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DÉCIO FREITAS

HISTORIADOR
Modernização à brasileira
O jornalista Tim Lopes morreu no ano em que se celebra o centenário da primeira edição de Os
Sertões. O que há de comum entre Euclides da Cunha e Tim Lopes? Soa estranha a aproximação:
Euclides da Cunha foi um gênio literário e Tim Lopes apenas um repórter. Sucede que ambos foram
jornalistas investigativos: Euclides, o primeiro na história do jornalismo brasileiro; Tim Lopes fazia
jornalismo investigativo. O Euclides-jornalista investigou uma enorme favela rural no sertão
brasileiro; Tim Lopes investigava uma favela urbana, a maior do Brasil e da América Latina. Euclides
denunciou o caráter patológico da modernização brasileira no advento da República; cem anos
depois, Tim Lopes fixou em reportagens – derradeiramente, ao custo da própria vida – a
continuidade da modernização patológica.
Tomara que o centenário de Os Sertões não motive apenas celebrações literárias, e que a morte de
Tim Lopes não motive apenas um justificado luto. Neste ano de eleições gerais, conviria refletir sobre
a nossa modernização urbana, patologicamente favelizadora.
Na guetização dos pobres nos
morros produziu recentemente
efeitos imprevistos e assustadores
Um prefeito do Rio, Pereira Passos, principiou a modernização urbana, exatamente um ano após a
publicação de Os Sertões. A cidade ainda guardava a caótica configuração urbana colonial de ruas
estreitas e edificações irregulares. Inspirado nos novos modelos do urbanismo europeu, o prefeito
promoveu o embelezamento da cidade, rasgando novas e grandes avenidas. Este processo implicou
na eliminação dos quarteirões de imundos e anti-higiênicos cortiços habitados pelos trabalhadores
pobres no centro da cidade. Como tal camada social não tinha condições de adquirir os terrenos
supervalorizados pela reforma de Pereira Passos, localizou-se em barracos nos terrenos devolutos
dos morros mais próximos do centro: Providência, São Carlos, Santo Antônio, Castelo.
Nos anos 20 do século passado, outro prefeito empenhou-se em higienizar e embelezar a área mais
próxima do centro, derrubando o Morro do Castelo. À medida que crescia e se modernizava, a
cidade também se estratificava: classe alta, na Zona Sul; classe média, na antiga Zona Sul
(Botafogo, Flamengo); classe média inferior, nos subúrbios. Os pobres crescentemente se
instalavam em barracos nos morros. Mais tarde, um prefeito adotou o Plano Agache, que visava a
uma maior modernização da cidade, extirpando as favelas duma “população avessa às regras de
higiene e urbanismo”. A Revolução de 30 frustrou a execução do plano, mas a industrialização
intensificou a migração do campo para a cidade. A falta de habitação fez proliferarem ainda mais os
barracos nos morros. Planos de habitação popular bancados pelo Estado não deram conta das
necessidades habitacionais dos pobres. Ao longo do tempo, novas obras modernizantes – avenidas
e arranha-céus – incrementaram a favelização. Mais e mais se viam segregados nos morros os que
com seu trabalho faziam a cidade crescer e enriquecer.
O regime de 1964, brutalmente concentrador da renda, intensificou a favelização. Erradicaram-se as
favelas localizadas em locais nobres da cidade, abrindo espaço para grandes especulações
imobiliárias de imóveis de luxo, o que deu lugar a que às vezes, a curta distância dos barracos,
ergam-se torres com apartamentos de US$ 1 milhão ou US$ 2 milhões. O Banco Nacional da
Habitação financiou habitações, de forma generosa, unicamente para as classes média e alta. A
redemocratização, ai de nós, se faz acompanhar de redobrada concentração de renda e, em
conseqüência, de mais favelização. Hoje, a República das Favelas do Rio abriga uma população
provavelmente bem superior a 1 milhão de habitantes. A modernização à brasileira é sordidamente
esperta: incorporou as favelas à paisagem da Cidade Maravilhosa e as transformou em rendoso
exotismo turístico.
A guetização dos pobres nos morros produziu recentemente efeitos imprevistos e assustadores. Se
àquela gente não se dava habitação, por que se lhe daria segurança? A omissão do Estado oficial
deu lugar a um Estado virtual de sicários do crime organizado, cujo terror dita a lei nas favelas,
usando-as como base para desencadear no país violência endêmica que começa a configurar um
processo de colombianização. Para combatê-lo, sugere-se de tanto em tanto a mobilização do
Exército, que a justo título reluta em repetir o inglório e humilhante papel de Canudos.
