Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ANTHONY SEEGER
TRADUÇÃO: GIOVANNI CIRINO
REVISÃO TÉCNICA: ANDRÉ-KEES DE MORAES SCHOUTEN E JOSÉ GLEBSON VIEIRA
acadêmica com perspectivas teóricas sobre so- Uma definição geral da música deve incluir
ciedades humanas. A etnografia da música não tanto sons quanto seres humanos. Música é
deve corresponder a uma antropologia da músi- um sistema de comunicação que envolve sons
ca, já que a etnografia não é definida por linhas estruturados produzidos por membros de uma
disciplinares ou perspectivas teóricas, mas por comunidade que se comunicam com outros
meio de uma abordagem descritiva da música, membros. John Blacking chamou a música
que vai além do registro escrito de sons, apon- de “sons humanamente organizados” (1973).2
tando para o registro escrito de como os sons são Alan Merriam, que deu considerável atenção às
concebidos, criados, apreciados e como influen- definições (1964; 1977), argumentou que mú-
ciam outros processos musicais e sociais, indiví- sica envolve conceitualização humana, compor-
duos e grupos. A etnografia da música é a escrita tamento, sons e a avaliação dos sons. Música
sobre as maneiras que as pessoas fazem música. é uma forma de comunicação, junto com a
Ela deve estar ligada à transcrição analítica dos linguagem, a dança e outros meios. Porém a
eventos, mais do que simplesmente à transcri- música não opera como esses meios. Diferentes
ção dos sons. Geralmente inclui tanto descrições comunidades terão diferentes idéias de como
detalhadas quanto declarações gerais sobre a distinguir entre diversas formas de sons huma-
música, baseada em uma experiência pessoal ou namente organizados – fala de canção, música
em um trabalho de campo. As etnografias são, de ruído e assim por diante. Como muitos de
às vezes, somente descritivas e não interpretam nós sabemos por nossas próprias experiências
nem comparam, porém nem todas são assim. pessoais, a música de uma pessoa pode ser o
Mas o que é música? É som? Rádios e apa- ruído de outra.
relhos de som aparentemente emitem sons sem A definição de música como um sistema de
a ação humana, mas isso é uma ilusão auditiva comunicação enfatiza suas origens e destina-
do meio e não uma característica da música. Se ções humanas e sugere que a etnografia (escrita
nós, no século XX, confundimos música com sobre música) não somente é possível, mas é
som, em parte é porque nossos meios de grava- uma abordagem privilegiada no estudo da mú-
ção captam ou reproduzem apenas os sons da sica. A ilusão de que a música pode existir inde-
música. Discos, fitas e rádios não fazem músi- pendente de seus performers e de sua audiência
ca, as pessoas é que a fazem, e outras pessoas a tem conduzido à confusão, longos debates e a
escutam. É um subproduto da natureza? Platão uma tendência a tratar etnomusicologia como
e as teologias européias da Baixa Idade Média um campo dividido, no qual escritores anali-
escreveram que a perfeição da criação produziu sam sons ou analisam características culturais
a “música das esferas” (Rowell, 1983, p. 43-45), e sociais do fazer musical (Merriam, 1964, p.
porém isso foi apenas uma ilusão filosófica – as vii). Mesmo que Alan Merriam e Bruno Nettl
sondas espaciais não a registraram. A música (1983, p. 5) sustentem que ambos os grupos
é uma linguagem que abrange todas as espé- de escritores concordam que uma fusão defi-
cies? A música tem sido chamada de “lingua- nitiva entre o antropológico e o musicológico
gem universal”, mas isso é provavelmente uma seria ideal, as várias idéias sobre o que é música
ilusão romântica – a música está tão enraizada têm gerado resultados muito diversos. Estudos
em culturas de sociedades específicas quanto a dos produtos musicais – sons – freqüentemen-
comida, a roupa e até a linguagem. Confusos te não têm investigado seriamente a interação
pelo que a música provavelmente não é, então entre os sons com os performers e sua audiência.
o que ela pode ser? Estudos sobre performers, audiências e ações
têm, algumas vezes, ignorado completamente Essas amplas questões são suficientemente
os sons produzidos e apreciados. gerais para tratar da maioria dos tipos de mú-
Para qualquer um alheio ao campo, os sica na maioria dos lugares. Elas também são
argumentos sobre o que realmente é a etno- fundamentais: são questões que tratam do que
musicologia devem parecer obscuros e pouco acontece quando as pessoas fazem música. Nem
sugestivos. Os protagonistas, às vezes, parecem toda sociedade ou todo pesquisador estará inte-
reivindicar e defender um território conceitual ressado em todas elas, e algumas serão expressas
mais que avançar na compreensão. Os argu- de maneira mais específica para a investigação.
mentos são geralmente construídos em termos Steven Feld, por exemplo, propôs uma lista
de tradições distantes e exemplos inauditos mais longa e específica de questões agrupadas
(apenas transcritos), e as pessoas parecem estar em seis rubricas, muitas das quais podem ser
falando sobre o passado. incluídas na lista acima (1984, p. 386-388).
