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Sumário

Sobre o Livro............................................................................................................................................... 4

A Bola e os Seus Amigos.......................................................................................................................5

Quem é quem?...........................................................................................................................................7

A História da Menina e das Ameixas do Senhor Ferreira...................................................8

Diogo e Diego Discutem...................................................................................................................... 11

Os Gênios do Parque............................................................................................................................. 15

Uma Ideia Toda Azul..............................................................................................................................16

O Peixe de Ouro.......................................................................................................................................18

A Raposa Rute.......................................................................................................................................... 23

A Filha da Árvore.................................................................................................................................... 26

A Cadeira Musical.................................................................................................................................... 31

A História da Gata Sapinha............................................................................................................... 33

Flora e o Violino....................................................................................................................................... 37

O Gato que Chora....................................................................................................................................41

Os Amigos Não Se Abandonam....................................................................................................45

Pog e os Passarinhos...........................................................................................................................50

Uma Mãe Como o Vento....................................................................................................................54

O Ratinho das Amoras........................................................................................................................58

A Menina Por Detrás da Janela.......................................................................................................61

A Menina Que Deixou de Sorrir......................................................................................................64

O Gato das Botas....................................................................................................................................67

A Cadeira Que Quis Ser Trono.......................................................................................................... 71

A Maçã Verde ........................................................................................................................................... 74

A Cor dos Telhados................................................................................................................................79

A Floresta de Lata..................................................................................................................................83
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O Jardim Curioso....................................................................................................................................85

O Buraco no Jardim..............................................................................................................................88

Como Se Faz Cor de Laranja............................................................................................................ 92

A Chover e a Fazer Sol.........................................................................................................................96

Maria Sapeca.............................................................................................................................................98

A Menina Que Se Enfeitava Demais.......................................................................................... 103

Aventura Com Asas............................................................................................................................. 107

O aniversário de Nina.......................................................................................................................... 118

A Imagem de Lola.................................................................................................................................122

Uma Margarida Diferente............................................................................................................... 126

Casa de Vó................................................................................................................................................ 130

O Tio Vasculho........................................................................................................................................ 134

Oficina dos Brinquedos.....................................................................................................................137

Como Maria Derrotou o Crocodilo............................................................................................... 141

A Lição da Paciência...........................................................................................................................144

A Vassoura Nova................................................................................................................................... 145

Biscoito....................................................................................................................................................... 147

A Cerejeira Da Lua.............................................................................................................................. 150

Lúcio e as Estrelas.................................................................................................................................157

O Bastão do Poder............................................................................................................................... 160

Branca, A Ratinha Que Não Queria Adormecer.................................................................164

Ninguém Gosta da Lua..................................................................................................................... 168

Quando nos Empurram.................................................................................................................... 170

André e o Novo Colega.......................................................................................................................173

A História de Uma Gota de Água.................................................................................................175

3
Sobre o Livro

Querido(a) aluno(a),

As histórias a seguir não são de autoria da Lívia Alencar. Elas foram


coletadas pela equipe de especialistas da Lívia de diferentes sites e estão
disponíveis livremente na Internet para qualquer pessoa e, portanto, são de
responsabilidade dos sites que disponibilizam as mesmas. As fontes (sites) e
autores foram devidamente citados abaixo de cada história.

O objetivo desta coletânea é facilitar para que em um mesmo local


nossos alunos possam encontrar um repertório de histórias de qualidade. As
histórias a seguir foram escolhidas pois apresentam uma releitura especial,
ou seja, são histórias contadas na versão de seus contadores.

Esse é o cenário mais mágico na vida de um contador - quando não


só repetimos as histórias, mas damos a elas nossa própria versão.

Esse é o principal objetivo deste material - que você aluno(a) possa se


inspirar, aumentar seu repertório e contar suas próprias versões.

Com carinho,

Equipe de Coordenação da Lívia Alencar

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A Bola e os Seus Amigos

Veio uma bola pelo ar


que se pôs a saltitar
por cima deste papel.
Quem foi que lhe deu licença?

Houve um menino que a viu


e que correu a apanhá-la
ela então parou – fugir não fugiu –
e ficou à espera que o menino
com ela brincasse.
— Deixas que eu salte ao eixo?
— Pois decerto que deixo.
— E posso deitar-me sobre ti?
Não me empurras? Não me foges?

— Podes sim.
Sou bola boa. Redonda.
Não tenhas medo de mim.

Nisto, chegou-se uma menina


que perguntou:
— Esta bola é tua?
— Não sei! — respondeu o menino.
— Pergunta-lhe a ela.

Falou então a bola:


— Sou vossa, de vocês dois, mas não me partam ao meio.
Era um perigo pois deixava de ser bola.
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Brinquem, brinquem comigo. Não sirvo para outra coisa.
Mão de menino que em mim poisa
é mão de amigo.
Quantas mais mãos, mais amigos;
e eu, então, embora não pareça,
fico tão cheia de ar, de alegria,
que perco a cabeça.

Vieram mais meninos,


e a bola voou do chão,
andou de mão em mão
– é minha, é tua agora! –
saltou, correu, voltejou
e voou desta página para fora.

(António Torrado)

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Quem é quem?

Dois leões estão a lutar em frente ao quadro.

Uma bruxa está sentada à secretária.

Um lobo está à espreita por baixo da caixa de areia.

Um palhaço toca trompete.

Um cozinheiro corre atrás de uma borboleta.

Um limpa-chaminés atira serpentinas pelo ar.

O Capuchinho Vermelho distribui bolinhos.

Um rato Mickey conta anedotas.

Um tigre apaixonou-se por uma cigana.

Um astronauta dá uma cambalhota.

Depois dançam todos à roda e cantam.

No meio, está um mago. É a professora. Ela quase não reconhece os


alunos.

“Quem é quem?”, pensa ela.

Ainda bem que não é Carnaval todos os dias.

(Max Bolliger)

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A História da Menina e das Ameixas do Senhor Ferreira

Certa vez, uma menina estava a brincar no jardim. Brincava sozinha


porque nesse dia a mãe tinha muito que fazer. Só de vez em quando é que a
olhava pela janela e ficava contente por ver a filha a brincar tranquilamente.

Nisto, o Sr. Ferreira e a esposa desceram ao jardim deles. A D.ª Ana


trazia dois cestos e o Sr. Ferreira carregava uma escada, dirigindo-se ambos
para a grande ameixoeira que tinham no jardim. A menina correu rapida-
mente para a vedação e ficou a vê-los.

— O que é que estão a fazer? — gritou, ao ver o Sr. Ferreira encostar a


escada à árvore.

— Vou subir à árvore — respondeu o vizinho acenando-lhe com a


mão.

— E depois?

— Depois vou colher as ameixas — retorquiu, e começou a subir a


escada.

A D.ª Ana ficou em baixo a olhar.

— Tem cuidado! — gritou.

— Ele não cai — acalmou-a a menina. — E, se cair, a minha mãe leva-o


imediatamente ao hospital no nosso carro. — Posso ir para a vossa beira? —
pediu, e, de seguida, chamou a mãe em voz alta.

— Posso ir um bocadinho para o jardim da D.ª Ana? — perguntou


quando ela apareceu à janela.

— A pequenita não incomoda? — perguntou a mãe.

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— De maneira nenhuma! — exclamou o Sr. Ferreira.

Só então é que a mãe o descobriu em cima da ameixoeira.

A menina transpôs a vedação e começou imediatamente a ajudar a


D.ª Ana, que apanhava as ameixas que caíam da árvore, mas tinha dificulda-
de em curvar-se.

— Espere, D.ª Ana, eu ajudo! — e apanhou rapidamente as ameixas


todas.

Eram cada vez mais, pois o Sr. Ferreira não só colhia como também
sacudia os ramos e fizera cair muitas. De seguida, ele desceu da escada com
dois baldes cheios e despejou-os num cesto. Um destes já estava quase
cheio também.

Colheram e despejaram, até encherem dois cestos. A D.ª Ana foi a


casa buscar mais dois. Acabaram por encher quatro e a grande ameixoeira
ficou sem frutos.

A menina ajudou a apanhar as ameixas que tinham caído.

— Muito obrigado! — disse o Sr. Ferreira no fim, ao levar os cestos para


a cave com a ajuda da mulher.

A menina já não pôde ajudá-los porque os cestos eram muito pesa-


dos. O Sr. Ferreira pegava num lado e a mulher no outro, esbaforida.

No fim, o Sr. Ferreira tirou o porta-moedas do bolso das calças e quis


dar algum dinheiro à menina.

— Deste-nos uma ajuda tão grande!

Mas a menina abanou a cabeça, passou rapidamente a cerca e re-


gressou ao seu jardim.

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— Muito obrigada! — gritou-lhe a D.ª Ana.

E a pequenita ficou contente ao ouvir aquilo.

À noite, quando a menina e os pais estavam à mesa a jantar, tocaram


de repente à campainha.

A D.ª Ana entrou com um grande bolo de ameixa, redondo, fresco e


com muito açúcar por cima. A menina ficou tão contente que, nessa noite,
não comeu nem queijo nem fiambre, nem doce nem requeijão com ervas.

Só comeu  bolo de ameixas.

Comeu ela e comeu toda a família.

E pouco sobrou, pois estava delicioso!

(Rolf Krenzer)

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Diogo e Diego Discutem

Os esquilos Diogo e Diego moravam perto um do outro. Eram como


irmãos gémeos, embora Diogo tivesse uma cauda totalmente ruiva e a cau-
da de Diego tivesse alguns pêlos brancos. Diogo tinha construído a sua casa
no buraco de uma nogueira e Diego tinha escolhido uma aveleira. Cada um
tinha decorado o ninho a seu gosto e gostavam ambos muito de cozinhar.
Um dia, Diego levou um frasco de compota de avelãs a Diogo e este ofere-
ceu-lhe licor de noz. Foi um comportamento gentil, não foi?

E, contudo, nenhum deles pensou nisso. Enquanto provava a com-


pota, Diogo ia pensando: “Estas compotas de avelã têm um sabor delicioso
de madeira recém-cortada, de manteiga e de trigo.” E a inveja apoderou-se
dele. Enquanto sorvia o seu licor de noz, Diego resmungava: “Realmente, há
quem tenha tudo. Este licor de noz é verdadeiramente suculento! Quando
penso que o Diogo pode bebê-lo todas as noites.” E o seu coração encheu-
-se de amargura.

A partir desse dia, cada um olhava o outro com inveja. Quando Diego
pensava no ninho soberbo de Diogo, com uma cobertura mole de penas de
avestruz, tinha vontade de amuar até ao raiar do sol. Quando Diogo pensava
na cama de rede que Diego tinha fabricado, tinha vontade de lhe morder o
nariz até fazer sangue.

Um dia, Diego cheirou um odor delicioso de Pinhão nº 5.

— Cheira tão bem em tua casa — disse, sem conseguir esconder o


descontentamento.

— Foi uma prenda da minha tia — respondeu Diogo, que semicerrou


os olhos para ver melhor o boné de Diego, feito de plumas de avestruz co-
sidas à mão. “Trá-lo de propósito para me fazer inveja”, pensou logo Diogo.

— Que boné! — exclamou, fazendo uma careta.

— Oh, é uma coisinha de nada — respondeu Diego, que era muito


vaidoso. — Trata-se de uma prenda da minha tia costureira.

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Nessa mesma noite, Diego pensou no guarda-comida de Diogo e
Diogo pensou no guarda-roupa de Diego. Quanto mais o tempo passava,
mais eles pensavam no que não tinham: uma colecção de conchas de noz,
um bocado de vaso encontrado num campo, uma espiga de milho para de-
corar a casa… A menor quinquilharia punha-os verdes de inveja. Tudo o que
um deles tinha, o outro também queria ter. Chegavam a brigar duramente
para arrancar das mãos do outro uma casca de noz ou um pedacinho de
castanha.

Um dia, quando Diego encontrou um trevo de quatro folhas, Diogo


pôs-se a choramingar: o trevo era seu, fazia parte do seu território. E quando
Diogo apanhou um ramo de papoilas, Diego bateu à porta do amigo para lhe
pedir metade do ramo. Diego teve ciúmes do aniversário de Diogo e Diogo
teve ciúmes da tosse convulsa de Diego. Diogo teve ciúmes da varicela de
Diego e Diego teve ciúmes da constipação de Diogo.

Os ciúmes e a inveja davam-lhes dores de barriga. “Alguém me quer


mal”, pensava Diego, “a floresta já não gosta tanto de mim, já não me dá tan-
tas coisas como outrora”.

Acabaram por fazer tanta algazarra que todos os vizinhos do bosque


(as rolas, as andorinhas, as pombas e os ratos) se reuniram para trocar im-
pressões.

— Não estamos para aturar as vossas disputas!

— Falem mais baixo!

— Já ninguém se entende!

Toda esta barulheira acabou por chegar aos ouvidos da Grande Co-
ruja, que se deslocou pessoalmente para avaliar a disputa.

Ouviu então as queixas dos dois esquilos.

— O ninho dele é mais macio do que o meu!

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— O dele é maior do que o meu!

— Até teve a varicela!

— E ele teve a tosse convulsa!

— Pois, mas a varicela é melhor do que a tosse convulsa! Faz comi-


chão, mas não dói tanto!

A Grande Coruja ria-se por detrás dos seus óculos.

— Daqui a pouco quem tem ciúmes de vocês sou eu. Vocês têm tan-
tas coisas. E, no entanto, não estão contentes. Isso é pena!

A Grande Coruja continuou, olhando-os através dos seus óculos


enormes:

— Se eu fosse Diego, gostaria de ser Diego. E se fosse Diogo, gostaria


de ser Diogo. Se fosse a ti, Diego, teria orgulho em ter um amigo como o
Diogo. E tu, Diogo, devias estar contente por teres um amigo que faz com-
pota de avelãs tão bem! Vou ensinar-vos como uma pessoa aprende a gos-
tar ainda mais de outra. Diego, tu vais dar compota de avelãs ao Diogo e
vais fazer para ele um boné de plumas. Quanto a ti, Diogo, vais fazer licor
de noz para o Diego e algumas almofadas para ele decorar o seu pequeno
ninho. Sugiro ainda que, de vez em quando, troquem de casa. Terão assim a
impressão de ir de férias.

E foi o que aconteceu. Diego fez um boné de plumas soberbo para o


seu amigo Diogo usar no Inverno e Diogo fez pequenas almofadas cheias
de lasquinhas de avelã trituradas para Diego. De vez em quando, durante o
fim-de-semana, trocavam de casa, só para sentirem como as suas próprias
casas eram confortáveis. Diogo e Diego tornaram-se os melhores amigos do
mundo.

Sem saber como, pode ter exacerbado, ou exacerbar, a inveja entre os


seus filhos. Evite fazer deles uns clones. Não os vista de igual e realce as dife-
renças entre eles, já que é nas semelhanças que a inveja se cristaliza. Se acha
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que são ambos excelentes na natação ou na pintura, cada um deles tentará
sempre exceder o desempenho do outro. Mas se sublinhar que o Tiago é
excelente em xadrez e que a Ágata é óptima em música, não os situará no
mesmo plano, antes ajudará a confirmar a individualidade de cada um deles.
Evite falar deles no plural: “Vocês são insuportáveis!”, “São sem-
pre os mesmos!”. Prefira “Benjamim, tu que és muito forte, vem aju-
dar-me.” Privilegie os momentos que passa com cada um. À noi-
te, não hesite em dizer-lhes, separadamente, o quão gosta deles.
Mas não tente estar sempre a compensá-los. Se o mais ve-
lho fizer anos, o mais novo tem de perceber que não vai ter
prenda, porque a sua prenda é-lhe dada no seu aniversário.
Seja discreto. Não tente ser sempre o centro dos seus jogos e atenções.
Deixe-os viver a vida como irmão e irmã. Isso ajudá-los-á a entenderem-se
melhor.

Os dois amigos que são como irmãos têm cada um a impressão de ser
menos mimado. Diga ao seu filho que o coração das mães é elástico e que con-
segue dar a mesma quantidade de amor a uma, duas, três, dez ou doze crianças.
A Grande Coruja propõe uma solução: oferecer-se coisas diferentes, ajudar-
-se mutuamente, tirar partido daquilo que o outro faz. Quando se é irmão
ou irmã, ou irmãos, o melhor a fazer é emprestar coisas mutuamente, aju-
dar-se e amar-se. Pergunte-lhe se não acha que, quando estamos em guer-
ra, perdemos sempre.

(Autor Desconhecido)

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Os Gênios do Parque
O Paulo tivera uma nota má na escola e era o pior aluno da sua turma. Ele queria
muito ter boas notas, mas não conseguia aprender o suficiente para isso. Preferia brincar,
ver televisão ou simplesmente sonhar olhando para as nuvens.

Ao voltar para casa, o Paulo encontrou um lindo esquilo que lhe pediu se partia
uma noz grande. O Paulo partiu a noz com o pé e entregou-a ao esquilo que lhe disse:

— Eu sou um génio do parque e, como tu foste amável comigo, vou ajudar-te


com os teus estudos. Esta noite, lerás três vezes a lição e amanhã terás uma boa nota.

O Paulo agradeceu ao esquilo, voltou para casa e, bem sentado na sua secretária,
leu três vezes a lição. No dia seguinte leu a lição na escola sem dificuldade e a professora
deu-lhe uma boa nota.

No dia seguinte, o Paulo viu uma rã cheia de areia no caminho. Pegou nela e
pousou-a delicadamente sobre uma grande folha de nenúfar no lago do parque.

— Eu sou um génio do parque — disse-lhe a rã. — Eu não podia saltar e tu ajudas-


te-me. Para te agradecer, vou ajudar-te nos estudos. Esta noite, lerás três vezes o texto e
amanhã terás uma boa nota.

O Paulo voltou depressa para casa e leu três vezes o texto. No dia seguinte, o
Paulo teve a melhor nota da turma e recebeu ainda felicitações por parte da professora.

Alguns dias mais tarde, um pequeno pintarroxo pediu ao Paulo que colocasse no
seu ninho um pedaço de pão demasiado pesado para ele. O Paulo assim fez.

— Eu sou um génio do parque — disse-lhe o pintarroxo. — Como foste bondoso


comigo vou ajudar-te na tua lição de geografia. Esta noite, lerás três vezes a lição e ama-
nhã terás uma boa nota.

Como das outras vezes, o Paulo obedeceu ao pássaro e leu três vezes a sua lição
e, como de costume, obteve uma boa nota.

Nos dias seguintes, o Paulo continuou a atravessar o parque sempre que voltava
para casa, mas não encontrou mais nenhum génio. Apesar de tudo, para lhes agradar,
continuou a ler, todas as noites, três vezes as suas lições e no fim do mês era já o melhor
aluno da sua turma. A professora apresentou-o aos outros como exemplo de aluno apli-
cado e explicou a todos que é preciso ler as lições todos os dias para ter bons resultados.

Sempre que o Paulo vê um esquilo, uma rã ou um pintarroxo, pensa nos génios


do parque e agradece-lhes por o terem encorajado a estudar. Agora, o Paulo já não preci-
sa da ajuda deles, pois sente-se capaz de ter sucesso apenas com a sua força de vontade.

(Mireille Saver)
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Uma Ideia Toda Azul

Um dia o Rei teve uma ideia. Era a primeira da vida toda, e tão maravilhado ficou
com aquela ideia azul, que não quis saber de contar aos ministros. Desceu com ela para
o jardim, correu com ela nos gramados, brincou com ela de esconder entre outros pen-
samentos, encontrando-a sempre com igual alegria, linda ideia dele toda azul.

Brincaram até o Rei adormecer encostado numa árvore.

Foi acordar tateando a coroa e procurando a ideia, para perceber o perigo. Sozi-
nha no seu sono, solta e tão bonita, a ideia poderia ter chamado a atenção de alguém.

Bastaria esse alguém pegá-la e levar. É tão fácil roubar uma ideia: Quem jamais
saberia que já tinha dono? Com a ideia escondida debaixo do manto, o Rei voltou para
o castelo. Esperou a noite. Quando todos os olhos se fecharam, saiu dos seus aposentos,
atravessou salões, desceu escadas, subiu degraus, até chegar ao Corredor das Salas do
Tempo.

Portas fechadas, e o silêncio. Que sala escolher? Diante de cada porta o Rei para-
va, pensava, e seguia adiante. Até chegar à Sala do Sono.

Abriu. Na sala acolchoada os pés do Rei afundavam até o tornozelo, o olhar se


embaraçava em gazes, cortinas e véus pendurados como teias. Sala de quase escuro,
sempre igual. O Rei deitou a ideia adormecida na cama de marfim, baixou o cortinado,
saiu e trancou a porta.

A chave prendeu no pescoço em grossa corrente. E nunca mais mexeu nela. O


tempo correu seus anos. Ideias o Rei não teve mais, nem sentiu falta, tão ocupado estava
em governar. Envelhecia sem perceber, diante dos educados espelhos reais que mentiam
a verdade. Apenas, sentia-se mais triste e mais só, sem que nunca mais tivesse tido von-
tade de brincar nos jardins.

Só os ministros viam a velhice do Rei. Quando a cabeça ficou toda branca, disse-
ram-lhe que já podia descansar, e o libertaram do manto. Posta a coroa sobre a almofada,
o Rei logo levou a mão à corrente. Ninguém mais se ocupa de mim — dizia atravessando
salões e descendo escadas a caminho das Salas do Tempo — ninguém mais me olha.
Agora posso buscar minha linda ideia e guardá-la só para mim.

Abriu a porta, levantou o cortinado. Na cama de marfim, a ideia dormia azul


como naquele dia. Como naquele dia, jovem, tão jovem, uma ideia menina. E linda. Mas
o Rei não era mais o Rei daquele dia. Entre ele e a ideia estava todo o tempo passado lá

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fora, o tempo todo parado na Sala do Sono. Seus olhos não viam na ideia a mesma graça.
Brincar não queria, nem rir. Que fazer com ela? Nunca mais saberiam estar juntos como
naquele dia.

Sentado na beira da cama o Rei chorou suas duas últimas lágrimas, as que tinha
guardado para a maior tristeza.

Depois baixou o cortinado, e deixando a ideia adormecida, fechou para sempre


a porta.

(Marina Colasanti)

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O Peixe de Ouro

Era uma vez um pescador que vivia com a mulher numa velha caba-
na à beira-mar. Todos os dias partia no seu barco, feliz por reencontrar as
ondas coroadas de espuma, por sentir o sol acariciar-lhe a face e o vento
soprar-lhe docemente nos cabelos. Por vezes, maravilhado com um pôr-
-do-sol, quedava-se, extasiado pela beleza do mundo, e esquecia-se até de
lançar as redes.

Numa manhã em que o mar estava particularmente calmo, lançou as


redes à água límpida, dando graças ao céu por tão belo dia.Teve muita dificuldade
em puxá-las. Puxou com todas as suas forças, pensando que apanhara vários
peixes grandes. Mas, no meio das redes, havia um único peixe de escamas dou-
radas. Ficou muito surpreendido quando o peixe lhe falou com voz humana:

— Peço-te, pequeno pescador, deixa-me voltar para o mar. Dá-me a


minha liberdade e dar-te-ei o que quiseres.

O pescador pegou nele delicadamente e pô-lo de novo na água.


De volta a casa, contou a sua aventura à mulher, que ficou muito zangada:

— Ao menos, podias ter-lhe pedido pão! Há muitos dias que não te-
mos pão. Volta lá e pede-lhe pão bem fresco.

O pescador voltou ao lugar onde tinha largado o peixe. Uma brisa


suave soprava no mar e as pequenas ondas salpicavam docemente o casco
do barco.

— Peixe, peixinho de ouro, vem cá! Vira a cabeça pra mim, minha mu-
lher quer assim!

O peixe apareceu e perguntou:

— O que me quer ela?

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— Acha que eu deveria ter-te feito um pedido quando estavas preso
na minha rede. Queria que nos desses pão.

— Volta para casa — respondeu-lhe o peixe. — Ela já tem o que queria.

Ao chegar a casa, o pescador encontrou a mulher ocupada a empi-


lhar formas de pão e sacos de farinha a um canto da cabana.

— Estás a ver como fiz bem em mandar-te lá? — perguntou ao marido.


Passado um mês, porém, a mulher do pescador começou a queixar-se.

— Devias ter-lhe pedido uma casa. Olha para esta cabana miserável,
quase não se aguenta de pé! Na verdade, o que nos faz falta é uma boa casa.
Vai ter com o peixe de ouro e pede-lhe uma.

O pescador voltou, contrafeito, ao lugar onde tinha largado o peixe.


O sol desaparecera por detrás das nuvens e o vento tinha-se levantado, fa-
zendo oscilar o barco.

— Peixe, peixinho de ouro, vem cá! Vira a cabeça p’ra mim, minha
mulher quer assim!

O peixe tirou a cabeça da água e perguntou-lhe:

— E o que quer ela agora?

— Quer uma casa. A nossa cabana está muito velha.

— Volta para casa. Ela já tem o que desejava.

Ao chegar a casa, o pescador encontrou a mulher com um vestido


novo, na soleira de uma grande casa de pedra. Atrás de um belo pomar, viu
igualmente uma capoeira e um estábulo.

— Vês — disse-lhe a mulher


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— fiz bem em mandar-te lá.

Mas, duas semanas depois, a mulher do pescador voltou a queixar-se:

— Esta casa é demasiado pequena. Precisamos mas é de um castelo.


Vai de novo ter com o teu peixe e diz-lhe que quero morar num castelo.

Tanto o atormentou, que o pescador voltou ao mesmo lugar. O ven-


to soprava agora em fortes rajadas e grandes ondas abanavam o barco por
todos os lados.

Contrafeito, o pescador chamou o peixe de ouro:

— Peixe, peixinho de ouro, vem cá! Vira a cabeça p’ra mim, minha
mulher quer assim!

O peixe tirou a cabeça da água e perguntou-lhe:

— O que quer ela desta vez?

— Quer um castelo. Acha a casa pequena demais.

— Volta para casa — respondeu o peixe. — Ela já tem o que queria.

Ao chegar a casa, o pescador viu a mulher magnificamente vestida,


no pátio de um grande castelo, que estava rodeado por um belo parque.
Dezenas de criados atarefavam-se por todo o lado.

— Vês como fiz bem em mandar-te lá?

Mas, no final da semana, a mulher acordou-o uma manhã com um


forte abanão:

— Temos de ser os soberanos deste país. Corre e pede ao peixe que

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nos faça rei e rainha.

— Mas eu não quero ser rei — disse-lhe o pescador.

— Mas eu quero ser rainha. Vai depressa dizer-lhe que quero governar
o país.

Triste e com o coração pesado, o pescador voltou à margem. Relâm-


pagos flamejantes percorriam o céu escuro e ondas ameaçadoras por pou-
co não viraram o barco.

— Peixe, peixinho de ouro, vem cá! Vira a cabeça p’ra mim, minha
mulher quer assim!

O peixe tirou a cabeça da água e perguntou-lhe:

— O que mais quer ela?

— Quer ser rainha. Quer que todos a sirvam.

— Volta para casa — disse-lhe o peixe. — Ela já tem o que exigiu.

Ao chegar a casa, o pescador viu um palácio esplêndido, guardado


por inúmeros soldados. A mulher encontrava-se no interior, sentada num
trono enorme. Tinha na cabeça uma pesada coroa de ouro, incrustada de
diamantes, e trazia um vestido sumptuoso, semeado de finas pérolas.

— Vês como fiz bem em mandar-te lá? — perguntou ao vê-lo.

Mas, nessa noite, na grande cama coberta de peles, a mulher do pes-


cador não conseguia dormir. Perguntava-se o que mais poderia obter do
peixe. E quando a alvorada iluminou o céu, pôs-se a gritar de cólera:

— Como é possível? Quando quero dormir é que o sol se levanta, e


sem a minha autorização. Vai depressa ter com o peixe e diz-lhe que desejo
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que os astros me obedeçam.

E ordenou aos guardas que o pescador fosse posto fora de portas.


Pesaroso, o pescador voltou ao mar.

Uma tempestade enorme desabara sobre o oceano. As ondas reben-


tavam em cima do barco do pescador, que não o conseguia controlar. Várias
vezes chamou o peixe com todas as suas forças, enquanto a violência do
vento lhe abafava a voz:

— Peixe, peixinho de ouro, vem cá! Vira a cabeça p’ra mim, minha
mulher quer assim!

O peixe tirou, por fim, a cabeça da água e perguntou:

— Mas o que mais pode ela ainda querer?

— Quer reinar sobre o universo inteiro.

— A tua mulher nunca se sentirá satisfeita. Adeus, caro pescador, nun-


ca mais voltaremos a ver-nos.

Ao chegar a casa, o pescador viu que o palácio tinha desaparecido e


que, no seu lugar, se encontrava de novo a cabana decrépita. A mulher cho-
ramingava, envergando o seu velho vestido remendado.

— Não chores — disse o pescador. — Não eras mais feliz quando eras
rainha. A maior felicidade consiste em estar-se contente com o que se tem.
E partiu, feliz, para pescar o alimento de todos os dias no mar límpido e tran-
quilo.

(Johanna M. Coles; Lydia M. Ross)

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A Raposa Rute

A Rita era uma menina de dez anos muito amiga de animais.

A sua casa estava situada num vale perto de uma montanha, onde
havia animais de toda a espécie: coelhos, perdizes, aves coloridas, lobos e
raposas.

Muitas vezes, os animais desciam do monte até ao vale.

Um dia, a menina estava a brincar um pouco mais afastada da sua


casa, quando viu uma raposa sem se poder mexer, escondida junto a uns
arbustos bastante altos. Pensou logo em ir falar com ela. A raposa, quando
viu a menina dirigir-se para ela, quis fugir, mas, mal tentou levantar-se, caiu
e começou a chorar com medo.

A menina tentou acalmá-la e perceber o que se passava.

— Eu não te faço mal. Quero ajudar-te. O que tens? Como te chamas?

Com muito medo a raposinha foi falando:

— Acho que o meu nome é Rute, mas só me chamavam deficiente.


Sabes, eu não nasci igual aos meus três irmãos raposos. Tenho muita dificul-
dade em mexer as patas e estou sempre a cair e a ficar para trás nas cami-
nhadas. Desta vez, eles aborreceram-se e abandonaram-me. Disseram-me
coisas horríveis, que não era como eles, que não servia para nada, que era
deficiente! Um autêntico embaraço! O que vou fazer agora?

A Rita começou a pensar e perguntou à raposa:

— Não podes andar bem, mas podes fazer outras coisas, não podes?

A raposa Rute gostou da Rita e, mais calma, respondeu:

23
— Gostava muito de aprender a ler e a escrever, para poder criar histó-
rias que distraíssem os meus conhecidos e amigos. Assim, não precisava de
me mover muito. Eles traziam-me comida e eu contava-lhes uma história.

A menina, contente por a raposinha não ter medo dela, disse:

— Boa! Ótima ideia! Vou ajudar-te. Vou ensinar-te a ler e a escrever.


Enquanto aprendes, podes memorizar histórias e contá-las. Eu escrevo-te
algumas. Começa já a pensar na primeira. Vou procurar uma tábua onde
anunciar as tuas histórias e convidar os animais a virem ouvi-las.

E continuou:

— Que nome queres pôr ao espaço onde vais contar as histórias?

