidor — respondeu Hekta-Paalat, em tom tranqüilo.
A manta do anti fora chamuscada pelo tiro de uma arma de radiações. Seguira o exemplo
da maior parte dos membros de sua raça: desistira de manter ativado seu campo defensivo
individual, pois também percebera que os projéteis antimagnéticos, disparados pelas armas
terranas, eram capazes de atravessar o mesmo.
— É possível que em outras raças exista — acrescentou, numa alusão evidente a Cardif.
— Conseguiremos defender as abóbadas? — perguntou gritando o filho de Rhodan.
— Não — respondeu Rhabol, que se encontrava do lado oposto da mesa.
Os olhos do terrano chamejavam. Contornou a mesa e agarrou a manta do sacerdote.
160
— Temos que defendê-las. Há um único couraçado sobre Okul. Dessa nave dificilmente
podem ter desembarcado mais de cinco mil homens. Exijo que o comando da batalha seja
transferido a mim. Ao lado dos sobreviventes, poderei salvar as instalações.
Os olhares dos antis que se encontravam presentes exprimiam uma rejeição sombria.
O choque, que haviam sofrido, ao saberem que as armas dos terranos eram capazes de
romper seus campos defensivos individuais, minara o moral dos sacerdotes. Se não fosse
assim, o resultado da batalha só poderia ser-lhes favorável.
— Fugiremos — disse Baaran em tom tranqüilo.
Cardif soltou uma risada sarcástica. Cruzou os braços sobre o peito e fez um aceno de
cabeça em direção às telas que mostravam as abóbadas queimadas.
— Pretende fugir? — perguntou de modo irônico. — Para onde, meu velho? Para a selva?
Os homens de Rhodan disparam contra qualquer pessoa que apareça lá fora.
— Para o mar — respondeu Baaran, ainda tranqüilo.
Ao que parecia, não se impressionava nem um pouco com o fato de que, a algumas
centenas de metros do lugar em que se encontrava, seus confrades iam cessando um após o
outro na resistência aos soldados terranos, que penetravam na abóbada.
A voz sarcástica de Cardif ainda revelava ironia, quando perguntou:
— Será que teremos de nadar?
Ninguém lhe deu resposta. Baaran e Rhabol voltaram-se para as telas, pois desejavam
acompanhar o estágio final da batalha.
***
Durante todo esse tempo, o sargento John Emery sentira-se incapaz de conceber uma
idéia clara. Numa atitude puramente automática disparara contra os sacerdotes que se
interpunham em seu caminho. Outros homens lutavam a seu lado. Emery não percebeu que o
número de seus soldados diminuía constantemente.
Os olhos de Emery estavam quase fechados devido ao suor. Os pulmões não queriam
aceitar o ar aquecido, carregado de fumaça. Sentado no fim de um longo corredor, o sargento
disparava contra três dos antis, que se haviam abrigado num pequeno estrado.
Por toda a abóbada rugiam lutas violentas. Um tiro de radiações chiou acima de Emery e
chamuscou suas costas. Apoiando-se sobre os cotovelos, disparou a carabina automática e...
conseguiu acertar!
Emery resmungou, satisfeito.
O inimigo parecia imobilizado. Pela primeira vez o sargento resolveu olhar para trás. Era
o único terrano que se encontrava naquele corredor! Não tinha tempo para pensar nisso.
Dedicava sua atenção aos três antis, cujo silêncio o deixava desconfiado.
Disparou três vezes, mas o inimigo não respondeu ao fogo.
Emery passou a língua pelos lábios ressequidos. O silêncio tomou conta de toda a
abóbada. Até parecia que alguém havia ordenado um cessar fogo imediato.
Emery ergueu-se cautelosamente. Era arriscado oferecer um alvo exposto aos antis. Mas
por outro lado, não poderia ficar deitado ali, para todo o sempre. Percebeu que alguma coisa
tinha mudado. A batalha parecia ter sido decidida. Emery não conseguiu reprimir uma
sensação de medo.
Será que o ataque de surpresa malograra? Seria ele um dos poucos sobreviventes?
Levantou-se. Permaneceu ereto no corredor. Olhou para seu corpo. O aspecto que
oferecia não inspirava muita confiança. Seu uniforme estava queimado em vários lugares. Era
duvidoso que o traje de batalha ainda estivesse em pleno funcionamento.
Bem; seria fácil verificar. Enquanto ligava o propulsor antigravitacional, o sargento
mostrava-se zangado. Deixou que o aparelho o levasse ao estrado, que já fora abandonado
pelos antis.
161
Emery pousou são e salvo. Olhou em torno. Dali enxergava todo o corredor. Viu o lugar
em que antes se encontrara. Sentiu um calafrio descer-lhe pela espinha. Lutara contra os
sacerdotes praticamente sem a menor proteção.
Emery continuou a avançar de arma em punho. Viu-se em outro corredor: uma descida.
Alguns passos adiante deparou-se com um vulto que jazia imóvel no chão. Era um anti. Estava
gravemente ferido, mas ainda estava vivo.
Assim que ouviu os passos de Emery, virou-se. O sargento apontou a carabina
automática. O ferido fitou-o tranquilamente. Emery parou a três metros do moribundo.
— O que está esperando? — perguntou o anti, num intergaláctico impecável. — Acha
que Casnan tem medo de morrer?
— Não — disse Emery, mas sua boca apenas conseguiu expelir um grasnado.
— O que pretende fazer? — perguntou Casnan.
— Quero seguir adiante — respondeu Emery, em tom áspero.
Um sorriso martirizado surgiu no rosto do sacerdote. Conseguiu erguer um pouco o
corpo e segurar a arma de radiações, que jazia no chão. Fitou-a com uma expressão pensativa.
— Nada de truques — preveniu Emery. — Guarde isso.
“Não sei por quê, mas o fato é que ele procura deter-me”, pensou o sargento.
Aproximou-se de Casnan. Este rolou para o lado e fez pontaria para Emery, que soltou
uma praga e deu um enorme salto para a frente. O raio escaldante da morte chiou acima de
sua cabeça. As pernas do terrano atravessaram o ar e atingiram o anti, que soltou um grito.
Com movimento lerdo, ele ainda moveu a arma em direção de Emery.
Desta vez, o sargento estava prevenido. Um golpe com a quina da mão fez com que o anti
deixasse cair a arma. Emery apoderou-se da pistola.
— Pronto! — exclamou. — Agora vamos ver o que está sendo escondido por aqui.
Casnan estremeceu. O sargento viu nisso uma prova de que estava na pista certa.
— Se prosseguir, o senhor morrerá — ameaçou o sacerdote que, exausto, desfaleceu.
Emery não lhe deu mais nenhuma atenção. Desceu correndo. Seus passos produziram
um eco trovejante. O corredor descreveu uma curva fechada e, de repente, Emery se viu
diante de um poço envolto numa tremenda escuridão. Deixou-se cair no chão e aguçou o
ouvido.
Estaria enganado, ou realmente ouvia o borbulhar da água? O que haveria no fundo
desse poço? Tirou a lanterna do cinto do traje de batalha e ligou-a. As paredes atingidas pelo
feixe de luz eram totalmente lisas. Emery refletiu intensamente. A luminosidade da lanterna
não era suficiente para atingir o fundo do poço.
Lembrou-se da advertência do sacerdote moribundo.
Será que realmente havia um perigo misterioso que o espreitava?
Num gesto resoluto, Emery cerrou os dentes. Deixou-se cair no poço com o auxílio de seu
traje de batalha.
***
163
— De que planta? — repetiu o membro da seita de Baalol, franzindo a testa, espantado.
— O tóxico não é nenhum produto vegetal. É extraído da secreção das glândulas de animais
que vivem neste planeta.
— De animais? — espantou-se Rhodan. — Faça o favor de explicar-se melhor.
— Trata-se de lagartas, cobertas de córneas, que medem dois metros de comprimento e
quarenta centímetros de espessura. Locomovem-se sobre inúmeros pés muito pequenos. São
encontradas principalmente nas áreas pantanosas da selva. Na sua cabeça redonda, coberta
de uma blindagem córnea, existe um círculo cortante de quinze centímetros de diâmetro, que
lhes permite revolver a terra. Costumamos chamar estes animais de fura-lama. O círculo
perfurador é movimentado por um estranho órgão, que reúne ar comprimido numa espécie
de câmara de compressão. Este ar comprimido movimenta o círculo cortante. Essas lagartas
possuem uma série de glândulas peculiares, das quais é extraída a substância ativa do
liquitivo.
A voz do anti tornava-se cada vez mais fraca. Ao que parecia, os ferimentos
enfraqueciam-no bastante. Rhodan fez um sinal, e os soldados levaram o sacerdote.
— Pois bem — observou Bell. — Então é isso. Basta pegar alguns desses animais e
examiná-los.
— Acho que seu otimismo é prematuro — respondeu Rhodan. — É bem possível que
tenhamos surpresas bem desagradáveis pela frente.
Deu outras ordens. Os homens dividiram-se, para revistar as abóbadas, quase totalmente
destruídas.
***
O ruído da água tornava-se cada vez mais forte. Enquanto planava pela escuridão
compacta, Emery conteve a respiração. Desligara a lanterna. Desceu muito devagar, para
poder fazer meia-volta, assim que surgisse algum perigo.
Teve a impressão de ouvir o ruído de uma máquina, mas talvez fosse engano. O ar frio
subia das profundezas. Emery pensou que talvez se encontrasse no interior de um elevador
antigravitacional.
Subitamente sentiu chão firme sob os pés. Bem à sua frente, uma luz forte atravessava
uma fresta na parede. O sargento enfiou os dedos na brecha. Ficou espantado ao notar que a
fenda se alargou.
“É uma porta de correr dupla”, pensou Emery.
Enfiou a cabeça na abertura e olhou para o interior do recinto.
Viu um ancoradouro subterrâneo!
Um estranho barco estava encostado ao cais. Vários antis movimentavam-se sobre a
embarcação. O pavilhão era iluminado por uma fonte de luz artificial. Os sacerdotes pareciam
ter pressa. Foram desaparecendo no interior do barco.
Subitamente, Perry Rhodan apareceu na frente de um grupo.
Por pouco Emery não solta um grito. Aquele homem não era Rhodan; era o filho de
Perry. Ao ver Cardif entrar no barco, Emery manteve-se imóvel. Seria insensato arriscar-se a
atacar o barco sozinho. De qualquer maneira, Rhodan teria de ser avisado imediatamente.
Assim que o último sacerdote desapareceu em seu interior, o barco foi saindo
lentamente em direção ao centro do ancoradouro. E, também lentamente, afundou na água.
“É um submarino”, pensou Emery. “Estão mergulhando por baixo da abóbada.”
O mar ficava bem próximo. Ao que tudo indicava, havia um canal subterrâneo que levava
diretamente da abóbada para o oceano.
Emery não perdeu mais tempo. Subiu o mais rápido possível por aquele poço apertado.
***
164
Thomas Cardif aproximou-se do periscópio, para lançar mais um olhar sobre a cidade
destruída. Conseguira escapar mais uma vez de seu pai e da Frota Solar. Porém a idéia de que
sofrerá outra derrota, reduzia o contentamento que sentia por isso.
— Recolher o periscópio! — ordenou Hekta-Paalat.
Cardif encostou as barras de direção. Dirigiu-se aos sacerdotes.
— Preparar a imersão — gritou Baaran.
— Vamos nos esconder que nem uns animais! — exclamou Cardif, em tom amargurado.
— Mas enquanto tiver forças, não descansarei sem ver meu plano executado.
— Mais dia menos dia, Rhodan descobrirá o porto — disse Rhabol. — Quando isso
acontecer, saberá onde procurar-nos. Acredito que encontrará um meio de continuar a
acossar-nos. Nossa situação não é muito animadora. Por isso sugiro que, por enquanto,
fiquemos quietos. Baaran, acho que, por ora, as profundezas do oceano são o lugar mais
seguro para nós.
Cardif também sabia perfeitamente que, na situação atual, não tinham a menor chance
de agir contra os terranos. Só podiam fazer votos de que o tempo trouxesse uma reviravolta. O
prejuízo tremendo, que a destruição do estabelecimento de Okul representava para a seita de
Baalol, sem dúvida não contribuiria para estimular as atividades dos sacerdotes.
De repente um sorriso sarcástico surgiu no rosto de Cardif.
— Será que o senhor teve mais uma das suas excelentes idéias? — perguntou Rhabol.
Cardif fez que sim. Se os pesquisadores terranos não conseguissem encontrar um
antídoto para o entorpecente, a vitória que Rhodan alcançaria em Okul lhe sairia muito cara.
— Acabo de pensar em Valmonze — disse Cardif.
Os antis fitaram-no como quem não entendia nada.
— O patriarca recebeu o último liquitivo que tínhamos — disse. — Não estamos em
condições de continuar a produzir a matéria-prima. As respectivas instalações foram
destruídas.
— Isso significa que o governo do Império Solar se defrontará com milhões de viciados,
que serão levados a desencadear uma revolta, em virtude da inesperada privação do
entorpecente — completou Hekta-Paalat, parecendo satisfeito por ter compreendido o
raciocínio de Cardif.
— A não ser que na Terra seja encontrado um antídoto eficaz — objetou Baaran.
— O tempo de que os cientistas dispõem para isso não é ilimitado — ponderou Cardif. —
Se quiserem ser bem-sucedidos na cura de todos os viciados, terão de andar muito depressa.
Vista sob este ângulo, a derrota já não parecia tão trágica a Cardif. Os contornos pouco
nítidos de um fantástico plano começaram a surgir em seu cérebro.
Quanto mais refletia sobre sua idéia arrojada, maiores lhe pareciam as possibilidades de
transformá-la em realidade.
165
12
O antigo estabelecimento dos antis era a própria imagem da destruição. Das sessenta e
sete abóbadas haviam sido destruídas mais de cinqüenta. E as restantes encontravam-se num
estado tal que sua utilização futura parecia pouco recomendável. Os velhos lança-foguetes da
Ironduke haviam aberto brechas com seus projéteis antimagnéticos, sempre que nenhum
terrano corresse o risco de ser ferido pelas cargas atômicas.
O Major Krefenbac fez o jato espacial descrever uma curva ampla sobre a cidade
estorricada de aço. Em todos os lugares, as nuvens de fumaça subiam ao céu. Constantemente
se viam grupos de busca em meio às ruínas. Os corpos metálicos dos robôs de guerra,
equipados com armas pesadas, garantiam os flancos dos diversos grupos. Qualquer ataque
desfechado por antis ocultos seria rechaçado com uma fúria devastadora. Mas era
inconcebível que ainda houvesse alguém capaz de oferecer resistência. Rhodan ordenara aos
homens que prestassem muita atenção a eventuais elementos que pudessem fornecer
indicações sobre a produção de entorpecentes.
— Dentro de alguns anos, a selva voltará a tomar conta deste lugar, sir — disse o Major
Krefenbac. — Sem dúvida esta elevação era coberta pela mata.
— Os sacerdotes devem ter tido um motivo para escolher este lugar, pois está situado
nas proximidades do oceano — disse Rhodan, em tom pensativo. — Por que não construíram
mais para o interior?
— Minha pergunta é muito mais interessante — interveio Bell. — Os antis, que nos
criaram tamanhos problemas nas três abóbadas principais, desapareceram sem deixar
vestígio. Thomas Cardif deve estar com eles. Onde será que se esconderam?
Krefenbac refletiu intensamente.
— Talvez disponham de transmissores de matéria — disse. — Ainda não revistamos
todos os edifícios.
— Isso é impossível — objetou Rhodan. — A bordo da Ironduke existem aparelhos de
localização extremamente sensíveis, que sem dúvida teriam registrado uma descarga
energética de quinta dimensão. Acontece que Claudrin não nos forneceu nenhuma informação
a este respeito. Os antis devem ter fugido por outro caminho, Krefenbac.
O major fez o jato espacial descrever mais uma curva e desceu.
— Neste caso só resta a selva — respondeu.
Antes que Rhodan tivesse tempo de responder, o aparelho de rádio chamou. O rosto
largo de Jefe Claudrin apareceu na tela do videofone.
— Desculpe, sir — trovejou sua voz. — Infelizmente vejo-me obrigado a interromper seu
vôo de inspeção.
— Tem alguma novidade, major?
Claudrin fez que sim.
— Um dos homens que voltou para a nave diz ter descoberto um porto subterrâneo.
Afirma que os antis e Thomas Cardif fugiram pelo tal porto num submarino.
Bell estalou os dedos. Apontou para o mar.
— O oceano! — exclamou. — Quer dizer que mergulharam lá.
— Vamos voltar para a Ironduke, Krefenbac — ordenou Rhodan e voltou a dirigir-se a
Claudrin. — Iremos ao hangar, major. Quero falar pessoalmente com o homem. Organize um
grupo bem armado, com o qual possamos penetrar no porto.
Claudrin confirmou e seu rosto empalideceu na tela. Bell passou a mão pelos cabelos
rebeldes.
— Agora só falta uma isca para fazer com que o peixe morda o anzol — disse.
166
— Não sei, mas tenho a impressão de que por enquanto nem sequer temos um anzol —
respondeu Rhodan, pensativo. — A Frota Solar não dispõe, no momento, de naves anfíbias.
Bell parecia indignado. Não gostava que seu otimismo fosse abafado.
— Quer dizer que percorremos muitos anos-luz — disse em tom exaltado — para
fracassar diante de uma poça d’água como esta.
***
O sargento John Emery mantinha-se garboso na sala de comando da Ironduke. Via-se que
não recuara diante da luta. Depois de algumas tentativas inúteis desistiu de prender os
farrapos que pendiam de seu traje de batalha. Sempre que Claudrin levantava a voz, encolhia-
se. Nunca vira os homens célebres tão de perto.
— O jato espacial acaba de pousar no hangar — anunciou Averman. — Rhodan deverá
chegar num instante.
Emery contemplou seu uniforme. Sentia-se triste por ter de apresentar-se ao
administrador com uma vestimenta destas. Muito triste, lembrou-se de seu depósito de
Terrânia, onde guardava os trajes de velhos príncipes. Com uma roupa dessas, sem dúvida
causaria uma impressão muito “forte” em Rhodan.
Rhodan, Bell e o Major Hunt Krefenbac, imediato da Ironduke, entraram na sala de
comando. Emery ficou em posição de sentido.
— O homem é este, sir — disse a voz retumbante de Claudrin.
O sargento engoliu em seco.
— Sargento John Emery, sir — disse a título de apresentação. — Pertenço ao
destacamento de Henderson.
Rhodan fitou-o em silêncio. Ao notar um sorriso irônico no rosto de Bell, Emery ficou
apavorado.
— Desculpe minha apresentação, sir — gaguejou Emery. — Infelizmente não pude evitar
alguns ferimentos durante a batalha.
— Pelo que vejo, esses ferimentos atingiram principalmente seu traje de batalha — disse
Rhodan com um sorriso. — Faça o favor de contar o que descobriu.
Emery relatou suas experiências e manifestou a opinião de que havia um canal
subterrâneo que levava diretamente ao oceano.
— O senhor acha que é capaz de encontrar novamente esse lugar? — perguntou Rhodan.
— Quando quiser, sir.
— Muito bem. Seu nome foi anotado na lista de promoções, sargento. No entanto, o
senhor levará um grupo até o porto. Quero que tudo seja cuidadosamente revistado. Mande
verificar se existe alguma indicação quanto ao lugar em que se refugiou o submarino. Se
encontrar outras embarcações, as mesmas deverão ser apreendidas imediatamente.
— Sim, senhor — disse Emery em tom resoluto.
O Major Krefenbac levou Emery para junto do grupo de soldados que acompanharia o
sargento.
— Temos mais um problema pela frente — disse Bell. — Devemos encontrar um meio de
prender os antis que fugiram.
John Marshall, chefe dos mutantes, disse:
— Talvez os sacerdotes tenham uma espaçonave guardada em algum lugar deste
planeta. Quem sabe se estão se dirigindo para lá?
Rhodan fez um gesto de assentimento. Não tinha meio de verificar a profundidade dos
oceanos.
— Está na hora de termos uma boa idéia — resmungou Gucky, com sua voz aguda.
O rato-castor sentia-se visivelmente contrariado porque não lhe haviam dado
possibilidade de participar da ação.
167
— Não podemos suportar pelo resto da vida o desconforto da Ironduke.
Ninguém deu atenção à sua reclamação. Gucky parecia ofendido.
— Devemos evitar de qualquer maneira que os antis saiam de Okul — disse Rhodan, em
tom pensativo. — Conhecemos a posição aproximada de seu submarino. Quanto mais
esperarmos, mais difícil se tornará descobrir o paradeiro dos sacerdotes. Eles não poderão
ficar para sempre no fundo do mar. Terão de emergir certa hora. Quando isso acontecer,
deveremos dispor de um número suficiente de naves para exercer uma vigilância total sobre
Okul. Não devemos esquecer-nos da possibilidade de os sacerdotes receberem reforços
vindos do espaço. Nem mesmo a Ironduke estaria em condições de resistir a um ataque
maciço de grandes unidades.
— É verdade, sir — concordou Claudrin, com sua voz potente.
Rhodan apresentou seu plano aos oficiais.
***
168
Deringhouse achou que seria desnecessário dar uma resposta a essas palavras.
Atravessou o camarote a passos largos e saiu correndo. Hardin fitou-o com uma expressão
desolada.
Assim que chegou à sala de comando, o general reconheceu o rosto de Rhodan na tela do
aparelho de telecomunicação. Deringhouse ouviu seu próprio suspiro de alívio.
— Espero que tenha boas notícias, sir — disse Deringhouse, enquanto cumprimentava
os dois radioperadores com um gesto de cabeça.
Os dois homens de serviço na sala de rádio retiraram-se sem dizer uma palavra. O rosto
de Rhodan parecia sério.
— Apoderamo-nos de Okul. Conseguimos destruir o estabelecimento dos antis. Mas
alguns deles conseguiram fugir num submarino para as profundezas de um dos numerosos
mares deste mundo — o rosto que aparecia na tela assumiu uma expressão dura. — Uma das
pessoas que fugiram é Cardif.
— Descobriu alguma coisa sobre o entorpecente? — perguntou Deringhouse, em tom
preocupado.
— Descobrimos — respondeu Rhodan. — Mas, no momento, não é isto que importa.
Quero evitar que os antis e Cardif saiam de Okul, ou que sejam libertados por alguém que lhes
traga auxílio do espaço.
O oficial experimentado inclinou o corpo para a frente. Parecia muito tenso. Já sabia
quais seriam as ordens de Rhodan.
— Qual é sua sugestão, sir?
— A Frota Solar está de prontidão — disse Rhodan. — Cinco mil unidades dirigir-se-ão
imediatamente a Okul, a fim de bloquear o planeta.
— As naves estão prontas para decolar, sir! — exclamou Deringhouse com os olhos
chamejantes.
Finalmente o tempo de espera chegara ao fim. O general sabia que os tripulantes de
todas as naves aguardavam a ordem de entrar em ação.
O administrador fez um gesto de assentimento.
— Está bem, general. Todos os supercouraçados entrarão em transição, juntamente com
outras unidades pesadas e leves. Okul nos pertence, e não haverá mais nada que possa
modificar essa situação.
— Não tenha a menor dúvida — disse Deringhouse, em tom resoluto.
***
169
As espaçonaves ali reunidas seriam capazes de bloquear Okul de tal maneira que, para
usarmos uma hipérbole, nem mesmo um inseto conseguiria decolar do planeta ou nele pousar
sem ser notado. Milhares de goniômetros e aparelhos de localização vasculhariam a superfície
do planeta e o espaço adjacente.
— Velhas naves, boas e confortáveis — piou Gucky. — Terei muito prazer em teleportar-
me para bordo da Drusus, a fim de tirar um cochilo.
Olhou em torno com uma expressão de desprezo e concluiu em tom azedo:
— O Capitão Graybound tem razão... Ninguém consegue impressionar-me com esses
veículos-molezas.
Rhodan estava ocupado com os contatos mantidos com os comandantes das naves que
chegavam. Apesar disso teve tempo para ordenar a Gucky:
— O senhor permanecerá a bordo da Ironduke, Tenente Guck.
O administrador entrou em contato pelo rádio com os comandantes das naves, a fim de
colocá-los a par da situação. Aqueles oficiais experimentados, compreenderam
imediatamente. Não demorou uma hora, e Okul ficou totalmente bloqueado.
— Muito bem — disse Rhodan, satisfeito. — De qualquer maneira, nossos amigos estão
presos. Terão que inventar uma coisa muito especial se quiserem escapar.
Jefe Claudrin colocou a Ironduke numa órbita estável em torno de Okul. A velocidade
elevada tornava-a apta para essa missão. Os lança-foguetes ameaçavam a superfície do
planeta. Um manto impenetrável passara a envolver Okul.
Os oficiais mais categorizados encontraram-se na sala de comando da Ironduke, a fim de
discutir a situação.
Rhodan sabia perfeitamente que por enquanto sua ação não produziria nenhum
resultado. As naves estavam praticamente imobilizadas. A única coisa a fazer seria aguardar
que o misterioso submarino aparecesse na superfície.
O administrador voltou a entrar em contato com Terrânia. Falou com o Dr. Topezzi e o
Dr. Whitman. Informou-os sobre a descoberta dos fura-lamas. Os médicos, que eram os
coordenadores do programa de pesquisas destinado ao combate dos efeitos do entorpecente,
sugeriram que algumas naves de pesquisa e naves-laboratório fossem destacadas para Okul.
— É o que faremos — concordou Rhodan. — Por enquanto procuraremos capturar os
fura-lamas encontrados em toda parte. Quando os especialistas chegarem, poderão começar a
trabalhar imediatamente. Com isso evitaremos qualquer demora.
— Estou plenamente convencido de que, com isso, conseguiremos encontrar um
antídoto — disse o Dr. Whitman, com a voz segura. — Afinal, já dispomos de todos os
requisitos técnicos para isso. Sabemos qual é a natureza da toxina segregada pelas glândulas
dos animais e conhecemos o processo de produção da mesma.
— Faço votos de que seu otimismo tenha fundamento, doutor — disse Rhodan, dando
fim à palestra.
Desligou. Ao virar-se, viu o rosto sorridente de Bell. A expressão fria abandonou os olhos
cinzentos do grande homem. Virou-se para os oficiais, que estavam reunidos na sala de
comando, e começou a falar com a foz firme.
170
EPÍLOGO
A enfermeira passa lentamente entre as fileiras de camas brancas. Dirige seu olhar para
os pacientes que jazem imóveis. A luz do Sol penetra pelas amplas janelas. A sala parece limpa
e alegre. A enfermeira chega à última cama. Sorri para o homem que ocupa o leito. Mas o rosto
rígido do doente não mostra a menor reação.
— Venha — diz a enfermeira, em tom suave.
O homem continua imóvel. Parece olhar para o infinito. Não há o menor brilho em seus
olhos. Aquele rosto não revela nenhuma tristeza, nenhuma dor, nenhum sofrimento. Parece
completamente insensível. A enfermeira inclina-se sobre o doente e puxa-o lentamente pelo
braço. O paciente executa movimentos desajeitados, cedendo à pressão exercida pela mão da
enfermeira.
— Tenha cuidado — diz esta.
Sabe que o sentido de suas palavras não é compreendido pelo doente. Nenhum dos
pacientes a compreende. Às vezes, a enfermeira tem a impressão de encontrar-se numa
câmara mortuária.
O homem pôs-se de pé junto à cama. Não parece notar nada do que existe em redor dele.
Outra enfermeira leva-o pelo longo corredor. Nenhum dos pacientes diz alguma coisa;
nenhuma cabeça move-se na direção da enfermeira.
— Será um dia lindo — diz a mulher. Chegam a outro corredor.
Ela entra com seu mudo acompanhante cuidadosamente no elevador.
Dali a pouco alcançam o grande parque que cerca o hospital. As aves gorjeiam nas
árvores. Os bancos estão ocupados por homens e mulheres. Os pacientes acham-se
acompanhados por enfermeiras. Em todos nota-se o terrível olhar vazio. Ficam sentados
imóveis, como se fossem bonecos.
— Vamos para lá — diz a enfermeira.
O homem segue-a prontamente. Não sabe mais nada deste mundo. Talvez o mesmo já
tenha deixado de existir para ele. Aquele homem e seus companheiros de sofrimento levam
uma vida apagada.
São vítimas do liquitivo. Encontram-se num estado de obnubilação mental. Estão
irremediavelmente perdidos.
A enfermeira passeia durante meia hora com o paciente. Depois leva-o de volta à sua
cama. Todos os doentes têm de ser levados a passear. Os médicos insistem nesse ponto, mas a
enfermeira não acredita que isso adiante alguma coisa. Sabe que o estado dos doentes se
mantém inalterado até que sobrevenha a morte. E a morte vem muito depressa.
Os doentes abandonam a existência neste mundo, sem oferecer a menor resistência.
— Foi um belo passeio, não foi? — pergunta a enfermeira.
Não obtém resposta. Nunca obterá. Apesar disso, vez por outra tem de dizer algumas
palavras, pois, do contrário, também acabará enlouquecendo. Seu trabalho consiste em ajudar
essa gente, mas muitas vezes pergunta a si mesma qual será a finalidade preenchida pela ação
que desenvolve junto a esses pacientes.
O primeiro passeio daquela manhã chegou ao fim. A enfermeira leva o paciente de volta à
sala dos cadáveres-vivos. Passam pelas longas fileiras de camas.
Reina o silêncio. O ruído dos pássaros mal penetra na sala. As ajudantes arrumaram a
cama do doente.
Na cabeceira vê-se uma pequena placa. Nela está escrita, em letras negras, o nome do
homem que a ocupa; é um nome que ele mesmo já não consegue ler.
171
O olhar da enfermeira não se prende à placa. As palavras escritas ali nada significam,
tanto para ela como para o doente. É bem verdade que há um destino ligado a este nome, mas
o nome em si só interessa aos registros da instituição.
Na placa que está presa àquela cama lê-se HENRY MULVANEY.
172
4. Sob uma falsa bandeira.
173
se desenvolvia no parque. A música chegava bem baixinho e não havia necessidade de gritar
para comunicar-se.
— O que é que você sabe oficialmente sobre essa bebida, John? Você tem de me dizer,
ouviu? O assunto assume uma importância vital para mim. Tenho mais de uma dezena de
pacientes importantes que também são viciados. Eles me procuram para que eu os ajude. Os
fornecimentos de liquitivo foram suspensos há uma semana. Só se consegue o licor no
mercado negro, a preços proibitivos. Custa mil dólares a garrafa. Como sabe, cada garrafa
contém apenas dois centímetros cúbicos. Isso é apenas um golezinho. Mas, se a gente tem
sorte, essa pequena quantidade resolve a situação por nada menos de seis dias.
— Tomei essa cachaça doce uma única vez na vida e nunca mais, Phil. Não gostei.
Também não desconfiava do perigo que a mesma representava. Só o acaso evitou que eu me
transformasse num viciado. Quando soube que as pessoas que tomavam regularmente o
liquitivo rejuvenesciam e adquiriam novas forças, quase comecei a consumir a droga. Quem
poderia imaginar naquela época que aquilo que parecia um licor inofensivo realmente era o
veneno mais pavoroso da Via Láctea?
— Você acha que sabe de alguma coisa? — perguntou Morris. — Gostaria de comparar
seus conhecimentos com os resultados das experiências por mim realizadas. Fiz alguns testes
e procurei libertar-me do hábito da droga. Não consegui, John. Depois de uma semana tive
tonturas e dores de cabeça insuportáveis. Se continuasse na experiência, teria enlouquecido
de vez.
Rengall fitou-o com uma expressão preocupada. Toda a alegria desaparecera de seu
rosto como se alguém a tivesse apagado. O dever que teria de cumprir no dia seguinte
aparecia diante dele sob a forma de uma sombra pavorosa. Sabia o que o esperava. A ele e a
toda a Humanidade — a não ser que se descobrisse a solução do dilema.
Realmente havia um dilema.
Rengall colocou a mão no ombro do amigo.
— Não sabemos quase nada, Phil, muito embora nestes últimos tempos tenhamos
realizado milhares de testes meticulosos. Uma coisa é certa: depois que o licor é consumido
pela segunda ou, no máximo, pela terceira vez, registra-se um repentino processo de
rejuvenescimento. A pessoa não tem apenas a sensação da juventude, mas seu aspecto
exterior também lhe diz que ficou mais jovem. Naturalmente esse êxito patente levou os
consumidores de liquitivo a ingerirem doses maiores que as recomendadas na respectiva
embalagem.
A frequência do consumo não permitia que se percebesse a dependência. Mesmo a
pessoa que se desse à extravagância dispendiosa de embriagar-se com o liquitivo não sentiria
qualquer dano à saúde, nem o menor efeito colateral desagradável.
“O exame de inúmeros casos particulares deixou patente que qualquer pessoa que tenha
consumido o licor por seis meses ficou irremediavelmente viciada. Quando esse fato se tornou
conhecido, surgiu a explicação de inúmeras mortes misteriosas ocorridas em clínicas e
hospitais. Em todos os casos, o penúltimo estágio foi o da loucura. O vício é incurável.
Qualquer pessoa que tenha que deixar de consumir o liquitivo, seja qual for o motivo, morrerá
em meio a horríveis sofrimentos.”
— Faz cinco dias que não tomo nada — confessou Morris. — Pelo simples motivo de que
o licor deixou de ser vendido. Por que aconteceu isso? O governo deveria...
— O governo não proibiu a importação. Apenas aconteceu que os fornecimentos foram
reduzidos. Pretendem exercer pressão contra nós.
— Será que todos teremos de perder o juízo? — lamentou-se Morris, em tom de
desespero.
Deixara cair a máscara e já não tinha nada em comum com o conceituado médico, no
qual os pacientes pertencentes à alta sociedade depositavam confiança irrestrita. Depois de
uma pausa, sentenciou apreensivo:
174
— Milhões de vidas humanas estão em jogo...
— E esses milhões apenas terão mais sete ou oito anos de vida, conforme a época em que
começaram a consumir o liquitivo — ponderou Rengall. — O senhor deve saber que,
exatamente doze anos e quatro meses depois do tempo em que o indivíduo começou a tomar
regularmente o liquitivo, segue-se a ruína total da pessoa. O rejuvenescimento inicial cessa e
verifica-se um processo de regressão. Vi os mortos-vivos de Lepso, Phil. Seu aspecto não era
nada agradável. Se não descobrirmos um meio de desintoxicação, as coisas ficarão
semelhantes na Terra. Os viciados não podem perder o vício, pois se isso acontecer,
enlouquecerão. Mas, se continuarem a tomar o licor, acabarão por morrer. Parece que não há
nenhuma saída.
— É preferível morrer dentro de oito anos a enlouquecer dentro de trinta dias — disse
Phil Morris num gemido e levantou-se ao ouvir os passos que se aproximavam. Fez como se
não tivesse acontecido nada e mudou de assunto. — É uma noite maravilhosa, não acha, John?
Uma mulher passou entre as palmeiras e parou junto ao banco.
— Ah, estão aqui? E andam conversando sobre o luar? Nunca pensei que você tivesse
tamanha disposição romântica, John. E quanto ao senhor, ainda o julgaria menos capaz disso,
doutor.
A voz da mulher tinha um tom de irônica superioridade. Usava um vestido longo,
bastante decotado, e parecia muito jovem. Sua figura era excelente. Aproximou-se de John
Rengall e deu-lhe um beijo na testa.
— Ora... sentimo-nos dominados pelo ambiente romântico, querida — disse Rengall e fez
com que a esposa sentasse no banco. — Nosso amigo Phil tem um problema.
— Tem um problema? Será que não há mais doentes?
Morris não estava para brincadeiras.
— O problema que eu tenho é muito mais grave, dona Lydia — disse Morris e entesou o
corpo. — Faz cinco dias que não tomo uma gota de liquitivo.
John Rengall estremeceu de susto. O gesto de advertência que fizera para o amigo
chegara tarde. O segredo acabara de ser revelado.
Lydia Rengall lançou um olhar irônico para o marido e, dirigindo-se a Morris, disse:
— Cinco dias? Isso é um verdadeiro martírio para um bom bebedor. Seu estoque está no
fim?
— Não se consegue comprar mais o licor, madame...
— Se for só isso, terei muito prazer em ajudar, doutor. De quanto precisa?
— Lydia!
Regall proferiu esta palavra em tom de enérgica recriminação. Levantou-se e olhou para
o mar.
— O que houve, querido? Será que o doutor não pode saber disso?
— Você acha que havia necessidade?
— Ora, você não pode deixar um velho amigo abandonado ao destino, deixando que
morra de sede. Não sabia que você é tão avarento. Vá logo ao meu quarto e traga alguns
frascos. Você sabe onde estão guardados.
Phil Morris também se levantou. Segurou Rengall pelo braço.
— Sua esposa, John...? Também é uma viciada? Por que nunca disse a ela?
Lydia espantou-se.
— Viciada? Será que alguém é viciado só por gostar de um licor caro e bom?
Rengall fez um sinal para Morris.
— Explique a ela. Não queria que você soubesse. Sinto muito tê-lo enganado, meu velho.
Logo lhe darei sua injeção por via oral.
Afastou-se sem dizer mais uma palavra.
Lydia seguiu-o com os olhos, espantada.
— O que houve, Doc? Estou viciada? Fale logo.
175
— Será que a senhora realmente não sabe, dona Lydia? Seu marido nunca lhe explicou?
A senhora começou a beber sem que ele soubesse... quero dizer, passou a consumir o liquitivo
sem que seu marido tivesse conhecimento disso?
— Naturalmente! Afinal, o marido não precisa saber de tudo.
— No seu caso teria sido preferível que ele soubesse — disse Phil Morris e explicou à
esposa do amigo o que havia com o licor diabólico, produzido por uma raça ávida de mando
que vivia em algum lugar da Via Láctea.
Quando concluiu, houve um silêncio prolongado. Antes que Madame Rengall tivesse
tempo de dizer qualquer coisa, ouviu passos que se aproximavam rapidamente. Era John, que
parou à sua frente, fitou primeiro a esposa e depois Phil Morris.
— Não encontrei uma única garrafa de liquitivo — disse com a voz apagada. — A gaveta
de sua escrivaninha foi arrombada. Alguém deve ter roubado todo o estoque!
Phil Morris viu que suas últimas esperanças se desvaneciam. Levantou-se e saiu sem
proferir uma única palavra.
— Quem poderia saber que eu guardava o liquitivo naquela gaveta? — cochichou Lydia,
perturbada.
— Afinal, guardávamos segredo sobre isso, conforme você pedira. Não entendi por que
você se assustou quando soube que eu tomava regularmente o licor. Mas, agora, quando o
doutor disse que eu era uma viciada, compreendi tudo. Você não pode deixar de confessar que
a droga me fazia ficar mais nova, e que estava gostando disso. Ficamos sabendo muito tarde o
que havia com esse veneno diabólico. E eu fui a última a saber...
— E soube cedo demais — disse Rengall, puxando a esposa para junto de si. — Perdi a
vontade de participar da festa. Quero que vão todos para casa. Ninguém poderá fazer nada por
nós. O liquitivo é mais precioso que qualquer outra coisa, pois, para as pessoas acostumadas a
tomá-lo, representará simplesmente a vida. Mesmo que algum dos nossos amigos disponha de
um grande estoque de liquitivo, não nos dará nada. Além disso, não quero que ninguém
descubra. Afinal, sou funcionário público e...
— Mesmo que minha vida dependa disso?
Rengall acariciou o braço da esposa.
— Antes que aconteça qualquer coisa estaremos em Terrânia, querida. Gostaria de saber
quem foi o patife que roubou a bebida. Deve ter sido uma pessoa bastante ligada a nós, talvez
um dos empregados domésticos. A pessoa viciada é capaz de qualquer coisa para apoderar-se
da droga...
A música interrompeu-se num súbito semitom. Alguém soltou um grito forte e
penetrante. Outro homem praguejou, e depois ouviu-se um estrondo. Alguma coisa caiu
ruidosamente.
John levantou-se de um salto. Sem dar atenção à esposa, atravessou o gramado bem
cuidado e correu em direção a casa. Sob a luz débil dos lampiões viu uma aglomeração de
gente; eram seus convidados. Estavam reunidos em torno do bar e do estrado onde tocavam
os músicos.
