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Artigo

Da República ao Império
DÉCIO FREITAS/ Historiador
Os fundadores da primeira república moderna eram historicamente otimistas. Acreditavam que a
Revolução Americana - também primeira revolução moderna - abria a possibilidade duma inédita experiência na
política internacional. Um mundo composto de repúblicas viveria livre das guerras motivadas pelas ambições de reis e
dinastias, como ocorrera ao longo dos três séculos da história moderna, sobretudo com as monarquias francesa e
inglesa. Madison e Jefferson, como outros liberais ilustrados do século 18, abrigavam a esperança da eliminação da
guerra e da criação da paz universal. Como para eles as guerras provinham do protecionismo comercial de ambiciosas
monarquias apostadas em enriquecer à custa de outros povos, o livre-comércio dos Estados republicanos garantiria a
paz no mundo.
Sabemos que a utopia dos patriarcas da República americana falhou miseravelmente. No século 20, as
repúblicas predominavam no mundo ocidental e as poucas monarquias sobreviventes se tinham republicanizado, com os
soberanos exercendo poder apenas simbólico. O que não impediu que o século conhecesse duas guerras mundiais, afora
alguns conflitos menores. Os próprios EUA converteram-se num Estado guerreiro. Apesar disso, ou graças a isso,
tornaram-se no século 20 a nação mais rica que já houve, e a riqueza trouxe um incomensurável, inédito poder. Mas não
se conquista impunemente o poder. Os que o conquistam são à sua vez por ele conquistados, ficando prisioneiros da sua
lógica e dos seus interesses. Assim foi como os EUA entraram no século 21 como a nação mais poderosa da História,
em todos os aspectos. Frustrando as generosas expectativas dos pais-fundadores, são impelidos a se constituir como
império universal - hoje uma fatalidade imanente ao seu poder, sem que os governantes possam impedi-lo.
Sobreviverá a República americana ao Império? As mais lúcidas cabeças dos EUA já denunciam fortes
sinais de decadência da democracia americana. Nas eleições de 2000, o presidente não foi eleito pelo povo, mas pelo
voto dum juiz da Suprema Corte. Após o 11 de setembro, multiplicaram-se as restrições às liberdades civis. Daniel
Ellsberg, que na guerra do Vietnã encarnou a consciência democrática dos EUA, enumera os principais sintomas de
decadência da democracia: culto da infalibilidade presidencial, expansão brutal do militarismo, Poder Executivo
enganando rotineiramente os dois outros poderes e crescimento canceroso do "segredo oficial". Alguns sustentam que a
democracia americana já está em coma, o que talvez seja um exagero. Mas não se pode deixar de ver a sombra do
cesarismo nos métodos de George Bush. A probabilidade é de que a República democrática dê lugar a um Império
eletivo. Será inevitável que o Império solape e corrompa a República a ponto de transformá-la numa farsa.
Como exercerá seu poder? Será suprema ironia se adotar a ocupação do tipo colonialista: os EUA foram
no século 20 o país que mais se bateu pelo direito de autodeterminação dos povos, acabando com os impérios coloniais
europeus. É claro prenúncio de tendência colonialista o fato de que já mantêm cerca de 800 bases militares noutros
países. Não haverá ocupação apenas para implantar a democracia. Hoje muitos governos autoritários torturam e matam
os opositores, e uns poucos possuem armas de destruição em massa. Mantêm-se porque nenhum tem em seu solo a
segunda reserva de petróleo do mundo. O Império será benigno para com Estados-clientes desenvolvidos, sobretudo os
ocidentais: será na verdade um império ocidental sob a liderança dos EUA, prosseguindo a velha narrativa imperial da
Europa. Talvez a Pax Americana reduza o número de Estados-vassalos hoje sustentados com subsídios e armas dos
EUA. As relações com o exterior se militarizarão ainda mais, num processo que de resto já começou: os gastos não-
militares para promover a influência americana no exterior já estão reduzidos a pífios 0,2% do PIB.