— Cantinho da Fantasia. Parece-te bem? – perguntou a raposa Rute.

— Muito fixe. Vais levá-los para um mundo de fantasia! — exclamou a


menina.

— Não é para isso, também, que servem as histórias? — perguntou a


raposa.

— Muito bem! És uma raposa esperta. Mãos à obra! — tornou a Rita a


dizer entusiasmada.

 A tábua ficou feita em pouco tempo e pendurada numa árvore que


podia ser vista por muitos animais. No dia seguinte apareceram, muito a
medo, os primeiros ouvintes.

A Rute contou a primeira história.

Todos ficaram encantados e o Cantinho da Fantasia depressa se tor-


nou conhecido.

24
Os irmãos da raposa, quando ouviram falar num animal que conta-
va lindas histórias, também foram ao Cantinho da Fantasia e não queriam
acreditar que a irmã que tinham abandonado era a autora de tanto sucesso.

Quando viu os irmãos no meio de tantos animais, a raposa começou:

— Era uma vez uma raposa diferente dos seus irmãos porque não
conseguia mexer-se como eles e acompanhá-los nas suas caminhadas. Em
vez de a apoiar, eles deixaram-na sozinha no bosque…

A raposinha não teve tempo de prosseguir.

Ao perceberam o que ela estava a contar, os irmãos correram a abra-


çá-la e a pedir-lhe perdão. E passaram a ser os ouvintes mais assíduos das
histórias que a irmã não se cansava de inventar.

(Teresa Cavaco)

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A Filha da Árvore

No alto de uma colina erguia-se um castanheiro.

Faziam-lhe companhia os animaizinhos da floresta e, em baixo, a ci-


dade enviava para o céu nuvens de fumo azulado.

Porém, nas noites de Verão, quando a mãe arganaz embalava na cau-


da um dos seus filhotes, a árvore era invadida por uma grande tristeza.

“Só eu é que não tenho meninos para acarinhar”, pensava ela.

E pensou nisso com tanta força que, uma bela manhã, um dos seus
ouriços desprendeu-se bruscamente.

Caiu, rolou e abriu-se.

Era uma menina.

Bem, estava um bocadinho pálida.

 “Mas o sol há-de dar-lhe uma linda cor!”, disse a árvore, que até bri-
lhava de contente. Passou a chamar-se Florina.

A árvore fez-lhe um bercinho minúsculo de ervas e sentiu-se muito


feliz.

Mas nem sempre era fácil.

Florina queria ser campeã de piruetas.

— Tem cuidado, meu rebentinho querido! – dizia, preocupada.

Florina brincava ao bichinho da fruta.

26
— Come tudo como deve ser!

E também fazia o pino.

— Tu pões-me a cabeça à roda! Cansa, ser pai!

Mas afinal até se davam bem. Às primeiras neves, todos os bichinhos


prepararam um ninho fofinho para passarem o Inverno. Cada um escavou
um buraco à sua medida no meio do feno e a árvore bocejou:

— Boa noite, Florina. Bons sonhos!

Em breve, tudo ficou em silêncio.

Florina virou-se para um lado.

Depois para o outro.

— Papá, não consigo dormir!

Mas ninguém respondeu, estava tudo branco e adormecido. Florina


deixou-se escorregar para a neve e estremeceu.

Ao longe, a cidade acendia as luzes e brilhava calmamente. Florina


encheu-se de coragem e desceu a colina.

Era um lugar estranho.

Tudo estava em movimento, à volta de Florina.

Empurravam-na.

— Sai daí! — disse alguém.

— Não fiques no meio da rua! — disse outra pessoa.

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Florina começou a tremer.

De repente sentiu que alguém a levantava de cabeça para baixo.

— Larga-me! — gritou ela.

— Desculpa! — respondeu o macaco. — Julguei que eras uma casta-


nha. Às vezes dão-me castanhas.

— Não tenhas medo! — disse uma senhora velhinha a sorrir. — O Gil


é um macaco muito simpático.

Depois, cobriu Florina com um xaile.

— É noite – disse ela suavemente. — Temos de voltar para casa.

Levou Florina para o quarto das águas furtadas, deitou-a numa cama
fofinha, aconchegou-lhe a roupa, deu-lhe um beijo e não disse mais nada
porque a menina já tinha adormecido.

De manhã, Gil abanou Florina:

— Eh, castanha! Não vais passar o Inverno a dormir!

— Penso que não… — suspirou Florina.

— Veste roupa quente — aconselhou a velha senhora. — Está muito


frio no parque.

— Olha bem para mim! — gritou Gil.

E subiu a toda a velocidade pela árvore mais próxima.

— Admirável, não?

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— Qualquer pessoa pode fazer isso! — replicou Florina.

— E isto é que tu nunca fizeste! — Gil arremessou-se, saltando de ár-


vore em árvore.

Mas, de repente, um ramo coberto de gelo partiu-se e Gil caiu de uma


altura de vários metros.

Florina foi logo a correr.

O macaco já não se mexia.

Muito tristes, levaram-no para casa.

A velha senhora embrulhou-o num xaile, mas Gil tinha uma pata par-
tida e continuava desmaiado.

— Deve haver alguma coisa que se possa fazer por ele! — soluçou
Florina. — O meu pai deve saber…

Na colina, o castanheiro dormia profundamente.

— Papá — murmurou Florina — estou com um pequeno problema,


ajuda-me! Um amigo meu está doente…

Então uma coisa extraordinária aconteceu. A árvore fez crescer uma


folha, em pleno Inverno, uma folha pequenina, na ponta de um ramo.

E murmurou mesmo a dormir:

— Um chá! Um chá de uma das minhas folhas faz sempre bem quan-
do se está mal disposto!

Florina colheu a folha. E levou também algumas avelãs para comer


pelo caminho. A árvore continuava a ressonar.

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Mal bebeu a primeira colher de chá, Gil sentiu-se logo muito melhor.

— Felizmente que há árvores! — disse Florina.

Dia após dia, o macaco recuperava a sua boa disposição e Florina es-
perava pela chegada da Primavera.

Finalmente, o vento trouxe um rebento verdinho e perfumado.

— A minha árvore acordou — anunciou Florina.

– Nós vamos acompanhar-te – propôs Gil.

A árvore assobiava baixinho, muito atarefada a fabricar folhas e go-


mos.

— Onde é que passaste a manhã? — perguntou a árvore muito admi-


rada.

— Depois conto-te — disse Florina. — Dormiste bem?

— Como um cepo.

— Bom dia! — disse o macaco.

— É curioso, tenho a impressão de que já o conheço — admirou-se a


árvore.

Florina ria-se, tapando a cara com as mãos.

— Mais tarde explico-te tudo… — disse ela. — Agora podemos ir jogar


às escondidas?

(Magali Bonniol)

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A Cadeira Musical

Era uma vez uma cadeira que sabia música. Uma pessoa sentava-se
nela e a cadeira começava a tocar.

— É uma cadeira-caixinha de música. Tem molas especiais que fazem


“clique”, quando uma pessoa se senta na cadeira e, então, a caixinha de mú-
sica começa a tocar — explicava quem sabia destes mecanismos de cadeiras
musicais.

Talvez fosse, realmente, assim. O certo é que, um dia, a cadeira se


avariou. Deixou de tocar música. Passou a ser uma cadeira banal, igual a
milhões de outras que não tocam.

— Deve estar com as molas gastas — disse a velha e gorda senhora,


dona da cadeira. — Vou mandar arranjá-la.

Mas na oficina das cadeiras desenganaram-na:

— Já não há quem arranje dessas cadeiras.

Voltou a cadeira para casa da senhora que, às vezes, com saudades


de outros tempos, nela se sentava, evocando a musiquinha que a cadeira,
dantes, tocava.

A velha e gorda senhora lembrava-se de quando era nova, leve e gen-


til e ia, às escondidas da avó, sentar-se na cadeira com música.

— Tlim, tlim, tlim e mais tlim — tocava a cadeira, à volta da menina.

Que saudades! A senhora largou um imenso suspiro e foi atender à


porta, porque a campainha repicara. Era uma amiga com o sobrinho, um
miúdo tímido, escondido atrás da sombra da tia.

— Entrem para a sala — convidou a velha senhora.

31
Logo aconteceu que o menino se foi sentar na cadeira avariada. E
não é que ela, sem mais quê nem porquê, ao leve peso do garoto, começou
a tocar?

O miúdo saltou, assustado, e a cadeira calou-se. Então, a velha se-


nhora explicou o mecanismo da cadeira e tudo voltou ao certo.

Naquela tarde, a cadeira tocou que foi um regalo ouvir.

— Eu já devia estar muito pesada para a sensibilidade da cadeira —


concluiu a senhora.

E logo ali ficou combinado que o menino, sempre que quisesse, podia
vir visitar a senhora. E a cadeira. As duas teriam muito prazer em recebê-lo.

(António Torrado)

32
A História da Gata Sapinha

A ternura é assim como uma coisa que se sente quando olhamos


para alguém ou nos olham de um modo muito carinhoso, quando dizemos
ou nos dizem palavras amigas iguais às que esperávamos, quando nos fa-
zem, por exemplo, uma festa no cabelo. A mãe que aperta o filho pequenino
nos braços fá-lo com ternura. Ou, quando a um canto do recreio vemos um
amigo com ar triste e o vamos buscar, lhe pomos a mão nos ombros e o
trazemos para que não esteja sozinho nem triste, isso é ternura. Uma palavra
muito bonita.

A ternura é assim como uma daquelas fadas das histórias que ouvi-
mos contar e ficamos a pensar se existe. Daquelas que com um toque de
varinha mágica tudo mudam. Mas a ternura existe mesmo, é uma fada real.
Se quiséssemos desenhá-la, teríamos de desenhar uma rapariga pequena,
porque a ternura dá muita importância às coisas pequeninas que só se vêem
se uma pessoa estiver com muita atenção. Se não, não se vê nada. Por isso,
ela tem os olhos muito abertos, os ouvidos à escuta e na boca um sorriso.
Ternura.

Tudo isto para vos contar esta história. É que foi com certeza a pensar
na ternura, nessa pequena fada tão importante na nossa vida, que o Miguel,
um dia de manhã, no quarto dos pais (ele costumava todos os dias ir até lá
um bocadinho), disse para a mãe:

— Sabes, mãe, eu gostava de ter era um bichinho de pêlo.

A mãe achou muita graça àquilo e ao mesmo tempo ficou admirada,


e o pai que estava a dormitar ouviu também.

— Um bichinho de pêlo?! Para que é que tu queres um bichinho de


pêlo?

Mas o Miguel não explicou logo.

— Sim — disse ele —, eu gostava tanto! Um bichinho de pêlo só para


mim.

33
O Miguel morava no terceiro andar de um prédio alto, um desses pré-
dios de cimento, e tinha mais cinco irmãos além de outros quatro que não
moravam ali. Era muita gente, mas davam-se todos muito bem. O que é, é
que o Miguel era o mais pequeno, tinha só nove anos, e fazia uma grande di-
ferença dos outros que tinham 16… 17… 19… 21… E por isso, com essa gente
de muitos mais anos, nem sempre era fácil conversar. Mas com um bichinho
de pêlo, pequeno como ele…, pensava o Miguel.

A mãe contou aos outros irmãos o desejo do Miguel e todos acharam


graça. E os dias passaram, até que o Acaso (o Acaso é assim um senhor que
não se vê mas que intervém às vezes na nossa vida, sobretudo se desejamos
muito uma coisa e pensamos nela) interveio.

Um dia, ao fim da tarde, estava a mãe do Miguel na cozinha a prepa-


rar o jantar e as irmãs no quarto a prepararem as lições para o dia seguinte,
quando sorridente o Miguel entrou em casa seguido dos amigos, o To, o
Paulo e o Paulito. Vinham todos afogueados de correr e ao mesmo tempo
entusiasmados, pois traziam com eles um gato muito pequeno e magricela
de pêlo castanho e olhinhos verdes.

— Mãe! Mãe! — chamou o Miguel.

— Que é? — disse a mãe, vindo à sala ter com ele.

— Olha o que nós encontrámos! — e mostrava a mão que segurava o


gato. Ao princípio a mãe zangou-se:

— Não vais trazer isso aqui para casa, pois não? Já tenho muito que
limpar e o gato ainda daria mais trabalho.

A mãe dava aulas e ainda tinha de arrumar a casa e fazer o comer.


Mas o Miguel, todo contente com o seu achado, pediu, pediu: «Ele não suja!
— disse. — Deixa lá, mãe» teimou, e até os amigos pela voz do Tó (o Tó tinha
em tempos escrito um postal ao Miguel a dizer que ele era o seu melhor
amigo, que a seguir vinham o Paulo e o Paulito, mas que não tinha últimos
amigos) intercederam junto à mãe do Miguel:

— Nós ajudamos a tratar dele. Limpamos o que ele sujar.


34
E perante esta embaixada tão insistente, as sobrancelhas da mãe do
Miguel ergueram-se e ela sorriu. E o Miguel sabia bem o significado daquele
sorriso, isto é, foi logo arranjar um pratinho de leite para o gato. Um bichinho
de pêlo.

E o gato ficou. É uma gata — explicava o Miguel às irmãs — e cha-


ma-se Sapinha. Elas riram-se Sapinha! Ela que se livrasse de ir para o nosso
quarto sujar!, ainda disse a irmã do meio. Mas o Miguel não ligou. Ele sabia
que iria proteger o seu bichinho de pêlo. Ao princípio, a Sapinha tinha medo
das pessoas e metia-se debaixo dos móveis. Não se atrevia a deitar a cabeça
de fora e era preciso ir lá buscá-la. Estava num meio estranho, desconheci-
do. Foi preciso dar-lhe um banho para que o seu pêlo castanho ficasse lim-
po, cor de mel, e papo branco. Mas a pouco e pouco, com os mimos todos
que lhe faziam, foi ganhando confiança e conhecendo os cantos à casa e os
olhos às pessoas. Gostava de ir para a varanda, empoleirar-se ao sol no pa-
rapeito, a olhar para baixo para o pátio ou para as casa e campos em frente,
a cheirar as sardinheiras dos vasos, a seguir o voo das moscas. Tudo o que
mexia era para ela motivo de atenção. Punha-se logo em posição de ataque,
de pernas duras a preparar o salto. À noite o Miguel levava-a para a sua cama
que era no cimo de um beliche, fazia-lhe festas sem fim a que ela corres-
pondia com lambidelas amigas e depois ficava enroscada aos pés da cama.
A casa mergulhava então no silêncio, o irmão mais velho apagava a luz e o
Miguel podia ver os olhos brilhantes da Sapinha no escuro.

Na zona onde morava o Miguel muitas vezes faltava a água. Horas


e horas. E a água era muito precisa para lavar e cozinhar. Uma noite, al-
guém deixou uma torneira aberta e a água encheu a banheira, transbordou,
e saindo do quarto de banho ameaçava inundar o resto da casa. Ora a Sapi-
nha, com os seus olhinhos de ver no escuro, pressentiu o perigo e pôs-se a
miar, a miar, e a esfregar as patas na cara do irmão mais velho, que dormia
por baixo do Miguel no beliche, até que ele acordou. A Sapinha continuava
a miar e a mexer-se.

Que é que quer a gata?, pensou ele. Levantou-se e viu que a água,
inundando o corredor, entrava já pela frincha da porta do quarto e correu a
fechar a torneira. Foi o que valeu.

A Sapinha tinha evitado uma inundação e por isso ganhou fama de


bichinho esperto. O Miguel contou aos seus amigos, o To, o Paulo e o Paulito
e a toda a vizinhança o que a Sapinha tinha feito e o caso foi muito falado.

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A Sapinha era uma heroína.

Um dia, a senhora Graça, mulher-a-dias que ia às vezes fazer serviço


de limpeza lá em casa, disse para a irmã mais velha:

— Sabe, menina?, a gata não é uma gata, é um gato.

Era verdade.

Quando o Miguel soube disto ficou muito triste. Ele acostumara-se a


chamar-lhe Sapinha, o bichinho de pêlo só para si. Agora um gato! E durante
algum tempo queria que as irmãs continuassem a chamar-lhe gata Sapi-
nha, senão não deixava ninguém pegar-lhe. Mas depois pensou, pensou e
disse para si: «Gato ou gata, que interessa se é um bichinho de pêlo?!»

Era de novo a ternura, aquela fada real de que vos falei no princípio
desta história, aqui sob a forma dum gato cor de mel e papo branco e de
um menino que queria ter um bichinho de pêlo só para si, mas que aparece
muitas vezes na nossa vida, sob outras formas se nós quisermos. E ainda
bem, porque a ternura faz muita falta.

(tória da gata Sapinha)

36
Flora e o Violino

Esta manhã, Flora chegou à estação do comboio. A grande estação


da grande cidade.

Ontem, caminhou todo o dia para apanhar o comboio.

Viajou toda a noite.

Viajou, ou melhor, fugiu, porque há guerra no seu país.

Uma explosão assustadora, a casa em fogo, e ninguém para apagar o


incêndio que começava.

Por isso, Flora enfiou à pressa alguma roupa na mochila, depois pe-
gou no ursinho e não esqueceu a caixa com o violino. E com os pais, fugiu
para longe da sua aldeia.

Quando descem do comboio, já estão noutro país. As pessoas têm


um ar apressado, falam uma língua esquisita. Flora vê que fazem gestos mas
não percebe o que dizem.

Sente-se perdida…

Felizmente umas pessoas muito generosas emprestaram uma casa


aos pais de Flora. E na escola do bairro há um lugar para ela, na classe dos
mais novos. Vai poder aprender francês, a língua esquisita que ouviu na es-
tação.

No primeiro dia, o pai acompanha-a à escola.

Assim que a vêem, os meninos começam a fazer troça dela.

— Olha, tem os cabelos cor de laranja!

— E a cara cheia de sinais!

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— Não é de cá! De onde é que tu vens?

— Olha os óculos! Eh, tiraste-os à tua avó, ou quê?

Todos se riem. Todos, menos Flora.

Esta manhã, Flora trouxe o seu violino. Depois das aulas vai à escola
de música. Ao verem a caixa, os meninos voltam a troçar dela.

— O que é aquilo? A caixa da metralhadora?

— Não, é o cesto de ir ao mercado. Ela só come peras!

— Cuidado, ela escondeu um crocodilo lá dentro!

Todos se riem. Todos, menos Flora. Até fica cada vez mais triste mas
ninguém se dá conta.

Ninguém, excepto António que, à saída da escola, se abeira dela.

— Vais para casa, Flora?

— Não, vou escola música.

— Fazer o quê? — pergunta António.

— Tocar violino…

— Queres que vá contigo?

Flora sorri e faz que sim com a cabeça.

Nesta escola ouve-se música por todo o lado, por detrás de cada por-
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ta. António reconhece o som de um piano, de um trompete e de uma flauta.

O professor da Flora é muito simpático e deixa o António ficar na sala,


com a condição de não perturbar.

Flora toca bastante bem tanto a solo, como em duo com o professor.
António escuta-os sem se mexer.

Um dia, na escola, as crianças estavam a fazer um desenho quando,


de repente, grandes nuvens escuras cobrem o céu. Nuvens de tempesta-
de, que deixam uma pessoa assustada. Os raios caem de todos os lados, o
trovão ruge e estala como um chicote. Zás! Não há luz: foi um trovão que
cortou a electricidade.

— Eu vou procurar velas, — diz a professora. — Fiquem tranquilos.

As crianças estão com muito medo. Gritam e escondem-se a chorar


debaixo das mesas. Flora bem gostava de as acalmar. Mas como?

De repente tem uma ideia, uma ideia muito boa.

Muito devagar, tira o violino da caixa, depois o arco…

… Um… dois… três sons sobem na escuridão da sala de aula e balan-


çam-se suavemente. Dir-se-ia uma canção de embalar. Depois, uma enfiada
de notas forma uma dança. Como toca depressa, a Flora! Escolheu fazer o
seu violino cantar uma toada do seu país. É alegre, triste, as duas coisas ao
mesmo tempo. E graças a ela, todas as crianças esqueceram a trovoada.

Que pena! A electricidade voltou…

As crianças aplaudem.

— Obrigada, Flora, muito bem! — diz a professora. E depois acrescen-


ta: — Para amanhã não há trabalhos de casa. Mas vão todos fazer um bonito
desenho ou um poema para agradecer à Flora.

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— Yupiii! — gritam os meninos. Agora todos querem ser amigos de
Flora. Mas ela só tem um amigo: António. Ele acompanha-a todas as sema-
nas à aula de música.

O professor de música deu ao António uma linda flauta.

— Experimenta tocar um bocadinho!

António experimentou e gostou muito do som da flauta. A partir de


então, passou a tocar todos os dias.

Muito rapidamente, começou a tocar peças com Flora. Violino e flau-


ta, flauta e violino, é muito divertido e tem uma certa magia…

— E se vocês fizessem um pequeno concerto na escola? — propõe o


professor de música.

— Boa ideia! – exclama Flora. — E depois vamos ao hospital tocar para


os meninos doentes. No meu país faz-se isso muitas vezes. A música ajuda
a curar e a esquecer as preocupações.

— Que peças queres tocar, António?

— Uhm… As mais fáceis? Oh, e daí não, as difíceis também! Vou tra-
balhar todos os dias e fazer muitos progressos!

Os dois preparam então dez peças e, com a ajuda do professor, dese-


nharam um cartaz muito bonito. Toda a escola vem ouvi-los. É um sucesso,
um concerto magnífico! À saída, todos os meninos estão decididos a apren-
der a tocar um instrumento.

E depois?
Ora bem, Flora e António continuaram a tocar juntos.
PARA PRAZER DELES!
Viva a música!
(Gerda Muller)

40
O Gato que Chora

O Orelha-Longa está deitado ao sol, a descansar. Sente-se preguiço-


so. Estamos no Verão. A caça está fechada. Os passeantes só aparecem aos
domingos. O guarda foi de férias e levou o seu cão Virgílio. O bosque está
belo e calmo, só há folhas, só há silêncio. De repente, o Orelha-Longa espeta
a orelha… Está alguém a chorar! Um rato põe a cabeça de fora de um tronco
e diz:

— Não há dúvida!… É a voz de um gato.

Tal como os esquilos e os pássaros, o Orelha-Longa desconfia dos


gatos. Eles rastejam e sobem às árvores sem o mínimo ruído. O rato acres-
centa:

— Quando um gato chora assim, é porque está muito triste!

O Orelha-Longa hesita. O gato que chora talvez tenha caído numa


armadilha dos caçadores furtivos.

— Com mil trevos! Este caso é um mistério! — resmunga o Orelha-


-Longa.

A tribo dos orelhudos tem o seu próprio metropolitano. Escava sub-


terrâneos na areia. Cada toca tem várias saídas. O Orelha-Longa conhece-as
todas. Assim ele pode aproximar-se, sem ser visto, do gato que chora.

— Com mil trevos! Eu conheço aquele gato — diz o Orelha-Longa. —


É o Patafofa, o gato do criador de cabras.

O coelho aparece e diz:

— Vamos fazer as pazes!

O gato sobressalta-se e depois responde:

— Vamos fazer as pazes!


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— Estás doente? — pergunta o Orelha-Longa.

— Não! — mia o Patafofa.

— Então, com mil trevos, porque é que choras?

— Amanhã — choraminga o gato — os meus donos vão visitar uns


familiares que moram longe… Resolveram abandonar-me.

O gato não mentia. O criador de cabras e a mulher estão a meter


muitas coisas em malas e sacos. Amanhã, muito cedinho, fazem-se ao ca-
minho. Mas que será do gato deles? O Orelha-Longa não está nada conten-
te. Quer ajudar o Patafofa. Um bode, algumas cabras e um cabrito pastam
numa cerca.

— Com mil trevos!… Amanhã os teus donos também vão abandonar


estas cabeças de chifres e estas tetas de leite? — resmunga o Orelha-Longa.

— Não! — mia o gato de olhos tristes… — Esta noite, as cabras vão


para uma quinta do vale… Os meus donos precisam do leite para fabricar
queijos…

— Queijos? — repete o Orelha-Longa.

De repente o coelho parece muito interessado.

— Os teus donos dormem com a janela aberta? — pergunta ainda


Orelha-Longa.

— Sim, mesmo de Inverno! — diz o Patafofa.

Como sempre, quando quer reflectir, o Orelha-Longa põe-se de ca-


beça para baixo. Fecha os olhos. Nem um dos seus pêlos se mexe. Parece
uma estaca com quatro patas, um rabo, bigodes e duas orelhas compridas.

O Patafofa está tão espantado, que se esquece de chorar. Acha que


deve imitar este coelho acrobata.
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Zás!… Atira as patas traseiras na direcção das nuvens. Catrapus!… Um
grande trambolhão. O gato dá com o nariz no chão de folhas secas. Já não
sabe se há-de rir ou chorar. Até tem uma vontade louca de fugir.

De súbito, o Orelha-Longa abre um olho e diz:

— Com mil trevos! Tenho uma ideia.

Na clareira, o Orelha-Longa reuniu a tribo dos focinhos bicudos e


rabos compridos. Estão ali arganazes, musaranhos, ratinhos, e até um rato
almiscarado que veio do rio. O Orelha-Longa pôs-se em cima de um montí-
culo e fala. Abana as patas e a cabeça para se explicar melhor. As orelhinhas
pardas estão atentas. A um canto, dois coelhos constroem uma escada com
ramos descascados e cordel. Um mocho saiu de um buraco… Nunca viu
tantos rabos compridos, tantos focinhos bicudos. Os seus grandes olhos fi-
xos brilham de apetite. Gosta de comer ratos. O Orelha-Longa está satisfeito.
Todos sabem o que têm a fazer. Só resta esperar pela noite.

Tudo dorme na casa do Patafofa. O criador de cabras e a mulher dei-


taram-se mais cedo do que é costume. No meio do pátio, o carro está pron-
to para partir. Os coelhos já puseram a escada debaixo da janela do quarto. A
família dos rabos compridos sai do bosque e dirige-se a passos ligeiros para
a quinta.

Uns atrás dos outros, os musaranhos, os arganazes, o rato almiscara-


do, e os ratinhos, sobem pela escada e correm pelo quarto escuro.

O Orelha-Longa foi ter com o Patafofa.

— Vamos sair pelo respiradouro! — diz ele ao ouvido do gato. — Te-


mos de conversar.

De repente acende-se a luz do quarto.

Os donos da casa acordam sobressaltados.

— Hiii!… hiii! — berra a mulher, levantando os braços. — Hiii!…

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Ratos!… Ratos por todo o lado!… No chão, em cima da cama, do guar-
da-vestidos, e da mesa de cabeceira…

O criador de cabras ficou com os olhos arregalados de surpresa. Um


rato baloiça na ponta do fio do candeeiro. E além, à janela, dois coelhos fa-
zem caretas… É incrível!

Nesse preciso momento, o gato da casa começa a miar diante da


porta do quarto.

— Anda cá, anda cá, Patafofa! — grita a dona da casa.

O Patafofa empurrou a porta. Encurva o lombo e mostra os dentes


como um gato zangado. Mas, esta noite, está só a fingir.

Tem mas é vontade de rir.

Tudo se passa como o Orelha-Longa previu. Os arganazes, os musa-


ranhos, os ratinhos e o grande rato almiscarado, fogem pela janela, com os
dois coelhos e a escada.

— Tu és um gato formidável! — grita a mulher.

— É verdade! — diz o criador de cabras. — Amanhã vais connosco…


De certeza que lá também há ratos!

A dona do Patafofa vai à cozinha. Dá ao gato uma grande fatia de


queijo e chouriço.

Na floresta, chegou finalmente a noite. No entanto, a clareira está


iluminada. O Orelha-Longa trouxe as suas três lanternas e transformou três
poleiros em candeeiros.

Os rabos compridos dançam um baile de roda à volta de um grande


ouriço.

(Pierre Coran)

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Os Amigos Não Se Abandonam

A gatinha da Antónia desapareceu. Não estava em cima da árvore,


nem na caleira da água, nem por debaixo da tábua de passar.

— Se calhar anda à caça na cave — sugeriu a mãe.

— De certeza que está a dormir no sótão — disse o pai.

— Será que foi para o céu? — perguntou-se a avó, preocupada.

— Vou procurá-la — disse a Antónia. — Se calhar aconteceu-lhe algu-


ma coisa. E os amigos não se abandonam.

Só que na cave havia apenas bicicletas e, no sótão, sobretudo pó. A


gatinha continuava desaparecida.

— Então vou procurá-la no céu — decidiu Antónia.

E pôs-se a caminho.

Antónia passou por uma cabeça no ar e perguntou-lhe:

— Sabes onde está a minha gata?

A cabeça estava com muita pressa para chegar a casa e nem olhou
para Antónia.

— Mal-educada — resmungou ela, continuando a andar.

Pouco depois, encontrou o polidor do sol ocupado a puxar o lustro a


um raio de sol embaciado. Ele acenou-lhe com o pano do pó.

— Ah! Visitas, que bom! — exclamou alegremente. — Aproxima-te,


minha filha!

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— Ando à procura da minha gata. Pode ajudar-me? — pediu Antónia.

O polidor parou para pensar.

— Não, não vi a tua gata.

A rajada de vento dobrou a esquina a correr e a silvar.

— Sabes onde está a minha gatinha? — perguntou-lhe Antónia, tão


alto quanto pode.

— Nem vi gatos nem vi galos — silvou a rajada. E fugiu dali abanando


o leque. Antónia ainda ouviu, vindo de longe:

— Pergunta depressa ao vento!

— Podes perguntar-lhe agora mesmo. Cacei-o e meti-o dentro da


manga — disse-lhe o Catavento por detrás dela.

— Viste a minha gatinha? — perguntou Antónia.

O Catavento espreitou para dentro da manga. Lá de dentro saíram


sopros e assobios.

— Aqui não está nenhuma gata, lamento. Mas vou estar atento e, se
a vir, digo-te.

— Obrigada. Ela é minha amiga e eu estou preocupada porque não a


encontro em nenhum lado — explicou Antónia.

Mais adiante, estava alguém sentado e, à sua volta, rodopiavam flo-


cos de neve. Trabalhava com uma faca fina e aguçada e ia contando em voz
baixa.

— O que está a fazer?

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— 1232. Estou a cortar cristais — explicou o talhador de cristais. —
1233 cristaizinhos de gelo. Todos diferentes. Nenhum é igual ao outro.

E continuava a contar.

— 1234, 1235… nem de mais, nem de menos — observou. — Tudo tem


de ter a sua ordem.

Deitava carinhosamente o resultado do seu trabalho para um monti-


nho que ia crescendo ao seu lado.

— Compreendo-te — prosseguiu ele, concentrado no seu trabalho. —


Os amigos não se talham. São raros, não caem do céu, como os cristais de
neve. Mas, infelizmente, não vi a tua gatinha. 1236, 1237…

Antónia concordou num aceno de cabeça e continuou o seu cami-


nho.

Caído do céu, surgiu à sua frente o atirador de raios. Estava de cóco-


ras a fazer pontaria por entre duas pequenas nuvens. Um raio reluziu e, em
seguida, chegou-lhes ao nariz um forte cheiro a enxofre.

— Trovãozinho, onde estás? — gritou o atirador, já impaciente.

— Já vou! — respondeu uma voz.

Ouviu-se um ribombar e um trovejar fraco. De seguida alguém tossiu.

