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FEMINISMO

CONTEMPORÂNEO:
COMO ATIVISTAS
DE SÃO PAULO
COMPREENDEM
UMA TERCEIRA
ONDA DO
MOVIMENTO
NO PAÍS

[ ARTIGO ]
Keli Rocha Silva Mota
[ RESUMO  ABSTRACT  RESUMEN ]

O artigo procura entender as particularidades da luta feminista atual em relação às


ondas anteriores e se isso permite afirmar a existência de um novo momento his-
tórico, social e cultural no país. Para tanto, foram realizadas entrevistas semiestru-
turadas com três militantes da Capital paulista acerca do tema. A partir da análi-
se realizada, é possível afirmar a existência de novos tipos de organizações, que são
marcadas por uma participação horizontal e lideradas por um perfil cada vez mais
jovem, que tem ao seu dispor os meios tecnológicos de comunicação.

Palavras-chave: Terceira Onda. Feminismo. Movimento. Coletivo.

The article tries to understand the particularities of the current feminist struggle in
relation to the previous movements and if this allows to confirm the existence of a
new historical, social and cultural moment in the country. For that, we conducted
semi-structured interviews with three militants from the city of São Paulo on the
subject. By the analysis carried out, it is possible to confirm that there are new
types of organizations, which are marked by a horizontal participation and led by
an increasingly younger profile, that has at their hands the technological means of
communication.

Keywords: New Tendency. Feminism. Movement. Collective (Public).

El artículo busca entender las particularidades de la lucha feminista actual en relación


a las olas anteriores y si eso permite afirmar la existencia de un nuevo momento histó-
rico, social y cultural en el país. Para ello, se realizaron entrevistas semiestructuradas
con tres militantes de la Capital paulista acerca del tema. A partir del análisis realiza-
do, es posible afirmar que existen nuevos tipos de organizaciones, que están marcadas
por una participación horizontal y lideradas por un perfil cada vez más joven, que
tiene a su disposición los medios de tecnológicos de comunicación.

Palabras clave: Tercera Onda. Femenino. Movimiento. Colectivo.


[ EXTRAPRENSA]  Feminismo contemporâneo  110

INTRODUÇÃO esta pesquisa optou por seguir o princí‑


pio do método dialético. Com a elaboração
de perguntas básicas, três ativistas de co‑
letivos feministas foram escolhidas para
Nos dias atuais, é cada vez mais comum entrevistas. Para exemplificar essa hetero‑
as militantes feministas se apropriarem geneidade, levou­‑se em consideração faixa
dos ataques que recebem das diversas or- etária, cor/raça, tempo de militância e prio‑
ganizações patriarcais institucionalizadas ridades de reivindicações dos grupos. As
– família, igreja, escola, mídia hegemôni- perguntas feitas às ativistas encontram­‑se
ca, ordem jurídica, vínculos trabalhistas – no apêndice “Questionário respondido pe‑
para defender a autonomia de seus corpos, las ativistas”, ao final deste artigo.
o fim das violências física, material e sim-
bólica, melhores garantias trabalhistas e A primeira entrevista foi realizada
maior participação no cenário político de com Maria Amélia de Almeida Teles, fun‑
decisões públicas, dentre outras lutas que dadora da União de Mulheres do Município
prezam a equidade das relações de gênero. de São Paulo, movimento autônomo que
completou 36 anos de existência em 2017.
A presença significativa de mulheres
muito jovens em mobilizações recentes, A segunda entrevista contou com a
que se iniciam em meio à interatividade contribuição de Fernanda Rangel Montei‑
virtual (redes sociais, blogs), se torna um ro Lobato, militante do Coletivo Feminista
marco nesta segunda década do século 21. Yabá. O grupo é formado por estudantes
Nesse sentido, é possível afirmar que essa da Faculdade de Direito da Pontifícia Uni‑
atual conjuntura reflete a uma terceira versidade Católica de São Paulo (PUC­‑SP) e
onda feminista no Brasil? atua há 7 anos de forma interseccional, sob
o viés marxista da luta de classes.
Podemos supor que esse contexto se
consolidou em virtude de uma frequente Uma das fundadoras do coletivo Nós,
articulação, liderada em sua maioria por Mulheres da Periferia, Regiany Silva de
mulheres jovens que questionam o status Freitas, fechou o conjunto de depoimentos.
quo de opressão. Se, por um lado, há um O grupo surgiu em 2013, com a proposta
engajamento mais contundente desse pú‑ inicial de fazer jornalismo sobre a periferia.
blico no ativismo, por outro é um desafio Nos últimos 2 anos, passou a se reconhecer
expandir a politização a outras mulheres, como parte do movimento feminista.
das mais variadas faixas etárias e condi‑
ções socioeconômicas. As diferenças entre suas respectivas
cronologias de fundação, seus enfoques e
Para investigar se há uma suposta espaço ocupados possibilitaram mostrar
terceira onda do movimento feminista, na prática o quão complexo são os mo‑
suas peculiaridades, entre avanços e limi‑ vimentos contemporâneos e, ao mesmo
tações, comparando­ ‑a com os momentos tempo, demonstrar que as lutas permane‑
anteriores de ápice de luta das mulheres, cem similares.
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Nesse sentido, ao identificar as ca‑ Dessa forma, o termo “onda” motiva


