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Júlio Zabatiero
Para debate
Introdução
O tema da justiça é, ao mesmo tempo, de fundamental importância e de uma
complexidade imensa. Não podemos esperar, em uma pequena discussão como esta, dar
ao tema a amplitude de tratamento que ele exige e merece. Seremos obrigados a selecionar
aspectos e teorias específicas, temas mais bem delimitados, para que a discussão seja,
simultaneamente, academicamente adequada e existencialmente relevante1. Assim, fiz a
seguinte escolha temática, que ofereço à discussão sem qualquer pretensão além de iniciar
um debate. Para que você tenha informação sobre as principais teorias da justiça na
atualidade, escolhi alguns textos para leitura adicional que oferecerão a você outras
opções de estudo sobre o tema.
Começo o texto com um breve apanhado do significado de justiça na Escritura,
especialmente a partir do Antigo Testamento. A seguir, passo a apresentar um pequeno
momento da reflexão de Jean-Luc Nancy sobre justiça, e espero que você perceba os
vínculos entre a tese de Nancy e a noção de justiça na Bíblia. Em terceiro lugar, e levando
em consideração o que foi apresentado nas seções anteriores, ofereço uma leitura do
conceito construtivista de justiça de Rainer Forst. Juntei esses parceiros impertinentes de
diálogo exatamente por suas diferentes amplas que às vezes escondem similaridades
espantosas.
1 De a e , ec a e ba e a e a e a dea de a c edade e fe a
c ea. E b a a e c de ada e e a e e ad a c ,a
de uma sociedade plena envolve mais do que as questões de justiça (e.g., bem-estar, felicidade,
liberdade, etc.).
2 E de e a a Sa 98,2: YHWH fe aa a a a ; a fe a a a
ea e da a e .
1
saída de uma vida de infidelidade para uma de fidelidade e solidariedade. O novo êxodo
messiânico é agora efetivamente global e cósmico para toda a humanidade e para toda
a criação: a saída do cativeiro do pecado, carne, lei, morte e poderes.
Ao usar o vocábulo justiça, Paulo está usando uma linguagem escriturística bem
conhecida dos israelitas, que une libertação e justiça termos praticamente sinônimos na
Bíblia Hebraica: libertar é fazer justiça, justiça são os atos poderosos de Deus que libertam
o oprimido3. Ver, por exemplo: YHWH tornou conhecida a sua liberta ão, manifestou a
sua justi a perante os olhos dos gentios (Sl 98,2); Livra-me na tua justiça, e faze-me
escapar; inclina os teus ouvidos para mim, e liberta-me) (Sl 71,2) como resposta, o
salmista declara: A minha boca relatará a tua justi a e de cont nuo os feitos da tua
liberta ão, ainda que eu não saiba o seu n mero (Sl 71,15); Fa o chegar a minha justi a,
e não está longe; a minha libertação não tardará; mas estabelecerei em Sião o livramento
e em Israel, a minha gl ria (Is 46,13); Porque a tra a os roerá como a um vestido, e o
bicho os comerá como à lã; mas a minha justiça durará para sempre, e a minha libertação,
por todas as gera es (Is 51,8).4
No Evangelho do Messias Jesus se revela que Deus é fiel: tudo o que fez e
prometeu fazer a Israel, semente de Abraão, fará e o fará em prol de toda a humanidade,
pois Deus não é Deus somente de judeus, mas de toda a humanidade. Porque Deus é fiel,
nos céus e na terra (na forma do Messias Jesus), as portas para a confiança nele estão
abertas a todas as pessoas, posto que esse é o único caminho pelo qual se pode
efetivamente viver: o justo viverá com base na fidelidade . Acredito que Paulo faz uso
da ambiguidade gramatical da palavra fidelidade na sentença, para combinar com suas
afirmações anteriores no parágrafo: a justiça começa na fidelidade de Deus e se evidencia
na fé-fidelidade do libertado por Deus (cp. Gl 2,20).
A justiça revelada no Evangelho do Messias fiel é o oposto da injustiça e
impiedade das pessoas que, assim, tornam a verdade prisioneira da injustiça. A justiça de
Deus é o tipo de vida que as melhores e mais criativas utopias humanas almejam:
igualdade, participação, dignidade, autonomia, responsabilidade, criatividade, etc. No
Evangelho se revela que Deus é justo e criador de justiça (justificador). Como uma
resposta judaica à pergunta judaica sobre o Messias e o futuro de Israel, a justificação em
51,5 8; Mq 6,5; 7,9. Note-se a abundância de textos dos Salmos e do Segundo Isaías, porções
preferidas de Paulo na Bíblia Hebraica.