Um homem estava estendido no chão.
Alguém o derrubara.
Era o Dr. Philipp Morris.
— O que aconteceu? — perguntou Rengall.
Um dos músicos apontou para um instrumento despedaçado.
— O homem deve ter ficado louco, sir. Arrancou o instrumento das minhas mãos, saltou
sobre o mesmo com ambos os pés e pisou-o até quebrá-lo por completo. Pulava que nem um
louco e gritava que tudo isso não adiantava mais. Sou um homem pacato, sir, mas por pouco
não bati nele.
— Alguém bateu. Quem foi?
Um homem de fraque adiantou-se. Passou a mão pelo cabelo.
176
— Fui eu, Sir Rengall — era Garry Rascall, gerente do clube de golfe. — Não tive outra
alternativa. O homem gritava que nem um doido e, se deixássemos, teria quebrado todos os
instrumentos. Alguém teria que impedi-lo de fazer isso. Não sei o que aconteceu com ele,
mas...
— Está bem, Garry. A culpa não é sua.
— Rengall fitou Phil e viu que estava inconsciente. — Garry, leve-o ao meu quarto.
Coloque-o no sofá. Se recuperar os sentidos...
Levaram-no para cima. Depois disso Rascall perguntou:
— O que quis dizer quando falou “se recuperar os sentidos”? Não posso deixar de
confessar que lhe apliquei um golpe pesado, mas até hoje nenhuma pessoa á qual eu tivesse
aplicado este tratamento deixou de voltar a si.
— Não é a isso que me refiro — disse Rengall. — Phil Morris é um viciado. Costuma
tomar liquitivo.
— E daí? — o gerente do clube não parecia muito impressionado. — Hoje em dia todo
mundo bebe.
John Rengall viu um ligeiro clarão de esperança no horizonte de sua depressão.
— O senhor também? — perguntou.
Ao ver o gesto afirmativo de Rascall, prosseguiu:
— Será que o senhor poderia arranjar alguns frascos? Quando Phil acordar terá que
tomar imediatamente a sua dose, pois do contrário voltará a agir como um louco. Na minha
casa havia um pequeno estoque, mas me foi roubado.
— Roubado? — perguntou Rascall em tom de espanto. — Esse pessoal tem cada idéia! É
claro que no clube temos uma provisão adequada. Os sócios praticamente não tomam outra
coisa; só vez por outra consomem um uísque ou um vurguzz. Mas o que apreciam mesmo é o
liquitivo. Se não me engano, tenho um estoque de mais de mil frascos. Quantos quer que eu
traga?
— Será que havia possibilidade de arranjar cem frascos, Garry...?
— Por que não? — perguntou o gerente.
— Pegarei imediatamente o carro e sairei em disparada. Está com o dinheiro?
Rengall deu-lhe a quantia correspondente ao preço usual, e mais uma boa gorjeta. Na
verdade, naquela noite Garry estava perdendo a chance de transformar-se num homem
riquíssimo. Em compensação ganhara uma gorjeta.
Dali a algumas horas, quando Phil Morris acordou, não tinha a menor lembrança do
acesso que sofrera. Suas mãos ainda estavam trêmulas. Pegou a garrafa que Rengall lhe
ofereceu e tomou seu conteúdo. O efeito foi quase imediato. Um brilho vivaz surgiu nos olhos
cansados e a sensação de vertigem desapareceu por completo.
— Onde foi que você arranjou isso, John?
— Eu lhe contarei e recomendo-lhe que vá para lá amanhã de manhã, a fim de comprar
algumas dúzias de garrafas. Foi com Garry Rascall, o gerente do clube. O bar do clube está
cheio do licor, que é vendido ao preço normal.
— Ainda não deve ter conhecimento da proibição.
— Provavelmente não sabe, Phil. Provavelmente só compra o material com intervalos de
alguns meses, e enquanto não faz suas compras não se interessa pela situação do mercado.
Quando souber a verdade, ficará furioso, mas é bem possível que até lá haja licor à vontade.
Ninguém sabe o que está para acontecer.
— De qualquer maneira só tomarei um frasco de cinco em cinco ou de seis em seis dias
— disse Phil. — Isso bastará para continuar a ser uma pessoa normal.
— Perfeitamente — confirmou Rengall.
— Com isso a pessoa continuará a ser normal e continuará viva — soltou uma risada
amarga. — Você poderá procurar Rascall e dizer-lhe que não está zangado por ele lhe ter
177
aplicado aquele golpe. Aí você aproveita a oportunidade e lhe compra certa quantidade de
liquitivo.
Phill Morris levantou-se e ficou caminhando de um lado para outro. Subitamente parou
diante do amigo.
— Amanhã você viajará para Terrânia, John. Se ainda houver salvação para nós, a mesma
só poderá vir de lá. Espero que não se esqueça dos velhos amigos.
— Se o antídoto for descoberto, beneficiará todos os seres humanos, Phil. Ninguém será
esquecido. Trate de chegar em casa são e salvo.
***
180
2
Okul era o segundo planeta de um total de três. Gravitava em torno do sol solitário sem
nome a uma distância tal que lhe permitia desenvolver condições favoráveis à vida. Okul era
um mundo primitivo, que os antis haviam transformado numa base respeitável. Foi lá que
Cardif descobriu a substância com a qual se podia fabricar o licor liquitivo. Conseguira, com o
auxilio dos antis e dos saltadores, espalhar o terrível veneno por vários mundos habitados da
Galáxia.
A fortaleza caíra. Em seu interior encontravam-se as Instalações de purificação da
matéria-prima utilizada na fabricação da droga, que consistia numa substância expelida pelas
glândulas de lagartas de dois metros de comprimento, que eram encontradas em toda parte
no planeta Okul. Esses animais, em si totalmente inofensivos, haviam sido batizados pelos
antis com o nome de fura-lama, já que em sua cabeça coberta de córnea existia um verdadeiro
disco cortante, que lhes permitia enfiar-se na terra num espaço de tempo curtíssimo.
A fortaleza caíra, mas Cardif conseguira fugir. Mas ainda devia encontrar-se no planeta
que fora bloqueado. Mais de cinco mil unidades da frota espacial terrana formavam um
envoltório impenetrável, que não deixaria passar ninguém.
Rhodan circulava em torno de Okul com a Ironduke, que percorria uma órbita estável.
Determinou que a superfície do planeta fosse mantida sob vigilância ininterrupta. Tinha
certeza absoluta de que desta vez Cardif não lhe escaparia.
A Ironduke era uma nave da classe Stardust. Tratava-se de um veículo espacial esférico
de oitocentos metros de diâmetro, equipado com um sistema de propulsão linear e com o
armamento mais moderno. Os tripulantes eram quase os mesmos homens que haviam
descoberto o Sistema Azul, durante o vôo com a Fantasy.
— O Doutor Gori Nkolate realizou estudos demorados com os fura-lamas — disse o
comandante da nave, Major Jefe Claudrin, e tirou uma baforada de seu charuto.
Jefe comparecera ao camarote de Rhodan, a fim de discutirem a situação. O Major Hunt
Krefenbac, que era seu imediato, permanecera na sala de comando.
Além de Rhodan encontravam-se presentes Reginald Bell e o matemático Dr. Carlos
Riebsam.
— Qual foi o resultado? — perguntou Rhodan em tom de curiosidade.
O rosto cor de couro de Jefe Claudrin transformou-se numa careta. Ao que parecia, não
se sentia muito à vontade.
— O Doutor Nkolate conseguiu isolar a substância segregada pelos fura-lamas que entra
na composição do licor, e à qual se atribui a criação da dependência. Sente-se desesperado
porque desconfia que a substância ativa possa ser um hormônio. Falou-me em certos efeitos
psicológicos, mas não entendi nada. De qualquer maneira, asseverou que dentro em breve
conseguirá produzir o liquitivo puro.
— Isso é um fraco consolo — constatou Rhodan. — Mas daí se pode derivar a esperança
de que venha a tornar-se possível a produção de um antídoto. Cada hora que passa é preciosa.
Por isso precisamos levar à Terra um número suficiente de fura-lamas, a fim de que nossos
cientistas possam examinar a substância ativa. Claudrin, cuide disso imediatamente.
O homem de Epsal cochichou suas instruções ao ouvido de seu ordenança. Enquanto isso
Rhodan falava com os outros. O ordenança levantou-se e saiu do camarote. Dali a pouco,
quando voltou, anunciou ao Major Claudrin que, dentro de uma hora, a nave Antilhas,
pertencente à classe Estado, estaria a caminho da Terra com uma carga de fura-lamas.
O aparelho de intercomunicação emitiu um sinal.
Rhodan contemplou-o por um segundo antes de comprimir o botão. O rosto de
Krefenbac surgiu na pequena tela.
181
— Sir, acabamos de receber uma longa mensagem de hiper-rádio vinda de Terrânia.
Quer que lhe apresente a respectiva gravação? Trata-se de um relatório sobre a situação atual.
Rhodan refletiu por um instante e balançou a cabeça.
— Não; deixe para lá. Mister Bell irá até aí.
Bell levantou-se. Parecia contrariado.
— Já vou. Sempre sou eu. Ficarei sem saber o que será falado aqui.
— É bem possível que na sala de rádio você saiba de coisas muito mais interessantes —
disse Rhodan a título de consolo, sem desconfiar que tinha toda a razão.
Esperou que Bell se retirasse e prosseguiu:
— Não há tanta pressa com o antídoto. Antes de mais nada temos de pôr fora de ação as
pessoas que tramaram tudo isso. Os antis representam um perigo extraordinário para a
civilização galáctica. Até há pouco tempo, os membros dessa sociedade secreta evidentemente
só se guiavam por objetivos econômicos, mas parece que houve uma mudança de rumo. Isso
aconteceu por causa de meu... por causa de Thomas Cardif, para quem os antis representam
um meio adequado de exercer sua vingança contra mim e contra a Terra. Não sei se ainda se
mantém aferrado à tese absurda de que sou responsável pela morte de sua mãe, Thora. De
qualquer maneira já não tenho a menor esperança de um dia fazê-lo mudar de opinião.
Lançou um olhar para Jefe Claudrin.
— De qualquer maneira, quero que, se possível, prendam-no com vida.
— Já demos ordens nesse sentido — disse o major sem outros comentários.
Estava sentado na poltrona larga, feita especialmente para ele, pois era um nativo de
Epsal, filho de um oficial das forças coloniais que se adaptara ao ambiente. Tinha um pouco
mais que um metro e sessenta, e sua largura era quase igual à altura. Em seu mundo natal, a
gravitação era duas vezes superior à da Terra, motivo por que se movia com uma leveza
extraordinária em condições gravitacionais normais. Os cabelos ruivos e a pele marrom, que
imitava o couro, combinavam perfeitamente com seu aspecto exterior.
— Acho que com vinte submarinos conseguiremos — disse o matemático Riebsam com a
voz circunspecta que lhe era peculiar. — Os mesmos ao menos deverão ser capazes de
localizar o esconderijo submerso. É bem verdade que, nem mesmo por meio do calculo de
probabilidades, podemos prever o que acontecerá depois disso.
— Segundo as últimas notícias que recebemos, a Ralph Torsten e a nave cargueira
chegarão amanhã.
Rhodan lançou um olhar impaciente para a porta como se não pudesse esperar mais
pelas novidades que Bell lhe traria e concluiu:
— Os submarinos serão descarregados imediatamente, para que possamos dar início à
caçada.
No corredor soaram passos. Bell entrou precipitadamente. Segurava um papel na mão.
Deixou-se cair na poltrona, e levantou o papel como que num gesto de recriminação.
— Que droga! — disse com a voz tão alta que Riebsam, que era um homem muito
sensível, tapou os ouvidos.
Claudrin limitou-se a sorrir, pois para ele os berros representavam o tom normal de uma
conversação.
— Bem que poderíamos ter imaginado — acrescentou o gorducho.
— Imaginado o quê? — perguntou Rhodan em tom impaciente. — Dê-me o bilhete.
— Apenas fiz alguns apontamentos — disse Bell sem largar o papel. — Ninguém
entenderia. A mensagem de rádio foi muito longa. Mais tarde você poderá ouvi-la, Perry. Aqui
vai o mais importante:
“A sede da General Cosmic Company informa que os fornecimentos de liquitivo estão
falhando. Os saltadores e outras raças continuam a levar suas mercadorias à Terra e aos
planetas coloniais, mas não chega uma só nave que traga uma carga de liquitivo. Ao que
parece, a produção foi suspensa. Na Terra existem mais de duzentos milhões de viciados, que
182
de uma hora para outra se veem sem o veneno tão apreciado. Os preços do liquitivo estão
subindo vertiginosamente. As pessoas que formaram uma reserva vendem o produto por uma
fortuna, sem lembrar-se de que amanhã ou depois terão de passar sem o liquitivo. E isso só é
possível por uma semana ou, no máximo, por trinta dias. Já se registraram algumas revoltas.
Os viciados acham que o governo é responsável pela falta do entorpecente.
Em alguns casos o Serviço de Segurança Solar viu-se obrigado a intervir. O pânico
ameaça a Terra.”
Bell silenciou. Olhou para o papel, refletiu por um instante e amarrotou-o.
— É só isso? — perguntou Rhodan.
Bell fez que sim.
— Será que ainda não basta?
— É mais que suficiente, e é exatamente o que eu receava. Na situação em que se
encontram, a única atitude coerente dos antis seria esta. Privam-nos da droga, e mais de
duzentos milhões de seres humanos enlouquecem. O caos poderá irromper. Eles nos têm nas
mãos.
Jefe Claudrin disse com sua voz potente:
— Sir, eu não me preocuparia muito com isso. Afinal, ainda temos os estoques de
liquitivo em Lepso. Além disso, a Antilhas já partiu para a Terra com grande número de fura-
lamas.
— É verdade, major — disse Rhodan. — Nunca se deve perder a esperança, enquanto
houver uma saída. Nosso pessoal de Lepso apoderou-se de estoques suficientes de liquitivo
para abastecer a Terra por muitos dias. Conclui-se que ainda não existe um perigo imediato.
Quer fazer o favor de transmitir as respectivas instruções ao planeta Lepso? O texto será
aproximadamente o seguinte: Todos os estoques de liquitivo deverão ser transportados
imediatamente à Terra, onde serão colocados à disposição da General Cosmic Company. A
distribuição deve ser supervisionada pelo Serviço de Segurança. Os viciados receberão as
quantidades de que precisam, e isso a título gratuito, O câmbio negro será severamente
punido. Obrigado; é isso.
Providencie para que a mensagem seja enviada imediatamente.
O major retirou-se.
— Que diabo! — disse Bell, contemplando as unhas. — Ainda bem que nunca tomo
cachaça doce, pois do contrário talvez também teria caído nesta.
— Muitos dos nossos melhores amigos caíram — disse Rhodan. — Ninguém poderia
imaginar que essa bebida alcoólica aparentemente inofensiva cria dependência e na verdade é
um perigoso veneno. Até mesmo a bordo da Ironduke temos mais de vinte viciados.
Felizmente o bar da nave ainda tem uma provisão da bebida. É uma situação grotesca:
dependemos de um preparado que poderá representar nosso fim. Armaram-nos uma cilada
dupla.
***
Embora tivesse sido bastante danificada por ocasião do ataque contra o conversor de
tempo dos arcônidas, a Ralph Torsten já estava em condições de entrar em ação. Comandado
por Bellefjord, o cruzador pesado acompanhava a nave cargueira através do braço da espiral
da Via Láctea, em direção ao sol distante, em torno do qual gravitava o planeta selvático de
Okul. Ambos os veículos espaciais usavam o sistema de propulsão linear e realizavam o vôo
visual. Não houve qualquer incidente, e chegaram ao destino dentro do tempo previsto.
Protegidas pela gigantesca frota de guerra terrana, a Ironduke, a Ralph Torsten e a nave
cargueira pousaram à margem do maior dos oceanos do planeta. Não se via ou percebia nada
dos antis. Estavam escondidos no fundo do mar, esperando. Ninguém sabia se estavam em
condições de observar os acontecimentos que se desenrolavam na superfície.
183
Os vinte submarinos atômicos foram descarregados e levados à água por meio do
equipamento antigravitacional. Encontravam-se numa gigantesca baía, escolhida com base
num reconhecimento aéreo. As paredes íngremes de rocha fechavam-na quase de todos os
lados. Apenas havia uma estreita passagem que dava para o mar aberto, e que possuía
profundidade suficiente para permitir a passagem segura dos submarinos.
As manobras de treinamento consumiram dois dias.
Finalmente Rhodan convocou os comandantes para a Ironduke, a fim de discutirem a
situação.
— Os senhores têm pela frente uma tarefa fora do comum — disse Rhodan, enquanto
seus olhos cinzentos fitavam aqueles homens que o ouviam atentamente com uma expressão
de benevolência. — Até hoje os senhores pilotaram naves espaciais, e de repente terão de
cuidar de submarinos. No fundo a diferença não é tão grande assim, pois ambos os tipos de
barco foram construídos para mergulhar num elemento hostil ao homem. Em vez do vácuo,
passa a ser a água. O oceano de um planeta estranho representa uma porção de água
desconhecida, que talvez poderá também representar um perigo para nós. No fundo desse
oceano oculta-se a elite do poderio hostil dos antis.
Fez uma pausa, mas ninguém quis formular perguntas.
— Está bem. Passemos à tarefa propriamente dita. O comandante de cada submarino
receberá um mapa da superfície do planeta. Este apenas mostra os contornos dos continentes
e, portanto, também dos mares. Estão todos unidos, tal qual na Terra. Cada comandante terá
um setor definido, que será por ele revistado. Prevê-se o contato de rádio ininterrupto com a
sala de comando de minha nave, contato este que também funcionará como uma espécie de
comunicação entre os submarinos. No momento em que alguém acredite ter descoberto
aquilo que procuramos, deverá avisar imediatamente. Quando isso acontecer, os outros
submarinos suspenderão as buscas e se dirigirão o mais depressa possível ao lugar em que se
encontra a embarcação que fez a descoberta, a fim de dar-lhe apoio. O ataque só será
desfechado depois que eu tiver dado ordem para isso. Quero que tudo fique bem entendido,
especialmente o último ponto que acabo de mencionar.
Os comandantes responderam com um simples gesto de assentimento.
— Muito bem. Um submarino em cada cinco levará a bordo um oficial do Serviço de
Segurança, que realizará as prisões caso os antis deponham as armas. Tudo deverá ser feito de
acordo com as normas, pois do contrário os antis poderão processar-nos perante qualquer
tribunal da Via Láctea. Isto pode parecer ridículo, mas estou falando sério. Por isso quero
pedir-lhes que, se surgir uma hipótese dessas, sigam as instruções dos quatro oficiais de
segurança. Este ponto também foi bem entendido?
Um dos comandantes fez uma pergunta.
— As instruções dos oficiais do Serviço de Segurança também abrangerão as operações
dos submarinos?
— É claro que não. Os oficiais só darão instruções relativas à eventual prisão dos antis e
do “maquinador” que está atrás deles.
Rhodan preferiu não mencionar o nome de seu filho, mas todos sabiam que estava
aludindo ao mesmo. Falou durante mais dez minutos e mandou que os submarinos partissem
no dia seguinte.
Naquela mesma noite a Ironduke decolou para voltar a colocar-se em Órbita e continuar
a observar a superfície do planeta. A Ralph Torsten permaneceu na superfície, a fim de dar
proteção à nave cargueira.
***
O professor Wild, que era uma grande capacidade na área das secreções e dos
hormônios, não perdeu as esperanças. Seus colaboradores queriam desistir. As notícias vindas
184
de todas as partes do mundo eram tão desanimadoras quanto os resultados das pesquisas.
Ninguém sabia dizer por que a substância ativa expelida pela glândula da tromba do fura-lama
era um entorpecente. Segundo os resultados das pesquisas, não era nenhum entorpecente,
mas uma substância regeneradora das células de ação rápida. Ainda não havia sido
esclarecido se a substância era uma secreção ou um hormônio. Aliás, essa indagação era de
importância secundária.
— Será que esta substância realmente é a substância ativa que encontramos nos frascos?
— perguntou o Dr. Koatu, um médico que desempenhara um papel de destaque no combate
ao monstro de plasma.
A divisão de microscopia transmitiu uma informação:
— Informação para o professor Wild. Substância ativa: n.a.
Um colega que se encontrava à frente do Dr. Koatu disse em tom de desespero:
— Nada averiguado. Será que poderíamos esperar outra coisa?
Os médicos do planeta Terra já não sabiam o que fazer.
***
Alguns dias se passaram até que a nave cargueira levasse os submarinos aos setores que
lhes foram designados. Depois iniciaram as buscas coordenadas.
O submarino S-35 tinha a percorrer um bom trecho. Desenvolvendo a velocidade
máxima, singrava a superfície relativamente tranqüila do mar tropical. A plataforma do
convés, protegida contra as ondas, tinha lugar para vários homens. Uma linha telefônica
estabelecia contato direto com a sala de máquinas. Se necessário, S-35 poderia mergulhar
dentro de trinta segundos.
Mas, ao que parecia, não havia motivo para Isso.
O Capitão Alf Torsin examinou o horizonte com o potente binóculo, mas não viu terra
firme ou qualquer ilha. Sua área de operações começaria algumas milhas adiante e se
estenderia para o oeste, até a terra firme, enquanto no sul a linha divisória passava pelo alto-
mar.
Por enquanto o mar primitivo em nada se distinguia dos oceanos do planeta Terra, a não
ser pela ausência de navios ou dos aviões estratosféricos que voavam nas alturas do céu. Mas
por enquanto ninguém sabia como seriam as coisas nas profundezas inexploradas.
As ecossondas funcionavam ininterruptamente. A profundidade média do mar era de
dois quilômetros e o fundo não apresentava grandes variações. Mas dali não se podia concluir
nada.
Uma fortaleza poderia ter sido construída no interior da rocha primitiva, ficando
exatamente ao mesmo nível do fundo do mar.
Torsin dirigiu-se ao jovem oficial de navegação.
— Então, Brischkowski, o que lhe parece?
O jovem tenente parecia indeciso.
— Aqui em cima não se pode chegar a qualquer conclusão. Quem sabe se
mergulharmos...
— Dentro de dez minutos atingiremos o limite de nossa área, então o senhor poderá
cuidar dos instrumentos de localização. Qualquer objeto metálico será registrado
automaticamente a grande distância. Só mesmo o diabo poderá impedir que encontremos
esses sacerdotes.
O Major John Rengall, que fitava em tom pensativo as cabeças de espuma que deslizavam
ao lado do submarino, disse em tom sarcástico:
— É uma comparação bizarra, capitão, mas o senhor não deixa de ter razão. A diferença
entre os diabos e os sacerdotes não é muito grande. O culto de Baalol não tem a menor
185
semelhança com qualquer religião. Se dependesse de mim, nenhum dos antis sairia dali com
vida.
— Antes de mais nada teremos de encontrá-los — disse Torsin, abafando o otimismo de
seu interlocutor e olhando para o mapa. — Está na hora. Vamos descer.
Enquanto desciam pela escotilha, em direção à sala de comando, o submarino começou a
mergulhar. Os tanques encheram-se de água, arrastando o barco para as profundezas
desconhecidas. A escotilha fechou-se com um baque surdo. Estavam isolados do mundo
exterior. Era como se estivessem a bordo de uma pequena espaçonave. O submarino S-35
tinha pouco menos de cinqüenta metros de comprimento. Possuía formato de torpedo e sua
tonelagem bruta chegava a duas mil toneladas. Os reatores ficavam na popa, que estava
separada do resto do submarino por uma parede de chumbo. Os trinta tripulantes achavam-se
abrigados em pequenos camarotes e dificilmente teriam motivo para queixar-se da falta de
espaço.
As telas iluminaram-se na sala de comando. Estavam instaladas de forma tal que
reproduziam num ângulo de 180 graus tudo que se encontrasse no sentido do deslocamento
do barco.
O submarino não balançava e descia lentamente. Torsin voltara a fechar a entrada dos
tanques. A água foi escurecendo e acabou por tornar-se completamente negra. Não viram
nenhum peixe ou outra forma de vida.
Quando os holofotes foram acesos, fecharam os olhos por um instante, pois sentiram-se
ofuscados. Quando voltaram a abri-los, viram que o mar se tornara transparente de novo, mas
ninguém sabia calcular as distâncias, por falta de um ponto de referência. Será que
enxergavam apenas dez metros? Ou seriam cem?
Quando o indicador de profundidade havia atingido a marca dos duzentos metros, o
submarino sofreu um ligeiro solavanco, como se tivesse tocado no fundo.
Mas isso era Impossível, pois o aparelho de ecossonda, que funcionava
Ininterruptamente, continuava a indicar uma profundidade de cerca de dois mil metros.
— O que foi isso? — perguntou Rengall com o rosto pálido. Não estava com medo, mas
tinha a impressão de que a água era um elemento mais perigoso que o vácuo do espaço
cósmico. — Será que já chegamos ao fundo?
— A marcação do aparelho de ecossonda é correta — respondeu Torsin, examinando as
escalas.
As telas não mostravam nada. O Tenente Brischkowski fez um movimento rápido e ligou
outro equipamento, que ampliava o ângulo de visão para baixo. Com isso poderiam ver o que
havia sob o barco.
Viram uma água verde reluzente, que lembrava o infinito e não parecia ter fundo. O
submarino continuava a baixar tranquilamente.
— Talvez tenha sido um animal — conjeturou Brischkowski com a voz embaraçada. —
Uma espécie de baleia.
— Se por aqui não existem peixes pequenos, muito menos existirão os grandes. É
impossível! — opôs-se Rengall.
Quando atingiram a marca dos mil metros, encontraram a prova que desmentia essa
afirmativa, se bem que o animal que viram não foi nenhuma baleia. Aquele monstro de olhos
protuberantes, que se movia lentamente em seu campo de visão, não se parecia com nada que
existisse na Terra ou em seus mares. Era a corporificação do pesadelo de um louco. Quanto ao
tamanho, poderia competir perfeitamente com o S-35. Na verdade, só viram o olho, que tinha
dois metros de diâmetro e contemplava o intruso.
— Que coisa horrível! — exclamou Rengall bastante apavorado.
Suas mãos embranqueceram. Segurou fortemente as travessas da escada e sussurrou:
— Aqui embaixo existem animais...
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— Talvez seja mesmo um animal — disse o comandante Torsin em tom de ceticismo e
fez o submarino prosseguir na descida.
O pesadelo subiu e desapareceu do campo de visão.
— Não sabemos se foi num gigante desses que esbarramos quando nos encontrávamos a
duzentos metros, mas é provável que sim. Estes animais são inofensivos, pois do contrário já
teriam atacado. Mas esse olho... — comentou Torsin.
— É um olho muito estranho, sir — disse o Tenente Brischkowski.
Torsin fitou-o prolongadamente.
— Por que achou que era estranho?
— Fitou-nos com uma expressão bastante curiosa, e tinha dois metros. Não vi nada do
animal além do olho, que parecia segurar-me e não me soltava mais.
— Trata-se de um efeito hipnótico — disse Torsin, como se falasse para si mesmo. —
Dava mostras de ser inteligente e de certa forma condescendente. Era como se aquele animal
achasse que nossa penetração em seu mundo silencioso era desculpável. Não sei como
aguenta essa tremenda pressão da água.
Rengall já se recuperara do susto. Olhou para o indicador de profundidade, que havia
atingido a marca dos mil e quatrocentos metros. Torsin ligou os aparelhos de goniometria. Os
impulsos corriam para todos os lados, mas nenhum deles foi refletido. Isso só aconteceria
quando atingissem alguma peça de metal, mesmo que esta tivesse apenas o tamanho de um
pires e ficasse afastada cinqüenta quilômetros.
Os motores de propulsão continuavam a funcionar. O submarino S-35 aproximava-se
constantemente do continente ocidental e do fundo do mar.
Por ocasião do encontro com o monstro constatara-se que o alcance dos holofotes era de
duzentos metros. Portanto, suficiente para que o barco mudasse de rumo, se de repente
surgisse um obstáculo. Praticamente não havia nenhum perigo de colisão.
Além disso, Torsin ligou a sonda horizontal.
Dois mil metros.
Avistaram o fundo do mar. Era liso e não apresentava maiores elevações ou reentrâncias.
A cor amarelenta levava à conclusão de que era composto de barro e lama. Os homens que
fitavam atentamente todos os detalhes não encontraram o menor sinal de vegetação. Nem de
animais.
Chegaram a ver uma estranha marca de arrasto, que em hipótese alguma poderia ter
surgido exclusivamente pelo efeito da água. Teriam provindo do dragão de olhos que haviam
observado?
De repente a marca terminou. Não prosseguia em outra parte. O ser que havia produzido
a marca devia ter abandonado o fundo do mar nesse lugar e subido.
O intercomunicador de bordo emitiu um sinal. Torsin comprimiu o botão.
— O que houve, Haller?
— Há um chamado da sala de comando da Ironduke, sir. Trata-se de um teste de rádio.
Aproveitam a oportunidade para solicitar um breve relato dos acontecimentos.
— Diga que está tudo em ordem e que o resultado das buscas foi negativo.
— Está bem, sir.
Torsin desligou.
Os impulsos rastreadores, regulados para refletir metais, corriam incessantemente à
frente do submarino e não voltavam. O fundo do mar entrou em declive e depois de
percorridos trezentos quilômetros baixou mil metros, de forma que a profundidade total
passou a ser de três mil metros. Isso correspondia à capacidade máxima de mergulho do
barco. Felizmente, a quinhentos quilômetros da costa, o fundo do mar voltou a subir. Mas seu
aspecto permaneceu inalterado até uns oitenta quilômetros do continente. De inicio Torsin,
Brischkowski e Rengall apenas viram uma ondulação irregular do fundo, que apresentava
caráter rochoso. De repente apareceram fendas. Seria impossível fazer o submarino descer
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pelas mesmas, pois pareciam muito estreitas e não permitiam uma boa exploração pelo
ecossonda. Além disso, a idéia de que no interior delas poderia haver monstros marinhos
menos pacatos que o que haviam encontrado não era muito animadora.
O fundo acidentado foi seguido por uma cadeia de montanhas rochosas, cujos cumes
ficavam a pouco menos de quinhentos metros abaixo da superfície. Torsin teve de enfrentar
maiores dificuldades para manobrar o submarino, e Rengall foi empurrado ligeiramente para
trás. Por isso contentou-se em fitar atentamente as telas e entretinha a esperança maluca de
encontrar aquilo que procuravam. Era bem verdade que não conseguia fazer uma idéia
precisa de como seria o esconderijo dos antis, mas imaginava que tivesse o formato de uma
gigantesca abóbada metálica, que seria capaz de resistir à pressão da água.
O submarino S-35 vasculhou as montanhas submarinas, sem o menor resultado.
Depois disso continuou a avançar em direção ao continente, e depois passou a deslocar-
se paralelamente à costa, a uma distância pouco superior a quinze quilômetros. De inicio
tomou a direção norte, até chegar ao cabo, e após isso seguiu para o sul, em direção ao alto-
mar.
As notícias recebidas da sala de comando da Ironduke revelavam que os outros
submarinos também não haviam encontrado nada. Só mesmo devido a um acaso inacreditável
se conseguiria encontrar uma fortaleza submarina a respeito da qual não se dispunha de
outras indicações.
Talvez as buscas teriam de prosseguir por semanas, até que alcançassem algum
resultado.
Se é que alcançariam!
Ao atingir o limite sul de sua área de operações, o submarino S-35 inverteu o curso e
voltou a tomar a direção norte. Embora isso pudesse parecer inútil, Torsin aproximou-se da
terra firme a tal ponto que se deslocavam poucos metros abaixo da água, junto à costa
rochosa. Às vezes esta era tão Íngreme que tinham de mergulhar junto dela a uma
profundidade de quinhentos metros para atingir o fundo do mar.
Rengall observou a manobra perigosa com uma expressão de ceticismo.
— É necessário passar tão perto da rocha? — perguntou, sem tirar os olhos das telas.
Do lado esquerdo viam-se as formas bizarras da Íngreme encosta submarina, enquanto à
direita se estendia o infinito do oceano. As saliências e fendas arestosas passavam
rapidamente.
— Afinal, o senhor tem os instrumentos. Não há necessidade de colocar em perigo o
barco e seus ocupantes — concluiu Rengall, segundos depois.
O Capitão Alf Torsin voltou lentamente a cabeça e fitou o oficial do Serviço de Segurança.
— Sempre temos sido bons amigos, major. Vamos deixar que as coisas continuem assim?
Pois bem. Nesse caso não se intrometa no meu trabalho. A responsabilidade por este
submarino cabe exclusivamente a mim, e sei muito bem o que devo fazer. É verdade que o
senhor é major, enquanto eu sou um simples capitão, mas acho que durante esta operação
isso não vem ao caso. Aliás, nossos impulsos de localização serão totalmente inúteis se os
antis tiverem construído sua fortaleza sob o continente, com uma entrada avançando em
forma de galeria, sob a água. Seria perfeitamente possível atingir essa entrada com o
submarino em que fugiram. Segundo imagino, a fortaleza nesse caso ficaria em terra firme, ou
melhor, sob a terra firme.
— Não critiquei seus atos; apenas formulei uma pergunta — retrucou Rengall com a voz
irritada.
Bem que poderia ter imaginado que suas palavras iriam provocar aborrecimentos. Havia
uma espécie de rivalidade amistosa entre os oficiais da ativa da Frota Espacial e os oficiais do
Serviço de Segurança Solar. Aproveitavam qualquer oportunidade para golpearem-se. A
intenção não era hostil, e tais atos pareciam reforçar a autoconfiança.
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Torsin esteve a ponto de dizer alguma coisa, mas viu-se impedido pelo grito do Tenente
Brischkowski.
— Olhem! Um túnel!
Torsin reagiu com uma rapidez espantosa. Comprimiu um botão que parou as hélices e
fez o submarino aproximar-se da encosta rochosa. Encontravam-se duzentos metros abaixo
da superfície. Realmente, em meio à penumbra, foi surgindo uma mancha circular escura.
Verificaram que se tratava de uma caverna. A luz dos holofotes não chegou ao fundo da
caverna.
— O tamanho deste buraco é suficiente para engolir-nos juntamente com nossos
torpedos e foguetes atômicos — disse Torsin em tom pensativo.
Fitou Rengall com uma expressão de nervosismo.
— Não sei se devemos arriscar. Basta um pequeno erro... — prosseguiu o comandante do
S-35.
Rengall manteve-se em silêncio. Não deu nenhum conselho nem procurou animar
Torsin. Mas por outro lado não procurou demovê-lo de seu intento.
O Tenente Brischkowski limitou-se a dizer:
— Bem...
Torsin aproximou-se ainda mais do túnel, que estava mergulhado numa luz tão intensa
que se viam perfeitamente suas bordas. Não havia o menor sinal de que estas tivessem sido
trabalhadas. Pareciam continuar tal qual a natureza as fizera. Aquilo poderia ter sido feito de
propósito, para enganar alguém. Mas era também possível que não fosse.
Rengall leu no rosto de Torsin a intenção de examinar o interior do túnel, custasse o que
custasse. Por isso resolveu falar com a voz tranqüila:
— E os trajes de mergulhador indilaceráveis? Será que não temos alguns a bordo?
Torsin confirmou com um gesto de surpresa.
— Isso mesmo. Quase que me esqueço disso. Em vez de arriscar todo o submarino, será
preferível enviar dois dos meus homens. Mas não acredito que a missão seja perigosa. Os
trajes aguentam uma batida na rocha; não vazarão.
Rengall empertigou-se.
— Se me arranjasse uma pessoa competente, bem que gostaria...
— Nem pense nisso! — protestou Torsin em tom enérgico. — Sou responsável pelo
senhor. Se algo lhe acontecer...
— Sou um aficionado do esporte do mergulho — tranqüilizou-o o major. — Os trajes de
mergulhar permitem atingir a profundidade de trezentos e cinqüenta metros. No momento
encontramo-nos a duzentos metros. Levarei uma arma de radiações.
— Temos em nosso arsenal um total de quatro armas de radiações neutras — disse
Torsin, que já começava a concordar com a proposta. — As outras são muito perigosas, face à
condutibilidade da água. Está bem. Concordo. Mas a responsabilidade será exclusivamente
sua.
— Perfeitamente, capitão. Nada nos poderá acontecer, desde que o senhor aguarde
nossa volta. É bem possível que o túnel não seja muito comprido; talvez descreva uma curva
pouco adiante e logo termine.
Haller, o operador de rádio, era a única pessoa além de Rengall que tinha experiência na
arte do mergulho, e por isso foi destacado para acompanhá-lo. Não se entusiasmou muito com
a tarefa, mas não quis passar por covarde.
Dali a dez minutos, os dois homens saíram pelas comportas do submarino, e depois de
terem experimentado seus aparelhos de rádio, afastaram-se do casco do submarino.
Os trajes de mergulhador que usavam eram quase ideais. Não havia necessidade dos
incômodos recipientes de oxigênio, já que o ar respirável era suprido por vinte horas através
de um processo químico. O elemento que realizava esse processo era pequeno; ocupava
189
menos espaço que o aparelho de rádio, que não poderia ser considerado grande. A arma de
radiações estava enfiada num bolso do lado direito. Seria fácil alcançá-la.
O submarino S-35 mantinha-se imóvel. Seus holofotes forneciam bastante luz. Rengall
sentiu-se leve. Descreveu um looping e fez um sinal alegre para Torsin.
— Isto aqui é formidável — disse para dentro do microfone que estava embutido no
capacete, tal qual num traje espacial. — No mar aberto sinto-me mais seguro do que no aperto
de um submarino.
Torsin respondeu com a voz zangada:
— Só enquanto eu deixar os holofotes acesos. O senhor se espantaria ao notar que não
sentiria mais nenhum prazer se de repente se visse envolvido pela escuridão. Não perca
tempo. Haller já chegou à entrada da caverna.
Rengall praguejou contra a pressa dessa gente pouco romântica e seguiu o radioperador,
que nadava à sua frente. Nem teve tempo para examinar o fundo do mar.
De pé na entrada da caverna, Haller apontou para o negrume que enchia a mesma.
— Não se vê nada, major. Ao que parece, realmente é uma espécie de túnel. Quem sabe
se não encontramos os antis, sir?
— Pode ser que sim, pode ser que não — disse Rengall em tom de ceticismo.
Pousou suavemente ao lado de Haller.
A luz dos holofotes do submarino S-35 penetrava caverna adentro numa extensão de
cinqüenta metros, fazendo com que esta assumisse dimensões gigantescas. Não se via o
menor sinal do seu fim.
— Teremos que nadar — sugeriu Rengall.
Haller confirmou com um gesto. Ao que parecia, não esperara outra coisa.
Empurraram-se com os pés e penetraram no túnel, que se estreitava lentamente.
O S-35 não teria chegado longe. Quando comunicou esse fato a seu amigo Torsin, Rengall
parecia satisfeito. Assim que penetraram na escuridão, ligaram as luzes individuais, montadas
sobre os capacetes.
A luz só alcançava uma distância de dez metros, mas era quanto bastava.
A caverna transformou-se num túnel quase redondo com dez metros de diâmetro, que
avançava horizontalmente para o interior do continente rochoso. Ou teria sido aberto?
Ainda não viram nenhum sinal de que o túnel fora construído artificialmente.
Atrás deles, a saída transformou-se numa grande mancha luminosa. Quando atingiram a
curva e ultrapassaram-na, a mancha desapareceu. Rengall sabia que agora estavam
verdadeiramente sós.
Flutuavam num mundo irreal e fantasmagórico, que já não tinha a menor ligação com a
superfície. Os feixes de luz dos holofotes iluminavam paredes rochosas irregulares, pequenas
fendas e saliências arestosas. Às suas costas, o chão do túnel ia deslizando para trás, lenta e
ininterruptamente. Não havia peixes nem plantas.
Depois de terem nadado muito e percorrido algumas centenas de metros, o túnel abriu-
se. O teto, as paredes e o chão recuaram tanto que a luz dos holofotes não os atingiu. Era
impossível saber se haviam voltado ao mar aberto, ou se tinham penetrado numa gigantesca
caverna. A última hipótese era a mais provável, pois os mapas de Torsin não registravam
nenhum lago ou braço do mar atrás da linha do litoral.