— Desculpe, constipei-me! Aqui há tantas correntes de ar — queixou-


-se o trovão, rouco. — Às vezes, o ribombar não sai — acrescentou, cabis-
baixo.

E depois espirrou.

— Raios e coriscos, que aborrecimento! — resmungou o atirador de


raios. — Eu aqui a esfalfar-me com os meus raios, e não consegues fazer
nenhum barulho de jeito. E tu? — perguntou, virando-se para Antónia. — Por
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acaso não sabes trovejar e ribombar?

— Não, acho que não — desculpou-se Antónia. — Só vim à procura da


minha gata.

O atirador de raios pôs-se a pensar.

— Conheço carneirinhos de nuvens e castelos no ar — respondeu. —


Aqui, os gatos não são lá muito bem-vindos.

Pegou no raio seguinte e começou a dobrá-lo meticulosamente.

— Mas ela é minha amiga… — disse Antónia em voz baixa.

O dia passou pela calada da noite puxando a noitinha pela mão.

— Já chega por hoje! — murmurava ele.

Atrás de si arrasta-se o anoitecer. O lusco-fusco agita-se, impaciente.

— Já está a chegar a noite e eu sem ter encontrado a minha gata —


lamenta-se Antónia.

— Pois é, temos de prestar atenção aos amigos — observou a noite. —


Eles não aparecem da noite para o dia.

— Eh, ó lua! — chamou. — Viste a gatinha da Antónia?

A lua revirou os olhos.

— Não sei. De noite todos os gatos são pardos… — e perguntou, diri-


gindo-se ao guardião de estrelas: — Viste uma gata por aí?

O guardião de estrelas agitou o bastão no ar. Nos seus lugares, a Ursa


Maior e a Ursa Menor pararam de brincar, o Touro mugiu, o Sagitário deu um
salto e os Peixes emudeceram.
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O acendedor de estrelas passou então, e todos começaram a brilhar.

O guardião contou rapidamente as cabeças do seu rebanho.

— Estão aqui todos e não há nenhum a mais.

Virou-se para Antónia e disse-lhe:

— A tua gata não está no céu. Vê antes na Terra. Tu vais voltar a en-
contrar a tua amiga, li nas estrelas — consolou-a.

E, triste, Antónia seguiu pela estrada de Santiago até casa.

Diante da porta da cozinha estava, enroscada, uma gata que ergueu


a cabeça e bocejou.

— Por onde andaste este tempo todo? — perguntou-lhe Antónia, num


tom um tanto ou quanto admoestador.

— Fui caçar ratos. Quando voltei, não te encontrei e pensei que te


tinha acontecido alguma coisa. Então resolvi ir à tua procura. Os amigos
nunca se abandonam.

(Sigrid Laube; Silke Leffler)

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Pog e os Passarinhos

Era um dia igual aos outros. O gato Pog estava sentado, quieto como
uma estátua, a ver os passarinhos voar.

— Bom dia! — disse Pog, saudando um dos passarinhos.

Este agitou as asas e aterrou junto dele. Pog olhou-o fixamente: nun-
ca tinha visto um pássaro tão corajoso.

O passarinho começou a cantar. Pog achou que aquela melodia era a


mais bela que alguma vez ouvira.

O gato fechou os olhos e pôs-se a escutar, deliciado.

Um a um, foram chegando mais pássaros, que começaram a cantar,


por sua vez. Em breve, Pog estava rodeado de música.

E estava feliz.

— Olá! — saudou Peg, um outro gato, chegando junto dele. — Queres


brincar?

— Está bem — concordou Pog, sorrindo.

— Podemos caçar ratos — sugeriu Peg.

— Não vi nenhuns — confessou Pog.

— Olha um passarinho! — exclamou Peg.

— Este pássaro canta para mim — contou Pog.

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— Vamos caçá-lo! Vai ser divertido — propôs Peg.

Pog pensou um pouco.

— Está bem — assentiu, sorrindo.

E saltaram ambos sobre o pássaro, que guinchou e voou dali.

— Isto é divertido — riu Pog.

— Vamos ver se há mais — sugeriu Peg.

E foram em busca dos pássaros. Perseguiram-nos o dia todo.

— Já não vejo mais nenhuns — queixou-se Peg.

— Devem ser horas de ir para casa — disse Pog.

Na manhã seguinte, Pog estava novamente sentado, à espera de que


o passarinho fosse cantar para ele.

— Bom dia! — saudou quando o viu.

A avezinha não lhe prestou atenção.

Chamou todos os pássaros, um a um, mas todos passaram por ele


sem lhe prestarem atenção.

Quando Peg chegou, Pog estava muito triste.

— Os pássaros já não vêm ter comigo! — exclamou.

— Claro que vêm! — assegurou Peg.


51
Tentaram chamá-los juntos, mas nenhum apareceu.

— Não passam de pássaros — desdenhou Peg. — Esquece-os e vem


brincar comigo.

— Não, não vou. Adoro pássaros e quero que cantem para mim — dis-
se Pog.

E sentou-se de novo quieto como uma estátua.

O sol nasceu e pôs-se e Pog continuava sentado.

Finalmente, o passarinho veio ter com ele. Pog ficou hirto, sem se
atrever a mexer.

— Desculpa — disse ao passarinho. — Nunca mais te assustarei.

A ave começou a cantar. Mas, de repente, Peg saltou sobre ela.

— Assustaste a minha amiga — queixou-se Pog.

— Desculpa — disse Peg.

— Ela tinha vindo cantar para mim.

— Achas que ela também pode cantar para mim? — perguntou Peg.

— Talvez, mas tens de ficar quieto como uma estátua — disse Pog.

Peg tentou.

— A tua cauda está a mexer — sussurrou Pog.

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— Desculpa — disse Peg.

Finalmente, o passarinho aproximou-se.

— Não te mexas! — murmurou Pog.

A ave começou a cantar.

— Que som maravilhoso — suspirou Peg.

Aproximaram-se mais alguns pássaros e, em breve, Pog e Peg esta-


vam rodeados de melodias esplêndidas.

— Nunca mais vamos caçar passarinhos — decidiu Pog.

— Nunca — concordou Peg.

— Só caçaremos ratos!

(Jane Simmons)

53
Uma Mãe Como o Vento

O coelhinho Luís tem um amigo verdadeiro. É o Coelho Lucas.

Na escola, Luís e Lucas estão sempre ao lado um do outro e visitam-


-se um ao outro, às quartas-feiras, dia em que não têm aulas de tarde.

O Luís gosta muito de conversar com o Lucas. Sobretudo porque Luís


conhece toda a espécie de palavras. E quando tem alguma coisa para dizer,
não tem problema nenhum.

Quando brincam na toca, se Lucas quer deitar abaixo o seus castelos


de nozes, então o Luís diz-lhe as-palavras-para-não-deixar-que-o-ofendam:

— Se estragares o meu castelo, eu esmago o teu túnel!

Na escola, quando Lucas fica todo vaidoso por ter desenhado uma
raposa, que nem sequer tem o focinho aguçado, o Luís não hesita e diz-lhe
as-palavras-quatro-verdades:

— O teu desenho é muito feio. As raposas não são assim.

Às vezes, discutem. E o Luís diz ao Lucas as-palavras-de-cólera, os


palavrões, aquelas palavras que saem da boca muito depressa.

Chama-lhe doninha-velha, cogumelo bolorento, coruja cabeluda!

Uma vez, o Luís e o Lucas puxaram os bigodes um ao outro e quase


arrancavam os rabos! Estavam muito zangados!

Então, o Luís soube dizer ao Lucas as-palavras-que-fazem-esquecer-


-tudo, aquelas que conseguem consertar tudo. Disse-lhe:

— Desculpa, Lucas!

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E fizeram as pazes.

Mas naquela manhã, Luís não diz nada. Não fala com Lucas porque
Lucas não está. O lugar ao lado do Luís está vazio. Lucas não veio às aulas.

Luís sabe porque é que Lucas não está. Há já muito tempo que a mãe
de Lucas estava doente. O doutor Coelho tentou tudo mas não foi capaz de
a curar e a mãe do Coelho Lucas morreu naquela noite.

Esta manhã, o Coelho Lucas foi ao enterro da mãe com todos os


coelhos da família; e com o seu terrível desgosto. É por isso que não veio à
escola.

Na sala, a professora manda o Luís arrumar os carros feitos com ce-


nouras, mas ele não ouve. Está a pensar no Lucas e na mãe.

Recorda que ela fazia bolos de avelãs de propósito para ele, quando ia
brincar com Lucas a casa dele.

No recreio, o Coelho Leão conta ao Luís uma história nova e engraça-


da de Totó, o Zigoto, mas o Luís não se ri. Pensa no Lucas e na mãe.

Lembra-se da sua voz quando fazia palhaçadas. Lembra-se da sua


voz, no dia em que ficou furiosa porque o Lucas e o Luís se tinham disfar-
çado de coelhos piratas com os lenços dela. Lembra-se também de que, às
vezes, estava tão ocupada, que o Luís não a via, mas ouvia-a a cantar.

Luís regressa a casa. Começou a nevar e todos os coelhos, todos, es-


tavam maravilhados. Gritam, rebolam-se, atiram mãos-cheias de neve uns
aos outros. Mas o Luís, não. A neve é leve, e o seu coração está tão pesado
de desgosto que nem ela lhe faz bem.

Sofre pelo seu amigo Lucas. Luís gostava muito da mãe do Lucas.

Olha para a neve que cai. Acha que é magia, aquela neve a vir do céu,
uma verdadeira arte de magia.

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Luís queria tanto que um mágico também fizesse magia para a mãe
de Lucas…

Luís está deitado na cama. A mãe vem dar-lhe um beijo e diz-lhe:

— Vejo que estás triste pelo Lucas e pela mãe. Fala comigo, meu Co-
elhinho querido.

Mas as palavras ficam entaladas na garganta do Luís e magoam tanto,


que o Luís desata a chorar.

Então é a mãe que fala com carinho e diz ao Luís palavras misteriosas:

— Sabes, Luís, uma mãe coelho não abandona assim o seu coelhinho.

E depois diz também palavras de sabedoria:

— Antes por vezes o Lucas estava na escola e a mãe em casa. Eles não
se viam, não podiam tocar-se. No entanto, isso não impedia que gostassem
um do outro.

Termina, dizendo palavras que nunca mais se esquecem:

— Sabes, a mãe do Lucas não se vê, mas não é por isso que ela deixa
de estar presente…

E dá-lhe um grande beijo, um beijo quente, que fica muito tempo na


sua face fofa de coelho.

Luís diz para si que, quando se está triste, faz bem um beijo verdadei-
ro. Ele gostava de poder emprestar a sua mãe ao Lucas para ele ter menos
desgosto, mas claro que não seria a mesma coisa.

Então, adormece a pensar que, amanhã, o Lucas vai estar na escola. E


ele, como seu amigo que é, vai falar com ele. Vai dizer-lhe palavras-que-fa-
56
zem-bem, palavras para curar o seu desgosto.

Naquela manhã, Lucas volta para a escola. Senta-se ao lado do Luís.


E, no coração do Luís, há toda uma montanha de palavras que se atropelam
umas às outras. “Já chegaste, estás aqui, tive saudades tuas, ontem pensei
todo o dia em ti e na tua mãe.” Mas o Luís gagueja, começa a tremer, não se
atreve a dizer palavras como estas. Então, diz as-palavras-para-falar-de-ou-
tra-coisa: conta uma história de Totó, o Zigoto, e outra, e outra…

Fala alto, faz-se engraçado. E quando já não tem mais histórias para
contar, pára. O Luís não sabe o que dizer. E durante todo o dia, procura, pro-
cura palavras para fazer bem ao seu amigo. Palavras para curar o seu desgos-
to. Ficam ao lado um do outro, o Luís e o Lucas, mas não falam. E depois, à
tarde, no meio da neve, não vão pelo caminho do costume, por aquele onde
há barulho e gritos. Não estão com muita vontade. Seguem um caminho
silencioso. E é ali, no silêncio do Inverno, que ouvem o vento, o vento que
sopra suavemente nas árvores. O vento acaricia-lhes as faces e é ele que
sugere uma boa ideia ao Luís. Então, o Luís fala ao Lucas e diz-lhe:

— O vento faz-me pensar na tua mãe.

Lucas fixa-o com um olhar tão triste, que Luís continua:

— O vento, sabes, é como a tua mãe. Às vezes canta, outras vezes está
zangado. Outras vezes também, é meigo. A tua mãe, agora, é como o vento.
Não a vemos, mas sentimos que ela está aqui.

O Luís e o Lucas ficaram amigos. Para toda a vida. E que palavras eles
disseram um ao outro! Palavras bonitas, palavras fortes, palavras divertidas.
Mas as palavras do Luís, essas, Lucas nunca as esqueceu.

Luís e Lucas são amigos.

E se vocês soubessem como eles gostam quando ouvem o vento rir!

(Agnès Bertron)

57
O Ratinho das Amoras

O Ratinho vivia na sua casinha no campo.

Gostava muito dela porque era quente e aconchegada e tinha o ta-


manho ideal para um ratinho.

Mas, do que gostava mais nela, era o enorme arbusto de amoras que
tinha no jardim, e que todos os anos dava uma colheita abundante de belos
frutos maduros e sumarentos.

Certo Verão, as amoras do Ratinho ainda eram maiores e mais suma-


rentas do que habitualmente. Começou a colhê-las e já estava transpirado e
cansado quando o Pardal apareceu.

— Que belas amoras! Posso comer algumas? — chilreou o Pardal.

— São todas minhas — respondeu o Ratinho. — Vai-te embora.

— Não precisas de falar assim — disse o passarinho voando para lon-


ge.

As patas do Ratinho já lhe doíam devido ao trabalho, quando reparou


no Esquilo encostado ao portão.

— Dás-me algumas dessas amoras suculentas? — perguntou o Esqui-


lo.

— Se tas der, ficarei com menos para mim — replicou o ratinho.

Assim o Esquilo foi embora de mãos a abanar.

Tinha o Ratinho parado para descansar das suas tarefas, quando a


Coelha apareceu aos saltos.

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— Essas amoras têm um aspecto apetitosíssimo — disse ela.

— E são – respondeu o Ratinho. — E vou comê-las todinhas.

— Então é mais que certo que vais ficar doente — respondeu a Coe-
lha, virando-lhe as costas.

O sol estava muito quente e o Ratinho estava a ficar estafado.

Daí a pouco começou a cabecear de sono. Não reparara que havia


alguém a espiá-lo.

Era o Senhor Raposo…

Quando viu que o Ratinho estava a dormir, esgueirou-se pelo portão


e avançou devagarinho até conseguir chegar perto do cesto das amoras. Já
se afastava quando CRAC ! Pisou um ramo seco.

O Ratinho acordou sobressaltado.

— Essas amoras são minhas — guinchou ele.

— Experimenta tirar-mas — riu-se o Senhor Raposo. — Vão ser-me


bem úteis hoje ao chá.

O Ratinho não se surpreendeu por nenhum dos seus amigos o ter


avisado de que o Raposo andava por fora naquele dia.

— Afinal — pensou — porque é que haviam de me ajudar, se eu não


quis partilhar as minhas amoras com eles?

Então aconteceu uma coisa muito estranha. Uma bolota acertou na


cabeça do Raposo!

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PIMBA! E mais outra, PIMBA!

E outra e outra e mais outra. PIMBA! PIMBA! PIMBA!

O Raposo largou o cesto das amoras e fugiu a sete pés!

O Ratinho olhou para cima para ver de onde tinham vindo as bolotas.
E quem acham vocês que ele viu no alto do velho carvalho?

Viu o Esquilo e o Pardal e a Coelha.

— Não podíamos deixar o senhor Raposo roubar as tuas amoras —


disse o Esquilo.

— Apesar de não teres querido dividi-las connosco — acrescentou o


Pardal.

O Ratinho sentiu-se muito envergonhado. Depois teve uma ideia…

Nessa tarde convidou todos os amigos para a festa das amoras. Tra-
balhou todo o dia a prepará-la.

Havia sumo de amora, compota de amora, geleia de amora, torta de


amora e muitos outros doces de amora.

Os outros animais disseram que estava tudo delicioso.

— Afinal — disse Ratinho — talvez as amoras saibam melhor quando


as partilhamos.

(Matthew Grimsdale)

60
A Menina Por Detrás da Janela

Era uma vez, num país cinzento e frio, um Rei que adorava uma me-
nina.

A menina era tão bonita que o Rei se apaixonara por ela. Como a que-
ria sempre junto de si, lançou-lhe um feitiço e transformou-a em boneca.
Oferecia-lhe colares e travessões em veludo para os cabelos e, todas as noi-
tes, passava longas horas com ela. Deitava-a a seu lado e acariciava-a com
tanta paixão que a boneca quase asfixiava.

Quando o dia despontava, o Rei partia e a boneca ficava sozinha. A


porta do quarto não estava fechada. A boneca podia sair e fugir mas, como
achava que o Rei ficaria desgostoso, não ousava fazê-lo. As suas pernas de
algodão não a deixavam andar e, como não tinha boca, tinha medo de per-
der-se e de não conseguir perguntar o caminho.

Então, quando o Rei se ia embora, ela ficava sentada à janela, com a


cara apoiada contra o vidro frio, a olhar para a rua com tristeza. Foi assim
que os seus lábios acabaram por desaparecer. Primeiro tornaram-se trans-
parentes, como o vidro em que se apoiavam, e depois evaporaram-se, apa-
gando-se completamente.

Os seus dias decorriam intermináveis e tristes.

Uma vez descobriu um rapazinho que brincava num jardim. Quem


lhe dera ir ter com ele! Mas como podia ela chamá-lo se não tinha boca?

Com o coração pesado, passou os dias seguintes a espiar o novo vizi-


nho, escondida por detrás da cortina. À noite, o Rei, alarmado com a tristeza
da boneca, abraçava-a ainda com mais ternura, esforçando-se por expulsar
o desgosto que lhe petrificava as longas pestanas e ensombrava os olhos.
Às vezes, abraçava-a com tanta força que ela sentia-se profundamente as-
sustada.

Certo dia, o rapaz, sentindo-se observado, escalou a varanda e cha-


mou pela boneca. No início, a estranha menina por detrás das cortinas re-
cusou mostrar-se. Mas ele fez de conta que se ia embora e ela, julgando que
o visitante se tinha afastado, abriu a janela com os olhos cheios de inquieta-

61
ção. Embora muda, tentou mimar a sua história. O rapaz não compreendeu
tudo, mas adivinhou o sofrimento e compreendeu o seu pedido mais insis-
tente: a boneca queria uma boca. Como iria ele encontrar tal coisa?

Felizmente que a mãe do rapaz era uma fada. Juntos, percorreram


os jardins ainda adormecidos pelo inverno, e descobriram, no cantinho de
um muro, duas violetas ainda mal entreabertas. O menino colheu-as com
delicadeza e a mãe colocou os dois botões na pele branca da boneca, um
por cima do outro.

A boneca abriu logo os lábios azulados e gaguejou, numa vozinha


trémula:

— Por favor, as minhas pernas são de algodão e são tão frágeis que
gostaria de ter umas bem mais fortes para correr!

Com um ramo de bétula, mãe e filho fizeram-lhe um par de pernas


novas. Fininhas mas sólidas.

A boneca brincou o dia todo com o amigo. Quando anoiteceu, este


regressou a casa. A boneca não conseguia decidir se voltava ou não para
casa do Rei. A verdade é que não queria mais lá voltar…

Nesse dia, como de costume, o Rei regressou a casa ao fim da tarde


e procurou a boneca por todo o lado. Enquanto a procurava, a sua sombra
enorme ia deixando, nas cortinas, reflexos de garras assustadores… Escondi-
da atrás de uma sebe, a boneca tremia. O desespero roía-lhe o coração, mas
o medo impedia-a de empurrar a porta e de ter de aguentar as mãos do Rei
no seu corpo, os seus beijos e as suas censuras.

 Cheia de frio e sem saber para onde ir, aninhou-se contra a casca
mirrada e grosseira de um velho carvalho. Tentou dormir, semicoberta por
um tapete de folhas mortas. Decerto iria morrer ali! O vento lançava os seus
dedos gélidos sobre ela e entrava-lhe na pele como se fossem agulhas de
neve, que a matariam antes do dia raiar.

De repente, uma mão acariciou-lhe o rosto. Alguém a levantou e a


boneca sentiu-se voar numa nuvem. Começou a cair docemente e aterrou
num oceano de plumas, numa cama, debaixo de um edredão maravilhosa-
mente quente, que cheirava a lírios e a lavanda.
62
Acordou de manhã, com a mão quente e suave da fada a afagar-lhe
os cabelos, e deixou-se ficar em casa dela.

Mal o céu se tingiu de negro e as estrelas começaram a cintilar, a


fada aguardou o regresso do Rei. Quando este chegou a casa, sentou-se
num banco do fundo do jardim, onde permaneceu horas a fio, petrificado
e soterrado por um manto de gelo. A fada tentou ir ao seu encontro. O Rei,
porém, fugiu, escondendo a cara. Foi então que ela viu que também ele não
tinha boca.

No dia seguinte, quando o Rei se sentou de novo no banco, a bone-


ca dirigiu-se lentamente para ele. Ouvia o seu coração a bater com força
e a voz da fada que a encorajava. Com o corpinho a tremer, estendeu ao
homem dois botões de flores: um de hipericão e outro de ipomeia. Depois,
cheia de medo, correu a refugiar-se atrás de um maciço de peónias. O Rei,
surpreendido, deixou que a fada colocasse as pétalas no lugar da sua boca
ausente. Fez-se um grande silêncio e, depois, ouviu-se um suspiro de vento
como os que anunciam a chuva.

O Rei começara a sussurrar e a contar a sua história. Falou durante


toda a noite. A fada escutou-o, as árvores escutaram-no, os rouxinóis man-
tiveram-se em silêncio. E nem as corujas caçaram nessa noite. Ao nascer
do dia, o Rei calou-se. Uma lágrima deslizou-lhe pela face; a fada recolheu-
-a com a ponta do dedo e deixou-a cair sobre a boneca adormecida. Esta
transformou-se imediatamente numa menina. Começou a tocar nos braços
rosados e nas pernas, sem acreditar que os tinha de verdade. Depois levan-
tou-se e pôs-se a dançar!

Sem fazer barulho, o sol limpou as nuvens e enrolou-as num canti-


nho do horizonte. Esticou um raio todo emaranhado e fez cócegas nos na-
rizes dos que ainda dormiam.

O Rei foi castigado. Perdeu o reino e a coroa. Teve de partir para as


paragens desoladas do Grande Norte a fim de conseguir obter um Perdão.
Antes de partir, o Rei, que se tinha transformado num homem como os ou-
tros, beijou uma senhora na soleira da porta de casa. A menina achou que
a senhora era a fada, mas o amiguinho chamou-a para brincar e ela correu
para ele.

(Joly Gut)

63
A Menina Que Deixou de Sorrir

Chamo-me Lisa. A minha melhor amiga é a Paulina. Ela sabe todos os meus
segredos. Menos um. Um segredo horrível que não posso contar a ninguém.

Divido este segredo com um adulto. Ele vê muitas vezes televisão comigo. Quer
ser sempre ele a dar-me banho. Compra-me bombons, brinquedos, e dá-me dinheiro
para eu ficar calada. Esse adulto não se cansa de repetir que, se a minha mãe souber do
nosso segredo, vai deixar de gostar de mim e vai dizer que sou uma mentirosa e que
depois eu vou para a cadeia.

Por isso, não digo nada. Já quase não falo. Já não rio, já não sorrio (deixei de rir,
deixei de sorrir?). A minha mãe pergunta-me muitas vezes:

— Está tudo bem, Lisa?

Eu não respondo. Tenho medo que o meu horrível segredo saia da minha boca.
Baixo a cabeça e aperto os dentes com força. O segredo invade o meu corpo todo.
Tapa-me os ouvidos, já não oiço música. Turva-me os olhos, já não leio os meus livros.
Enche-me o coração, já não brinco a nada.

Todas as noites tenho pesadelos horríveis e acordo a suar. Tenho vontade de


me atirar para o passeio e de me partir como uma boneca de porcelana. Sinto-me tão
suja por dentro, que passo horas e horas debaixo do chuveiro. Queria mudar de pele
como se muda de roupa. Gostava de me tornar novamente bonita e limpa. Gostava de
sorrir como antes… como antes…

Os dias e as semanas passam. As minhas notas descem. E, para esquecer, corro.


Corro no parque, no passeio, nos corredores da escola… Mas não posso fugir para lado
nenhum. O segredo agarra-se a mim.

Na escola, ouço a voz da professora Marta. E não consigo concentrar-me. Num


pedaço de papel, desenho uma menina a correr, perseguida por um homem grande.
Numa outra folha, rabisco uma menina a gritar, mas não se ouve, não passa de um de-
senho. A sineta toca para o recreio. Deixo tudo e fujo lá para fora. A Paulina joga à bola
com alguns colegas. E eu sento-me na areia e garatujo uma menina…

A professora Marta vem sentar-se ao meu lado.

— A menina do teu desenho está a fazer o quê, Lisa?

64
— Ela… ela está a fugir…

— Sabes a história dessa menina? — pergunta a professora Marta.

— Sim… Ela acorda de noite com o ranger do soalho.

Com um pontapé, apago a menina. Com a mão a tremer, desenho um homem


grande.

— E quem é este senhor?

— É o novo namorado da mamã… Ele levanta-se muitas vezes de noite… Apro-


xima-se do quarto da menina… o chão estala… estala… estala… A menina esconde-se
no fundo da cama… Mesmo tapando as orelhas, ela consegue ouvir os passos a aproxi-
marem-se…

Tenho tanto medo que as palavras recusem sair da minha boca. Mas a professo-
ra Marta pergunta ainda:

— E o que acontece depois à menina?

A minha mão desenha uma cama grande.

— O senhor aproxima-se como um ladrão. Deita-se ao lado da menina… E to-


das as vezes ela chora. Ela tenta pensar noutra coisa: num céu de Verão, num campo de
flores… mas tudo fica preto.

Falei demasiado. Fujo para a outra ponta do recreio e atiro-me contra a grade.
Queria desaparecer. A professora Marta vem ter comigo.

— Lisa, conheces a menina da tua história?

Respondo-lhe com um pequenino “sim” hesitante.

— Estou neste momento a segurar-lhe a mão?

Não respondo. Desato aos soluços. A professora Marta debruça-se sobre mim e
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aperta-me nos braços. As lágrimas correm-me pela cara.

— A mamã vai continuar a gostar de mim? — pergunto entre duas fungadelas.

— Claro que sim. Vamos explicar-lhe tudo.

— E vou ser sempre infeliz?

— Não, Lisa. Dentro de ti (no teu coração) há um sol que ninguém consegue
roubar.

— E vou para a cadeia?

— Claro que não. Não tens culpa de nada.

Repito para mim: não tenho culpa de nada… não tenho culpa de nada… não
tenho culpa de nada.

A professora Marta limpa-me as lágrimas. Agora que já partilhei o meu segredo,


dir-se-ia que ele se partiu em dois. Vou finalmente poder contá-lo à mamã. E talvez à
Paulina.

Vou falar, vou falar, vou falar, até que se parta em mil pedacinhos.(Escrito
por Merari Tavares)

66
O Gato das Botas

Era uma vez um velho lenhador que tinha três filhos. Meses antes de
morrer, reuniu em sua pequena sala os seus herdeiros e dividiu os seus bens
com cada um deles.

O primeiro herdou uma madeireira; o segundo, um cavalo; e o tercei-


ro, um gato.

Os dois primeiros filhos ficaram muito felizes com a herança. Porém,


o rapaz que herdou o gato andava triste e pensativo.

— De que me vale este bicho? É apenas um gato! Um gato! – falou o


jovem.

— Compre-me um lindo par de botas, um belo chapéu e um simples


saco! Você verá do que sou capaz de fazer! – disse uma voz misteriosa.

O rapaz levou um grande susto, quando se deu conta de que seu gato
havia acabado de falar.

— Ai, meu Deus! Será que estou sonhando?

— Não, meu amo! Isso é real! Confie em mim! Eu ainda o farei o ho-
mem mais rico do mundo!

Ao ouvir aquelas palavras, como não tinha muito que perder, o jovem
resolveu atender ao pedido do seu animal e lhe comprou as botas, o chapéu
e o saco, conforme pedido, e lhes entregou. Cuidadosamente, o gato calçou
as botas, colocou o saco nas costas e pôs o chapéu na cabeça. Agora, ele
não era mais um animal qualquer. Ele havia se tornado o Gato de Botas.

— Agora, se me der licença, vou colocar meu plano em prática – disse


o Gato de Botas.

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Muito astuto, o bichano foi até um bosque ali perto e armou uma ar-
madilha com o saco que ganhou de seu amo. Minutos depois, havia caçado
um coelho branco.

O gato foi então até as portas do castelo da cidade de Kent e dirigiu-


-se aos guardas, pedindo permissão para falar com o rei. Os guardas, que
ficaram muito impressionados por ver um gato vestindo botas, aceitaram o
seu pedido. Na presença do rei, o Gato de Botas disse:

– Vossa majestade, o Marquês de Carabrás manda os seus cumpri-


mentos e lhe oferece esse belo coelho selvagem.

O rei, que gostava muito de coelho assado, aceitou.

No dia seguinte, o gato presenteou o rei mais uma vez, levando dessa
vez um trio de codornas, também oferecidos em nome de seu amo.

No terceiro dia, o gato ofereceu uma delicioso par de perdizes.

O rei ficou muito agradecido pelos presentes recebidos. Sendo assim,


pediu para que preparassem sua carruagem e, acompanhado de sua filha, a
princesa, saiu à procura da casa do Marquês de Carabrás.

Avistando a carruagem real se aproximar, o gato ordenou ao seu amo


que fosse com ele até o lago, pois ele tinha uma ideia em mente.

— O que você vai fazer? – perguntou o jovem.

— Confie em mim! Vai dar tudo certo! – tranquilizou o gato.

Assim que a carruagem do rei chegou, o gato gritou:

— Socorro, socorro! Os ladrões roubaram as roupas de meu amo!

Imediatamente, o rei ordenou que seus servos voltassem ao castelo


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e trouxessem roupas novas, das mais nobres, para o rapaz. Quando os seus
servos retornaram com as roupas em mãos, o rapaz foi vestido por eles e,
então, convidado para subir na carruagem. Em seguida, seguiram viagem
rumo ao castelo.

Enquanto isso, rapidamente, o gato corria bem à frente da carruagem


real e, durante o trajeto, encontrou alguns lavradores trabalhando na terra.
Ele não perdeu a oportunidade e ordenou:

— Se alguém passar por aqui e perguntar de quem são essas terras,


digam que elas pertencem ao Marquês de Carabrás! Se vocês não me obe-
decerem, vocês serão punidos pelo rei!

Mais adiante, o gato encontrou outros lavradores e ordenou:

— Se não disserem para todos que passarem aqui que esse canavial é
do Marquês de Carabrás, suas terras serão tomadas pelo rei!

Na curva seguinte, o gato ordenou a outros lavradores:

— Se vocês não disserem que esse cafezal é do Marquês de Carabrás,


o café de vocês será queimado!

E assim, a cada resposta que o rei recebia das pessoas que ele conver-
sava e perguntava sobre as terras, mais ele ficava impressionado.

