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Justiça

Júlio Zabatiero
Para debate

Introdução
O tema da justiça é, ao mesmo tempo, de fundamental importância e de uma
complexidade imensa. Não podemos esperar, em uma pequena discussão como esta, dar
ao tema a amplitude de tratamento que ele exige e merece. Seremos obrigados a selecionar
aspectos e teorias específicas, temas mais bem delimitados, para que a discussão seja,
simultaneamente, academicamente adequada e existencialmente relevante1. Assim, fiz a
seguinte escolha temática, que ofereço à discussão sem qualquer pretensão além de iniciar
um debate. Para que você tenha informação sobre as principais teorias da justiça na
atualidade, escolhi alguns textos para leitura adicional que oferecerão a você outras
opções de estudo sobre o tema.
Começo o texto com um breve apanhado do significado de justiça na Escritura,
especialmente a partir do Antigo Testamento. A seguir, passo a apresentar um pequeno
momento da reflexão de Jean-Luc Nancy sobre justiça, e espero que você perceba os
vínculos entre a tese de Nancy e a noção de justiça na Bíblia. Em terceiro lugar, e levando
em consideração o que foi apresentado nas seções anteriores, ofereço uma leitura do
conceito construtivista de justiça de Rainer Forst. Juntei esses parceiros impertinentes de
diálogo exatamente por suas diferentes amplas que às vezes escondem similaridades
espantosas.

1. Justiça enquanto libertação messiânica


Centrarei nossa reflexão sobre justiça na Bíblia em Romanos 1,16-17: Pois não
me envergonho do Evangelho, porque é energia de Deus para a libertação de todos os
fiéis, tanto judeus, primeiramente, como gregos. Posto que a justiça de Deus é revelada
nele, a partir da fidelidade com vistas à fé-fidelidade, assim como está escrito: mas o
justo viverá com base na fidelidade (Hc 2,4) .
Aqui Paulo declara a base de sua vocação: o Evangelho é a energia, a força de
Deus que liberta todos os que têm fé-fidelidade no Messias a terminologia da libertação
aqui é alusiva ao êxodo: a força de YHWH é capaz de arrancar (libertar) os filhos de
Jacó/Israel da mão do Faraó. A força de YHWH, no Messias executado e ressuscitado, é
capaz de libertar a todas as pessoas escravizadas e alienadas de Deus. O que o Evangelho
revela (torna manifesto)2, é a justiça de Deus, a partir da fidelidade do Messias Jesus, que
possibilita a fé-fidelidade no Messias Jesus. O novo e definitivo êxodo no Messias é a

1 De a e , ec a e ba e a e a e a dea de a c edade e fe a
c ea. E b a a e c de ada e e a e e ad a c ,a
de uma sociedade plena envolve mais do que as questões de justiça (e.g., bem-estar, felicidade,
liberdade, etc.).
2 E de e a a Sa 98,2: YHWH fe aa a a a ; a fe a a a
ea e da a e .

1
saída de uma vida de infidelidade para uma de fidelidade e solidariedade. O novo êxodo
messiânico é agora efetivamente global e cósmico para toda a humanidade e para toda
a criação: a saída do cativeiro do pecado, carne, lei, morte e poderes.
Ao usar o vocábulo justiça, Paulo está usando uma linguagem escriturística bem
conhecida dos israelitas, que une libertação e justiça termos praticamente sinônimos na
Bíblia Hebraica: libertar é fazer justiça, justiça são os atos poderosos de Deus que libertam
o oprimido3. Ver, por exemplo: YHWH tornou conhecida a sua liberta ão, manifestou a
sua justi a perante os olhos dos gentios (Sl 98,2); Livra-me na tua justiça, e faze-me
escapar; inclina os teus ouvidos para mim, e liberta-me) (Sl 71,2) como resposta, o
salmista declara: A minha boca relatará a tua justi a e de cont nuo os feitos da tua
liberta ão, ainda que eu não saiba o seu n mero (Sl 71,15); Fa o chegar a minha justi a,
e não está longe; a minha libertação não tardará; mas estabelecerei em Sião o livramento
e em Israel, a minha gl ria (Is 46,13); Porque a tra a os roerá como a um vestido, e o
bicho os comerá como à lã; mas a minha justiça durará para sempre, e a minha libertação,
por todas as gera es (Is 51,8).4
No Evangelho do Messias Jesus se revela que Deus é fiel: tudo o que fez e
prometeu fazer a Israel, semente de Abraão, fará e o fará em prol de toda a humanidade,
pois Deus não é Deus somente de judeus, mas de toda a humanidade. Porque Deus é fiel,
nos céus e na terra (na forma do Messias Jesus), as portas para a confiança nele estão
abertas a todas as pessoas, posto que esse é o único caminho pelo qual se pode
efetivamente viver: o justo viverá com base na fidelidade . Acredito que Paulo faz uso
da ambiguidade gramatical da palavra fidelidade na sentença, para combinar com suas
afirmações anteriores no parágrafo: a justiça começa na fidelidade de Deus e se evidencia
na fé-fidelidade do libertado por Deus (cp. Gl 2,20).
A justiça revelada no Evangelho do Messias fiel é o oposto da injustiça e
impiedade das pessoas que, assim, tornam a verdade prisioneira da injustiça. A justiça de
Deus é o tipo de vida que as melhores e mais criativas utopias humanas almejam:
igualdade, participação, dignidade, autonomia, responsabilidade, criatividade, etc. No
Evangelho se revela que Deus é justo e criador de justiça (justificador). Como uma
resposta judaica à pergunta judaica sobre o Messias e o futuro de Israel, a justificação em