Seria um lago subterrâneo? Uma gigantesca caverna cheia de água, que tinha ligação
direta com o oceano?
— Como faremos para encontrar a continuação do túnel, se é que a mesma existe? —
perguntou Haller em tom de perplexidade.
— Vamos procurar — sugeriu Rengall, embora ele mesmo já não acreditasse muito no
êxito da missão. — Temos de nadar junto à parede.
— O que houve? — disse a voz de Torsin saída dos seus alto-falantes. — Onde estão?
— Numa caverna cheia de água. Não sabemos qual é seu tamanho.
190
— Ao que parece é uma pista falsa.
A voz do capitão parecia decepcionada.
— Voltem.
Acontece que Rengall se sentia possuído pela febre dos descobrimentos.
— Por que, capitão? Talvez encontremos a continuação...
— Quero que voltem, major. Não vamos perder nosso precioso tempo. Entendido?
Rengall viu Haller que pairava a seu lado. Via perfeitamente o rosto do radioperador no
interior do capacete. Fez um sinal indagador com a mão, como se não quisesse que seu
comandante tivesse conhecimento das dúvidas que o atormentavam.
— Está bem; vamos voltar — disse Rengall depois de algum tempo.
Seria um absurdo procurar criar um caso com Torsin, ainda mais que o capitão se achava
investido no comando.
Dali a meia hora apresentaram-se a Torsin. Chegaram bem em tempo para ouvir uma
mensagem de rádio transmitida pela Ironduke a todos os submarinos.
A mensagem era concebida em termos lacônicos:
— Chamando todos os barcos que operam em Okul. Emergir imediatamente e transmitir
constantemente sinais goniométricos. Aguardar novas ordens. Por enquanto as buscas estão
suspensas. Rhodan.
O Capitão Torsin fitou o Major Rengall com uma expressão de perplexidade.
— O que será isso? — perguntou surpreso. — Será que alguém descobriu os antis?
Rengall balançou lentamente a cabeça.
— Não acredito, capitão. Deve ter havido algum imprevisto. Não demoraremos em saber.
Emergiram e o submarino ficou parado em meio ao mar revolto da costa, que se erguia
sob a forma de um paredão de rocha. O sol já ia descendo no oeste. A noite não tardaria a
chegar.
***
Fazia três dias desde que a nave esférica Antilhas trouxera os fura-lamas para a Terra. O
Dr. Koatu encontrava-se em companhia do professor Wild.
— Leia isto, Koatu! — pediu o professor.
Koatu pegou o relatório da Clínica Universitária de Heidelberg e leu.
Em Heidelberg fora aplicado um novo método de investigações. E as pessoas que
trabalhavam em Heidelberg estavam em condições de provar que a secreção glandular não
era nenhum veneno nem criava dependência. Tratava-se de uma excelente substância
rejuvenescedora. Mas Heidelberg manifestou pela primeira vez a suspeita de que talvez o
liquitivo contivesse outro princípio ativo além da substância rejuvenescedora. Princípio este
que até então teria escapado à atenção dos pesquisadores.
— Então, o que acha? — perguntou o professor Wild ao seu colaborador, assim que este
acabou de estudar o relatório.
— É possível — admitiu Koatu a contragosto. — Mas onde deveremos procurar a outra
substância? No liquitivo ou no seu elemento ativo?
— Era o que eu gostaria de saber, Koatu — o professor Wild deu a entender que já não
sabia o que fazer.
***
Uma bela manhã Phil Morris apresentou-se como jogador de golfe no clube, a fim de
seguir o conselho de seu amigo Rengall. Mas uma surpresa muito desagradável lhe estava
reservada.
191
O gerente, Garry Rascall, não lhe dispensou as atenções que seriam de esperar. Parecia
nervoso e perturbado e não fazia o menor esforço para disfarçar o gênio irritadiço.
— O que veio fazer aqui a uma hora destas? — perguntou. — Ninguém costuma jogar tão
cedo...
— Não pretendo jogar golfe — disse o médico. — Quero fazer uma visita ao senhor e ao
seu excelente bar...
— Na última noite alguém já me fez esta visita — respondeu Rascall, cujos olhos
subitamente se estreitaram ao encarar Morris. — Anteontem de noite o senhor tomou uma
bebedeira daquelas.
— Foi o liquitivo. Senti falta do mesmo:
Foi por isso que resolvi procurá-lo. Sir Rengall me contou que o senhor ainda tem
alguma coisa em estoque. Só pretendo ir à cidade dentro de algumas semanas. Por isso seria
muita gentileza de sua parte se pudesse ceder-me alguns frascos. Para o senhor, deve ser mais
fácil fazer outra compra.
— O senhor devia ter vindo algumas horas antes — disse Rascall com uma entonação
estranha na voz. — Sir Rengall foi a última pessoa à qual forneci liquitivo.
— Mas...
— Queira acompanhar-me — pediu o gerente, e saiu caminhando à sua frente, em
direção à sede do clube.
Era um lindo bangalô, com uma varanda larga e degraus de madeira. Notava-se a falta de
uma grade, que fora removida à força. Os restos estavam jogados na rama. Morris teve uma
sensação nada agradável.
— Veja com seus próprios olhos, doutor. O liquitivo estava guardado no armário atrás do
bar. Foi roubado. A mesma coisa aconteceu ontem de noite na casa de Rengall. Antigamente
costumava-se roubar dinheiro, hoje em dia furta-se licor. Como este mundo está mudado!
Ao que parecia, aquele homem nem desconfiava do motivo daquela série de furtos. Era a
última chance de Morris.
— Bem, o licor não é barato. Vale seu peso em prata. Que tal tomarmos um trago para
matar o susto?
Rascall fez um gesto de assentimento.
Estava distraído. Ao que parecia, já não desconfiava de Morris.
— Está bem, doutor — foi até o bar e tirou uma garrafa bojuda da prateleira. — Pode ser
um uísque?
— Bem, prefiro um liquitivo. O senhor ainda deve ter alguns centímetros cúbicos.
Rascall balançou a cabeça, perplexo.
— Isso é o cúmulo! Não acabo de lhe dizer que a mercadoria foi roubada? Sim, também
os miseráveis frascos que estavam embaixo do balcão. Não deixaram um único. Tenho de ir à
cidade ainda hoje para renovar meu estoque, senão os sócios do clube acabarão arrebentando
tudo.
Phil Morris achou que seria preferível contar a verdade ao gerente. Se agissem em
conjunto, talvez conseguissem alguma coisa.
— Posso garantir que, na Flórida ou em qualquer parte dos Estados Unidos, o senhor não
conseguirá uma única garrafa do produto, mesmo que pague o dobro ou o décuplo do preço.
As remessas foram suspensas. Ao que tudo indica, o governo pretende curar-nos a força, por
meio de uma radical privação da bebida. Não será difícil imaginar as consequências. Dentro de
trinta dias, duzentos milhões de viciados farão desmoronar a civilização, ou terão de ser
presos.
Rascall fitou Morris de lado.
— O senhor já sabia disso anteontem de noite, quando arranjei as cem garrafas para
Rengall? Será que Rengall sabia?
192
Morris fez que sim. Parecia envergonhado. De repente um sorriso surgiu no rosto de
Rascall.
— Quer dizer que o senhor está numa enrascada, tal qual eu. Que bom! E agora? Será que
o senhor, que é médico, não vê nenhuma saída?
— O pessoal de Terrânia não encontrou saída. Como é que eu poderia encontrar? Só há
um meio: arranjar liquitivo em algum lugar. Não tenho a menor vontade de passar o resto dos
meus dias num hospício. Ainda poderei viver nove ou dez anos. E pretendo vivê-los.
— Eu também — disse Rascall. — Onde poderemos encontrar liquitivo?
— Na cidade. Feche seu “botequim” e venha comigo. A corrida ainda não começou, e por
enquanto não houve nenhum anúncio oficial. Pouca gente deve desconfiar de alguma coisa.
Precisamos tentar adquirir os eventuais estoques. O senhor tem uma arma?
Rascall fez que sim. Parecia espantado.
— Naturalmente. Para quê?
— Vamos levá-la.
Rascall olhou para o armário arrombado e compreendeu. Pôs a mão na gaveta e tirou
uma pistola. Enfiou-a no bolso do casaco.
— Vamos pegar o carro de entregas?
— Isso chamará menos a atenção — disse Morris, concordando com a sugestão.
— Dessa forma teremos motivo para perguntar em toda parte se há liquitivo, sem
provocar maiores desconfianças. Em primeiro lugar procuraremos o atacadista que costuma
fornecer-lhe o produto.
Antes que chegassem aos subúrbios, começaram a desconfiar que sua tentativa haveria
de fracassar. Ao reconhecer o veículo do clube, uma massa ululante parou-os.
Antes que Rascall pudesse perguntar qual era o motivo do tumulto, foi arrancado da
cabina e obrigado a abrir o compartimento de carga. As pessoas reviraram-no e soltaram
gritos de decepção ao constatarem que no carro só havia garrafas e caixas vazias.
— Onde esconderam o licor? — perguntou um homem, segurando Rascall pela gola do
casaco e sacudindo-o. — Fale logo, se não quiser morrer.
— Que licor? — perguntou Rascall num gemido, e fez um movimento discreto com a
mão, a fim de pegar a arma. — Não sei do que estão falando.
Realmente não sabia, mas imaginava.
Tal qual Morris, que fora deixado em paz.
— Liquitivo, seu burro! — berrou o homem que segurava o gerente, e desferiu-lhe um
golpe que o fez cambalear e cair ao chão. — Você sabe tão bem quanto eu que não há mais
meio de arranjar aquilo. Procuramos por toda a cidade. Diga logo, senão...
Não pôde prosseguir.
Rascall conseguiu arrancar a pistola do bolso do casaco. Levantou-se de um salto e
apontou a arma para o cabeça do bando. Os homens recuaram.
— Ligue o motor, Morris! — gritou, enquanto engatilhava a arma. A pistola deu um
ligeiro estalo.
Estava pronta para ser disparada. — Abram caminho — disse, dirigindo-se ao homem
que lhe dispensara um tratamento tão áspero. — Não temos liquitivo. Alguém há de
providenciar para que o mercado volte a ser suprido. Deixem-nos passar!
Brandiu ameaçadoramente a arma para abrir caminho. Morris ligou o motor e pôs-se no
volante. Engatou a primeira e abriu a porta do lado direito.
Rascall saltou sobre o estribo e segurou-se com a mão direita. O cabeça do bando
esqueceu-se de todas as cautelas e procurou segurar a perna do gerente do clube, a fim de
evitar que entrasse no veículo.
— Não permitam que escapem! — gritou em voz alta. — Têm o licor escondido na cabina
e não querem dar-nos.
193
Rascall fez pontaria e atirou. O chefe do bando deu um grito e soltou sua perna. Morris
acelerou, enquanto o gerente ia entrando no veículo. Atrás deles a multidão começou a uivar,
mas já era tarde. Desta vez a presa lhes escapara.
— O senhor matou o homem, Rascall?
— Não; apenas atirei em sua perna. Por enquanto esse sujeito não assaltará mais
ninguém. Vivemos num estado de anarquia. Vamos diretamente ao atacadista.
Constataram que outros tiveram a mesma idéia antes deles. O gigantesco edifício estava
cercado. Gigantescos cartazes e coros de vozes esclareciam o que a multidão queria. Exigiam a
entrega dos estoques de liquitivo.
Morris parou o veículo.
— Pois vamos a pé — decidiu Rascall, guardando a arma e abrindo a porta do carro. —
Sou um velho conhecido do chefe do depósito. Posso garantir que nos cederá algumas garrafas
de liquitivo, desde que ainda tenha o material em estoque. Venha comigo, doutor.
Deixaram o carro estacionado e aproximaram-se do depósito pelos fundos. Entraram
sem incidentes numa porta lateral. Mas para sua surpresa um policial impediu que
prosseguissem.
— Pare! Quem são os senhores?
Um sorriso tranqüilo surgiu no rosto de Rascall.
— Somos do clube de golfe, sir. Sou o gerente.
— O que vieram fazer aqui?
— O que houve? Será que o estabelecimento foi confiscado? Pretendo fazer compras
para o bar do clube. Será que isto é proibido?
— Compre o que quiser, menos liquitivo. Na saída serão revistados.
— Isso é...
— São as ordens que recebi — disse o policial em tom resignado. — Se quiser
informações mais detalhadas, pergunte aos meus superiores. Parece que o senhor ainda não
percebeu que foi proclamado o estado de emergência.
— Só por causa do liquitivo? — perguntou Morris.
O policial lançou-lhe um olhar desconfiado, mas irônico.
— Já percebeu isso?
Encontraram o chefe do depósito no escritório. Além disso, havia dois funcionários
uniformizados na sala. Examinavam uma lista e confabulavam em voz baixa. De inicio não
demonstraram o menor interesse pelos recém-chegados.
— Olá, Rebok. O que houve? Será que os tempos da lei seca voltaram?
Rebok era um homem de meia-idade que vestia um guarda-pó azul. Apertou a mão de
Rascall e também cumprimentou Phil Morris.
— Até parece, Garry. É bem verdade que a proibição só atinge o liquitivo. O produto foi
confiscado.
— Confiscado? — repetiu Rascall, bastante pálido de susto. — Por quê? Pretendia fazer
uma compra.
— Sinto muito, Harry. Você pode comprar o que quiser, menos liquitivo.
— Mas...
Um dos funcionários uniformizados levantou a cabeça e perguntou:
— Quem é o senhor?
Rascall identificou-se e apresentou Morris. Este disse:
— Sou médico, tenente. Se os estoques de liquitivo forem confiscados, haverá uma
catástrofe. Os viciados já estão tumultuando a cidade. O senhor deve saber que a privação da
droga durante seis dias causa um colapso nervoso total. O senhor poderá assumir a
responsabilidade por esse estado de coisas?
194
— Não demorará seis dias, doutor. Apenas estamos fazendo um levantamento dos
estoques, que serão distribuídos de tal forma que cada viciado receberá uma garrafa, O
governo apenas pretende uma suspensão de uma semana.
— Uma suspensão de uma semana? O que vem a ser isso?
— Novas remessas de liquitivo estão chegando do espaço. Estas, juntamente com os
estoques já existentes, deverão ser suficientes para abastecer noventa por cento da população.
E o abastecimento dos dez por cento restantes também estaria garantido, se os estoques
sonegados fossem descobertos, O senhor compreendeu?
— O senhor falou muito claro — disse Morris. — O que acontecerá depois de uma
semana? Esperam-se novas remessas? O abastecimento posterior estará garantido?
— Sinto muito, mas sobre isso não lhe posso dar qualquer informação.
Rebok lamentava. Dirigindo-se a Rascall, disse:
— Se soubesse antes, não haveria nenhum problema em arranjar algumas garrafas para
você.
Mas da forma que estão as coisas... Bem, sinto muito, Harry.
— Não há problema. A culpa não é sua. Ontem de noite me roubaram novecentas
garrafas de liquitivo. Talvez a polícia esteja interessada em saber disso.
Os dois funcionários uniformizados realmente se interessaram e reduziram a termo as
declarações de Rascall. Quando este as assinou, um deles disse:
— Novecentas garrafas! Isso significa que novecentas pessoas deixarão de ser
abastecidas. Vê o que significa sonegar o material?
— Serão apenas oitocentos e noventa e nove pessoas — retificou Rascall com a voz
tranqüila. — Não devemos contar o ladrão.
Quando deixaram a cidade para trás, ligaram o rádio do carro e ouviram que o governo
decretara o estado de emergência. Na Europa já houvera choques entre os viciados e a polícia.
Havia mortes a lamentar. Os governos dos diversos países pediram que a população se
mantivesse calma. Afirmavam que dentro de uma semana haveria quantidades suficientes de
liquitivo para atender às necessidades de todos.
Phil Morris contemplava a paisagem.
— O senhor acredita nisso? — perguntou em tom sombrio.
Rascall fez que não.
— Não acredito muito, doutor. Isso apenas representa um calmante para o povo.
— E o calmante não produzirá o menor efeito. Nem poderia produzir! Uma pessoa que
adquiriu o vício continuará viciada pelo resto da vida. Se o licor não chegar dentro de uma
semana, haverá uma catástrofe.
Acontece que a catástrofe já começara!
Nos portos espaciais dos diversos continentes grandes massas de gente se comprimiam.
Recorriam ao dinheiro ou às ameaças para conseguir passagens para os destinos mais
impossíveis, na esperança absurda de que em outros mundos habitados encontrariam
liquitivo à vontade. As primeiras noticias de catástrofe pareciam relativamente
insignificantes. Um grupo de homens inescrupulosos dominara a tripulação de uma pequena
nave cargueira e obrigara a decolar. A nave desaparecera e nunca mais fora encontrada.
Mas da América do Sul chegou a notícia de que o maior porto espacial dessa parte do
mundo fora tomado de assalto por uma multidão. A polícia era impotente. Várias instalações
foram destruídas e três naves caíram e explodiram em virtude de decolagens mal executadas.
Era o princípio do fim. Em todo o mundo, as pessoas viciadas no liquitivo revoltavam-se
contra a lei e a ordem, exigindo que lhes fosse fornecido o entorpecente.
A ordem da Terra estava prestes a entrar em colapso.
***
195
— Não tenho outra alternativa — disse Perry Rhodan, ao notar o olhar indagador de Jefe
Claudrin e Bell. — Se o blefe não for bem-sucedido, tudo estará perdido. Em hipótese alguma
posso ordenar a prisão de duzentos milhões de terranos. E a prisão é a única maneira de
afastar a periculosidade de um louco.
— E os cientistas? — perguntou Bell em voz baixa. — Afinal, eles têm à sua disposição
mais de cinco mil fura-lamas. Devem estar em condições de produzir liquitivo. Basta que eles
se apressem, para que os viciados...
Rhodan interrompeu-o.
— Você não ouviu a penúltima mensagem vinda de Terrânia. Todas as sumidades estão
de acordo em que a substância ativa, cuja composição química nos é conhecida, não é um
tóxico, mas um excelente preparado rejuvenescedor. E essa substância não é outra coisa
senão o produto da secreção das glândulas dos fura-lamas.
Bell fitou-o com uma expressão de perplexidade.
— Serei capaz de acreditar em muita coisa, Perry, mas qual é a causa do vício maldito, e
qual é a substância que, depois de doze anos de consumo da droga, leva à morte?
— Nossos cientistas ainda não descobriram. Supõem que no liquitivo exista outra
substância ativa, que ainda não conseguiram identificar.
— Será possível? — Bell parecia apavorado.
— Só posso acreditar no que dizem os entendidos. Com isso torna-se cada vez mais
patente que nossa única esperança são os antis, que se mantêm escondidos no fundo do mar
de Okul. Não respondem às mensagens que lhes enviamos pelo rádio, mas tenho certeza de
que nos ouvem.
Por isso temos de irradiar uma mensagem à qual terão de responder, a não ser que
queiram arriscar suas vidas.
— E Lepso? — perguntou Claudrin.
— Isso está liquidado — responde Rhodan. — Os estoques existentes no planeta foram
levados à Terra e distribuídos. A semana de que dispúnhamos está chegando ao fim. As
notícias vindas da Terra são cada vez mais alarmantes. Já temos a lamentar mais de dois mil
mortos e feridos. Temos de agir. Assim chegaremos uma conclusão, seja ela qual for. Afinal,
antis não têm vocação para o suicídio.
Claudrin soltou um suspiro e transferiu sua figura maciça para o outro lado da poltrona.
— Está bem, sir. Dê-me o texto exato. Providenciarei para que seja irradiado por todos os
transmissores, inclusive os dos submarinos — tirou papel e lápis. — Pode dizer.
Rhodan refletiu por um instante e começou a ditar:
— Chamo Thomas Cardif e os antis. O planeta Okul está cercado. A fuga será impossível.
Coloquei cinco mil fura-lamas a bordo da minha nave, o que me permitirá prosseguir nos
ensaios científicos, mesmo quando o planeta não exista mais. Pelo presente concedo-lhes um
prazo de exatamente três horas. Se até o fim desse prazo não tiver em mãos a fórmula de um
antídoto do liquitivo, mandarei destruir o planeta por meio de bombas arcônidas. A partir
deste momento nosso equipamento de rádio permanecerá continuamente em recepção.
Repito...
Claudrin levantou a cabeça.
— Acredita que os antis morderão a isca?
— Não terão outra alternativa, dentro da lógica. Por outro lado, é certo que sabem
pensar e agir com toda coerência. Cardif estará disposto a negociar. É ao menos isto que
espero conseguir com nosso ultimato.
— Queira perdoar, sir, mas não confio em Cardif.
Um sorriso amargo surgiu no rosto de Rhodan.
— Não há nada para perdoar, major. Também não confio nele. Esperemos para ver o que
pode oferecer-nos. Providencie para que a mensagem seja irradiada imediatamente por todos
os transmissores. Deverá ser repetida dez vezes. Depois disso os rádios ficarão
196
constantemente em recepção. Aposto qualquer coisa como responderão. Preparem o
equipamento goniométrico para essa eventualidade. Temos de saber onde se encontra o
transmissor dos antis. Mesmo que a resposta seja negativa, teremos ao menos a possibilidade
de colocá-los fora de ação sem destruir o planeta.
Jefe Claudrin levantou-se. Caminhando pesadamente, saiu do camarote de Rhodan.
Bell permaneceu em companhia deste. Coçando os cabelos rebeldes, num gesto
pensativo, disse em tom contrariado:
— O que pretende fazer se não responderem ao ultimato, Perry?
Rhodan fitou-o.
— Transformarei Okul num sol. Se quisermos extinguir o mal pela raiz, não teremos
outra alternativa. Se Cardif for eliminado, os antis ao menos abandonarão seu plano decenal.
Conseguiremos a pausa de que tanto precisamos. Não me olhe assim Bell. Você acha que é fácil
condenar à morte um mundo inteiro, mesmo desabitado?
Bell fitou o teto. Não respondeu.
***
198
4
201
Rhodan pareceu ter perdido a fala por alguns segundos, pois sua resposta demorou
bastante.
— Querem ajudar-nos? Estou curioso para saber como. Sou todo ouvidos.
Thomas Cardif lançou um olhar de triunfo para Rhabol. Sentiu-se vitorioso.
Evidentemente não se entregava a qualquer otimismo exagerado, mas num canto de seu
cérebro começaram a desenhar-se os contornos imprecisos de um plano arrojado, cuja
execução apenas exigia tempo.
Umas poucas horas seriam suficientes.
— Vocês conseguirão fabricar liquitivo dentro de três meses. Talvez. Mas o que
acontecerá até lá?
— É um erro subestimar nossos cientistas.
— É um erro ainda maior superestimá-los.
— Deixemos de palavras vazias — respondeu Rhodan, com um tom de voz que revelava
certa impaciência. — Só faltam dois minutos. Depois disso mandarei dar inicio à ação de
destruição. Se tiver uma oferta, diga logo. Ande depressa!
Cardif estremeceu. Seu rosto retratava um ódio profundo, mas a voz continuava firme e
tranqüila. Possuía o mesmo dom de autodomínio que o pai.
— Estamos dispostos a entregar-lhes três depósitos dos saltadores. Os estoques de
liquitivo existentes nos mesmos poderão abastecer os mundos solares por vários meses.
— Nada mau — respondeu Rhodan. — O que você exige em troca?
— Okul não deverá ser destruído — disse Cardif. — Além disso, vocês colocarão à nossa
disposição uma espaçonave capaz de transportar duzentas e cinqüenta pessoas, com uma
provisão adequada de água e mantimentos. É só isso.
— É só isso — disse a voz saída do alto-falante em tom ligeiramente irônico.
Cardif imaginava o sorriso de Rhodan, e seu rosto ficou desfigurado pela cólera. Mas
soube dominar-se. Em hipótese alguma deveria trair suas emoções.
“Quem ri por último sempre ri melhor”, pensou. “E eu, Cardif, serei a pessoa que rirá por
último.”
— Não é muito, se considerarmos o que vocês receberão em troca.
Naquele instante terminou o prazo do ultimato.
— Está bem: concordo. Dê-me os nomes dos planetas em que se encontram os depósitos
dos saltadores.
Depois de Cardif ter citado os nomes, Rhodan acrescentou:
— Cumprirei um acordo, mas há uma restrição. A espaçonave que será entregue por
mim não levará duzentas e cinqüenta pessoas, mas apenas duzentas e quarenta e nove.
Entendido?
— O que quer dizer com isso?
— O que quero dizer é que você não irá com os antis, mas viajará conosco. Você será meu
prisioneiro.
— Não.
— Tanto faz. Nesse caso iremos buscar o liquitivo nos planetas que você acaba de indicar
sem levá-lo a bordo, já que você estará morto.
Cardif cerrou os dentes para não berrar para dentro do microfone. Revelou um
autodomínio que nem mesmo o sacerdote pôde deixar de admirar. Falando no tom mais
tranqüilo de que era capaz, disse:
— Isso é coação e chantagem. Posso refletir calmamente sobre isso?
— Você pode refletir, mas não calmamente. Nesse meio tempo arranjarei a nave e a
mandarei pousar. Nossos instrumentos de localização já apuraram a posição de sua fortaleza,
e por isso não teremos a menor dificuldade em encontrar um local de pouso adequado.
202
— Já conhecem a localização de nossa fortaleza? — repetiu Cardif, e sorriu desapontado.
— Que interessante! — soltou uma risadinha. — Aliás, você se enganou nos cálculos, Rhodan.
Os antis são duzentos e cinqüenta, sem contar minha pessoa. Não se esqueça desse detalhe.
— Você dispõe de mais uma hora. Não se esqueça disso — respondeu Rhodan com a voz
fria. — Exatamente dentro de uma hora quero ouvir sua resposta. E dessa resposta dependerá
seu destino. Pense bem. Daqui a uma hora voltarei a chamar.
O alto-falante emitiu um ligeiro estalido. Depois disso só restou um zumbido no interior
da sala.
O sacerdote esperou até que o radioperador desligasse o transmissor. Depois disse,
dirigindo-se a Cardif:
— Nós, os sacerdotes de Baalol, estamos salvos. Rhodan só está interessado em você.
— Você acredita que ele conseguirá pôr as mãos em mim? — perguntou Cardif em tom
sarcástico.
— Não pense que vocês poderão comprar sua liberdade à minha custa. Antes que Isso
aconteça, revelo a Rhodan a situação desta fortaleza e das outras bases. As coisas não serão
tão fáceis como você pensa. Além disso, tenho um plano.
Rhabol aproximou-se. Havia um tom de espreita em sua voz.
— Que plano é esse?
Um sorriso irônico surgiu no rosto de Thomas Cardif.
— Avise seu pessoal para que compareça ao laboratório e prepare uma operação. Mande
que os médicos se dirijam ao setor cerebral. Preciso falar com eles. Todos os especialistas
deverão aguardar-me no grande auditório. Comparecerei dentro de dez minutos.
— O que pretende fazer? — perguntou o sacerdote em tom impaciente.
Thomas Cardif expôs seu plano.
***
Quando Rhodan desligou, Bell não conseguiu controlar-se mais. Durante todo o tempo
mantivera-se junto a Rhodan, com os dentes cerrados, dominando-se a muito custo.
— Pretende deixar que se vá, se insistir nisso?
Rhodan virou-se lentamente. Seu rosto parecia impassível.
— Temos uma hora para pensar sobre isso — limitou-se a dizer, dando a entender que a
decisão final ainda não fora tomada.
— Não tenho certeza de que realmente encontramos a fortaleza. Apenas localizamos o
transmissor, que fica a quatro metros de profundidade. Não existe submarino que possa
mergulhar tão fundo. Nem mesmo o dos antis. Se a fortaleza fica no fundo do mar, resta saber
como conseguiram chegar lá.
Bell fitou Rhodan.
— Acredita num blefe? Como poderiam transmitir de uma profundidade dessas sem que
eles mesmos...?
— Por meio de um dispositivo teleguiado, Bell. Deveríamos ter pensado nessa
possibilidade.
A porta abriu-se. O General Deringhouse entrou.
— Alguma ordem, sir?
— Por enquanto não. Apenas, a ação planejada sofre um adiamento de uma hora.
Providencie para que as respectivas ordens sejam expedidas através de mensagens de rádio
não codificadas. As bombas arcônidas continuarão a ser mantidas de prontidão. Quanto à nave
destinada aos antis, pode ser providenciada posteriormente.
— Talvez consigamos convencer os saltadores a recolher o bando a bordo de sua nave —
sugeriu Bell. — Há muitos por aqui.
203
— Isso é uma afirmativa um tanto exagerada — disse Perry Rhodan com um ligeiro
sorriso. — De qualquer maneira, acho que conseguiremos arranjar uma nave mercante
saltadora que disponha de espaço em seus porões de carga. Mas vamos aguardar até que o
prazo de uma hora chegue ao fim.
Aquela hora custaria muito a passar e, antes que chegasse ao fim, aconteceu algo
totalmente imprevisto.
Rhodan encontrava-se na sala de comando da Ironduke, juntamente com Bell. Estava
discutindo com o General Deringhouse as próximas medidas a serem tomadas. Subitamente a
porta que dava para a sala de rádio foi aberta com grandes demonstrações de nervosismo. Era
o chefe da equipe de rádio, que exclamou:
— Sir, é Thomas Cardif!
Rhodan não perdeu a calma.
— Estávamos aguardando sua mensagem. Já vou.
— Não é isso, sir. Cardif está chamando pela comunicação audiovisual. Acha-se na
superfície.
Temos a nova posição em que se encontra.
Rhodan não respondeu. Dirigiu-se apressadamente à sala de rádio, onde o rosto do filho
o fitava de uma pequena tela. O transmissor devia funcionar com uma intensidade mínima,
pois a imagem era pouco nítida, com os contornos apagados, embora se reconhecesse
perfeitamente o rosto de Cardif.
— Aqui fala Rhodan. Resolveu alguma coisa?
Rhodan preferiu não ligar a câmara.
Dessa forma via Cardif, mas este não podia vê-lo.
— Resolvi, sim.
Parecia haver um certo tom de espreita na voz de Cardif. Rhodan resolveu agir com
cuidado.
Mas as palavras que se seguiram fizeram com que se esquecesse da cautela, que foi
substituída por uma tremenda curiosidade.
— Refleti demoradamente sobre o assunto. Quero falar com você. A sós... Rhodan.
— Nossa palestra não está sendo ouvida por nenhuma pessoa que não possa conhecer a
decisão tomada por você.
— Você não me entendeu. Acho que deveríamos encontrar-nos, para conversar a sós
sobre todos os detalhes.
— Encontrar-nos?
Rhodan ficou perplexo. A resposta demorou um pouco. Milhares de idéias e alternativas
passaram por seu cérebro. Bell e Deringhouse, que também se achavam na sala de rádio,
entreolharam-se. Encontravam-se numa posição em que Cardif não poderia vê-los, mesmo
que a câmara da Ironduke estivesse ligada.
— Será que há algo demais na minha proposta? — perguntou Cardif em tom impaciente.
— Você acha que isto é um truque, não é? Acontece que a esta altura um blefe não adiantaria
mais nada. Vim só à superfície. Meus aliados encontram-se numa fortaleza segura, situada no
topo de uma montanha. Minha posição já foi determinada por seus radiogoniômetros. Você
realmente acha que eu seria capaz de assumir um risco como este, se não confiasse em você?
— Você confia em mim?
— Confio, sim, e peço-lhe que retribua esta confiança. Refleti sobre tudo, e começo a não
compreender a mim mesmo. É verdade que o odiei porque acreditava que tivesse assassinado
minha mãe e...
— Acreditava? — repetiu Rhodan em tom de perplexidade. — O que quer dizer com
isso?
— Já começo a duvidar disso. Você poderá explicar tudo, e já estou disposto a acreditar
em você. Poderíamos esquecer muitas coisas do passado.
204
— Para falar com franqueza, Thomas, a reviravolta é muito repentina. Além disso, você
resolveu professar idéias e tomar atitudes mais recomendáveis, justamente no momento em
que o perigo é maior. Você há de concordar, pois, que uma conduta dessas não é muito
convincente.
— Você não deixa de ter sua razão, mas deve considerar certas circunstâncias. Os
sacerdotes libertaram-me contra minha vontade. Submeteram-me à força a um tratamento de
choque, que me restituiu a memória e a personalidade. Talvez até tenham atiçado meu ódio
contra você e contra a Terra. Não sei. A situação desesperadora em que me encontro levou-me
a refletir, e minhas reflexões produziram o resultado que você por certo considera
surpreendente.
Rhodan continuava desconfiado. Era incapaz de imaginar que num tempo tão curto
pudesse haver uma modificação tão radical, que correspondia exatamente aos desejos mais
arraigados nas profundezas de seu coração.
Seria possível que o tratamento de choque que rompera o bloqueio hipnótico poderia
produzir um resultado como este?
— Não acredito na mudança de atitude que você quer exibir — disse depois de algum
tempo, mas teve uma dificuldade tremenda em pronunciar estas palavras. Gostaria tanto de
acreditar no filho. — Você apenas quer atrair-me a uma armadilha — um sorriso frio surgiu
em seu rosto. — Talvez pretenda ganhar tempo, à espera de auxilio. Mas isso não adiantaria,
porque este planeta está bloqueado. Nem mesmo a força dos antis será capaz de romper o
bloqueio.
— Sei disso. Justamente por isso qualquer armadilha seria inútil — confessou Cardif, e
sua voz parecia exprimir tristeza.
— Agora, que finalmente cheguei à decisão de dialogar, você se recusa a acreditar em
mim. Se é que existe algo de bom dentro de mim, sua desconfiança o sufocará. Como é que o
substrato bom de minha alma pode manifestar-se?
Rhodan percebeu que se defrontava com a decisão mais difícil de toda a sua vida. Era
uma decisão que lhe estava sendo imposta. Mas ao mesmo tempo era uma decisão pela qual
ansiara com todas as fibras do coração, mas que já não tivera esperanças de alcançar.
— Sou seu pai, Thomas — disse em tom menos duro. — Acontece que você também é
meu inimigo mortal. Você trouxe um sofrimento imenso para a Terra e para outros mundos,
apenas para atingir a mim, que afinal sou apenas uma pessoa. Cometeu crimes porque estava
perseguindo um fantasma. Muitas pessoas já o condenaram à morte, e eu sou uma delas.
Gostaria de acreditar em você, mas não sei se posso, se devo assumir a responsabilidade por
um passo como este.
— Todos cometem erros, e eu estou reconhecendo os que pratiquei. Tentarei repará-los.
Foi eu quem criou o liquitivo, e sei como fabricá-lo. Até poderia ajudá-lo a produzir um
antissoro que neutraliza os efeitos do vício e talvez possa mesmo evitar a morte, que constitui
a fase final do processo mórbido. Se puder dispor dos pesquisadores mais competentes e dos
laboratórios mais bem equipados, talvez consiga. Só assim poderei reduzir a carga de culpa
que pesa sobre meus ombros. Mas se você recusar a mão que lhe estendo, não sei o que será
de mim.
Rhodan lançou um olhar para Deringhouse e Bell. Parecia que estava pedindo socorro.
Ambos fitaram-no com uma expressão de dúvida e insegurança. Os dois se mantiveram
parados.
Conforme esperava, Rhodan se viu só. A decisão teria que ser dele. Sentiu que essa
decisão não seria determinada apenas pela inteligência, pois sofreria um condicionamento
sentimental.
Deveria assumir a responsabilidade por isso? As decisões condicionadas pelo sentimento
muitas vezes entravam em conflito com a razão. E agora seu raciocínio lhe dizia que o ódio
205
obstinado de seu filho não poderia modificar-se tão repentinamente, para transformar-se em
arrependimento e mesmo simpatia.
Procurou uma saída para suas dúvidas.
E encontrou-a. Chegou mesmo a revelá-la abertamente.
— Não é fácil acreditar em você, Thomas Cardif, mesmo sendo meu filho. Se eu
concordar com um encontro com você, apenas o faço para conhecer suas intenções. Quero
descobrir os motivos da pretensa modificação de seu estado de ânimo. Mas nem pense em
armar-me uma cilada. Meus homens estarão à espera nas proximidades e...
— Irei só, e espero que você também. O platô em que nos encontraremos é muito
pequeno. Nenhuma nave pode pousar no mesmo. Foi um planador que me deixou aqui
juntamente com o aparelho de rádio. Se você quisesse atacar-me, eu estaria praticamente
indefeso. Se vier só, defrontar-nos-emos a sós, e acho que você não tem medo de mim. Não
estou armado.
“Isso também pode ser uma armadilha e uma mentira”, pensou Rhodan, que já estava
decidido a arriscar a experiência.
Não deveria garantir sua retirada? Qualquer passo em falso colocaria em risco o êxito já
alcançado. Mas, por outro lado, não devia perder nenhuma chance de conseguir a colaboração
do filho a favor da Terra.
— Está bem; irei. Se possível, a pé.
— Será fácil. Cem metros abaixo do platô existe uma planície na qual pode pousar uma
nave. A partir de lá, você deverá ir sozinho. Concordo plenamente em que a nave fique à sua
espera. Você há de reconhecer que a mesma pode estar em cima do platô dentro de poucos
segundos, se houver algo de suspeito. Ninguém deverá vir ao platô sem que seus homens o
vejam.
Essas palavras pareciam convincentes.
As últimas dúvidas de Rhodan desfizeram-se.
Surgiu uma ligeira pausa, quando chegaram os resultados da determinação
goniométrica. Rhodan examinou-os. A mensagem de Cardif fora expedida numa pequena ilha
rochosa, situada em meio a um dos grandes oceanos. O continente mais próximo distava
quinhentos quilômetros.
Mas havia um detalhe que Rhodan não conhecia. A pouco menos de cem quilômetros da
ilha, uma gigantesca cadeia de montanhas submarinas estendia seus cumes a mil metros
abaixo da superfície.
— Chegarei à ilha dentro de trinta minutos — disse Rhodan em tom resoluto. — Mas
quero fazer-lhe uma advertência, Thomas. Se houver qualquer movimento suspeito, não terei
mais nenhuma contemplação. Esta é a última tentativa de estender-lhe a mão. Não se esqueça
disso.
— Eu o espero — disse Cardif.
A tela apagou-se. O radioperador da Ironduke desligou o aparelho.
Rhodan caminhou lentamente em direção à sala de comando, seguido por Deringhouse e
Bell. Os dois não pareciam muito confiantes, e não ocultaram sua opinião.
— Não sei como você pode cometer a leviandade de confiar em Cardif, por um segundo
que seja — esbravejou Bell, dando vazão à indignação que sentia. — Você acredita realmente
nessa transformação milagrosa de seu caráter? Se o choque produzido pelo tratamento
produziu alguma alteração, Cardif levou muito tempo para senti-la.
Deringhouse manifestou a mesma opinião.
— Não acredito que Cardif tenha levado tanto tempo para notar a reviravolta em seu
interior, se é que ela realmente ocorreu.
— Não digo que confiarei nele sem restrições — respondeu Rhodan, falando devagar e
examinando o mapa que estava estendido sobre a mesa, onde a ilha já havia sido assinalada.
— Como poderia armar-me uma cilada? Afinal, encontra-se numa ilha solitária. A Ironduke
206
ficará nas proximidades. Ninguém poderá aproximar-se do platô sem ser notado. Tenho de
arriscar!
— Quer dizer que a manobra se inspira principalmente na curiosidade — disse
Deringhouse, numa tentativa de análise. — Se estivesse na sua situação, provavelmente agiria
da mesma forma, sir.
— Obrigado, general! — agradeceu Rhodan e fitou-o com uma expressão de alívio. — No
fundo não tenho outra alternativa, e Thomas Cardif sabe disso tão bem quanto eu.
Não é só por ser meu filho. Devemos tentar tudo para pôr as mãos no fabricante do
liquitivo. O que estamos esperando? Transmita as instruções necessárias à frota, que deverá
ficar em rigorosa prontidão. Se a Ironduke for atacada, a destruição do planeta será iniciada
imediatamente. Nesse caso interromperei todos os contatos com Cardif. Entendido?
Deringhouse confirmou com um gesto.
— Pois siga em direção à ilha, general!