Muito sábio e habilidoso, o bichano chegou a um palácio das terras


vizinhas, onde vivia um feiticeiro tirano, dono das terras.

— Olá, grande feiticeiro! – cumprimentou o gato.

— Fale logo o que tem a dizer ou saia daqui – respondeu o feiticeiro


mal-educado.

— Venho porque muitos falam que você é capaz de se transformar no


que quiser. Isso é verdade? – questionou o gato astuto.
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— Sim, sei me transformar até em um leão!

— Hum... – disse o gato pensativo. — Transformar-se em um animal


muito grande não me parece tão difícil assim. Quero ver você se transformar
em um animal pequenininho, como por exemplo, um rato!

— Você está duvidando das minhas habilidades? – questionou o feiti-


ceiro, que imediatamente se transformou em um rato, provando do que ele
era capaz.

Num impulso felino, o gato avançou sobre o pequeno rato e o devo-


rou de uma vez só. Sendo assim, o seu amo, o Marques de Carabrás se tor-
nou o grande dono de todas as terras. Não somente das terras, mas também
do belíssimo palácio.

Como prometido, o Gato de Botas fez de seu amo o verdadeiro Mar-


ques de Carabrás, tornando-o o homem mais rico do mundo. Para comple-
tar a felicidade do rapaz, o rei concedeu a mão da princesa, sua filha, ao filho
do falecido lenhador.

O casamento foi realizado ao ar livre, numa festa linda, no lindo cas-


telo real, à luz de velas, acompanhado de uma bela orquestra, regida pelo
mais famoso maestro do reino. Todos os lavradores foram convidados e fi-
caram muito honrados com o convite.

Anos depois de casados, o grande Marques de Carabrás e sua lin-


da princesa tiveram um lindo filhinho, o Juninho, que até hoje corre pelos
corredores do palácio, brincando de esconde-esconde com o seu grande
amigo, o Gato de Botas!

(Gilles Tibo)

70
A Cadeira Que Quis Ser Trono

Esta cadeira não tinha os pés bem assentes no chão. Era uma cadeira
um pouco desequilibrada, como vão apreciar.

Nada a distinguia de milhares de outras cadeiras modestas, tosca-


mente pintadas, para enganar o caruncho. Tinha quatro pernas, assento de
bom tamanho e umas costas muito direitas, que a faziam parecer senhora
espartilhada e altiva. Esquecida a um canto da casa, infeliz com o seu desti-
no de cadeira vulgar, suspirava todo o santo dia:

— Por mais que queira, não me conformo. Puseram-me para aqui,


nesta casa insignificante, quando podia estar em lugar de destaque, num
salão de luxo. Triste sina.

Os bancos, muito amigos da galhofa, riam-se destas falas. Um deles,


um velho mocho de sapateiro, dizia-lhe assim:

— Naturalmente, queria ser trono, não?

— Para trono faltam-lhe os braços — notava um banco de cozinha.

— E falta-lhe a madeira… — acrescentava um outro. — Onde é que já


se viu um trono de pinho?

Os bancos voltavam a rir-se, de frente para a cadeira, que nem as


costas lhes podia voltar.

— Deixem a pequena em paz — aconselhava a mesa que era muito


boazinha. — Tem as suas fraquezas, que querem? Se lhe pusessem um calço
por baixo de um dos pés, talvez lhe passasse o desequilíbrio. O mal foi te-
rem-na feito com madeira ainda verde.

— A senhora mesa está sempre pronta a desculpá-la — dizia o mocho.

71
— É que eu também tive ambições, quando era nova. Quis ser mesa
de banquetes, imaginem! Só me via vestida com uma grande toalha de linho
e rendas, enfeitada de castiçais de prata, coberta de travessas finas e talhe-
res reluzentes… Sonhei com este banquete mil vezes, mas nunca me deram
nenhum.

Os bancos ficaram calados. Falando-se em coisas sérias, os bancos


não sabiam o que dizer.

— Mas não me sinto infeliz — continuou a mesa. — Aqui os talheres


são foscos e os pratos, rachados. Quase nunca me cobrem com toalha, mas
as mãos das pessoas passam sobre mim e fazem-me festas. Os cotovelos
apoiam-se ao meu tampo. Os dedos batem-me ao de leve, enquanto espe-
ram pela terrina da sopa e pelo pão, acabadinho de sair do forno. Sei que as
pessoas matam a fome e a sede à minha volta, sei que gostam de mim e não
me dispensam. Vale a pena ser mesa.

“Aquela contenta-se com pouco”, pensava a cadeira, empertigando-


-se ainda mais nas suas quatro pernas fraquinhas.

Um dia, passou por ali um vistoso cortejo de cavaleiros. Era o rei que
ia à caça, em companhia dos seus fidalgos. O séquito atravessou a galope
a única rua da aldeia. As mulheres, os homens e as crianças, que nunca ti-
nham visto cavalos tão bonitos nem cavaleiros tão bem vestidos, vieram às
janelas e disseram adeus com lenços.

Na casa desta história, não se falou noutra coisa, durante o resto do


dia. A cadeirinha, essa, só suspirava de si para si: “Ah, se o rei me levasse…!”

Voltaram a passar pela aldeia, ao fim da tarde, os cavaleiros. Traziam


caça grossa: javalis, raposas e veados, atravessados nos cavalos. E vinham
cansados os cavaleiros. De todos, o mais amolentado era o rei. Gordo, muito
gordo, o rei estava farto de correrias, caçadas e solavancos. O que queria era
repouso.

Das portas abertas das casas vinha um cheirinho apetitoso a pão de-
senfornado. Sua Majestade tentou-se pelo cheiro e, fazendo um gesto, man-
dou parar a comitiva. O estribeiro-mor ajudou-o a descer do cavalo, o que

72
ainda foi difícil, e amparou-o até à soleira de uma porta, precisamente a
porta da casa onde se passa esta história.

O casal de velhinhos que lá vivia assarapantou-se com a visita. Ser-


vir-lhe um pão saído do forno, barrado com manteiga fresquinha, não exigia
grandes conhecimentos de etiqueta, mas onde sentar tão ilustre visitante?

— Traz a cadeira, mulher. Depressa! — gritou o camponês.

Era a única cadeira da casa, a tal de que temos falado. Finalmente, ia


provar aos bancos trocistas que uma cadeira, mesmo de pinho, sabe servir
com fidalguia os grandes da terra e amparar-lhes o peso do poder. Eles que
a vissem, frágil cadeirinha, fazer as vezes de um trono, pois então!

Podíamos acabar aqui a história, que acabávamos bem. Mas há con-


tratempos…

Os camponeses chegaram a cadeira a Sua Majestade, que se refas-


telou. Fosse do inesperado peso ou da emoção, a pobrezinha gemeu… ge-
meu… e, não se segurando nas pernas, desconjuntou-se toda, com o rei em
cima.

Catrapumba! Cai o rei no meio do chão, alarma-se o séquito, assus-


tam-se os camponeses e, dentro de casa, quase se desmancham a rir os
bancos e os banquinhos.

Amolgado e muito dorido, o rei lá se levantou:

— Coitados, a culpa não foi deles — disse o rei, referindo-se aos velhi-
nhos. — Dêem-lhes dinheiro para uma cadeira nova. Ai!

Foi-se embora o séquito real. A cadeira, triste monte de tábuas carun-


chosas, ficou onde se tinha partido. Lenha para o forno, não tarda…

(António Torrado)

73
A Maçã Verde

Este é o meu segundo dia na minha nova escola, no meu novo país.

Hoje não vai haver aulas porque vamos para o exterior. Mas os outros
dias não serão como este. Amanhã voltarei para a aula em que irei aprender
a falar Inglês.

As mães conduzem-nos para um atrelado cheio de feno. Subimos e


encostamo-nos aos fardos de feno. O carro é puxado por um trator e todos
somos sacudidos de um lado para o outro.

Acho estranho haver rapazes e raparigas sentados, juntos. No meu


país não era assim.

Os alunos conhecem-se uns aos outros, mas não me conhecem a


mim e eu não os conheço a eles. Quando falam não consigo percebê-los, e
eu não posso ainda falar com eles. Alguns são amigáveis. Mas outros olham
friamente para mim e sorriem, desdenhosos.

Ouço o meu país ser mencionado, não de forma afetuosa. Preferia ir


para casa.

O meu pai tinha-me explicado que aqui nem sempre éramos bem-
-recebidos.

— O nosso país de origem e o nosso novo país têm tido dificuldade


em entender-se — disse ele. — Mas, a seu tempo, tudo aqui será bom para
nós!

Quanto tempo, pergunto-me eu…

Eu também sou diferente.

As minhas calças de ganga e a minha T-shirt parecem iguais às dos

74
meus colegas, mas a minha “dupatta” (écharpe comprida e larga) cobre a
minha cabeça e os meus ombros. E eu não tenho visto mais ninguém usar
“dupatta”, embora no meu país todas as raparigas e mulheres a usem.

A rapariga que está sentada junto a mim sorri e aponta para si mesma.

— Ana — diz ela. Depois, aponta para mim. — Farah!

Eu digo que sim com a cabeça e repito:

— Farah — que é o meu nome.

Depois olho para o imenso campo onde pastam as vacas.

Sinto-me sufocada dentro de mim mesma.

Há três cães que surgem e que correm à nossa frente. Penso que
pertencem aqui e que sabem o caminho. Uma vez tive um cão chamado
Haddis.

Paramos num sítio onde crescem macieiras. Descubro que estamos


aqui para colher fruta. Há velhas árvores que caíram por terra. Os três cães
estão a roê-las, crunch, crunch, crunch. E os seus rangidos soam como os
de Haddis.

A nossa professora junta-nos à sua volta. Fala para a turma. Depois,


olha para mim de um modo carinhoso.

— Uma — diz ela. Toca numa maçã, depois colhe-a.

— Uma — diz ela outra vez.

Sei que devo apanhar apenas uma, como fizeram os outros alunos.
Eu digo que sim.

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Queria tanto dizer-lhe:

— Compreendo. Não é que eu seja estúpida. Apenas me sinto perdida


neste novo lugar.

Mas não sei como.

Afastei-me dos restantes colegas. Junto a mim está uma árvore, mais
pequena do que as outras, que não parece enquadrar-se. É pequena e está
sozinha, como eu. Algumas maçãs totalmente verdes pendem nos seus ra-
mos. Colho uma. Cabe perfeitamente na minha mão.

Em seguida, seguramos todos nas nossas maçãs e corremos e des-


lizamos pela colina abaixo. Os cães correm à nossa frente. As orelhas deles
voam para trás, com o interior virado para fora, cor-de-rosa e brilhando ao
sol.

No sopé da colina está uma pequena casa torta, feita de madeira.


Pergunto-me se uma vaca vive nela, ou um bode. Talvez seja a casa de um
pastor. Dentro da casa há uma máquina de madeira com um manípulo de
metal. Não vejo nenhuma vaca ou bode, nem sequer um pastor.

A nossa professora alinha-nos. Um a um lá deixamos cair as nossas


maçãs dentro da máquina. Vou ser a última a largar a minha pequena maçã
verde.

A professora parece que vai falar. Depois, encolhe os ombros e sorri.


Um rapaz grita:

— Ei!

Dirige-se para mim, como se fosse impedir-me de meter a minha pe-


quena maçã verde na máquina. Mas chega atrasado. Ela já lá está.

Dentro da máquina existem lâminas que picam as maçãs, ca-chunk,


ca-chunk, ca-chunk.

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Os meus colegas começam a empurrar o manípulo. As maçãs pica-
das são espremidas.

A pele e a polpa ficam no saco enquanto o sumo escorre.

Eu deixo-me ficar para trás, sem ter a certeza se devo estar junto dos
outros. Empurrar o manípulo deve ser difícil. Eles inclinam-se sobre ele e
gemem.

Mas eu sou forte. E dou um passo na direção deles.

A Ana chama por mim e acena-me para ir para junto dela. Um rapaz
abre espaço no manípulo, entre eles. Fico muito contente.

Nós empurramos e empurramos. É difícil, mas estamos a trabalhar


juntos e conseguimos fazê-lo. O sumo cai em gotas drip drip drip.

A nossa professora trouxe copos de papel. Alinhamo-nos outra vez,


enchemo-los e bebemos. Lambemos os nossos lábios. Eu sei que saboreio
a minha maçã especial…

— Cidra de maçã — diz a Ana.

Deve ser o que estamos a beber. E digo uma palavra para mim pró-
pria: Ma-çã.

A outra palavra é muito difícil.

A nossa professora começa a falar. Está a segurar num saco para os


nossos copos e a fazer sinais para nos aprontarmos para ir embora.

Quando subimos, a Ana senta-se junto a mim no atrelado. Do outro


lado está um rapaz.
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— Jim! — diz, e aponta para ele mesmo.

Eu assinto.

— Jim — repito em silêncio.

O feno faz-me cócegas nos braços e faz a Ana espirrar. Cheira a sol
seco.

O Jim afaga o estômago, e um arroto solta-se da sua garganta.

Todos riem. Eu rio, também.

Os risos soam iguais aos de casa. Exatamente os mesmos. Tal como


os espirros, os arrotos e muitas outras coisas. As palavras é que são estra-
nhas. Mas em breve vou conhecer as palavras. E misturar-me-ei com os
meus colegas da mesma forma que a minha maçã se misturou com as de-
mais para fazer cidra. Respiro fundo.

— Ma-çã — digo.

A Ana bate palmas. Eu sorrio … e sorrio … e sorrio.

É a minha primeira palavra fora de mim. Haverá mais. Muitas mais.

(Eve Buntin)

78
A Cor dos Telhados

Manuela não compreendia: na escola diziam-lhe que os telhados das


casas se pintavam de vermelho, mas não era essa a cor que tinham os te-
lhados na sua aldeia. Todos os telhados das casas eram pretos, da cor do
carvão.

Não compreendia por que razão tinha de pintar de verde as folhas


das árvores, quando ela recordava uma grande variedade de tons, do ama-
relo ao castanho, à medida que o Outono ia chegando ao fim.

Não conseguia integrar-se no novo colégio nem na nova turma. Re-


cordava a aldeia, onde tudo era diferente, e bem no fundo do coração de-
sejava muito regressar. A mãe, após a morte do marido na mina, tinha deci-
dido fugir daquele lugar que lhe recordava sofrimento e, por isso, fora viver
com os filhos para a cidade onde morava a irmã.

Aquele era um lugar demasiado grande para Manuela, demasiado


frio, um lugar onde se sentia muito sozinha. Realmente, tinha perdido mui-
to com aquela mudança… No entanto, Manuela não se deu por vencida e
resolveu demonstrar aos seus colegas de turma e à professora que na sua
aldeia os telhados eram pretos da cor do carvão. Por isso, disse-lhes:

— Pintei de preto o telhado da casa, porque na minha aldeia todos os


telhados são dessa cor.

— Manuela, queres dizer aos teus colegas onde fica a tua aldeia?

E ela, timidamente, dirigiu-se ao mapa que estava exposto na parede,


e apontou com o dedo a terra onde nascera.

— E aí todos os telhados são pretos? Conta-nos porquê — pediu a


professora.

— É porque são de ardósia — respondeu ela, enquanto todos os cole-


gas se riam.

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— Vamos lá ver, meninos! Quem sabe o que é a ardósia?

Vários colegas levantaram o braço e, por indicação da professora,


uma disse:

— É o quadro onde se escreve com giz.

— Mais alguém sabe alguma coisa sobre a ardósia? — voltou a profes-


sora a perguntar.

Desta vez ninguém levantou o braço e Manuela explicou que era um


tipo de pedra que se extraía das montanhas, com a qual eram feitas as telhas
que cobriam os telhados das casas.

— Muito bem, Manuela! — disse a professora.

Mas Manuela, ao ver que os colegas punham a língua de fora e faziam


gestos de desprezo, ficou menos contente com a aprovação da professora
do que se esperava. Recordou então a mina onde morrera o pai, a aldeia
onde tinha nascido, a antiga professora, as colegas de escola. Ali, nunca se
tinham rido dela, tinha boas amigas e andava quase sempre alegre.

— Então, Manuela! Vai para a tua mesa e lembra-te que aqui, os telha-
dos são vermelhos, e que é de vermelho que deves pintá-los.

Manuela não compreendia porque tinha de o fazer, mas sentiu que


aquela não era a melhor altura para contrariar a professora.

No recreio ninguém queria jogar com a “ardósia”, o nome que lhe


chamavam pelas costas. E, a partir daquele dia, Manuela passou a andar
sempre sozinha. Observava os pardais e pensava… E, pouco a pouco, come-
çou a pintar de preto não só os telhados, mas também as portas e as janelas
das casas, e começou a pôr trancas quer nos desenhos quer no seu coração.

A mãe estava preocupada, mas achava normal que, enquanto não se


integrasse no novo colégio, a filha se sentisse triste. Os tios não eram muito

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atentos aos filhos e também não se aperceberam da sua tristeza, achando
que ela estava a crescer e que era por isso que já não brincava tanto.

Ainda bem que Manuela aprendera a ler na sua aldeia, porque os li-
vros tinham-se transformado na sua tábua de salvação. Submergia-se nas
aventuras que lia, e sentia, como os protagonistas, tudo o que se passava
com eles. E muitas vezes sorria ao imaginar certas cenas…

— Manuela! Pára de ler que o jantar está na mesa! — dizia a mãe qua-
se todos os dias.

— Já vou, mãe! — respondia ela, mas custava-lhe muito deixar o livro


num momento emocionante.

— Mãe, quando for grande, quero ser escritora — dizia ela.

— Acho muito bem, filha, mas agora come, que já é muito tarde e tens
de deitar-te.

Por vezes, sonhava que tinha muitas amigas a quem lia contos ou
que, montada num grande pássaro dourado, percorria lugares maravilhosos.
Outras vezes, sonhava que falava com os castanheiros da sua aldeia, ou que
era a heroína de uma história fantástica e que salvava muitas pessoas…

Durante muito tempo, mantiveram-se o afastamento e a crueldade


dos colegas de escola, a troça e a indiferença destes até que, finalmente,
chegou o dia da entrega dos prémios do concurso de contos do colégio.

Manuela foi a vencedora. Todos a aplaudiram e, a partir desse dia,


duas ou três colegas da turma começaram a juntar-se à sua volta, no re-
creio, e pediam-lhe:

— Manuela, por favor, conta-nos uma história!

E Manuela lia em voz alta, enquanto as colegas a escutavam atenta-


mente.

81
Pouco a pouco, Manuela começou de novo a pintar com todas as co-
res do seu estojo: telhados pretos e telhados vermelhos, árvores com folhas
verdes e árvores de folhas amarelas, jardins com flores de todas as cores,
janelas brancas com cortinas e casas com chaminé.

(B. I.)

82
A Floresta de Lata

Era uma vez um lugar amplo, varrido pelo vento, perto de nenhures e
quase esquecido, que estava cheio de coisas que ninguém queria.

Mesmo no centro desse lugar, e exposta ao mau tempo, encontrava-


-se uma pequena casa, de janelas igualmente pequenas, com vista para o
lixo que outros haviam feito.

Nessa casa vivia um velho.

Todos os dias, o homem tentava livrar-se do lixo, apartando e esco-


lhendo, queimando e enterrando.

E, todas as noites, o homem sonhava.

Sonhava que vivia numa floresta cheia de animais selvagens, na qual


havia aves coloridas, árvores tropicais, flores exóticas, tucanos, rãs-de-árvo-
re e tigres.

Contudo, sempre que acordava, o mundo que via continuava igual.

Certo dia, algo chamou a sua atenção e uma ideia ganhou forma na
sua cabeça.

Uma ideia que ganhou raízes e que germinou.

Que ganhou folhas, alimentando-se do lixo.

Que ganhou ramos.

Cada vez maiores.

Então, uma floresta inteira emergiu das mãos daquele homem.

Uma floresta feita de lixo.


83
Uma floresta feita de lata.

Não era a floresta dos seus sonhos, mas era, ainda assim, uma floresta.

Um dia, o vento trouxe consigo um pequeno pássaro para a planície


deserta. O homem deitou no chão algumas migalhas que o pássaro logo
comeu, empoleirando-se depois no ramo de uma árvore de lata.

No dia seguinte, a ave partiu, e o velho ficou sozinho a deambular


pelo silêncio, com o coração a doer de vazio.

Nessa mesma noite, ao luar, o homem formulou um desejo…

No outro dia acordou com o canto de pássaros. O seu visitante tinha


voltado e trazia consigo um companheiro. Nos bicos, transportavam semen-
tes, que largaram no solo árido. Em breve, havia rebentos por toda a terra.

O canto dos pássaros misturou-se com o zumbido dos insetos e o


rumorejar da folhagem.

E o tempo foi passando.

E foram surgindo pequenos animais, a rastejar por entre a floresta de


árvores. Apareceram animais selvagens, que deslizavam por entre as som-
bras verdes.

Era uma vez uma floresta, perto de nenhures e quase esquecida, que
agora estava cheia de coisas que todos queriam.

No meio dela, havia uma pequena casa, de janelas igualmente pe-


quenas.

Nessa casa, vivia um velho que nunca tinha deixado de sonhar…

(Helen Ward; Wayne Anderson)

84
O Jardim Curioso

Era uma vez uma cidade sem jardins, sem árvores, sem verde de es-
pécie nenhuma. A maioria das pessoas passavam o tempo dentro de casa.
Como se pode imaginar, era um lugar muito desolado.

No entanto, havia um rapaz que gostava de andar na rua. Mesmo em


dias de chuva, quando toda a gente ficava em casa, o Jorge andava sempre
a chapinhar alegremente pelo bairro.

Foi numa manhã assim que o Jorge fez diversas descobertas surpre-
endentes. Andava a passear ao pé da velha linha férrea, como fazia de tem-
pos a tempos, quando deparou com umas escadas escuras que conduziam
lá acima à linha.

A linha férrea tinha deixado de funcionar havia muito tempo. E como


o Jorge sempre quisera explorar a linha, o curioso rapaz só podia fazer uma
coisa.

O Jorge correu escadas acima, empurrou a porta e saiu lá para fora


para a linha. A primeira coisa que viu foi uma solitária mancha de cor. Plantas
e flores selvagens eram a última coisa que esperava encontrar lá em cima.

Mas quando olhou mais de perto, tornouse claro que as plantas esta-
vam a morrer. Precisavam de um jardineiro.

O Jorge podia não ser um jardineiro, mas sabia que era capaz de aju-
dar. Por isso voltou à linha férrea logo no dia seguinte e pôs-se a trabalhar.

As flores quase se afogaram e ele teve alguns problemas com a poda,


mas as plantas esperaram pacientemente que o Jorge descobrisse maneiras
melhores de jardinar.

À medida que as semanas passavam, o Jorge começou a sentir-se


um jardineiro a sério, e as plantas começaram a sentir-se um jardim a sério.

85
A maioria dos jardins ficam sempre no mesmo sítio. Mas este não era
um jardim vulgar. Com quilómetros de linha férrea pela frente, o jardim co-
meçava a sentir-se irrequieto.

Queria explorar. As resistentes ervas daninhas e os musgos foram os


primeiros a mexer-se. Rebentavam linha fora cada vez mais para diante, e
eram seguidos de perto pelas plantas mais delicadas. Nos meses seguintes,
o Jorge e o jardim curioso exploraram todos os recantos da linha férrea.

Depois de passar a primavera e o verão e o outono com o jardim, o


tempo do Jorge na linha férrea foi finalmente interrompido no inverno.

Pesados mantos de neve cobriram a cidade. E pela primeira vez desde


que se transformara em jardineiro, o Jorge não podia ir visitar as plantas.

Em vez de desperdiçar o tempo a preocupar-se com o jardim, o Jorge


passou o Inverno a preparar-se para a Primavera.

Ao fim de três meses de frio, a neve começou finalmente a derreter.

O Jorge meteu o seu novo material de jardinagem num carrinho de


mão e dirigiu-se a linha férrea.

O inverno tinha sido duro para o jardim. Mas graças ao planeamento


do Jorge, as suas belas ferramentas novas e a uma ajudinha do Sol, as plan-
tas não tardaram a acordar do seu sono invernal.

O jardim sempre quisera explorar o resto da cidade, e nessa primavera


estava finalmente pronto para iniciar a caminhada.

Mais uma vez, as resistentes ervas daninhas e os musgos foram os


primeiros. Rebentaram cada vez mais afastados da linha férrea, e foram se-
guidos de perto pelas plantas mais delicadas.

O jardim tinha especial curiosidade por coisas velhas e esquecidas.


Algumas plantas apareceram onde não deviam. Outras apareceram de for-

86
ma misteriosa e repentina.

Mas as coisas mais surpreendentes que apareceram foram os novos


jardineiros.

Muitos anos mais tarde, a cidade inteira tinha florescido. Mas, de entre
todos os jardins, o Jorge preferia o jardim onde tudo começara.

(Peter Brown | O jardim curioso | Lisboa, Editorial Caminho, 2010)

87
O Buraco no Jardim

Nas traseiras do jardim, havia um grande buraco. Era tão redondo e


fundo, que até podia lá tomar banho um elefante pequenino. Isto foi o avô
que contou a Oliver, se não, ele não teria sabido. Estava cheio de entulho e
garrafas vazias, de latas e de toda a espécie de coisas velhas.

Oliver estava sempre a pensar no buraco onde um elefante pequeni-


no podia tomar banho, e sentava-se muitas vezes no jardim a olhar para o
entulho.

— Eu queria ver o buraco — disse um dia Oliver ao avô. — Vamos tor-


nar a abri-lo.

O avô ficou pensativo.

É um buraco muito grande — disse ele. — O melhor é deixá-lo tapado.

Mas, no dia em que uma pequena retroescavadora amarela se encon-


trava no jardim do vizinho a abrir o buraco para a piscina, o avô dirigiu-se
ao vizinho. Em breve, a retroescavadora amarela estava junto do entulho no
fundo do jardim e voltava a abrir o buraco.

— Também vamos ter uma piscina? — perguntou Oliver. Não falou no


elefante. Bem sabia que não era fácil arranjar um elefante pequenino.

— Vamos arranjar outra coisa. — disse o avô.

— O quê? — perguntou o Oliver.

— Tens de ter paciência — disse o avô. — Já vais ver.

Durante algum tempo, Oliver divertiu-se a subir e a descer para o bu-


raco. Umas vezes, encontrava um pedaço de vidro ou um parafuso, outras, a
perna de uma cadeira. Depois, só ficaram pedras e terra, uma raiz aqui e ali.

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Então, um dia começou a chover, e o buraco ficou molhado. Choveu
durante muito tempo e no fundo do buraco formou-se uma poça.

— Ainda é pouco — disse Oliver. — Para já, ele não pode nadar aqui
dentro.

— Quem? — perguntou o avô.

— O elefantezinho.

Ao fim de alguns dias de sol, a poça tinha desaparecido.

— Não podemos enchê-la com a mangueira do jardim? — perguntou


Oliver.

— Poder, podemos — disse o avô. — Mas é melhor termos paciência.


A paciência faz nascer rosas.

No outono choveu ainda mais e, no fundo do buraco, voltou a for-


mar-se a pocinha, que se conservou.

— A terra é de lama — explicou o avô. — Por isso, a água não escoa


tão facilmente.

O vento atirou folhas para a poça, que cobriram a água. Oliver repa-
rou nisso quando desceu ao buraco e depois subiu com os sapatos cheios
de água.

— Não incomodes o nosso lago — disse o avô.

— Isto vai ser o nosso lago?

— Possivelmente…

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Nevou e o buraco ficou coberto de neve. No começo da primavera,
já havia mais água no lago. E para que não voltasse a secar tão depressa, o
avô dava de vez em quando uma ajuda com a mangueira. O lago agradeceu.
Ainda estava pequeno, mas aguentou.

Não era lá muito bonito. Mais parecia uma grande poça suja. A pisci-
na azul cristalina do vizinho sorria, ao lado. O lago de Oliver era escuro. No
cimo, boiavam folhas meio apodrecidas e pequenas algas escuras.

— Que nojo! — disse Oliver.

— A paciência traz rosas — disse o avô.

Um dia, este apanhou Oliver a limpar o lago. Oliver remexia na lama


e atirava folhas apodrecidas e algas para a margem.

— Estás a estragar o nosso lago! — disse o avô. — Há seres pequeninos


que vivem nas algas e eles têm de lá estar, se não, o nosso lago nunca será
um lago a sério!

Oliver voltou a deitar a lama lá para dentro.

O lago foi envelhecendo e tornou-se maior. Nas margens nasceram


juncos e algumas canas, e toda a espécie de ervas de cheiro e de outras er-
vas cujas sementes o vento tinha trazido. Também cresceram plantas aquá-
ticas que mantinham a água limpa. Um dia, apareceu uma libelinha e, logo
depois, uma segunda. Agora, o lago já estava tão grande que um elefante
poderia lá tomar banho. Mas isso era uma coisa que Oliver já não desejava.

— Um elefante ia espantar as libelinhas — disse. — Mas podia aparecer


uma rã…

O vizinho olhava por cima da cerca e dizia:

— Isso está a tornar-se um pequeno paraíso. Quem diria! Mas, se que-


res rãs, tens de apanhar girinos e deitá-los aí dentro. Os girinos transfor-

90
mam-se em rãs.

Oliver e o avô foram apanhar girinos. Deitaram-nos no lago, e apare-


ceram rãs. Mas, um dia, as rãs foram embora.

— Já tinha pensado nisso — disse o avô. — Quando querem pôr os


ovos, as rãs regressam ao local onde nasceram. E até chegarem ao próximo
lago, estas ainda vão ter de saltar por algumas estradas de asfalto. Espero
que nenhum carro lhes passe por cima.

As rãs não voltaram. Oliver chorou.

— Se calhar ficaram em casa, no seu antigo lago.

— Esperemos que tenha sido isso — disse o avô.

Certo dia, veio um pato bravo pelo ar e descansou no lago do jardim.


Já era um lago a sério, com plantas aquáticas e junco, algumas aranhas
aquáticas e toda a espécie de bichos. E também havia borboletas. Oliver deu
de comer ao pato, mas, passados alguns dias, ele partiu.

— Se estivermos com sorte, ainda vamos ter rãs no nosso lago — disse
o avô.

E tiveram sorte! O pato trouxera, de um outro lago, ovos de rã nas


penas, e as rãzinhas saíam agora dos ovos, no lago de Oliver, que se tornou
o seu lago “natal”, uma vez que fora ali que tinham nascido. Nunca mais vol-
taram a ir embora e coaxavam alegremente.

— A paciência traz rosas — disse o avô.

— A paciência traz rãs — disse Oliver.

(Friedl Hofbauer)

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Como Se Faz Cor de Laranja

Deram ao Menino uma caixa de aguarelas. O Menino gostava de pin-


tar pássaros, flores, casas, árvores, rios, montanhas e tudo o mais que lhe
vinha à cabeça. Mas faltavam muitas cores na caixa de aguarelas.

Um dia, o Menino quis pintar um submarino no fundo do mar. À volta


do submarino havia algas azuis, verdes, roxas e vermelhas. Mas o Menino
queria que houvesse também algas alaranjadas. Ficariam bem a ondular, ao
lado das algas azuis e verdes. Que pena a caixa de aguarelas não ter cor de
laranja! Como se faria? Que outras cores se devia misturar para conseguir
cor de laranja? O Menino não sabia.