3 La concepción veterotestamentaria de la justicia no se basa en la concordancia de las acciones


humanas con determinadas normas jurídicas que tienen un carácter absoluto, sino en la
adecuación de un comportamento dentro de una relación bilateral. Por eso, la justicia de Dios se
manifiesta en un obrar digno de él con respecto a su pueblo, es decir, en su acción salvífica y
liberadora (Is 45, 21; 51, 5 s; 56, 1; 62, 1). Su justicia fue ensalzada en los tiempos primitivos
(Jue 5,11) y continúa siendo celebrada (1 Sam 12, 7; Is 45, 24; Mi 6, 5; Sal 103, 6; Dn 9, 16). El
que anhelaba la liberación invocaba la justicia de Dios, es decir, la intervención divina (Sal 71, 2;
143, 11), y sus enemigos quedaban confundidos (Is 41, 10 s; 54, 17; Sal 129, 4 s). Por amor a
Israel, la justicia de Dios es participada incluso a la naturaleza de la tierra, a fin de que sea
próspera (Os 10, 12; Jl 2, 23; Is 32, 15 ss; 48, 18 s). Israel se define aquí por la participación en
la justicia de Dios (Sal 24, 5), que puede ser descrita sin más em categorías espaciales (Sal 89,
17; 69, 28) . SEEBASS, H . J c a . In: COENEN, Lothar; BEYREUTHER, Erich &
BIETENHARD, Hans (eds.). Diccionário Teológico del Nuevo Testamento. II. Salamanca:
Sígueme, 1990, p. 405.
4 Ver, também: Sl 22,31; 31,1; 35,24. 28; 40,10; 69,27 29; 88,12; 119,123; Is. 42,6. 21; 45,8.13;

51,5 8; Mq 6,5; 7,9. Note-se a abundância de textos dos Salmos e do Segundo Isaías, porções
preferidas de Paulo na Bíblia Hebraica.