racterísticas, os avanços e as limitações do a periodização do movimento feminista,
ativismo contemporâneo, este artigo pre‑ tendo algumas demandas mais acentua‑
tende contribuir para ampliar a reflexão das em determinados períodos, como ex‑
teórica acadêmica e também ser mais uma plica Suely Costa:
discussão analítica sobre as condições des‑
sas militâncias. No cenário macro, corrobo‑ Diferenciados por conjunturas, os femi‑
ra para a compreensão das dinâmicas dos nismos são vistos, em geral, como irrup‑
movimentos sociais, que são fundamentais ções em que, de repente, não mais que
para as transformações históricas, sociais, de repente, mulheres diversas se jun‑
culturais e políticas brasileiras. tam, mostram­‑se “irmanadas” na agita‑
ção de “causas” ou motivações políticas
que se avolumam e que avançam como
onda. Esta, depois de atingir um ponto
alto, desce, invadindo os mais variados
ONDA E FEMINISMO territórios, em diversos tempos; em se‑
guida, tudo parece dissipar­‑se. Diria que
um maior rigor na produção do conhe‑
cimento dessas “causas” /motivações de‑
Quando se pensa em onda, vem à mente a pende, sim, de pesquisa de fontes, mas
imagem da camada superficial da água do sob uma leitura orientada por conceitos
mar. Como resultado da ação do vento, os que admitam esses movimentos conjun‑
movimentos causam ondulações. Quanto turais como partes de um vasto tecido
maior a velocidade e a duração do sopro at‑ social, em grande medida, submersas,
mosférico, maior será a força da onda. Mes‑ vindas de diferentes tempos históricos,
mo que o vento pare, ela continua a avançar trançadas entre si e que avançam em
até chegar à areia. As mais violentas sur‑ infinitas combinações de “ramificações”,
gem motivadas por tremores ocorridos nas continuadas ou não, sinalizando movi‑
profundezas do oceano ou têm origens ex‑ mentos e transformações de visões de
ternas oriundas da natureza, como o desa‑ mundo. (2009, p. 4)
bamento de um meteoro no mar.
As manifestações mais intensas e
Como um fenômeno natural, as rela‑ organizadas surgem em torno do propó‑
ções sociopolíticas tanto podem encontrar sito de apontar as diferenças de gênero1
resistências maiores em determinados pe‑
ríodos históricos como podem se atenuar.
Entretanto, esse enfraquecimento não [1] Saffioti (2004) diz que “gênero é uma construção
deve ser compreendido como o fim de uma social do masculino e do feminino”, também conhecida
mobilização. Tal como o mar, as ondas como “a expressão da categoria dos sexos”. Para Butler
(2003), a distinção que se faz hoje entre sexo (sob uma
continuam a se propagar, mesmo que de
análise biológica/natural) e gênero (apenas visto como
forma branda, até encontrarem as areias uma construção sociocultural) é questionável, pois o
da praia. corpo também é discursivo e reflexivo sócio­‑histórico
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e subverter as relações impostas. Ou seja, geralmente de classe média alta e de enor‑


“a reivindicação de direitos nasce do des‑ me influência política.
compasso entre a afirmação dos princípios
universais de igualdade e as realidades Na outra ponta, conforme pontua
da divisão desigual dos poderes entre ho‑ Céli Pinto (2010), havia o grupo de operá‑
mens e mulheres” (FOUGEYROLLAS­ rias de ideologia anarquista; reunidas nos
‑SCHWEBEL, 2009, p. 144). Contudo, como movimentos União das Costureiras, Cha‑
afirma Camilla Siqueira (2015, p. 332), “não peleiras e Classes Anexas, elas reivindica‑
se pode ignorar que, dentro de uma mesma vam por melhores condições de trabalho
onda, conviveram movimentos feministas nos chãos de fábrica, como salários equipa‑
com demandas bem diversificadas”. ráveis aos dos homens e jornadas menores
das tarefas.
Ao acompanhar as tendências mun‑
diais, principalmente nos Estados Unidos Em suma, nas palavras de Céli Pinto
e em países europeus, os movimentos (2003), as diferenças entre essas mulheres
feministas no Brasil se adaptam às suas podem ser sintetizadas entre ‘feminismo
necessidades histórico­ ‑socioculturais. A bem­‑comportado’ – liderado por mulheres
linha tênue entre teoria e militância femi‑ da elite econômica e intelectual da época –,
nista é outra particularidade brasileira, já que não tinha interesse em questionar as
que esses movimentos têm na pauta rei‑ estruturas patriarcais existentes, visto que
vindicações que englobam direitos civis, suas reivindicações de direito ao voto se
políticos, econômicos e sexuais, entre ou‑ sustentavam na aprovação do grupo políti‑
tros (PINTO, 2010). co que estava no poder, e o ‘feminismo mal‑
criado’ que “se expressava nas passeatas,
A trajetória do país foi assinalada nos enfrentamentos na Justiça e nas ativi‑
por duas ondas feministas. A primeira dades de mulheres livres­‑pensadoras que
onda do movimento brasileiro ocorreu a criavam jornais e escreviam livros e peças
partir das primeiras décadas do século 20, de teatro. Somavam­‑se a elas as anarquis‑
com a estruturação mais uniforme dos co‑ tas radicais que traziam para a discussão
letivos feministas que lutavam, acima de o mundo do trabalho, muito distante das
tudo, pelo direito ao sufrágio. “Começa a preocupações feministas de elite” (PINTO,
nascer aí o movimento denominado femi‑ 2003, p. 38).
nismo, que até hoje é atuante em busca da
emancipação das mulheres” (SIQUEIRA, A segunda onda, por sua vez, se in‑
215, p. 332). Bertha Lutz, bióloga e cien‑ tensificou no Brasil a partir dos anos 1970,
tista, é o ícone desse engajamento, ao lado com maior diversificação de mulheres li‑
de outras mulheres sufragistas, brancas, gadas à causa. Questões como sexualidade
e corpo, violência contra a mulher e rela‑
ções de trabalho ganharam destaque neste
período. Foi a partir dessa vivência que os
e culturalmente, constituindo­‑se de forma polarizada grupos passaram a se reunir em formato de
entre ser homem e ser mulher. rede, pois entendiam que as discussões que
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afligiam as mulheres eram questões coleti‑ Violência, sexualidade, direito ao traba‑


