Você está na página 1de 3

DÉCIO FREITAS

HISTORIADOR
No fio da navalha
“Os fundamentos da economia brasileira são sólidos”, sentenciou esta semana um dos conspícuos
feitores da dita. Sempre que se aguça a crise, lá vem o sapiente preceito sobre a “solidez dos
fundamentos da economia”.
A expressão tornou-se uma espécie de contra-senha da casta dos economistas oficiais, oficiosos e
conexos. Importante jornalista econômico inglês, Larry Elliott, há pouco rastreou com ironia seu
emprego em tempos recentes. Em meados de 1997, quando a Tailândia surgiu como primeiro país
afetado pela crise financeira asiática, o G-7, reunido em Denver, proclamou a “solidez dos
fundamentos da economia mundial”. Um ano depois, quando se desenhava o calote da Rússia, o G-
7 garantiu em Birmingham que “os fundamentos da economia mundial são sólidos”. Ao estourarem
as crises russa e brasileira em 1998, o G-7 não viu motivos para deixar de sustentar que os
“fundamentos da economia mundial são sólidos”. Quando o G-7 se reuniu em Colônia em 1999, a
especulação no mercado de ações dos EUA dava parte de que os papéis da Amazon.com –
empresa de encomendas postais que não dava lucros – valiam mais que os da General Motors.
Bem, isso não chegava a ser problema: os fundamentos da economia mundial permaneciam sólidos.
Na reunião de Gênova, proclamou-se a “solidez dos fundamentos da economia mundial”, inobstante
a insolvência da Argentina e da Turquia, a persistente deflação japonesa, o crescente desemprego
na Alemanha e, sobretudo, a ausência de resposta da economia americana a seis cortes de juros
este ano.
Como Roma não se fez num dia,
a execução de qualquer projeto
alternativo será demorada
Admite-se que vivemos processo recessivo (eufemisticamente chamado de desaceleração), mas
garante-se que tudo continuará no melhor dos mundos, retomando-se o crescimento se as
economias emergentes mantiverem abertos seus mercados e os países ricos preservarem as
barreiras protecionistas de suas economias (Ah! Ah! Ah! Laissez-faire de uma mão só!). Que importa
que um quinto da população do globo viva com menos de US$ 1 por dia? Esses economistas
oficiais, oficiosos e conexos não se dão por achados ante o fato de que os países de economias
emergentes não estão emergindo, mas imergindo em crises trágicas, a despeito da “solidez dos
fundamentos econômicos”. Já seria em si simplesmente ridículo falar em “fundamentos econômicos
sólidos” em economias congenialmente débeis e precárias como as da AL, nas quais além disso
está falhando miseravelmente o sistema das religiosas crenças milagreiras da desregulação, da
privatização e da liberalização, sobretudo quando eclode uma crise mundial cujo epicentro é a
economia mais poderosa do mundo, sem razoável previsão da sua amplitude e da sua duração.
A menos que se dê vivermos numa ilha econômica, a crise bate à porta. Como vencê-la? Se existe
projeto alternativo viável, qual é? Perguntas deste tipo costumam ser feitas sempre que se prega
reforma ou mudança de rumo. Quando no século 17 o padre Antônio Vieira criticava perante o rei a
política da metrópole na colônia brasileira, ponderou o soberano que a crítica não se fazia
acompanhar duma proposta de solução. Ao que o genial padre respondeu: “Quem discute problemas
não tem a obrigação de resolvê-los”. Sabia Vieira que projetos históricos não podem ser elaborados
cerebrinamente por um indivíduo ou grupo de indivíduos, mas são produtos de incognoscível
processo histórico que se exprime através de algum estadista excepcionalmente bem-dotado. Seja
como for, como Roma não se fez num dia, a execução de qualquer projeto alternativo será
demorada.
Nesse ínterim, para enfrentar os vindouros tempos sombrios, há reformas que podem desde logo ser
executadas, como as das instituições. É lição histórica que não há desenvolvimento sem instituições
políticas legítimas, estáveis e eficientes. Ora, no Brasil como em toda a AL, as instituições
democráticas estão bastante deslegitimadas e, por efeito disso, ameaçadas. Não seria preciso que o
indicasse a pesquisa de dias atrás: está na lógica das coisas, e, mais, está no ar. Entende-se a
crescente desafeição por recém-nascidos e precocementemente decrépitos regimes que invés de
melhorar a vida da maioria dá de si mais pobreza e desemprego. A corrupção endêmica devora a
suada poupança compulsória cristalizada no imposto, desvendando a crise moral que cancera a
classe política e a desmoralizante incapacidade do Estado de proteger a riqueza pública contra o
roubo. Já se acha que a representação política é igual a qualquer outra representação, inclusive a
teatral. Os partidos são grupos de interesse fechados e distanciados da sociedade.
Conseqüência: o autoritarismo volta a projetar sua longa sombra histórica sobre a AL. Não assumirá
decerto a forma das cruas ditaduras militares e civis do passado, visto que a conjuntura internacional
é adversa. Entre outras coisas, multiplicam-se em vários países da AL os indícios dum
neopopulismo. A crise econômica, a desgraceira social e a podridão moral colocarão cada vez mais
as enfezadas democracias latino-americanos no fio da navalha – em que pese a triunfalista “solidez
dos fundamentos da economia”.