Impérios são sempre temidos, mas não amados. Historicamente, toda hegemonia imperial suscitou forças
hostis que mais dia menos dia se impuseram. Quer dizer, todos os impérios tombaram sob o peso da sua ilegitimidade.
Perceberão os EUA que a longevidade dum império depende menos da irracionalidade da força bruta que da conquista
das mentes e dos corações? Os otimistas antecipam que o Império será o começo do fim da hegemonia americana, mas
talvez seja mais realista presumir que durará pelo menos o tempo duma geração.

Artigo
O bazar turco
VOLTAIRE SCHILLING/ Historiador
"A nossa escolha não é entre o bem e o mal, mas entre o mau e o pior." General turco Hilmi Özkök
Disseram que o sultão Solimão, o Magnífico, temia mais as preces do papa do que os canhões dos
cristãos. E tinha razão, pois foi Pio V quem, aliando-se a Felipe II da Espanha e a outras cidades italianas, conseguiu
mobilizá-los para uma cruzada contra os turcos. Cinco anos depois da morte do famoso sultão, ocorrida em 1566, a
marinha ocidental comandada por João d´Áustria, um bastardo de Carlos V, no dia 5 de outubro de 1571 cercou a frota
turca em Lepanto, no golfo de Corinto, impondo-lhe uma memorável derrota. Batalha em que o bravo Cervantes perdeu
a mão.
Até aquela época o poder do sultanato era impressionante. Com um pé na Europa e outro na Ásia, o
Império Turco Otomano, alargado pelas campanhas de Solimão, o Califa do Islã - estendia-se dos campos da Hungria,
no meio da Europa, até o sul da península arábica, uns 7 mil quilômetros distante.
A morte de Solimão, o Magnífico, seguida do fiasco de Lepanto, foram as balizas que assinalaram o
começo da decadência dos otomanos. A sensação do alívio que isso trouxe aos europeus é sentida na Marcha Turca, um
rondó composto por Mozart em 1790, onde a outrora sonora marcialidade dos ferozes janízaros turcos reduziu-se a um
divertimento de salão. Montesquieu e Voltaire, por sua vez, quando faziam menção ao "turco" era para associá-lo ao
testa-dura, ao burrão, ao crente ignorante. Imobilizado entre a ascendência do czarado na Rússia ao Leste e a opulência
da Europa Ocidental no Oeste, o Império dos Sultões, caindo no marasmo, uns séculos depois acabou apelidado pelo
Kaiser Guilherme de o " doente da Europa".
Sacudiu-o a revolução de Kemal Atatürk, de 1919-23, o general fundador da Turquia moderna,
transformando-a na primeira república do mundo muçulmano. Perdido o império na guerra de 1914-18, ocasião em que
a Grã-Bretanha e a França roubaram-lhe as suas províncias árabes, Atatürk, "o libertador dos turcos", compreendeu
muito bem que era preciso reformar a sociedade otomana de cima a baixo. Sem instrução das massas, sem estímulo à
ciência ou à emancipação das mulheres, não haveria a oxigenação possível, hábil em converter a Turquia numa nação
ocidentalizada. A principal arma do país, insistiu ele, seria a arma da educação.
O Kemalismo, a ideologia da república então proclamada, além de romanizar a escrita nacional, varreu do
cenário os arcaicos rituais de submissão, os suplícios físicos abomináveis (a empalação foi banida), e a idéia de que as
leis deviam inspirar-se no Corão. Todavia, como se vê agora na crise EUA-Iraque, a grande reforma ainda não
conseguiu purgar seus governantes da velha alma levantina que tristemente os faz mercadejar a própria honra do país,
equiparando o torrão natal a um traste de bazar pronto a ser arrematado ao preço maior (os americanos ofereceram-lhes
US$ 26 bilhões para atacar o Iraque do território turco, mas eles só se vendem por US$ 32 bilhões).
Se bem que o próprio Solimão, o Magnífico, aliou-se a um chefe de piratas nomeando-o seu almirante,
jamais se soube dele ter concedido alugar ou arrendar partes da suas posses (como parece ser a atual vontade do general
Hilmi Özkök, e do primeiro ministro Abdullah Gul), para que dali uma poderosa potência viesse a agredir um vizinho
seu. Os europeus chamaram o velho sultão de o "Magnífico" por que, ainda que fosse um inimigo, era um soberano
digno, honrado, elogio que está longe de se aplicar aos vendilhões que detêm o poder na Turquia de hoje.

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