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10/02/2021
Conservadores E Curadores E Os Perigos Da Especialização

À Magali Sehn,conservadora, cuja atitude


profissional é uma sensível
demonstração de respeito aos artistas.

Militando há alguns anos como curador de arte contemporânea, somando num período
de pouco mais de dez anos duas curtas e ricas experiências como curador de museu
(curador de exposições temporárias do MAC/USP, de 1990 a 1992; curador geral do
MAM/RJ, de 1998 até meados deste ano), tive a oportunidade de travar contato com o
cotidiano dos conservadores, perceber os traços gerais de suas preocupações, os
complexos dilemas que eles enfrentam diariamente, como também perceber que as
relações entre eles e a produção artística contemporânea são marcadas por sentimentos
que variam do espanto à irritação. Se em relação ao espanto, nós, os curadores, em
alguns casos, fazemos coro, é mais comum divergirmos no tocante à irritação. Acredito
que isso tem a ver com o fato de que compete a eles e não a nós o ingente esforço de
conservar as obras contemporâneas. Fosse isso e eu já logo me arrepiaria com a
apavorante perspectiva de enfrentar obras como as “pinturas” (sirvo-me das aspas com o
intuito de ampliar a aura alarmante) que Nuno Ramos realizou na passagem dos anos 80
para os 90, pródigas no uso de materiais instáveis, obsessivas em verter líquidos, em se
desfazer aos bocados, numa lenta, implacável e provavelmente infinita metamorfose.

Não é por acaso que cito Nuno Ramos e as obras dessa série apresentada na Bienal
Internacional de São Paulo: foi testemunhando o trabalho feito sobre uma delas pela
acurada conservadora do MAC/USP, Magali Sehn, que me dei conta da extensão do
problema. Os casos semelhantes se sucedem e com eles chega-me em ondas a
solidariedade aos colegas conservadores: as Trouxas de carne de Artur Barrio, obra das
mais representativas de seu tempo, os anos de chumbo da ditadura militar, e que hoje
integra a Coleção Gilberto Chateaubriand, depositada no Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro; as arquiteturas de nylon semelhantes às das meias femininas, marca
característica de Ernesto Neto; os sensibilíssimos planos de malha metálica, alvo da
poética de Iole de Freitas; o batom, a glicerina e o tule, materiais que andam
freqüentando a agenda de Carlos Fajardo; enfim, as incontáveis obras produzidas desde
os anos 60 e que fazem uso de matéria variada, cujo conhecimento demanda mais e
mais ao conservador que ele enverede pelos complexos campos da química, biologia,
física e por aí vai. E mesmo sem descambar pelo território do imponderável, deve-se
aludir aos materiais e técnicas, nem tão estranhos ao mundo da arte mas ainda assim
novos e que andam a exigir cuidados especiais, como as coleções de fotografias e
negativos, como os acervos de videoarte, vários deles a um passo de desaparecerem
vitimados por acondicionamentos impróprios.

Em relação ao tópico da conservação, essência desse seminário, tenho observado um


descompasso existente entre a atuação dos profissionais conservadores e o estado atual
da produção artística, seja no que concerne aos materiais e técnicas que vêm sendo
utilizados, como também, e fundamentalmente, nas referências conceituais com as quais
os artistas vêm operando.

Para não gerar mal-entendidos, apresso-me em esclarecer que o descompasso entre o


conhecimento acumulado e as novidades apresentadas pelo processo de produção em
curso – novidades de raiz dupla: materiais e técnicas, e referências conceituais – é
intrínseco e particularmente agudo no nosso métier, isto é, todos aqueles que, como nós,
conservadores, curadores, arte-educadores, etc., estão diretamente envolvidos com a
arte, empenhados em acompanhar os rumos da produção, vêem-se cotidianamente
surpreendidos pela novidade, por algo que nem sequer podiam imaginar, nem sequer
concebiam a existência. Nada a estranhar: esse fenômeno decorre da natureza
inquisitiva e experimental da arte contemporânea; um sintoma de seu compromisso em
desvendar novos territórios, novas possibilidades da infinita matéria do mundo e, por
extensão, da infinita capacidade da linguagem. A diferença, talvez, é que cabe ao
curador acompanhar o desenvolvimento do debate estético, ou seja, as tais referências
conceituais acima referidas. Sua deficiência, já se imagina, é que ele também leva isso a
cabo parcialmente, retribuindo na mesma moeda a distância dos conservadores,
mantendo-se por sua vez distante das questões concernentes a materiais e técnicas.