vas e não individuais. As definições entre lho, igualdade no casamento, direito à
ser homem e ser mulher passaram a ser terra, direito à saúde materno­‑infantil,
refletidas como construção sociocultural luta contra o racismo, orientações se‑
também nesse período. xuais. Esses grupos organizavam­ ‑se,
algumas vezes, muito próximos dos mo‑
Ou seja, as relações de poder dentro de vimentos populares de mulheres, que
um sistema patriarcal engrossam a questão estavam nos bairros pobres e favelas,
feminista, em um momento de pós­‑guerras lutando por educação, saneamento, habi‑
mundiais, como esclarece Céli Pinto (2010). tação e saúde, fortemente influenciados
“Aponta, e isto é que há de mais original pelas Comunidades Eclesiais de Base da
no movimento, que existe outra forma de Igreja Católica. (2010, p. 17)
dominação, além da clássica dominação de
classe –, a dominação do homem sobre a No século 21, algumas conquistas
mulher – e que pode ser representada pela que amparam as mulheres, notáveis no
outra, já que cada uma tem suas caracterís‑ cenário legislativo brasileiro, são reflexos
ticas próprias.” (PINTO, 2010, p. 16) das lutas da primeira e da segunda on‑
das. Direito ao sufrágio; direito à licença­
Enquanto nos Estados Unidos o con‑ ‑maternidade; criminalização do assédio
ceito de gênero ganha um significado so‑ sexual nas relações de trabalho; alteração
ciológico, as teóricas feministas passam no Código Civil, com a equiparação de di‑
a afirmar que o determinismo biológico reitos jurídicos e de direito à posse de ter‑
sobre as diferenças entre homens e mu‑ ra, no meio urbano e rural; Lei Maria da
lheres naturaliza as relações de poder e Penha; Lei do Feminicídio; e legalização do
opressão entre sexos (MATHIEU, 2009), aborto para casos de anencefalia.
no Brasil o ativismo surge vinculado à
luta contra o regime militar e pela reaber‑ No entanto, persistem opressões diá‑
tura democrática do país. A reivindicação rias arraigadas culturalmente, como a de‑
de liberdade sexual, como direito repro‑ sigualdade salarial, a baixa representação
dutivo e controle sobre o próprio corpo, nas esferas de poder político, a criminali‑
centraliza o debate, incluindo como rele‑ zação do aborto e a violência simbólica, do‑
vante politicamente ao tema da violência méstica e pública.
contra a mulher, até então tratada como
questão policial ou restrita no âmbito pri‑ Em suma, como ressaltam Luis Mi‑
vado (SIQUEIRA, 2015, p. 337). guel e Flávia Biroli (2014), o feminismo2 se
opõe às disparidades sociais que oprimem
Já nos anos 1980, ainda na segun‑ particularmente as mulheres e reivindica
da onda do feminismo, com o processo de
abertura política no país, ampliou­‑se o nú‑
mero de coletivos feministas e novas pau‑
[2] Nesta pesquisa opta­‑se por usar o termo feminismo
tas passam a ser incorporadas na luta pelos no singular, mesmo entendendo suas múltiplas aborda‑
direitos das mulheres, como diz Céli Pinto: gens teóricas e políticas.
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direitos para elas por meio dos mais diver‑ era um dos objetivos dessa formação co‑
sos enfrentamentos. letiva. Por isso, “costumavam fazer suas
reuniões em círculos; daí a preferência por
nomearem seus grupos com as palavras
‘coletivo’ e ‘círculo’” (PEDRO, 2013, p. 246).
Hoje, quase 50 anos depois das primeiras
COLETIVOS E reuniões, o termo ‘coletivo’ é a forma mais
VERTENTES TEÓRICAS usual de definir nomes de agrupamentos
de mulheres militantes.

Em se tratando de uma leitura sobre


Como já esclarecido, as reflexões feminis- as experiências teóricas do feminismo na
tas, chamadas de segunda onda, se acen- Europa e nos Estados Unidos, Dominique
tuaram no Brasil, sobretudo em meados Fougeyrollas­‑Schwebel (2009, p. 147) clas‑
dos anos 1970, com a formação de grupos sifica essas correntes, como marxistas ou
de consciência constituídos por mulheres socialistas, libertárias, radicais, lésbicas,
para discutir problemas oriundos do ma- materialistas ou essencialistas. Em sentido
chismo instituído. mais amplo, são três abordagens de femi‑
nismo liberal, socialista e radical.
Um dos primeiros grupos dessa gera‑
ção, segundo Joana Pedro (2013), surgiu em As feministas liberais prezam os va‑
1972 em São Paulo. Era formado por mu‑ lores individuais e igualitários por meio de
lheres acadêmicas e internacionalistas, na reformas sociais, jurídicas e políticas. Já as
faixa etária entre 30 e 38 anos, em virtude socialistas, em perspectiva antagônica so‑
da troca de experiências que tiveram com bre as reivindicações prioritárias conduzi‑
mulheres norte­‑americanas e de países da das pela corrente liberal,
Europa Ocidental.
afirmam que a verdadeira liberação das
Por negarem a existência de líderes ou de mulheres só poderá advir de um contexto
porta­‑vozes e rejeitarem hierarquias, as de transformação global. [Por fim], as femi‑
participantes preferiam que as reuniões nistas radicais, que sublinham que as lu‑
não tomassem um rumo predeterminado tas são conduzidas, antes de tudo contra o
ou fossem dirigidas. Todas deveriam ter sistema patriarcal [...] (FOUGEYROLLAS­
direito à palavra. Toda palavra seria qua‑ ‑SCHWEBEL, 2009, p. 147)
lificada. Ninguém seria a ‘dona da verda‑
de’. Ao trabalhar da forma coletiva e sem Heleieth Saffioti (2013, p. 389), em
dirigentes, acreditavam recusar qualquer uma análise sobre a realidade brasileira,
‘relação competitiva’ entre mulheres. afirma que o feminismo é “preocupado ex‑
(PEDRO, 2013, p. 245) clusiva ou precipuamente com os proble‑
mas imediatos da mulher”. As vertentes
De acordo com Joana Pedro (2013), utópica e conscientemente compromis‑
ampliar a solidariedade entre as mulheres sada com a ordem social competitiva são
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expressões, de acordo com a pesquisadora, comunista, cresceu na militância, sempre