Ainda que às vezes com outro nome, e sem a mesma charmosa notoriedade internacional que as do
Rio, as favelas pululam em todas as grandes e médias cidades brasileiras. Na mesma medida em
que o Brasil se moderniza, multiplicam-se as favelas, testemunhos duma modernização que ignora
os pobres – e é feita contra eles. Modernização e favelização são sinônimos socialmente perfeitos.
Afinal, as favelas são as fezes da modernização à brasileira.
LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL
ESCRITOR
Velhos
Há pouco tempo participei, em Lisboa, de um simpósio que reunia escritores de vários países
lusófonos. Um poeta da África, com 75 anos, relatou-nos uma reunião que tivera no gabinete do
presidente de sua jovem república. Num momento em que a tal reunião azedava, ele pediu a
palavra. Todos se calaram, atentos. O poeta deu seu recado e obteve concertar os ânimos. De
sobra, passou uma carraspana no presidente, que não soubera manter a ordem. No intervalo do
simpósio lisboeta, enquanto saboreávamos pastéis de nata de Belém com um agradável vinho do
Porto, eu o cumprimentei por viver num país em que os poetas tinham tanto poder moral. “Que
nada”, me respondeu ele, risonho, sorvendo um gole, “poucos ali sabiam que eu era poeta. Eles
ficaram bem quietinhos porque eu era o mais velho”. Bem: cumprimentei-o novamente, e por uma
razão também forte.
Falar em velhice é pedir socorro aos clássicos: Sêneca, Cícero, Montaigne. Clássicos são, afinal, o
último recurso quando tudo falha. Mesmo porque, nos dias atuais, os textos que falam sobre velhos
só existem para ensinar-lhes como não parecer velhos. E na TV vêem-se essas patéticas imagens
comerciais de velhos andando de carrossel, velhos fazendo bolhas de sabão, casais de velhos
travando batalhas de travesseiros ou imersos numa banheira. Todos sabemos que isso não tem
nada ver com a vida real; subjaz, aí, a perversa idéia de que o velho só é aceitável se for mostrado a
fazer coisas de moço.
A velhice é a fase em que não há mais esperas, mas a fruição de todas as esperas da vida. Tudo é
mais lento, e deve ser pensado antes de ser feito, até subir três degraus; mas em compensação não
se pisa em falso, e ao final dos três degraus saboreia-se a vitória. Esse prazer nenhum jovem terá.
Torna-se preciso, é certo, suportar os olhares, em especial aqueles de brejeira condescendência.
Mario Quintana, quando ancião, sofreu na carne: fizeram de tudo para infantilizá-lo, colocando-o sem
aviso na companhia tumultuária de crianças, submetendo-o a perguntas ridículas, provocando-o a
dizer puerilidades e banalizando-o em público. Ele, que não foi nenhum tolo, saía-se muito bem,
respondendo com uma fina astúcia que nem todos perceberam. Velhos, por muita vida, sabem
defender-se.
Dizem que há os asilos forçados, os abandonos, os achaques. Há-os, efetivamente. Mas isso ocorre
em todas as idades. Quantos jovens por aí, dormindo sob marquises, quantos padecendo de
enfermidades dolorosas e trágicas oriundas da civilização, quantos em orfanatos e reformatórios? E
mais: se o jovem potencializa seu sofrimento, um pouco à Werther, o velho coloca o sofrimento em
seu devido lugar. Como explica João Paulo II – falando mais como Karol Wojtyla – em sua poética e
original Carta aos Velhos, de 1999: o passar do tempo suaviza os contornos dos acontecimentos,
amenizando as contrariedades.
Invoquei os clássicos, e Cícero, em De Senectute, não me falhou. O autor das Catilinárias possui
uma frase espantosa por seu espirituoso conselho: “Torna-te velho cedo, se quiseres ser velho por
muito tempo”.
E se isso acontecer, poderemos longamente desfrutar essa bela idade, e talvez venhamos a atingir
uma época em que um velho, ao erguer a voz, todos se calem. Principalmente os presidentes da
República.
VOLTAIRE SCHILLING
HISTORIADOR
Dewey, filósofo da democracia
“Eu acredito que educação é o método fundamental do progresso social e da reforma (...). Através
da educação a sociedade formula o seu próprio propósito, podendo organizar seus próprios meios e
recursos... dirigindo-os no sentido em que ela pretende mover-se.”