No que se refere aos novos materiais e técnicas, já se vão quarenta anos em que a
produção artística incorporou de detritos industriais a materiais orgânicos, incorporou o
efêmero para, a um só tempo, melhor enfrentar o mercado e reduzir o espaço que a
separava da vida; igualmente já faz parte da história a arte conceitual e suas derivações,
que deixou como principal legado a defesa da arte como uma modalidade do
pensamento e, no entanto, as instâncias de formação dos conservadores, nisto em
sintonia com as instituições correlatas responsáveis pelos demais profissionais que
atuam em museus de arte contemporânea, cuidam em ministrar preferencialmente,
quando não exclusivamente, técnicas e materiais pertencentes ao rol das técnicas e
materiais empregados até a arte moderna. Isso é natural e previsível: toda e qualquer
escola, seja ela de medicina, engenharia, arquitetura, odontologia e daí por diante, não
pode pretender estar totalmente atualizada sem despender somas enormes, o que é
inviável. Por outro lado é fato que daí decorrem problemas de toda ordem. A estratégia
mais adequada, embora raramente empregada, para contornar esse atraso crônico tem
sido, a par da sensibilização dos alunos para as novidades mais candentes, desenvolver
disciplinas com abordagem multi e interdisciplinar, treiná-los em estudos dirigidos,
capacitá-los para diagnosticar um problema novo o mais rápido possível e prepará-los
para o diálogo com profissionais das áreas envolvidas no objeto analisado. A defesa de
uma formação generalista contrasta com um mundo deixado cada vez aos cuidados de
visões particularizadas.

Para tratar do tópico relativo às novidades no campo das referências conceituais, julgo
oportuno apresentar esquematicamente as duas modalidades de surpresa com que nós,
novamente curadores e conservadores, além dos outros colegas, topamos na lida diária
de um museu de arte contemporânea: 1º) a surpresa diante de uma obra realizada por
técnicas e materiais familiares no âmbito da prática artística, embora organizado de uma
nova maneira; 2º) sendo esta mais grave e menos usual, a surpresa provocada por uma
obra que, além de fazer uso de técnicas e materiais desconhecidos, os organiza de
maneira original.

Classificação feita e antes de passar a uma exemplificação sumária de cada caso,


convém ressaltar que o que eu estou chamando de materiais e técnicas desconhecidos
refere-se a sua utilização no âmbito da produção artística. A título de exemplo, deve-se
lembrar que ainda que qualquer um conheça a parafina em sua versão doméstica seu
inesperado uso como veículo de expressão artística obrigou-nos a um conhecimento de
outra ordem, com flancos de análise por meio dos quais se passou a discutir desde o
comportamento desse material até as implicações de ordem simbólica que ele envolve.

Mas prossigamos com os exemplos relativos às duas modalidades de surpresa: no


primeiro caso e fazendo uso da história da arte no século XX apenas para reiterar que
fenômenos similares a esse eram e são freqüentes, bastaria uma das incensadas telas de
Mondrian, suas amplamente conhecidas telas abstratas geométricas, compostas de
linhas pretas verticais e horizontais, cores primárias, o branco e o preto. Não há nada ali
do ponto de vista de materiais e técnicas que não fosse sobejamente conhecido de todos
na altura em que o artista as realizou: óleo sobre tela. No entanto sua aceitação dividia-
se com veemente ambigüidade. Aquilo era ou não pintura? Resposta: sim e não. Sim,
porque, além de trazer todos os elementos pertencentes à pintura, ao ser fixado na
parede – ao menos esta convenção Mondrian não rompeu –, ocupava o lugar da pintura,
facilitava sua identificação como tal. Por outro lado é de supor o considerável
contingente daqueles que não encaravam como pintura algo tão abstrato, tão despojado,
tão sem molduras..., isto é, para quem não estava inteirado do ramal do
desenvolvimento da produção artística ao qual aquela pintura, com sua presença,
pertencia ou mesmo fundava, aquilo não podia ser considerado como uma pintura digna
de figurar entre as grandes obras de arte.

Para o segundo caso bastaria indicar os trabalhos que têm o computador como suporte,
nomeadamente as realizações híbridas, entre o cinema e o vídeo, que estabelecem
fascinantes questões acerca do binômio espaço-tempo, para não aludir aos problemas
relativos a sua catalogação e conservação. Mas, indo em outra direção, farei uso de um
exemplo radical, radicalidade que de resto o favorece ser tomado como modelo, e que
foi produzido no longínquo ano de 1961, quando a escatologia em arte ainda não estava
na moda como hoje: a série Merda de Artista, de autoria do italiano Piero Manzoni.
Série composta de latinhas dessas que até outro dia se vendiam em farmácia para colher
fezes, devidamente preenchidas com as do próprio artista, etiquetadas e numeradas, e
hoje dignamente expostas nas mostras dedicadas às obras referenciais da arte
contemporânea. Transbordando os problemas relativos à conservação – e o que dizer do
restauro! – desse material que, aos olhos da conceituação clássica de arte, é
evidentemente indigno de constar do respeitável universo da arte, enfrentá-lo com
alguma dose de boa vontade é uma atitude que só podemos confiar em alguém que
efetivamente o julgue legítimo como experimento artístico.