dessa realidade. atuando no campo da esquerda. Por volta
dos 12 anos, começou a tomar consciência
A vertente utópica deve ser compre‑ das desigualdades entre mulheres e ho‑
endida como as transformações de posição mens, mas foi na década de 1960 que es‑
social assumidas pela mulher no decorrer sas reflexões amadureceram. Ex­‑militante
da História, sem alterar as estruturas capi‑ do Partido Comunista do Brasil (PCdoB),
talistas de dominação vigentes por não ter foi presa em dezembro de 1972, durante a
conhecimento pleno do sistema que rege as ditadura militar. Quando saiu da prisão, foi
relações entre oprimido e opressor. A abor‑ trabalhar no jornal alternativo Brasil Mu-
dagem conscientemente compromissada lher. Em 1981, fundou a União de Mulheres
com a ordem social, embora lute pela igual‑ do Município de São Paulo, no bairro do Bi‑
dade social plena entre mulheres e homens, xiga (Zona Central), movimento autônomo
tem consciência dos desafios impostos. que agrega até 150 pessoas, com a proposta
de politizar mulheres nos aspectos pesso‑
Para a pesquisadora, o feminismo so‑ al, social, político e econômico. Dentre os
cialista ou esquerdizante é a consciência projetos do grupo, destacou os cursos Pro‑
mais completa e crítica das relações atri‑ motoras Legais Populares e Maria, Marias,
buídas ao sistema capitalista. “No Brasil, sobre igualdade de gênero e direitos das
entretanto, este ‘feminismo esquerdizante’ mulheres, além de eventos diversos, como
se desenvolveu quase sempre clandestina‑ seminários e rodas de conversa. Entre os
mente (...)” (SAFFIOTI, 2013, p. 390). atos públicos, sobressaem o Yayartes: bloco
carnavalesco Casa de Dona Yayá (que re‑
memora Sebastiana de Mello Freire, figura
feminina muito à frente de seu tempo), o
Dia Internacional da Mulher e o Abraço
AS ATIVISTAS DE HOJE Solidário às Mulheres em Situação de Vio‑
lência (uma forma de pressionar o Poder
Judiciário para que sejam cumpridos os dis‑
positivos da Lei Maria da Penha). A União
Conforme apresentado anteriormente, com também atua na formação de mulheres na
o objetivo de compreender a organização Câmara Municipal, na Assembleia Legis‑
feminista na contemporaneidade, foram lativa de São Paulo e em sindicatos. Atu‑
entrevistadas três representantes de movi- almente, Amélia Teles é docente visitante
mentos feministas da cidade de São Paulo. da Faculdade de Educação da Universida‑
A seguir apresenta­‑se brevemente o perfil e de Estadual de Campinas (Unicamp), onde
a história de cada uma das entrevistadas. ministra a disciplina Direito à Infância e à
Educação: Educação Infantil em Creches,
Maria Amélia de Almeida Teles, 73 uma História das Mulheres.
anos, branca, é natural de Contagem, Mi‑
nas Gerais, e vive na capital paulista há 50 Fernanda Rangel Monteiro Loba‑
anos. Filha de pai operário, sindicalista e to, 19 anos, branca, é natural de Curitiba,
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Paraná, e vive há 9 anos em São Paulo. Cur‑ e exerce a profissão. É mestranda em Lin‑
sa o quarto semestre de Direito na PUC­‑SP. guística Aplicada e Estudos da Linguagem
Quando estava na 8ª série, por volta dos na PUC­‑SP. É uma das fundadoras do co‑
13 anos, tomou ligeiro contato com o fe‑ letivo Nós, Mulheres da Periferia, criado
minismo por meio de uma professora no em março de 2013. O coletivo surgiu por
colégio particular no qual estudava. Em meio do blog Mural: agência de jornalismo
2013, com 14 anos, já no 1º ano do ensino das periferias, como forma de dar visibili‑
médio, o debate se intensificou na escola dade e protagonismo às moradoras desses
com a promoção de aulas e pesquisas re‑ espaços, rompendo estereótipos e vazios
correntes, além de uma oficina extracur‑ de suas representações nos meios jorna‑
ricular destinada à questão de gênero e lísticos de maior expressão nacional. No
sexualidade. Em razão da pressão de pais entanto, o movimento não nasceu a partir
de estudantes que não queriam a discus‑ da perspectiva do feminismo. Aos poucos,
são, a instituição fechou a oficina. Em res‑ ao tomar contado com essa discussão e en‑
posta, as alunas organizaram um grupo tender que havia uma especificidade em
autônomo horizontal, o Pagu, com apoio ser mulher em dado espaço geográfico e so‑
da escola. Já no ensino superior, Fernan‑ cial, o debate foi intensificado na pauta do
da ingressou no Coletivo Feminista Yabá, grupo há cerca de 2 anos. Assim, o coletivo
que é formado por estudantes do curso de propõe ser um canal de informação em que
Direito da universidade. Fundado há sete são divulgadas as histórias e experiências
anos, o grupo é essencialmente de esquer‑ dessas mulheres, considerando as três di‑
da (sob a perspectiva da luta de classes) e mensões que as perpassam: gênero, raça/
interseccional (com a proposta de se fazer etnia e classe social. O grupo é formado por
todos recortes possíveis do ser mulher, le‑ seis mulheres jornalistas e uma designer
vando em conta idade, cor, posição social (Regiany), todas moradoras de bairros peri‑
e geográfica, entre outros, para não ho‑ féricos da capital paulista.
mogeneizar ou simplificar sua respectiva
experiência no debate). Além de formação
teórica mensal, o coletivo participa de atos
e da organização deles, como a criação de
um setorial de mulheres no Encontro Na‑ TERCEIRA ONDA?
cional dos Estudantes de Direito (ENED).
Hoje com dez ativistas, o grupo é rotativo,
já que novas acadêmicas entram e outras
se formam todos os anos. As entrevistadas foram unânimes na ava-
liação de que o movimento feminista está
Regiany Silva de Freitas, de 29 anos, passando por uma nova onda nesta segun-
é parda e se reconhece como de etnia ne‑ da década do século 21. Os novos meios de
gra. Nasceu na Zona Leste de São Pau‑ comunicação e informação proporcionados
lo, onde permanece até hoje. Moradora pelos avanços tecnológicos, que colocam à
da COHAB José Bonifácio, localizada no disposição as diversas redes sociais e facili‑
bairro de Itaquera, é formada em Design tam o processo de busca e pesquisa, podem
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ter contribuído de forma significativa para ca em 2015, com as ocupações nas escolas
uma maior inserção de mulheres no movi‑ públicas estaduais lideradas por estudantes
mento, como explica Amélia Teles (2017): secundaristas em protesto contra a rees‑
truturação da rede de ensino proposta pelo
No ano passado, fizemos uma reunião governo de São Paulo. Nas palavras de Fer‑
com 150 pessoas. Eram muitas jovens nanda Lobato (2017):
adolescentes. Tinha uma menina que
discutia comigo feminismo radical, socia‑ Não tivemos tempo ainda de entender o
lista e marxista. Eu perguntei: ‘onde você que foi junho de 2013. É muito recente e
viu essa discussão? Onde você aprendeu estamos muito inseridas nele, mas ten‑
isso?’ Ela: ‘eu aprendi na internet’. Quer do a achar que aquele ano não surgiu do
dizer, há muita facilidade para o debate nada. Dá para pensarmos que na segun‑
hoje. Enquanto nós ficávamos meses e da década dos anos 2000, algo da minha
meses procurando uma informação de experiência pessoal inclusive – estava no
como e se houve o movimento sufragis‑ 1º colegial –, vi pessoas que nunca havia
ta no Brasil. Quando descobríamos que debatido política na vida querendo se in‑
havia uma pesquisadora que estudava o serir na discussão. Que debate é esse e
movimento sufragista, pedíamos para ela como ele se deu são outras questões, mas
nos mandar uma síntese do estudo, ela a política começou a chegar nos adoles‑
datilografava em uma folhinha e manda‑ centes. Chegou de outra forma, não só
va para nós, pois não existia computador. como um negócio chato que o Jornal Na‑
Às vezes, demorávamos até um ano para cional apresenta, mas como algo de que
aprender alguma coisa. Hoje, as jovens eles podiam se apropriar de certa forma.
levam horas. (informação verbal) Junto com isso vem o feminismo. Por
isso acho que junho de 2013 foi impor‑
Regiany Silva (2017), concorda que a tante para que o debate feminista seja
velocidade tecnológico­‑comunicacional trou‑ forte agora entre as secundaristas. As
xe conhecimento de forma ágil, como presen‑ meninas que ocuparam as escolas têm
ciado nestes últimos anos, além de promover um debate combativo e autonomista
articulações e mobilizações significativas. bem interessante. As redes sociais con‑
tribuíram muito para isso, sem dúvida.
A facilidade da dimensão da informação, (informação verbal)
pelos meios digitais, por todas as ferra‑
mentas que temos hoje, facilita que essa A presença de militantes cada vez
comunicação chegue de uma maneira mais jovens é uma das características pre‑
mais efetiva e, às vezes, mais simples. (in‑ dominantes do atual momento. Amélia
formação verbal) Teles (2017), que participou assiduamente
dos debates da segunda onda, relembra que
Esse contexto ganha destaque com as muitas mulheres que conduziam os coleti‑
jornadas de junho de 20133 e se intensifi‑ vos da década de 1970 tinham idades mais