2
Paulo é parte da teodicéia e da soteriologia. Deus é justo em tudo o que faz, de modo que
Israel não pode atribuir a Deus a responsabilidade da situação de opressão que vive sob o
Império Romano. Deus justifica, ou seja, Deus é libertador e Israel pode esperar a
libertação, sabendo que Deus é fiel às suas promessas. Deve, porém, repensar sua visão
da libertação, e aprender com o Messias fiel em que consiste a justificação divina.
Em que consiste a justiça de Deus segundo Paulo? De fato, a resposta a esta
pergunta se constitui num dos mais calorosos e duradouros debates teológicos cristãos.
Toda resposta será, assim, sempre parcial e insuficiente. Levando isto em consideração,
ofereço a seguir uma das respostas possíveis:
Para ele, a justiça de Deus é, essencialmente, um agir de Deus a
favor de seu povo, adequado à própria natureza divina e
determinado pela fidelidade à aliança; por meio dessa ação ele
constitui seu povo como uma nova humanidade (o Israel dos
judeus e dos gentios). Esta justiça de Deus se manifesta no fato
de que Deus, diante do pecado da humanidade, não se deixa levar,
por assim dizer, por sua ira, mas que, apesar da atitude rebelde do
homem, faz prevalecer sua salvação e soberania. Porém, na
medida em que o pecado alcançou proporções gigantescas, as
fronteiras entre Israel e os gentios podem ser derrubadas e pode
surgir o novo povo de Deus. A transgressão de um (Adão), sua
desconfiança5 para com Deus (Gn 3), trouxe a desconfiança a toda
a humanidade e, assim, tornou-se ocasião de condenação para
todos. Agora, a ação justificadora (dikaioma) de um (Cristo), sua
confiança absoluta naquele que justifica os ímpios, tornou
possível para a humanidade a confiança incondicional em Deus,
não obstante a maldição do pecado. Isto conduzirá à justificação
(dikaiosis) da humanidade, para que ela receba o dom da justiça
na parousia (Rm 5,16-19).6
Paulo, assim, realiza mais um de seus deslocamentos teológicos. Transfere a
noção de justiça do âmbito da libertação da nação de Israel para o âmbito da libertação
da criação inteira. Como gosto de dizer, Paulo desloca do âmbito político para o
existencial, de modo que podemos ler o conceito de justificação em uma chave da
integralidade da existência humana, nas suas dimensões política, econômica, pessoal,
social, etc. Desta forma, encontramos na Escritura uma descrição da justiça que pode
entrar em diálogo com teorias atuais da justiça. Na Bíblia não temos uma teoria da justiça,
mas uma visão e prática da justiça desenvolvidas em contextos diferentes do nosso,
democrático, global e plural. Assim, no diálogo construtivo e crítico com teorias atuais,
podemos formular uma percepção teológico-pública da justiça.
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conheço sua obra, é em um pequeno texto de cinco páginas que Nancy descreve mais
especificamente sua no ão de justi a: Cosmos Basileus (Rei do Mundo ou Mundo Rei),
um dos textos que compõem o livro Being Singular Plural (Stanford: Stanford University
Press, 2000, p. 185-189. Originalmente publicado como Etre singulier pluriel. Paris:
Éditions Galilée, 1996). Sobre esse texto nos debruçaremos neste instante.
Nancy afirma: o mundo é irredutivelmente plural. Um mundo = diversos
mundos. A lei do mundo é o partilhar do/no próprio mundo. Mundo sem soberano, sem
princípio extramundano que o defina. Mundo, sentido de si mesmo. Construção
permanente através de infinitos compartilhamentos entre pessoas. Se é mundo, mesmo
plural, vive em uma lei, em um nomos: nomos a distribui ão, partilha e aloca ão de
suas partes: um pedaço de território, uma porção de alimento, a delimitação de direitos e
necessidade em cada e todo o tempo, conforme conveniente 7. Conveniente ? Não no
sentido pejorativo do termo, mas no sentido similar ao do princípio paulino de
moralidade: todas as coisas me são l citas, mas nem todas conv m .
Como sabemos o que convém?
A medida da conveniência a lei da lei, ou justiça absoluta está
somente na própria partilha e na singularidade excepcional de
cada um de cada caso, cada um de acordo com esta partilha.