Enquanto a Ironduke abandonava sua órbita, desacelerando e mergulhando na
atmosfera, Rhodan preparou-se para o encontro com o filho. Refletiu por muito tempo, e
finalmente resolveu compartilhar a desconfiança dos amigos. Colocou um pequeno radiador
portátil no bolso do lado direito da calça do uniforme. Não estava disposto a colocar-se à
mercê de seu pior inimigo, sem dispor de uma única arma. Talvez estivesse cometendo uma
injustiça contra ele, talvez não estivesse.
Avistaram a ilha. A gigantesca nave aproximou-se lentamente e sobrevoou a pouca altura
a única montanha existente. Realmente havia um platô no cume dessa montanha. Era
pequeno. Devia medir menos de trinta metros de diâmetro. Uma nave de grandes dimensões
dificilmente conseguiria pousar ali.
Um vulto solitário estava de pé no centro do platô e olhava para cima. Via-se
perfeitamente o rosto. Thomas Cardif estava só. Na rocha nua não havia o menor esconderijo.
Ninguém poderia esconder-se sobre o platô ou nas proximidades do mesmo sem que as
pessoas que se encontravam na nave o vissem.
— Se isso for uma armadilha — disse Deringhouse em tom de ceticismo — estou curioso
para ver como funcionará. Acho que Cardif desacompanhado dificilmente representará um
perigo para o senhor.
Rhodan confirmou com um gesto.
— Também penso assim. Vamos pousar. Perto do platô, conforme Cardif pediu. A
planície permite o pouso.
A gigantesca nave desceu lentamente sobre a superfície e pousou com um movimento
suave.
Bell acompanhou Rhodan até a saída.
— Não consigo livrar-me da impressão de que há algo de errado nisso, Perry. Como
poderemos saber o que estará acontecendo? Daqui não se vê a face oposta do platô.
Rhodan parou na saída da eclusa. Bem à frente dele tremeluzia o campo
antigravitacional que o levaria para baixo. Finalmente disse:
— Trago o emissor no bolso. O aparelho emitirá um sinal goniométrico, que indicará
ininterruptamente a minha posição. Além disso, poderei chamar a qualquer momento pelo
rádio — apontou para o aparelho versátil que trazia no pulso. — Além disso, concordo
plenamente em que a Ironduke decole dentro de quinze minutos e aguarde minhas ordens
numa altitude maior. Você acha que isso basta?
Bell parecia mais tranqüilo.
— Acredito que sim — apertou a mão de Rhodan. — Quer dizer que decolaremos dentro
de quinze minutos. Até lá você mal e mal conseguirá chegar ao cume da montanha. Boa sorte.
***
207
Os médicos de Terrânia rejubilavam-se. Durante três dias e oito horas não haviam
notado que na tromba dos fura-lamas havia outra glândula que também produzia uma
secreção. No momento os primeiros ensaios de laboratório com essa secreção estavam sendo
realizados em células vivas envelhecidas e nos condutos nervosos. A gigantesca tela, límpida
como um cristal, projetava a visão proporcionada pelo microscópio dos aras, que produzia
uma ampliação de três milhões de vezes.
Ficaram muito surpresos ao notarem que a secreção da segunda glândula tinha as
mesmas características químicas da outra. Embora pouco tempo se tivesse passado desde o
momento do descobrimento da secreção, os resultados alcançados bastavam para provar
inequivocamente que o principio ativo era idêntico. Apesar disso os cientistas ainda não
estavam satisfeitos. Realizavam ensaios de laboratório com células e substâncias nervosas.
No entanto, a decepção revelou-se na tela.
A substância extraída da outra glândula também era um produto de efeitos
rejuvenescedores.
Não atacava os nervos. Não era o veneno dos nervos que criava uma dependência
irremediável, produzia a loucura e levava à morte.
Em meio à apresentação o professor Wild saiu correndo. Disparando o mais que podia,
aquele homem de sessenta anos dirigiu-se à sala de autópsia, na qual fora descoberta a
segunda glândula dos fura-lamas.
O chefe dessa seção era o Dr. A. Hughens. Este ouviu o relato exaltado do professor. Não
podia deixar de partilhar das suspeitas do eminente sábio.
— Venha, professor — disse Hughens de repente em tom impulsivo e levou-o para junto
do microscópio.
O professor Wild contemplou a glândula descoberta por acaso, ampliada 1,5 milhões de
vezes. À medida que observava sua estrutura, mais se exaltava. Guardava na memória a
estrutura orgânica da glândula dos fura-lamas que fora descoberta em Okul.
— Hughens — disse num cochicho, sem interromper seu exame. — Esta glândula não
pode produzir a mesma substância ativa que a outra! Dê uma olhada na parte superior
esquerda...
Afastou-se, para que Hughens pudesse acomodar-se junto ao microscópio. O biólogo viu
a reprodução, que apresentava uma nitidez inacreditável. O professor Wild tinha razão.
Acontece que, segundo as análises químicas, as substâncias eram idênticas.
Wild entrou em contato com a sala de projeção. Ouviu um resultado desalentador. A
secreção da segunda glândula também era uma substância rejuvenescedora, cujas
características químicas eram idênticas às da primeira.
— Não acredito! — esbravejou Wild. — Mesmo que os testes confirmem milhões de
vezes. Nesse caso direi que os testes estão errados. Deve haver outros métodos de exame.
***
As selvas fumegantes jaziam lá embaixo, nas planícies da ilha. Nos lugares em que
Rhodan se encontrava, não crescia nada, embora o calor favorecesse o crescimento. Faltava a
umidade.
Nas rochas não havia um centímetro sequer de terra; as mesmas estavam secas e
cobertas de pó.
A diferença de altitude que realmente o separava do platô de cima era de menos de
cinqüenta metros. A Ironduke, com seus oitocentos metros de diâmetro, parecia outra
montanha. Sua altura ultrapassava a do cume propriamente dito. Apesar disso, nem mesmo as
câmaras de televisão, instaladas na parte superior da nave, seriam capazes de registrar o que
se passava atrás do platô situado no cume da montanha.
Rhodan não se apressou.
208
Recriminou-se por ser um otimista, já que acreditara que finalmente o lado bom de
Thomas saíra vitorioso. Sua responsabilidade para com a Terra era maior que a que tinha para
com o filho.
Mas poderia perder qualquer chance de dialogar com Cardif? Estaria realmente agindo
apenas em benefício próprio? Não tinha diante de si a possibilidade de livrar a Terra e o
Império Solar de um pesado fardo, neutralizando um inimigo poderoso ou talvez
transformando-o num amigo?
Contornou um pedaço de rocha e viu à sua frente a última parte do caminho que tinha a
percorrer. A figura de Cardif destacava-se nitidamente contra o céu. Não via o rosto, porque a
luz vinda da frente o ofuscava. Mas não havia a menor dúvida de que a pessoa que via à sua
frente era Cardif.
Percorreu os últimos metros e viu-se à frente do filho, que recuou até o centro do platô.
Os dois homens entreolharam-se, examinaram o rosto um do outro e mantiveram-se em
silêncio.
Rhodan assustou-se. No primeiro instante teve a impressão de encontrar-se diante de
um espelho. O homem à sua frente era-lhe a cópia fiel. Mostrava o mesmo rosto magro e os
mesmos cabelos, apenas um pouco mais claros.
Os olhos também eram iguais, com exceção do brilho amarelento quase imperceptível,
que se tornara ainda mais débil. E a figura alta e esbelta também era idêntica à sua.
Cardif também contemplava o homem que se encontrava à sua frente, embora o fizesse
por motivos totalmente diversos. Ficou satisfeito por constatar que até então seu plano
perigoso fora bem-sucedido. Seu sósia Rhodan comparecera só ao platô. A vizinhança da
grande nave não lhe causava nenhuma preocupação. A mesma não poderia impedi-lo de
realizar seu intento. E agora, depois de decorridos cinqüenta e oito anos, Rhodan era
igualzinho a ele.
Naquele instante, os propulsores da Ironduke começaram a uivar, e a nave ergueu-se
lenta e majestosamente.
— Os homens acham que a uma altura maior terão uma visão mais ampla — disse
Rhodan a título de desculpa. — Isso não tem nada a ver com nosso acordo. Vim só.
Cardif olhou para a Ironduke, que estacionou a dez quilômetros de altura. A mancha
redonda cintilante mantinha-se imóvel. Rhodan sabia que as câmaras estavam apontadas para
o pequeno platô e seriam capazes de detectar instantaneamente qualquer perigo que surgisse.
Aquilo lhe dava uma sensação tranquilizadora.
— A nave não me preocupa — disse Cardif, enfrentando o olhar de Rhodan. — Você veio
só; era apenas isso que eu queria. Aliás, por que resolveu acreditar em mim?
Rhodan sentiu-se pasmo. Qual seria a finalidade da pergunta?
Respondeu com a maior tranquilidade:
— Talvez muitas das suas alegações poderiam corresponder à verdade. Resolvi verificar
pessoalmente. Se suas intenções forem honestas, venha comigo. Você terá à sua disposição
nossos cientistas mais competentes e os laboratórios mais bem equipados. Até poderíamos
esquecer o passado.
— Poderíamos mesmo, Perry Rhodan?
“O tom não combina com o arrependimento anteriormente manifestado”, pensou Rhodan,
perplexo, e resolveu ter muita cautela.
Seu instinto preveniu-o, embora ainda não visse nenhum perigo. Onde poderia estar o
risco?
Cardif encontrava-se a poucos passos, desarmado, com um sorriso irônico nos lábios. As
mãos pendiam junto ao corpo. Parecia despreocupado — despreocupado demais face à
situação em que se encontrava.
209
— Mais tarde poderemos conversar sobre tudo, Thomas. Vim para apertar a mão que
você me estende. Por que não me dá a mão? — estendeu a mão, sem sair do lugar. — O que
houve?
Fitou o rosto do filho, no qual parecia haver uma expressão de expectativa, de espreita. O
calor tornou-se quase insuportável, e Rhodan teve a impressão de que o ar começava a
tremeluzir sobre o platô de rocha. De repente os contornos do rosto de Cardif tornaram-se
menos nítidos.
Parecia flutuar atrás de um véu de ar aquecido.
O ar tornou-se sufocante.
Subitamente Rhodan compreendeu. Já era tarde. Pôs a mão direita no bolso e tirou a
arma portátil. Deu um salto em direção a Cardif, que continuou tranquilamente no mesmo
lugar.
Esbarrou contra o ar tremeluzente.
Era um campo protetor feito de energia, conforme imaginara. Acontece que o campo
abobadado envolvia a ele, Rhodan, não a Cardif. A abóbada isolava-o do mundo exterior.
Ainda bem que percebera em tempo. Na situação em que se encontrava, um disparo da
arma de radiações poderia ser-lhe fatal. E as ondas de rádio não mais seriam capazes de
chegar até a Ironduke, mas isso não fazia a menor diferença. Se estas deixassem de ser
captadas, Deringhouse ou Bell entrariam em alarma.
Então era mesmo uma cilada.
A decepção foi excessiva para Rhodan. Ainda não conseguia imaginar o que Cardif
pretendia alcançar, pois não poderia levá-lo dali sem correr perigo. Não foi só essa certeza que
fez com que Rhodan hesitasse. O que poderia fazer na situação em que se encontrava?
Revelara a Cardif que estava armado.
Fora um erro imperdoável. Com um gesto de resignação voltou a guardar o radiador.
O campo energético não poderia ser mantido para sempre. Como se formara? De que
forma era alimentado?
Os antis!
Só eles seriam capazes de erigir um campo energético como este por meio de suas
energias mentais. Deviam estar muito próximos. Onde? No platô não havia nenhum
esconderijo.
Estariam debaixo do solo?
De repente Rhodan teve a impressão de ter encontrado a resposta. Sentiu um abalo no
chão. O trecho do platô onde se encontravam começou a descer. Então foi por isso que
Thomas recuou. Quis atraí-lo para a plataforma que era o piso de um elevador.
E era incapaz de fazer qualquer coisa! Reduzido à impotência, ficou parado sob a
pequena abóbada energética, que nem sequer deixava passar o ar. A atmosfera estava quente
e abafada.
Lá no céu, a Ironduke crescia rapidamente. Caía que nem uma pedra. As telas da sala de
comando deviam revelar com toda nitidez o que se passava ali embaixo. Mas será que
Deringhouse conseguiria chegar em tempo?
A placa começou a descer mais depressa. Cardif não fazia o menor movimento. Seu rosto
assumira uma expressão tensa, mas não conseguia ocultar o triunfo. Disse alguma coisa, mas
as ondas sonoras não chegaram a Rhodan. Perry caíra na cilada mais perfeita que já lhe fora
armada.
O chão fechou-se por cima da galeria. O céu e a Ironduke, que descia vertiginosamente,
desapareceram. Deringhouse nem pensaria em bombardear a montanha, pois colocaria em
perigo a vida de Rhodan. Cardif devia ter contado com isso, pois, do contrário, não poderia ter
executado o plano.
O poço ficou iluminado. Rhodan viu que continuavam a descer. Três antis colocaram-se
ao lado de Cardif. Eram fáceis de serem reconhecidos por causa das capas que usavam. Um
210
deles chamava a atenção pela barba espessa, que lhe dava o aspecto de um saltador, falava
com Cardif e apontou várias vezes para Rhodan. Cardif fez que sim.
Rhodan sabia que ainda tinha uma última chance. Os antis não poderiam continuar a
alimentar indefinidamente a abóbada energética. E seria impossível realizar qualquer
transporte enquanto o prisioneiro não tivesse sido dominado. Rhodan teria de agir no
momento em que fosse retirado o anteparo.
Finalmente, depois de alguns minutos infindáveis de descida, a plataforma parou com
um forte solavanco. Durante o solavanco, a abóbada energética desapareceu. Rhodan ficou
surpreso, pois ainda não contara com isso. Mesmo assim não levou um segundo para segurar
a arma.
Mas antes que pudesse levantá-la e disparar contra Cardif, foi atingido pelo raio de
choque concentrado do anti, que apenas parecia ter esperado este momento. Rhodan sentiu
um frio terrível cingir seu corpo e imobilizá-lo. A mão deixou cair a arma.
Perry foi tombando lentamente e perdeu os sentidos.
***
Apenas uns poucos minutos deviam ter passado. Quando Rhodan voltou a abrir os olhos,
os antis o estavam amarrando. Rhodan defendeu-se desesperadamente, mas apenas
conseguiu atirar para longe um dos seus adversários por meio de uma joelhada. Cardif, que se
encontrava de pé a seu lado, dava instruções. Segurava a arma de Rhodan, bem como o
aparelho que este trazia no pulso e o emissor goniométrico que guardara no bolso esquerdo.
Quando viu que Rhodan estava reduzido à impotência, aproximou-se.
— Desde o início você desconfiou de mim, Rhodan. Estes objetos constituem a melhor
prova.
— Será que minha desconfiança não se justificava? — retrucou Rhodan.
Perry já tivera tempo para dominar seu desapontamento, mas sentia-se um pouco
envergonhado por ter mostrado uma fraqueza. Deveria ter dado atenção ao raciocínio, não
aos sentimentos.
Bell lhe diria algumas palavras nada agradáveis.
— Será que você realmente acreditava que eu me consideraria derrotado? Neste ponto
sou seu filho. Mas só neste ponto! — a voz de Cardif tornou-se dura e implacável. — Você teve
a gentileza de me dar tempo para refletir. Eu aproveitei esse tempo, você não. O erro foi seu,
não meu.
— Você será perseguido, Thomas, nem que tenham que tangê-lo até os confins do tempo
e do espaço. Um dia o agarrarão. E quando isso acontecer, você se defrontará com pessoas que
não se guiam pelo sentimento, mas apenas pela inteligência... e pela ânsia de uma implacável
vingança.
— Poupe suas forças; você ainda precisará delas — limitou-se Thomas Cardif a dizer.
Deu algumas ordens aos antis. Rhodan foi levantado e colocado num carrinho baixo.
Cardif e seus asseclas sentaram-se ao lado dele, e logo a viagem infernal para o interior da
montanha teve início.
Desceram ligeiramente. O túnel mal e mal permitia a passagem do veículo, O teto era
suficientemente alto para que ninguém machucasse a cabeça. A intervalos regulares havia
lâmpadas que espalhavam uma luz tênue.
Pelos cálculos de Rhodan, o carro devia ter descido pelo menos mil metros. Acontece que
a montanha que se erguia sobre a ilha não tinha mais de setecentos metros. Se não voltassem
a subir logo, o túnel fatalmente os levaria ao mar, quinhentos metros abaixo da superfície.
Porém, antes que isso acontecesse, a galeria terminou.
O corredor alargou-se, transformando-se num verdadeiro pavilhão. A maior parte da
superfície deste estava ocupada pela água, na qual achava-se estacionado o submarino dos
211
antis que servira à fuga dos sobreviventes da fortaleza destruída. Rhodan começou a
desconfiar de que num ponto Cardif não mentira: a segunda fortaleza dos antis ainda não fora
descoberta.
O carro parou. Os dois antis pegaram Rhodan e carregaram-no para o submarino. O
barbudo e Thomas seguiram-no. Falavam um com o outro, mas Rhodan não entendeu uma
palavra do que diziam. Perguntou a si mesmo se o emissor de sinais goniométricos ainda
estaria funcionando. Levaram-no a um pequeno camarote, verificaram se estava amarrado e
deixaram-no só.
Dali a pouco, as máquinas do submarino começaram a trabalhar. Ouviu-se o ruído da
água.
Provavelmente estavam passando por uma eclusa, a fim de alcançar o mar aberto.
Depois de algum tempo, as máquinas passaram a trabalhar regularmente e o barco deixou de
balançar.
Rhodan acreditava que se encontravam a grande profundidade e se dirigiam
diretamente para a misteriosa fortaleza submarina.
Se o emissor de sinais goniométricos ainda estivesse funcionando, os homens da
Ironduke poderiam acompanhar a rota do submarino. Mas será que isso adiantava alguma
coisa? Thomas Cardif possuía o refém mais precioso que poderia desejar.
Ninguém atacaria o submarino ou a fortaleza, enquanto Rhodan se encontrasse em seu
poder.
E ninguém sabia disso melhor que o próprio Rhodan.
***
212
que Rhodan estava sendo levado num submarino. Queriam que os amigos de Rhodan
soubessem disso, mas não queriam que soubessem mais do que isso.
— Emitir raios goniométricos! — ordenou Deringhouse, pois o submarino era um objeto
tão grande que não poderia deixar de ser localizado. — Acompanhar a rota, mas não atacar.
Esta ordem fora dirigida a frota e aos submarinos terranos. Depois concluiu:
— Precisamos descobrir de qualquer maneira para onde estão levando Rhodan.
A decepção não demorou. Os raios goniométricos foram dirigidos ao local em que o
submarino dos antis devia ter estado, mas não revelaram o menor vestígio da embarcação. As
telas dos aparelhos de localização continuavam vazias. Nenhum raio de rastreamento
retornou ao ponto de saída, a fim de indicar os contornos do submarino e revelar sua posição.
O submarino dos antis estava desaparecido.
E com ele, Rhodan.
***
214
os antis com a mesma disposição que Rhodan usara até então. Tudo dependia de que Cardif
conservasse parte de sua memória e conseguisse protegê-la contra a espionagem telepática.
No entanto, Rhodan desconfiava de que dentro em breve não mais precisaria preocupar-
se com isso. Não deu nenhuma resposta.
— Vejo que ficou sem fala — constatou Cardif, satisfeito. — Era o que eu imaginava. De
qualquer maneira estou agindo com mais inteligência que sua gente há cinqüenta e oito anos.
Deixaram que eu ficasse com minha memória; apenas a fecharam com um bloqueio hipnótico,
que acabou sendo rompido. No seu caso não haverá mais nada que possa ser rompido. Se isso
acontecer, nada aparecerá. É que você se transformará em minha pessoa; e eu, na sua. Mas
haverá uma pequena diferença. É bom que saiba disso, para que não se entregue a nenhuma
esperança.
Embora passe a ser Rhodan, nunca deixarei de ser Thomas Cardif. E terei conhecimento
desse fato. Acontece que nenhum telepata será capaz de percebê-lo. Minha personalidade
continuará a viver, incrustada no seu saber e na sua competência. Essa personalidade
continuará empenhada nos seus objetivos, que não são os objetivos aos quais você se propõe,
Rhodan.
Rhodan continuou calado. O que poderia dizer? Qualquer palavra que proferisse
representaria um desperdício. Thomas Cardif estava louco; não havia a menor dúvida. Mas
também era um gênio. Infelizmente.
Cardif fez um sinal para o barbudo.
— Pode começar assim que os contatos tenham sido colocados, Rhabol. Ainda bem que
alguns descendentes dos aras escaparam à destruição. Se não fosse assim, não saberia como
fazer — voltou a inclinar-se sobre Rhodan e disse: — Passe bem, Perry Rhodan. Acredito que
jamais voltemos a encontrar-nos, mas se isso acontecer, será um encontro entre duas pessoas
que pensam da mesma maneira; você não continuará com o caráter de um anjo. Pode fechar
os olhos. Sou bastante humano para poupar-lhe a visão das máquinas. Desejo-lhe uma boa
passagem, Perry Rhodan.
Rhodan não fechou os olhos, nem deu qualquer resposta. Procurou em vão libertar-se
das amarras. Suas tentativas foram vãs como das outras vezes. Uma espécie de cúpula de
vidro desceu sobre sua cabeça.
As Fitas metálicas cingiram suas juntas. Outra mesa foi colocada próxima da sua, e Cardif
deitou na mesma. Alguns cabos ligavam-no a Rhodan, depois de atravessar uma máquina.
Rhabol aproximou-se.
— Tudo preparado, Thomas Cardif.
— Vamos começar! Não podemos perder tempo. Se a pausa for muito longa poderão
perder a paciência — virou a cabeça e fitou Rhodan. — Você vai pagar pelo crime de ter
transformado Árcon em uma quase colônia, Rhodan. Restituirei o antigo poder a Árcon e
obrigarei a Terra a manter-se no seu lugar. Se conseguir isso, terei vingado Thora, minha mãe.
Voltou a deitar-se de costas e fitou o teto.
Rhodan continuou calado. Sabia que qualquer palavra que proferisse seria inútil. Era
bem verdade que havia dentro dele alguma coisa que não queria conformar-se com a idéia de
desistir, por mais desesperadora que fosse sua situação naquele momento.
Ainda poderia ter alguma esperança? Haveria alguém que pudesse ajudá-lo? Os
mutantes estavam reduzidos à impotência. E continuariam a sê-lo, mesmo que encontrassem
a fortaleza situada no fundo do mar.
Não; chegara ao fim. Atingira o ponto alto do poder e da própria existência. E agora
cairia; e a queda seria tão profunda como sua subida fora alta. Atingira uma altura
estonteante; não podia deixar de admitir isso. E ninguém seria capaz de cair de tão alto, sem
encontrar a morte.
E sua queda seria provocada pela mão do próprio filho.
215
As máquinas começaram a emitir um zumbido. De início Rhodan apenas sentiu um calor
agradável e um repuxo benfazejo nas juntas, mas subitamente teve a impressão de que
alguém punha a mão em seu cérebro e arrancava pedaço por pedaço do mesmo. Começou a
sentir dor, e sua vista se turvou. Teve de fazer um grande esforço para concentrar-se e
observar o que estava acontecendo. De repente nem mesmo isso foi possível.
As dores lancinantes ameaçavam arrebentar-lhe a cabeça.
Mergulhou num abismo negro, sem fim.
Perry Rhodan tirara seus submarinos do museu. E o professor Wild mandara trazer para
Terrânia um hormotroscópio vindo do outro lado do globo. Também mandara tirá-lo de um
museu, do Museu de Ciências Médicas de Florença, Europa.
O professor Wild mantivera mais de trinta palestras com todos os pontos da Terra, até
que encontrasse um colega capaz de explicar-lhe o funcionamento de um hormotroscópio
ultravioleta.
O mesmo caíra no esquecimento há mais de cem anos. Não prestava nenhum serviço à
Medicina ou aos cientistas. O professor Wild também não esperava nada daquele aparelho,
sobre o qual vira uma referência em certos textos especializados, velhos e amarelentos, mas
não queria expor-se à recriminação de não ter agido com suficiente senso de
responsabilidade. Afinal, era uma das pessoas que consumiam o liquitivo!
Três horas depois de realizado o primeiro ensaio, encontrou pela décima oitava vez o
mesmo resultado. A substância ativa da segunda glândula, cuja composição química era
idêntica à da secreção da primeira, tinha uma permeabilidade à luz ultravioleta que era 0,57
por cento inferior àquela.
Por dezoito vezes o aparelho indicara o resultado menos 0,57 por cento em comparação
aos ensaios resultantes com o primeiro extrato.
Em Terrânia, os especialistas em fermentos foram colocados de prontidão. Os fermentos,
que são substâncias de origem biológica, cuja presença condiciona o curso de certas reações
químicas, eram encontrados na saliva humana, na bílis e nas glândulas abdominais. Os
fermentos conhecidos eram mais de mil.
Naquele momento teve início uma verdadeira loteria médica. Em Terrânia havia apenas
sete especialistas em fermentos.
Pretendia-se que dentro de algumas horas estes realizassem ensaios com a substância
ativa da segunda glândula do fura-lama, colocada em contato com mais de mil fermentos
existentes no organismo humano. Os fermentos são agentes catalisadores. Agem por simples
presença: não sofrem qualquer modificação, mas produzem alterações nas substâncias com as
quais entram em contato.
O professor Wild fumava um charuto após o outro, enquanto corriam os ensaios. Uma
atividade febril desenvolvia-se no complexo médico de Terrânia. Mais de um terço dos
médicos consumiam o liquitivo.
De repente veio a notícia!
Falou-se no fermento lyl, bastante raro. O mesmo fora descoberto há pouco menos de
vinte anos. Sempre que o extrato da segunda glândula entrava em contato com algum
fermento da classe lyl, a ação catalítica do mesmo transformava esse extrato numa toxina para
os nervos.
Essa toxina desenvolvia uma ação diabólica, provocando uma dependência irreversível
no indivíduo e causando lesões também irreversíveis nos centros nervosos.
216
Se o extrato da segunda glândula do fura-lama não entrasse em contato com um
fermento lyl ao ser introduzido no estômago humano, o mesmo continuava a ser o que sempre
fora: um inofensivo rejuvenescedor de ação rápida.
O professor Wild apoiou a cabeça nas mãos.
— Meu Deus — exclamou num gemido.
— Que disfarce diabólico! — tinha motivos para sentir-se desesperado. As chances de
encontrar um antídoto nas próximas semanas eram iguais a zero.
***
***
218
As horas foram-se arrastando penosamente.
Não houve outro chamado. Ficou-se na incerteza sobre se Rhodan conseguira fugir ou
voltara a ser preso. A primeira hipótese era pouco provável, pois ele não poderia deixar de ser
descoberto. Ninguém conseguiria sair da fortaleza, desde que a mesma realmente ficasse
naquela cadeia de montanhas.
A espera era insuportável.
A Ironduke mantinha-se exatamente acima da cadeia de montanhas submarinas, a
apenas dois quilômetros de altitude. Os contornos do complexo montanhoso já haviam sido
desenhados no mapa, pois os submarinos que se encontravam nas proximidades não
demoraram em realizar as respectivas medições. E o submarino S-35 fez uma descoberta
muito interessante.
— Olhe, comandante! A entrada.
Torsin parecia cético.
— Pode ser alguma coincidência, major. No mar, as paredes de rocha lisa não são
nenhuma raridade. São lavadas e polidas pela água e...
— A mil metros de profundidade? O senhor constatou alguma correnteza?
Torsin não respondeu. Parou as máquinas do submarino e aproximou-se do lugar
indicado.
Reconheceu-o perfeitamente na tela. Até mesmo viu a fresta estreita que corria
verticalmente.
Não; não era nenhum acaso.
— Avisarei a Ironduke — disse Torsin, e fez um sinal para o radioperador, que se
mantinha à espera. — A mensagem será codificada.
Rengall fitou atentamente o portão da fortaleza. Suas últimas dúvidas desvaneceram-se.
Haviam descoberto a entrada da fortaleza. Gostaria de vestir o traje de mergulhador e nadar
por aí. Mas, enquanto Reginald Bell não lhe desse a necessária permissão, não poderia fazer
isso.
E não a obteve.
Bell estava afundado na poltrona, quando aconteceu uma coisa totalmente inesperada.
Um transmissor muito potente chamou e pediu à Ironduke que ligasse imediatamente os
receptores audiovisuais.
O radioperador agiu ligeiro e transferiu a ligação para a sala de rádio.
A tela iluminou-se bem à frente de Bell, e o rosto de Rhodan apareceu na mesma.
O aspecto de seu rosto era lastimável!
Os cabelos estavam grudados de sangue e suor. O lado direito da testa achava-se coberto
por uma ferida recente e o sangue corria pela face, penetrando na gola do uniforme. O rosto
estava entrecortado de rugas profundas, que davam testemunho de um sofrimento recente.
No entanto, um brilho de triunfo surgiu nos olhos cinzentos, quando Rhodan disse:
— É você, Bell? Ligue a comunicação audiovisual!
O radioperador obedeceu. Rhodan parecia respirar aliviado.
— Que bom rever seu rosto, amigo! Por pouco não me liquidam de vez.
— Onde está você, Perry? Na fortaleza? Acabamos de descobrir a entrada da mesma.
Um sorriso tenso surgiu no rosto de Rhodan.
— Descobriram a entrada? Excelente! Acontece que no momento isso não me adianta
nada.
Estou no interior da fortaleza, mas não estou livre — deu um passo para o lado, cedendo
lugar a um homem barbudo, que penetrou no campo de visão.
— Este é Rhabol, sacerdote de Baalol. Encontro-me em poder dele e de Cardif. Quando
tentei fugir, Cardif sofreu ferimentos graves. Ainda não temos certeza se escapará. Conforme
vê, só sofri alguns ferimentos insignificantes.
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Bell fitou o rosto de Rhabol, que estava parado ao lado de Rhodan, com um pesado
radiador de impulsos na mão.
— Por que permitiram que você entrasse em contato conosco?
— Quero fazer-lhe uma proposta em nome de Baalol — disse Rhodan com a voz
embaraçada. — Você não terá outra alternativa senão aceitá-la, a não ser que queira sacrificar
minha vida. Para ter uma chance de sobreviver, Cardif precisa obter o tratamento médico dos
aras. Estão dispostos a trocar-me por Cardif. Se permitirmos que se retirem, serei libertado.
Bell estava desconfiado.
— Você está sendo forçado a submeter-nos essa oferta. Tal proposta não tem validade.
Um estranho sorriso frio surgiu no rosto de Rhodan.
— Você realmente acredita que eu me deixaria arrastar por alguma coisa que pudesse
prejudicar a Terra? Preferia a morte. Não se preocupe, Bell. Desta vez penso como os antis.
Não temos outra alternativa. Arranje uma nave e a mande pousar. Duzentos e cinqüenta antis
e Cardif, que está ferido, sairão da fortaleza. Se não os impedirem de entrar na nave e decolar,
minha vida não correrá perigo.
Permanecerei no interior da fortaleza e manterei contato audiovisual com vocês.
Um estranho brilho surgiu nos olhos de Bell, mas Rhodan acenou com a cabeça.
— Não tire conclusões apressadas, meu caro. É claro que os antis tomaram suas
precauções, para que vocês não possam atacá-los e libertar-me ao mesmo tempo. Ficarei
trancado na sala de rádio, acompanhado por uma bomba, que poderá ser detonada a qualquer
instante, a distância.
Rhabol levará o emissor que transmite o impulso. Vocês só poderão entrar aqui, quando
Cardif e os antis estiverem em segurança.
Bell demonstrava uma estranha obstinação.
— Quem me garante que os antis não o mandarão pelos ares logo que estiverem
próximos à transição? — sacudiu a cabeça.
— Não estou gostando da proposta. Precisamos de uma garantia.
Rhabol, o sacerdote de Baalol, afastou Rhodan e disse:
— Os senhores não têm alternativa, terranos. Mas farei alguma coisa pelos senhores.
Permitirei que duas naves nos acompanhem. Iniciaremos a transição na periferia do sistema
solar. Vocês conseguirão impedi-la se antes disso não colocarmos o transmissor de impulsos
fora da nave, para que vocês possam recolhê-lo. E, até lá, seus homens terão penetrado na
fortaleza e libertado Rhodan. Garanto-lhe que cumpriremos o acordo.
Rhodan fez um gesto afirmativo.
— Desta vez você pode acreditar nele, Bell. Nada me acontecerá — piscou para o
gorducho numa posição em que o anti não podia vê-lo. — Ficarei satisfeito quando estiver
novamente no interior da Ironduke.
— E o liquitivo?
— Os três entrepostos estão à nossa disposição.
Bell olhou para Deringhouse.
— Envie alguns cruzadores, que deverão trazer uma nave dos saltadores. Mande-a
pousar na ilha e recolher os antis — voltou a dirigir-se a Rhodan. — Está bem, Perry. Daqui a
algumas horas tudo estará liquidado. Mas o diabo há de carregar os antis se eles estiverem
armando uma cilada.
Rhodan sorriu e limpou o sangue que lhe cobria o rosto.
— Posso garantir-lhe que desta vez não se trata de cilada. De uma vez por todas, ensinei
Cardif a nunca mais fazer uma coisa dessas. Ele não nos armará mais nenhuma cilada.
Rhabol encostou o cano da arma no tórax de Rhodan e afastou-o da câmara.
Dirigindo-se a Bell, disse:
— Vamos trancar Rhodan e armar a bomba. Vocês poderão permanecer em contato com
ele.
220
Deixem livre a entrada da fortaleza. Sairemos com o submarino e tomaremos a direção
da ilha. Peço-lhes encarecidamente que não nos molestem. Manterei o dedo sobre o
detonador do transmissor de impulsos. Um movimento em falso da parte de vocês., e Perry
Rhodan já era. Entendido?
Bell rangeu os dentes, mas fez um gesto de assentimento.
Enquanto Deringhouse mandava trazer uma nave dos saltadores, Bell observou na tela
quando uma pequena bomba com o formato de caixinha era colocada numa gaveta e trancada.
Rhabol levou a chave. Fez um sinal para Bell e retirou-se.
Rhodan disse:
— Trancou a porta, mas será fácil abri-la pelo lado de fora.
— Você tem certeza de que ninguém nos ouve? — perguntou Bell.
Uma nova esperança pareceu vibrar em sua voz.
— Tenho certeza absoluta, a não ser que se deem ao trabalho de vigiar as transmissões.
Mas acho que a esta hora têm outros problemas. Por quê? Tem algo a me dizer?
Bell parecia nervoso.
— Estou pensando nos teleportadores. Assim que os antis estiverem no submarino, os
teleportadores poderão libertá-lo. Depois disso afundamos o submarino antes que chegue à
ilha e...
— Pare! — disse Rhodan em tom penetrante. — Será que você ficou louco? Não se
esqueça de que existe um campo energético em torno desta fortaleza, e nem mesmo um
teleportador seria capaz de atravessá-lo. Além disso, cumpriremos o que combinamos. Não
quero que os antis digam que sou um traidor. Finalmente, o perigo seria muito grande.
Portanto, nada de atitudes apressadas!
Entendido?
Bell procurou controlar-se.
— Entendido, Perry. Tenho a impressão de que você foi muito maltratado, pois, do
contrário, não seria tão cauteloso. Darei ordens para que a saída da fortaleza seja deixada livre
e o submarino dos antis não seja molestado. Mas ai deles se...
— Não haverá nada, Bell. Daqui a poucas horas estarei em segurança, a bordo da
Ironduke. Acredite em mim.
***
O professor Wild, que era especialista em hormônios e secreções, sabia que um antídoto
capaz de curar um viciado em drogas não pode ser descoberto da noite para o dia.
Na conferência convocada pelo sábio, tal fato foi ressaltado outra vez. Face a isso
haviam-se desviado do assunto em debate. Houve prolongadas discussões sobre a secreção da
segunda glândula da tromba do fura-lama.
Será que alguém poderia recriminá-los por não terem levado a sério suas obrigações de
controle?
Os médicos proferiram duros julgamentos a respeito deles mesmos e de seus colegas. As
acusações veladas eram muito frequentes, até que o professor Wild tomasse a palavra.
Levantou-se com o rosto muito vermelho.
De repente sua voz adquiriu a força de um barítono:
— Caros colegas! Não nos esqueçamos de que durante mais de dois meses testamos, nas
clínicas mais importantes da Terra, um liquitivo que só continha a secreção da primeira
glândula da tromba do fura-lama. A substância ativa desta é o produto rejuvenescedor mais
eficaz e de ação mais rápida que já vimos. É bem verdade que dentro de doze anos perde a
eficácia.
221
“Só depois que os controles sanitários e de medicamentos de Terrânia liberaram a venda
do liquitivo, os antis lhe acrescentaram a secreção da segunda glândula, subtraindo
concomitantemente metade da substância ativa da secreção da primeira.
Não estávamos em condições de constatar esse fato, já que a composição química das
duas secreções é idêntica. E não desconfiamos de nada, já que, depois de ocorrida a
falsificação, manifestou-se em primeiro lugar o efeito rejuvenescedor, e ainda porque,
conforme revelaram as pesquisas, o vício só se manifesta depois que a droga é ingerida cinco
ou seis vezes. Acontece que naquele tempo as pessoas tomavam o liquitivo com tamanha
frequência que não se notava o estado de dependência.
“Não constatamos tal dependência em nós mesmos. E deveríamos ter constatado.
Acontece que o fato de que o liquitivo nos rejuvenescia fez com que não tivéssemos a idéia de
que poderíamos estar viciados. Mentíamos a nós mesmos, pois acreditávamos ter criado uma
dependência na busca da juventude eterna.
“Peço-lhes que reflitam sobre o que devemos comunicar a Rhodan. Sugiro que não lhe
transmitamos nenhuma notícia, a não ser que descubramos um antídoto. E só agora podemos
começar a trabalhar na descoberta do mesmo. Nem sequer ouso entreter esperança de que
jamais venhamos a encontrá-lo.”
A proposta foi submetida à votação. Decidiu-se não transmitir qualquer comunicado a
Rhodan.
A busca desesperada do antídoto teve início.
***
222
Mais uma vez Cardif escaparia ao castigo merecido. A vida e saúde de Rhodan eram mais
importantes. Cardif não escaparia ao destino que o aguardava, mesmo que desta vez
conseguisse salvar a vida.
Rhabol voltou a colocar-se à frente da câmara.
— Providencie para que alguém pegue o transmissor de impulsos antes que entremos
em transição. Deve-se apertar o botão verde para desarmar a bomba — fitou Bell com os
olhos frios, nos quais se via um brilho de contentamento. — Passe bem, terrano. É bem
possível que um dia voltemos a encontrar-nos. Quando isso acontecer, eu me lembrarei da sua
generosidade.
Desligou sem aguardar resposta. Mas Bell ainda podia vê-lo, pois as telecâmaras da
Ironduke haviam sido dirigidas para a ilha. Rhabol deixou para trás o transmissor portátil e
foi o último dos antis a entrar a bordo.
Dali a alguns segundos, a nave decolou e subiu à estratosfera com os propulsores
chamejantes.
Tomou a direção dos cruzadores terranos que a aguardavam.
***
223
defensivos dos antis foram ativados ao máximo, ocultando a intensidade e o ponto de partida
da transição. A nave penetrou no hiperespaço com destino desconhecido.
Só quando recebeu a notícia de que Rhodan estava com vida, Bell respirou aliviado.
Dali a alguns segundos, uma tremenda explosão sacudiu o mar que se estendia abaixo
dele.
Uma montanha de água elevou-se no ar, fragmentos de rocha foram atirados para o alto
e uma língua de fogo passou Junto à Ironduke. A fortaleza dos antis havia ido pelos ares.
Bell nunca chegou a saber se a detonação se verificara mais tarde do que se esperava, ou
se os sacerdotes pretendiam aguardar até que Rhodan estivesse em segurança.
Evidentemente não seria capaz de imaginar que o falso Rhodan só ligara o mecanismo-relógio
depois de ter sido encontrado.
Nenhuma nave ou submarino foi danificado.
Bell ordenou às unidades submersas que retornassem ao lugar onde se encontrava a
frota de bloqueio e instruiu o comandante da nave cargueira a fim de que recolhesse os
submarinos. Para ele a missão em Okul estava concluída. Não poderia imaginar que a mesma
mal começara.