[3] Trata­‑se de um conjunto de manifestações popu‑ aumento das tarifas de transporte público, mas outras
lares em todo o país, que a princípio contestavam o pautas logo foram inseridas aos atos.
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avançadas e eram praticamente da mesma


geração. Muitas, inclusive, já experimenta‑ Sinto que agora deu uma ampliada no ho‑
vam a maternidade. rizonte, as discussões estão chegando na
ponta, com questões mais específicas de
Acredito que é uma grande novidade, di‑ grupos minoritários. Isso muda bastan‑
gamos assim, o interesse das meninas ado‑ te a cara do feminismo, porque se antes
lescentes pelo feminismo. É o marco de um olhávamos esse feminismo tão distante,
novo momento. (informação verbal) como um bagulho teórico, que nem sei o
que é, de mulheres que são ricas e falam
Fernanda Lobato (2017) concorda: coisas que nem sei o que são, e que têm
demandas que não fazem parte da minha
Das leituras teóricas que faço, a militân‑ vida, hoje o feminismo parece mais real e
cia dos anos 2000 era composta por mu‑ está mais próximo da vida real das pes‑
lheres mais velhas, mas não tenho uma soas que não tinham acesso a essa teoria.
compreensão real do que era esse ativis‑ (informação verbal)
mo, porque eu era uma criança. Hoje, te‑
nho a compreensão porque vivo esta re‑ Regiany Silva (2017) acrescenta que
alidade, e a minha impressão é que hoje muitas mulheres da periferia não encon‑
em dia a militância é muito jovem. Não tram no termo feminismo significância pal‑
faz muito tempo que você vai ter menina pável, mas
de 12, 13 e 14 anos sabendo o que é femi‑
nismo. Minha irmã tem 9 anos e se de‑ o que importa muito mais é o que está
clara feminista e queria criar um coletivo atrás do nome, o movimento e qual a
feminista na escola dela. Ela leu a biogra‑ importância político­‑social, não uma no‑
fia da Malala Yousafzai4. Na minha opi‑ menclatura que uma fulana ou sicrana
nião, tal atitude era impensável 10 anos usa. Mas, se existe um movimento em
atrás. (informação verbal) que a gente pode se unir e fortalecer
uma luta, é muito importante. O femi‑
Para Regiany Silva (2017), o feminis‑ nismo mudou o sentido porque agora ele
mo contemporâneo se amplia a partir do tem uma cara mais preta, uma cara mais
momento que insere questões específicas periférica, uma cara mais pobre. (infor‑
de outros grupos outrora excluídos de sua mação verbal)
discussão, tornando­‑se mais concreto e
próximo dessas realidades. Efetivamente, têm surgido diver‑
sos coletivos, principalmente em escolas e
Historicamente, foi um espaço constru‑ universidades, para discutir as relações de
ído por mulheres brancas, e ele chega gênero. Fernanda Lobato (2017) relata que
para a gente primeiro por essa via e com quando integrou o coletivo Pagu, durante o
demandas muito elitizadas da sociedade. ensino médio, não conhecia outras experi‑
ências semelhantes.