Foi ter com o Avô e perguntou-lhe.

— Eu já soube, meu neto — respondeu o Avô. — Quando tinha a tua


idade também gostava de pintar pássaros azuis,

flores amarelas,

árvores doiradas,

montanhas verdes…

e céus cor de laranja.

Mas não me consigo lembrar como fazia…

O Menino saiu à rua e perguntou a um senhor que entrava para um


automóvel:

— O senhor podia dizer-me, por favor, como se faz cor de laranja?

— Cor de laranja? O que é isso? — E partiu a toda a velocidade.

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O Menino entrou numa loja e perguntou por cor de laranja.

— Cor de laranja? Pois decerto, pequeno cavalheiro — disse o dono


da loja. — Tenho uns belíssimos lenços alaranjados, chegados ontem de Bei-
rute, artigo de primeira qualidade, seda natural, como não encontra melhor
em nenhuma loja do País. Espere vossa excelência um momento, que eu
vou buscar.

O Menino saiu da loja e foi bater à porta do Sábio (convém avisar que
era um falso sábio, um tolo a fingir de sábio…).

— Para fazer cor de laranja são necessárias complexíssimas operações


químicas — disse o sabichão. — Primeiro precisará de destilar uma solução
aquosa de monóxido de naftalina de densidade mínima, à temperatura de
cinquenta e quatro graus centígrados, para depois, aproveitando o extrato
residual de paradrimetilfenoledenorodamina x3, potência O, função de si
próprio, utilizar o reagente FT2 S02 DD3 PI até conseguir cor de laranja. Mui-
to complexo, como vê! Mas se quer utilizar apenas tintas, talvez o Pintor, que
mora aqui ao lado, lhe saiba responder.

O Menino bateu à porta do Pintor (mau pintor, mau e trapalhão, diga-


-se de passagem).

— Queria saber como se faz cor de laranja — disse o menino.

O Pintor olhou-o, carrancudo e desconfiado.

— Isso são segredos de artista, segredos profissionais, segredos que


cada um guarda como pode — respondeu ele.

O Menino saiu de casa do Pintor e foi ter com o Poeta (muito mau
poeta, aliás), que estava no jardim a rebuscar rimas para os seus versos. Mal
lhe perguntou como se fazia cor de laranja, o Poeta começou a declamar:

Oh cor de laranja, palavra bela,

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Sumarenta palavra que alimenta

A minha Dona Felisbela.

Oh cor de laranja, oh arco-íris,

Oh canela, mais pimenta,

Oh Dona Felisbela Pires.

O Menino fugiu do mau poeta e não foi ter com mais ninguém. Sen-
tou-se num banco do jardim e descansou. Seria assim tão difícil conseguir
fazer cor de laranja? Lá em casa, a folha de papel esperava em cima da mesa,
e as algas alaranjadas continuavam a ondular nos olhos do Menino.

Aproximou-se um cego, cautelosamente, tateando os troncos das ár-


vores. O Menino ajudou-o a sentar-se ao seu lado, no mesmo banco. Per-
guntou-lhe o Cego o que fazia naquele jardim e o Menino falou da cor de
laranja, do fundo do mar, das algas e contou as casas que correra, as pessoas
a quem falara. O Cego sorria.

— Ainda não sabes como se faz cor de laranja? — perguntou o Cego.

Ninguém lhe tinha dito, como podia o Menino saber?

— Então diz-me — continuou o Cego — de que cor é o sol?

— Amarelo — respondeu o Menino.

— Isso, amarelo, alegre, risonho, como o som de um pandeiro. E a


terra, de que cor é ela?

— Preta — respondeu o Menino.

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— Olha bem para a terra dos canteiros. É, de facto, preta?

O Menino olhou bem e corrigiu:

— A terra é castanha e em alguns bocados parece… — o Menino he-


sitava.

— Diz!

— …parece vermelha.

— Pois, vermelha como um clarim a tocar, não é assim? Agora repara:


o Sol, que estende o seu calor sobre a terra, faz crescer as árvores, abrir as
folhas, despontar os ramos, arredondar os frutos. Diz-me: de que cor são os
frutos?

— Verdes, amarelos, cor de laranja… — respondeu o Menino.

O Cego estava contente:

— Ora vês que não é difícil fazer cor de laranja. Junta o amarelo do sol
ao vermelho da terra, o som do pandeiro ao som do clarim… Vai depressa
acabar de pintar.

O Menino correu para casa, misturou as cores e as algas alaranjadas


surgiram no papel.

(António Torrado)

95
A Chover e a Fazer Sol

Mas que estranha tarde aquela


Alice estava à janela
Cheirando a terra molhada
Fazia sol e chovia
Será que algo acontecia
Naquela chuva dourada?

Fazia sol e chovia!


Foi sentindo uma magia
Naquilo que estava a ver
Saiu então pró jardim
A fazer sol e a chover.

Andou até um canteiro


Com rosas e um espinheiro
Que começara a florir
Viu a voar um besouro
Ouviu um sussurro de ouro
Ou era a chuva a cair?

Olhava e não via nada…


…Ou viu asas de uma fada
Por entre as flores aparecer?
Foi então, sem saber quando
Que viu fadas vir num bando
De asas a estremecer.

Em luz e manchas de cores


Entre a chuva miudinha
Pairam no ar mil odores

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E Alice no meio das flores
Por entre fadas caminha.

Fazia sol e chovia!


Gotas de água cintilantes
Eram fadas por instantes
Eram fadas que ela via!

Depois parou de chover


E ela deixou de as ver
Desapareceram no ar.
Como acontecera aquilo?
E via no céu tranquilo
O arco-íris brilhar.

Alice viu que sentia


Como era essa magia
Mas não sabia explicar
“Talvez água e luz se unissem
(Começou ela a pensar)
E as fadas quase se vissem
Por entre as cores a dançar.”
“Arco-íris meu amigo
Subo por ti e consigo
Até às fadas chegar”
(Luísa Barreto)

97
Maria Sapeca

Era uma flor pequenina. Rasteira. Rosada. Depois vermelha. Nasceu


no Brasil, perto do Corcovado, à beira do Lago da Solidão. Pela madrugada.

O Sol deixou cair um raio, dois raios, pela madrugada. Sobre a terra
húmida cheia de ervas verdes.

E a flor nasceu.

E mais cresceu, embora poucochinho.

Passou uma menina de cabelo negro dividido ao meio.

Era Maria Sá, filha de Rosa Sá (quase Rosa Chá) e de Sancho Sá.

Passou triste pelo Lago da Solidão.

E viu a flor que a madrugada ali poisara pela ponta de um dos seus
raios.

E sentou-se à beira do lago.

Contemplou a própria cabeça, de cabelo negro e risca ao meio reflec-


tida nas águas.

— Que triste estou! — pensou.

Então apanhou a flor rosada e vermelha.

E pô-la sobre o cabelo negro, apartado, com risca ao meio.

Do alto de uma árvore, cantou um pássaro, que por sinal era um lindo

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sabiá:

— Maria Sá peca! Maria Sá peca!

— Peco porquê, seu sabiá?

E o lindo sabiá repetia:

— Maria Sá peca! Maria Sá peca!

Maria Sá ficou espantada. Os olhos negros ainda maiores sob o negro


cabelo de risca ao meio.

— Sabes porque peco, Sabiá?

— Sabo? Não sabo.

— Não é sabo. É sei! (Lá de verbos sabia Maria Sá.)

— Sabiá sabe! Maria Sá peca!

— Mas peca porquê?

— Maria Sá peca!

Maria Sá olhou-se mais no espelho das águas do Lago da Solidão.

Porque havia de estar a fazer mal?

E o sabiá olhava-a do alto da árvore cheia de verde.

E o Sol também, com os seus milhões de raios.

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Maria Sá, filha de Rosa Sá (quase Rosa Chá) e Sancho Sá, via a peque-
nina flor como um rosado esplendor. Da cor das suas faces rosadas e dos
seus lábios vermelhos.

E, então, perguntou às águas frias do Lago da Solidão:

— Porque peco eu, sabes, Lago da Solidão? Porque diz isso o sabiá?
Sabes?

— Sabo! Lago da Solidão sabe! Maria Sá peca!

— Mas peca porquê?

E duas lágrimas transparentes correram pelas faces rosadas de Maria


Sá, filha de Rosa Sá (quase Rosa Chá) e Sancho Sá.

Como podia ela saber?

Os olhos espantados, cheios de perguntas, estavam mais brilhantes


debaixo do cabelo preto de risquinha ao meio.

E, então, perguntou ao Sol, aos seus milhões de raios:

— Sol, sabes porque peco?

O Sol ficou mais fraco, os raios enfraqueceram e nem um “sabo” res-


pondeu.

Maria Sá ficou mais triste ainda. Mas sentiu qualquer coisa num pé.
Uma formiguinha preta subia-lhe pela sandália de couro, fazia-lhe cócegas
no pé.

E, com a sua voz silenciosa de formiga, ciciou:

100
— Vou eu responder-te, Maria Sá. Na minha humildade de formiga
que tudo vai vendo, escutando. Silen­ciosa.

“Pecas, Maria Sá, porque te preocupas em saber porque estás triste


e quando estás triste. E apanhaste essa flor e puseste-a sobre a tua cabeça
para te olhares no espelho das águas do Lago da Solidão. Para olhares o teu
próprio rosto. Só a ti.

“Mas ouve o conselho desta amiga, pequena formiga:

“Sobe à montanha, verás mais flores, árvores, casas, sol, estrelas, pás-
saros, nuvens. E, sobretudo, todos os homens que andam pelo mundo. Que
esperam um sorriso do teu rosto. E, se lhes sorrires, não serás mais triste
nem desanimada. Vês que sei, Maria Sá?”

E a formiguinha desceu da sandália de couro como se descesse de


uma montanha, e soltou um suspiro, cansado. Já sobre a terra, com uma das
patas bateu na testa cansada de tanto pensar, de tão prolongado discurso.

Maria Sá, filha de Rosa Sá (quase Rosa Chá) e Sancho Sá, olhou-a re-
conhecidamente.

Disse-lhe adeus e obrigada. Mesmo obrigadinha.

E começou a andar.

Subiu ao monte carregado de árvores, de perfumes, do canto dos


pássaros.

E foi encontrando flores, árvores, pássaros, estrelas, pessoas.

— Bom dia, Maria Sá!

— Bom dia, Fulaninho!

101
— Bom dia, Maria Sá!

— Bom dia, Sicraninho!

Sob os seus pés iam nascendo milhões de flores rosadas e vermelhas.

E a flor, que pusera na cabeça, era uma estrela de alegria.

Maria Sá nunca mais olhou o seu rosto triste nas águas do Lago da
Solidão. O cabelo negro de risca ao meio emoldurava um rosto de alegria.
Uma beleza.

Essas flores vermelhas chamam-se Marias Sapecas e nascem por todo


o lado sem serem semeadas.

Hoje toda a gente, olhando aquelas flores, diz:

— Olha a Maria Sapeca!

Flor de alegria.

Flor que não é filha de Rosa Sá (quase Rosa Chá) nem de Sancho Sá.
Florzinha espelhada. Alegria mesmo. E filha de ninguém.

(Matilde Rosa Araújo)

102
A Menina Que Se Enfeitava Demais

Os pais de Aree davam-lhe tudo o que ela queria. Cumulavam-na de


presentes.

— Aree, estas argolas de oiro haviam de ficar tão bem nas tuas orelhas
delicadas. Temos de tas comprar!

— Aree, aquela pulseira de prata havia de ficar tão bem no teu braço
fino. Temos de ta comprar!

— Aree, aquele anel de rubis havia de ficar tão bem nos teus dedos
esguios. Temos de to comprar!

Sempre que viam um corte de seda especialmente bonito, exclama-


vam:

— Oh, Aree, que bem há-de ficar-te esta cor! Temos de te comprar
esta seda!

O quarto de Aree estava cheio de guarda-jóias e de arcas a abarrotar


de tecidos. Um dia, Aree ouviu falar de um baile na aldeia que ficava para lá
das montanhas.

— Eis uma excelente oportunidade para exibir as minhas roupas re-


quintadas! Mas, que cor hei-de usar? Cor-de-rosa, fúcsia, escarlate? Azul ce-
leste ou verde-claro? Talvez violeta… ou púrpura… ou magenta. Talvez ama-
relo-torrado… ou verde-esmeralda. Penso que vou usar cor-de-rosa.

Vestiu um vestido cor-de-rosa brilhante. Mas havia um outro vestido,


cor de esmeralda.

— Este verde é tão elegante! Talvez possa usar os dois!

Vestiu o verde por cima do rosa.

103
— Assim, posso exibir dois dos meus vestidos de seda! Só que este
fúcsia é o mais alegre de todos. Penso que o vou usar também.

Pôs o fúcsia por cima do verde e começou a voltear.

— Vou ser a rapariga mais bonita do baile!

Mas não se ficou por ali.

— Este amarelo-torrado é especialmente bonito. E vejam só este azul


brilhante…Ninguém tem sedas tão caras como as minhas. Já agora, porque
não usá-las todas? A azul clara…a violeta…esta púrpura com fios de oiro
puro. Se usar todos os meus vestidos, vou ser, de certeza, a rapariga mais
bonita do baile.

A vaidosa Aree vestiu tudo o que tinha no armário. Como as roupas


eram pesadas, ficou sem conseguir mexer-se.

— São um pouco pesadas, mas vejam só! Sou a rapariga mais bela do


baile!

E a escolha continuou:

— E que pulseira usar? A de ouro? Sim. A de prata? Claro. A de jade? É


a minha favorita. E os anéis? O de rubis? O de safiras? O de esmeraldas? O de
pérolas? O de opalas? Todos eles, sem dúvida alguma!

Aree pôs todas as jóias que possuía. As amigas chegaram pouco tem-
po depois.

— Aree! Pareces…

Nem sabiam o que dizer. Aree saiu de casa aos tropeções, carregada
de sedas, anéis, pulseiras e brincos. Mal podia andar. Mas sentia-se orgulho-
sa.

104
— Vejam só as minhas belas roupas. Vejam só o meu oiro e as minhas
jóias. Vou de certeza ser… a rapariga mais bela do baile!

Parecia tão pateta que as amigas fizeram um esforço para não se ri-
rem.

Partiram em direcção à aldeia. Mas Aree não conseguia acompanhá-


-las. Cedo começou a bufar de irritação.

— Esperem por mim! Esperem por mim! Não consigo subir a colina!

As amigas vieram ajudá-la.

— Podíamos empurrar-te pela colina acima.

— Não me empurrem porque podem amarrotar os meus vestidos!

— Podíamos puxar-te pela colina acima.

— Não me puxem porque podem sujar as minhas roupas de seda.

As raparigas decidiram deixar Aree para trás. Esta cambaleou durante


algum tempo sozinha até que as chamou de novo.

— Esperem por mim! Esperem por mim! Não consigo subir a colina!

As amigas voltaram para trás.

— O que vocês têm é inveja das minhas roupas requintadas. Se fizer o


que me dizem, já não serei a rapariga mais bela do baile.

Aree recusou-se a tirar fosse o que fosse. As amigas deixaram-na ficar


ali e foram ao baile sozinhas.

105
Durante o dia todo, Aree arrastou-se pela colina acima debaixo de um
sol escaldante. Chegou ao cume à noitinha. Parou, demasiado exausta para
dar mais um passo, enfiada naquelas roupas tão pesadas.

Quando as amigas regressaram do baile, Aree ainda estava demasia-


do cansada para  poder mexer-se. Foram buscar os pais dela e, quando estes
chegaram, Aree já não se sentia vaidosa.

— Pai, mãe, vesti coisas a mais! Não preciso destas roupas todas!

— Tira então alguns desses vestidos e algumas dessas jóias pesadas.


Ensinámos-te a querer demasiado. Tens de aprender a contentar-te com
menos.

Jóia a jóia, vestido a vestido, Aree despojou-se de todas as suas coisas.


Da vez seguinte que foi a um baile, estava lindíssima no seu vestido simples.

(Margaret Read MacDonald)

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Aventura Com Asas

Não me recordo muito bem em que ano isto aconteceu. Mas sei que
trazia vestido um casaco vermelho com botões de metal amarelo a que eu
chamava «o meu casaco à marinheiro», um gorro branco com riscas azuis,
um cachecol igual ao gorro e luvas. Luvas ou LUVA? O mais certo era ser
LUVA porque eu perdia sempre uma delas, precisamente a da mão direita.

Na verdade, quem poderia fazer a letra bem feitinha, colher azedas no


jardim da escola, agarrar a coleira do Tomba-Lobos, o meu cão bem-amado,
com aquelas discretas algemas de lã macia a tirarem-me a liberdade de mo-
vimentos, a  impedirem  que eu  sentisse  a  frescura  das  flores, o redondo
do lápis, a força do cão a puxar-me para a brincadeira? Por isso, de certeza
que era só uma luva, apesar dos ralhos da minha mãe:

— Não as tires, que ficas cheia de frieiras! Olha que está muito frio!

E a minha avó, do outro lado da concordância, enquanto me termi-


nava mais um par de luvas quentes e coloridas:

— Para que será tanto trapo? Onde é que já se viu uma criança ser
feliz com as mãos tapadas?

E trabalhando com as cinco agulhas a uma velocidade incrível, como


se assim o seu protesto fosse ouvido ou como se alguém a obrigasse a fazer
dúzias de luvas e ela não estivesse naquela azáfama por sua livre vontade,
resmungava ainda:

— As mãos fizeram-se para sentir as coisas que há ao de cima da ter-


ra. Isso é que é estar vivo! Vê lá se os animais usam luvas, se têm frieiras…
Quantos mais cuidados e esquisitices, pior.

Nesta altura da discussão já eu estava longe e, ou tinha guardado a


luva da mão direita no bolso, ou na mala, ou a tinha esquecido na carteira,
ou sobre o tanque do quintal, ou nos degraus da escola quando fora jogar
às cinco pedrinhas. Portanto, e por tudo isto, de certeza, naquele dia eu só
tinha, como quase sempre, apenas uma luva, o que, de resto, pouco interes-
sa para o que vos quero contar.
107
E que foi assim.

Estávamos na escola ainda a fazer o último ditado quando, subita-


mente, os vidros da janela tilintaram todos ao mesmo tempo. Parecia que
um gigante tinha sacudido a sala. Trinta meninos e meninas levantaram a
cabeça, meteram a caneta na boca para tentarem perceber melhor e olha-
ram para a professora que disse, assustada:

— Meu Deus! Será um tremor de terra?

Se foi isso, não mete medo, pensei. Quando tive o sarampo houve um
e fartei-me de rir: as chávenas do guarda-louça todas a fazerem tlim-tlim,
as tampas das terrinas a levantarem-se e a baixarem-se sem ninguém lhes
tocar, as salvas de prata a rolarem para cá e para lá, a cama a tremer como
se eu estivesse com frio e a minha avó a andar, feita tontinha, aos zigueza-
gues, sem conseguir equilibrar-se, como se tivesse bebido o vinho do Porto
da garrafeira.

E como ninguém respondeu, pus o dedo no ar e perguntei:

— Afinal, que barulho foi este?

— Não sei — disse ela, olhando muitas vezes lá para fora e depois para
nós.

— Não sei, mas amanhã terminamos o ditado, pois está a escurecer


de repente e é capaz de chover ou vir aí uma grande trovoada. Vão para casa
depressa, antes que o tempo piore.

E juntava os papéis, fechava os livros, guardava a caixa de giz, vestia o


casaco. Num alvoroço, arrumámos também as pastas, vestimos os casacos,
enfiámos os gorros, calçámos as luvas (ou a luva?) e ATÉ AMANHÃ, SENHO-
RA PROFESSORA. Pus a mão na coleira do Tomba-Lobos, o único cão do
mundo que fez a escola toda até à quarta classe e do qual nunca me sepa-
rava nem de dia nem de noite.

— Até amanhã, se Deus quiser! Não se demorem! Vão já para casa!


108
Aí vamos, correndo, rindo, empurrando-nos, imitando o barulho das
janelas que nos dera: aquele feriado pequenino – tlim! tlim! tlim! – na ale-
gria dos vinte minutos mais cedo, vinte minutos só para nós, sem ninguém
que pudesse assinalar esses nossos passos sempre tão cronometrados pelo
coração das mães. Porque só daí a vinte minutos é que os relógios lá de casa
começariam a marcar, avisando que eram as horas de sair das aulas.

Depois, segundo a segundo, porque o relógio pontual que é o cora-


ção das mães nunca se engana, começava a contagem do nosso percurso:
agora deve ter tocado a campainha da saída; agora devem estar na rua da
farmácia. Aqui, faz-se um desconto pequenino porque de certeza ficaram
a ver a montra da casa das bicicletas ou a montra  da pastelaria, neste mo-
mento já devem estar no Largo do Coreto e depois é só descerem a Rua da
Misericórdia. Não tarda, aí estão eles, as calças sujas, as botas desabotoadas,
a atirarem as pastas, a pedirem o lanche, a irem brincar ao agarra. Nunca se
cansam estas crianças, o dia para elas devia ter quarenta e oito horas e ainda
seria pouco…

Mas por tudo isto, que só aconteceria vinte minutos depois se o céu
não tivesse escurecido e as janelas não tivessem tilintado, esse espaço li-
vre era festa, era alegria e, sem que o imaginasse, transformou-se na maior
aventura da minha vida de criança.

Vou contá-la.

Ainda nem chegáramos à praça quando um vento maluco começou


a sacudir o mundo: arrancava ramos de árvores, levantava as saias às mu-
lheres que queriam segurar os xailes, agarrar as cestas das couves, apertar
os filhos mais novos de encontro ao peito mas faltavam-lhes mãos para
tanto gesto. Parecia um circo, um número cómico de filme de Charlot. Os
chapéus dos homens voavam já sobre os telhados como se fossem corvos,
o Tomba-Lobos rosnava não se sabia a quê ou a quem.

Olhava para o alto, zangado, com os seus belos pêlos compridos e


sedosos a serem penteados para cá e para lá por uma mão invisível. Segurei-
-me a ele com força, pois sabia há muito que, viesse o que viesse, junto do
meu cão nada me aconteceria de mal. Nisto, ora vejam – mas que susto! –
cai-me aos pés a trepadeira da casa do Senhor Gil. Uma trepadeira tão antiga
que nem se lhe sabia a idade e que há muito já se confundia com o muro,
de pedra e flores todo ele.
109
O meu cachecol branco era uma asa delta, um rasto de espuma, uma
nuvem, o meu sinal. Eu pensava, feliz, sem medo absolutamente nenhum:
quem vai acreditar que ando por aqui a passear sobre o céu da minha terra e
não sou pássaro? Daqui a uns anos, se eu contar esta história a alguém, irão
olhar uns para os outros e dizer: tem tanta imaginação! Se não me chama-
rem mentirosa, já será uma grande sorte…

Onde irei parar nesta viagem?

Quando a minha Mãe souber que tem uma filha ave, vai ser lindo, vai.

Se nunca mais aterrasse é que era bom! Descobria sozinha que a


terra é redonda, ia até à Índia ou ao Brasil e talvez lá encontrasse o Vasco
da Gama, o Pedro Álvares Cabral, sei lá quem mais… Nisto, o meu cachecol
fica preso num ramo de plátano, o mais alto de todos, aquele donde o meu
primeiro namorado colheu uma folha dourada, aquela que está a marcar a
lição no livro de leitura e que é o meu segredo.

Eu quase dera a volta ao mundo, de certeza, mas aterrara ali, na Pra-


ça de Bernardim Ribeiro. Mesmo no meio! E estava pendurada num galho
como se fosse uma pêra, uma romã, uma laranja. Que fruto pareceria eu?
Uma multidão corre para mim, aos gritos:

— Coitadinha! Vejam se está ferida! Que horror! O que ela voou!


Quem chega lá acima? Tirem a criança antes que comece a voar outra vez!

O Tomba-Lobos lá estava também. Empurrara as pessoas e, apoian-


do as patas no tronco do plátano, deu um salto e agarrou-me o cachecol.
Rosnava. O vento levantava-lhe o pêlo e já não era um cão, lembrava o lobo
mau da história do Capuchinho Vermelho.

Lembro-me de todo este alvoroço, destes gritos desgarrados, destas


frases soltas e angustiantes. Parecia um filme fantástico e, no meio deste
desatino, eu e o meu cão tentávamos avançar. Mas se dávamos um passo,
retrocedíamos cinco. Pensei: talvez isto seja o Gigante Adamastor. Porque
esse, dissera-mo a minha professora e sabia-o eu, soprava com tal força que
transformara os barcos dos portugueses em casquinhas de noz, como esta-
va escrito no livro de História. Mas Gigantes Adamastores no Alentejo, tam-

110
bém era muito esquisito… A ribeira quase não tinha água e mesmo quando
ia cheia, mal dava para tapar as pedras e molhar as patinhas das rãs…

Nisto, enquanto eu andava à volta com tão profundos pensamentos,


uma rajada mais forte empurrou-me de encontro a coisa nenhuma. A mão
soltou-se da coleira do Tomba-Lobos e eu comecei a voar. A voar, vejam
bem isto, no meio das folhas dos livros, por entre galinhas que já pareciam
cegonhas, trapos velhos, pastas de escola, alguidares de lata, cadernos, car-
tas de amor, uma bicicleta que pedalava sozinha pelo céu, eu sei lá…

Passei, neste meu voo, pela janela do Senhor Mendonça, continuei a


voar, cada vez mais alto, dei uma volta completa à torre da igreja, agarrei-me
aos ponteiros do relógio que marcavam meio-dia e depois ficaram nas duas
da tarde, ou duas da noite, que tempo era este?, que hora?, que estação do
ano?

Continuei a voar.

O Tomba-Lobos, lá em baixo, corria e ladrava para o pontinho em mo-


vimento que eu lhe devia parecer. As mulheres também punham as mãos na
testa como se fossem a pala de um boné, tentando descobrir-me.

Os homens olhavam e diziam que nunca se vira uma coisa assim. E


todos, de braços abertos, levantados para cima, a tentarem prender-me, sem
conseguirem alcançar-me.

— Coitadinho! — dizia uma voz. — Parece que percebe tudo…

E outra comentava:

— Nunca se viu um animal com tanta inteligência e tão amigo do


dono. Só lhe falta falar!

— Sim, sim — dizia outro. — Mas não se aproximem dele, que não é
para brincadeiras quando se trata da sua menina…

111
— E então agora, como temos medo do cão, a criança vai ficar ali
pendurada como um figo maduro? À espera de quê?

Afinal, era um figo maduro o que eu parecia vista lá de baixo. Podiam


ter escolhido uma coisa mais simpática, menos mole. Por cima da árvore,
quase a tocar-me a cabeça, como se fosse uma pena, passou uma porta in-
teira. Com aldraba e tudo. Entretanto, o cachecol soltara-se e ficara preso à
boca do cão. Em seguida enrolou-se-lhe à volta do pescoço e tapou-lhe os
olhos.

Mas eu não me importava. Não tinha medo e achava estranho que


com portas a voar, galinhas a voar, árvores enormes a voar, sinos de bronze a
tocarem sozinhos, homens gordos às cambalhotas, velhinhas a segurarem-
-se às pernas dos homens gordos para não voarem com seus xailes; cami-
sas azuis, encarnadas, lençóis que pareciam velas de naus antigas, castiçais
ainda acesos, ovos que as galinhas acabaram de pôr em pleno voo e que se
iam esborrachar no nariz dos curiosos, burros, molhos de feno, um ramo de
flores atado com fita vermelha, um jardim inteirinho com a sua pequena es-
tátua e seus bancos pintados de verde, dois velhinhos agarrados como dois
namorados para sempre; dizia eu que, no meio desta loucura, deste vento à
procura das cavernas antigas em que os deuses os tinham encerrado para
evitar coisas assim, era estranho que as pessoas da terra se preocupassem
tanto comigo.

Seria amor?

Eu teria voado mais que os outros? Mais alto?

Porque se preocupariam elas?

Eu acho que era amor. Porque a verdade é que, lá no alto, houve um


momento, muito pequenino bem sei, mas houve um momento em que eu
pensei que nunca mais desceria, que ficaria a voar até ao fim do Tempo, e
senti saudades da minha gente, lá tão longe…

Já me tinham acontecido muitas coisas engraçadas na minha vida de


oito anos de idade mas, ser colhida duma árvore como uma fruta, um ninho
ou um ramo em flor; voar como os pássaros e não ter asas, isso fora o me-

112
lhor que tudo e, de certeza, nunca mais me voltaria a acontecer.

Nesse instante de breves tréguas alguém me desprendeu – ou co-


lheu? – do galho, segurou ao colo e levou para casa.

O meu coração era um sino contente.

O mundo continuava a desfazer-se em coisas voadoras.

Parecia que, de repente, tudo ganhara asas e nunca mais haveria nada
que fosse firme, vertical, seguro, equilibrado.

E quando, passados todos estes anos, alguém velhinho da minha ter-


ra fala do dia do ciclone, sinto uma coisa parecida com saudades dessas asas
de vento e coragem que nunca mais terei. Nunca mais?

(Maria Rosa Colaço)

113
Mina Não Queria Crescer

No país das fadas, quando as crianças já são crescidas, recebem da


Academia das Fadas a sua primeira varinha de condão. É um grande dia para
elas, que podem então começar a aprender os mais belos toques de magia…
Mas sob a condição de largarem a chupeta e o ursinho.

Aos cinco anos, Mina era uma minúscula fada, do tamanho do teu
dedo mindinho. Mina ainda falava à bebé: dizia “Au-au” para cão, “fafá” para
fada, “vavá” para varinha e “quelo” em vez de quero. Às vezes também ficava
vermelha de cólera, fazia beicinho, dobrava as asas e recusava-se a fazer
fosse o que fosse. Em conclusão: tinha ficado uma fada-bebé!

— É normal, é uma criança — dizia o rei seu pai, que tinha sido sempre
muito compreensivo para com Mina, a ponto de, por vezes, se rir dos seus
amuos e dos pequenos defeitos de pronúncia.

Mas, o que mais aborrecia a rainha-fada era ver Mina de chupeta.


Mina continuava a chuchar nela à noite, mas também pegava nela à tarde, e
quando estava cansada, e para dizer adeus aos pais e bom-dia ao seu ursi-
nho-fada, e para ir para a escola das fadas. E depois, até para ir para a mesa.
E para tomar banho. Enfim, todos os pretextos eram bons para chuchar na-
quela malvada chupeta.

Mina gostava tanto da sua chupeta que a limpava com um pano to-
das as manhãs, como fazem as fadas grandes às suas varinhas. Lidava com
a sua tetina como Aladino com a sua lâmpada mágica ou como outras pes-
soas fazem com a galinha dos ovos de ouro. Como se fosse um verdadeiro
tesouro!

A mãe de Mina, ao ver aproximar-se o dia do seu quinto aniversário,


leu nos grandes livros das fadas tudo o que poderia fazer para acabar com
a chupeta: o toque de “Superlipopeta, e zás, a chupeta!”, o toque mágico da
“madrinha da Gata Borralheira”, que consistia em transformar a tetina numa
gigantesca abóbora, o estratagema da chupeta volante, da tetina malcheiro-
sa, ou a receita da tetina com piripiri.