2
Paulo é parte da teodicéia e da soteriologia. Deus é justo em tudo o que faz, de modo que
Israel não pode atribuir a Deus a responsabilidade da situação de opressão que vive sob o
Império Romano. Deus justifica, ou seja, Deus é libertador e Israel pode esperar a
libertação, sabendo que Deus é fiel às suas promessas. Deve, porém, repensar sua visão
da libertação, e aprender com o Messias fiel em que consiste a justificação divina.
Em que consiste a justiça de Deus segundo Paulo? De fato, a resposta a esta
pergunta se constitui num dos mais calorosos e duradouros debates teológicos cristãos.
Toda resposta será, assim, sempre parcial e insuficiente. Levando isto em consideração,
ofereço a seguir uma das respostas possíveis:
Para ele, a justiça de Deus é, essencialmente, um agir de Deus a
favor de seu povo, adequado à própria natureza divina e
determinado pela fidelidade à aliança; por meio dessa ação ele
constitui seu povo como uma nova humanidade (o Israel dos
judeus e dos gentios). Esta justiça de Deus se manifesta no fato
de que Deus, diante do pecado da humanidade, não se deixa levar,
por assim dizer, por sua ira, mas que, apesar da atitude rebelde do
homem, faz prevalecer sua salvação e soberania. Porém, na
medida em que o pecado alcançou proporções gigantescas, as
fronteiras entre Israel e os gentios podem ser derrubadas e pode
surgir o novo povo de Deus. A transgressão de um (Adão), sua
desconfiança5 para com Deus (Gn 3), trouxe a desconfiança a toda
a humanidade e, assim, tornou-se ocasião de condenação para
todos. Agora, a ação justificadora (dikaioma) de um (Cristo), sua
confiança absoluta naquele que justifica os ímpios, tornou
possível para a humanidade a confiança incondicional em Deus,
não obstante a maldição do pecado. Isto conduzirá à justificação
(dikaiosis) da humanidade, para que ela receba o dom da justiça
na parousia (Rm 5,16-19).6
Paulo, assim, realiza mais um de seus deslocamentos teológicos. Transfere a
noção de justiça do âmbito da libertação da nação de Israel para o âmbito da libertação
da criação inteira. Como gosto de dizer, Paulo desloca do âmbito político para o
existencial, de modo que podemos ler o conceito de justificação em uma chave da
integralidade da existência humana, nas suas dimensões política, econômica, pessoal,
social, etc. Desta forma, encontramos na Escritura uma descrição da justiça que pode
entrar em diálogo com teorias atuais da justiça. Na Bíblia não temos uma teoria da justiça,
mas uma visão e prática da justiça desenvolvidas em contextos diferentes do nosso,
democrático, global e plural. Assim, no diálogo construtivo e crítico com teorias atuais,
podemos formular uma percepção teológico-pública da justiça.

2. A pluralidade do singular – Justiça no diálogo com Jean-Luc Nancy


A temática da justiça perpassa a obra de Jean-Luc Nancy, mas são poucos os
textos em que ele se debruça especificamente sobre o conceito de justiça. Até onde

5 C de a ade ada , e d a af , a a a a f de dade e f de dade .


6SEEBASS, H . J c a . I : COENEN, L ar; BEYREUTHER, Erich & BIETENHARD, Hans
(eds.). Diccionário Teológico del Nuevo Testamento. II. Salamanca: Sígueme, 1990, p. 408.

3
conheço sua obra, é em um pequeno texto de cinco páginas que Nancy descreve mais
especificamente sua no ão de justi a: Cosmos Basileus (Rei do Mundo ou Mundo Rei),
um dos textos que compõem o livro Being Singular Plural (Stanford: Stanford University
Press, 2000, p. 185-189. Originalmente publicado como Etre singulier pluriel. Paris:
Éditions Galilée, 1996). Sobre esse texto nos debruçaremos neste instante.
Nancy afirma: o mundo é irredutivelmente plural. Um mundo = diversos
mundos. A lei do mundo é o partilhar do/no próprio mundo. Mundo sem soberano, sem
princípio extramundano que o defina. Mundo, sentido de si mesmo. Construção
permanente através de infinitos compartilhamentos entre pessoas. Se é mundo, mesmo
plural, vive em uma lei, em um nomos: nomos a distribui ão, partilha e aloca ão de
suas partes: um pedaço de território, uma porção de alimento, a delimitação de direitos e
necessidade em cada e todo o tempo, conforme conveniente 7. Conveniente ? Não no
sentido pejorativo do termo, mas no sentido similar ao do princípio paulino de
moralidade: todas as coisas me são l citas, mas nem todas conv m .
Como sabemos o que convém?
A medida da conveniência a lei da lei, ou justiça absoluta está
somente na própria partilha e na singularidade excepcional de
cada um de cada caso, cada um de acordo com esta partilha.
Sim, esta partilha não dada, e cada um não dado (aquilo que
é a unidade de cada parte, a ocorrência de sua instância, a
configuração de cada mundo). Esta não é uma distribuição já
realizada. O mundo não é dado. Ele é, ele mesmo, o dom. O
mundo sua pr pria cria ão ( isto que cria ão significa).8

Justiça, então, é aquilo que é dado, repartido, devolvido a cada um, conforme
sua singularidade peculiar. Por isso, ninguém sabe, justamente, o que é a justiça. Cada
pessoa, em cada mundo, constantemente partilha, dá, toma, perde, recebe, devolve...
Como paralisar esse movimento incessante? Uma justiça que paralisa o movimento da
partilha não é justiça. Não é possível afirmar uma única justiça em uma pluralidade de
mundos:
cada existente aparece em mais arranjos, massas, nervos ou
complexos, do que se pode perceber à primeira vista, e cada um
também está infinitamente mais separado de tais, e separado de si
mesmo. Cada existente abre e fecha muitos mundos, os dentro de
si, assim como aqueles muitos fora de si, trazendo o exterior para
o interior, e vice-versa9.