[4] Ativista paquistanesa que defende os direitos hu‑ Entretanto, nas ocupações nas esco‑
manos das mulheres no nordeste do Paquistão. las estaduais de São Paulo, as secundaristas
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tiveram papel importante. A partir daí, sur‑ quando se define uma possível terceira
gem diversos coletivos em escolas de nível onda do feminismo no país. Soma­‑se a isso
de médio e também em faculdades. uma presença mais marcante de mulheres
que antes estavam restritas a espaços his‑
Temos um feminismo que hoje chega em toricamente excluídos da discussão, como
outros espaços. Hoje em dia, várias facul‑ nas regiões periféricas, pobres e negras da
dades têm coletivos feministas, tornando capital paulista.
o debate cada vez mais comum. Nesse
sentido está diferente. (informação verbal)

Não podemos esquecer que essas me‑


ninas são engajadas politicamente, ressalta DESAFIOS
Amélia Teles (2017). Para ela, o movimento
atual é muito promissor, visto que as críti‑
cas aparecem de forma autônoma e ama‑
durecida, vinculada a uma criatividade que Em linhas gerais, pode­‑se dizer que pri-
contribui para a sua repercussão. meira onda do movimento feminista é
marcada pelo movimento sufragista. A
Quem levantou o Fora Cunha em São segunda onda, mais libertária, traz para o
Paulo? Foram elas. Como se organizaram centro da discussão o direito ao controle do
ninguém sabe, mas foi tudo pela inter‑ próprio corpo, sob o viés de tornar públicas
net. Quem são as líderes do Fora Cunha? questões antes tidas como privadas.
Ninguém faz questão de botar as caras.
Foram para a Avenida Paulista, apanha‑ Embora no atual momento histórico o
ram da polícia, mas fizeram. Perceberam auge esteja na diferença do perfil participa‑
que tinha de ter o Fora Cunha, porque ele tivo, que tem ao seu dispor as ferramentas
perseguia a então presidenta Dilma, e a tecnológicas comunicacionais, tornando a
esquerda, que é machista também, disse informação mais ampla e ágil, as pautas rei‑
que não tinha problema persegui­‑la. De‑ vindicatórias em sua essência ainda perma‑
pois perceberam que a perseguição era necem, como pontua Amélia Teles (2017).
contra toda a esquerda mesmo. O Fora
Cunha foi um dos movimentos recentes Na verdade, não acabou nenhuma onda.
mais interessantes, mérito das feministas Conseguimos o voto, mas não consegui‑
jovens. (informação verbal). mos ser votadas, as mulheres estão sub­
‑representadas na política. Discutimos o
Uma crescente geração de jovens na corpo nos anos 1970, mas não quer dizer
militância, representada principalmente que o corpo é nosso. O [Eduardo] Cunha,
por mobilizações coletivas estudantis (se‑ o [Silas] Malafaia, o [Marcos] Feliciano, o
cundaristas e acadêmicas), que tem ao seu [Michel] Temer, a [revista] Veja e a gran‑
dispor a facilidade comunicacional pro‑ de mídia em geral continuam falando da
porcionada pelas redes interativas tecno‑ bela, recatada e do lar, de um total contro‑
lógicas, deve ser levada em consideração le sobre o nosso corpo. (informação verbal)
[ EXTRAPRENSA]  Feminismo contemporâneo  120

Ainda que o feminismo seja veemen‑ do por conta dos sujeitos novos que estão
te, os movimentos contrários a ele tendem entrando no debate. Tem um lance de
a crescer na mesma proporção, segundo identificação com a causa, não sei o quan‑
Regiany Silva (2017). to isso é ruim ou é bom, só sei que não pre‑
ciso conhecer Simone de Beauvoir para
Toda essa onda conservadora que esta‑ fazer parte do movimento. Faz parte de
mos vivendo é cíclica, e o feminismo re‑ um processo e que, em algum momento,
age a isso. Por outro lado, a militância é se eu conhecer e estudar, só tenho a enri‑
a causa desse conservadorismo. Quando quecer o meu repertório, mas isso não me
as mulheres começam a ocupar espaços desabilita. Quando você desmitifica o mo‑
públicos e falar mais, aparecem os ‘bolso‑ vimento, você rompe com uma estrutura
naros’ da vida. (informação verbal) muito limitante. (informação verbal)

Fernanda Lobato (2017) assinala a au‑ E a tecnologia comunicacional facilita


sência de produções recentes sobre teorias a mobilização rápida desses novos atores.
de gênero. Por isso, para ela, as transforma‑ No entanto, para Amélia Teles (2017), a ar‑
ções são mais sentidas no sentido prático ticulação sólida do feminismo se dá através
da luta. do contato presencial.

Pode ser que eu não conheça, mas ainda Nossa articulação é a base da confiança,
não li uma teoria feminista nova na atua‑ da solidariedade, que só se dá através da
lidade. As que tive acesso vão até os anos convivência, do olho no olho. Posso con‑
1990 e 2000. Não li algo que fosse com‑ versar com você pela internet, se for um
pletamente novo nesta segunda década assunto rápido, mas tenho que te conhe‑
do século. Li análises empíricas sobre fa‑ cer, e você a mim. Essa relação de con‑
tos que retomam questões já ditas, mas fiança e afeto, essa retomada do conhe‑
teorias propriamente ditas, não conheço cimento da história, de uma forma mais
alguma nova que surgiu recentemente. afetiva, mais segura, no sentido de ser,
Por isso, acho que a mudança é mais no está fora do alcance virtual. Posso ler um
sentido da militância prática e do perfil monte de informação na internet, mas as
das mulheres que têm militado. (infor‑ discussões têm de ser na reunião, uma
mação verbal) olhando para a outra, senão esse conhe‑
cimento fica abstrato. Isso está faltando
Por sua vez, Regiany Silva (2017) no movimento hoje, mas não é culpa das
acredita que essa forma mais experimental meninas, elas estão vindo para um mun‑
de se fazer feminismo generaliza a sua cau‑ do cheio de ódio, de cada um para si, de
sa, agregando novos sujeitos à sua luta. não solidariedade, ou seja, estamos sem‑
pre contra essa corrente neoliberal capi‑
Era um movimento muito distante e que talista que prevalece. (informação verbal)
agora está mais próximo, mas, às vezes,
tem um discurso vazio, elitista e concei­ Atrelado a isso, existem também
tual demais, embora tenha se transforma‑ as pautas individuais, uma preocupação
[ EXTRAPRENSA]  Feminismo contemporâneo  121