***
No momento em que a Ironduke pousava na ilha, quase no mesmo lugar em que os antis
haviam subido a bordo da nave dos saltadores, chegaram as primeiras mensagens de hiper-
rádio, expedidas por uma nave retransmissora. Assim que lhes foi fornecida a senha, os
saltadores entregaram todo o estoque de liquitivo, sem oferecer a menor resistência e sem
formular perguntas. O abastecimento da Terra estava garantido por algumas semanas. O
perigo das revoltas fora eliminado, muito embora só se tivesse conseguido mais algum tempo.
Bell tinha certeza de que os outros depósitos também não representariam nenhuma
dificuldade.
Dali a dez minutos, o submarino S-35 emergiu do rio que passava nas proximidades.
Atracou na margem rochosa, pouco atrás da embarcação abandonada pelos antis. Era um local
favorável, já que ali a selva não podia medrar.
***
Para Thomas Cardif, as últimas horas representavam uma carga nervosa que
dificilmente alguém já suportara.
Quando sentiu o saber de Rhodan fluir para dentro de sua mente e percebeu que a cada
segundo que passava assumia novas feições da personalidade do pai, começou a imaginar
quão difícil seria sua tarefa. Não bastaria interpretar os dados armazenados na memória de
Rhodan; seria necessário agir em conformidade com estes. Devia saber o que Rhodan faria em
determinada situação, e teria de agir de igual forma. Mas, como, juntamente com a memória e
os conhecimentos de Rhodan, assumia o raciocínio consciente do mesmo, agiria
automaticamente tal qual ele, desde que no momento da decisão afastasse o remanescente de
sua mente consciente. E este remanescente da personalidade de Thomas Cardif era-lhe
indispensável para que não se transformasse de vez em Perry Rhodan, isto é, num homem que
não tinha o menor conhecimento dos planos do rebelde.
Os antis souberam deixar-lhe um remanescente da consciência de Cardif, que não
ultrapassava o estritamente necessário, para que se lembrasse de sua tarefa. Esse
remanescente era tão pouco que não poderia ser detectado num exame telepático ou
parapsicológico, pois o conteúdo da mente de Rhodan o envolvia como uma capa isolante.
Depois disso mergulhara num estado de profunda Inconsciência.
224
Ao despertar, era Perry Rhodan. Os médicos haviam produzido algumas modificações
insignificantes em seu rosto e fizeram uma ferida em sua testa. Certas injeções fizeram com
que apresentasse os olhos cinzentos de Rhodan. O cabelo foi tingido num tom mais escuro.
Algumas rugas no rosto fizeram dele o sósia perfeito do pai que, por sua vez, através de
intervenções médicas do mesmo tipo, fora transformado em Thomas Cardif.
Apenas havia um risco. E Rhabol o enunciara quando o falso Rhodan havia sido levado à
sala de rádio.
— Nunca realizamos uma experiência como esta, Cardif. Não sei qual será o resultado da
interação permanente de duas consciências tão diversas num espaço tão pequeno. Não se
esqueça de que por questões de segurança tivemos de conferir mais espaço à personalidade
de Rhodan, pois do contrário haveria o perigo da descoberta. A consciência que corresponde à
personalidade de Cardif, isto é, de você, possui menor área. Mas em compensação tem maior
vivacidade. Fazemos votos de que sempre seja a parte dominante.
— Você acredita que realmente poderei transformar-me em Rhodan?
— Sim. É possível que a mente consciente dele subjugue a sua.
Cardif respondera em tom frio:
— É um risco que não posso deixar de assumir. Já transmitiu os sinais Morse?
— Transmiti. Os terranos acreditam que você fugiu e não terão a menor dificuldade em
digerir o blefe. Nossa representação deverá ser muito convincente.
E será; não tenha a menor dúvida.
Dali a pouco seguira-se a palestra com Bell. As condições foram combinadas e
transformadas em realidade. Dali em diante Cardif passou a desempenhar o papel de Rhodan,
inconsciente. Era um papel muito mais difícil do que imaginara.
Além de manter seus pensamentos sob controle, tinha de vigiar os de Rhodan. Para
evitar qualquer erro, deixou que a mente consciente de Rhodan se comprazesse em
recordações. Era o meio mais simples de evitar a ocorrência de erro, e além disso essa
atividade mental convenceria qualquer telepata que o espreitasse de que realmente tinha
diante de si Rhodan, inconsciente.
A situação tornou-se realmente perigosa quando os homens desembarcados do
submarino arrombaram a porta da sala de rádio e o levaram. Fez o papel de homem
desmaiado. Ficou com os olhos fechados e deixou os músculos descontraídos. Carregaram-no
até o submarino e colocaram-no numa cama. Foi examinado por um médico. Soltou um
gemido e aplicaram-lhe uma injeção de calmante. Adormeceu, mas acordou em tempo para
assistir a chegada do barco à ilha.
Reconheceu Bell pela voz. Mas o que mais o alarmava era a presença de John Marshall. O
telepata era perigoso. Por isso Cardif continuou “inconsciente” e deixou que os pensamentos
de Rhodan vagassem à vontade.
Quando foi levado ao setor médico da Ironduke e colocado sobre a mesa de exames, a
situação tornou-se ainda mais crítica.
Desligou completamente a sua própria consciência e escondeu-a na de Rhodan.
Continuou com os olhos fechados e descontraiu o corpo. Deixou que escutassem as batidas do
coração e as vibrações cerebrais, que tirassem uma amostra de seu sangue e examinassem as
funções dos diversos órgãos. Mas o que mais interessou aos especialistas foi o estado de sua
mente.
Conversavam em voz baixa, mas Cardif entendia cada palavra que diziam. Estavam
desconfiados; não havia a menor dúvida. Um tremendo susto abalou Cardif.
Será que seu plano estava destinado a fracassar no último instante? E isso apenas porque
aquelas criaturas pedantes agiram com um cuidado excessivo?
Manteve-se tranqüilo e procurou acompanhar a palestra.
225
— ...o que sem dúvida é consequência de uma tremenda carga psíquica — disse alguém
que ele não conhecia. — Deve ter sido interrogado por meio do aparelho de reforço hipnótico.
Tal procedimento não pode deixar de afetar o cérebro.
— Quer dizer que a mente de Rhodan está perturbada? — perguntou outra voz.
— Não. Apenas sofreu um choque muito forte. A bordo desta nave não possuímos os
instrumentos nem os especialistas que nos permitam iniciar o tratamento. Devemos
providenciar para que Rhodan seja levado imediatamente a uma clínica especializada.
— Um choque causado por um interrogatório hipnótico?
— Exatamente.
Alguém entrou na sala. Cardif olhou cautelosamente pelas pestanas semicerradas e
reconheceu Bell. Defrontou-se com o olhar do gorducho e compreendeu que não podia mais
ficar passando por inconsciente. Então gemeu baixinho, como se estivesse despertando de um
sono profundo.
— Está recuperando a consciência! — exclamou um dos médicos.
Bell aproximou-se.
— Perry, você me ouve? Você me reconhece? Faça um sinal com a cabeça, se puder...
Cardif acenou com a cabeça. Até parecia que esse gesto consumia todas as forças que
ainda restavam em seu organismo.
— Ele me reconheceu! — gritou Bell em tom de alívio. — Santo Deus, ele me reconheceu!
Quer dizer que não perdeu a memória.
Inclinou-se sobre o rosto de Cardif e examinou-o. Eram os segundos decisivos.
Se havia a possibilidade de uma descoberta, esta teria de ocorrer agora. Ninguém
conhecia Rhodan tão bem quanto Bell, que era seu melhor amigo.
— Sente alguma dor, Perry? Diga alguma coisa — insistia o gorducho.
Cardif sorriu com dificuldade. Até parecia que a qualquer momento partiria deste
mundo.
Desempenhava seu papel muito bem. Provavelmente a ilusão não seria tão perfeita se os
dois Rhodan pudessem ser vistos ao mesmo tempo. Mas nas atuais condições, não havia
possibilidade de estabelecer uma comparação direta.
— Tudo bem, Bell.
— Ainda bem! — disse o gordo em tom feliz. — Finalmente voltou a falar. Quem fez isso
na sua testa? Foi esse patife do Cardif? Bem, ele nos escapou, mas garanto-lhe que um dia nós
o pegaremos. E então o faremos pagar por tudo.
— Isso mesmo — disse Cardif-Rhodan com a voz débil.
Os médicos afastaram Bell.
— O paciente precisa de repouso — sentenciou um deles. — Não convém cansá-lo, sir.
— Está certo. Se os senhores acharem que assim é melhor, obedecerei — voltou a dirigir-
se a Rhodan: — Até logo mais. A melhor coisa que pode fazer é dormir.
Cardif esforçou-se para erguer o corpo. Haviam tirado sua roupa. O uniforme estava
pendurado num cabide, na parede da sala pintada de branco. Isso combinava muito bem com
o próximo ato.
— Bell! Olhe ali!
Bell ficou parado. Olhou na direção em que apontava o braço de Cardif. A mão estendida
apontava para a túnica do uniforme.
— Sim; o que houve? O uniforme? É claro que mandaremos limpá-lo, Perry. Não está
muito bonito e...
Cardif negou com a cabeça. Seu rosto ficou desfigurado, como se sentisse dores horríveis.
Via-se que falava com dificuldade; e também tinha dificuldade em pensar.
— Na túnica... do lado direito...
226
Bell mal conseguia entender suas palavras, mas compreendeu o sentido do que
aparentemente cochichava com a maior dificuldade. Apressou-se em revistar os bolsos do
uniforme. Sentiu um objeto elástico no bolso direito e retirou-o. Estava curioso.
Era uma fita estreita de plástico.
Nela se viam alguns caracteres e fórmulas escritas na língua arcônida. Bell não sabia o
que significavam, mas imaginava que assumiam uma importância extraordinária.
Aproximou-se da cama e fez um sinal para Cardif.
— Está bem, Perry. Você se refere a isto? — colocou a fita junto ao rosto de Cardif. — O
que é?
Desta vez Cardif disse a verdade:
— A fórmula do antídoto... liquitivo. Os antis tiveram a leviandade de falar sobre isto. As
fórmulas., estavam com Cardif. Eu as roubei — gemeu, fazendo de conta que voltara a sentir
dores. — Ele não percebeu.
Evidentemente era outra mentira. O fato é que Cardif acreditava que o truque da fórmula
representaria uma atração toda especial. Se fornecesse a fórmula aos terranos, ninguém
jamais duvidaria de sua identidade, caso surgisse uma oportunidade para isso. Por enquanto
isso não tinha acontecido. Conseguira enganar até mesmo os telepatas. Seus pensamentos
ficaram ocultos sob a consciência de Rhodan, que era mais ampla. Aquilo que restava da
personalidade de Cardif era protegido por essa consciência.
Apesar disso não seria demais sufocar qualquer possível suspeita no nascedouro.
— O antídoto? — repetiu Bell em tom de espanto. — Será que se trata de um preparado
capaz de neutralizar o efeito mortífero do liquitivo?
Cardif fez que sim.
Bell guardou a fita de plástico. Depois inclinou-se sobre Cardif e aplicou-lhe um beijo
ruidoso sobre a testa coberta por uma crosta de sangue.
— Isso foi um serviço bem feito, meu velho! Agora procure dormir. Transmitirei a
Deringhouse recomendações suas e mandarei que a nave decole. Quanto mais cedo
chegarmos à Terra, melhor para você.
Levantou-se e caminhou em direção à porta. Virou-se e, dirigindo-se principalmente aos
médicos, disse:
— Cuidem bem dele. Deixem-no dormir, pois o sono ainda é o melhor remédio.
Depois saiu.
Cardif soltou um suspiro de alívio. Sabia que a presença de Bell representara a prova
mais dura por que sua falsa identidade havia passado. E Bell aceitara-o como se fosse Rhodan,
sem a menor hesitação.
Enquanto a Ironduke não pousasse na Terra, não teria nada a recear. Durante o vôo não
poderia acontecer muita coisa. Fariam com que mergulhasse num sono repousante. Talvez
controlassem o funcionamento de seu cérebro e a atividade dos órgãos. Mas só em Terrânia
receberia um tratamento adequado.
E, até lá, Reginald Bell ocuparia o lugar de Rhodan.
***
227
Cardif sentiu uma ligeira vibração debaixo da cama. O General Deringhouse estava
ligando os propulsores da Ironduke.
A ilha mergulhou no oceano do planeta Okul, e Okul, por sua vez, acabou por mergulhar
no mar de estrelas.
Thomas Cardif fechou os olhos e sorriu.
— Está passando melhor — disse um dos médicos com um suspiro de alívio. — Ele
conseguirá.
“Isso mesmo”, pensou Cardif de si para si. “Ele conseguirá.”
Ele, Thomas Cardif.
Era um artista muito talentoso.
Mas não pôde deixar de confessar que os artistas, os antis, eram ainda melhores.
***
Mas o melhor realmente foi o antídoto que veio à Terra pelas mãos de Cardif-Rhodan.
Pela primeira vez na história houve uma colaboração maravilhosa entre os médicos
galácticos, os aras e os terranos. E essa colaboração possibilitou à Terra iniciar, no prazo
incrivelmente curto de vinte e sete dias, a produção em grande escala. Na Terra, em Aralon e
em mais seis mundos dos aras o antídoto, chamado de alitivo, passou a ser fabricado em
comprimidos.
A produção das grandes fábricas de preparados farmacêuticos aumentava a cada dia que
passava. As naves mais velozes do grande império levavam aos homens viciados a salvação
sob a forma de comprimidos. Para muitos, essa salvação chegou tarde.
A pessoa que tivesse consumido o liquitivo por mais de dez anos estava perdida. Depois
disso, os danos causados ao sistema nervoso tornavam-se irreversíveis. Essas pessoas
definhavam miseravelmente. Por muito tempo representaram uma advertência viva aos
homens.
Mas mesmo as criaturas que conseguiram salvar-se tiveram de pagar um preço elevado
pela recuperação da saúde. Muitas vezes a cura é acompanhada por uma forte febre. Certos
preparados criados pela medicina terrana e pela dos aras permitiam a cura da febre, que
apresentava variantes individuais, mas não evitavam as manifestações de paralisia
vasomotora.
E essas manifestações nunca se anunciavam antecipadamente. Apareciam de repente. Os
nervos vasomotores, que controlavam a dilatação dos vasos sanguíneos e a pressão do
sangue, pareciam ter sido desligados e muitas vezes resistiam a todos os esforços dos médicos
para que recuperassem suas funções.
Mas todas as pessoas que conseguiram escapar com vida — e nos mundos do Império
Solar e do Império Estelar de Árcon as mesmas se contavam pelos bilhões — nunca se
esqueceriam do homem ao qual deviam a vida: Perry Rhodan, o grande terrano.
O homem que parecia ser Perry Rhodan sorriu. Mas seu sorriso não anunciava nada de
bom...
228
5. O homem de duas caras.
230
Ao que parecia, Thomas Cardif mantinha-se escondido na selva das estrelas, ou seja, nas
regiões inexploradas da Galáxia.
Ninguém conseguia aproximar-se da verdade.
Não havia ninguém que fosse capaz de imaginar que esse homem, procurado por
milhões de criaturas, estava em Terrânia, onde ocupara o lugar de Perry Rhodan.
Ninguém seria capaz de imaginar que Perry Rhodan fora sequestrado e se encontrava
nas garras dos antis.
Mas o homem que dizia ser Perry Rhodan percebia com uma nitidez cada vez maior que
se metera num jogo perigoso. Os mutantes, que no inicio lhe inspiraram tamanhos receios,
não representavam uma ameaça tão grande. As funções duplicadas de seu cérebro, que lhe
possibilitava ativar o modelo de vibrações cerebrais de Rhodan sempre que algum telepata ou
localizador do Exército de Mutantes se encontrasse nas proximidades, o identificavam como o
verdadeiro Rhodan, constantemente. Face a isso não poderia surgir a menor suspeita de que
realmente era Thomas Cardif.
O perigo da descoberta vinha de uma direção totalmente diversa. Aquele homem, que
assimilara a maior parte do saber de Rhodan, não possuía o elevado grau de intuição que
fizera com que seu pai sempre se destacasse em meio às massas.
Quando conversava com Cardif-Rhodan sobre os trabalhos de aperfeiçoamento do
sistema de propulsão linear, o professor Kalup foi o primeiro a desconfiar.
— Sir — interrompera-o Kalup, perplexo. — Como se explica que o senhor manifeste
uma opinião como essa?
Para sair do aperto, Cardif-Rhodan não teve outra alternativa senão recorrer à desculpa
de que ainda sofria os efeitos do tratamento de choque de Thmasson.
A partir dali a idéia do choque de Thmasson andou vagando por Terrânia. Rhodan
aparecia cada vez menos na companhia dos cientistas, engenheiros e técnicos. Desde seu
regresso do planeta Okul nunca mais apresentara uma idéia pioneira, que servisse de impulso
para levar avante um projeto que tivesse entrado em estado de estagnação.
Todos viviam dizendo:
— O choque de Thmasson roubou ao chefe a sensibilidade pelos problemas técnicos.
Cardif soubera tirar proveito dessa idéia.
Com o maior descaramento apresentara-se aos médicos, relatara a palestra mantida com
o professor Kalup e fizera questão de ressaltar seu fracasso.
— Será que o choque de Thmasson me privou de parte das minhas faculdades mentais?
Os médicos não puderam dizer nem sim, nem não.
Satisfeito no seu íntimo, Cardif-Rhodan voltara a deixá-los a sós. Dali em diante
enfrentava os perigos desse tipo com a alegação de ainda se encontrar sob os efeitos da
terapia de choque.
Face ao público não havia sofrido qualquer modificação. Cardif era muito parecido com
Rhodan, não só no aspecto exterior, mas também sob muitos ângulos mentais. Além disso,
podia tirar proveito do saber que lhe fora transferido de Rhodan. Seus talentos permitiram-
lhe tirar tamanho proveito do mesmo, que muitas vezes até os amigos mais Íntimos de
Rhodan tinham a impressão de que o administrador voltara aos seus bons tempos.
Quando se via a sós — e a cada semana que passava enclausurava-se cada vez mais —
sentia-se fustigado pela idéia terrível de que não passava de uma marionete nas mãos dos
antis.
Os sacerdotes tinham em seu poder o verdadeiro Perry Rhodan, que poderia ser usado
como trunfo contra ele. Sempre que Cardif não quisesse dançar de acordo com a música dos
antis, estes poderiam usar Rhodan para exercer pressão.
Até mesmo de noite mal conseguia dormir.
Procurou desesperadamente um caminho que lhe permitisse libertar-se da dependência
dos sacerdotes do culto de Baalol. Enquanto desempenhava o papel de Rhodan, sentia-se
231
dominado cada vez mais pela embriaguez do poder, e esta sensação fez minguar cada vez mais
o ódio que antes sentira pelo pai.
No entanto, não deixou de notar esse perigo. Lutou contra a embriaguez do poder com o
desespero de um viciado em drogas. Não devia deixar que a mesma o dominasse, pois desde o
primeiro instante dera-se conta de que sempre teria de agir exclusivamente como Thomas
Cardif, nunca como Perry Rhodan.
A transferência realizada em Okul fora um êxito apenas parcial. Em sua opinião, a causa
disso fora o tempo reduzido de que dispunham. Não sabia que a causa era ele mesmo. O ego
de Thomas Cardif era totalmente incapaz de aceitar a subordinação numa situação de
emergência como aquela.
Ouviu alguém bater à porta.
— Pois não! — gritou em tom de espanto.
Fora arrancado violentamente de um estado de profunda reflexão e trazido de volta à
realidade.
No momento em que olhou para a porta já havia conseguido controlar-se.
— É o senhor, Mercant? — perguntou ao ver Allan D. Mercant entrar. — Não me lembro
de ter registrado em minha agenda uma palestra com o senhor.
Antigamente Perry Rhodan também costumava usar vez por outra esse tom áspero, mas
somente quando havia algum motivo para isso. Depois de seu regresso de Okul esse tom
passou a predominar.
O marechal solar não se sobressaltou. Como de costume, sentou-se à esquerda da
escrivaninha de Rhodan.
— Sir — principiou, colocando à sua frente o relatório dos peritos. — Encontrei este
parecer em poder de mister Bell. Peço licença para ponderar que o quadro de pessoal da
Segurança Solar terá de ser aumentado consideravelmente, caso mais trezentos entrepostos
dos saltadores sejam abertos ao lado dos já existentes nos mundos coloniais do império.
Cardif-Rhodan fitou Mercant com a maior tranquilidade. Os traços mareantes de seu
rosto não revelavam os pensamentos que lhe enchiam o cérebro.
Naquele momento Thomas Cardif pensava nos antis e desejava que os sacerdotes fossem
para o inferno. Fora a pedido deles que atendera à solicitação dos mercadores galácticos.
Fora vítima de sua primeira chantagem. Há quatro dias lhe haviam enviado um aviso
inconfundível, por intermédio de uma delegação de mercadores. Estes se veriam obrigados a
tirar as necessárias consequências, caso o pedido de licença para a instalação de novos
entrepostos comerciais tivesse decisão desfavorável.
O patriarca dos saltadores que lhe transmitiu a notícia não tinha a menor idéia do que
realmente estava dizendo ao administrador. Mas Cardif-Rhodan entendeu as cordiais
lembranças. O nome Fut-O1 dizia tudo.
Fut-O1 mandara lembranças. Acontece que Fut-O1 fora morto há quatro anos pelos
antis, isso porque esse mercador galáctico não se mostrara disposto a colocar-se a serviço dos
sacerdotes de Baalol.
Agora Mercant estava sentado à sua frente e tentava convencê-lo de que deveria revogar
a permissão que acabara de conceder.
— Mais alguma coisa, Mercant? — perguntou com a voz fria.
O marechal solar parecia espantado. Seu olhar envolveu o homem que, segundo
acreditava, era seu chefe.
— Si-sir — gaguejou Mercant um tanto perturbado — o aumento do número dos
entrepostos comerciais dos saltadores em mais trezentos constitui um assunto de
importância vital. Sir, não estaremos em condições de vigiar os escritórios comerciais dos
saltadores situados no Império Solar, conforme seria necessário à nossa segurança. Abriremos
as portas a uma série de cavalos de Tróia.
— Deixe isso por minha conta, Mercant! Deferi o pedido. Será que isso não basta?
232
No seu íntimo, Thomas Cardif sentia-se aflito. Compreendia o ponto de vista do chefe da
Segurança Solar. Também percebia o que havia atrás do pedido dos saltadores. Tratava-se de
uma conquista sorrateira do Império Solar pelos mercadores galácticos, e comandando estes,
estavam os sacerdotes de Baalol.
O rosto de Mercant transformou-se numa máscara. Seus lábios estreitaram-se. A
respiração era entrecortada. Lentamente, quase a contragosto, voltou a dobrar o relatório dos
peritos, alisou-o e voltou a guardá-lo na pasta.
Cumprimentou o chefe com um gesto.
Não disse uma palavra. Levantou-se e saiu.
Cardif seguiu-o com os olhos. Assim que a porta se fechou atrás de Mercant, respirou
ruidosamente. Possuído de uma raiva impotente, cerrou os punhos.
— Malditos antis! — disse, rangendo os dentes.
Estremeceu ligeiramente quando a tela do videofone se iluminou a seu lado.
Reginald Bell estava chamando. Ainda não poderia saber que a visita de Mercant não fora
bem-sucedida.
— Perry — disse. — A recepção acaba de avisar que você está disposto a dialogar com
um arcônida de nome Banavol. Será que desta vez posso saber o que esse homem quer de
nós?
Cardif aborrecia-se constantemente porque a curiosidade de Reginald Bell fazia com que
se intrometesse nos assuntos mais íntimos. Por várias vezes procurara pôr paradeiro a isso,
mas todas as tentativas fracassaram diante da obstinação de Bell. Este não se abalou e
conseguiu dar esta resposta diante da enérgica repreensão de Cardif-Rhodan:
— Perry, enquanto você não estiver cem por cento em ordem, continuarei a tomar conta
de você. Afinal, devo-me este favor, e um dia você saberá agradecer. Que diabo! O choque de
Thmasson transformou-o num estranho!
Thomas Cardif encontrou uma resposta plausível.
— A visita de Banavol está ligada a Cardif, gorducho. Está satisfeito?
Bell não estava nem um pouco satisfeito. Conhecia a mentalidade dos arcônidas. Em sua
opinião eram as criaturas mais indolentes da Galáxia. E Bell não deixou de manifestar tal
conceito.
— Por que justamente um arcônida será capaz de ajudar-nos numa situação que a
Segurança Solar não consegue resolver? Bem, se você acha que deve perder seu tempo com
isso, fique à vontade. Realmente quer recebê-lo, Perry?
Cardif esforçou-se para mostrar uma disposição jovial, embora a obstinação de Bell o
deixasse zangado:
— Quero, sim, gorducho. Ainda bem que você me deu sua bênção. Mais alguma coisa?
Viu Bell atirar a cabeça para trás.
— Sim, Perry. Quero fazer-lhe um pedido todo especial. Procure não dizer
constantemente “mais alguma coisa?”. Antigamente você proferia esta frase no máximo dez
vezes por mês, ao passo que hoje a ouvimos pelo menos dez vezes por dia. OK, meu velho?
— Está certo, seu tomador de conta. Obrigado pela indicação — respondeu Cardif,
sorrindo para a tela.
Reginald Bell sorriu de volta e desligou.
“Perry vai-se restabelecendo aos poucos”, pensou. “Ao menos consegue rir vez por outra.”
Mercant entrou. Não havia necessidade de formular qualquer pergunta. O rosto do
marechal solar estava rígido. Atirou a pasta com o relatório dos peritos sobre a escrivaninha.
— A invasão vai começar!
— Como? — perguntou Bell.
— Isso mesmo — disse Mercant em tom de cansaço.
— Quais são os motivos que o chefe lhe deu, Mercant?
233
— Será que ultimamente o chefe costuma dar motivos? — perguntou Allan. — O que
acontecerá, Bell?
— De quanto tempo precisa para colocar mais dois mil agentes na Segurança Solar?
Mercant fez um gesto de desespero com os braços.
— O quê? Nem sei como arranjar cem colaboradores competentes, quanto mais dois mil,
O serviço da Segurança Solar também tem de ser aprendido, Mr. Bell. Quero dizer-lhe desde
logo, para evitar futuros mal-entendidos entre nós dois, que a Segurança Solar não mais estará
em condições de cumprir sua tarefa, se além dos entrepostos comerciais que os saltadores já
possuem forem criados mais trezentos. Antes que isso aconteça, eu me aposentarei.
Desta vez Bell conseguiu dominar-se.
— Mercant, sei que estou assumindo um risco tremendo. Você é a única pessoa à qual
conto, em particular, o que pretendo fazer. Introduzirei uma modificação no pedido dos
ciganos estelares, no sentido de que no Império Solar só poderão ser criados mais cem
entrepostos comerciais dos saltadores por ano. Se for assim, ainda se verá obrigado a pedir
aposentadoria?
— Se o senhor conseguisse isso, mister Bell... — os olhos de Mercant iluminaram-se, mas
o brilho dos mesmos não durou muito. — Mister Bell, quando o chefe descobrir, ele derrubará
todo o esquema.
— Estou disposto a assumir o risco, Mercant. Aliás, você sabe quem está falando com o
chefe neste momento? Um arcônida, que veio por causa de um assunto ligado a Thomas
Cardif.
— Conhece o nome dele? — limitou-se Mercant a perguntar, sem se mostrar surpreso.
— Banavol.
— Conheço. É filho de pai e mãe arcônidas. Muito vivo e inteligente; é um negociante
muito sagaz. Há vários anos seu escritório colabora conosco.
— Com quem? Com a Segurança Solar?
— Isso mesmo. Banavol criou um centro de consulta de problemas econômicos. Trata-se
de um dos raros centros de espionagem, situado no Império de Árcon, que serve para alguma
coisa. Então Banavol foi falar com o chefe, por causa de Cardif. Aliás, também neste ponto
houve uma modificação radical com o chefe. Com uma obstinação que antes não costumava
demonstrar esforça-se para encontrar o filho. Não sei se devo ficar satisfeito com essa
modificação ou não.
— Bem, no momento temos outras preocupações.
Nem desconfiavam das preocupações que afligiam o homem que acreditavam ser Perry
Rhodan.
***
Banavol, que pelo aspecto exterior era um arcônida típico, estava sentado à frente de
Cardif-Rhodan. Aquele homem de cerca de trinta anos não procurou dissimular sua
arrogância tipicamente arcônida. Para ele o Administrador do Império Solar ainda era um ser
primitivo.
O arcônida foi diretamente ao assunto.
— Não precisamos conversar sobre Thomas Cardif, terrano. Posso falar à vontade?
Quero dizer: Posso falar sem que ninguém me ouça?
Cardif encontrava-se em estado de alarma. As palavras insolentes que Banavol proferira
a título de introdução prenunciavam uma notícia da maior importância. Os olhos de Cardif
chamejaram.
Foi este o único sinal visível de nervosismo.
— Posso falar à vontade? — voltou a perguntar Banavol.
Mais uma vez, a pergunta ficou sem resposta.
234
— Está bem — disse o arcônida em tom indiferente. — O problema não é meu. Venho
diretamente do mundo de cristal. Fut-O1 aguarda seus cumprimentos, terrano.
Essa alusão não seria capaz de levar Cardif à discussão. Limitou-se a sorrir.
— Bem; faço apenas aquilo pelo qual sou pago — prosseguiu o arcônida. — Não fui pago
para fazer discursos. Rhabol quer vinte ativadores celulares. Com isso ganhei meu dinheiro,
terrano. Acho que não tenho mais nada a dizer.
Havia um tom de espreita na voz de Banavol, e uma expressão de desconfiança em seus
olhos avermelhados de arcônida. Achava-se confortavelmente reclinado na poltrona.
Cardif-Rhodan acabara de decepcioná-lo. A cópia fiel de Rhodan que via à sua frente nem
pestanejara quando fora citado o nome do sacerdote Rhabol. E muito menos estremecera, no
momento em que formulou a exigência dos antis: vinte ativadores celulares.
Vinte anti-mutantes tinham vontade de alcançar a vida eterna, tal qual o Imperador
Gonozal VIII.
A única pessoa que podia arranjar o aparelho do tamanho de um ovo que possibilitava a
ativação celular era Cardif-Rhodan, o sósia de Rhodan.
Para ele, deveria ser fácil descobrir os dados galácticos do mundo artificial denominado
Peregrino. Os antis ficaram sabendo por intermédio de Cardif que Aquilo, a criatura solitária
de Peregrino, era amigo de Rhodan. Na opinião dos sacerdotes de Baalol deveria ser fácil para
Cardif ir a Peregrino, pedir a Ele que lhe desse vinte ativadores celulares e voltar com essas
maravilhas.
— Banavol, diga a Rhabol que seu pedido não pode ser atendido — disse Cardif.
O arcônida respondeu com a voz fria:
— Não estou autorizado a discutir o assunto com o senhor, terrano. Se o desejo de
Rhabol não for do seu agrado, o senhor poderá dar expressão à sua contrariedade no
estabelecimento comercial dos saltadores, situado em Plutão. Antes que vá a Peregrino,
esperam-no por lá. Ainda bem que o senhor me lembrou, pois, do contrário, poderia ter-me
esquecido de lhe dar o recado.
Desde a fundação do Império Solar nunca ninguém falara nesse tom com o
administrador.
Acontece que, ao que tudo indicava, para Banavol o homem que se encontrava à sua
frente não era Perry Rhodan.
Os antis deviam ter-lhe confiado o maior dos seus segredos.
Thomas Cardif passara quase cinco decênios entre os anti-mutantes. Nenhum terrano
conhecia melhor os sacerdotes de Baalol do que ele. Por isso mesmo sabia que Banavol não
representava nenhum perigo para sua pessoa. Alguém, que recebesse uma incumbência desse
tipo dos antis, já não era dona de si mesma.
Banavol devia estar totalmente submetido aos sacerdotes, tal qual ele mesmo.
— Ficarei mais um pouco, para que a visita não pareça muito breve — disse Banavol. —
Gostaria de conversar a respeito de Thomas Cardif, terrano. Com sua licença quero observar
que no início não acreditei, quando recebi a visita de Rhabol, que me contou certo segredo.
Mas não demorei a ver o célebre Perry Rhodan. Cardif, o senhor está com um aspecto melhor
que o dele. Da antiga grandeza de seu pai não sobrou quase nada. Não acha estranho que
apesar disso os antis ainda sintam mais respeito por um Perry Rhodan reduzido à impotência
que pelo seu filho? O senhor é capaz de entender uma coisa dessas, terrano?
Thomas Cardif compreendeu perfeitamente o sentido das palavras de Banavol. Fazia
questão de ressaltar mais uma vez que Cardif não passava de marionete nas mãos dos antis.
Assim que os antis não mais precisassem dele, seria atirado fora tal qual uma laranja depois
de chupada.
A permissão de instalar trezentos entrepostos comerciais dos antis no sistema solar
representava o primeiro passo para a conquista pacifica do império. E na operação
aproveitavam-se dele como instrumento de seus planos de conquista.
235
Durante alguns segundos, os dois fitaram-se intensamente, O rosto de Thomas Cardif
não mostrava a menor reação.
— Meus respeitos, terrano — disse Banavol. — O senhor tem um excelente autodomínio.
Rhabol não me informou sobre isto. Posso retirar-me, ou prefere que fique mais um pouco? —
o rosto do arcônida continuava a exibir o sorriso arrogante.
— Fique mais um pouco, arcônida — respondeu Cardif em tom indiferente. Retribuiu o
sorriso.
Dois comparsas defrontavam-se de igual para igual.
Enquanto Banavol falava, procurando provocá-lo, um plano começou a formar-se na
mente de Cardif.
De repente sentiu-se tentado a atender à exigência de Rhabol, e também se sentiu
tentado a entrar no jogo, durante o qual mediria forças com os antis.
Mas resolveu tomar uma atitude negativa diante de Banavol.
Queria que o agente dos antis transmitisse a Rhabol a notícia de que Cardif não era
nenhum joguete nas suas mãos.
— Sua última palavra é essa, terrano? — voltou a perguntar Banavol para certificar-se e
dispôs-se a sair do gabinete. — Recusa-se a viajar para Peregrino?
— Acho que me exprimi com suficiente clareza, arcônida! — respondeu Cardif em tom
indignado.
— Seja o que quiser, terrano. Acontece que não fui incumbido de transmitir sua recusa
aos sacerdotes. A mesma só pode ser manifestada no escritório do entreposto comercial dos
saltadores em Plutão. Não tenho mais nada a ver com o assunto.
Cardif acreditava no que acabara de dizer. Conhecia os antis e sabia como trabalhavam.
Bem, não se importaria em fazer uma viagem para Plutão, nem receava a palestra com um anti
mascarado de saltador.
Pela primeira vez desde o momento em que assumira o papel de Rhodan, sentia-se bem-
disposto. Quando Banavol se retirou do gabinete, um sorriso irônico aflorou aos seus lábios. E
o sorriso continuou quando fez uma ligação de videofone com Bell.
— Sim — disse Bell. — O arcônida disse algo de importante sobre Cardif, Perry?
Num instante, a mente de Cardif-Rhodan adaptou-se à nova situação. A resposta foi
proferida com a voz tranqüila:
— Banavol não disse nada de importante, a não ser talvez três indicações que
possivelmente poderão representar uma pista, gorducho. Mas não é por isso que estou
chamando. Não quero mostrar-me indiferente às preocupações de Mercant. Você
compreende? Refiro-me à petição dos mercadores galácticos. Quero modificar a permissão
por mim concedida no sentido de que os saltadores poderão instalar cem entrepostos por ano
em nosso império...
— Perry — interrompeu Bell entusiasmado. — Será que sua faculdade telepática está
voltando aos poucos? Você leu meus pensamentos! Pretendia fazer exatamente isso. Apenas
queria colocá-lo diante de um fato consumado.
O rosto de Thomas Cardif continuou com a expressão amável, embora a arbitrariedade
de Reginald Bell o fizesse ferver de raiva.
Respondeu com uma gentileza fingida:
— Ainda não confio muito nas minhas faculdades telepáticas, gorducho. Nunca foram
intensas.
De qualquer maneira fico satisfeito de saber que temos a mesma opinião.
Estas palavras fizeram com que Bell se lembrasse de que, de forma alguma, concordava
em permitir que os saltadores penetrassem no sistema solar. Acreditava que havia chegado
um momento favorável de modificar a opinião de Perry Rhodan.
— Ouça — sugeriu. — Não acha que deveríamos recusar de vez o pedido dos ciganos
estelares? Estes negocistas gananciosos só poderão criar-nos problemas.
236
— Tenho meus planos com os saltadores — respondeu Cardif-Rhodan em tom bem mais
frio.
Esperava que a insinuação freasse a curiosidade de Bell. Mas o gorducho continuou a
insistir.
— Que planos são esses, Perry?
— Oportunamente falaremos sobre isso. De qualquer maneira, peço-lhe que por
enquanto não solte a permissão que acabo de dar aos saltadores. Antes disso quero dar uma
olhada em seu entreposto comercial de Plutão.
Observou cautelosamente o rosto de Bell na tela. O gorducho disse com uma risada:
— Isso me deixa ainda mais curioso para conhecer seus planos, Perry. Pela Via Láctea,
que relação poderá existir entre Plutão e os ciganos estelares?
— Quando chegar a hora você saberá disso, meu caro.
— Não é a primeira vez que você diz isso, Perry — disse Bell. — Vou desligar para avisar
Mercant. Quando pretende ir a Plutão?
— Provavelmente amanhã. Desligo, Bell.
A comunicação foi interrompida. Cardif-Rhodan levantou-se e aproximou-se da janela.
Quantas vezes seu pai estivera de pé ali, lançando os olhos por cima do complexo de
construções de Terrânia e fitando a faixa de terra que há um tempo relativamente curto ainda
fora um deserto?
Quantas vezes Rhodan estivera ali, a sós com suas preocupações grandes e pequenas?
Quantas vezes no curso dos anos lutara consigo mesmo a fim de chegar a uma decisão?
A mesma coisa estava acontecendo com o filho. Apenas, seus problemas situavam-se em
outro plano. No fundo todas as suas reflexões, todos os seus planos moviam-se fora da
legalidade.., e não passavam de uma trama criminosa.
— Rhodan — disse em voz alta, e o ódio pelo pai voltou a inflamar-se.
Ao assumir o papel de Rhodan, Cardif colocara-se numa posição bastante difícil, e seu
êxito e seu fracasso dependiam exclusivamente dos antis.
Os mesmos haviam pedido vinte ativadores celulares por intermédio de Banavol. Ao
pensar nisso, Thomas Cardif não pôde deixar de rir. Mas não foi um riso de bondade.
Imaginava perfeitamente qual era o motivo do pedido. Vinte dos sacerdotes mais Influentes
do culto de Baalol namoravam a idéia de, por meio dos ativadores, alcançar a imortalidade
relativa.
Cardif parecia satisfeito.
Seu plano ia adquirindo uma configuração mais nítida. O mesmo previa uma prova de
força entre ele e os antis. Tinha certeza de que sairia vitorioso na luta.
— OK — disse para si mesmo, pegou um cigarro, acendeu-o e deleitou-se com o fumo.
Nas brumas da distância uma gigantesca sombra esférica desceu à Terra. Um dos
supercouraçados da Frota Solar estava pousando.
A Wellington acabara de regressar de uma missão.
***
238
— Você acaba de exprimir em linguagem precisa alguma coisa de que só agora me dei
conta, pequeno. Também notei as sombras de impulsos. Pela grande Via Láctea! Será que
essas sombras são a causa das modificações que houve com o chefe?
Nem mesmo os dois telepatas mais competentes do Império Solar tiveram a idéia de que
essas sombras poderiam ser os impulsos mentais de Thomas Cardif, encobertos pelo saber de
Rhodan, que lhe fora transferido por um processo hipnótico-sugestivo.
— Gucky — disse John Marshall depois de algum tempo. — Daqui em diante teremos de
vigiar atentamente o chefe, a fim de evitar que ele cometa algum erro de consequências
desastrosas. Quando penso nos males que o único filho de Rhodan já andou causando, tenho
vontade de chorar.