Existir. Existir é sempre existir no mundo, sempre existir comunitariamente, em


multidão. Justiça, então, não é algo que se anexa à existência. É um modo de existir,
existindo. Trata-se, então, de ser justo a cada existente e a todos os existentes
simultaneamente. Um duplo padrão aparentemente contraditório, mas inevitável. Uma
busca incessante. Justiça é aquilo que convém a cada existente em sua existência singular
irredutível e a todos os existentes em sua existência comum igualmente irredut vel: a

7 NANCY, Jean-Luc. Being Singular Plural. Stanford: Stanford University Press, 2000, p. 185.
8 Idem.
9 Op. cit., p. 186.

4
justiça, então, precisa ser entregue, ao mesmo tempo, à singular absoluta do próprio e à
absoluta impropriedade da comunidade de existências. Ela precisa ser entregue
exatamente a ambos, a um e ao outro: esse o jogo (ou o sentido) do mundo 10.
Uma impossibilidade? Sim! E exatamente por isso que justi a sempre busca
de justi a . É por isso tamb m que justi a sempre e talvez principalmente a
necessidade de justiça, isto é, a objeção a e o protesto contra a injustiça, o chamado que
grita por justiça, a respiração que se exaure em clamar por ela. A lei da justiça é esta
tensão interminável com rela ão à pr pria justi a 11. Lembra-se do sermão do monte?
Bem-aventuradas as pessoas que tem fome e sede de justiça .
A justiça, então, é parte da própria existência do(s) mundo(s). Ela não pode ser
trazida de fora, não pode ser dada por algum ser extraterreno. Nenhum herói, de
qualquer mundo, pode produzi-la. Ela constru da no mundo e com o mundo: Em si
mesmo, o mundo é a suprema lei da justiça: não o mundo dado e o tal como , mas o
mundo que emerge como uma incongru ncia propriamente incongruente 12. Se, como
diz o livro de Isaías, a justiça humana é como trapos imundos, somente na incongruência
é que a justiça se constrói, somente na loucura do mundo a justiça se constrói e aqui,
mesmo contra a vontade de Nancy, podemos evocar o apóstolo Paulo que nos lembra que
a loucura de Deus, que entrou no mundo mediante o Filho Encarnado, é mais sábia do
que a sabedoria dos homens.

3. A pluridimensionalidade da ação justa – Dialogando com Rainer Forst


Jean-Luc Nancy descreve a justiça como uma incessante busca em uma
incessante tensão contra a injustiça que, teimosamente, jamais desaparece do mundo
tanto nas singularidades, como na pluralidade. Vejo a tese de Nancy como uma
corroboração certamente involuntária da afirmação bíblica de que a humanidade vive
em uma condi ão pecaminosa. Em Rm 1,18, por exemplo, Paulo afirma: a ira de Deus
se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela
injusti a . Nancy prop e que n s mesmos entreguemos a justi a, aprendendo a partilhar,
repartir, distribuir, alocar coisas, bens, espaços, etc. Em certo sentido, ele tem razão, na
medida em que na Escritura não encontramos a possibilidade de Deus realizar sua
tsedaqah sem a parceria humana.
Entretanto, como fazer essa entrega, essa alocação de recursos? É diante desta
pergunta que vejo o valor da proposta de Rainer Forst. É uma das teorias de justiça que,
reconhecendo os limites humanos, oferece pistas para a concretização, na vida cotidiana,
pessoal e institucional, da incessante busca por justiça descrita por Nancy. Duas obras de
Forst são fundamentais para entendermos a sua teoria da justiça: The right to justification:
Elements of a constructivist theory of justice (New York: Columbia University Press,
2012, original alemão de 2007), e Contexts of Justice: Political philosophy beyond
liberalism and communitarianism (Los Angeles: California University Press, 2002,
original alemão de 1994).