para as feministas, principalmente as de que esse espaço também era nosso. Não
vertentes mais radicais. Apesar de o mo‑ sei como foi a primeira ou a segunda
vimento atual ser definido por uma cres‑ onda, mas acho que na periferia, para as
cente militância jovem, que está inserida mulheres pobres, esses ‘rolês’ nunca che‑
nas redes sociais e nos ambientes de edu‑ garam lá, mas hoje está chegando, com
cação, o público não vê a luta feminista um discurso mais simples e trazidos por
exatamente como algo coletivo. Para Fer‑ mulheres da periferia. Isso é muito im‑
nanda Lobato (2017): portante dizer: quem atravessou a ponte
para lá foram as mulheres pobres, negras
Esse é um dos problemas atuais, porque e periféricas, porque da ponte para cá, da
ficamos com pautas individuais, rodando quebrada, esse discurso nunca chegou.
em círculos, sem atacar o real inimigo. (informação verbal)
(informação verbal)
Como se percebe no depoimento crí‑
A participação de outros grupos iden‑ tico da militante, embora o debate sobre as
titários de mulheres, deixados à margem relações de gênero faça parte da realidade
das discussões do movimento sufragista, daquele conjunto de mulheres, ao mesmo
como já mencionado, só se tornou maior tempo a temática é distante desse grupo,
com o surgimento da segunda onda. Nota­ em razão de as feministas engajadas se
‑se que, a partir desse momento, mais par‑ consolidarem em determinados espaços,
ticularmente nos anos 1980, o feminismo desprezando outros.
passa a colocar as questões das mulheres
negras, indígenas, lésbicas, prostitutas, A crise entre gerações é outro ponto
transexuais, entre outras, como parte rele‑ peculiar a ser considerado. Nas épocas an‑
vante da discussão. teriores, as mulheres tinham praticamente
a mesma idade, como recorda Amélia Teles.
Para Regiany Silva (2017), a falta de A recente e expressiva inclusão de jovens no
apropriação da luta feminista por mulheres debate possibilitou pensar em um ativismo
pobres, negras e periféricas é uma realida‑ caracterizado por diferentes faixas etárias
de que aos poucos está sendo superada. Isso e experiências. No entanto, isso tem gerado
se dá a partir do momento em que esses su‑ uma crise intergeracional, não observada em
jeitos passam a ter acesso ao discurso femi‑ momentos anteriores, segundo Amélia Teles
nista, quando vão ao encontro dele. (2017), coordenadora da União de Mulheres:

Hoje posso dizer que sou feminista, mas Dos anos 1970 a 2017, tem feminismo de
não porque o feminismo bateu na minha várias gerações, e são as mais jovens que
porta, ele não nos acessou, nós que atra‑ possuem ações políticas bastante avan‑
vessamos a ponte e passamos a tomar çadas. Eu vi muitas velhas olhando as
contato com um universo que não era meninas com desdém, dizendo que não
nosso e descobrimos que os discursos fa‑ são politizadas, e não é isso, elas são. Po‑
ziam muito sentido com o trabalho que dem não ter a força política que nós que‑
desenvolvíamos. Ou seja, entendemos ríamos que elas tivessem, de articulação
[ EXTRAPRENSA]  Feminismo contemporâneo  122

nacional, mas não é problema delas, é de sustenta no patriarcalismo, como contrapar‑


toda uma sociedade que não tem essa ca‑ tida o capitalismo se apropria dos debates da
pacidade [de diálogo], e elas estão inseri‑ militância, explica Fernanda Lobato (2017).
das nesta realidade. Elas não vieram de
Marte; estão aqui, neste planeta Terra. Você vê o discurso feminista na Rede
(informação verbal) Globo, quando o debate é abordado no
programa Amor e Sexo, mas no mesmo
Por fim, o quão resistente é essa ter‑ canal você vê relacionamentos abusivos
ceira onda é também um questionamento em suas novelas tratados como normais.
enfrentado pelo feminismo, com suas si‑ As revistas de moda colocam uma mu‑
militudes e seus antagonismos. Em uma lher branca em suas capas como padrão
análise de luta de classes, Fernanda Lobato de beleza e uma manchete que diz: que‑
(2017) ressalta que a militância está mais bre os padrões de beleza, ou seja, há essas
focada em atacar questões ideológicas, cul‑ contradições. (informação verbal)
turais, de cunho superestrutural, do que
em enfrentar a camada estrutural em que No entanto, Regiany Silva (2017) afirma
se estabelece o patriarcado. que o fato de os assuntos feministas repercu‑
tirem nos meios de comunicação de maior
Pensando no debate marxista, enxer‑ expressão, é um avanço do movimento.
gamos o patriarcado como algo estru‑
tural. E o capitalismo se sustenta no pa‑ Enquanto coletivo de jornalistas, para a
triarcado, como Engels e Marx falam: a gente é muito importante que o discurso
opressão do homem pelo homem existe midiático da grande mídia seja aos poucos
a partir da opressão do homem pela mu‑ afetado e transformado, que ele se coce.
lher. No momento em que o capitalismo Vemos, por exemplo, a mudança dos
enxerga a mulher como instrumento de [trajes] da ‘globeleza’. Isso é resultado de
produção, você tem uma relação estru‑ uma militância não só feminista, como do
tural aí estabelecida. O núcleo familiar movimento negro. Ou então o programa
e a herança foram questões posteriores. Amor e Sexo, que teve um dia dedicado só
Hoje, o machismo, o padrão de beleza, a para falar do feminismo, com a cantora
gordofobia, etc., todas essas discussões Elza Soares e Monique Padra, prostituta
são ideológicas e culturais, fazem parte e feminista, falando da militância. (infor‑
da superestrutura, são consequências da mação verbal)
estrutura. Mas o patriarcado em si, como
se estabelece, é estrutural e muito difícil Analisando por esse ângulo, Re‑
de ser combatido, pois no fim se trata de giany Silva (2017) defende que, dessa for‑
relações de produção. Essa é a análise que ma, o debate chega a um público maior,
a gente faz. (informação verbal) em casas de pessoas que não tinham co‑
nhecimento antes, e serve inclusive de
Ao mesmo tempo em que o movimen‑ alerta social e até mesmo de medida pu‑
to de mulheres é revolucionário e ameaçador nitiva para aqueles que violem os direitos
para o sistema capitalista, uma vez que este se humanos das mulheres.
[ EXTRAPRENSA]  Feminismo contemporâneo  123

Existe uma preocupação maior com transformações quando ganham dimen‑


certos discursos, porque o movimento são nos meios comunicacionais de maior
é agressivo. Se deu mancada, como o repercussão popular.
cantor Biel, que assediou uma jorna‑
lista do Portal iG, a rede é poderosa a
ponto de acabar com uma carreira. (in‑
formação verbal)
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Embora tenha ciência de que há mui‑ UM NOVO MOMENTO,
tas demandas a serem conquistadas, para PAUTAS ANTIGAS
Regiany Silva (2017), essas pequenas vitó‑
rias devem ser celebradas.