— É o inimigo público número um da Galáxia. Nunca pensaria que um dia teria de falar
dessa forma a respeito de Thomas. É um gênio, mas só pode ser um psicopata.
— O ódio pelo pai fez com que enlouquecesse. Além disso, é um homem de dois mundos,
meio terrano, meio arcônida. Pois é, pequeno!
Gucky fez um gesto de assentimento e disse em voz alta:
— De qualquer forma não consigo compreender que alguém seja capaz de passar por
cima de cadáveres para destruir o pai.
— Não se esqueça dos antis, pequeno. Cardif está em poder deles, e se essas criaturas
põem as mãos em alguém, não o soltam mais. Cardif tem que dançar de acordo com a música
que eles tocam. Já não é senhor de sua própria vontade.
239
2
— As coisas estão cada vez piores! Depois destas palavras, proferidas em tom
contrariado, Bell saiu de trás da escrivaninha, olhou de relance para o intercomunicador, que
acabara de transmitir uma mensagem de Rhodan, e afastou-se.
Ao passar pela antessala, resmungou:
— Estarei no gabinete de Mercant! Depois que a porta da antessala também se fechou
ruidosamente, os presentes disseram em voz alta:
— Quanto mais esquisito fica o chefe, mais mal-humorado se torna o gordo.
Enquanto isso Reginald Bell descia pelo elevador antigravitacional. Dirigia-se ao
gabinete do Marechal Solar Allan D. Mercant. A meio caminho esbarrou com o professor
Manoli no interior do elevador.
— Fico muito satisfeito em encontrá-lo meu caro! — disse o homem ruivo com a voz
forte. — Um momento; vou mudar de elevador.
Passou para o setor ascendente, subiu três metros, até atingir o próximo pavimento, e
saiu ao lado do professor.
— Vai falar com o chefe?
Manoli lançou-lhe um olhar de espanto.
— Vou. Como soube? Rhodan pediu-me expressamente que mantivesse em segredo a
visita que pretendo fazer-lhe.
Bell não demonstrou a surpresa que sentia.
— Sabe o motivo, professor?
— O chefe quer mais uma verificação de seu estado de saúde.
O gordo fez um gesto afirmativo.
— Ainda acabarei me acostumando à mania do segredo que tomou conta de Perry.
Marshall e Gucky falaram com o senhor, Manoli?
— Há algumas horas, sir. O senhor já está informado, não está?
— Sem dúvida. O que acha dessa sombra nos impulsos mentais de Rhodan?
O professor parecia desorientado.
— Infelizmente não somos telepatas. Nossos instrumentos não nos proporcionam o
desempenho de uma pessoa capaz de ler pensamentos. Por isso dependemos exclusivamente
das indicações dos telepatas e, sob o ponto de vista médico, essas indicações podem ser tudo,
menos aproveitáveis. Precisamos de curvas, dados, diagramas. Temos necessidade de cifras
exatas que retratem a intensidade dos fenômenos...
Bell interrompeu-o.
— Já sei. O senhor e seus colegas não dispõem disso. Quero conhecer sua opinião pessoal
sobre o chefe, Manoli. Perry está doente ou não está? Sim ou não. Nada de Subterfúgios.
Era uma atitude típica de Reginald Bell. “Nada de subterfúgios.” Costumava simplificar as
coisas. Muitas vezes esse método causava um malogro lastimável, mas outras vezes fazia com
que atingisse muito bem o objetivo.
Manoli, que estava acostumado a raciocinar exclusivamente em termos médicos,
contorceu-se o mais que pôde, mas o olhar implacável de Bell acabou por obrigá-lo a
manifestar sua opinião pessoal.
— O chefe não está doente, mister Bell. Apenas sofre depressões...
Bell teve a impressão de não ter ouvido bem.
— O chefe sofre de quê? De estados de desânimo? E o senhor vem me dizer que ele não
está doente? Será que nunca se deu conta de que um estado de depressão não se harmoniza
com a mentalidade de Rhodan? Por que faz questão de não acreditar nas sombras que foram
constatadas por Marshall e Gucky?
240
— Porque a medicina não conhece sombras nos impulsos cerebrais, O que os dois
telepatas pensam ter descoberto não passa de uma tolice, coisa de leigos. Sabe lá o que pode
acontecer se o chefe descobrir que alguém anda espionando seus pensamentos, mister...
Foi interrompido por Bell.
— Sabe lá, caro Manoli, o que farei com o senhor se contar alguma coisa a Perry?
Estamos entendidos?
— O senhor acaba de exprimir-se com muita franqueza! — respondeu Manoli,
profundamente chocado.
Bell passou a falar em tom mais amável:
— Faça o favor de me informar sobre o resultado do exame.
— Não, mister Bell. Em hipótese alguma. Sou médico. O dever do sigilo profissional...
Mais uma vez foi interrompido por Bell.
— Desta vez o senhor pode esquecer-se do sigilo! Até a próxima — com estas palavras
Bell deixou a sós o professor, que parecia perplexo.
O antigo companheiro da primeira viagem lunar de 1.971 nunca lhe falara nesse tom.
Até então sempre haviam sido bons amigos.
Viu Reginald Bell desaparecer no poço do elevador. Sentia-se irritado.
“Será que existe algo de verdadeiro na observação dos dois telepatas?”, pensou. “Se for
assim, por que não me explicaram melhor a natureza dessa sombra infame?”
Enquanto se dirigia ao gabinete do chefe, resolveu submeter Rhodan a um exame
extremamente minucioso.
Bell pegou o carro e pediu que o levasse ao quartel-general da Segurança Solar.
— Mercant está? — perguntou laconicamente, ao entrar no hall do enorme edifício.
— Sim senhor. O Marechal Solar Mercant encontra-se em seu gabinete.
Dali a pouco Bell estava sentado à frente de Mercant.
— Então? — perguntou este, sem desconfiar de nada.
— Ainda bem que está sentado, Mercant. Ultimamente sempre é bom que um de nós
esteja sentado quando o outro aparece para trazer-lhe alguma novidade. A Ironduke está
sendo preparada para a decolagem.
— Já sei, mister Bell.
— E não há nada de especial nisso — respondeu o gorducho com uma ligeira ironia na
voz. — Agora, o motivo por que o chefe mandou preparar a Ironduke para dar um pulinho a
Plutão? Será que nisso há algo de especial, Mercant?
— A Ironduke só viajará até Plutão? — os olhos de Mercant se estreitaram.
Reginald Bell prosseguiu imediatamente:
— Parece que o senhor não tem a menor idéia do outro acontecimento, não é, marechal
solar? Eu mesmo fiquei sabendo por puro acaso. Às vezes, em Terrânia, até mesmo os
assuntos secretos vêm à luz do dia. Perry entrou em contato com o cérebro positrônico de
Vênus para pedir as coordenadas galácticas do planeta Peregrino.
— Então o chefe vai a Peregrino? — espantou-se Mercant.
— Isso mesmo, Mercant. Se as coisas continuarem assim, explodirei e Perry me porá
para fora. Nunca tinha mentido para mim. Mas há pouco mentiu. O que acha, Mercant?
— Não acho nada, enquanto não conhecer as intenções do chefe. Imagino que tem em
mente um projeto enorme. E tenho uma idéia do ponto a que pretende chegar. Deseja realizar
uma surpresa para restaurar a confiança em sua pessoa, que anda bastante abalada.
— Queira Deus que o senhor continue a acreditar em Papai Noel! — exclamou Bell. —
Não é possível...
— O quê? — perguntou Mercant.
— Nada — respondeu Bell, desviando-se do assunto.
241
Esperava encontrar mais compreensão no chefe da Segurança Solar. Acreditava que ele
poderia compartilhar sua convicção de que muita coisa não estava em ordem com Perry
Rhodan. E qual era o resultado?
Mercant acreditava que o chefe estava preparando uma ação que surpreenderia todo
mundo, a fim de firmar a confiança em sua pessoa.
— Meu Deus! — disse num gemido.
— Só posso supor que o senhor se obstina numa visão das coisas que não guarda a
menor relação com a realidade, Mr. Bell — disse Mercant em tom contrariado.
Bell balançou a cabeça, num gesto de desânimo.
— Pouco me importa o que o senhor queira supor, Mercant. Ninguém me convence de
que Perry não está doente; está mentalmente enfermo. Quando vinha para cá, encontrei o
professor Manoli. O chefe mandou chamá-lo para que ele o examinasse de novo. Mas não é
isso que importa. Conheço Rhodan muito bem, e por isso tenho de notar melhor que qualquer
outra pessoa como ele está modificado.
“Às vezes parece ser o mesmo de antes, isso quando se trata de tomar uma decisão
instantânea. Nesses momentos é a pessoa que eu conheço, mas quando ele se retrai e toma
suas decisões a sós, vejo-me diante de um estranho.
“Rhodan mentiu para mim. Mentiu ao dizer que tinha necessidade premente de ir a
Plutão.
Alega que a visita que pretende fazer ao entreposto dos saltadores assume uma
importância extraordinária.
“Mercant, desde quando o chefe costuma cuidar de ninharias como esta? Qual a utilidade
do Serviço de Segurança? Por que mandou preparar a Ironduke, se apenas quer ir a Plutão?
Por que solicitou ao cérebro instalado em Vênus as coordenadas galácticas do planeta
Peregrino? No momento não temos nada a fazer em Peregrino!”
— Mr. Bell, o senhor acha que posso mandar vigiar o chefe? — objetou Mercant, que com
estas palavras reconheceu que a fala de Bell não deixara de impressioná-lo.
— Alguém falou em vigilância? Queremos que ele recupere a saúde. Com mais insistência
que nunca, afirmo que ele está doente mas não sofre de depressões, conforme Manoli quer
nos fazer acreditar. Existe outro tipo de doença dentro do chefe...
— Será Thomas Cardif?
— Acredito que sim. Quando esse sujeito pôs as mãos no pai em Okul, alguma coisa deve
ter-se esfacelado dentro de Perry. Ele não está deprimido, não mostra nenhum abatimento.
Desde o incidente de Okul, alguma coisa lhe falta. O lado humano e vivo está ausente. Mercant,
não sei como exprimir-me.
— Ele não lhe falou sobre a experiência que teve com o filho em Okul, Mr. Bell?
Com esta pergunta, Mercant convencia-se cada vez mais que as preocupações, que Bell
sentia por Perry Rhodan, tinham sua razão de ser.
A sineta do videofone interrompeu-os:
— Atenção, temos um aviso importante. A decolagem da Ironduke foi antecipada para as
18 horas e 35 minutos, tempo padrão. Repito: A decolagem da Ironduke...
Bell desligou apressadamente. De repente aquela voz rangedora o perturbava.
— O senhor irá na Ironduke, Mercant?
— Não recebi ordens para isso.
— Também não recebi. Apesar disso estarei a bordo. John Marshall e alguns dos velhos
mutantes também já estão na Ironduke.
Mercant soltou um assobio.
— Mr. Bell, o senhor está assumindo um risco muito grande. Não sei qual será a reação
do chefe quando descobrir que o senhor e os mutantes estão a bordo.
Um sorriso obstinado surgiu no rosto de Bell.
— Mais admirado ficará ao notar que o senhor também estará a bordo, Mercant.
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Mercant fitou-o intensamente, respirou fortemente e disse:
— Desde o momento em que o senhor passou a acreditar que Perry Rhodan está doente,
vem revelando faculdades que nunca suporia em sua pessoa, Mr. Bell. OK. Estarei a bordo.
Bell retirou-se. Não dissera a Mercant que não se sentia muito à vontade.
***
***
Catepan, o chefe do entreposto comercial dos saltadores em Plutão, enviara o maior
carro ao local em que estava pousada a Ironduke. O veículo aguardava o administrador na
pequena rampa C da espaçonave esférica.
Cardif-Rhodan desceu pela rampa, frio e destemido. Já conhecia Plutão com suas
condições inóspitas. Como tenente da Frota Solar fora degredado para Plutão, onde prestara
serviços, isso até que subitamente uma imensa frota inimiga — a dos druufs — aparecesse nas
proximidades do sistema solar. Na oportunidade, o destino da Terra parecia selado. Mas os
mercadores galácticos com suas naves cilíndricas armadas e a frota robotizada de Árcon
vieram em auxílio de Rhodan.
Teve uma ligeira lembrança desses fatos, mas não se recordou de sua deserção.
Desligou-se no mesmo instante. Colocou sua mente em posição de usufruir do saber
acumulado por Rhodan. Não pôde deixar de sorrir.
Era um sorriso de satisfação. Os mutantes que, conforme acreditara no início,
representavam o maior perigo, fracassavam diante da barreira mental do verdadeiro Rhodan,
que envolvia os remanescentes da personalidade de Thomas Cardif. Constatavam sempre a
presença dos impulsos mentais de Rhodan, e por isso nem desconfiavam de que estes estavam
detendo os de outra pessoa.
Um jovem saltador, cujo rosto foi iluminado pelo farol do carro, cumprimentou o
Administrador do Império Solar. Num impecável intercosmo pediu que tomasse lugar no
veículo.
Cardif-Rhodan respondeu laconicamente ao cumprimento e acomodou-se no assento.
O carro disparou pela pista lisa. Os contornos imensos do entreposto dos saltadores
tornaram-se cada vez mais nítidos sob a iluminação indireta. O carro penetrou numa eclusa
que mais parecia um pavilhão. O jovem motorista abriu a porta, voltou a cumprimentar
Cardif-Rhodan quando este desceu e avisou-o de que poderia descerrar o capacete espacial de
plástico.
O homem que envergava o uniforme do personagem mais importante da Terra voltou a
cumprimentar. Caminhou em direção ao mercador que se aproximava às pressas. Era
Catepan, chefe do entreposto comercial dos saltadores em Plutão.
Pediu ao administrador que sentasse. Foi só depois de chegar aos recintos privados do
patriarca que Cardif-Rhodan abriu o capacete e desligou o rádio, montado no interior do
245
mesmo. Fê-lo de propósito, pois dessa forma interrompeu as comunicações entre ele e a
Ironduke.
— Catepan, o senhor já deve ter conhecimento do pedido dos mercadores galácticos, que
pretendem instalar novos entrepostos na área de influência do Império Solar. Concederei a
permissão, desde que por aqui não encontre motivos para objeções.
O velho mercador fitou-o com uma expressão de espanto.
— Só por isso o senhor resolveu vir pessoalmente, administrador?
— Isso mesmo — respondeu Cardif-Rhodan em tom indiferente, dissimulando a
satisfação provocada pelas palavras do saltador.
Catepan lhe havia provado que o considerava como Rhodan, o administrador. E era só o
que Cardif desejava saber.
Levantou-se. Catepan seguiu seu exemplo. Cardif-Rhodan agradeceu com um gesto.
— Não me perderei nas salas e nos corredores, Catepan. Irei só. Dentro de meia hora
estarei de volta.
Deixou totalmente perplexo um saltador muito experimentado. Catepan não queria
conformar-se com a idéia de que o homem mais poderoso do Império Solar perdesse tempo
com um simples controle. E sentia-se ainda mais incapaz de compreender que Perry Rhodan
resolvesse realizar em pessoa o controle. Por fim, não conseguia enxergar qualquer relação
entre esse controle e o pedido formulado por todos os clãs dos saltadores.
Cardif-Rhodan saiu do setor residencial e, passando por um corredor profusamente
iluminado, atingiu o primeiro depósito. Olhou em torno. Quase não se interessava pelas
mercadorias.
Um saltador estava parado junto à porta que dava para outro corredor. Parecia esperar
pelo administrador. Mas quando este se aproximou, o saltador deu-lhe as costas e afastou-se.
Cardif lembrou-se do que lhe dissera Banavol, o arcônida. Só aqui, no entreposto
comercial dos saltadores, poderia protestar contra a exigência dos antis, que queriam que ele
fosse buscar vinte ativadores celulares em Peregrino.
“Será o homem, que acabou de afastar-se pelo corredor, um agente dos sacerdotes de
Baalol?”, pensou.
Cardif quis ter certeza.
Ao chegar à porta, virou a cabeça. O pavilhão em cuja extremidade se encontrava media
cem metros de comprimento e mais de cinqüenta de largura.
Resolveu verificar se estava sendo seguido. Satisfeito, acenou com a cabeça. Até mesmo
nessa área extraterritorial o desejo do administrador do Império Solar representava uma
ordem.
Cardif sentiu-se inteiramente dominado pela embriaguez do poder; a sensação
indescritível de quem tem a impressão de que basta mandar para que todos os desejos sejam
cumpridos encheu sua mente.
Mas a lembrança da exigência de Rhabol, sacerdote supremo do culto de Baalol, desabou
sobre ele, como raio destruidor.
“Vinte ativadores celulares com regulagem individual automática!”, refletiu.
A miragem desmanchou-se; a realidade nua e crua surgiu diante de seus olhos.
Thomas Cardif era uma marionete, mesmo oculta sob a máscara do pai.
Fechou os olhos e respirou profundamente.
Aqui, no entreposto dos mercadores galácticos em Plutão, daria início à execução do
plano que levaria à destruição dos sacerdotes de Baalol.
Thomas Cardif abriu a porta que dava para o corredor. Este seguia em ângulo reto com o
pavilhão. A parte dianteira fora instalada para servir de abrigo em caso de catástrofe.
Possuía eclusas duplas e era de construção muito resistente.
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Atravessou a segunda eclusa e chegou ao setor em que ficavam os escritórios. Num
relance Cardif-Rhodan constatou que todos eles ficavam do lado esquerdo, dando frente para
o porto espacial dos mercadores.
Cardif caminhou tranquilamente pelo tapete à prova de som.
Atingiu uma porta aberta, que lhe permitiu ver o interior do recinto.
Um homem estava de pé junto à janela. Virou-se e fitou prolongadamente a pessoa que
se aproximava. Com um ligeiro aceno de cabeça convidou Cardif a entrar.
Cardif-Rhodan avançou. Deu um ligeiro empurrão à porta, que se fechou
silenciosamente.
O homem junto à janela tinha o aspecto de um mercador galáctico. A barba aparada à
moda dos saltadores e os trajes típicos reforçavam tal suposição. Inclinou-se ligeiramente e
disse num intercosmo impecável:
— Fut-Gii incumbiu-me de transmitir recomendações ao Administrador do Império
Solar.
— Obrigado — respondeu Cardif laconicamente, revelando uma elevada dose de
autodomínio, enquanto os olhos exprimiam indiferença. — Posso sentar?
Não aguardou a resposta; acomodou-se numa poltrona.
Thomas Cardif lançou os olhos para além do homem que se encontrava na sala. Viu a
superfície inóspita de Plutão. Do lugar em que se achava, via parte do porto espacial dos
mercadores. Na extremidade oposta do campo de pouso destacava-se a enorme esfera
formada pela Ironduke, que estava com os holofotes ligados.
O olhar de tédio de Cardif retornou para o emissário de Baalol. Sem dúvida o homem que
se encontrava à sua frente tinha essa qualidade. A menção do nome Fut-Gii constituía prova
disso.
— Então? — perguntou Cardif em tom irônico.
O agente de Baalol manteve-se em silêncio. Encostado ao peitoril da janela, com os
braços cruzados sobre o peito, fitava o homem que alegava ser Perry Rhodan.
Cardif começou a sentir-se contrariado. Os modos arrogantes do enviado de Baalol
começaram a irritá-lo.
— Não posso e não quero arranjar as vinte maravilhas — disse.
— Você fará exatamente isso — respondeu o outro, mostrando-se impassível.
— Se não fizer, Cardif, os seus dias de poder e de vida estarão contados. — Deu as costas
a Rhodan e, contemplando a espaçonave esférica, disse: — Que prisão maravilhosa você terá.
A Ironduke levá-lo-á a Terrânia para ser julgado.
— Você fala demais — disse Cardif em tom Irônico. — O que esperam conseguir com
ameaças?
— Nada — respondeu o outro, que voltara a encará-lo. — Nada, a não ser vinte
ativadores celulares.
— Quer dizer que é uma chantagem?
— Os servos de Baalol estão acima de qualquer acusação imunda — respondeu o agente.
— Há cerca de sessenta anos os saltadores quiseram transformar-me numa marionete.
Não se saíram bem. Aliás, quem é você?
— A-Thol, enviado pessoal do supremo sacerdote Rhabol. Deseja mais alguma
informação, Cardif?
— A exigência de Rhabol é inexequível, A-Thol! — respondeu Cardif em tom áspero.
— Nesse caso não teremos nenhuma alternativa. No planeta Lepso, você jurou fidelidade
e gratidão eterna ao culto de Baalol. Hoje Baalol toma suas palavras ao pé da letra. Dentro de
poucos dias, a Galáxia saberá livrar-se do inimigo público número um. Bastará uma insinuação
nossa, habilmente formulada, para arrancar-lhe a máscara. Escolha logo, Cardif. Você terá que
se decidir antes de sair desta sala.
Muito frio, Cardif perguntou como quem se sente dono da situação:
247
— O que o sacerdote me dará em troca, se conseguir fornecer-lhe o que pede?
Pela primeira vez notou-se uma alteração no rosto do anti. Fitou Cardif com um sorriso
de desprezo.
— O quê?
Por acaso o olhar de Cardif desviou-se do anti. Olhou para fora, para a área de penumbra,
e descobriu alguma coisa que fez ruir imediatamente parte de seu plano.
Não perdeu tempo; adaptou-se logo à nova situação.
Não deixou que seu interlocutor percebesse o que havia descoberto.
***
248
Antes que chegassem à última eclusa, houve uma pequena demora. Bell, Mercant e
Marshall tiveram de colocar trajes espaciais. Estavam com muita pressa, mas naquela altura
não precipitavam nada.
— Controle dos armamentos! — ordenou Bell, que foi o primeiro a enfiar-se em seu
traje.
Mercant e Marshall anunciaram que tudo estava em ordem.
Entraram apressadamente na eclusa.
Correram lado a lado pela rampa. Ao pé da mesma estava um planador, no qual havia
vinte robôs de guerra e um piloto.
Quando se tratava de travar um combate, um robô desses equivalia a cem homens muito
bem treinados da Frota Solar.
O planador levantou vôo. Sua aceleração era tremenda. Bell estava sentado ao lado do
piloto.
Puxou o microfone para junto de si, mas por enquanto não falou nada para dentro do
mesmo.
Viu que o planador corria vertiginosamente em direção ao entreposto comercial dos
saltadores, a dez metros de altura.
Olhou para o instrumento que indicava a distância que os separava do campo energético
que protegia o escritório dos saltadores.
Faltavam dois quilômetros.
Bell continuava calado.
Mais um quilômetro! Finalmente transmitiu sua mensagem:
— Chamo Catepan, o saltador. Aqui fala Reginald Bell, representante de Rhodan. Abra
imediatamente o campo defensivo. Vamos logo, senão a Ironduke atirará.
Dali a três segundos o indicador de certo instrumento caiu para a posição zero.
Não havia mais nada que pudesse ser detectado pelo mesmo. Os campos defensivos que
envolviam o entreposto dos saltadores em Plutão haviam sido desativados.
O planador, ocupado por vinte robôs e três homens, pousou junto à eclusa de entrada do
escritório. As máquinas de guerra desembarcaram instantaneamente, com a precisão de uma
manobra.
Três robôs subiram. Usaram seus aparelhos antigravitacionais para manter-se a
cinqüenta metros de altura e dali controlaram praticamente todos os pavilhões e edifícios.
Os outros correram em direção à eclusa, acompanhados por três homens. A mesma
abriu-se sem que Bell pedisse. O patriarca dos saltadores veio correndo pelo recinto que se
estendia à frente deles. Parecia muito nervoso. Não usava traje espacial.
Bell e seus companheiros viram nisso um sinal de que podiam abrir seus capacetes.
— Onde está o administrador? — berrou Bell para o chefe dos saltadores.
O nervosismo de Catepan transformou-se em espanto.
— Perry Rhodan? Está em um dos meus escritórios, mas...
— Onde ficam os escritórios? — interrompeu-o Bell.
Totalmente confuso, Catepan apontou para a outra extremidade do depósito muito
comprido.
— Ali atrás, à esquerda? — perguntou Bell para certificar-se.
O patriarca dos saltadores fez que sim.
O gorducho saiu correndo. Ao que parecia, o pesado traje espacial não representava
nenhum obstáculo para ele. Mas mal os robôs perceberam seu objetivo, sete deles se
adiantaram e chegaram à porta quando havia percorrido apenas metade do caminho.
Apesar da preocupação que sentia por Rhodan, aquele homem baixo e gordo não se
esqueceu de manter informados todos a bordo da Ironduke. Gritou pelo rádio embutido em
seu traje espacial:
249
— Claudrin, estamos no escritório. Dirigimo-nos ao lugar em que se encontra o chefe. Os
robôs vão à nossa frente. Desligo.
John Marshall corria a seu lado. Allan D. Mercant encontrava-se a uns metros atrás deles,
quando atingiram a porta que dava para o corredor, pela qual já haviam passado sete robôs.
Mal haviam dado os primeiros passos no corredor, Bell, num gesto impulsivo, segurou o
braço de Marshall e gritou:
— O senhor ouviu? Não foi um tiro?
John Marshall fez que sim.
***
250
O projétil de plástico antimagnético rompeu o campo defensivo superpotente e atingiu o
anti, no lugar exato em que Thomas Cardif queria ver colocada a bala.
O homem, que usava a máscara de Rhodan, não se esqueceu de nenhum detalhe.
Pegou a arma pelo cano e bateu com a coronha no lado direito do queixo.
A pele abriu-se e a ferida começou a sangrar.
A seguir Cardif deu um passo rápido em direção à escrivaninha. Havia um peso metálico
junto aos papéis. Cardif segurou-o, esfregou-o pela ferida sangrenta e deixou-o cair.
Enquanto isso teve de pensar ininterruptamente nos antis e imaginar a caverna de Okul,
o que representava um ato de máxima concentração mental.
Subitamente a porta abriu-se atrás dele. Dois robôs entraram precipitadamente. Seus
sistemas visuais enxergaram o morto que estava jogado ao pé do administrador. Subitamente
as máquinas de guerra enxamearam em torno de Cardif-Rhodan. Dali a pouco chegaram Bell e
Marshall, seguidos de perto por Allan D. Mercant.
— Perry! — gritou Bell em tom de espanto ao ver o morto. — Você o matou?
— Será que você não está gostando, Bell? — gritou Cardif-Rhodan com a voz áspera. —
Queria que me deixasse dominar por um anti? — como que por acaso, mostrou o queixo
ferido a Reginald Bell.
Este continuava de pé junto ao anti morto. Viu o peso metálico no chão, abaixou-se e
levantou-o. Quando estava prestes a colocá-lo sobre a escrivaninha, viu o sangue grudado no
mesmo.
“É estranho,” pensou.
Não sabia por que tinha certas dúvidas... Seria porque Rhodan nunca lhe parecera tão
estranho como naquele momento?
Perry defendera sua vida. Sem dúvida era um caso de legítima defesa. Mas será que
Perry Rhodan tinha necessidade de matar? Não poderia ter posto o anti fora de combate? Não
era justamente Perry Rhodan que vivia insistindo em que qualquer vida humana deve ser
poupada, sejam quais forem as circunstâncias?
— Bell, parece que você não está gostando de alguma coisa. O que é? Vamos logo! Diga!
Estas perguntas atingiram Reginald Bell com a força de chibatadas. Passou por cima do
morto, permaneceu junto à escrivaninha, lançou um olhar discreto para Mercant e Marshall e
viu que estes também não concordavam com o procedimento de Rhodan. Fitou intensamente
os olhos cinzentos do amigo, que subitamente pareciam tão frios, e perguntou:
— Perry, como soube que este morto é um anti?
Cardif-Rhodan limitou-se a sorrir.
— Parece que você se esqueceu da visita que recebi de Banavol. O fato de eu querer
visitar justamente o escritório dos saltadores em Plutão não lhe causou muita preocupação.
Teria vindo apenas para inspecionar o escritório? — soltou uma risadinha e fez com que até
mesmo Allan D. Mercant estremecesse e desse um pequeno passo para trás. — Sei que não
devia estar fazendo pessoalmente as inspeções, meu caro. Entretanto quis convencer-me
pessoalmente de que as suspeitas de Banavol tinham fundamento. E este morto constitui a
melhor prova de que um anti se introduziu no entreposto dos saltadores em Plutão. Será que
ultimamente os mercadores galácticos também possuem a capacidade de criar campos
defensivos por meio de suas energias individuais?
Bell deu vazão ao seu temperamento.
Com um gesto afastou os argumentos de Rhodan.
— Há pouco você deu a entender que agiu intencionalmente ao matar o anti, Perry?
Cardif-Rhodan nem pestanejou.
— Será? Realmente fiz isso? Nesse caso não formulei devidamente as minhas palavras,
ou você não me entendeu.
251
3
***
***
Quando o jato espacial penetrava pela abertura larga do anteparo energético do planeta
Peregrino, prenderam a respiração. Cardif reuniu as forças que lhe restavam para não perder
o autodomínio. De repente Peregrino, o mundo artificial onde reinava a imortalidade,
estendeu-se embaixo deles.
Não era um planeta no sentido usual da palavra. Era um disco de seiscentos quilômetros
de diâmetro, protegido por um campo energético em forma de abóbada.
Naquele disco encontrava-se tudo que havia de belo no cosmos. Brazo Alkher e Stana
Nolinow gostariam de fitar a maravilha por horas a fio, mas viram-se impedidos de fazê-lo já
que Rhodan lhes ordenou que se dirigissem ao campo de dois quilômetros de extensão, em
cuja extremidade se erguia uma torre fina e de aspecto frágil, de mais de mil e trezentos
metros de altura.
Era este o mundo em que vivia Ele ou Aquilo — desde tempos imemoriais.
Thomas Cardif ouvira-o antes que surgisse a abertura no anteparo energético.
Uma voz falou no interior de Cardif.
Aquilo formulou uma pergunta:
— Perry Rhodan, quer falar comigo?
Antes que Cardif pudesse recuperar-se do impacto produzido pela mensagem, a voz
voltara a soar:
— Fico muito satisfeito em revê-lo. Parece que você sente muitas saudades de mim. Você
não me visitou há poucos instantes?
Os conhecimentos que Cardif absorvera de Rhodan informaram-no sobre o que o Ser
coletivo entendia pela expressão “poucos instantes”. Ele ou Aquilo pensava em padrões
temporais diferentes. Um espaço de tempo que, para os homens, constituía alguns decênios,
representava apenas um momento para ele.
E agora a voz continuava calada, enquanto o veículo espacial 1-109 descia suavemente
no campo de pouso de dois quilômetros de extensão ladeado pela torre esguia.
De pé atrás dos dois oficiais, Cardif olhava a tela de visão global. Os conhecimentos de
Rhodan permitiram-lhe compreender o que via. Não existia nada que lhe fosse estranho. Até
sabia para onde dirigir-se.
Os últimos mecanismos do jato espacial pararam de funcionar. Alkher e Nolinow haviam
colocado todos os controles na posição zero.
— Esperem-me aqui. Irei só — disse o chefe às costas dos tenentes.
Seguiram-no com os olhos enquanto caminhava pelo corredor e parava junto à eclusa.
Cardif retirou-se do veículo espacial apenas com a roupa do corpo, sem a menor
proteção.
A gravitação de Peregrino chegava a 0,90. As condições eram quase iguais às da Terra.
Atravessou o campo de pouso e dirigiu-se a um pavilhão, quando de repente ouviu no
seu subconsciente uma estrondosa gargalhada.
— Rhodan, quase fui devorado pelo tédio! Você nem imagina como me alegro de revê-lo,
amigo. É uma pena que eu não seja feito de substância para poder abraçá-lo e dar-lhe uns
tapinhas no ombro.
256
Mais uma vez uma ruidosa gargalhada soou no subconsciente de Thomas Cardif, mas ele
não se perturbou com isso. Aquilo o cumprimentara como se ele fosse Perry Rhodan. E
manifestara o desejo de dar “uns tapinhas” no ombro dele, que acreditava ser Perry Rhodan.
A gargalhada cessou abruptamente.
— Chegue mais perto, amigo! O que deseja? Oh, você sabe perfeitamente o que quer de
mim. Vinte e um ativadores celulares com regulagem individual seletiva, não é? Cumprirei minha
palavra. Fornecer-lhe-ei os mesmos. Você sabe perfeitamente que gosto de ficar como espectador
quando o Jogo de forças cósmicas é travado em vários rounds. Terrano, estou convencido de que
para mim a época de tédio chegou ao fim.
A voz calou-se. As risadas tornavam-se cada vez mais fracas, pareciam vir de uma
distância longínqua, e depois de algum tempo cessaram de vez.
Cardif não parara ao ouvir a voz dirigida ao seu subconsciente. Adotou o mesmo
procedimento que Rhodan teria usado se estivesse em Peregrino. O saber transferido
forneceu-lhe as necessárias informações a este respeito.
Sentia-se mais seguro do que nunca de que Ele ou Aquilo também se tornara vítima do
logro genial. Cardif nem desconfiava de que, ao fazer a visita ao planeta artificial, proferira sua
própria sentença de morte.
Viu-se no interior do pavilhão. Esperou pacientemente. Não teve de realizar um esforço
de concentração muito intenso para que seu pensamento se desenvolvesse exatamente nos
moldes do de Rhodan. Olhou em torno com uma euforia indescritível.
Não parecia curioso, mas apenas interessado, como alguém que, depois de muito tempo,
revê coisas a que já está familiarizado.
Ali estava o fisiotron, o aparelho singular que até então conservara a vida de Rhodan e
das pessoas mais chegadas ao mesmo. Tinham de comparecer a Peregrino com intervalos de
sessenta e dois anos, a fim de renovar o processo de rejuvenescimento biológico.
Cardif sabia disso há muito tempo, e também sabia que teoricamente a expectativa de
vida de Atlan não tinha limite, em virtude de um aparelho do tamanho de um ovo,
denominado ativador celular. Pedira ao Ser imaterial que lhe desse vinte e um aparelhos
desse tipo, e Aquilo dera a entender que, em conformidade com o que fora combinado, não
deixaria de atender ao pedido.
Sentiu um ligeiro estremecimento diante da fraude vergonhosa. Concentrou-se ao
máximo para afastar a voz da consciência.
“Devo pensar nos moldes de Rhodan”, refletiu. “Vou pensar no vigésimo primeiro ativador.”
Começou a sentir-se como se fosse Rhodan. Pensava através dos conhecimentos do pai,
mas não pensava corretamente a respeito d’Aquilo.
“Não quero comparecer aqui a cada sessenta e dois anos para receber a ducha celular”,
disseram seus pensamentos. “Quero continuar jovem, que nem o Imperador Gonozal VIII.”
Seus pensamentos giravam exclusivamente em torno deste ponto.
Sabia do humor peculiar d’Aquilo, e sabia ainda que Ele gostava de complicar todas as
coisas a sua maneira.
Cardif estremeceu quando a voz chamou em seu subconsciente, sem aviso prévio:
— Você está fazendo concorrência ao velho Odisseu, amigo. Esta brincadeira obriga-me a
mostrar-me reconhecido. Quer que coloque o vigésimo primeiro ativador celular no fisiotron
para adaptá-lo às suas vibrações individuais, Perry Rhodan?
Cardif estava banhado de suor.
“Quero”, pensou. “Regule o ativador.”
A resposta foi uma risadinha, seguida de uma ligeira pausa. Mais uma vez ouviu a voz
vinda de qualquer lugar:
— Hoje você me diverte ao máximo, terrano! E eu lhe pagarei de igual para igual. Aguarde
lá fora, perto do pavilhão. Perry Rhodan, assim que o ativador celular for regulado, você também
estará de posse dos outros vinte aparelhos desse tipo.
257
Ao sair do pavilhão, Thomas Cardif sentiu-se inebriado de uma sensação que nunca
experimentara. Achou que a espera do lado de fora seria menos cansativa que naquele recinto
fechado. Obrigou-se a andar devagar, a passos comedidos, segundo o feitio de Rhodan.
Lá fora sentiu-se atingido pelo clima suave do mundo artificial. O Jato espacial
encontrava-se a um quilômetro dali. Alkher e Nolinow cumpriram suas ordens: nem sequer
saíram da pequena sala de comando do veículo espacial 1-109.
Thomas Cardif olhou para a torre esguia.
“Isto está liquidado”, pensou, mas logo voltou a controlar a atividade de sua mente.
Essa precaução era uma das qualidades herdadas do pai, que não costumava arriscar
levianamente uma coisa que conseguira conquistar.
Aspirou gostosamente o ar perfumado de Peregrino.
O subconsciente voltou a chamar. Teve a impressão de que Ele cochichava esta frase:
— Você faz concorrência ao Odisseu da Antiguidade de sua raça.
Será que Ele descobriu alguma coisa? Será que a manobra por meio da qual pretendia
enganar o Ser de Peregrino fora malsucedida?
De repente o ego de Thomas Cardif cochichou no subconsciente do mesmo: “Ele não
descobriu coisa alguma. Apenas se diverte com o fato de que pretende usar o ativador celular
para escapar à ducha celular que tem de ser realizada a cada sessenta e dois anos. Foi por causa
desse truque que Ele o comparou com Odisseu, o astucioso.”
Thomas Cardif passou a mão pela testa.
A tensão foi diminuindo. Voltou a aspirar o ar perfumado.
Esperava que Aquilo lhe entregasse vinte e um ativadores celulares.
***
Homunc, uma criação d’Aquilo, era um robô humanoide altamente aperfeiçoado, criado
especialmente para Rhodan, por ocasião da primeira visita que este fizera ao planeta
Peregrino.
E Homunc ouviu que, Ele, o seu senhor, soltou uma risadinha alegre.
Homunc permanecia nos fundos do pavilhão. Só penetrara no mesmo depois de Thomas
Cardif ter saído. Aquilo não queria que houvesse um encontro entre eles. Ele apenas queria
conversar com Homunc à sua maneira toda peculiar. Aquilo não precisaria da presença do
robô, mas a situação parecia tão grotesca que achava necessária a presença de Homunc.
Seguiu-se uma palestra mental, bastante estranha.
— Homunc, você o reconheceu?
— Reconheci-o imediatamente, senhor.
— Qualquer pessoa que use o nome de Rhodan diverte-me a valer, Homunc. Esses bárbaros
vindos do terceiro planeta de um sol, que chega a ser ridículo de tão pequeno que é, têm cada
idéia que merece um prêmio.
— Pretende apoiar o filho de Rhodan, senhor?
— Por que não iria apoiá-lo, desde que o patifezinho tenha bastante inteligência? Mas
antes de mais nada terá de provar se realmente tem inteligência. Um patife inteligente permite
que alguém o chame pelo nome de outra pessoa, mas nunca procura identificar seus
pensamentos com os dessa pessoa.
— Senhor, será que ele entendeu o sentido exato da sua pergunta? “Quer que coloque o
vigésimo primeiro ativador celular no fisiotron para adaptá-lo às suas vibrações individuais,
Perry Rhodan?” Foi isso que o senhor perguntou.
— Homunc, você está me decepcionando. Será que sou o Destino? Só mesmo um tolo
procura atirar-se nos braços da onipotência. Por isso nem penso em ajudar Rhodan. Uma pessoa
que assume o risco que ele assumiu em Okul terá de pagar o preço.
— Senhor, os dois correm o perigo de serem mortos.
258
— Não digo que não seja assim, Homunc.
— Senhor, expõe Cardif a um perigo tremendo!
— Por enquanto não. Quando chegar a hora eu o prevenirei, Homunc. Eu o prevenirei com
muita insistência. Ele assumiu todo o saber que Rhodan acumulou a meu respeito. Uma pessoa
que assume o risco de agir, da forma que fez Thomas Cardif, deve possuir inteligência suficiente
para trabalhar com o saber alheio. Está na hora de retirar o ativador celular do fisiotron.
Homunc, quer fazer o favor de certificar-se de que o mesmo está regulado exatamente para as
vibrações de Perry Rhodan, conforme deseja Thomas Cardif?
— Acontece que Cardif não é Rhodan, senhor. Não conseguiu iludir nem ao senhor nem a
mim, como fez com todos os outros. No seu caso o ativador celular será contraindicado.