10 Op. cit., p. 188.


11 Op. cit., p. 189.
12 Op. cit., p. 189.

5
Em seu livro mais recente, Forst inicia a discussão afirmando que o ser humano
é um ser justificador13 ou seja, um tipo de ser que demanda que as ações sejam
justificadas mediante razões, e que essas justificações sejam mútuas. Como um ser
justificador é um ser em busca de justiça, pois é a justiça que forma o núcleo do processo
argumentativo da justificação. Que é essa justiça? Para ele, o núcleo do sentido de justiça
é a oposição fundamental à arbitrariedade ou seja, às ações não justificadas. Notou a
similaridade com a tese de Nancy? Forst não oferece uma defini ão positiva da justi a,
mas uma defini ão construtivista (conforme o subt tulo do livro). Consequentemente,
para ele, o impulso fundamental que se posiciona contra a injustiça não é, primariamente,
o de quer ter alguma coisa ou ter mais de alguma coisa, mas o de querer não mais ser
oprimido, assediado, ou ter os seus próprios clamores (reivindicações) e o direito básico
à justifica ão ignorados 14.
A justiça, então, é uma busca, uma demanda:
A demanda por justiça é uma demanda emancipatória, que é
descrita com termos como honestidade, reciprocidade, simetria,
equidade ou equilíbrio; colocando-a de modo reflexivo, sua base
é a reivindicação (clamor) de ser respeitado como um agente de
justificação, isto é, em sua dignidade própria como um ser que
pode pedir e dar justificações. A vítima da injustiça não é,
primariamente, a pessoa que sofre a falta de certos bens, mas
aquela que não conta na produ ão e distribuição de bens.15

A busca por justiça é busca por libertação (emancipação). É busca pelo fim da
opressão, do assédio, da desigualdade, da dominação, da violência, etc. injustificáveis. O
termo-chave, aqui, é injustificável. Por quê? Existem desigualdades que são justificáveis
ou seja, que podem ser reconhecidas como legítimas mediante argumentação
apropriada. Da mesma forma, embora seja relativamente estranho reconhecer isto, há
formas de opressão, dominação, violência, etc. que também podem ser consideradas
justificadas (e.g.: a noção de guerra justa, a noção de revolução em que há opressão
temporária sobre o grupo anteriormente no poder; etc.). Positivamente falando, uma
situa ão justa , se todas as pessoas nela envolvidas concordarem, sem coerção, que é
uma situação justificável. Assim, o reconhecimento de que uma dada situação é justa ou
não, depende do exercício do direito básico de justificação em um ambiente
predominantemente não-coercitivo.
Consequentemente,
Seres humanos autônomos formulam seus juízos morais e
políticos independentemente, e os avaliam criticamente com a
prática; ao mesmo tempo, deles se requer que justifiquem tais
juízos, que deliberem coletivamente a respeito de todas as suas
consequências para as pessoas afetadas em modos politicamente

13 Obviamente, o conceito de justificação usado por Forst é bem diferente do conceito paulino de
justificação por graça mediante a fé.
14 FORST, Rainer. The right to justification: Elements of a constructivist theory of justice. New

York: Columbia University Press, 2012, p. 2.


15 Idem.

6
relevantes, e que decidam de acordo. A primeira tarefa da justiça
é tornar isto possível.16