VOLTAIRE SCHILLING
HISTORIADOR
O Muro de Berlim
“Terrível! Esta fronteira de pedra ergue-se... ofende
os que desejam ir para onde lhes aprouver
não para um túmulo de massa
um povo de pensadores.”
Volker Braun, 1965
Na manhã bem cedo do dia 13 de agosto de 1961, a população de Berlim próxima à linha que
separava a cidade em duas partes foi despertada por barulhos estranhos, exagerados. Ao abrirem
suas janelas, depararam com um inusitado movimento nas ruas a sua frente. Vários Vopos, os
milicianos da RDA (República Democrática da Alemanha), a Alemanha comunista, com seus
uniformes verde-ruço, acompanhados por patrulhas armadas, estendiam de um poste a outro um
interminável arame farpado que alongou-se, nos meses seguintes, por 37 quilômetros adentro da
zona residencial da cidade.
Enquanto isso, atrás deles, trabalhadores desembarcavam dos caminhões descarregando tijolos,
blocos de concreto e sacos de cimento. Ao tempo em que alguns deles feriam o duro solo com
picaretas e britadeiras, outros preparavam a argamassa. Assim, do nada, começou a brotar um
muro.
O objetivo era deter o
constante fluxo de gente
para olado ocidental
Com a primeira linha de pedra, traçado cubista da Guerra Fria, se alastrando pela cidade, Krushev,
então o chefe de Estado da URSS, mandava às favas a imagem do socialismo para o restante do
mundo. O paredão viera para ficar. Era uma monstruosidade arquitetônica que denunciava a estética
kitsch, cinzenta, burra e tosca, do comunismo soviético, ao tempo em que expunha a absoluta
insensibilidade das suas autoridades maiores.
Em retrospecto, o muro, além de ser um desastre ideológico, a encarnação viva do fracasso do
socialismo real, resultou de um previsível processo de isolamento, seguido de enclausuramento dos
alemães-orientais, que já se arrastava desde 1952: ano em que a Zonengrenze, a fronteira entre as
duas Alemanhas (a Federal, pró-ocidental, com sede em Bonn, e a comunista, pró-soviética, com
sede em Berlim) foi definitivamente fechada. Dali em diante, os soviéticos só permitiram o trânsito de
carros e gentes, de um lado para o outro, por alguns locais selecionados da cidade de Berlim.
Em seguida ao esmagamento do levante dos trabalhadores de Berlim oriental contra a ocupação
russa, ocorrido em 17 de junho de 1953, foi exigida dos ocidentais um passe especial para poderem
circular do lado oriental. Em 1957, o cerceamento dos westi, dos orientais, ampliou-se com a adoção
de severas punições, que chegavam a condenações de até três anos de cadeia, para quem tentasse
deixar o lado comunista sem permissão.
Essa sucessão de restrições, que culminaram no erguimento do medonho paredão antifuga, é que
alimentou a impressão de que os alemães-orientais continuavam a ser os únicos punidos pela
derrota de 1945. Porém, Walter Ulbrich, o líder comunista da RDA, afiançou a construção dizendo-a
necessária para proteger o seu Estado proletário de uma possível “agressão fascista”, mesmo
sabendo que os fossos antiveículos, que se estenderam por 105,5 quilômetros ao redor da cidade,
estavam dispostos a evitar a evasão do lado leste e não o contrário.
O objetivo era deter o constante fluxo de gente para o lado ocidental, migração que fizera com que,
entre 1949 e 1961, bem mais de 2,6 milhões de alemães-orientais escapassem para a República
Federal. De certo forma isto se explica não só pela diferença dos regimes, como também pelo fato
de ter havido uma extraordinária recuperação econômica do lado ocidental: o Wirtschaftwunde, o
milagre econômico dos anos 50/60. Afinal era naquela parte do país que os grandes complexos
industriais do Ruhr, com suas minas, suas forjas, seu aço, e seus trabalhadores especializados,
estavam.
Desde que as potências ocidentais, a partir de 1948, devido à Guerra Fria, decidiram não mais punir
a Alemanha, cessando a desmontagem e o translado das suas fábricas, removidas então a título de
indenização de guerra, o lado ocidental galopou em direção à prosperidade.
A outra parte não só estava ocupada pela URSS, que sangrara horrivelmente na luta contra o
nazismo, como se viu espoliada das poucas instalações fabris que lá restaram depois da guerra.
Apesar do repúdio geral à tese da pastorização da Alemanha, defendida certa vez por Hans
Morgenthau, o conselheiro de F.D. Roosevelt – que pregava como a melhor política do pós-guerra
converter os alemães em mansos criadores de ovelhas e plantadores de repolhos –, foi do lado
soviético onde isso foi de fato quase levado a efeito nos decênios que se seguiram ao pós-guerra.
Pelo menos até 1961.
Quanto à sensação de viver-se assim encarcerado, por anos a fio, numa metade de uma enorme
cidade tornada o maior campo de presos civis do mundo, nada melhor do que os versos de Uwe
Kolbe, do seu Hineinberon, de 1980, ao tempo em que ele ainda era um jovem poeta. Empinando-se
do alto do muro, ele procurava olhar para bem distante, vendo no horizonte, ao longe, as terras
exuberantes em meio a planícies com belas árvores vermelhas, enquanto cabia aos seus, lamentou
ele, espremerem-se num reduzido torrão verde, com árvores negras, em meio à paisagem de arame
farpado, onde o vento era cruel, duro, só tendo os pássaros como amigos.

Você também pode gostar