— Eu o advertirei dessa contra-indicação, farei uma advertência muito precisa, Homunc,
quando chegar a hora.
— Como serão os outros vinte ativadores celulares, que os sacerdotes de Baalol exigem de
Cardif?
— Serão uma graça, Homunc, e uma lição muito proveitosa, que talvez faça com que os
antis compreendam que não podem brincar comigo. Mas Thomas Cardif me diverte; não deve
conhecer o provérbio do ladrão roubado... Não tem a inteligência do pai.
Com isso a palestra travada no interior do pavilhão chegou ao fim. Aquilo voltou a soltar
a risadinha alegre. Homunc, cujo cérebro era uma combinação semi-orgânica e positrônica,
que funcionava em base hexadimensional, não se atreveu mais a dirigir a palavra a Aquilo.
Homunc não estava preocupado. Conhecia perfeitamente seu senhor, e por isso sabia
que Thomas Cardif tinha em mãos seu próprio destino, que determinaria sua vida futura.
Homunc continuava a manter-se nos fundos do pavilhão. Viu o ativador celular sair do
fisiotron e seus olhos acompanharam o objeto em forma de ovo que se deslocava pelo ar, em
direção à porta.
Aquele ativador, regulado para as vibrações individuais de Perry Rhodan, conferiria a
esse terrano a imortalidade relativa desde que ele o trouxesse junto ao corpo. Acontece que
Thomas Cardif não era propriamente Perry Rhodan.
Será que em virtude disso o ativador não produziria nenhum efeito? Ou provocaria
alguma reação que o termo contra-indicação só designava de forma bastante vaga?
Os olhos de Homunc continuavam a seguir o ativador, que se afastava lentamente. A
risada alegre d’Aquilo não era muito forte, mas era capaz de encher o grande pavilhão.
Aquilo divertia-se com os terranos. Desde que passara a ser Aquilo, nunca ninguém
tentara ludibriá-lo. Mas agora isso acabara de ser feito. E o ser imaterial divertia-se com isso.
Thomas Cardif caminhou em direção ao jato espacial.
Conseguira! Trazia o ativador celular junto ao corpo. Tinha diante de si a vida eterna. Só
mesmo um acontecimento violento poderia causar-lhe a morte. Estava protegido contra a
degenerescência das células. A atuação ininterrupta do objeto em forma de ovo que trazia
sobre o peito provocaria uma renovação incessante das células.
Conseguira! Apesar de tudo, reprimiu a sensação de triunfo. Ainda se encontrava em
Peregrino. Ainda havia o perigo de que Aquilo percebesse a manobra levada a efeito para
lográ-lo.
Aquilo manteve-se em silêncio. Aquilo se despediu no momento em que Cardif pendurou
o ativador pelo pescoço e o escondeu sob o uniforme.
— Perry Rhodan, regulei o aparelho exatamente para suas vibrações individuais, e tive
muito prazer em agir assim, meu amigo. As vinte peças restantes lhe serão enviadas
posteriormente. Você as encontrará junto à eclusa de seu barco espacial. Não se preocupe por
causa do recipiente em que serão entregues. Ele se abrirá no momento em que você desejar que
isso aconteça. Se quiser que permaneça fechado, não haverá força no Universo que seja capaz de
pôr as mãos em seu conteúdo. Passe bem, Rhodan. Sua visita me deixou alegre como nunca. —
foram estas suas últimas palavras, que Cardif captou.
259
Depois disso o Ser fictício de Peregrino voltara a soltar uma estrondosa gargalhada.
Acompanhara Thomas Cardif até o centro da praça circular, onde desapareceu
abruptamente.
Quando se encontrava a apenas cem metros do veículo espacial 1-109, Cardif sentiu que
um fluxo vivificante que nunca sentira lhe inundava o corpo.
“O ativador está funcionando”, pensou.
Teve de esforçar-se ao máximo para não cair num estado de euforia. Conteve o passo e
perscrutou seu interior. E então não teve mais dúvida; de repente sentia-se jovem e
recarregado com um máximo de energia. Parecia libertado de um peso que o oprimia desde o
momento em que pela primeira vez pisara em Peregrino.
Quando atingiu a pequena rampa do jato espacial, uma esfera luminosa vermelho-pálida
de meio metro de diâmetro surgiu à sua frente, vinda do nada. Flutuava na altura de sua
cabeça.
Em seu interior reconheceu vinte objetos escuros em forma de ovo, iguais ao ativador
celular que trazia sobre o peito.
Estendeu a mão e tocou a superfície do envoltório esférico. Dava a impressão de ser feita
de substância material, mas Cardif não acreditou que realmente fosse. O saber de Rhodan
permitiu-lhe que tivesse uma idéia sobre a estrutura da esfera oca, que se encontrava à sua
frente. Era um campo temporal adaptado aos seus impulsos, que só se abriria por sua
vontade.
De repente compreendeu o sentido das palavras do Ser coletivo: “Não haverá força no
Universo que seja capaz de pôr as mãos em seu conteúdo.”
Havia um sorriso de triunfo em seus lábios quando entrou na pequena sala de comando
do jato espacial. Stana Nolinow e Brazo Alkher estavam confortavelmente instalados e
jogavam xadrez. Fizeram menção de levantar-se de um salto assim que viram o chefe à sua
frente.
Este conteve-os com um gesto. Cumprimentou-os com um aceno de cabeça. Tinha de
encontrar uma maneira de dar vazão ao triunfo. Naquele momento, os jovens oficiais viram
nele Perry Rhodan, que estava disposto a dar ouvidos a qualquer pessoa, sempre que isso
fosse possível.
— Infelizmente terão de interromper a partida de xadrez. Vamos decolar.
Cardif-Rhodan viu os olhares curiosos dos dois tenentes, que não paravam de fitar a
esfera vermelho-pálida que flutuava na altura dos ombros do chefe. Mas este não lhes deu
nenhuma informação.
Nolinow e Alkher levantaram-se apressadamente. Ocuparam seus lugares. Uma vez à
frente do painel de controle, recolheram a rampa e fecharam a eclusa. Deram início ao
processo de pré-aquecimento dos propulsores. O maravilhoso silêncio no interior do jato
espacial chegara ao fim.
As máquinas zumbiram, trovejaram, apitaram. Os dispositivos automáticos ligaram,
simultânea ou sucessivamente, uma série de conjuntos mecânicos. O conversor central entrou
em funcionamento com um som de barítono. Um tremor sacudiu o veículo espacial 1-109.
Os dois oficiais não tiveram tempo para virar a cabeça, quando ouviram às suas costas os
passos do chefe, que saía da sala de comando. Antes que concluíssem os preparativos da
decolagem, Cardif-Rhodan retornou, desta vez sem a esfera vermelho-pálida.
— Decolagem! — disse Brazo Alkher, seguindo seu costume.
Embora na Ironduke desempenhasse as funções de oficial de artilharia, tivera que
absorver cursos rigorosíssimos na Academia Espacial Solar, tal qual acontecera com seus
companheiros.
E nesses cursos aprendera a pilotar jatos espaciais, naves da classe Estado e até mesmo
cruzadores.
260
A 1-109 levantou-se suavemente. Descreveu duas curvas em torno da torre de mais de
mil e trezentos metros de altura, que se encontrava na periferia do campo de pouso circular.
Enquanto isso, Brazo Alkher balançou o jato espacial. Era um aceno de despedida, um costume
que se disseminara rapidamente pela Frota, mas que só podia ser praticado por quem não
pilotasse uma nave esférica.
O veículo espacial 1-109 subiu em direção à abóbada energética, uma semiesfera que se
estendia sobre o disco de seiscentos quilômetros de diâmetro.
— Olhe a abertura! — exclamou Stana Nolinow em tom de surpresa.
No mesmo instante, Alkher regulou os propulsores para o desempenho máximo. Com um
rugido dos motores, a 1-109 precipitou-se para o espaço cósmico normal.
Assim que o pequeno barco estelar alcançou a fronteira, a tela de visão global deixou de
mostrar a abertura. E do campo energético também não se notava mais nada. Nada nas
proximidades dava a entender que naquele setor espacial, onde escasseavam as estrelas,
ficava o misterioso mundo artificial que os homens haviam batizado com o nome de
Peregrino.
Sem dizer uma palavra, Cardif-Rhodan saiu da pequena sala de comando.
Precisava ficar só. Desejava ficar só.
Queria desfrutar intensamente o seu triunfo.
Ele, um imortal, conseguira. E com a isca que trazia numa versão multiplicada por vinte
não teria a menor dificuldade em livrar-se das garras dos antis.
Fechou a porta do camarote atrás de si.
Acomodou-se na poltrona. A esfera energética-temporal, que reluzia numa tonalidade
vermelho-pálida, flutuava num canto. Cardif concentrou-se na mesma.
“Abra-se!”, pensou.
A esfera aproximou-se em silêncio, parou dez centímetros acima do colo de Cardif-
Rhodan e deixou ver uma fresta. Um dos corpos com formato de ovo que se encontrava no
interior da esfera deslocou-se em direção à fresta. E um dos ativadores celulares saiu do
recipiente em que estava contido e caiu no colo de Cardif.
Segurou-o. Examinou o ativador de todos os lados. A peça só se distinguia num ponto do
ativador que ele mesmo trazia sobre o peito. Na saliência de dois centímetros havia o contato
que realizava a regulagem automática das vibrações. Aquilo fizera questão de chamar sua
atenção para o fato de que um ativador celular não é transferível. Uma vez tentada a
transferência, suas funções perdem-se.
Ao lembrar-se disso, Cardif soltou uma gostosa gargalhada.
— A vida eterna multiplicada por vinte, seus sacerdotes! — exclamou em tom de
deboche.
Naquele momento desejava ver os antis à sua frente.
Se quisessem mesmo os ativadores, teriam de pagar o preço que ele exigisse.
A vida eterna era impagável.
— Por que não poderei arrancar tudo dos antis em troca de um único ativador?
Voltou a enfiar o objeto em forma de ovo na fresta do campo temporal. A esfera
reluzente tornou a fechar-se automaticamente. Deslocou-se para o canto em que estivera
antes. Até parecia que era um ser pensante.
— Consegui! — exclamou Thomas Cardif com a voz orgulhosa.
261
4
Depois que o patriarca Catepan e os outros mercadores foram interrogados por horas a
fio, não havia mais nada a fazer a bordo da Ironduke.
De início os terranos dispensaram um tratamento bastante áspero aos saltadores.
Ninguém podia levar isso a mal, pois não se haviam esquecido da desgraça que os antis e
Thomas Cardif haviam causado à Galáxia. A morte de milhões de viciados devia ser atribuída a
esses anti-mutantes que se intitulavam de sacerdotes.
Allan D. Mercant dirigia os interrogatórios.
Era esta a sua especialidade, e com o auxilio de três membros da Segurança Solar que
viviam constantemente em Plutão, tornou-se possível a realização de uma série de inquirições
cerradas.
O patriarca Catepan jurou por todos os deuses de Árcon que não tinha a menor idéia de
que o homem, que acabara de ser morto por Rhodan, era um anti.
Ninguém acreditou nele.
Mas dali a várias horas, quando foi iniciada a terceira série de interrogatórios e o
conteúdo da mente de cada um dos mercadores galácticos, que trabalhavam no entreposto de
Plutão, foi examinado pelos telepatas, chegou-se à conclusão de que o patriarca Catepan não
mentira.
Mas a surpresa ainda estava por vir.
O interrogatório havia chegado ao fim e os saltadores tinham voltado aos seus
escritórios. Os responsáveis pelo interrogatório dormiam em seus camarotes quando foram
colocados em estado de alarma pela divisão clínica da nave linear.
Bell praguejou, saltou da cama, vestiu-se às pressas e correu para a grande enfermaria.
No elevador lateral encontrou-se com Mercant. Este também sabia apenas que acabara de ser
arrancado da cama.
Foram recebidos pelo Dr. Pinter. Jefe Claudrin, comandante da Ironduke, estava ao seu
lado. Não havia nada de especial nisso. Mas o fato de que Jac Aníbal, especialista em aparelhos
de hiper-rádio, também se encontrava lá tornava-se uma grande surpresa. Bell e Mercant
entreolharam-se.
— Não posso deixar de pensar em nosso amigo Tiff, Mercant — disse Bell.
— Também estou pensando nele — confessou Mercant.
A pessoa à qual se referia era o agora General Julian Tifflor, que os amigos chamavam de
Tiff, nome que costumava ser usado até mesmo por Rhodan. Em certa época, quando ainda
era cadete, desempenhara as funções de “chamariz cósmico” e fizera coisas que chegavam às
raias do milagre. Mas tudo isso só se tornara possível graças a um hipertransmissor
goniométrico que fora implantado em seu corpo por meio de uma operação e ainda se
encontrava no mesmo lugar.
Esse transmissor, que tinha um alcance de vários anos-luz, representara na época a pista
que sempre levava Rhodan ao centro dos acontecimentos, onde muitas vezes pudera intervir
no último instante com as forças de que dispunha.
Nem Jefe Claudrin, nem o Dr. Pinter e nem o especialista de hiper-rádio sabiam o que
significavam as observações de Reginald Bell e do Marechal Solar Mercant. Os três ainda não
haviam nascido na época em que se realizou a ação “chamariz cósmico”.
— Queiram acompanhar-me ao laboratório médico-técnico — pediu o Dr. Pinter.
Deixaram que ele os conduzisse. Era a primeira vez que Bell se encontrava naquele lugar.
Tinha uma repugnância acentuada por tudo que cheirasse a hospital, enfermaria ou clínica.
Seu instinto antipatizava com as instituições desse tipo.
— Façam o favor de sentar — pediu o Dr. Pinter.
262
— Obrigado; preferimos ficar de pé — respondeu Bell. — Não quero demorar muito por
aqui. O que houve?
Jac Aníbal, especialista em hiper-rádio, adiantou-se. Dirigiu-se à mesa de instrumentos.
Pegou uma pinça. Sobre uma pequena lâmina de vidro via-se um objeto do tamanho de um
grão de ervilha. Segurou-o com a pinça. Aníbal levantou o pequeno objeto.
— Isto é um transmissor de hiper-rádio de um tipo que não é encontrado todos os dias.
Não digo isto porque tem um alcance superior a cinqüenta anos-luz, mas sim porque esta
maravilha técnica usa o tímpano de uma pessoa como microfone.
“Duas horas após a morte do anti-mutante, o tímpano do mesmo ainda não havia sido
afetado pela rigidez cadavérica. E duas horas após a morte, o transmissor de hiper-rádio
existente no músculo de seu antebraço esquerdo ainda transmitia todas as palavras
pronunciadas nas proximidades do morto. Infelizmente o aparelho só foi descoberto há pouco
menos de três horas. Foi este o tempo que levei para estudar as funções do mesmo. Mr. Bell,
permite que eu lhe mostre?
Acontece que Bell não estava interessado em ver o aparelho. De repente sentiu-se
atormentado por outras preocupações.
Lembrou-se do vôo de Perry Rhodan para o planeta artificial Peregrino. Indagou em vão
a si mesmo o que teria sido falado na presença do anti morto. Sem dúvida alguém mencionara
o fato de que o administrador se encontrava num jato espacial, a caminho de Peregrino.
Mercant devia estar pensando na mesma coisa, pois puxou Bell pelo braço e disse em voz
baixa:
— Vamos!
Jefe Claudrin percebera os cochichos. Lançou um olhar indagador para os dois homens.
Mercant respondeu com um sinal de cabeça. O nativo de Epsal compreendeu e seguiu-os.
O especialista de hiper-rádio olhou-os com uma expressão de desapontamento. Ao
chegar à porta, Bell virou a cabeça.
— Muito obrigado, meu caro Aníbal — disse. — Acho que todos devemos muito ao
senhor.
Depois dirigiu-se ao Dr. Pinter e perguntou:
— Quem achou essa coisa diabólica no músculo do antebraço?
— Fui eu — respondeu o doutor com a voz modesta.
Bell acenou com a cabeça.
Enquanto caminhava em direção aos camarotes, Bell perguntou:
— Por que será que a central de rádio e os fortes de Plutão não registraram a
transmissão? Geralmente essa gente ouve até a tosse de uma pulga.
— Será que o senhor se esqueceu dos swoons, Bell? — ponderou Mercant.
— Não venha me dizer que nossos homens-pepinos, que residem na Terra e em Marte,
trabalham para os antis!
— Não me refiro a estes swoons. Aludi aos homens-pepino radicados em seu planeta
natal. Se foram eles que construíram um transmissor tão potente, nesse caso será
perfeitamente possível que o aparelho seja provido de um condensador. E uma mensagem
condensada de duração inferior a um nano segundo pode perfeitamente atravessar nosso
sistema de vigilância de rádio sem ser notada.
— Que belas perspectivas. O que acontecerá ou terá acontecido neste meio tempo com o
chefe? Será que o senhor se recusa a pensar nele? Está praticando a política do avestruz? —
perguntou Bell.
Mercant limitou-se a sorrir.
— Parece que o senhor não se lembra dos tenentes Stana Nolinow e Brazo Alkher.
O chefe não poderia ter escolhido tripulação melhor. Se alguma coisa tivesse acontecido
ao jato espacial, ou se o mesmo se encontrasse numa situação de perigo, pelo menos teríamos
recebido um pedido de socorro. Todos conhecemos a rapidez das reações de Alkher.
263
— Tomara que desta vez ele também saiba reagir depressa.
Mercant ficou parado. Quando Reginald Bell, o otimista, se transformava numa ave de
mau agouro, quase sempre surgia um acontecimento inesperado e nada agradável.
Os dois chegaram à porta do camarote de Mercant e pararam. Olharam para o relógio.
— Bem, ainda poderemos dormir umas quatro horas, senão surgir outro imprevisto —
disse Bell com um bocejo e deu boa-noite a Mercant.
— Boa noite — respondeu Mercant e entrou em seu camarote.
Deitou, mas não conseguia dormir. Seus pensamentos ficavam girando em torno do
chefe. E quanto mais sua mente se ocupava com Perry Rhodan, mais preocupado se sentia.
Seus olhos abertos fitavam a escuridão que o rodeava. E essa escuridão não o impedia de
ver o rosto de Rhodan com os olhos da mente. Conhecia cada traço desse rosto, mas teve a
impressão de ver algo de estranho no quadro que sua imaginação lhe oferecia. Mas não sabia
dizer em que consistia o aspecto estranho. Apenas o sentia, e depois disso as idéias de
Mercant passavam a desenvolver-se num plano equívoco. Omitira as conclusões lógicas, sem
que disso se desse conta. Não atribuía a devida importância aos seus sentimentos.
O Marechal Solar Mercant perdeu totalmente a noção do tempo. Não sabia por quantos
minutos estivera deitado na escuridão, mergulhado em reflexões, quando as sereias da
Ironduke uivaram, anunciando o grau máximo de alarma.
***
O jato espacial 1-109 acabara de ultrapassar metade da velocidade da luz, mas ainda não
se dispôs a entrar em transição. Cardif-Rhodan ordenara pelo sistema de intercomunicação de
bordo que a mesma só fosse realizada depois de atingidos 99,01 por cento da velocidade da
luz.
Para os dois jovens oficiais, a ordem do chefe era lei; seus rostos contrariados eram o
único sinal de que não concordavam com essa ordem.
Stana Nolinow virou-se para Alkher:
— Sabe lá a que distância fica o cruzador de patrulhamento mais próximo, meu chapa?
— Não tenho a menor idéia, Stana — respondeu Alkher. — Se quiser saber, pergunte ao
cérebro positrônico.
— O computador está muito longe.
Naturalmente estas palavras representavam um tremendo exagero. Bastava que Stana
Nolinow se virasse com a poltrona, para ter à sua frente o computador positrônico de bordo. E
depois de alguns segundos, o cérebro lhe teria dito por meio de um cartão perfurado onde se
encontrava o cruzador mais próximo.
O jato espacial ia galgando a escala da velocidade.
Brazo Alkher controlava os aparelhos de localização. Todos os indicadores estavam na
posição zero. A sua frente e atrás deles, à esquerda e à direita, só havia, com exceção de alguns
sóis distantes, o espaço vazio.
Examinou o controle de armamentos.
— O que está fazendo? — perguntou Stana com uma ligeira curiosidade na voz.
Até mesmo dormindo, Brazo seria capaz de dominar todos os tipos de controle de
armamentos.
Não tinha necessidade de olhar o que suas mãos faziam. E agora não estava olhando.
— Nunca se pode saber, Stana. Como estamos apenas nos arrastando, podemos e
devemos perfeitamente destacar uma unidade energética para os armamentos. Quando estou
sentado numa casca de noz como esta, sempre me sinto satisfeito ao saber que os jatos
espaciais estão muito bem armados.
264
— Acho que só mesmo um oficial de artilharia pode alegrar-se com isso. Quanto a mim,
tenho um respeito terrível por tudo quanto é arma de radiações. Basta lembrar-me dos
primeiros exercícios de tiro real na Academia. Meu instrutor gritou comigo que nem um louco.
— O que foi que você andou fazendo, Stana? — perguntou Brazo, acionando o último
contato do painel de controle de armamentos.
— O que faz um cadete que ainda não concluiu seus treinamentos? Estávamos voando
dentro do anel de asteroides. Meu alvo era um bloco de trezentos metros de diâmetro. Tudo
teria saído bem, se uns oito ou dez quilômetros atrás do mesmo não houvesse um asteroide de
cerca de quarenta quilômetros de diâmetro. Bem, no entusiasmo provocado por meu primeiro
tiro real acabei atingindo o tal asteroide.
Brazo Alkher soltou um grito de surpresa. Stana Nolinow já não poderia refestelar-se nas
recordações. O sistema de rastreamento estrutural da 1-109 acabara de mostrar uma reação.
E juntamente com essa reação, uma gigantesca espaçonave cilíndrica surgira no espaço. A
ampliação imediata do jato espacial mostrou o cilindro grotesco de extremidades
arredondadas com uma nitidez terrificante. Até parecia que a nave se encontrava bem à sua
frente. Acontece que se achava a mais de um milhão de quilômetros. Mas a uma velocidade de
0,6 por cento da luz isso não importava.
No interior da 1-109 três sereias deram o sinal de alarma.
Brazo Alkher mudou de um instante para o outro. Apenas via a nave desconhecida correr
velozmente em direção ao jato espacial. Sua mão, que ia acionar a chave sincronizada que
desencadeava a transição, passou ao lado da mesma.
Um raio volumoso disparado pela torre de canhões da nave cilíndrica fez com que
pusesse a mão na chave de controle do armamento. A mão esquerda fez recuar a chave dos
propulsores.
Os motores da 1-109 começaram a uivar. O raio mortífero passara pelo espaço a alguns
milhares de quilômetros do jato espacial.
— Vou assumir! — gritou o tenente Stana Nolinow. Com um movimento rapidíssimo dos
controles passou a pilotar o jato espacial.
Alkher podia usar ambas as mãos para controlar o armamento.
Tudo se passara numa fração de segundo.
Brazo Alkher começou a dar mostras de suas qualidades.
Uma nave cilíndrica pretendia abordá-los. Estavam interessados no chefe.
A tecla de pedido de socorro afundou no painel. Acoplado ao computador de bordo, que
constatou no mesmo instante a posição galáctica da 1-109, o potente hipertransmissor do jato
enviou para o espaço o pedido de socorro.
No mesmo instante, Brazo Alkher disparou os três canhões de impulsos do jato espacial.
A modificação casual de rota realizada pela nave cilíndrica teve consequências
desastrosas para esta. Os disparos de Alkher não atingiram o nariz achatado do veículo
espacial, conforme o mesmo pretendera, mas derreteram o casco da nave inimiga na altura da
sala de máquinas.
Num instante as duas naves passaram uma pela outra.
— Desligar! — disse Brazo com uma voz que não admitia contradita.
E Stana Nolinow nem pensava em discutir. Os instrumentos diziam bastante.
E também diziam quem estava atacando os terranos.
Eram antis!
A unidade de força do jato espacial continuava a gerar energia, mas esta não produzia
nenhum resultado efetivo.
Um campo energético mental criado pelos servos de Baalol envolvera o centro
energético pequeno, mas superpotente da 1-109.
265
Com isso, Brazo Alkher e Stana Nolinow ficaram separados do setor da nave em que
estavam instaladas as máquinas. E esse setor teria de transformar-se numa bomba, se as
máquinas não fossem desligadas imediatamente.
Foi o que Stana Nolinow fez. A chave mestra foi colocada na posição “desligado”.
O homem que, segundo acreditavam, era o chefe, veio correndo do camarote.
— São antis, sir! — disse Alkher laconicamente. Com um gesto cansado apontou para a
tela de visão global.
A nave cilíndrica descreveu uma curva ampla e voltou a aproximar-se.
— Antis...? — exclamou Cardif-Rhodan. Muito tenso, fitou a tela.
— Sir, acho que ainda consegui transmitir um pedido de socorro — disse Alkher sem
desconfiar de nada.
Naquele momento Thomas Cardif teve a impressão de que iria enlouquecer.
Então fora irradiado um pedido de socorro?
— O quê...? — gritou para Brazo Alkher. — O senhor chamou a Frota pelo hiper-rádio?
Mal acabou de pronunciar a última palavra, compreendeu o que havia feito.
— Como, sir? — gaguejou Brazo Alkher, fitando-o com uma expressão de perplexidade.
— Está bem, Alkher — disse Cardif em tom contemporizador. — Como soube que se
trata de antis?
— Sir — respondeu o jovem tenente, com uma perplexidade cada vez maior. — Não está
ouvindo? Tivemos de desligar as máquinas para não explodir. Os anti-mutantes envolveram a
sala de máquinas com um campo mental. Nem uma única partícula de radiações consegue sair
da mesma...
Thomas Cardif interrompeu o jovem tenente em tom áspero:
— Eu lhe pedi que me desse lições?
Virou-se e saiu da sala de comando do jato espacial.
— Será que você pode explicar a causa de toda essa confusão do chefe? — perguntou
Stana em tom apavorado.
Brazo, que parecia deprimido pela repreensão injusta que acabara de sofrer, fez um
gesto de indiferença.
— Sei lá! Olhe! Estão puxando nossa nave com um raio de tração. Caramba! Por que não
acertei exatamente a sala de máquinas dessa nave pirata?
Por enquanto não podiam fazer nada para modificar a situação. Sua única esperança era
a Frota Solar, isso se a mensagem de hiper-rádio ainda tivesse sido expedida pela antena do
jato espacial.
Brazo usou o dispositivo de emergência para consultar o computador de bordo. Uma
sombra que surgiu à sua direita fê-lo levantar os olhos. Reconheceu o chefe e ouviu-o
perguntar com a voz gelada:
— O que deseja saber, Alkher?
— Estou indagando se a mensagem de hiper-rádio ainda chegou a ser expedida, sir.
— E então?
Brazo Alkher conseguiu engolir a grosseria, mas teve de esforçar-se ao máximo para
responder em tom cortês:
— O pedido de socorro ainda foi transmitido, chefe...
— Acabamos de chegar! — disse Stana Nolinow como num eco e apontou para a tela.
Viram que o jato espacial 1-109 estava sendo recolhido a bordo da nave cilíndrica por
meio de um potente raio de tração.
Cardif-Rhodan inclinou-se em direção à tela. Estreitou os olhos. Acabara de notar as
avarias no casco da nave dos antis.
— Foi o senhor quem acertou a nave nesse ponto, Alkher? Abriu fogo contra a nave?
O tenente não conseguiu compreender o sentido da última pergunta.
266
— Naturalmente! Infelizmente só consegui disparar um único tiro, sir. Afinal, só
dispunha de alguns segundos.
O pequeno barco espacial sofreu um forte solavanco. O jato espacial 1-109 acabara de
entrar no grande hangar da nave desconhecida.
A tela de visão global escureceu. A única coisa que mostrou foi a grande eclusa da nave
cilíndrica que se fechava. Demorou alguns minutos até que as luzes do hangar se acendessem.
Nesse meio tempo deviam ter bombeado ar para dentro do grande pavilhão, pois um
homem sem traje protetor entrou por uma porta.
Thomas Cardif reconheceu-o ao primeiro relance de olhos.
O sacerdote Rhabol caminhou em direção ao lugar em que ficava a eclusa do jato
espacial.
Só então Thomas Cardif compreendeu que subestimara os antis. Não era fácil enganá-los.
A manobra, que acabavam de realizar, frustrara seu plano, que previa o exercício de certa
pressão por meio da retenção dos ativadores celulares.
— Que diabo! — praguejou sem o menor autocontrole, e no mesmo instante recriminou-
se asperamente.
Mais uma vez se comportara como Thomas Cardif e não como Perry Rhodan.
Nolinow e Alkher sobressaltaram-se.
No mesmo instante, Cardif disse:
— Abra a eclusa, Nolinow.
— Sim, senhor.
— Mais um detalhe. Caso os antis não tenham percebido a transmissão e nosso pedido
de socorro, em hipótese alguma deverão mencioná-lo. Este pedido é nossa única chance.
Virou-se e foi andando. Não queria que houvesse testemunhas de seu encontro com
Rhabol.
— Brazo — disse Stana ao companheiro, que parecia rijo de espanto no assento do
piloto. — Será que você também está enlouquecendo? Não basta que o chefe se faça de louco.
Brazo Alkher balançou a cabeça. Parecia desesperado.
— Stana, você sabe explicar o que terá deixado o chefe neste estado?
— Só há uma resposta, Brazo. Foi a doença. Nesta hora estou firmemente convencido de
que Rhodan está muito mais doente do que desconfiávamos.
Naquele momento o homem que para eles era o chefe encontrava-se frente a frente com
Rhabol.
Este fez uma mesura.
— Os servos de Baalol sentem-se felizes em cumprimentar Perry Rhodan, Administrador
do Império Solar, em sua espaçonave. Queira acompanhar-me.
Cardif não saiu do lugar.
— Por favor, administrador — repetiu, olhou cautelosamente para a esquerda e para a
direita e obrigou Cardif a fazer a mesma coisa.
Mergulhados na sombra do hangar, num lugar em que mal chegava a luz, uma série de
máquinas de guerra enfileiravam-se. Todos os robôs fitavam o homem que usava o uniforme
simples da administração terrana. As armas de radiações estavam apontadas para ele.
Assim que Cardif deu o primeiro passo, Rhabol disse bem baixinho, para que só ele
ouvisse:
— Eu sabia que chegaríamos a um acordo.
***
267
Os motores de impulsos rugiram na protuberância equatorial reforçada da nave esférica.
Fora do envoltório esférico, os dois anéis de colunas telescópicas de apoio desapareceram no
casco, enquanto centenas de homens corriam para seus postos. Perguntavam-se pelo motivo
do alarma.
Ninguém sabia. Só dois homens imaginavam o que tinha acontecido: Reginald Bell, o
representante de Perry Rhodan, e o Marechal Solar Mercant, chefe da Segurança Solar.
Bell correu para a sala de comando.
Mas teve de esperar tal qual os outros. A decolagem da Ironduke, realizada com a
equipagem de plantão, exigia o máximo de concentração de todos.
Jefe Claudrin, o epsalense, fez com que sua nave linear se erguesse do solo. Era um dos
melhores comandantes. Parecia ter nascido com uma disposição toda especial de pilotar
naves esféricas.
Transmitiu suas ordens com a voz trovejante.
Bell lançou um olhar para o lado quando viu alguém aproximar-se. Era Mercant.
Um oficial vindo da sala de rádio entrou na de comando. Ao ver os dois, hesitou
ligeiramente, mas logo correu em direção à poltrona feita especialmente para Claudrin.
— Obrigado! — trovejou a voz do epsalense.
O oficial de rádio voltou. Parou à frente de Bell e Mercant.
— Recebemos um pedido de socorro do jato espacial 1-109 — anunciou. — É uma
mensagem automática. Infelizmente a indicação das coordenadas não é completa.
Se havia alguém, que entendesse o que isso significava, esse alguém era Reginald Bell.
A indicação incompleta das coordenadas significava que possivelmente a nave nunca
mais seria localizada.
Algumas regulagens foram efetuadas no computador positrônico de bordo. Mal as
mesmas foram concluídas, a fita perfurada saiu da fresta.
— Então, qual é o resultado? — perguntou Claudrin com sua voz trovejante. Sempre
fazia tudo com a maior rapidez, e exigia a mesma rapidez de seus oficiais, além de boa dose de
precisão.
— O setor espacial em que possivelmente se encontra o jato espacial 1-109 mede cerca
de cento e oitenta anos-luz cúbicos, O grau de probabilidade é de 73,6 por cento — disse o
oficial incumbido do computador, dirigindo-se ao comandante.
Bell aproximou-se de Claudrin. O epsalense fitou-o ligeiramente, afastou o microfone,
colocando-se bem à frente do representante de Rhodan e não se interessou mais pelos outros.
Bell disse para dentro do microfone:
— Mensagem de rádio dirigida ao quartel-general da Frota Solar. Coloquem em
prontidão o terceiro grupo de cruzadores pesados, a décima oitava, décima nona e vigésima
terceira flotilha de cruzadores ligeiros e três unidades do grupo de supercouraçados. Destino..
Seguiram-se as coordenadas incompletas incluídas no pedido de socorro do jato espacial
1-109.
Bell acrescentou mais uma frase:
— O administrador desapareceu nesse setor do espaço. Reginald Bell.
A sala de rádio forneceu a repetição do texto. Bell não prestou atenção. Olhava para o
chão.
— Isso não vai dar certo para alguém — disse.
— Para quem, mister Bell? — perguntou Claudrin.
Bell fitou-o com uma expressão de surpresa. Só agora deu-se conta do que acabara de
dizer.
— Não sei, Claudrin. Nem sei o que me levou a fazer esta observação. Quando poderemos
mergulhar no semi-espaço?
Além da Ralph Torsten, que já fora recuperada, a Ironduke era a única espaçonave
equipada com o novo mecanismo de propulsão linear. Não havia necessidade de transições,
268
com suas desmaterializações e rematerializações. O conversor de compensação denominado
kalup criava um campo de linhas de força, situado no espaço de seis dimensões, que
compensava as partículas energéticas e materiais de quatro e cinco dimensões. Só assim um
corpo podia deslocar-se no semi-espaço, localizado entre o universo de quatro e o de cinco
dimensões, alcançando milhões de vezes a velocidade da luz, sem perder de vista a estrela-
destino, que permanecia ininterruptamente no rastreador de relevo.
Podia-se dizer, de certa forma, que se tratava de um vôo visual.
O novo método oferecia, em comparação ao velho sistema das transições, uma vantagem
que não devia ser subestimada.
Em virtude do sistema de propulsão linear, a Ironduke chegou ao respectivo setor
espacial muito antes dos outros veículos espaciais esféricos que recorriam aos saltos para
transpor abismos de milhares de anos-luz.
Jefe Claudrin não deixou que a pergunta de Bell, que quis saber quando seria ligado o
kalup, lhe roubasse a calma.
— Na mesma hora de sempre, mister Bell. Não assumirei nenhum risco, nem mesmo
quando se trata do chefe.
A resposta de Claudrin, formulada em termos um tanto ásperos, tinha sua razão de ser. A
catástrofe da Fantasy, que explodira durante o vôo de regresso do Sistema Azul, ainda não
fora esquecida. Para qualquer comandante, dotado de senso de responsabilidade, esse
incidente serviria de advertência para que não se realizassem experiências com o novo
propulsor.
— OK, Claudrin — respondeu Bell, que de forma alguma se sentia ofendido com a
ponderação. — Se houver alguma novidade, estarei na mapoteca.
Pediu a Allan D. Mercant que o acompanhasse. No caminho, os dois regalaram-se do
silêncio.
Preferiram não criticar a atuação de Perry Rhodan.
Ao chegarem à mapoteca, encontraram o Major Lyon, que já se achava sentado à frente
dos mapas.
O Major Lyon fez menção de ficar em posição de sentido ao reconhecer os dois homens
que acabavam de entrar na sala.
— Deixe para lá, Lyon — disse Bell. — Vejo que já está estudando os mapas. Obrigado,
estamos vendo muito bem...
Depois disso apenas soltou uma observação lacônica. A seguir, Bell pegou um lápis
magnético e desenhou um círculo na parte norte do grande mapa.
— É aqui que temos de procurar Rhodan — olhou para Mercant. — Não notou nada, meu
caro?
— Notei duas coisas, mister Bell. Nossos rastreadores estruturais não registraram
nenhum salto.
Isso já aconteceu antes, quando duas naves entravam em transição simultaneamente em
pontos diversos do espaço. Quando ocorre uma superposição desse tipo, que é bastante rara,
muitas vezes um dos saltos, que é um pouco mais fraco que o outro, não pode ser detectado.
— “Bem, isto é a primeira coisa. A outra é o pedido de socorro que o jato espacial
transmitiu pelo hiper-rádio. No tráfego de hiper-rádio não existem as perturbações que
costumam causar-nos tantas dificuldades no rádio comum. A mutilação da mensagem no que
diz respeito às coordenadas só tem uma explicação. Aquilo deve ser obra dos anti-mutantes.”
— Infelizmente estamos de acordo — constatou Bell em tom contrariado. — O círculo
que acabo de traçar no mapa assinala o setor do espaço onde devemos procurar Perry
Rhodan. Mas há uma coisa que eu não entendo. Por que o chefe não iniciou a transição assim
que saiu do planeta Peregrino?
Mercant resolveu ser cauteloso.
269
— Talvez o assalto ocorreu pouco depois de o jato espacial ter decolado de Peregrino. No
momento Só podemos fazer suposições, mister Bell. Por enquanto não sabemos de nada. O
tamanho assustador deste setor espacial, com seus cento e oitenta anos-luz cúbicos, abre
margem a inúmeras possibilidades.
O Major Lyon não se atreveu a intervir na palestra. Escutava atentamente.
Bell soltou um gemido.
— Se Perry ainda fosse o mesmo de antes, poderíamos constatar exatamente o que fez
depois de ter saído de Peregrino. Mas assim...
Estas palavras constituíam uma expressão inequívoca da perplexidade de Bell.
Atirou o lápis sobre o mapa.
— Está bem — principiou em tom ligeiramente contrariado. — Cento e oitenta anos-luz
cúbicos representam um espaço muito grande. No mesmo não existem muitas estrelas, mas
sempre teremos pela frente cerca de dez mil sóis. Se procuro tirar as consequências lógicas
desta idéia, sinto náuseas.
— Já estou sentindo náuseas há muito tempo, mister Bell — respondeu Mercant em tom
seco.
Bell viu-se dominado pela cólera. Bateu com o punho cerrado sobre a mesa na qual
estava estendido o mapa.
— O que será que Perry andou pensando? Tenho vontade de mandar para a Sibéria
todos os médicos que participaram da terapia do choque.
Um sorriso irônico surgiu no rosto de Mercant.
— A Sibéria transformou-se em área de veraneio. Quando eu me aposentar, quero passar
o resto dos meus dias na tundra. Mr. Bell, será que o senhor quer recompensar os médicos?
— Quer dizer que o senhor também está convencido de que a causa de toda a desgraça é
o tratamento de choque malsucedido?
— Nem posso deixar de estar. O senhor encontra outra explicação para o estranho
comportamento de Rhodan? Se penso na morte daquele anti no entreposto comercial... Não
consigo tirar da cabeça a lembrança desse fato. Dei uma boa olhada no anti. Pois bem..
A maneira pela qual Mercant concluiu sua fala era estranha. Bell fitou-o. Esquecera-se de
que o Major Lyon se encontrava a seu lado.
— Foi assassinado? — perguntou. Sua voz revelava medo.
— Até gostaria de enfeitar esta palavra com um ponto de exclamação, mister...
Mercant deu-se conta de que estavam em três. Colocou a mão sobre o ombro do major e
fitou-o prolongadamente, mas não disse uma palavra.
O Major Lyon enfrentou o olhar de Mercant.
— Acho que nesta altura não posso deixar de participar da palestra. O que tenho a dizer
é pouca coisa. Sou capaz de jurar que o chefe não seria capaz de assassinar quem quer que
seja. Deve haver um engano.
A mão de Mercant continuava pousada no ombro do major. Respirava fortemente.
— Lyon, faço votos de que o senhor tenha razão.
Voltou a examinar atentamente o mapa. Lembrava-se das coordenadas galácticas de
Peregrino.