Vejo, mais uma vez, provavelmente tamb m de modo involuntário , uma


descrição da justiça compatível com a descrição de justiça mais comum na Escritura.
Justiça não existe sem injustiça, coexistem, sempre e inevitavelmente. Vale aqui, de modo
análogo, a afirma ão de Lutero em outro contexto: simultaneamente justo e pecador .
Justiça é busca, demanda, fome e sede, e mesmo quando a alcançamos, nossa justiça não
é a extinção da injustiça. A diferença principal é a de contexto em sociedades
democráticas, plurais, seculares (ou pós-seculares) e pós-convencionais (sociedades de
indivíduos capazes de tomar decisões por raciocínio próprio), não se pode esperar que a
justi a seja um dom de governantes ou de her is populares. A justi a se concretiza
mediante a ação coletiva da população (mundo-da-vida) e do funcionamento adequado
das instituições ou sistemas sociais.
Devo, por razões de espaço textual, deixar este livro de Forst e me ocupar de sua
obra mais antiga (1994) sobre a justiça, na qual encontramos de modo mais sintético os
espaços (contextos) de busca de justiça, os quais são quatro: ética, legalidade, política e
moralidade.
(1) Justiça no espaço ético. Em que consiste o espaço ético da vida humana?
Segundo Forst, quest es ticas são quest es sobre a vida boa de uma pessoa como
membro de comunidades éticas particulares, com cuja história a história de vida única, a
narrativa do self seu passado, presente e futuro está conectada 17. Pressuposto, aqui,
está o caráter plural dos estilos e modos de vida das sociedades democráticas
contemporâneas nos diversos ambientes da vida religião, cultura, profissão, gênero,
lazer, etnia, etc. Há diferentes ticas em qualquer sociedade democrática atual, e todas
essas comunidades precisam justificar suas opções adequadamente.
O que se deve justificar no campo ético? Segundo Forst, duas coisas: (a) a n vel
subjetivo, eu justifico minhas decis es a mim mesmo e àquelas pessoas que pertencem
ao núcleo de minha identidade, elas são importantes para mim por me dizem como me
veem, como eu sou para elas ;18 (b) no aspecto de relevância comunitária, justifica ão
ética significa que uma comunidade com a qual indivíduos se identificam procura
responder à questão do que bom para n s com base em uma auto compreensão
comum 19. Como a sociedade é eticamente plural, inevitavelmente conflitos éticos farão
parte do cotidiano da democracia e deverão ser resolvidos, com base na justiça, mediante
o debate e a deliberação públicas20.
(2) O segundo campo de justificação é o da legalidade, ou da Lei:
Enquanto indivíduos, pessoas legais também são membros
normativamente responsáveis de uma comunidade, mas de um

16 Op. cit., p. 7.
17 FORST, Rainer. Contexts of Justice: Political philosophy beyond liberalism and
communitarianism. Los Angeles: California University Press, 2002, p. 258.
18 Op. cit., p. 259.
19 Op. cit., p. 260.
20 No início do século XXI, as questões éticas mais comumente debatidas no Brasil têm sido as

ligadas a corrupção, gênero, identidade sexual, raça e intolerância religiosa.

7
modo diferente do modo das pessoas éticas: quer como Saulo de
Tarso, ou apóstolo Paulo, uma pessoa é um membro da
comunidade legal e uma pessoa legal; cada pessoa deve obedecer
às leis e tem direitos específicos, enquanto tal pessoa legal.21

No campo ético, convive-se com uma pluralidade legítima de opções e escolhas.


No campo legal, depende-se de uma Lei comum, à qual estão igualmente sujeitos todos
os membros da comunidade (país). O campo ético é o campo da particularidade,
enquanto, do ponto de vista legal,
As normas legais são válidas no tocante aos atributos da pessoa
como tal: elas possuem validade geral e mandatória. Elas não são
constitutivas da identidade; ao contrário, elas constituem a
estrutura exterior da liberdade negativa que, ao mesmo tempo,
capacita e limita, na forma de uma capa protetora, a liberdade
positiva da auto-realização.22

Em sociedades democráticas, para que haja justiça no âmbito da legalidade, é


indispensável que as pessoas legais sejam, elas mesmas, autoras da lei. Neste caso, a
pessoa legal , tamb m, pessoa pol tica , ou seja, cidadã e deve participar dos processos
de justificação das leis e normas que regem a sua comunidade ou país. Enquanto pessoas
legais, são responsáveis perante a lei; enquanto cidadãs, são responsáveis pela lei. A
justiça, no campo da lei, deve garantir que cada pessoa possa buscar sua auto-realização
sem impedimentos coercitivos. Todavia, a razoabilidade demandada das pessoas legais
é moralmente exigente: a autonomia legal pressupõe, não somente o respeito recíproco e
a tolerância, como deveres legais mútuos, mas também a imputabilidade e a
responsabilidade por suas pr prias a es 23.
Neste campo, deve-se também levar em consideração que, em sociedades
plurais, as leis não serão capazes de estabelecer justiça para todas as comunidades éticas,
de modo que sempre se deve existir um espaço para, não só modificar as leis, como
tamb m, para resistir legalmente às leis (como no caso da desobedi ncia civil, por
exemplo). A demanda moral sobre a pessoa legal e política implica em que ela seja,
quando necessário, porta-voz de quem não tem voz em uma dada sociedade, colaborando
com a busca de justiça pelas pessoas vítimas da injustiça.
(3) Entramos no terceiro campo ou contexto da justiça, o político. Enquanto
cidadãs, as pessoas são responsáveis pela justificação das leis que regem sua comunidade
(ou país). Ou seja, enquanto cidadãs, são responsáveis pelo bem comum de sua sociedade
democrática, e não apenas por sua auto-realização, ou por sua imputabilidade legal.
Responsabilidade política significa ser, como parte da
comunidade, responsável perante seus co-cidadãos e
interlocutora em discursos, encontrando uma linguagem
comum. Ademais, a responsabilidade política possui outra
dimensão: a responsabilidade por suas ações, que membros da
comunidade assumem juntamente, vis-à-vis terceiros (de modo