Fernanda Lobato (2017) contrapõe di‑ Percebe­‑se que o feminismo tem ganha-
zendo que não é atribuição da Rede Globo, do força nos últimos 10 anos do século 21,
por exemplo, fazer o feminismo chegar às impulsionado por uma população mais jo-
casas das pessoas que não têm contato com vem e questionadora dos paradigmas. Essa
a causa, mas sim da militância, e esse é o movimentação acontece em paralelo com a
seu papel. nova forma tecnológica de se comunicar em
rede, que também proporciona facilidade
Porque não adianta dizer que o discurso para se buscar informações.
está chegando. Mas que discurso é esse?
É realmente combatível e de certa forma Dentre os desafios que tem por dian‑
essas mulheres vão se identificar com o te, as reivindicações da primeira e segunda
feminismo? Talvez a dona de casa não ondas persistem neste movimento atual.
se identifique com o que a Globo mostra. Embora estejam delineadas com discussões
Por isso, é tão importante que tenhamos que atendem anseios imediatos, as necessi‑
em mente que precisamos falar. (infor‑ dades impostas hoje são fundamentalmen‑
mação verbal) te históricas. Tem­‑se a convicção de que
isso esteja relacionado com a estrutura pa‑
Em suma, de acordo com essas nar‑ triarcal e capitalista, que organiza e natura‑
rativas, os principais desafios atuais do liza as relações entre opressor e oprimido.
feminismo são pensar um movimento
que proporcione maior aproximação física Mesmo no feminismo brasileiro moti‑
entre suas ativistas para fortalecimento vado por bandeiras de cunho mais radical,
de seus laços solidários; que extrapole as as pautas liberais, com foco em mudanças
barreiras geográficas, sociais e de cor/raça comportamentais e individuais, muitas
para politizar e unir sujeitos à mesma cau‑ vezes acabam se sobrepondo. Isso ocorre,
sa; que saiba ouvir as diversas vivências como já afirmado, em razão do próprio mo‑
etárias do ativismo; que pense o feminis‑ delo de convivência das relações norteadas
mo como uma questão coletiva; e que com‑ por esse sistema, que dita normas cada vez
preenda os avanços e as limitações dessas mais neoliberais e particularizadas.
[ EXTRAPRENSA]  Feminismo contemporâneo  124

E como fazer o feminismo refletir dada, como sublinhada nos dois movimentos
essa vivência? Extrapolar as redes sociais anteriores. Suas prioridades são complexas
dos meios digitais e os seus redutos de pro‑ e se manifestam de acordo com os lugares
dução de conhecimento, seja de ensino se‑ que ocupam. A marcação como “onda”, in‑
cundário ou acadêmico e politizar mulheres clusive, cabe como um parâmetro didático
suprimidas deste cenário? E como manter a para melhor compreensão de um período
força de um coletivo físico, presencial? histórico, social e político. É inegável, contu‑
do, a predominância de uma peculiaridade
É possível que não se tenham todas que se alastra como um sopro veloz e durá‑
as respostas hoje. Mas as variadas provo‑ vel do vento na superfície do mar. 
cações sentidas nesta conjuntura não de‑
vem ser entendidas como obstáculos, e sim
como a consolidação de um processo. E, aci‑
ma de tudo, não se pode negar a força desta
onda, que se propaga de uma forma ou de
outra, tendo como referência a politização
das mulheres jovens, que levantam de for‑
ma assídua o debate.

Mesmo as mulheres negras, pobres


e periféricas, apesar de a discussão não
chegar plenamente ao seu espaço, tomam
contato com as teorias e práticas feminis‑
tas e as moldam à sua precisão. Às vezes,
sem entender os termos conceituais, essas [ KELI ROCHA SILVA MOTA ]
mulheres são feministas em sua vivência e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em
experiência militante. Mudança Social e Participação Política da Escola
de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade
Em paralelo, a ideia de promover te‑ de São Paulo; graduada lato sensu em Língua
máticas organizadas em coletivos, uma Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de
maneira de se fazer o debate o mais hori‑ São Paulo (2013); pós-graduada lato sensu em Mídia,
zontal e participativo possível, permanece Informação e Cultura pelo Centro de Estudos Latino-
nos alicerces de suas organizações políticas, Americanos sobre Cultura e Comunicação, núcleo
reflexo do feminismo da década de 1970. interdepartamental da Escola de Comunicações e
Naquela segunda onda, as mulheres se Artes da Universidade de São Paulo (2011); e graduada
reuniam em grupos de reflexão, como hoje, em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo
para discutir os papéis atribuídos a elas e as pela Universidade de Santo Amaro (2007). Tem
dificuldades que enfrentavam por conta do experiência na área de Comunicação, atuando nos
domínio masculino. seguintes temas: cultura, análise do discurso e relações
de gênero. Atualmente é jornalista da Associação
Por fim, esta terceira onda não deve ser Paulista de Medicina (APM).
entendida como uma ocasião homogênea e E-mail: ks.rocha@gmail.com
[ EXTRAPRENSA]  Feminismo contemporâneo  125

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[ EXTRAPRENSA]  Feminismo contemporâneo  127

APÊNDICE

Questionário Respondido pelas Ativistas

1) Conte um pouco sobre a sua trajetória no feminismo.

2) Você acha que o movimento feminista de hoje é diferente do que já foi antes? Por quê?

3) Em linhas gerais, como você caracterizaria o movimento feminista na atualidade?

4) Você conhece o conceito de “ondas do feminismo”? Se sim, explique brevemente o que


entende sobre isso. Se não, como compreende esse conceito?

5) Em sua opinião, é possível afirmar que há uma terceira onda do movimento? Por quê?

6) Para você, quais são os principais avanços da luta feminista?

7) E quais são as maiores limitações?

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