Sim, esta partilha não dada, e cada um não dado (aquilo que
é a unidade de cada parte, a ocorrência de sua instância, a
configuração de cada mundo). Esta não é uma distribuição já
realizada. O mundo não é dado. Ele é, ele mesmo, o dom. O
mundo sua pr pria cria ão ( isto que cria ão significa).8
Justiça, então, é aquilo que é dado, repartido, devolvido a cada um, conforme
sua singularidade peculiar. Por isso, ninguém sabe, justamente, o que é a justiça. Cada
pessoa, em cada mundo, constantemente partilha, dá, toma, perde, recebe, devolve...
Como paralisar esse movimento incessante? Uma justiça que paralisa o movimento da
partilha não é justiça. Não é possível afirmar uma única justiça em uma pluralidade de
mundos:
cada existente aparece em mais arranjos, massas, nervos ou
complexos, do que se pode perceber à primeira vista, e cada um
também está infinitamente mais separado de tais, e separado de si
mesmo. Cada existente abre e fecha muitos mundos, os dentro de
si, assim como aqueles muitos fora de si, trazendo o exterior para
o interior, e vice-versa9.
7 NANCY, Jean-Luc. Being Singular Plural. Stanford: Stanford University Press, 2000, p. 185.
8 Idem.
9 Op. cit., p. 186.
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justiça, então, precisa ser entregue, ao mesmo tempo, à singular absoluta do próprio e à
absoluta impropriedade da comunidade de existências. Ela precisa ser entregue
exatamente a ambos, a um e ao outro: esse o jogo (ou o sentido) do mundo 10.
Uma impossibilidade? Sim! E exatamente por isso que justi a sempre busca
de justi a . É por isso tamb m que justi a sempre e talvez principalmente a
necessidade de justiça, isto é, a objeção a e o protesto contra a injustiça, o chamado que
grita por justiça, a respiração que se exaure em clamar por ela. A lei da justiça é esta
tensão interminável com rela ão à pr pria justi a 11. Lembra-se do sermão do monte?
Bem-aventuradas as pessoas que tem fome e sede de justiça .
A justiça, então, é parte da própria existência do(s) mundo(s). Ela não pode ser
trazida de fora, não pode ser dada por algum ser extraterreno. Nenhum herói, de
qualquer mundo, pode produzi-la. Ela constru da no mundo e com o mundo: Em si
mesmo, o mundo é a suprema lei da justiça: não o mundo dado e o tal como , mas o
mundo que emerge como uma incongru ncia propriamente incongruente 12. Se, como
diz o livro de Isaías, a justiça humana é como trapos imundos, somente na incongruência
é que a justiça se constrói, somente na loucura do mundo a justiça se constrói e aqui,
mesmo contra a vontade de Nancy, podemos evocar o apóstolo Paulo que nos lembra que
a loucura de Deus, que entrou no mundo mediante o Filho Encarnado, é mais sábia do
que a sabedoria dos homens.
5
Em seu livro mais recente, Forst inicia a discussão afirmando que o ser humano
é um ser justificador13 ou seja, um tipo de ser que demanda que as ações sejam
justificadas mediante razões, e que essas justificações sejam mútuas. Como um ser
justificador é um ser em busca de justiça, pois é a justiça que forma o núcleo do processo
argumentativo da justificação. Que é essa justiça? Para ele, o núcleo do sentido de justiça
é a oposição fundamental à arbitrariedade ou seja, às ações não justificadas. Notou a
similaridade com a tese de Nancy? Forst não oferece uma defini ão positiva da justi a,
mas uma defini ão construtivista (conforme o subt tulo do livro). Consequentemente,
para ele, o impulso fundamental que se posiciona contra a injustiça não é, primariamente,
o de quer ter alguma coisa ou ter mais de alguma coisa, mas o de querer não mais ser
oprimido, assediado, ou ter os seus próprios clamores (reivindicações) e o direito básico
à justifica ão ignorados 14.
A justiça, então, é uma busca, uma demanda:
A demanda por justiça é uma demanda emancipatória, que é
descrita com termos como honestidade, reciprocidade, simetria,
equidade ou equilíbrio; colocando-a de modo reflexivo, sua base
é a reivindicação (clamor) de ser respeitado como um agente de
justificação, isto é, em sua dignidade própria como um ser que
pode pedir e dar justificações. A vítima da injustiça não é,
primariamente, a pessoa que sofre a falta de certos bens, mas
aquela que não conta na produ ão e distribuição de bens.15
A busca por justiça é busca por libertação (emancipação). É busca pelo fim da
opressão, do assédio, da desigualdade, da dominação, da violência, etc. injustificáveis. O
termo-chave, aqui, é injustificável. Por quê? Existem desigualdades que são justificáveis
ou seja, que podem ser reconhecidas como legítimas mediante argumentação
apropriada. Da mesma forma, embora seja relativamente estranho reconhecer isto, há
formas de opressão, dominação, violência, etc. que também podem ser consideradas
justificadas (e.g.: a noção de guerra justa, a noção de revolução em que há opressão
temporária sobre o grupo anteriormente no poder; etc.). Positivamente falando, uma
situa ão justa , se todas as pessoas nela envolvidas concordarem, sem coerção, que é
uma situação justificável. Assim, o reconhecimento de que uma dada situação é justa ou
não, depende do exercício do direito básico de justificação em um ambiente
predominantemente não-coercitivo.