Mas nada resultava. Mina não largava a chupeta e dizia “dada” e “féfé”
114
e “nana”. As pessoas chegavam a perguntar-se se aquele objeto de plástico a
impediria de falar como uma fada de cinco anos.

Numa bela manhã de primavera, chegou uma mensagem a


casa de Mina, trazida por uma pomba cor-de-rosa. Era uma linda car-
ta resplandecente com pozinhos de fada. Mina baixou a cabeça, franziu
o sobrolho e bateu o pé. Sabia muito bem o que a esperava: iam pedir-
-lhe que fosse grande e que deitasse fora a chupeta.

Por seu lado, a mãe aplaudiu:

— Minha querida, hoje é o grande dia! É a tua carta da Academia das


Fadas!

A mãe de Mina tinha lágrimas nos olhos, porque é sempre comovedor


ver crescer  a  sua  menina-fada.  De  contente, abraçou  a pomba mensa-
geira cor-de-rosa, que se transformou imediatamente na linda fada Sininho.
Quanto à carta cor-de-rosa, essa transformou-se em varinha mágica.

— Bom dia, Mina — disse a fada Sininho. — Sabes que hoje venho en-
tregar-te a varinha mágica?

— “Tá” bem — resmungou Mina.

— Mas conheces as regras da Academia das Fadas, não é verdade?

Mina rosnou ainda um “sssim”.

— Se aceitares a varinha mágica, tens de deitar fora a chupeta. Nada


de varinha mágica para as bebés-fadas com chupeta!

— Prefiro continuar com a chupeta — disse Mina num tom amuado.

— Oh, não é possível! Uma destas! É a primeira vez que ouço tal coi-
sa! — diz a fada-madrinha a sorrir. — Tenho a certeza de que, se dissesses às
meninas do país dos homens para escolherem entre uma varinha mágica e
115
uma chupeta, elas não hesitariam um segundo… “Uma chupeta nem sequer
é mágica. Enquanto uma varinha… com ela posso conseguir fazer imensas
coisas!” Seria isto o que as meninas pensariam imediatamente.

Mina, mal-humorada, bateu o pé.

— E o que é que eu podia fazer com a minha varinha?

— Coisas maravilhosas!

E por artes mágicas, a fada Sininho fez aparecer diante dela o Grande
Livro das Grandes Obras das Fadas, onde estavam registados os actos mais
mágicos:

• Distribuir dons quando nascem novas fadas: ser inteligente, gene-


rosa, alegre…

• Contrariar os feitiços das fadas ciumentas, aquelas que não foram


convidadas para o batizado.

• Transformar uma abóbora em carroça, para ajudar uma menina que


está sozinha.

• Dar alimentos àqueles que têm fome.

• Proteger uma princesa que tem de dormir durante cem anos.

• Oferecer livros aos meninos que querem aprender.

• Dar sorrisos aos velhinhos tristes.

A fada mensageira fechou o Grande Livro das Grandes Obras com os


olhos a brilhar.

116
— Então, o que é que escolhes? Queres continuar com a chupeta de
fada-bebé ou receber uma magnífica varinha de condão?

Mina confessou que, afinal, preferia a varinha de condão. A mãe, mui-


to orgulhosa, apertou-a ao peito e disse:

— Agora já és Grande! Vamos divertir-nos as duas, com os nossos


truques mágicos!

E foi assim que Mina recebeu da Academia das Fadas uma magnífica
varinha de condão cor-de-rosa e branca, que ela contemplava de olhos a
brilhar.

Podes acreditar que, a partir daquele dia, não voltou a ter saudades da
chupeta, porque se deu conta de que não era difícil decidir, de uma vez por
todas, deitá-la fora e… crescer a sério!

— Vá lá, menina Mina! — disse a fada-madrinha. — Ao trabalho! Não


basta querer ser uma menina crescida para o ser. Vais aprender coisas apai-
xonantes no nosso mundo!

E, com um toque da sua varinha mágica, abriu-lhe o Grande Livro das


Fadas, aquele que permite a todas as meninas tornarem-se grandes fadas,
dignas de figurarem nos grandes contos.

(Sophie Carquain)

117
O aniversário de Nina

Aquele era um dia muito especial para Nina, a elefantinha. Há meses


ela sonhava com esse dia, o momento do seu aniversário. Tinha lido e relido
a lista de convidados, não se esquecera de ninguém. A dona Minhoca e suas
filhinhas, dona Vaca e os bezerros, a Galinha com os pintinhos, o Cachorro
e seus filhotes… Toda a bicharada da floresta tinha sido convidada para a
festança.

A elefantinha Nina queria se apresentar lindona em seu aniversário,


por isso foi até ao guarda-roupa, e procura daqui, procura dali:

— Ah! Achei!

Colocou um vestido bem rodado, com as mangas fofas, e com um


laço de fita bem grande atrás, ficou parecendo um bombom, linda de viver!
Agora era só esperar os convidados…

— Hei psiu! Esperar os presentes! Ai, ai… Tô que não me aguento, só


de pensar no montão de brinquedos, doces, balas, bombons, biscoitinhos
que vou ganhar, já me derreto toda!

A elefantinha já estava ansiosa para receber seus convidados… Quer


dizer, seus presentes. Bem no meio da sala havia uma mesa enorme, com
um bolo de chocolate, rodeado de brigadeiro, cajuzinho, moranguinho…
Tudo do bom e do melhor!

A campanhia tocou:

— Dim-dom!

Nina correu toda desengonçada segurando o laço de fita que arras-


tava no chão.

— Já estou indo — gritou a elefantinha desesperada.

118
Ao abrir a porta, Nina já deu aquele sorrisão e cumprimentou:

— Boa noite, dona Galinha, obrigada pela presença, você trouxe o


meu presente?

Dona Galinha, toda desconcertada, tentou se explicar:

— Sabe o que é, Nina, estou um pouco apertada, sem grana mesmo,


vou te dar uma lembrancinha o mês que vem, pode ser, queridinha?

Se eu falar que não, vai adiantar alguma coisa? — pensou Nina em-
burrada e sem resposta.

Dona Elefanta, que estava por perto, não sabia onde colocar a cara de
tanta vergonha. Pediu desculpas pela filha e chamou-a no canto:

— Nina querida, por favor, não pergunte aos convidados se trouxeram


algum presente pra você. Isso é falta de educação. Não quero ouvir você di-
zer a palavra, “PRESENTE” de jeito nenhum. Se alguém tiver que lhe entregar
alguma coisa, não vai precisar de você falar, tudo bem? E nesse momento a
campanhia tocou:

— Pode deixar, eu atendo! — gritou Nina.

— Boa noite, dona Minhoca, que bom que a senhora veio e trouxe
toda a família… Você tem alguma “coisinha” pra me entregar?

— Ah! Claro, Nina o seu presente! Você não vai acreditar, estava vin-
do para a festa e acabei esquecendo seu presente bem em cima da cama.
Desculpe!

Nina saiu toda tristonha.

— Que chatice de aniversário, viu? O que adianta fazer festa e não


ganhar nenhum presentinho! Um presentinho de nada!

119
A campanhia tocou novamente:

— Já tô indo, já tô indo!

— Boa noite, seu Cachorro, valeu a presença. Além do senhor e sua


família, trouxe mais algum… algum… “embrulho”?

— E você acha que eu ia me esquecer do seu presentinho, Nina? Es-


quecer, eu até que não esqueci; como sei que você gosta muito de chocola-
te, comprei um pacote bem grande pra você… O único problema é que não
guardei, e meus filhotes, achando que não tinha dono, acabaram comendo
tudo. Fica pra próxima, fofinha!

E o mesmo se repetiu a noite inteira. Cada convidado que chega-


va, inventava uma desculpa mais esfarrapada que a outra, e presente que é
bom… neca!

No meio da festa, lá estava Nina sentada no sofá da sala, toda tristo-


nha, enquanto os convidados brincavam e se divertiam com seu aniversário.
A mamãe Elefanta, ao ver sua filhota tão quietinha, chorosa, foi até a peque-
na para tentar conversar:

— Querida, a sua festa está tão linda, veio toda a bicharada, qual o
motivo de tanta tristeza, posso saber?

— Mãe, você não viu? Ninguém, ninguém trouxe nem um embrulhi-


nho, uma coisinha, um presentinho de nada pra mim? Eu nunca vi isso, que
bicharada mais mal-educada. Vêm pra minha festa e esquecem o melhor do
aniversário, que é o presente! E eu que pensei que ia ganhar um monte de
doces… Estou aqui, chupando dedo, de mãos vazias!

— Pois eu acho que a sua festa linda daqui a pouco vai acabar; por
isso, se você não aproveitar, vai ficar também sem nenhum momento legal
para lembrar! Tire essa tristeza da cara, levante essa poupança do sofá, e vá
brincar com seus convidados.

No início, Nina sentiu uma preguiça danada, não estava a fim de se


120
divertir sem presentes, mas depois acabou cedendo às brincadeiras.

Correu, pulou, dançou, gritou, girou, rolou, e quando percebeu, já era


hora de os convidados irem embora.

— Calma, galera, a festa começou agora, ué…

Os bichos começaram a sair, um por um. Já estava realmente tarde e


o tempo passou voando. Pra falar a verdade, até Nina sentia um bocado de
sono. Tirou a roupa rodada, colocou a camisola, e quando já estava quase
dormindo lembrou que faltava alguma coisa:

— Mãe! Maêeeeee! Vem aqui no meu quarto, por favor?

A mãe chegou tão de mansinho na porta que ela quase não perce-
beu.

— Obrigada, mãe… A senhora estava certa, eu hoje ganhei o melhor


presente do meu aniversário.

A mãe sorriu sem entender.

— Ganhei maravilhosos momentos com meus amigos, para eu me


lembrar a vida toda!

(Rúbia Mesquita)

121
A Imagem de Lola

O melhor amigo de Lola não se chamava Pedro, nem Albano, nem


Clemente. Era, ao mesmo tempo, mudo e falador, simpático e rude. Chama-
va-se… espelho! Porque Lola passava o melhor do seu tempo a contemplar-
-se. Não que ela se achasse bonita, não. Se lhe perguntassem, ela diria que
não se achava nem bonita nem feia, mas gostava de se olhar, de se exami-
nar. Por vezes, sorria-se a si própria. Outras vezes, franzia o nariz e fazia tais
caretas que parecia uma feiticeira cheia de verrugas.

O espelho, ora se mostrava seu amigo, ora seu inimigo. Havia alturas
em que ela se achava muito gorda, com as suas bochechas e a barriguinha
a sair-lhe das calças de ganga, sobretudo desde o dia em que, na aula de
ginástica, o Nicolau grande lhe dissera:

— Ó gorducha, devias começar a fazer dieta!

Havia outras alturas em que se achava bonita, sobretudo quando lhe


diziam:

— Com esses olhos, hás de fazer muitas conquistas!

 Seria bonita, seria feia? Na verdade, não sabia. Olhava para o nariz
e achava-o abatatado, e os joelhos metiam um pouco para dentro. Depois,
virava-se:

— Serei mais bonita de frente ou de trás?

Nada lhe escapava. Sabia de cor que o seu perfil mais bonito era o do
lado direito. Que com esta saia ou estas calças se via menos a barriga, mas
se notava mais as pernas, que eram um pouco gordas. E perguntava-se:

— Se eu, todas as noites, prender o nariz com uma mola de roupa,


será que ele ficará mais fino?

No meio destes exames minuciosos diante do espelho, ouvia ao lon-


122
ge a voz da mãe:

— O que estás a fazer, Lola? Já fizeste os deveres?

E suspirava:

— Para de te contemplares a todos os instantes e horas!

Um dia em que Lola se virava, sorria, dizia mal de si própria, fazia tre-
jeitos, levantava os cabelos com uma mão, apertava o nariz com a outra, eis
que de repente, incrível!… deixou de ver a sua imagem no espelho. Já não
estava lá nada! Franziu os olhos, olhou por detrás dela, apalpou os braços,
os ombros, para ver se continuava a existir… E, de repente, ouviu um enor-
me suspiro! Quando se virou, adivinha quem ela viu por detrás dela… A sua
imagem, de mãos nas ancas, que a observava com um ar furioso!

— Estou farta! — gritou a imagem. — Far-ta! Ouviste? Há meses que


isto dura. Meses em que não paras de ME observar no espelho.

Lola arregalou os olhos.

Mais do que espantada, estava atónita. O que poderia responder


àquela criatura tão indelicada?

A imagem continuava:

— Por quem te tomas, afinal? Nunca estás contente… Julgas que é


agradável? Faço tudo o que posso por ti!

— Mas… não é nada contra ti — respondeu Lola. — É que, por vezes,


não me acho… lá muito… lá muito a meu gosto, é isso!

A imagem apontou um dedo acusador:

— É o que TU pensas! Alguma vez pensaste nos outros? É-te indife-


123
rente aquilo que eles pensam! Aprisionas-me com o teu olhar, julgas-me…
Nunca sou suficientemente bonita para ti! Para que hei de estar a incomo-
dar-me, afinal? — vociferava a imagem, visivelmente encolerizada.

— Desculpa, desculpa — murmurava Lola.

— Eu queria ficar no meu lugar, mas o que é demais é erro! Há três


quartos de hora que estás a observar-te. Então, perdi as estribeiras.

E continuava a resmungar:

— É sempre assim com as meninas. A princípio, quando são peque-


nas, tudo corre bem, elas confiam em nós. Mas depois, quando crescem, co-
meçam a duvidar. Acham-se menos bonitas, gordas demais, com um nariz
achatado, mais isto, mais aquilo!

— É que… eu queria tanto… ver-me como os outros me veem — mur-


murou Lola constrangida.

A imagem, subitamente calma, sorriu:

— Tu nunca poderás ver-te como os outros te veem! O teu olhar é


duro, severo, enquanto que, para eles, és uma menina bonita e simpática.
Então, para de te fazer mal a ti própria, está bem? Os teus olhos são tão se-
veros que te distorcem totalmente. Tenho a certeza de que me vês com uma
barriga enorme, orelhas de abano e um nariz de pepino. Mas não é verdade!

Lola assentiu com a cabeça, sorrindo. Talvez tivesse razão, aquela


imagem marota! Talvez ela estivesse a ser dura demais consigo própria…

— Ouve — murmurou a imagem. — Agora vou entrar no espelho. — E


apontou o indicador em direção à menina.— Mas, antes, deixa-me dizer-te
uma coisa. Todas as manhãs podes olhar para mim durante algum tempo.
Para te penteares e vestires. Mas evita passar horas a julgar-ME e a observar-
-ME de todos os ângulos — e corou. — É que fico constrangida…

124
Lola, atónita, regressou à sala.

— Está tudo bem, querida?

— Sim, mãe — murmurou Lola, refletindo: “A imagem tem razão… Há


mais coisas a fazer do que contemplar-me todo o dia.”

Na cozinha, havia um cheiro agradável a chocolate quente. Teria so-


nhado ou não? Era difícil de saber, mas o que ela sabia é que ia oferecer-se
uma boa merenda e um bom livro, sem pensar em mais nada, e sobretudo
em si própria.

A partir daquele dia, Lola abandonou as suas sessões de contempla-


ção, porque compreendera que a imagem no espelho não lhe pertencia
totalmente. De tempos a tempos, é claro, acontecia-lhe voltar ao espelho,
sobretudo quando acabava de comprar uma saia ou umas calças novas,
mas fazia-o durante cinco minutos, porque ficara com medo de ver sair, de
repente, uma imagem furiosa.

Lola achava-se muito mais bonita, já não tinha o nariz metido no seu
umbigo, sentia confiança na sua amiga imagem! “Decididamente”, pensou
ela uma manhã, quando olhava de relance para o espelho, “vivemos muito
melhor connosco próprios quando nos vemos de relance.” E piscou o olho
ao espelho.

— Não é assim, querida imagem?

(Sophie Carquain)

125
Uma Margarida Diferente

Era uma vez um jardim enorme e maravilhoso! Ele era cheio de mar-


garidas. Margaridas brancas, todas elas margaridas brancas. E eram tantas
que, por mais que você olhasse o jardim, não dava para enxergar onde ter-
minava.

As margaridas ali viviam em constante festa. Eram muito felizes e se


achavam as flores mais lindas do mundo! Na verdade, elas nem sabiam da
existência de outras espécies e cores, acreditavam que eram as únicas e, por
isso, as mais belas.

Até que um dia, algo inesperado aconteceu. Não sei como, nem por-
que, simplesmente aconteceu sem ninguém explicar. É que ali, bem no meio
de todas essas margaridas brancas, outra margarida nasceu.

E o que tem de tão inesperado nisso? Nascer uma margarida é a coisa


mais normal do mundo, acontece todo o dia. Mas a margarida que nasceu
não era como as outras. Era uma margarida amarela.

E mal brotou na terra, já se viu cercada de flores assustadas, com


olhos arregalados que pareciam querer fuzilar a pobrezinha.

No início achou que esta era a forma que elas recebiam as flores que
chegavam, e meio desajeitada com a situação, sem saber o que dizer, ape-
nas sorriu.

O silêncio foi geral. As margaridas brancas nunca tinham visto essa


novidade. Margarida amarela… na certa, alguma coisa estava errada.

Foi aí que começaram as explicações:

— Calma, gente, vai ver que ela nasceu com aquela doença, a febre
amarela. Daqui a uns dias ela melhora, volta à cor normal! Por isso, acho
melhor ninguém se aproximar, pode ser uma doença grave.

126
As margaridas na mesma hora se afastaram, não queriam ser conta-
minadas.

A pequena margarida amarela não entendia nada. Por que as outras


da sua espécie não queriam conversar com ela nem se aproximavam?

— Já sei — disse outra. — Quem sabe, quando ela estava para nascer,
algum bicho fez cocô em cima dela, por isso ela está assim, meio amarelada.
Eca!

— Ela pode ter queimado no sol, torrado e ficado desse jeito, meio
desbotada — falou mais outra.

Cada margarida branca tentava arrumar uma explicação para a cor


amarela da margarida.

Mas o tempo foi passando e a margarida amarela continuava amarela


e cada vez mais sozinha. Chorava toda noite, baixinho, com coração aperta-
do; sofria, por não ter com quem conversar, com quem brincar. Ela só não
sabia o que fazer para ser como as outras.

Até que uma noite, teve uma idéia. Perguntou a um passarinho que
voava por ali, se existia alguma maneira de ela ficar como as outras, bran-
quinha, branquinha.

— Que tal se eu pintasse você? — perguntou o passarinho.

A margarida amarela achou ótima a idéia. Afinal, era o único jeito de


ser aceita e querida pelas outras margaridas.

Naquela noite mesmo, enquanto as margaridas brancas dormiam, o


passarinho levou um balde de tinta branca e pintou a margarida amarela
todinha de branco. Ela achava a cor amarela muito mais bonita, mais alegre,
mas sabia que, se quisesse ficar naquele jardim, ter amigas, precisava ser
branca, igual às outras.

127
Quando as margaridas acordaram, levaram o maior susto! A margari-
da amarela tinha se transformado em branca!

— Tá vendo, eu bem que disse que com o tempo ela iria clarear, era
só uma doença passageira! — disse uma margarida branca.

— Que nada, ela deve ter tomado um banho enquanto dormíamos e


tirou todo aquele cocô de cima dela — disse outra margarida.

A margarida amarela, agora branca, sorriu. Aliviada, por ser como as


outras, agora se sentia parte do grupo.

Foi a partir desse dia que as outras margaridas começaram a olhar


para ela, dirigir-lhe a palavra e até chamá-la para brincar. A pequena marga-
rida se esforçava para falar, para se divertir, mas, por mais que tentasse, não
conseguia ficar à vontade, feliz de verdade! Era como se tivesse que fingir
ser algo que não estava dentro dela. Como é difícil ser igual às outras, quan-
do você nasceu para ser diferente…

Mas em pouco tempo a margarida, agora branca, conquistou todo


o jardim, tinha sempre um sorriso a oferecer. Brincar? Era com ela mesma;
cuidadosa, criativa e carinhosa, conseguiu fazer muitas amizades por ali.

No entanto, você já deve ter ouvido falar que mentira tem perna curta
e, por isso, não dura para sempre. Aconteceu que um dia uma tempestade
forte caiu no jardim. Era água que não acabava mais. O vento soprava com
força, as margaridas se seguravam uma nas outras para não serem levadas. E
o vento ventava e levava para o alto pedaços de folhas, galhos, flores caídas
no chão… e levou também a cor branca da margarida amarela.

No dia seguinte, quando tudo voltou ao normal, ao ver a margarida


amarela de novo, as outras margaridas ficaram assustadas, tentaram se afas-
tar, não conversaram com ela. Mas a margarida amarela já havia conquista-
do o coração de todas as flores, e então as margaridas brancas perceberam
que a cor amarela não era um problema, quando comparada ao enorme
coração que ela possuía.

A margarida amarela ficou tão feliz, por ser aceita como era, que seus
128
olhos derramaram lágrimas de tanta felicidade, e ela tentava despistar.

E foi então que aconteceu um milagre. As lágrimas de felicidade, ca-


ídas na terra fofinha, fizeram brotar um monte de outras margaridas, todas
amarelas.

Hoje o jardim continua enorme e maravilhoso. Mas agora, as marga-


ridas são brancas e também amarelas.

Quem passa por aqui percebe rápido o quanto o jardim se mostra


mais alegre, vivo, lindo. Afinal, a diferença torna o mundo mais bonito!

(Rúbia Mesquita)

129
Casa de Vó

Casa de Vó é o lugar mais doce do mundo!

É onde até o limão é doce e qualquer doce fica muito mais doce.

Há sempre um rocambole fofo coberto de açúcar em cima da gela-


deira.

E dentro?

Nem se fala…

Há sonhos de verdade cobertos de canela.

Há biscoitos quentinhos acabados de sair.

Há suspiros dourados e beijinhos doces.

E a melhor, a mais limpinha, a mais gostosa cama do mundo.

Há esconderijos segredáveis e mapas de tesouro.

Há castelos, fadas, viagens especiais, reis, princesas e super-heróis.

Há risos, muitos risos de sobremesa nas mesas de domingo.

Na casa de Vó as coisas são da altura da gente e tudo está ao alcance


das mãos.

Nada é cheio de não-me-toques.

Tudo é à prova de neto!

130
Até a guerra de travesseiros vem, mas significa paz e alegria.

Na casa da vovó dá vontade de correr e brincar o resto da vida sem


parar nunca.

Pois trincos não tem, fechaduras também não.

Casa de Vó tem, é muitos braços todos abertos a qualquer hora.

Pra casa de Vó você nunca precisa avisar que vai, é só chegar.

Mesa da casa de Vó vive pronta!

Com toalha bem lavável, sem enfeites caros e novos, resistentes, isso
sim.

E tudo funciona melhor na casa de Vó.

As paredes amortecem os tombos.

O chão é menos duro.

O fogão tem mais que seis bocas, todas acesas!

A mesa, como ter pernas…

As cadeiras, mais que dois braços aconchegando.

E Vó, sempre, é toda ouvidos!

Caderno de receita da Vó então, é livro cobiçado, já esgotado.

Todos querem os segredos dos cozidos e dos assados mas ninguém


consegue jamais fazer um igual.
131
Porque o jeito de escrever, as páginas amarelas e as gotinhas de gor-
dura não se fizeram em um dia.

Foram precisos muitos dias de festa e vontade de agradar.

Lamber os dedos pode, mas só na casa da Vó.

Raspa de panela tem sempre, e, o pior, tem fila também.

Se escuta sempre:

“Eu pedi primeiro”.

Quase toda Vó tem cadeira de balanço, um chinelo jeitoso, uma cai-


xinha com bilhetes, lencinhos e papéis amarelados.

Gaveta de Vó então é uma festa!

De vez em quando toda Vó dá um suspiro bem fundo porque tem


coisas demais para se lembrar tendo saudade.

Há coisas que só o amor de Vó faz.

Machucados, por exemplo, são curados com dengo e muitos e mui-


tos beijos.

Dinheiro de Vó rende…

Pensando bem é o único dinheiro que rende.

E costura que Vó faz então?

Chega a vestir três gerações até.

132
As estórias de Vó, as brincadeiras e as cantigas de ninar, só ela conhe-
ce, mais ninguém.

E o sono vem cheio de sonhos bons, quando a Vó está por perto.

Porque só cheirinho de Vó já é uma delícia!

O colo é tão gostoso e a pele tão macia que ficam na lembrança da


gente pro resto da vida.

O assunto não tem fim na casa de Vó.

Há tanto caso engraçado e estórias pra se ouvir, que ver televisão é


perder tempo…

O relógio é sempre adiantado para ninguém perder a hora.

Existe na casa de Vó a mágica do tempo, ele obedece, vai e volta, é


só  querer.

E a gente é o que quer ser.

Cresce, se quiser crescer.

A casa de Vó tem o maior espaço do mundo, mesmo que não tenha


espaço nenhum.

Porque o espaço maior ficou inventado pela liberdade de rir, de correr


e de gritar.

Espaço infinito que é do tamanho do coração que toda Vó tem.

(Escrito por Julia Magnoni)

133
O Tio Vasculho

O Tio Vasculho varria, naturalmente. Nem mesmo podia fazer outra


coisa porque nunca aprendera a ler nem a escrever.

Como no seu tempo as crianças não tinham obrigação de andar na


escola, e o pai achava que ele lhe fazia mais falta para sachar as favas ou para
guardar o milho da eira, o cachopito crescera sem saber distinguir um A de
um B, mas nunca se tinha ralado muito com isso. Podia ter aprendido um
ofício qualquer, é verdade. Mas, habituado a não ter sujeições, o rapaz sen-
tia-se atabafado entre as quatro paredes da oficina, e volta não volta ia dar
um giro pelos campos, o que trazia sempre como resultado ser despedido
pelos patrões que lhe davam emprego.

Nisto se foram passando os anos, e, chegado a velho, o Tio Vasculho


só servia para varrer. Quem lhe havia posto o nome tinham sido os garotos
do bairro: Tio Vasculho! Não era por troça; era só por graça. O Tio Vasculho
empunhava uma vassoura tão grande e tinha uns bigodes tão façanhudos
que o nome lhe estava mesmo a calhar. O Tio Vasculho não se zangava. Até
se ria. E continuava a varrer o largo e as ruas da cidade. Tinha uma autêntica
fúria de limpeza.

Papel sujo caído no passeio ao alcance da vassoura – zás! – era papel


varrido para o monte e apanhado na pá do lixo. Espinha de carapau, casca
de laranja ou de ervilha que as donas de casa desmazeladas atirassem para a
rua iam despachadas em grande velocidade com o mesmo destino, à frente
do Tio Vasculho. Pratinha de chocolate ou cartucho lambuzado de gelado
rodopiavam sem piedade nas barbas da sua vassoura. O Tio Vasculho não
perdoava nem a mais ligeira falta de asseio. E quando via alguém deitar para
o chão papéis velhos ou cascas de fruta, ralhava sem cerimónia e fosse lá
com quem fosse!

Havia uma única espécie de lixo que o não indignava: as folhas secas
do Outono. O Tio Vasculho tinha por elas uma verdadeira paixão. Eram tão
lindas! As folhas das olaias, redondas e doiradas, pareciam-lhe montes de
libras enormes. As dos plátanos, cor de cobre, essas eram como estrelas ca-
ídas por engano no empedrado dos passeios ou no alcatrão da rua. E havia
muitas outras, miudinhas ou largas, vermelhas ou amarelo-canário, cor de
mel ou cor de pinhão…

134
O Tio Vasculho varria-as também, já se sabe, porque o seu trabalho
era varrer e porque as ruas querem-se limpas, mas não o fazia com a fúria
que empregava para varrer as coisas sujas. Varria-as com amor, juntando-
-as cuidadosamente como quem junta um tesouro precioso. Era para ele o
momento melhor do ano, esse tempo do outono quando caíam as folhas. E
o Tio Vasculho sentia-se poeta, mesmo sem saber fazer versos. (Porque ser
poeta é só isto: admirar e amar as coisas lindas que há no mundo à nossa
volta.) E por isso, apesar de velho e trôpego, o Tio Vasculho era feliz. Até que
um dia…

Um dia, a cidadezinha antiga onde morava o Tio Vasculho passou por


uma grande transformação: arrasaram-se prédios velhos das ruas estreitas
para abrir largas avenidas, as árvores antigas foram também deitadas abaixo
porque – diziam certas pessoas – as suas raízes furavam os alicerces dos
prédios e os ramos altos iam bater nos fios telefónicos… A cidade velha mo-
dernizou-se, e o próprio lixo passou a ser chupado por máquinas parecidas
com motoretas, que faziam um barulho dos diabos, mas deixavam o chão
capaz de se lamber, tão asseado ficava. E com todas aquelas modas novas,
o Tio Vasculho ficou sem ter nada que fazer.

Coitado do Tio Vasculho!

Arrumou a vassoura ao canto da barraquita onde morava. (Porque,


infelizmente, as transformações da cidade não tinham sido tão grandes que
não continuasse a haver barraquitas de tábua e lata que serviam de casa aos
pobres como o Tio Vasculho.) Mas ele, que toda a vida só gostara de traba-
lhar ao ar livre, que ia fazer agora? E começou a entristecer com saudades.
Saudades principalmente das lindas folhas doiradas e vermelhas que eram o
seu tesouro do outono.

Ninguém sabe como aquilo aconteceu.

Talvez o vento tivesse reparado nos olhos tristes do Tio Vasculho. Ou


então foi Deus quem o mandou reparar. O certo é que o vento passou pala-
vra às árvores da estrada que saía da cidade, e as árvores, embora distantes
da barraca do Tio Vasculho, sacudindo os ramos, disseram logo que sim,
que o vento lhes podia arrancar todas as folhas que quisesse para as levar ao
velho varredor. E o vento soprou com força, arrastando à sua frente milhares
de folhas secas que vieram tombar à porta da barraquita. O Tio Vasculho
sentiu uma grande alegria ao vê-las. Pegou na vassoura e varreu, varreu,
135
como se lhe voltasse aos braços a energia dos vinte anos.

Nunca os habitantes da cidade entenderam (e os senhores do bole-


tim meteorológico ainda menos) por que motivo todos os anos, pontual-
mente, o vento mudava de direção e, soprando do lado da estrada que saía
da cidade, trazia pelo ar milhões de folhas de todas as cores, que não caíam
nas avenidas, mas se juntavam todas no bairro de lata que ficava longe do
centro.

Então, o Tio Vasculho, de vassoura em punho, voltava a sentir-se po-


eta, mesmo sem saber escrever versos…

(Maria Isabel de Mendonça Soares)

136
Oficina dos Brinquedos

Começa num sótão de uma velha casa a história que vamos contar.
De uma mala entreaberta sai uma vozinha queixosa:

— Está frio, hoje! A quantos estamos?

“Talvez em dezembro”, “Parece-me que em novembro…”, “Não sei se


em janeiro…”, respondem várias vozes estremunhadas.

— O cuco do relógio sabe. Deem-lhe corda que ele diz — lembra ou-
tra voz mais esperta.

Da mala entreaberta sai um ursinho cor de canela, mas um pouco


descorado. Espreguiça-se, volta a espreguiçar-se, e trepa custosamente um
escadote. Pendurado na parede e parado está o relógio de cuco, que já se
não usa. O que se não usa, está usado ou estragado, no sótão fica guardado.