John Dewey – My Pedagogic Owed, 1897
Daniel Gilman, o reitor da Universidade de Johns Hopkins, temia que seu dedicado aluno John
Dewey, que lá graduou-se em Filosofia em 1884, não conseguisse ir além do que ser um rato de
biblioteca. Local onde o jovem passava enfurnado a maior parte das suas horas de folga. Pois bem
ao contrário. Com o canudo em mãos, Dewey foi um incansável homem de ação, um batalhador pela
educação democrática nos Estados Unidos, um homem do mundo. Tudo o interessava. Tanto o
ensino levado adiante na União Soviética, país que visitara em 1928, ciceroneado por Lunacharsky,
o comissário da cultura do regime, quanto pela responsabilidade do Ocidente em provocar o vício do
ópio entre os chineses. Mesmo reconhecendo os méritos da educação em massa que proliferou no
século 20, ele nunca entusiasmou-se pelos regimes coletivistas, pelo simples motivo de ele ser um
campeão da individualidade.
Era, como gostava de dizer, um ianque, aqueles homens que, sozinhos, querem enfrentar o mundo e
a natureza. Se bem no passado Platão idealizara uma educação da total subordinação dos
indivíduos à polis ideal, na qual cada um ocuparia um lugar previamente estabelecido (como
governante, guardião ou trabalhador), se no Iluminismo cultivou-se a visão de um ser subordinado às
coisas do mundo, ele, Dewey, afirmava que, no contemporâneo, chegara a vez do indivíduo ver-se
inteiramente libertado daquele tipo de obrigações. Nenhuma canga seria imposta sobre a sua
pessoa, nem do Estado, nem da sociedade.
A solução que ele apontou
era o incentivo à multiplicação
de pequenas associações livres
Discípulo do filósofo pragmatista Charles Peirce, e admirador de William James, entendia que a
escola democrática devia formar gente pronta para a ação, capaz de por si mesmo, pela pesquisa ou
pela atuação, encontrar os caminhos para o seu lugar na sociedade. Bem ao contrário da Europa,
nada na América estava dado de antemão, tudo estava ainda por fazer, porque, como assinalou,
“uma filosofia americana da História tem que ser uma filosofia do futuro e não do passado”. A escola
era um viveiro que devia formar pássaros livres, conscientes das suas capacitações, prontos para o
que der e vier. Dewey, porém, observou que mesmo na sociedade democrática alguns poderes
inconvenientes se constituíam – as corporações privadas ou públicas. Tais “gigantes coletivistas”
constituíam uma contradição ao seu ideal de soberania do indivíduo.
Como alguém de sã consciência poderia ter qualquer esperança na importância do indivíduo quando
a própria economia americana gerava sem cessar trustes com o de Rockefeller? A solução que ele
apontou, para contrapor, era o incentivo à multiplicação de pequenas associações livres. Minúsculas
células de cidadãos que brotavam, aqui e ali, espontaneamente na sociedade democrática, que, ao
tempo em que preservavam a identidade e a subjetividade das pessoas, poderiam ser usadas como
instrumentos de crítica e de civismo. Elas é que enfrentariam e embaraçariam “o coletivismo privado”
e o “coletivismo do Estado”. Sim, Dewey foi o patriarca das ONGs.
Quando alguém lhe dizia ser sua aposta no radicalismo individual pura quimera, fantasia de filósofo,
ele, otimista incurável, respondia que ninguém na Idade Média poderia supor que aqueles
insignificantes comerciantes, negociantes e artesãos, que viviam ao redor do castelo e da igreja,
viriam algum dia a impor os seus valores sobre a sociedade inteira.
Com o tempo, ao longo da sua vida (viveu até os 93 anos, morrendo em 1º de junho de 1952), ele foi
uma espécie de Platão dos norte-americanos, o grande homem do pensamento que imiscuiu-se em
todas as esferas do conhecimento. Além da educação, sua preocupação predominante, enfiou-se na
vida política, nos costumes, na ciência, em tudo a que era atraído por sua infinita curiosidade,
forçando o surgimento de uma maneira bem americana de entender as coisas da vida, afastando as
preocupações com o abstrato em favor da ação, da prática constante, sempre fazendo com que seus
seguidores buscassem, sem esmorecimento, a verdade, treinando-os a resolver os problemas que
iam surgindo pela frente.
Para Dewey – membro eminente “da velha seita dos libertadores”, segundo Herbert Marcuse –, não
havia progresso humano sem haver dificuldades, entendendo “a ciência como o Messias do século
futuro”, com a tecnologia fazendo a função de Anjo da Anunciação. A ênfase que ele sempre deu ao
futuro, expressão do otimismo dos americanos, fez com que seus críticos o acusassem de
desconsiderar a importância do passado e da continuidade das coisas, de exagerar no seu
antieuropeísmo. Mas o que esperavam dele? Afinal, ele não se disse um ianque?

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