Consequentemente,
Seres humanos autônomos formulam seus juízos morais e
políticos independentemente, e os avaliam criticamente com a
prática; ao mesmo tempo, deles se requer que justifiquem tais
juízos, que deliberem coletivamente a respeito de todas as suas
consequências para as pessoas afetadas em modos politicamente
13 Obviamente, o conceito de justificação usado por Forst é bem diferente do conceito paulino de
justificação por graça mediante a fé.
14 FORST, Rainer. The right to justification: Elements of a constructivist theory of justice. New
6
relevantes, e que decidam de acordo. A primeira tarefa da justiça
é tornar isto possível.16
16 Op. cit., p. 7.
17 FORST, Rainer. Contexts of Justice: Political philosophy beyond liberalism and
communitarianism. Los Angeles: California University Press, 2002, p. 258.
18 Op. cit., p. 259.
19 Op. cit., p. 260.
20 No início do século XXI, as questões éticas mais comumente debatidas no Brasil têm sido as
7
modo diferente do modo das pessoas éticas: quer como Saulo de
Tarso, ou apóstolo Paulo, uma pessoa é um membro da
comunidade legal e uma pessoa legal; cada pessoa deve obedecer
às leis e tem direitos específicos, enquanto tal pessoa legal.21
8
que diferentes graus de responsabilidade indireta devem ser
distinguidos no tocante à sua diferenciação temporal).24
9
cidadãos, mas como a questão do que é moralmente justificado,
de como uma pessoa deve agir como ser humano . O que
moralmente válido deve ser válido para todas as pessoas morais
enquanto seres humanos. Cada pessoa moral tem o dever, perante
todas as pessoas morais (e isto significa, todas e cada uma), de
defender as normas orientadoras da ação que ela considera ser
justificadas por razões que não podem ser rejeitadas
reciprocamente (por indiv duos concretos ), ou geralmente (por
todos os membros da comunidade moral). Como tais, elas são
raz es universalmente partilháveis . A autonomia moral,
portanto, significa agir de acordo com normas que são válidas
geralmente, em um sentido moralmente irrestrito.26
10
Em um mundo globalizado, a demanda por justiça se torna ainda mais complexa,
na medida em que as relações internacionais se avolumam e tornam situações de injustiça
mais visíveis (além de criar novas), e deixam mais evidente também a pluralidade ética,
legal, política e, até mesmo, moral (lembrando-nos de que a universalidade é fruto da
universalização). Assim,
por serem membros de diferentes comunidades de justificação,
pessoas aceitam ou apresentam mutuamente umas às outras a
conexão autônoma da responsabilidade ética, legal, política e
moral vis-à-vis si mesmas e outras como a tarefa prática central.
Pode-se chamar tais indivíduos responsáveis de autônomas em
um sentido abrangente, e razoáveis no sentido prático. A este
conceito exigente de pessoas responsáveis corresponde o conceito
de uma sociedade responsável, que torna possível sua existência
prática (e é, ela mesmo, possibilitada por essa existência
prática).28
Conclusão
As noções de justiça de Nancy e Forst (teoria da justiça como justificação)
oferecem intenso e exigente material para reflexão e discussão constantes especialmente
se lidas em conjunto com as descrições bíblicas da justiça. Você percebeu por que a ordem
das Unidades desta disciplina? Após a definição e um pouco da história da Teologia
Pública, passamos aos conceitos fundamentais de uma teologia pública cristã: libertação
e a nova subjetividade dela decorrente. Esses conceitos servem de base para a construção
de uma noção teológica da justiça (nesta unidade) que, por sua vez, demanda a construção
de modos práticos de ação pública. Esses modos de ação pública, buscando a justiça, só
serão plenamente possíveis se praticados por pessoas que amam a si mesmas e ao próximo
(libertas e messiânicas), que se dedicarão à busca da justiça no cotidiano da vida
democrática, exercendo sua cidadania plenamente, inclusive mediante a participação na
esfera pública deliberativa.
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