— Não trabalho, mas faço contas de cabeça — diz de lá o cuco.       —


Se perco a conta ao tempo, nunca mais me acerto.

— Anda lá, despacha-te, e diz-nos a quantos estamos! — impacienta-


-se o ursinho de peluche.

— Neste momento são precisamente nove horas, treze minutos e vin-


te e cinco segundos… Cucu… cucu… cucu…

— O dia, o dia! — exigem várias vozes do rés-do-chão.

— … do dia 24 de dezembro de… Cucu… cucu… cucu…

— Véspera de Natal, imaginem — e uma boneca de cabelo emaranha-


do e saia traçada salta de uma gaveta a correr.

— Para onde vais tu com tanta pressa? — pergunta-lhe, do cimo do


escadote, o ursinho cor de canela.
137
— Vou arranjar-me para a ceia. Estou atrasadíssima.

Um palhaço amolgado aparece, a piscar os olhos, detrás de uma ve-


lha cómoda.

— Vai ver-te ao espelho, boneca tola! — diz-lhe ele.

— Detesto espelhos… — e a boneca põe-se a chorar.

De caixas, gavetas e arcas saem mais bonecos e brinquedos. Soldadi-


nhos de espingarda partida, cavalos sem orelhas, macacos de algodão com
o algodão à mostra, burros de pasta ratada e até um carro de bombeiros,
equilibrado em três rodas, acorrem ao choro da boneca.

— Há novidade? Há fogo, inundação, desastre? É preciso ajuda? —


perguntam os bombeiros uns aos outros.

O palhaço amolgado tranquiliza-os:

— Nada disso. É ela que não se conforma e não acredita que já nin-
guém a quer. Quem precisa de uma boneca velha?

— Pois é. Já não prestamos para nada — comentam os outros bone-


cos.

Lentamente, esgaçados uns, esbarrigados outros, rachados uns quan-


tos, regressam às gavetas, arcas, sacos e caixas… Estas conversas não adian-
tam. Mais vale dormir.

Mas o urso de peluche, que continua empoleirado no cimo do esca-


dote, fala para a boneca, de forma a que os outros oiçam:

— Estou, daqui, a ver a máquina de costura antiga. No armário há


vestidos pendurados, tão velhos como nós, mas alguns de bom tecido. Lem-
brei-me que tu podias…

138
A boneca limpa as lágrimas e levanta os olhos para o ursinho:

— Que linda ideia! Achas que posso?

Mais brinquedos oferecem os seus serviços.

— De caminho, podias consertar-me a barriga — pede o macaco de


algodão. — Estou todo descosido.

— Também me dava jeito que me pregasses as orelhas… — lembra o


cavalo de feltro.

De novo a voz do ursinho de peluche, do cimo do escadote:

— Do meu mirante também vejo latas de tinta, que os pintores que


andaram a arranjar a casa aqui deixaram.

— Era ótimo para nós — exclamam os soldadinhos de chumbo. — Es-


tamos mesmo precisados de fardas novas.

— E nós! E nós! — ecoam os bombeiros.

— Pregos, martelos e outras ferramentas não faltam, por aí espalha-


dos — grita, cada vez mais alegre, o ursinho de peluche.          — Mãos à obra,
meus amigos!

Digamos já, para encurtar a história, que aquele sótão, há pouco triste
e sonolento, se transformou numa animada oficina de brinquedos.

— E agora? — perguntam os bonecos, com caras novas e vestidos


floridos.

— Agora vamos descer pela chaminé — comanda o urso.

— Já deve faltar pouco para a meia-noite. Que grande surpresa vai


ser!
139
O pêlo do ursinho de peluche está eriçado de entusiasmo.

Na manhã seguinte:

— Alfredo, vem ver o que está na chaminé!

— Que é, Noémia? Caiu algum tijolo?

— Qual quê, homem! Anda ver. Caíram bonecos e brinquedos do te-


lhado. Foi, com certeza, o Pai Natal.

— O Pai Natal? Na nossa idade?

O senhor Alfredo ficou embasbacado. Imaginem dois amáveis velhi-


nhos, o senhor Alfredo e a dona Noémia, únicos habitantes daquela casa,
a olharem, sem acreditar, para as surpresas reluzentes que o Pai Natal lhes
deixou na chaminé…

— Repara, mulher: aquela boneca não é parecida com a que demos


à nossa filha? E aquele macaco? Naturalmente, caíram do sótão. O soalho
deve ter dado de si… Vou lá acima ver.

— Deixa lá isso, agora! Repara que estes brinquedos estão como no-
vos. Parece que o tempo não passou por eles.

— Até é mal-empregado que estejam lá em cima a estragar-se. E se


fôssemos…? — sugere o senhor Alfredo.

— Vamos — responde a dona Noémia.

O senhor Alfredo e a dona Noémia entendem-se por meias palavras,


mas nós, nas linhas desta história, temos de contar as palavras todas. Sai-
bam, pois, que graças aos dois simpáticos velhinhos, transformados, para o
efeito, em ajudantes de Pai Natal, os brinquedos do sótão voltaram a conhe-
cer as mãos macias dos meninos.

(António Torrado)

140
Como Maria Derrotou o Crocodilo

Maria estava a sonhar a meio da noite e no sonho havia crocodilos


que saíam de baixo da cama. Aproximavam-se cada vez mais e iam ficando
cada vez maiores. Abriam as bocarras e gritavam:

— Uuaah!

Maria queria fechar a boca de um crocodilo pequeno mas ele ia fican-


do maior, cada vez maior….Então acordou. Será que o crocodilo ainda esta-
va debaixo da cama? Maria puxou os cobertores até ao queixo. Um pouco
mais tarde, espreitou com cuidado para debaixo da cama. Ai, se o crocodilo
a apanhava! De certeza que se escondeu no canto mais escuro!

Maria queria ir ter com o pai e com a mãe mas, para isso, tinha de sair
da cama e, de certeza que o crocodilo a apanhava.

— Uuaah!  —  ouviu-se,  vindo  de  baixo  da cama. Maria  ouviu mui-


to bem! O coração batia cada vez mais depressa. De repente, a porta do
armário rangeu.

De certeza que estava lá dentro o fantasma voador que tantas vezes


andava pelo quarto. Maria estava sentada na cama cheia de medo até que a
boca se abriu sozinha e lançou um grande grito no escuro. Mesmo grande!
Tão grande, que era maior do que todos os crocodilos e fantasmas!

O pai e a mãe ouviram o grito e ocorreram imediatamente ao quarto


da Maria.

— O que foi, Maria? — perguntou a mãe.

— O crocodilo está ali… — balbuciou Maria. — O fantasma enorme…

A mãe e o pai espreitaram por baixo da cama, atrás dos cortinados,


dentro do armário, mas não conseguiram encontrar nenhum crocodilo nem
nenhum fantasma gigante. Olharam um para o outro e o pai teve uma ideia:
141
foi buscar um grande rolo de papel e a mãe foi buscar tintas. Começaram a
pintar a meio da noite.

— Ele era assim? — perguntou o pai, pintando um grande crocodilo


numa enorme folha de papel.

— Não, tem de ser muito mais verde! — exclamou Maria.

— Era assim? — perguntou a mãe, desenhando uns grandes olhos.

E Maria começou também a pintar. Na folha enorme, desenhou, com


um pincel enorme, um enorme crocodilo e um enorme fantasma voador
com uns enormes olhos abertos. Por fim olhou, cansada mas satisfeita, para
o enorme crocodilo desenhado a preto e para o grande fantasma a rir-se.

— Agora vamos mostrar ao crocodilo como somos fortes! — disse a


mãe.

— Exacto, vamos expulsá-lo deste quarto — anunciou o pai.

— Como? — Maria ficou com medo. É que os crocodilos são fortes e


perigosos.

— Muito simples! — respondeu a mãe, fazendo um grande rasgão na


boca do crocodilo.

— Agora o crocodilo já não pode apanhar ninguém! — disse Maria.

— Vamos rasgar-te e depressa! — o pai continuava a rasgar.

— Com alegria! — disse a mãe, amarrotando o fantasma.

— Com força! — gritou Maria e, com as mãos, rasgou a barriga do


enorme crocodilo.

142
— Com esperteza! — disse o pai, que foi buscar uma grande caixa de
sapatos e deitou lá para dentro todos os pedaços do crocodilo, grandes e
pequenos.

— Ainda com mais força! — exclamou Maria, calcando o fantasma


com as duas mãos dentro da caixa.

— Com ímpeto! — disse a mãe, amarfanhando a tampa contra a caixa.

— Com força e coragem! — disse Maria, que pegou na corda de saltar,


a atou com força à volta da caixa, à volta do enorme crocodilo e do fantas-
ma.

E levaram a caixa com o crocodilo e o fantasma a reboque pelo quar-


to da Maria fora. O pai tocava uma marcha triunfal com as bochechas. Ma-
ria marcava o tempo com as palmas das mãos e a mãe batia com os pés.
Juntos, amarraram a caixa fechada à cómoda da entrada. O crocodilo fora
derrotado e Maria sentiu-se, de repente, terrivelmente cansada.

(Elisabeth Zöller)

143
A Lição da Paciência

Um mandarim que se preparava para desempenhar um importante


cargo oficial recebeu a visita de um amigo que lhe foi apresentar as despe-
didas.

Abraçaram-se e o amigo recomendou-lhe:

— Acima de tudo, no desempenho das tuas importantes funções,


nunca percas a paciência.

Prometeu o mandarim que nunca esqueceria este precioso conselho.

Três vezes repetiu o amigo a mesma recomendação, provocando o


enfado do mandarim. Quando se preparava para o fazer pela quarta vez, o
mandarim exaltou-se e gritou:

— Basta, eu não sou surdo e muito menos sou um imbecil!

Então o amigo, acalmando-o com a mão posta sobre o seu ombro,


fez este comentário:

— Podes assim ver como é importante ser paciente. Três vezes ouvis-
te o meu conselho, já não conseguindo dissimular o enfado. À quarta vez
não conseguiste controlar a fúria. O que acontecerá quando, no desempe-
nho do teu cargo, tiveres de ser verdadeiramente paciente?

O amigo baixou os olhos para o chão e limitou-se a suspirar.

(J. J. Letria)

144
A Vassoura Nova

Era uma vez uma vassoura que andava a estudar para aspirador. Mas
sem grandes resultados, deixem-me que lhes diga.

Ela bem que se esforçava, nas aulas de Electricidade e, sobretudo, nas


aulas de Ginástica respiratória. Inspirava… inspirava… só inspirava, mas pou-
co avançava na matéria.

Da avó, uma velha vassoura fora de uso, só ouvia palavras de desâni-


mo:

— Cada um é para o que nasce, rapariga.

Ela revoltava-se:

— Não me enfrenesie com lamúrias, senhora. Vassourar toda a vida e,


depois, acabar a um canto, como a avó, não contem comigo. Eu nasci para
outros voos.

Um dia, foi preciso uma vassoura para uma peça de teatro – uma
história, que metia feiticeiras, daquelas de lenço e nariz de cavalete (de pa-
pelão, já se vê…). Eram bruxas à antiga, que cavalgavam vassouras e voavam
no palco (a fingir, já se sabe…).

Escolheram a vassoura aspirante a aspirador.

— Vê, avó, como eu tinha razão — disse a vassourinha. — Sempre vou


mudar de vida.

Pois mudou. Voava pelos ares, como barra de trapézio, ao som da


música e no meio das gargalhadas cacarejantes das senhoras feiticeiras da
peça. Encandeada pelos projetores, fazia um figuraço.

“Se a minha avó aqui estivesse, havia de gostar”, pensava, muito orgu-

145
lhosa, a vassoura.

Era pena, mas não estava. Por sinal que, lá em casa, tinha-se avariado
o aspirador e quem, agora, fazia toda a lida da casa era a vassoura velha.

“Se a minha neta aqui estivesse, havia de me ajudar”, pensava, muito


desconsolada, a avó vassoura.

Avó e neta acabaram por encontrar-se. Tinha terminado a carreira da


peça e já o aspirador estava arranjado.

Penduradas as duas, atrás da porta da despensa, descansavam das


emoções e trabalhos.

— Afinal, voltaste à mesma — dizia a vassoura velha à nova.

— Não voltei nada — respondia-lhe a neta. — Estou apenas à espera


que me contratem outra vez.

— Estás tão desempregada como eu — rematava a velha.

— Não estou nada. Agora sou uma atriz em férias, fique sabendo.

Tem muita genica a vassourinha.

(António Torrado)

146
Biscoito

Certo dia, o gato Biscoito regressou da sua corrida diária e sentou-se


para tomar o pequeno-almoço. Abriu o jornal na página dos empregos.

— Hoje vou procurar emprego — decidiu ele.

PROCURA-SE: SEGURANÇA PARA ARMAZÉM. TEM DE SER GRANDE,


FORTE E MAUZÃO. “Este parece interessante”, pensou o Biscoito. “

Eu sou grande, para gato, e bastante forte; e, se quiser, posso ter um


ar mesmo mauzão.” Vestiu umas roupas para parecer ainda mais forte e foi
para o armazém.

— Ofereço-te o emprego — disse o dono do armazém, um grande


buldogue.

— Um gato forte como tu é exatamente aquilo de que precisamos por


aqui. Tudo corria bem... até que o Biscoito deu alguns pedaços de madeira a
um rato trabalhador que passou por ali.

O buldogue ficou muito zangado.

— Por que razão achas que contratei um gato? — gritou ele.

— Tens de perseguir os ratos neste armazém, não fazer amizade com


eles.Agora, fora daqui e não voltes cá!

Biscoito voltou para o seu jornal e encontrou outro anúncio.

PROCURA-SE: ASSISTENTE DE BARCOS DE ALUGUER PARA RECREIO,


MARINA DO RIO AZUL. TEM DE SABER NADAR E REMAR. SE POSSÍVEL, COM
EXPERIÊNCIA DE NADADOR-SALVADOR.

Biscoito era um bom nadador e já tinha trabalhado como nadador-


salvador durante um mês. Vestiu umas roupas especiais para ter um ar mais
desportivo e dirigiu-se para a marina de Riverside.
147
— Parabéns! Aceitamos-te para o emprego — disse o dono, que era
um castor. Mostrou as docas ao Biscoito.

— Um bom gato como tu, é exatamente o que precisamos. Tudo cor-


reu bem… até o Biscoito deixar uma família de ratos pescar no pontão. As
pessoas que alugavam os barcos de recreio não gostavam de ratos, e quei-
xaram-se ao castor.

O Biscoito ouviu-o dizer: — A culpa é daquele gato!

O Biscoito pôs-se a andar antes que o castor lhe ralhasse. “Não tenho
tido muita sorte” pensou o Biscoito. Depois, lembrou-se de outro anúncio
do jornal. PROCURA-SE: EMPREGADO PARA RESTAURANTE NOVO. TEM DE
TER BOA APARÊNCIA E BOAS MANEIRAS. ESSENCIAL O CONHECIMENTO
DE INGLÊS. “Perfeito!”, pensou o Biscoito.

Ele tinha tido Inglês na escola. Vestiu outra roupa para ficar super
apresentável e foi para o restaurante.

— Parabéns! O emprego é teu — disse o chefe dos empregados, que


era um pato. — Um gato como tu é perfeito para este restaurante. Tudo cor-
reu bem… até que um casal de ratos entrou no restaurante.

O Biscoito ofereceu-lhes logo um lugar na mesa do centro.

— RATOS! RATOS! — gritaram os patos, saltando dos seus lugares.

— RATOS NO RESTAURANTE! — cacarejou uma galinha, batendo as


asas. O Biscoito nem quis esperar para ouvir o que o chefe dos empregados
tinha para dizer. Limitou-se a sair sorrateiramente pelas traseiras.

“Parece que as pessoas que contratam gatos só querem que eles per-
sigam ratos”, pensou o Biscoito. “Mas eu não quero perseguir ratos — afinal,
eles nunca me fizeram mal!” Nesse momento, viu um anúncio numa mon-
tra. LOJA DE QUEIJOS RATOS & COMPANHIA — PROCURA-SE ASSISTENTE

“Gostava mesmo deste emprego”, pensou o Biscoito “mas eles não


iam contratar um gato...” Quando chegou a casa, o Biscoito não parava de
148
pensar na loja de queijos. Se ele não tivesse um ar tão felino, talvez eles o
contratassem para o emprego!

Experimentou todos os tipos de roupas, mas, por muito que se olhas-


se ao espelho, parecia sempre um gato.

Depois teve uma ideia. “Talvez os ratos que eu conheci me ajudem!”

E dirigiu-se para o bairro dos ratos, o mais depressa pôde.

Os ratos ficaram muito felizes por verem o Biscoito outra vez.

— Claro que te ajudamos, Biscoito — disseram eles.

— Vamos contigo à loja dos queijos e temos uma conversa com o


gerente.E assim fizeram.

— Este gato deu-me alguns pedaços de madeira quando eu precisei


— disse o rato trabalhador ao gerente da loja dos queijos.

— Deixou-nos pescar no pontão e pescámos um peixe enorme! —


disseram os ratinhos bebés.

— Deu-nos a melhor mesa do restaurante — disse o casal de ratos,


radiante. — Calem-se todos! — disse o gerente da Loja de queijos.

— Tudo bem — concordou ele finalmente, apertando a mão ao Bis-


coito. — Vou dar-te uma oportunidade.

O Biscoito depressa se tornou o gato mais famoso da cidade. Vinham


ratos de muito longe só para lhe comprar queijo e para lhe apertar a mão.

O gerente da LOJA DE QUEIJOS RATOS & COMPANHIA não podia


estar mais feliz. E, melhor do que tudo: o Biscoito nunca mais foi despedido!

(Becky Bloom)

149
A Cerejeira Da Lua

A Lua fita-nos quando a fitamos? Não. Nunca. Se a chamarmos, deste


canto da Terra, a Dama Toda Branca embuça-se de mistério e faz de conta
que é a Bela Adormecida. Presunçosa.

Como se toda a gente não soubesse que a Lua deixou de ser inacessí-
vel. Botas memoráveis pisaram-lhe a superfície desolada. Satélites zumbem
à sua volta. Telescópios potentíssimos perscrutam-lhe todos os socalcos,
rugas e verrugas.

A Lua é a nossa vizinha defronte. E, ao perto, nada bonita, por sinal.

Quem se atreve a dizer-lho? Não contem comigo.

Aliás, pouco importa. Ela que nos ignore. Que dirija a atenção para
a distância azul da noite. Que recorde outros tempos, antigas glórias. Que
sonhe. Deixem-na sonhar.

Entre muitas evocações mimosas, a Lua sonha com o imperador


Meng Uóng, que dela se enamorou. Onde isso vai.

Numa das varandas do palácio imperial, ornamentada de gaiolas de


ouro, Meng Uóng, tocado pela tristeza do crepúsculo, dá de comer às coto-
vias.

O sábio Tien-O-Tzê segue-o em silêncio como uma sombra protec-


tora. Foi seu aio, depois seu mestre.

Introduziu-o no segredo dos cultos, interpretou, um por um, para


ilustração do jovem imperador, todos os conselhos do livro dos veneráveis,
e pacientemente guiou-lhe a mão inábil de menino sobre o desenho das
primeiras letras gravadas em tabuinhas de sândalo.

Brilha o esmalte das colunas à luz dos archotes. Criados de sandálias


sussurrantes varrem com leques de penas de pavão o fumo do ar à roda do
imperador. Um perfume adocicado de ervas preciosas evola-se dos turíbu-
150
los mansamente agitados pela brisa do princípio da noite.

Uma pena cinzenta de cotovia esvoaça e como que hesita entre a


varanda e o escuro do jardim. Tocada por um raio do luar parece de prata.

Isto mesmo diz o imperador, pensativo, enquanto acompanha o de-


vanear da pena que, depois, se perde por entre a ramagem dos sicómoros.

– Tudo à nossa volta aspira à perfeição – comenta o sábio Tien-O-T-


zê.

O imperador suspira:

– Até uma pena de cotovia…

– Até uma pena de cotovia – repete o sábio.

– Não será um sinal, um aviso da Lua? – pergunta o imperador, subi-


tamente ansioso.

O sábio permite-se sorrir.

– Se Vossa Majestade assim o quer, será – diz, cofiando a barbicha


branca e encerada que lhe escorrega até à cintura.

Descem da varanda ao jardim alumiado por grandes lanternas de pé-


talas roxas. Suspensas, rente ao chão, as lanternas tudo convertem à cor dos
sonhos mais imprevisíveis. A relva, as ramagens baixas dos arbustos e os pés
do imperador e do mestre ficam aureolados de roxo e lilás. Parece que ca-
minham sobre nuvens.

Porque o sábio não desaproveita uma oportunidade sem retirar um


ensinamento que sirva de alimento espiritual ao jovem imperador, logo
acrescenta mais esta fala:

– Um vosso antepassado, o erudito e judicioso imperador La-Long,


151
escreveu na base de uma estatueta de jade, que representava um monge
de pálpebras descidas, um luminoso pensamento: “O inatingível está à tua
mercê. Queres que os teus desejos aconteçam? Fecha os olhos.”

Proferidas estas palavras graves, o sábio Tien-O-Tzê, apoiado a um


tronco nodoso de cerejeira que lhe serve de bordão, suspende os passos.
Fecha os olhos.

Encara-o, surpreendido o imperador.

– Estás a desejar alguma coisa? – pergunta.

O sábio abre os olhos:

– Os meus desejos são os vossos, Majestade. Procurava apenas adi-


vinhá-los.

– E descobriste-os?

Tien-O-Tzê, em resposta, ergue o bordão e aponta-o à Lua, redonda


e enorme, que subia ao céu, logo por trás dos últimos sicómoros do jardim.

– Tens razão, genial amigo – exclama, entusiasmado, o imperador. –


Quero ir à Lua.

– Pois irá – proclama o sábio. – Segure, Vossa Majestade, o arrocho


de cerejeira a que me arrimo para as pequenas e grandes caminhadas da
vida… Cerre os olhos.

O imperador, habituado a confiar no mestre, corresponde ao manda-


do.

– Este bordão, que ambos seguramos, há-de levar-nos à Lua – brada,


num acesso de inesperada força, o sábio ou mago Tien-O-Tzê. – Não abra
os olhos, Majestade, que eu vou lançar o bordão ao céu.

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O imperador Meng Uóng, de pálpebras apertadas, sente, num arrepio,
que os pés, calçados com finas babuchas escarlates debruadas a pérolas,
se soltam do solo e divagam no vazio como se os tivesse suspensos de um
baloiço.

– Não abra os olhos, Majestade – torna a recomendar-lhe Tien-O-T-


zê.

A voz dele ressoa em eco, repercutida por toda a abóbada celeste:

– Não abra… não abra… não abra os olhos, Majestade…

Vão longe? Vão perto? Por onde voga o bordão a que sábio e impera-
dor se fincam como náufragos que rodopiassem no turbilhão de uma tem-
pestade silenciosa? O imperador pergunta e não quer achar resposta.

Um vento ciclónico e cada vez mais frio encortiça-lhe o rosto crispa-


do. É insuportável. Manter os olhos fechados, agora, não custa. Mais custaria
abri-los. O vento pacifica-se em aragem. O frio em amenidade.

Aos ouvidos do jovem imperador soam, primeiro indistintamente,


depois mais nítidos, os acordes de guitarras e vozes femininas, numa fresca
melopeia de boas-vindas. De súbito, os pés encontram chão.

– Pode abrir os olhos, Majestade – comanda o sábio numa entoação


de riso.

Ah! eis a Lua! A seu lado, Tien-O-Tzê recupera só para ele a vara de
cerejeira e enterra-a no musgo esbranquiçado do solo lunar, fofo e macio,
que dá a cada passo uma cadência de dança.

Talvez por isso as jovens que acorrem a receber os visitantes, vestidas


com túnicas de cores celestes, têm um andar precioso de dançarinas rituais.
Agitam leques, cantam e riem como sinos de porcelana.

– Para onde nos levam? – pergunta, aturdido, o imperador, que pela


primeira vez sente o peso da sua túnica de brocado azul onde fulgem dois
153
dragões de oiro.

Elas rodeiam-nos e empurram-nos brandamente enquanto tangem


alaúdes.

Levados pelo redemoinho da festa, o imperador e o sábio distanciam-


-se do lugar onde tinham poisado. Sobem agora uma escadaria de marfim
onde, no alto, luminosa, os espera…

– Seong-Ngá, a castelã da Lua – exclama Tien-O-Tzê, reconhecendo-


-a ao primeiro relance.

O sábio não errara. Seong-Ngá reina sobre as selenitas. Ela, que se


refugiara na Lua enquanto o seu esposo, Hau-Ngai, se exilara no palácio do
Sol, ora toma a configuração de uma rã de três pernas, ora se ostenta em
toda a sua beleza de imortal.

Felizmente que, para receber as visitas, não apareceu sob a forma de


batráquio, o que seria deselegante. Sentada num trono de coral, rodeada de
fadas dançarinas, Seong-Ngá não profere uma única palavra, mas eles per-
cebem pelo brilho dos seus olhos maliciosos tudo o que ela tem para lhes
contar.

Com um gesto insinuante, rodopiando o leque, Seong-Ngá aponta


para o cimo de uma colina próxima onde o coelho de jade, diante do almo-
fariz, prepara incansavelmente o remédio contra todos os males. É o elixir da
imortalidade. A guardiã da Lua parece dizer:

“Querem provar? Apressem-se…”

Sábio e imperador descem, em corrida, a escadaria e precipitam-se


para a colina. Esquecidos das regras de reverência, nem agradeceram a ge-
nerosidade do convite.

Antes de alcançarem o coelho, na sua oficina de alquimista, têm de


passar por um desfiladeiro obscuro. Cessaram os cânticos de saudação. Sá-
bio e imperador vão sós e estremecem quando lhes chega às narinas um
odor áspero de animal feroz, no seu refúgio.
154
Logo em seguida um rugido e, após este, outro e outro ainda, todos
assustadores. Um tigre cinzento e branco assoma ao outro extremo do des-
filadeiro. Revira os olhos rancorosos e vai saltar sobre os dois viajantes.

– Fujamos – grita, apavorado, o imperador Meng Uóng. – O teu bor-


dão, onde o deixaste?

– Longe – responde-lhe o sábio, que já corre à frente do príncipe.

Tien-O-Tzê, pela primeira e única vez na vida olvidou, naquele transe,


as precedências da etiqueta e o comedimento a que a sua provecta idade
obrigaria.

Os pés afundam-se no musgo como na neve, o que lhes prejudica o


despacho da corrida. Sentem sobre as costas o hálito em fogo do tigre im-
placável…

– Feche os olhos, Majestade. O sonho mau vai passar.

À voz entrecortada do sábio responde o imperador, aflito:

– E aonde me agarro desta vez?

O sábio, sem parar de correr, grita num assomo de impaciência:

– Agarre-se à minha mão – enquanto lha estende. – Acabo de des-


cobrir a raiz de um raio de luar que nos levará até à Terra.

– Aguentará o nosso peso? – teme o imperador.

O sábio repete, soluçando de cansaço, a máxima de La-Long:

– Queres… que os teus desejos… aconteçam? Fecha… os olhos. Acre-


dite… acredite, Majestade!

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Mas o imperador duvida:

– E o tigre? O tigre não virá atrás de nós?

– O tigre não conhece a máxima e não fecha os olhos – exaspera-se


Tien-O-Tzê. – O tigre tem medo de cair. Nós não!

De olhos fechados, escorregam pelo raio de luar que se arqueia e


alarga até parecer uma estrada de descida suave.

Assim, sem sobressalto, chegam ao jardim imperial. A Lua escondeu-


-se. Os archotes da varanda ardem, inúteis, à luz da madrugada.

Desde essa noite inesquecível que o imperador Meng Uóng tange o


alaúde evocando as melodias que ouviu das selenitas.

E entusiasmado pelos bailados e cânticos das fadas lunares criou uma


escola, num pavilhão, no meio de um pomar de pereiras.

Aí, os jovens do palácio foram industriados na arte de dançar e cantar


como os habitantes da Lua.

Assim é justificada a origem do teatro chinês e o nome de lei-un-tchi-


-tâl, “discípulos do pomar das peras”, como são designados os seus actores.

Quanto ao bordão de cerejeira que o sábio Tien-O-Tzê plantara na


superfície musgosa da Lua, conta a lenda que ganhou ramos, folhas, flores…

Quem quiser ver a cerejeira, que olhe para a lua na noite que precede
o décimo quinto dia do oitavo mês lunar, segundo o calendário chinês.

Se não conseguir ver, feche os olhos. No espelho da imaginação tudo


acontece como queremos…

(António Torrado)

156
Lúcio e as Estrelas

Diz uma lenda que, na Terra de Cristal, vivia um povo que falava com
as estrelas. Os anciãos ensinavam as crianças desde pequeninas a comu-
nicar com elas, não por palavras, mas através do pensamento. Mesmo que
gritassem, os habitantes das estrelas não podiam ser ouvidos, por ficarem
muito distantes; mas os pensamentos, esses chegavam, porque para o pen-
samento não há distância.

Na Terra de Cristal, quando uma criança fazia sete anos, celebrava-se


sempre uma grande festa. A criança escolhia uma estrela: essa seria a sua
estrela. A partir desse dia, devia localizá-la no céu e, à noite, começava a en-
viar mensagens aos seus habitantes. Devia fazê-lo todas as noites, para que
os habitantes dessa estrela reconhecessem o “som” dos seus pensamentos,
tal como na Terra de Cristal cada pessoa é reconhecida pelo som da sua voz.

Lúcio sentia-se um tanto nervoso: nessa noite teria a sua grande festa
e iria escolher a sua estrela. Ia ter de mostrar que aprendera tudo o que os
anciãos lhe ensinaram.

— Como te sentes? – perguntou-lhe Cristóvão, o seu professor.

— Um pouco nervoso. Não sei se serei capaz de fazê-lo bem – res-


pondeu Lúcio. — E também não sei o que hei de dizer aos habitantes da
estrela.

— Ainda tens tempo para pensar nisso. No primeiro dia, deves apenas
apresentar-te, dizer o teu nome e como és. Aconselho-te a não falares mui-
to. Eles têm de familiarizar-se contigo aos poucos.

— O Sr. Professor ensinou-me a transmitir os meus pensamentos às


estrelas, mas não me ensinou a receber os delas. Como vou saber que me
ouviram?

— Perguntas bem, Lúcio — respondeu o professor. — Ensinar-te-ei


isso no devido tempo, à medida que fores pondo em prática o que apren-
deste até agora. Lembra-te que quando as tuas mensagens lá chegarem, virá
um sinal luminoso semelhante a um brilho intermitente e a tua estrela vai
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começar a cintilar com uma luz azulada.

— E se não responderem?

— Isso significa que a tua mensagem não chegou.

Lúcio ficou pensativo: via toda a aldeia ali reunida a olhar para o céu
à espera do brilho azulado e este sem aparecer… O professor, que ouvia os
seus pensamentos, sorriu e disse-‑lhe:

— Lúcio, confia em ti. Se duvidares de ti, essa dúvida vai provocar uma
grande debilidade na tua mente e, assim fracos, os teus pensamentos não
chegarão à tua estrela. Porém, se tiveres confiança e não duvidares das tuas
capacidades, o teu pensamento será potente como a luz de um grande foco
e chegará sem qualquer impedimento à tua estrela.