— Se registrássemos a posição de Peregrino neste mapa, o planeta artificial formaria o
centro do círculo que o senhor acaba de traçar, mister Bell. Se minha hipótese for correta,
basta procurar na linha imaginária que liga Peregrino ao sistema solar, com desvios de até
três anos-luz para todos os lados.
Bell não prestara atenção a estas palavras.
— O que havia com o anti-mutante, Mercant?
O marechal solar não se sentiu surpreendido com a pergunta.
— O homem estava desarmado. A posição em que se achava deitado constitui prova
evidente de que não estava atacando quando foi abatido. A explicação do ataque com o peso
270
de papel, fornecida por Rhodan, em hipótese alguma pode ser correta, O sangue grudado no
objeto constitui outra prova disso. O ferimento que Rhodan apresentava no queixo era
insignificante e não poderia ter sujado o peso de sangue. Só no caso de ferimentos graves
surgem vestígios de sangue em objetos contundentes.
— Por que só me diz isso agora, Mercant? — perguntou Bell com a voz fria.
Sem que o percebesse, ia assumindo o papel de Rhodan. Estava prestes a transformar-se
por suas próprias forças no sucessor do amigo, que parecia incapacitado para o exercício do
cargo.
— Porque só há algumas horas me dei conta disso. Quando voltamos da enfermaria, não
consegui dormir. E quando ouvi o alarma.., bem, acho que o senhor já compreendeu desde
quando eu sei.
Nesse instante, o Major Lyon soltou uma observação:
— Pois eu não acredito! O chefe nunca seria capaz de uma coisa dessas!
Estas palavras foram proferidas num tom de profunda convicção, fazendo com que Bell e
Mercant se sobressaltassem.
— Major Lyon — disse Reginald Bell. — Se o senhor tiver razão, o marechal solar e eu já
não seremos dignos da amizade de Perry Rhodan.
***
Stana Nolinow e Brazo Alkher ouviram os passos pesados de robôs. Imaginavam o que
era aquilo que se aproximava.
— Por enquanto terminou; talvez para sempre — constatou Nolinow em tom sarcástico
e tirou os cintos.
Brazo Alkher fez a mesma coisa. Estavam de pé junto aos seus assentos, sem armas,
quando a primeira máquina de guerra entrou, seguida por mais quatro.
— Venham conosco! — ordenou um dos robôs positrônicos.
No mesmo instante, as armas foram apontadas para os dois terranos. Escoltados por dois
robôs, os dois oficiais saíram do jato espacial. A nave em forma de disco estava cercada por
robôs. Uma passagem muito estreita abriu-se para os terranos. Acompanharam a máquina de
guerra que acabara de dar-lhes a ordem.
Assim que Stana tentou falar com Brazo, a voz metálica fez-se ouvir:
— Não permitimos palestras!
Nolinow manteve-se calado. Um robô sempre age segundo sua programação. E nessa
programação não entra qualquer dose de sentimento. Stana Nolinow não tinha vocação para o
suicídio.
Não tiveram a menor possibilidade de fugir e esconder-se na nave cilíndrica. Ao
chegarem ao convés principal, viram um grupo de pessoas que discutia exaltadamente. A
inquietação parecia ter tomado conta da nave. Ouviram-se gritos e falava-se num incêndio que
ainda não pôde ser debelado. Um incêndio na sala de máquinas.
Brazo Alkher sorriu. Sentia-se satisfeito porque seu tiro triplo causara tamanho estrago
na sala de máquinas da nave cilíndrica. Este fato melhorava sua situação global. A Frota Solar
já devia estar a caminho do setor espacial em que se encontravam, e não teria nenhum
problema para alcançar a nave semiparalisada dos anti-mutantes.
Subitamente um forte solavanco sacudiu a espaçonave de mais de trezentos metros de
comprimento. O chão ainda tremia quando as sereias começaram a uivar. Os grupos de
pessoas na extremidade do convés principal correram para todas as direções. Os antis que
passavam por Alkher e Nolinow não deram a menor atenção aos dois terranos. Os rostos dos
sacerdotes estavam marcados por uma expressão de pânico.
Um sorriso largo surgiu no rosto de Stana Nolinow. Seus olhos brilharam ao notar que,
assim que as sereias começaram a uivar, o nervosismo tomou conta da nave.
271
Subitamente um dos robôs segurou-os fortemente. Os dois homens foram empurrados
para dentro de um camarote cuja porta fora aberta pelo homem mecânico que caminhava à
sua frente.
Os dois caíram. Quando se levantaram, a porta já se fechara atrás deles. Olharam em
torno, perplexos.
— Estes robôs não têm nenhum senso de humor! — constatou Stana Nolinow e procurou
certificar-se de que realmente estavam sós no camarote.
Um segundo solavanco, acompanhado de um rangido, sacudiu a nave cilíndrica, mas
desta vez o impacto da explosão foi menos violento. As sereias continuavam a uivar.
— Parabéns, meu caro — disse Stana, muito satisfeito. — Você atingiu esta nave pirata
no lugar em que a mesma menos pode suportar uma avaria.
Brazo recusou o elogio com um gesto de modéstia.
— Este impacto resultou do acaso, Stana. No momento exato em que disparei o tiro, a
nave realizou uma manobra de alteração de rota. Por isso não sofreu um impacto frontal, mas
foi atingida na sala de máquinas.
— Você ainda acaba morrendo de modéstia, Brazo — disse Stana e examinou o camarote
bem instalado. — Precisamos de um objeto bem manejável, que nos permita arrombar a
porta. Não está vendo nada por aí?
— Será que você pretende tentar a fuga sem o chefe? — perguntou Brazo Alkher em tom
de recriminação.
— Se não houver outro jeito, quero — respondeu Nolinow sem a menor hesitação.
— Acho que não deveríamos fazer isso, Stana. Prestaremos um melhor serviço ao chefe e
a nós mesmos se provocarmos mais algumas explosões na sala de máquinas. Cada minuto que
continuamos no mesmo lugar melhorará nossas chances. Não se esqueça de que irradiamos
um pedido de socorro.
Casualmente Brazo colocou a mão sobre a maçaneta da porta. Girou-a sem pensar em
nada. Ficou perplexo ao notar que a porta se abriu. Olhou pela fresta e viu dois antis no
corredor, que estavam de costas para eles. Lançou um olhar ligeiro para Nolinow. Stana
piscou. Compreendera as intenções de Alkher.
Sem dizer uma palavra, abriu a porta de vez. Agarrou por trás o sacerdote que se
encontrava do lado direito. Nolinow encarregou-se do outro. O grito dos anti-mutantes foi
abafado pelo uivo das sereias. Em poucos segundos, dois anti-mutantes inconscientes foram
arrastados para o interior do camarote. A porta voltou a fechar-se. Stana ajoelhou ao lado de
um dos sacerdotes e Brazo ao lado do outro.
Dali a cinco minutos os dois servos de Baalol estavam deitados no banheiro, amarrados e
amordaçados. Traziam pouca roupa no corpo. Nolinow e Alkher se haviam apoderado de
quase todas as peças. Seus disfarces não eram muito bons, mas esperavam que em meio à
confusão e desordem reinante na nave conseguissem avançar até a sala de máquinas.
As pesadas armas de radiações, encontradas em poder dos antis, deram-lhes uma
sensação de relativa segurança.
— Pronto? — perguntou Brazo.
— Podemos começar, meu chapa — respondeu Nolinow.
Os dois prisioneiros saíram do camarote. Ninguém desconfiou quando caminharam pelo
convés principal, em direção à sala de máquinas.
As sereias continuavam a uivar e os tripulantes corriam nervosamente de um lado para o
outro. Ainda se ouvia o trovejar das explosões na parte traseira da nave, onde ficavam os
propulsores. Ao que parecia, os antis ainda não haviam conseguido controlar o incêndio.
“Temos uma sorte inacreditável”, chegou Stana Nolinow a pensar, quando a surpresa se
aproximou sob a forma de um robô, saído de um dos camarotes.
272
Thomas Cardif acreditou que fora abandonado pela sorte quando olhou em torno e viu
os rostos dos sacerdotes fanáticos. Mesmo Rhabol, o supremo sacerdote, já não tinha nenhum
olhar amável para ele.
Colocou-se de pé à frente de Cardif, que fora o único a ser convidado a sentar-se no
grande camarote. Com a voz fria e ameaçadora, disse:
— Baalol lhe permitiu que estudasse em Aralon sob o nome de Edmond Hugher. E, sob o
nome de Edmond Hugher, você jurou fidelidade eterna a Baalol. Foi graças a Baalol que você
foi libertado depois de cinqüenta e oito anos de bloqueio hipnótico, imposto por Árcon, a
pedido de seu pai. Sob o nome de Thomas Cardif, você voltou a jurar eterna gratidão ao
grande Baalol. Foi graças ao nosso auxílio que Perry Rhodan pôde ser posto de lado, e ainda
foi graças ao nosso auxilio que você passou a ser Perry Rhodan. E como é que você nos
agradece? Procurando lograr-nos.
“Cardif, basta uma palavra nossa e os terranos lhe arrancarão a máscara. Com isso seu
jogo terá chegado ao fim.
“Revelaremos sua verdadeira identidade, a não ser que você nos entregue aquilo que
trouxe do planeta invisível. Se tivesse conseguido voltar à Terra com os ativadores celulares,
nós teríamos contado tudo aos terranos. Será que você realmente acreditava que poderia
praticar chantagem contra nós?”
Estas palavras atingiram Cardif com a força de marteladas.
— Cardif, onde estão os ativadores celulares? — perguntou Rhabol em tom de ameaça,
dirigindo a arma hipnótica contra Cardif.
Numa raiva impotente Thomas reconheceu que qualquer resistência seria inútil. Mas
naquele momento de depressão máxima lembrou-se de que os vinte ativadores celulares se
encontravam envoltos num campo temporal esférico, que só se abriria quando ele o quisesse.
— Rhabol, os vinte ativadores estão no meu camarote, no interior do jato espacial.
Estas palavras foram proferidas com a voz tranqüila. Numa atitude típica de Rhodan,
Cardif espreguiçou-se. Parecia não enxergar a arma hipnótica apontada para ele.
Mais de duas dezenas de antis sobressaltaram-se. A mudança ocorrida com Cardif era
tão pronunciada que não poderia deixar de ser notada. De repente o filho de Rhodan passara a
irradiar o fluido que sempre distinguira o pai em meio às massas.
— Vá buscá-los, Rhabol! — disse. — Sei perfeitamente que seu interesse pelos
ativadores celulares é apenas secundário. Afinal, o que significa a vida eterna? Para vocês não
deve significar nada.
Ou será que significa alguma coisa? Quem de vocês receberá os pequenos ativadores?
Vocês já os rifaram?
Conhecia os servos de Baalol melhor que qualquer outro terrano.
Numa hábil manobra psicológica, jogou uns contra os outros. Encontrava-se diante dos
mais influentes dentre os antis. Conhecia todos eles. Nenhum deles estava livre da ânsia do
poder.
Sabia a que meios cada um havia recorrido para conquistar a posição em que se
encontrava.
Nenhum dos homens que se achavam à sua frente renunciaria voluntariamente ao
ativador celular.
— Cardif — advertiu Rhabol em tom insistente. — Você não conseguirá semear a
discórdia entre nós, e muito menos conseguirá escapar-nos. Não se esqueça de que Perry
Rhodan ainda está vivo. E continuará vivo enquanto você viver, a fim de que sempre
possamos lembrar-lhe que você apenas é seu filho.
Pela primeira vez os olhos de Cardif chamejaram.
— Antis! — pronunciou esta palavra em tom de desprezo e fitou cada um deles. — Vocês
não são mais fortes que eu. Pretendem apoderar-se do Império Solar. Pois experimentem
fazê-lo sem a minha colaboração. Por enquanto a instalação de mais trezentos entrepostos
273
comerciais dos saltadores não foi autorizada. Como esperam consegui-las, se não puderem
contar comigo? Nem Banavol, agente de vocês, nem o servo de Baalol em Plutão conseguiram
exercer pressão contra mim.
— Você assassinou Juglun, ou melhor, A-Thol — disse Rhabol.
Cardif soltou uma risada cínica.
— Custa-me acreditar que essa acusação tenha saído justamente de sua boca. Pois bem.
Como prosseguiremos na conversa? Na base da igualdade de direitos? Ou será que vocês
ainda acreditam que são a parte mais forte?
Cardif aguardou tranquilamente o que o sumo sacerdote tinha a dizer-lhe.
Rhabol dirigiu-se a dois antis:
— Tragam os ativadores celulares que se encontram no jato espacial.
Nesse instante, uma pancada violenta sacudiu a nave cilíndrica. Cardif sorriu.
Rhabol notou o sorriso.
— Vão logo! — ordenou aos dois sacerdotes, que haviam parado, apavorados.
Depois, com os olhos chamejantes de cólera, dirigiu-se a Cardif:
— Se a nave explodir por causa do ataque traiçoeiro de seu jato espacial, você morrerá
conosco.
— Não posso fazer nada — respondeu Thomas Cardif em tom frio.
Esperaram o regresso dos dois servos de Baalol. Quando alguém abriu a porta do lado de
fora, todos acreditaram que já estivessem de volta com sua presa. No entanto, um robô tangeu
Brazo Alkher e Stana Nolinow para dentro do recinto.
— Os dois terranos dirigiam-se à sala de máquinas — disse a voz metálica do robô.
Suas mortíferas armas de radiações continuavam apontadas para Alkher e Nolinow.
Os dois tenentes esperaram em vão que o chefe lhes dedicasse um olhar. Mas o homem
que acreditavam ser Rhodan olhava para outro lado, indiferente.
Brazo ainda viu o anti, que se encontrava à frente do chefe, levantar a arma hipnótica e
puxar o gatilho.
Depois disso só restou uma hipnose profunda para os dois tenentes da Frota estelar. Já
não sabiam o que estava acontecendo com eles. E não sentiram nada quando o robô,
obedecendo à ordem de Rhabol, os levantou e os carregou para fora.
Mal a porta voltou a fechar-se, o intercomunicador chamou, transmitindo uma notícia
importante.
O fogo que lavrava na sala de máquinas acabara de ser debelado. As três unidades
energéticas de maior potência não poderiam ser reparadas com os recursos de que se
dispunha a bordo da nave. O engenheiro-chefe da nave cilíndrica não escondeu nada.
— Ainda poderemos realizar transições, mas acho preferível não realizar mais que uma.
Qualquer solicitação excessiva poderá acarretar o colapso total das máquinas. Desligo.
Os sacerdotes discutiram animadamente. Por vários minutos esqueceram-se de Thomas
Cardif.
Finalmente Rhabol, que tinha nervos de aço, ponderou que não corriam perigo de vida.
— A qualquer momento podemos pegar o jato espacial de Cardif e dar o fora.
Todos faziam sinais de satisfação e, no mesmo instante, voltaram a dedicar sua atenção a
Cardif.
Mais uma vez, a porta abriu-se. Os dois sacerdotes voltaram. Entre eles flutuava o campo
temporal vermelho-pálido de cinqüenta centímetros de diâmetro. No interior do mesmo
viam-se objetos negros em forma de ovo; eram os ativadores celulares.
Uma admiração misturada de respeito desenhou-se naqueles rostos marcados pelo
fanatismo.
Mas a admiração inspirava-se exclusivamente na cobiça. Diante deles flutuava a vida
eterna, cercada por um envoltório energético desconhecido.
— Abra a esfera, Cardif! — disse Rhabol com a voz trêmula.
274
Thomas Cardif recostou-se confortavelmente na poltrona.
— Será que tenho algum motivo para isso? Por que você não abre o envoltório, Rhabol?
— perguntou, fitando-o intensamente.
Não viu que Rhabol estava regulando a intensidade de sua arma hipnótica. A pequena
roda dentada foi colocada na posição mínima. Sem qualquer advertência Rhabol ergueu a
arma e fez um disparo hipnótico contra Cardif.
— Cardif — disse o sumo sacerdote do culto de Baalol, dirigindo-se ao terrano, que
enrijecera em sua poltrona. — Abra a esfera!
Espantados, os antis ouviram Cardif dizer:
— Quero que você se abra!
Mas a esfera luminosa vermelho-pálida continuou fechada.
Afinal, o que sabiam os antis a respeito do Ser fictício de Peregrino?
Seus conhecimentos estavam restritos às informações recebidas de Cardif, e antes de sua
visita ao planeta Peregrino essas informações não poderiam ter sido completas.
— Vamos cortar isso! — sugeriu um dos sacerdotes, mal conseguindo falar, de tão
nervoso que estava.
Um desintegrador foi apontado para o envoltório energético. O raio atingiu o polo
superior da esfera.
A bola vermelho-pálida balançou ligeiramente, mas continuou intacta, sempre flutuando
no centro do recinto.
— Vamos tentar com a arma térmica — sugeriu outro servo de Baalol.
— Não! — protestou Rhabol, que a essa altura já desconfiava de que a esfera não cederia
a qualquer tentativa de abri-la. — Só o terrano é capaz de abri-la.
— Mas ele acaba de tentar, Rhabol! — respondeu alguém.
— Enquanto estiver submetido ao choque hipnótico, o terrano não é ele mesmo —
respondeu o sumo sacerdote em tom impaciente. Encontrava-se perto da esfera. Com uma
expressão de fascínio contemplava os ativadores celulares, que por enquanto continuavam
inatingíveis. Teve de fazer um esforço sobre-humano para não dar mostras da exaltação
tremenda de que se sentia possuído.
A sua frente flutuava a vida eterna.
O futuro abria-se diante dele. O futuro dele e de mais dezenove servos de Baalol. Tornar-
se-iam imortais, tal qual o Imperador Gonozal VIII.
Alguns dos presentes começaram a recriminar Rhabol, por ter disparado a arma
hipnótica contra Cardif. A ânsia de possuir os ativadores celulares rompia toda hierarquia.
Ninguém considerava o fato de que Rhabol era seu superior.
Não queriam esperar mais pela vida eterna. Exigiam os ativadores. Começaram a
proferir ameaças contra Rhabol.
Será que este já contara com isso?
Virando-se ligeiramente, o sumo sacerdote gritou em voz alta:
— Robôs!
A porta que dava para uma sala contígua abriu-se. Quatro máquinas de guerra entraram,
colocaram-se de ambos os lados da porta e ameaçaram os servos de Baalol com suas armas de
radiações.
— Estes robôs foram especialmente programados para mim — disse Rhabol com a voz
fria. — Qualquer um que tentar sair daqui estará morto.
Thomas Cardif, que já despertara da ligeira hipnose, soltou uma risada. Aquilo parecia
diverti-lo. Rhabol parecia ter sido mordido por um bicho. Virando-se, disse:
— Abra esta esfera, terrano, pois do contrário eu o obrigarei a fazê-lo.
— Palavras pomposas atrás das quais não há nada — constatou Cardif.
Levantou-se e afastou o anti. Colocou-se ao lado da esfera e envolveu-a com os braços.
Ergueu-a acima de sua cabeça, como se fosse uma bola.
275
— Olhem estes ativadores celulares, que poderão dar-lhes a vida eterna. Vinte aparelhos
deste tipo estão à sua espera, mas vocês nunca os receberão, a não ser que eu emita
espontaneamente o comando mental para que a esfera se abra. Os ativadores estão ocultos
atrás do nosso tempo.
Será que vocês compreendem? Estão envoltos num campo temporal, e esse campo
temporal permanecerá fechado enquanto eu não ordenar de minha livre e espontânea
vontade que o mesmo se abra. Então, Rhabol, ainda se atreve a proferir ameaças contra mim?
Soltou a esfera energética, que continuou a flutuar no mesmo lugar. A luminosidade
vermelho-pálida tinha um efeito tranquilizador, mas os antis, extremamente exaltados, não
reagiam ao mesmo.
Cardif voltou a acomodar-se na poltrona, demonstrando uma tranquilidade irritante.
— Então, Rhabol, já está disposto a negociar? Ou ainda acredita que pode dar ordens?
— Vamos negociar! Vamos negociar! — gritaram alguns dos antis.
Mas o anúncio transmitido pelo sistema de intercomunicação superou suas vozes:
— Rhabol, uma nave da Frota Solar aproxima-se do ponto em que nos encontramos.
Mais de duas dezenas de antis ficaram rígidos de pavor.
O homem que ocupara o lugar de Perry Rhodan no Império Solar praguejou no seu
íntimo.
Imaginava que o nome da nave que se aproximava era Ironduke. E sabia que com o
aparecimento da nave linear sua situação piorara consideravelmente.
Os antis voltariam a ameaçá-lo; o denunciariam como um impostor e o entregariam à
Frota Solar caso não lhes desse imediatamente os vinte ativadores celulares.
Levantou a cabeça. Rhabol estava de pé à sua frente. Um sorriso de triunfo brincava no
rosto do anti.
— Então? — perguntou, dirigindo-se a Cardif. — Então, Cardif?
***
276
Ao que parecia, Claudrin apertara alguns botões de alarma. Os hangares, onde estavam
guardados os jatos espaciais, anunciaram que os mesmos estavam prontos para entrar em
ação.
A central de comando de fogo, que costumava ser dirigida por Brazo Alkher, anunciou:
— Estamos preparados para abrir fogo!
A sala de rádio chamou.
Claudrin pegou o microfone.
— Avise as outras naves. Transmita as coordenadas e outros detalhes.
— Sim senhor — disse a voz saída do alto-falante. — Dentro de alguns segundos
avisaremos o cumprimento da ordem.
Bell não saía de junto das telas do sistema de rastreamento de relevo. A nave cilíndrica
de pontas achatadas desenhava-se cada vez mais nitidamente.
O sistema de rádio localização, acoplado ao grande computador de bordo, já fornecera os
primeiros dados para os cálculos. A partir do momento em que a Ironduke voltou a penetrar
no universo normal, o computador positrônico recebia, a cada segundo, cento e oitenta grupos
de dados que mudavam constantemente. O cérebro não tinha a menor dificuldade em digeri-
los.
Embora ainda desenvolvesse metade da velocidade da luz, o couraçado parecia
aproximar-se de forma quase imperceptível da nave cilíndrica. Bell esteve a ponto de pedir
esclarecimentos sobre este ponto, quando o oficial de serviço junto ao computador anunciou:
— Nave desconhecida aumentando velocidade!
Jefe Claudrin agiu imediatamente.
Os motores de impulso voltaram a rugir fortemente. O corpo esférico da nave começou a
trovejar.
Por alguns segundos ninguém entendia o que o outro falava, mas o rugido cessou tão
subitamente como começara.
— Consegui uma vantagem de pelo menos um minuto — cochichou Jefe Claudrin.
— Quanto tempo levaremos para alcançar a distância de tiro, Claudrin? — perguntou
Bell, que se achava perto das telas de imagem do rastreador.
— Cavalheiro que se encontra junto ao computador: quer fazer o favor de fornecer a
indicação de tempo a Mr. Bell? Depois que pousarmos em Terrânia voltaremos a conversar,
tenente!
Jefe Claudrin, que geralmente era um tipo de bonachão, não brincava em serviço. Quando
ameaçou o oficial de serviço junto ao computador, devia ser levado a sério.
— Sir — disse o homem, dirigindo-se a Bell. — Alcançaremos a distância de tiro entre
cento e trinta e cento e quarenta segundos, caso a nave cilíndrica não entre em transição. Há
vinte segundos ela está acelerando fortemente.
Bell não estava interessado numa informação tão precisa. Também receava que a nave
ainda conseguisse escapar. Via perfeitamente na tela do rastreador que a mesma acelerava
tremendamente.
Mais uma vez a voz de Claudrin fez-se ouvir.
— Atenção, sala de rádio. Mensagem à nave desconhecida. Parar para fins de controle.
Diga que abriremos fogo se não obedecerem.
Mercant estava de pé à direita de Bell. O marechal solar só olhava vez por outra para a
tela. Em compensação olhava constantemente para seu cronógrafo.
Cem segundos já se haviam passado, desde o momento em que o oficial da computação
fornecera a indicação de tempo.
— Já se passaram cem, mister Bell...
Não conseguiu prosseguir.
A sala de rádio da Ironduke transmitiu uma notícia apavorante.
277
— Nave Baa-Lo ameaça matar Perry Rhodan se a ordem de parada não for retirada
imediatamente. Formularam ultimato. Prazo do ultimato termina em dezessete segundos.
Bell praguejou em altas vozes.
— Esses malditos anti-mutantes nem nos deixam tempo para pensar. Sala de rádio, aqui
fala Reginald Bell. Transmitam imediatamente uma mensagem. Ordem de parada suspensa.
Prometemos não chegar à distância de tiro. Estamos interessados em negociar.
Claudrin sabia o que devia fazer.
O couraçado modificou sua rota. Ao mesmo tempo freou fortemente a nave esférica. O
dispositivo de absorção de pressão, situado nas profundezas da nave, começou a uivar
subitamente com o aumento de carga. Nenhuma das pessoas que se encontravam na sala de
comando deu a menor atenção ao fato. Não se pronunciou uma única palavra supérflua. Todos
aguardavam as palavras que nos próximos segundos seriam transmitidas pelo alto-falante.
A espera transformou-se numa eternidade.
Mercant não tirava os olhos do cronógrafo.
— Já se passaram cem segundos. Cento e cinco, cento e...
Finalmente chegou a notícia tão ansiada:
— Aceitamos proposta. Estamos dispostos a negociar, mas Perry Rhodan morrerá se
houver um único incidente. Rhabol.
— Rhabol! — exclamou Bell e enxugou o suor da testa.
Jamais esqueceria o nome desse homem.
***
O sumo sacerdote Rhabol provou que não usava seu título em vão. Agiu com uma
tremenda rapidez e coerência ao receber a notícia da aproximação de uma nave de guerra do
Império Solar. Fez questão de que Thomas Cardif ficasse perto dele e ouvisse todas as
decisões que tomaria.
Rhabol compreendeu que teria de agir numa questão de segundos, se quisesse evitar que
ele e seus companheiros perecessem na nave cilíndrica avariada. Neste setor da Galáxia sabia-
se há decênios como as naves terranas costumavam golpear quando a situação o exigisse.
Antes que se dirigisse a Cardif, colocou em estado de prontidão todos os sacerdotes que
se encontravam no interior da nave cilíndrica e ordenou-lhes que recorressem às suas
energias individuais para reforçar o campo defensivo da Baa-Lo.
Por ocasião da fuga de Lepso haviam constatado que nem mesmo os raios dos
supercouraçados, cuja espessura atingia vários metros, eram capazes de romper o campo
defensivo de uma nave, reforçado pelas energias mentais dos antis.
No momento sua única desvantagem, que era muito grande, consistia nas graves avarias
das máquinas, que permitiriam no máximo uma transição.
Sem dizer uma palavra, o sumo sacerdote fitou o homem que, usando o nome Edmond
Hugher, servira ao culto de Baalol quase cinco decênios. Durante esse tempo estivera
submetido a um bloqueio hipnótico. O que era mais importante, descobrira nas glândulas do
fura-lama o hormônio que era um agente rejuvenescedor muito potente, embora limitado no
tempo, mas transformava-se no corpo humano num entorpecente de alto grau de toxicidade.
Milhões de terranos e arcônidas foram vitimados por esse veneno disfarçado sob a capa de
um preparado rejuvenescedor, conhecido pelo nome intergaláctico de liquitivo.
E agora o anti e Cardif, que durante decênios haviam sido sócios, defrontavam-se como
inimigos: o chantagista via-se diante de sua vítima.
— Sua vida depende de você, Cardif! — limitou-se Rhabol a dizer.
— E os ativadores celulares? Será que não contam? — perguntou Thomas Cardif, muito
nervoso.
278
— Você poderia explicar de que eles servem numa situação como esta? — ironizou
Rhabol.
Depois apontou para a tela. Um ponto minúsculo e brilhante destacava-se no negrume
do espaço. Era a Ironduke, que se mantinha em posição de espera. A nave linear ligara todos
os holofotes, dando a entender aos antis que se encontravam na Baa-Lo que o comando da
nave estava disposto a entrar em negociações.
Thomas Cardif respirava pesadamente.
Sentia-se possuído por uma raiva impotente. Teve de controlar-se ao máximo.
Compreendia as intenções de Rhabol. O anti não queria dar nada pelos vinte ativadores
celulares.
— Decida, Cardif. Não é apenas sua vida que repousa em suas mãos, mas a vida de todos
nós. Mas só lhe darei o direito de tomar uma decisão depois que você nos tiver entregue os
vinte ativadores.
A esfera vermelho-pálida, que cingia um campo temporal, flutuava ao lado dos dois.
A recepção chamou. A voz de Reginald Bell saiu do alto-falante. Na Baa-Lo estava ligada
apenas a transmissão de som. A transmissão de imagem fora desligada, O fato de a tela
continuar apagada constituía um meio de pressionar Thomas Cardif mais fortemente. Se a
situação exigisse, Rhabol estaria disposto a ligar inesperadamente a transmissão de imagem,
para mostrar aos homens da Ironduke uma cena que se passava a bordo da Baa-Lo, e que
forçosamente os faria ficar bastante desconfiados em relação ao chefe.
— Cardif, você ouviu as exigências de Reginald Bell, seu representante e sucessor
eventual. Queremos que as negociações logo cheguem ao fim. Então, o que diz de minha
exigência de entregar os ativadores? Se você recusar, os servos de Baalol morrerão com você.
Se resolver entregá-los, não impediremos que se retire desta nave. Caso saia, não se esqueça
de que dentro de três dias, no máximo, deverá ser concedida a permissão para a instalação de
mais trezentos entrepostos dos mercadores galácticos. Se recusar, infelizmente não teremos
outra alternativa senão causar-lhe problemas.
Mais uma vez a recepção soou em meio às suas palavras. E mais uma vez a voz de Bell
saiu do alto-falante.
— Chamando espaçonave Baa-Lo. Aqui fala Reginald Bell, representante do
administrador. Quero avisá-los de que uma grande frota se aproxima do ponto em que nos
encontramos. Face ao grande número de naves, haverá a possibilidade de um incidente. Para
evitar este elemento de risco, sugiro o inicio imediato das negociações. Aguardo confirmação.
Desligo.
Três robôs de guerra mantinham-se nos fundos da sala de rádio. Sua vigilância dirigia-se
exclusivamente a Thomas Cardif. Os outros cinco sacerdotes que se encontravam presentes já
se haviam acalmado. Aguardavam as instruções de Rhabol.
— Vou abrir! — Cardif resolvera ceder.
— Não se esqueça de nos mostrar como se deve fazer a regulagem dos ativadores
celulares para adaptá-los às vibrações individuais de cada um — lembrou Rhabol.
Thomas Cardif cerrou os lábios.
Sentou-se. A esfera flutuava acima de seu colo. Depois de algum tempo disse em tom
insistente:
— Abra-se!
A esfera vermelho-pálida não se abriu.
Desapareceu sem o menor ruído. Transportou-se para o nada, liberando vinte objetos
em forma de ovo que caíram no colo de Cardif.
O sumo sacerdote pegou dezenove desses objetos e guardou-os num bolso. O outro
ativador foi entregue a Cardif.
— Mostre-nos como se faz a regulagem, Cardif!
279
A voz de Rhabol parecia muito tranqüila. Os olhos de Thomas Cardif chamejavam de
ódio. Mas o filho de Rhodan logo mostrou ao sumo sacerdote como era simples ajustar o
ativador celular para as vibrações de seu futuro portador.
Rhabol pegou também o vigésimo ativador e guardou-o no bolso.
— Chame a Ironduke, Cardif, e anuncie sua chegada. Não se esqueça de dar ordem para
que nos deixem partir em paz. Será que você acredita se eu lhe disser que nos sentimos muito
felizes por tê-lo a bordo da Baa-Lo?
Thomas Cardif deu-lhe as costas, colocou-se à frente do rádio, ligou a imagem e esperou
até que os contornos se estabilizassem na tela.
O rosto de Reginald Bell, marcado pela tensão e pela preocupação, surgiu na mesma.
— Pegarei o jato espacial e irei à Ironduke, Bell. Ordene às unidades da frota que se
aproximam para não impedirem a viagem da Baa-Lo, depois que eu tiver saído da nave dos
antis. Desligo.
Enquanto falava, colocara instintivamente a mão direita sobre o peito. Os dedos sentiram
o objeto em forma de ovo que trazia junto à pele. Era o vigésimo primeiro ativador celular,
uma maravilha vinda de um mundo superior, que fizera dele mais um imortal.
E foi baseado nessa imortalidade que naqueles segundos elaborou um plano. Plano este
por meio do qual pretendia quebrar o poder dos antis, eliminar Perry Rhodan e destituir o
Imperador Gonozal VIII.
Thomas Cardif era terrano e arcônida. Queria ser o soberano de ambos os impérios.
***
280
Suas mãos remexeram o cabelo ruivo cortado à escovinha. Tinha de dar vazão ao
sentimento de euforia.
— Ainda bem que o senhor está conosco de novo, sir! — disse Allan D. Mercant, e seus
olhos brilhavam.
Jefe Claudrin também manifestou suas congratulações, mas logo passou a praguejar
porque a nave cilíndrica lhe escapara.
Sem pensar em nada, Reginald Bell perguntou depois de algum tempo:
— Nolinow e Alkher dirigiram-se aos seus postos, Perry?
Cardif-Rhodan já esperava a pergunta desde o momento em que entrara na sala de
comando.
— Não — disse, balançando a cabeça.
— Os dois tenentes não vieram comigo. Acredito que estejam mortos.
Naquele instante, a frieza do espaço cósmico parecia invadir a sala de comando da
Ironduke.
— Você acredita que estejam mortos, Perry? Quer dizer que não tem certeza? —
gaguejou Bell, aproximando-se do amigo. — Perry, não devo ter ouvido bem. Pelo amor de
Deus, Perry, o que você estava pensando no momento em que deu ordem para que a nave
cilíndrica fosse destruída?
— Pensei exatamente aquilo que acabo de dizer, Bell — respondeu Cardif-Rhodan em
tom áspero, e um brilho feroz surgiu em seus olhos.
Todas as pessoas na sala de comando prenderam a respiração.
Só viam um homem: o chefe.
Mas não tinham diante de si um Perry Rhodan que lhes era totalmente estranho?
Será que alguma vez Rhodan já abandonara um homem pertencente às suas fileiras?
Será que o chefe jamais dera ordem para abrir fogo contra uma nave na qual se encontrasse
um só companheiro que ainda estivesse vivo?
— Perry! — a voz de Bell estava marcada pelo desespero, mas Cardif-Rhodan
interrompeu sua fala.
— Você acredita que não lamento a morte dos dois? Vi-os serem levados por um robô.
Pareciam mortos. Infelizmente os antis não me deram qualquer informação quando perguntei
por Nolinow e Alkher. Portanto, poderia perfeitamente ter respondido à sua pergunta: os dois
pareciam mortos. Se tivesse agido assim, teria evitado qualquer mal-entendido.
— Perry, antigamente você não pensava nem agia dessa forma — disse Bell,
profundamente abalado. — Não o entendo mais. Compreendo perfeitamente a ação
desenvolvida em Plutão. Banavol avisou-o de que havia um anti na base dos saltadores. Mas
não compreendo por que você se empenhou pessoalmente em descobrir se a notícia
transmitida pelo agente era ou não verdadeira. Afinal, para que serve a Segurança Solar?
Cardif-Rhodan interrompeu-o.
— Pois chegou a hora de a Segurança Solar mostrar se continua a ser aquilo que sempre
foi no curso dos decênios! — lançou um olhar provocador para Allan D. Mercant.
— O que quer dizer com isso? — esbravejou Bell em tom contrariado.
O fato de a discussão se travar na sala de comando da Ironduke deixou-o nervoso.
— O que quero dizer com Isto, Bell? — perguntou Cardif-Rhodan com uma ironia
mordaz. — Você logo descobrirá. Sem dúvida será interessante sabermos por que os antis
resolveram atacar-me, e como souberam de que eu havia voado para o planeta Peregrino. Não
desejo sabê-lo, Bell: faço questão de saber. E agora permita que lhe dê um conselho. Procure
controlar-se quando eu manifestar minhas suspeitas.
“Stana Nolinow, ou Brazo Alkher, ou ambos, devem ter informado os antis sobre minha
viagem ao planeta Peregrino. E a única possibilidade, pois os antis deram a entender
perfeitamente que ficaram à espreita do jato espacial.”
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Alguém pigarreou atrás de Cardif-Rhodan. Era Jefe Claudrin, comandante da Ironduke e
superior hierárquico imediato dos dois homens contra os quais se dirigiam as pesadas
acusações do chefe.
— Sir... — disse com a voz trovejante, mas Cardif-Rhodan Interrompeu-o.
— Não pedi sua opinião, Claudrin! — berrou de volta. — Mercant, exijo que, dentro de
um prazo brevíssimo, seu Serviço de Segurança descubra em que lugar pousou a Baa-Lo, o
destino que tomaram os antis, e se Alkher e Nolinow estão mortos ou não. Quero uma
resposta cabal a estas perguntas dentro de uma semana.
O rosto de Mercant parecia indiferente. Ignorou o olhar significativo de Bell. O marechal
solar não se lembrava de que o chefe já lhe tivesse dado uma ordem nesse tom. Nunca antes o
chefe duvidara da capacidade da Segurança Solar.
— Sir — ponderou Mercant tranquilamente. — O senhor quase chega a exigir o
impossível da Segurança Solar.
O gesto autoritário de Cardif-Rhodan falava por si.
— Impossível para cá, impossível para lá, Mercant. No presente caso não estou
interessado em saber se a tarefa é impossível ou não, O senhor sabe o que está em jogo? Sabe
lá do que os antis conseguiram apoderar-se graças à traição de um ou de dois oficiais da Frota
Solar? E sabe por que os antis me libertaram sem formular outras exigências?
“Conseguiram apoderar-se de vinte ativadores celulares. São aparelhos de um tipo que
por enquanto só Atlan possuía!”
Essa notícia fez com que até Allan D. Mercant tivesse de calar-se.
Bell mal e mal conseguia respirar. Os oficiais que se encontravam na sala de comando
enxugavam o suor da testa. O epsalense já se esquecera da advertência grosseira que recebera
do chefe.
Cardif-Rhodan mantinha-se em atitude de triunfo a frente de todos eles, e perguntou em
meio ao silêncio geral:
— Será que a esta hora os senhores já conseguem compreender por que dei ordem de
abrir fogo?
Thomas Cardif exultava no seu íntimo ao notar que até mesmo o Marechal Solar Allan D.
Mercant o fitava com um ligeiro sentimento de culpa.
Sua jogada infame, através da qual atirou a pecha de traidores contra dois oficiais de
reputação ilibada, estava produzindo seus frutos.
Havia uma única pessoa que não se deixava demover de sua opinião. Jefe Claudrin voltou
a objetar com sua voz trovejante:
— Queira desculpar, sir, mas não posso acreditar que Alkher ou Nolinow, ou ambos, o
tenham traído para entregá-lo aos antis. Se fosse assim, ver-me-ia forçado a renunciar à fé que
deposito na Humanidade. Nesse caso eu cometeria uma traição contra o senhor e o Império
Solar.
Cardif-Rhodan deixou que o comandante da Ironduke concluísse sua fala. Aproximou-se
do epsalense. Num gesto genuinamente rhodaniano, colocou-lhe a mão sobre o ombro.
— Claudrin — disse. — Se é assim, como se explica que os antis soubessem do meu vôo
para Peregrino? Será que minha acusação contra os dois tenentes é injusta? Será que o traidor
ou os traidores ainda se encontram nesta nave? Existe outro detalhe, Claudrin. Como se
explica que os sacerdotes de Baalol perguntassem pelos ativadores celulares quando me
aprisionaram em sua nave?
O comandante fitou o chefe com os olhos muito abertos. Balançou lentamente a cabeça
ampla.
— Sinto muito, sir, mas apesar de tudo não julgo os dois oficiais capazes de uma traição.
Deve haver outros fatores, dos quais nem desconfiamos. Talvez a Segurança Solar consiga
fornecer a resposta.
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Cardif-Rhodan não teve tempo de responder. Mercant, que se encontrava num ponto
mais afastado, interveio na palestra:
— Claudrin, eu lhe juro uma coisa. A Defesa Solar esclarecerá este caso, ou então não
quero chamar-me mais de Allan D. Mercant.
Continua no livro 2:
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