21 Op. cit., p. 263.


22 Idem.
23 Op. cit., p. 264.

8
que diferentes graus de responsabilidade indireta devem ser
distinguidos no tocante à sua diferenciação temporal).24

Esta afirmação pressupõe o funcionamento adequado da democracia e da


cidadania dentro dela. O modelo de democracia aqui pressuposto por Forst é o da
democracia deliberativa , que vai al m da mais tradicional democracia representativa ,
e inclui a chamada democracia participativa . Se considerarmos a situa ão atual da
democracia brasileira, ainda estamos no estágio da democracia representativa , na qual
a busca por justiça sofre diversos obstáculos e empecilhos, especialmente em função do
colapso da representatividade pol tica.
Isto quer dizer que, enquanto cidadãos, não nos cabe obedecer a lei apenas por
que lei . Precisamos exercer a obedi ncia de modo razoável, livre e justo. Para que isto
aconteça,
A reivindicação de validade de uma norma política ( isto deve ser
válido para a comunidade política porque atende ao interesse
geral ) s pode ser determinada discursivamente; a generalidade
da norma deve ser verificada antes dela se tornar uma norma
legal. Somente esta generalidade discursivamente estabelecida
pode fundamentar a reivindicação de legitimidade da lei e obrigar
politicamente os cidadãos. [...] Obrigações políticas são
obrigações auto impostas. No nível da cidadania e da democracia,
a justifica ão , portanto, se refere primariamente à justifica ão
recíproca de normas que devem ser geralmente válidas para a
comunidade política; isto se refere à auto legislação autônoma de
cidadãos.25

No caso da democracia brasileira, a demanda de justificação política, na busca


da justiça, exige um considerável grau de amadurecimento democrático e da cidadania.
Não basta saber votar , nem saber cobrar os governantes. É preciso participar
deliberativamente da vida pública, levando em consideração as demandas provenientes,
igualmente, dos campos ético, legal e moral. A pessoa política é, simultaneamente, pessoa
ética, legal e moral de modo que em sua própria existência pessoal precisa ser uma
pessoa pós-convencional (no sentido moral dado ao termo por Kohlberg basicamente,
quem se rege por princípios morais universais, e não por costume ou leis).
(4) Chegamos, enfim, ao quarto contexto (campo) da justiça (justificação), que
o da moralidade. Na visão habermasiana, seguida por Forst, enquanto a tica trata da
identidade individual e comunitária, logo, é sempre plural, a moralidade visa sempre a
universalidade (universalização) das normas morais.
A noção de uma comunidade de todos os seres humanos leva a
discussão ao campo dos aspectos característicos das questões
morais. Aqui, a questão que devo fazer? se apresenta
primariamente, não como a questão do que eu quero ser o do que
é bom para mim, nem como a questão do que a lei demanda, nem
como a questão do que pertence ao interesse geral de todos os

24 Op. cit., p. 267.


25 Op. cit., p. 267-8.

9
cidadãos, mas como a questão do que é moralmente justificado,
de como uma pessoa deve agir como ser humano . O que
moralmente válido deve ser válido para todas as pessoas morais
enquanto seres humanos. Cada pessoa moral tem o dever, perante
todas as pessoas morais (e isto significa, todas e cada uma), de
defender as normas orientadoras da ação que ela considera ser
justificadas por razões que não podem ser rejeitadas
reciprocamente (por indiv duos concretos ), ou geralmente (por
todos os membros da comunidade moral). Como tais, elas são
raz es universalmente partilháveis . A autonomia moral,
portanto, significa agir de acordo com normas que são válidas
geralmente, em um sentido moralmente irrestrito.26