Do mesmo modo que um cultivado expert e amante de pinturas acadêmicas pode ainda
hoje reagir com desdém – como já se reagiu no passado – diante do já citado Mondrian
(ou do Matisse de Alegria de Viver, ou do Picasso de As Mulheres de Avignon, etc. etc.),
imaginando-o, a ele e sua obra, algo entre o gratuito e o inexplicável, numa palavra: má
pintura, também será desdenhoso o conservador de um museu de arte contemporânea
mal informado acerca do contexto ao qual pertence o referido Merda de Artista. Sem
estar atento a crítica à própria noção de obra que essa obra faz, seja pelo viés da
iconoclastia, seja na transcendência dessa noção, por conduzi-la, regressivamente, à
noção de obra primeira; sem se dar conta da estocada que essa obra pretende estar
dando na questão da autoria, a mordacidade com que ela aborda o problema do fetiche
da obra de arte em geral, problema que vem sendo tratado desde os primórdios deste
século, quando Marcel Duchamp lançou mão do readymade; sem estar informado sobre
esses conceitos e os que nele estão implicados, a obra de Manzoni não escapará da sua
literalidade de “obra”, e será convenientemente enterrada na vala comum da
incompreensão.

Seja qual for – entre as duas apresentadas – a categoria na qual se enquadra uma obra de
arte contemporânea qualquer, o que queria sublinhar é que, tão importante quanto o
conhecimento aprofundado sobre a natureza dos materiais e técnicas utilizados na arte
contemporânea, é imperioso que aquele que se relaciona com ela, o que inclui o
responsável pela sua conservação e restauro, esteja convenientemente informado da sua
natureza conceitual, da noção de arte que essa obra determinada, com a sua própria
existência, defende e alardeia.

Nosso (e volto a empregar a primeira pessoa do plural) alheamento dessa questão


desemboca naturalmente na falta de critério que tem como corolários a negligência pura
e simples na conservação e catalogação e exibição de trabalhos que por escaparem da
dieta habitual do que se aprendeu como sendo arte não merecem desvelos maiores, ou
numa atitude diametralmente oposta, qual seja, uma insegurança que se traduz no
esforço insano e equivocado de conservação, catalogação e exibição de tudo quanto
aparece. Curiosamente parece-me que é a ausência de critérios implícita nesta última
postura que tem levado a palma aos museus e galerias devotados à arte contemporânea:
expõe-se de tudo e com acerba prodigalidade até mesmo aquilo que não tem relevância
como expressão artística (de fato anda alto o número de curadorias que se dão ao
trabalho de trazer à luz coisas que estariam melhor se esquecidas nos ateliês de seus
autores). Homologamente, o profissional da conservação, a um só tempo cioso e
inseguro, freqüentemente dispensa energia em conservar obras que foram previstas para
existir apenas sob a forma de documento, sendo inútil, contraproducente e até contrário
ao que foi postulado pelo seu autor lutar pelo adiamento de sua morte física.

Minha experiência indica que essas orientações não são óbvias, ao contrário, acredito
que elas possam ser úteis porquanto aplicáveis à média das equipes que hoje no Brasil
integram museus de arte detentores de trabalhos contemporâneos em sua coleção, ou
que com eles convivem por intermédio de exposições temporárias. Nestes museus,
assim como em instituições correlatas, com destaque às escolas de museologia, as
escolas de arte e aquelas de onde saem os historiadores, críticos e curadores, como já se
referiu anteriormente, colhe-se o resultado natural da esquizofrenia proveniente de uma
visão disseminada em todas as esferas do ensino superior, segundo a qual o processo de
conhecimento opera pela especialização, isolando os saberes e, em contrapartida,
negligenciando os campos que lhes são conexos, capazes de oferecer ao profissional em
formação a posição relativa da sua ação. Em outras palavras, como não poderia deixar
de ser, também o museu passa pelo alarmante quadro que consiste numa ignorância
mútua dos saberes, de tal modo que os curadores, conservadores, arte-educadores, etc.,
pouco ou nada interagem uns com os outros. Assim é que, para começo de conversa,
seria imprescindível e urgente que fizéssemos uma roda para que juntos pensássemos
por que motivos nos afastamos uns dos outros quando nosso crescimento e o
crescimento de nossas instituições dependem de que nós nos aproximemos.

Agnaldo Farias
é Professor Doutor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Escola de
Engenharia de São Carlos/USP Curador

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