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Era uma vez a Democracia

Texto 1: “Existe, porém, uma crise ainda mais profunda, que tem consequências devastadoras
sobre a (in)capacidade de lidar com as múltiplas crises que envenenam nossas vidas: a ruptura da
relação entre governantes e governados. A desconfiança nas instituições, em quase todo o
mundo, deslegitima a representação política e, portanto, nos deixa órfãos de um abrigo que nos
proteja em nome do interesse comum. Não é uma questão de opções políticas, de direita ou
esquerda. A ruptura é mais profunda, tanto em nível emocional quanto cognitivo. Trata-se do
colapso gradual de um modelo político de representação e governança: a democracia liberal que
se havia consolidado nos dois últimos séculos, à custa de lágrimas, suor e sangue, contra os
Estados autoritários e o arbítrio institucional. Já faz algum tempo, seja na Espanha, nos Estados
Unidos, na Europa, no Brasil, na Coreia do Sul e em múltiplos países, assistimos a amplas
mobilizações populares contra o atual sistema de partidos políticos e democracia parlamentar sob
o lema “Não nos representam!”. Não é uma rejeição à democracia, mas à democracia liberal tal
como existe em cada país, em nome da “democracia real”, como proclamou na Espanha o
movimento 15-M. Um termo evocador que convida a sonhar, deliberar e agir, mas que ultrapassa
os limites institucionais estabelecidos.
Dessa rejeição, em outros países, surgem lideranças políticas que, na prática, negam as formas
partidárias existentes e alteram de forma profunda a ordem política nacional e mundial. Trump,
Brexit, Le Pen, Macron (coveiro dos partidos) são expressões significativas de uma ordem (ou de
um caos) pós-liberal.
Na raiz desse novo panorama político europeu e mundial, está a distância crescente entre a classe
política e o conjunto dos cidadãos. Este livro fala das causas e consequências da ruptura entre
cidadãos e governos e da mãe de todas as crises: a crise da democracia liberal, que havia
representado a tábua de salvação para superar naufrágios históricos de guerras e violência”.
in Manuel Castells Ruptura. A crise da democracia liberal, tradução: Joana Angélica d’Avila Melo, pp. 8-9.

Texto 2: A maré democrática motivou uma outra corrente de estudos: as pesquisas sobre a qualidade e a
performance desses governos. O propósito era, sobretudo, comparar democracias, de modo a identificar
fatores associados ao melhor desempenho de algumas delas em uma série de quesitos. Por que as
mulheres e minorias étnicas são representadas em maior número em alguns países? Existe alguma relação
entre as regras eleitorais e o grau de corrupção? Por que mais cidadãos comparecem para votar em alguns
países do que em outros? O investimento em políticas sociais é maior em países federalistas e
descentralizados? A última onda de entusiasmo com a transição de regimes fechados para a democracia
foi a Primavera Árabe (fim de 2010 e começo de 2011). Naquele momento seria difícil imaginar que,
poucos anos depois, um dos temas centrais da reflexão política seria a “recessão democrática” –
expressão cunhada pelo cientista político norteamericano Larry Diamond para descrever o fim do
processo contínuo de ampliação de democracias no mundo. O fracasso da democratização nos países que
promoveram a Primavera Árabe (apenas a Tunísia conseguiu fazer uma passagem bem-sucedida) e a
reversão de experiências similares incipientes na África, no Leste Europeu e na Ásia ensejaram um novo
ciclo de análises, em geral pessimistas, sobre os Estados democráticos.
Levitsky e Daniel Ziblatt (2018). Como as democracias morrem?, trad: Renato Aguiar, prefácio.

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