Você notou o crescendo dos contextos da justiça (justificação)? Forst iniciou


com o indiv duo e sua comunidade tica, passou para o pa s e sua legisla ão, avan ou
para a na ão democrática e sua cidadania, e conclui, agora, com a universalidade dos
princípios morais. Essa universalidade não pode ser concebida, porém, de modo abstrato,
mas de modo histórico ou seja, são universais os princípios morais que, ao longo da
história humana, foram se universalizando, ou seja, foram sendo reconhecidos como tais
por parcelas cada vez maiores da população humana do planeta. Consequentemente, a
universalização de princípios morais permanece tarefa constante da humanidade, não
podendo se restringir a uma forma de universalização a europeia, por exemplo.
Normas morais, para serem universais, precisam de ser justificados mediante
razões gerais e recíprocas gerais, por que se aplicam a todas as pessoas envolvidas;
recíprocas, por que ninguém pode se eximir de sua discussão e de seu reconhecimento
(se vale para você, vale para mim, e vice-versa). Em uma época que valoriza a
individualidade e a pluralidade, falar em universalidade pode dar a entender alguma forma
de opressão. Todavia,
a universalidade de uma norma não má universalidade ; a
justificação moral demanda o respeito a cada indivíduo e a todas
as pessoas como autoras e destinatárias de reivindicações de
validade. Neste sentido, a autonomia moral a autonomia de
pessoas razoáveis e justificadoras requer julgamento moral, que
busca justificar concretamente o que é moralmente correto,
exatamente por causa de sua reivindicação de universalidade.27

Em síntese, justiça é o resultado de um permanente processo intersubjetivo de


justificação nos contextos inter-relacionados da ética, lei, política e moralidade. Como
algo que se constrói, não há um padrão de justiça prévio, mas uma história da busca da
justiça que pode ser mobilizada pelas pessoas (éticas, legais, políticas e morais) em sua
constante busca de justiça. O pressuposto fundamental da busca de justiça é a eliminação
das injustiças isto por que nosso senso de ser injustiçado é elevado, o que conduz à
motivação para buscar a justiça.

26 Op. cit., p. 268.


27 Op. cit., p. 270.

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Em um mundo globalizado, a demanda por justiça se torna ainda mais complexa,
na medida em que as relações internacionais se avolumam e tornam situações de injustiça
mais visíveis (além de criar novas), e deixam mais evidente também a pluralidade ética,
legal, política e, até mesmo, moral (lembrando-nos de que a universalidade é fruto da
universalização). Assim,
por serem membros de diferentes comunidades de justificação,
pessoas aceitam ou apresentam mutuamente umas às outras a
conexão autônoma da responsabilidade ética, legal, política e
moral vis-à-vis si mesmas e outras como a tarefa prática central.
Pode-se chamar tais indivíduos responsáveis de autônomas em
um sentido abrangente, e razoáveis no sentido prático. A este
conceito exigente de pessoas responsáveis corresponde o conceito
de uma sociedade responsável, que torna possível sua existência
prática (e é, ela mesmo, possibilitada por essa existência
prática).28

Conclusão
As noções de justiça de Nancy e Forst (teoria da justiça como justificação)
oferecem intenso e exigente material para reflexão e discussão constantes especialmente
se lidas em conjunto com as descrições bíblicas da justiça. Você percebeu por que a ordem
das Unidades desta disciplina? Após a definição e um pouco da história da Teologia
Pública, passamos aos conceitos fundamentais de uma teologia pública cristã: libertação
e a nova subjetividade dela decorrente. Esses conceitos servem de base para a construção
de uma noção teológica da justiça (nesta unidade) que, por sua vez, demanda a construção
de modos práticos de ação pública. Esses modos de ação pública, buscando a justiça, só
serão plenamente possíveis se praticados por pessoas que amam a si mesmas e ao próximo
(libertas e messiânicas), que se dedicarão à busca da justiça no cotidiano da vida
democrática, exercendo sua cidadania plenamente, inclusive mediante a participação na
esfera pública deliberativa.

28 Op. cit., p. 274.

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