 Lúcio compreendeu que essa noite tão especial iria provar se ele re-
almente confiava em si próprio!

Quando o sol se pôs e a primeira estrela despontou no céu, os ha-


bitantes da Terra de Cristal foram saindo de casa e dirigiram-se ao local da
celebração. Lúcio vestira-se com roupa especial para o evento: una túnica
de linho branco que lhe chegava até aos joelhos, uma fita amarela com um
desenho bordado atada em volta da testa e, na mão direita, levava uma va-
rinha de cristal de quartzo. À hora indicada, o professor, colocando-se junto
dele, disse-‑lhe:

— Lúcio, chegou a hora: fizeste sete anos e preparámos-te para este


momento. Esta noite vais escolher a tua estrela e mandar aos seus habitan-
tes a tua primeira mensagem. Sabes que as palavras não chegam lá, mas
os teus pensamentos, se forem suficientemente potentes, chegarão. Diz, já
escolheste a tua estrela?

— Sim, aquela ali! — respondeu, indicando com a vara de cristal de


quartzo a estrela que elegera.

— Muito bem, Lúcio. Deves saber que essa estrela pertence ao siste-
158
ma de Arcturus. Já podes enviar a tua mensagem, quando quiseres.

Lúcio fechou os olhos, concentrou-se e enviou os seus pensamen-


tos para a estrela, repetindo mentalmente cada uma das palavras. Todos os
habitantes da Terra de Cristal olhavam para a estrela escolhida, à espera do
brilho azulado. Mas o sinal não vinha. O tempo ia passando e o sinal sem
vir… As pessoas impacientavam-se e falavam em voz baixa. Então Cristóvão
aproximou-se e murmurou-lhe ao ouvido:

— Lúcio, imagina que se encontra lá o teu melhor amigo. Sabes que


não podes mandar-lhe uma carta nem falar com ele. Pensa nele com todo
o teu coração, diz-lhe o que quiseres. Do fundo do coração, sem forçar a
mente.

E Lúcio assim fez. Foi então que começou a sentir um grande calor
no peito… De repente, as pessoas que olhavam para o céu soltaram uma
grande exclamação. Lúcio abriu os olhos e viu, fascinado, a sua estrela ir-
radiar uma linda luz azulada e dentro da sua cabeça ouvia: Somos os teus
amigos de Arcturus. Estamos contentes por te conhecer. A partir de hoje ire-
mos ensinar-te o que nós aprendemos, para que, quando chegar a ocasião,
tu o ensines aos habitantes da Terra de Cristal. Todos aplaudiram Lúcio, que
permanecia calado, enquanto escutava os seus novos amigos das estrelas.

(B. I.)

159
O Bastão do Poder

Num reino distante, o soberano morreu deixando como herdeiro o


seu filho único. Saul tinha apenas onze anos quando, triste e assustado, foi
ter com o conselheiro real a fim de que este lhe dissesse o que deveria fazer
para subir ao trono, como era desejo de seu pai.

— Para seres rei, tens de encontrar primeiro o bastão do poder. Ele


dar-te-á a força e a sabedoria que é preciso para governar de uma maneira
justa.

— E onde está esse bastão do poder? — perguntou Saul.

— Pouco antes de morrer o teu pai ordenou que o escondessem.


Amanhã pôr-te-ás a caminho para o encontrares.

Naquela noite Saul deitou-se muito ansioso. Já bastava a dor pela


perda do pai…E se não fosse capaz de encontrar o bastão do poder? Nem
sequer sabia por onde começar a busca!

Na manhã seguinte, um criado veio acordá-lo. Entretanto, um ou-


tro preparou-lhe o cavalo e as provisões para a viagem. Saul pôs à cintura
a espada do pai e pôs-se a caminho. Dois cavaleiros escoltaram-no até ao
bosque onde acabava o mundo conhecido e principiava um labirinto de ve-
redas entre densa vegetação, labirinto esse que ele jamais tinha percorrido.
A partir daí devia seguir sozinho.

A princípio, o jovem príncipe teve muito medo: estava entregue a


si próprio e não teria a ajuda de ninguém. Mas, depois, os raios de sol que
passavam por entre as árvores e o alegre cantar dos pássaros iluminaram o
seu coração.

Saul fez uma paragem junto a um poço e interrogou-se se não seria


aquele o lugar escolhido pelo pai para esconder o bastão do poder. Para
se certificar, puxou da corda até fazer subir um balde cheio de água fresca.
Despejou-a no chão para ver se haveria alguma coisa dentro do balde. Mas
nada!

— Maldito sejas tu e todos os da tua estirpe! — gritou uma voz atrás


160
de si.

Saul desembainhou a espada, ao mesmo tempo que se virava para


arremeter contra quem lhe falara de forma tão ameaçadora. Mas, ao ver que
era uma velha encurvada e temerosa, voltou a meter a espada na bainha.

— Quem és tu para me falares assim? — perguntou — O que queres?

— E quem és tu para desperdiçar a água do poço? — respondeu a an-


ciã — Que pretendes com isso?

— Busco o bastão do poder que o meu pai escondeu antes de morrer.

Ao ouvir tal, a anciã deu uma estrondosa gargalhada que quase a fez
cair ao chão.

Ofendido, Saul disse-lhe:

— Já que achas tanta graça, talvez me possas indicar onde o encon-


trar. Não conheço esta floresta.

A anciã olhou para o príncipe com mais afeto e disse:

— O bastão do poder está mais perto do que parece.

— Queres dizer que está no poço? Tenho de descer até ao fundo?

— Não — respondeu ela — só te disse que está mais perto do que pa-
rece.

A anciã disse-lhe adeus com a mão e desapareceu por entre a espes-


sura da floresta.

Saul montou de novo no seu cavalo e prosseguiu viagem. Esperava


encontrar o bastão do poder num poço, na cabana de um pastor, talvez até
numa igreja abandonada… Todavia, só via floresta, sempre floresta. A dada
altura já não sabia se realmente estava a avançar ou se andava em círculo.

161
Tinha a impressão de passar mais que uma vez pelos mesmos caminhos.

Mas as palavras da velhinha tinham-no deixado desconcerta-


do. “O bastão de poder está mais perto do que parece.”

“Mais perto como? ”, interrogava-se. Se não o via em lado algum!

Quando a noite caiu, Saul continuou a andar mais um pouco na espe-


rança de chegar a alguma aldeia. Por fim, teve que se conformar em dormir
ao relento. Desmontou. Tirou mantas, comida e água. De todo o lado chega-
vam uivos e o ulular de aves estranhas. Atemorizado, comeu um pouco de
pão com queijo e depois envolveu-se na manta, como se esta o protegesse
de todos os perigos.

Ao acordar pela manhã, viu uma cara preta e pontiaguda a fitá-lo.

Após o susto inicial, deu-se conta de que era um corvo. Tinha pousa-
do no seu peito e observava-o com uns olhos bem próximos um do outro.

— Tu, passaroco. Fora daqui! A não ser que queiras mostrar-me onde
se esconde o bastão do poder!

Como se tivesse entendido o que Saul acabava de lhe dizer, o corvo


voou para uma pedra lisa e vertical. Aquele pôs-se de pé e logo viu que no
chão havia muitas pedras daquelas… Eram lápides. Logo, tinha passado a
noite num cemitério abandonado! Dando graças a Deus por se ter dado
conta somente pela manhã do lugar onde estava, Saul acercou-se cautelo-
samente da lápide onde o corvo se pousara. Este virava a cabeça a espiar-lhe
as intenções.

Pensando que talvez o pássaro fosse um sinal, Saul limpou o pó da


lousa horizontal que cobria o sarcófago. O corvo grasnou duas vezes mas
sem se afastar. Decidido a seguir a sua intuição, o rapaz desembainhou a
espada e utilizou-a como alavanca para levantar a pesada pedra. “Talvez o
bastão do poder se esconda debaixo de uma destas lousas”, pensou.

Mas quando começou a erguê-la com grande esforço, o fio da espada


partiu-se e Saul ficou com o punho na mão. Furioso por ter partido a espada
que herdara do pai, meteu o punho que lhe restava no cinto, subiu para o
162
cavalo e deu meia volta.

Durante mais de meia jornada andou perdido. E já pensava que nun-


ca encontraria o caminho de volta ao palácio… De qualquer modo, chegaria
de mãos vazias…

Sentia-se deveras contristado, mas, quando passou novamente pelo


poço, não pôde deixar de soltar um grito de alegria. Ali estava de novo a an-
ciã que, nesse momento, se esforçava por tirar um balde de água. Saul saltou
do cavalo e ajudou-a, enquanto lhe dizia:

— Disseste-me que o bastão do poder está perto, mas ainda não o vi


em lado algum.

— Claro — retorquiu a anciã — Tem-lo tão perto de ti que não o vês!

Esta resposta voltou a desconcertá-lo. Despediu-se dela e reiniciou o


caminho de volta.

Então, quando as ameias do palácio já se desenhavam por entre as


árvores, Saul teve uma revelação. Como se a sua mão soubesse mais do que
ele, levou-a ao cinto onde estivera a espada e tirou o que restava dela: o pu-
nho. Com o coração a bater, Saul arrancou as tiras de couro que o revestiam
e viu que o punho da espada era um cilindro oco em cujo interior havia um
pergaminho. E nele estava escrito com a letra do pai:

Meu querido Saul,

Quando leres este pergaminho já não estarei neste mundo e tu serás


o novo rei.

Escondi-o no punho da espada, não por ela ter algum valor, mas por-
que quero que entendas que o importante está sempre contigo. O bastão do
poder encontrá-lo-ás sempre dentro de ti, se agires com justiça, humildade
e generosidade, pois não há maior conquista do que a conquista de ti mes-
mo. Não precisas de mais nada para governar. Vemo-nos no outro mundo,

Teu Pai
Dr. Eduard Estivill; Montse Domènech
163
Branca, A Ratinha Que Não Queria Adormecer

Todas as noites, Branca, a pequena ratinha, dava voltas na cama, e


olhava com inveja para a amiga Rosa, que dormia profundamente, a seu
lado. Rosa, sorridente no seu sono, era a rainha da terra!

Branca detestava a noite, que era má e não lhe trazia sono. Toda a
gente dormia sempre, exceto ela. A sua cabeça continuava às voltas, às vol-
tas, como um pequeno hamster na sua roda.

Tentou de tudo para conseguir dormir: respirar tranquilamente, abra-


çar-se ao seu velhinho peluche cor-de-rosa, contar carneirinhos brancos,
aranhas do teto, buracos de queijo, ninhadas de ratinhos. Mas nunca ador-
mecia. Havia sempre alguma coisa nela que se mantinha bem alerta.

- O teu problema - havia declarado o doutor Ratazana não é o cora-


ção, mas os ouvidos. Os teus ouvidos ouvem demasiado!

Branca tinha orelhas mágicas, que captavam tudo o que se passava


do outro lado da casa e muito mais longe ainda. Um piar de ave, um esvo-
açar de morcego, uma borboleta noturna perdida junto de uma lâmpada.
Era como se todas as noites alguém aumentasse o volume do som! O pior
é que ela ouvia tudo o que habitualmente os outros não escutam: os pais, a
professora que dizia:

- Reviste bem a lição? Branca, aprende, aprende!

Ouvia mesmo o bebé da cunhada, que dormia na divisão ao lado.


Mas ouvia também os malfeitores da noite a falarem entre eles. O gato Lú-
cifer com os seus grandes olhos verdes. Zorro, com patas e grandes garras…
Todos os que queriam vir ao quarto dar-lhe uma patada ou fazer dela uma
papa de rato! Então, dirigia-se, a tremer, ao quarto dos pais.

- Minha pequenina - dizia a mãe - a porta está fechada à chave! Olha!

E fechavam a porta diante dela, com um grande sorriso, para a tran-


quilizarem.

164
Mas a porta que estava aberta era a que estava dentro da sua cabeça,
deixando passar todas os seus medos. Era assim que Branca vigiava sempre
a casa, a cidade, e o mundo inteiro!

Era por isso que a ratinha gostava tanto de convidar uma amiguinha
para casa, apenas para não estar só. Junto da amiga, a roda do pensamento
deixava de girar.

As amiguinhas também gostavam de dormir em casa de Branca, que


se mantinha sempre acordada, como uma mãe sempre vigilante.

- Eu sou a guarda do sono - afirmava Branca, com orgulho.

Naquela noite, Branca e a amiga Rosa tinham rido imenso, comido


alguns bombons e não tinham lavado os dentes. Depois, Branca bocejou,
bocejou… até ver tudo à roda. Rosa estava zangada:

- Estás a ouvir-me, Branca? Vê lá, não adormeças! Não te esqueças de


que és tu a guardar a casa! És a última a adormecer, tínhamos combinado!
E, além disso, é melhor dormirmos juntas - continuou Rosa - Se uma de nós
tiver um pesadelo, a outra vai ter o mesmo pesadelo.

Os olhos de Branca brilhavam na noite. Se ao menos isso pudesse ser


verdade! Se ao menos pudessem ser duas a apanhar o mesmo comboio da
noite. Mas Branca sabia: para entrar na noite, estava-se sempre só.

Certo dia, no momento em que pensava, enfim, adormecer, às três ou


quatro horas da manhã, de repente, ouviu:

- Tap-tap-tap…

Atordoada, viu dois enormes olhos amarelos e profundos, uma cabe-


ça pequenina, e duas grandes asas que vieram pousar na secretária verme-
lha, precisamente à frente da sua cama. Era um mocho de olhos amarelos.
Branca estava assustada e pensava: “Eu tinha razão para ter medo. Desta vez,
vai-me levar para o ninho e vai comer-me viva.”

- És tu, Branca, a ratinha que não quer adormecer? Não me enganei


165
na morada?

- Oh, não tremia Branca.

- Não tenhas medo de nada. Como sou o Rei da Noite, estou aqui
para te ajudar.

Com o coração a bater, Branca olhava para os seus olhos amarelos a


brilhar na noite.

- Ouvi dizer retomou o mocho que tinhas alguns problemas para dor-
mir. É verdade?

- Sim, é suspirou Branca.

- Trata-se de mau funcionamento dos teus ouvidos, não é?

- Oiço demasiadas coisas. Os meus ouvidos são mágicos respondeu


Branca, um pouco mais calma.

- Vamos ver essa magia disse o mocho, que tirou um pequeno instru-
mento luminoso da sua asa, como os que são utilizados pelos médicos dos
ratos.

Examinando o ouvido de Branca, o mocho franziu o sobrolho. Branca


podia, com um ligeiro movimento para a direita, ver o grande olho amarelo
do mocho fechar. Fazia um pouquinho de medo, mas Branca tinha confian-
ça nele.

- Hum, hum - disso o mocho - acho que os teus ouvidos são perfei-
tamente normais… Mas, o que vejo através dos teus ouvidos, do outro lado,
é uma pequena luz, aí, no interior do cérebro. Uma pequena lampadazinha
vigilante que nunca se apaga! Uma pequena lâmpada que se mantém acesa
a ouvir tudo.

E abanou a cabeça, espantado:

166
- Como é que podes dormir com isso na cabeça? Eu não posso fazer
nada por ti.

- Nada? perguntou Branca.

- Nada. Essa pequena luzinha está colocada fora do meu alcance. Está
muito longe na tua cabeça. Mas tu podes fazer alguma coisa.

- Diz-me, diz-me depressa o que fazer - pediu a ratinha.

- Aqui vai, então. Todas as noites, no momento em que te metes na


tua caminha, apaga essa pequena luz no teu espírito. Ouve aquela pequena
voz dentro de ti, que te diz: “Fecho tudo, não oiço mais nada. Estou sosse-
gada. Vou pensar em coisas bonitas. Voar pelas nuvens, com os passarinhos.
Ver as fadas das flores.”

Então, também os olhos amarelos do mocho se fecharam. Branca


sentiu-se invadida por um imenso bem-estar como quando entramos numa
banheira de água quentinha cheia de espuma. Sentiu todos os músculos do
corpo a relaxar, uns após os outros. “Estou bem, bem…” E adormeceu rapi-
damente.

Depois deste dia, Branca deixou de estar acordada a ouvir coisas.


Quando tem sono, diz:

- Boa noite.

E se uma amiga refila, ela repete: “Boa noite” e apaga a pequena luzi-
nha interior, como se faz com a luz de cabeceira ou com o telemóvel. Nesse
momento, sente-se sempre invadida por um imenso bem-estar.

É ela que decide quando acende e quando apaga a sua pequena lu-
zinha…

Ela, e mais ninguém.

 Sophie Carquain

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Ninguém Gosta da Lua

Naquela noite, a Lua levantou-se maldisposta.

Pôs as mãos na cintura e protestou: — Chega! Já chega! Estou faaa-


aaarta!!!!

Choramingou tanto, tanto, que acabou por acordar a Noite, que dor-
mia.

 — Que algazarra! — disse a Noite escura bocejando. — Se continuas


com isso, em vez de ajudares as crianças a adormecer, vais acabar por acor-
dá-las! Mas não estejas triste! O teu trabalho é muito agradável: vês como
vai o mundo e se as crianças se portam bem, deitadas nas suas caminhas.

A Lua baixou os olhos tristemente. — Estou farta de que não gostem


de mim. Quando ele nasce, toda a gente olha para o Sol! Mas quando tu
desces o teu grande casaco azul e eu apareço…

— Sim, o que acontece? — perguntou a Noite, encolhendo os ombros.


— Acontece que nem me dizem boa noite!

A Noite aclarou a garganta. — Talvez os adultos te esqueçam, mas


quando chegas, as crianças, essas, recebem-te como se fosses uma prince-
sa! Quando chegas, elas exclamam: “Olha, é a Lua!”

 — Oooooh…. — suspirou a Lua, que, decididamente, naquela noite


não tinha vontade de brilhar. — Nos dias em que estou bem cheia, elas até
me confundem com… com um candeeiro!

E a Lua continuava a choramingar. — Ninguém sabe o quanto eu tra-


balho… As próprias crianças pensam que não sirvo para nada. Quando me
desenham, é sempre ao cantinho da folha, e a dormir! Mas eu nunca durmo!
Olho por elas enquanto dormem. Às vezes até lhes faço uma festinha, mas
elas só sentem uma comichãozinha na testa e não imaginam que sou eu!

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A Noite ouvia atentamente. — Também a mim me veem sempre a
dormir. Diz-se “Nasce o dia” e “Cai a noite”, como se eu caísse em cima do
mundo. Mas não é verdade! Sou muitíssimo útil. Sem mim, as pessoas esgo-
tariam as forças a correr ao longo do dia, sem parar nem um segundo. Gra-
ças a mim (e a Noite inchou o peito), as pessoas recuperam energia durante
a noite e podem tornar a brincar no dia seguinte!

— Não há ninguém como eu — realçou a Lua — para fazer crescer


as flores, as sementes e também as crianças! Eu protejo-as, embalo-as, e é
durante o sono que elas crescem.

A Noite prosseguiu: — É verdade. Nada para durante a noite. Tudo


continua, mas mais baixinho. O sangue que circula nas veias, as flores que
continuam a respirar, as borboletas que batem as asas…

A Lua abanou a sua grande cabeça redonda. — Por que é que as crian-


ças protestam no momento de irem para a cama? Fico tão triste! Por vezes,
ouço-as dizer: “Não, mamã! Não quero ir para a cama!”

A Lua calou-se e a Noite calou-se também. Ambas sonhavam com


um dia próximo, em que as crianças as desenhassem bem no meio da folha
e dissessem: “Que bom! São horas de ir para a cama! Depressa, mamã! Que-
ro ouvir a minha amiga Lua a cantar-me uma canção de embalar…”

E a Lua e a Noite sorriam no grande céu azul, pensando nesse dia feliz


em que as crianças iriam saborear a doçura da Noite e o calor da Lua.

 Sophie Carquain

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Quando nos Empurram

José e Lídia estão a brincar aos piratas no parque infantil. Quando


Lídia vai a subir para a vigia, Carolina sobe também. Lídia vai de encontro a
Carolina, que cai no chão, quase em cima dos pés de José. José assusta-se
mas Carolina fica furiosa com os dois piratas e começa imediatamente a
bater-lhes.

— Para — diz a Professora Marina. — Porque é que estás a bater, Ca-


rolina?

— Aqueles palermas empurraram-me!

Então a Professora Marina diz-lhe:

— Primeiro, acalma-te, Carolina. Acho que tudo não passou de um


grande susto.

— Não, não!! Aqueles palermas empurraram-me!

Carolina está fora de si. Começa a berrar e quer atirar-se para o chão.
A Professora Marina leva-a então para o lado. Ao fim de algum tempo, Caro-
lina acaba por acalmar-se.

A Professora Marina toca o tambor para reunir todas as crianças. Lídia


e José são os primeiros a sentar-se na roda. Depois do que se passou, per-
deram a vontade de brincar aos piratas.

— Como é que vocês se sentem quando são empurrados? — pergun-


ta a Professora Marina.

— Zangado! Magoado! Triste! Furiosa! — gritam as crianças.

— Sim, compreendo. Às vezes é mesmo uma maldade sermos em-


purrados — diz. — Mas a Lídia fez de propósito? Empurrou a Carolina de

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propósito?

— Talvez, mas, pensando bem, não! — diz António, que viu o que
aconteceu.

— Isto muda a vossa maneira de ver?

— Assim já não é tão mau — diz Ana.

— Pode acontecer a qualquer um, não? — diz Rafael.

— Exatamente — diz a Professora Marina. — Muitas vezes, é bom pen-


sar como é que aconteceu ao certo a situação que nos deixou tão furiosos.
Por vezes, temos de pensar em conjunto para a compreender.

E a Professora Marina continua:

— Então, porque é que não é bom que a Carolina se enfureça e co-


mece logo a bater?

— Ah, porque depois há uma briga. O outro defende-se e responde da


mesma maneira — diz Emílio, que se levanta e dá uns socos no ar.

— Mas nem era preciso — diz Ana — porque o empurrão foi sem que-
rer.

— Precisamente por isso — continua a Professora Marina — é que


temos primeiro de nos acalmar e não começar logo a bater nos outros. Ins-
pirar, expirar, contar até três. Pausa.

A Professora Marina olha em redor.

— Raciocinando: o empurrão foi sem querer? Então, podemos dizer:


olha, não gosto que me empurrem!

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— Desculpa — murmura Lídia, olhando para Carolina.

— Exatamente! — exclama a Professora Marina. — Então, quem em-


purrou sem querer pode pedir desculpa! E o outro, o que faz?

— Pode estender-lhe a mão — sugere Emílio.

— Ou pode olhar — diz Rafael.

— Ou pode dizer “Tudo bem, não faz mal” — diz Emílio.

Carolina, Lídia e José olham uns para os outros.

Agora riem os três e acenam com a cabeça, porque compreenderam!

Elisabeth Zöller; Brigitte Kolloch

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André e o Novo Colega

Veio para a escola um aluno novo. Chama-se Henrique. É diferente


dos outros meninos. Precisa de ajuda para fazer algumas coisas. E para ou-
tras não.

Na escola Henrique não tem muitos amigos. Ninguém sabe como


brincar com um menino que está numa cadeira de rodas…

— Vamos fazer uma corrida, Henrique! — grita André.

É claro que é ele quem ganha.

— Comes tão devagar, rapaz! — ri-se André.

Um dia, no fim da aula, André grita:

— Eh, olhem, para mim a imitar o Henrique sou o Henrique! Mas não
repara onde põe os pés e cai pelas escadas abaixo.

— Ai! — berra ele. — Chamem a enfermeira! — grita então Henrique.

E rapidamente levam André ao hospital.

Uma semana depois, André volta para a escola. Tem uma perna par-
tida, um pulso torcido. E precisa que o ajudem a levar os livros... Demora
muito a chegar a qualquer sítio e, ao meio-dia, Tina teve que levar-lhe o al-
moço à hora de comer, Tina tem que levar-lhe a comida. André come muito
devagar…

— É muito difícil comer as ervilhas com a mão esquerda — queixa-se


ele.

Até Henrique acaba primeiro! Henrique desafia André para uma cor-
rida e ganha…
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— Quem me dera ter uma cadeira de rodas! — diz André.

Depois da aula, André descobre que Henrique tem uma coleção de


cromos de basquete, e Henrique convida André a ir a sua casa.

— Bem, não sei, vamos jogar a quê? — pergunta André.

— Logo vemos! — diz Henrique.

André diverte-se imenso em casa de Henrique. Brincam toda a tarde.

Ao cabo de alguns dias, André e Henrique tornam-se inseparáveis.


Umas semanas mais tarde, tiram o gesso a André.

Como se sente feliz! Ao almoço, André come tão depressa que Hen-
rique nem pode falar com ele.

Depois da aula, Tina pergunta a André se quer fazer uma corrida.

— Só com uma condição — diz André.

— Levar o meu treinador.

— Claro que sim! — respondeu Tina.

E lá foram os três correr.

Nancy Carlson
André y el niño nuevo
Madrid: Espasa Calpe, 1991
(Tradução e adaptação)

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A História de Uma Gota de Água

Uma gota de água que tinha permanecido longo tempo adormecida


debaixo da terra sentiu de súbito um impulso que a obrigou a vir à super-
fície e, sem saber como, encontrou-‑se, de repente, no exterior, num lugar
desconhecido para ela.

Muito assustada por estar num mundo novo, ao assomar por cima de
uma folha viu que outras gotas de água como ela a acompanhavam, todas a
querer sair quanto antes e a empurrar-se. Juntas formavam um fiozinho de
água que deslizou serpenteando, saltando de rocha em rocha por entre as
árvores de um bosque.

— Porque deixei de ser uma gota de água especial? Agora já não me


diferencio em nada das outras gotas… — disse em voz alta.

— Porque agora és uma gota de água de um manancial — disseram-


-lhe as flores que cresciam nas beiras do regato. — Obrigado por nos ajuda-
res a crescer.

A gota de água não disse nada, mas achou que ser manancial não era
assim tão mau: as flores até lhe agradeciam…

Continuou a deslizar por entre árvores e rochas observando como,


pouco a pouco, mais gotas de água se juntavam a ela.

— Porque há cada vez mais gotas de água? — interrogou-se em voz


alta.

— Porque agora já não és um manancial. Principias a ser um verdadei-


ro rio — responderam-lhe as árvores. — Obrigado por nos ajudares a crescer.

Já não era uma gota de água, já não era uma nascente, agora era um
rio. Não sabia muito bem ainda o que significava ser rio, mas sentiu uma for-
ça que antes não tinha, e que a empurrava para a frente, embora sem saber
bem para onde.

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O rio agora fluía com suavidade por um formoso vale cheio de flores,
vacas e ovelhas a pastar em silêncio, e a gota de água ficou extasiada diante
daquela paisagem tão bonita.

As vacas aproximaram-se e ela pôde vê-las de perto. Disseram-lhe:

— Obrigado, rio, por nos dares de beber e ajudar-nos a crescer.

— Eu nada faço. Não têm que me agradecer — respondeu-lhes a gota


de água.

— Fazes e muito. Tu que, formas um rio em conjunto com as outras


gotas, regas todo o vale para podermos ter muita erva para comer e, além
disso, dás-nos de beber sempre que necessitamos. Achas que é pouco?

A gota de água sentiu-se muito feliz por ser um rio e que as flores,
as árvores e o gado estivessem tão gratos… E lá continuou o seu caminho,
abandonando aquele formoso vale. Ao fim de algum tempo, viu-se num
lugar rodeado de casas, de carros, de ruídos de gente e buzinas: estava a
passar por uma cidade e isso era também novidade para ela. Viu pontes por
onde passavam pessoas e admirou-se muito por o rio aí correr mais deva-
gar, mas com muita força.

Umas pessoas abeiraram-se da margem do rio e disseram-lhe:

— Obrigado por nos deixares apanhar alguns dos peixes que levas.
Pelo menos hoje podemos comer.

E uma criança disse:

— Obrigado, rio, gosto de te ouvir porque alegras a nossa cidade com


os teus murmúrios.

A gota de água voltou a sentir-se grata e contente com o que lhe di-
ziam. Ao longo do caminho, às vezes tinha tido medo, sobretudo quando o
rio começou a ir tão depressa que até saltava por cima de enormes pedras;

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noutros momentos sentiu tranquilidade, quando o rio formava remansos ou
se alargava. Depois de muito, muito tempo, viu diante dos seus olhos uma
coisa surpreendente: milhares e milhares de gotas de água como ela junta-
vam-se aí, as margens do rio tinham desaparecido e já não sabia onde esta-
va. Confusa por desconhecer o que era aquilo, ouviu a voz de uma criança:

— Obrigado, que vontade eu tinha de te ver!

— Em que sítio estou? Nunca o vi! — perguntou a gota de água.

— Não te assustes, é o mar. Obrigado por me deixares nadar, mergu-


lhar e brincar com as tuas ondas.

E gostou muito de ser mar, por tudo ser muito variado e divertido:
havia muitos peixes diferentes, algas e plantas aquáticas de cores vistosas.
Um dia de verão, quando já se tinha acostumado a ser uma gota de água do
mar, começou a ficar nervosa. Pelo horizonte abeiravam-se muitas nuvens
e uma delas perguntou-lhe:

— Não queres vir connosco? Levamos-te para longe daqui e, lá de


cima, onde nós vivemos, poderás ver maravilhas que nunca viste.

— Bem, já sei o que é ser nascente, rio e mar. Vou experimentar agora
ser nuvem, a ver se gosto…

Uma nuvem deu a mão à gota de água e juntas subiram, subiram


muito alto, ajudadas pelo vento.

— Obrigado por me ajudares a crescer e a fazer o meu trabalho — dis-


se-lhe a nuvem.

E a gota viu, lá de cima, coisas que nunca imaginara. Sentiu-se bem


sendo nuvem, até que um dia teve frio, muito frio, e a nuvem disse:

— Parece-me que a temperatura está a baixar. Talvez te transformes


em neve!

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— Em neve? Isso o que é? — A gota de água começou a ficar inquieta.

— Não te preocupes, eu deixo-te cair com muito cuidado. O vento


encarrega-se de te levar para o cume de alguma montanha.

Tal como dissera a nuvem, pela primeira vez na vida sentiu-se a voar…
e gostou. O vento pousou-a suavemente no cimo de uma montanha onde
ouviu alguém a dizer:

— Obrigado por vires. Lá diz o ditado: «Em ano de neve, ninguém


deve».

— Quem és tu?

— Eu sou a montanha. Graças a ti muita gente virá visitar-me e desli-


zar pelas minhas encostas. E, na primavera, quando o sol principiar a aque-
cer, vais-te transformar em água e ajudarás a crescer as flores que agora
estão adormecidas.

A gota de água sentiu-se muito bem sendo neve e a ver tanta gente
divertir-se. Até que a primavera chegou.

E um dia, o sol começou a dar calor à montanha e a neve derreteu-se


e tornou-se outra vez água. A gotinha sentiu então vontade de correr. Des-
lizou suavemente pela encosta, vendo de passagem como algumas plantas
acordavam e se vestiam de bonitas cores. Chegou a um bosque. E aí sentiu
sono.

Escondeu-se debaixo de uma folha e adormeceu, enquanto ia recor-


dando o escuro, a nascente, o rio, o mar, a nuvem, a neve…, e a todos quan-
tos, ao longo da sua caminhada, lhe tinham dito “Obrigado!”

 Begoña Ibarrola

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