Para corrigir esse aparente divisionismo e Quais questões são focalizadas e como tenta-
os argumentos misteriosos, outra abordagem à mos respondê-las depende da combinação de
música pode ser útil – uma que enfoque mais interesses pessoais e profissionais ou da orien-
questões comuns e experiências compartilha- tação cultural.
das com a música, do que respostas e estudos Dentro da tradição acadêmica americana,
específicos. aqueles interessados em fisiologia poderão estu-
dar as mudanças fisiológicas nos performers e na
audiência; aqueles interessados no desenvolvi-
Destinações e “mapas viários” mento das crianças poderão estudar a socializa-
ção delas através da música; aqueles interessados
Em vez de perseguir a definição do que a em economia poderão estudar a economia da
etnomusicologia deveria ser, vamos observar as performance; aqueles interessados em religião
questões gerais sobre música que foram com- poderão estudar a relação do evento com idéias
partilhadas por europeus e outros povos ao re- sobre o cosmos e a experiência do transcenden-
dor do mundo. te. Finalmente, aqueles interessados nos sons
O que acontece quando as pessoas fazem mú- poderão estudá-los e fazer algumas perguntas
sica? Quais são os princípios que organizam as a respeito – de sua estrutura e seu timbre, sua
combinações de sons e seu arranjo no tempo? relação com performances anteriores, o projeto
Por que um indivíduo particular ou gru- do instrumento e muitas outras. Membros de
po social executa ou ouve os sons no lugar, no grupos étnicos podem ver o caráter e a defesa
tempo e no contexto que eles(as) o fazem? da identidade de seu grupo em uma forma mu-
Qual a relação da música com outros pro- sical, enquanto “construtores de nações”3 po-
cessos nas sociedades ou grupos? dem ver emergindo um caráter pan-étnico nas
Quais efeitos as performances musicais tem mesmas formas musicais. Em vez de considerar
sobre os performers, a audiência e outros grupos esses grupos como facções inimigas, devemos
envolvidos? vê-los como diferentes perspectivas da mesma
De onde vem a critividade musical? Qual o coisa. Todos eles estão parcialmente corretos.
papel do indivíduo na tradição, e o da tradição Cada abordagem pode contribuir para nossa
na formação do indivíduo? compreensão dos eventos musicais, e cada uma
Qual a relação da música com outras for- pode contribuir com outra disciplina (psico-
mas de arte? logia, sociologia, economia, antropologia, fol-
clore, musicologia, ciência política) através do tanto tempo que se esqueça de voltar e seguir outro
estudo da atividade musical. caminho, porque é o traçado dos dois juntos que é
De todos os escritores, Charles Seeger, ar- essencial para a leitura da tabela (1977, p. 125,
gumenta mais claramente pela multiplicidade grifos meus).
de abordagens da música e da musicologia.
Merriam dividiu o campo em duas abordagens; Seeger compara sua sinopse a um mapa
Seeger demonstrou que podem ser muito mais. viário, uma representação estática de vários ca-
Em uma série de artigos, ele descreve diferentes minhos possíveis ou linhas de investigação. A
porções do que ele chama “sinopse dos recur- sinopse é mais um mapa do campo enquanto
sos do processo musicológico”, parte do qual é uma totalidade, do que a visão de algum pes-
reproduzido na fig. 1. A sinopse é um diagra- quisador particular. “É um tipo de mapa do
ma complexo que indica as várias influências campo. Como se comportar nele é outra ques-
na música conforme ele pôde imaginar, desde tão, não estrutural, mas funcional” (Seeger,
os aspectos físicos dos sons até as influências 1977, p. 126). O mapa apresenta amplas áreas
históricas da tradição e dos valores e concei- para investigação, e certamente existem alguns
tos finais que expressam e influenciam (Seeger, continentes a serem descobertos (onde, por
1977, p. 125). Ele lista 20 campos envolvidos exemplo, estão poder e hegemonia?). A sinopse
na análise de eventos musicais, da matemática de Seeger revela a vastidão do nosso assunto e
e lógica ao mito, misticismo e extática. A fig. 1 a variedade de abordagens que têm sido utili-
mostra como Seeger dividiu a musicologia em zadas no passado, ou que cada um de nós pode
uma orientação sistemática e histórica, cada empreender.
uma das quais está por sua vez subdividida. O Obviamente os caminhos em tais mapas são
lado sistemático inclui os aspectos físicos da criados pelas pessoas que neles têm ocupado
música e os aspectos semânticos do falar sobre espaços. Poderíamos colocar muito da história
música; a orientação histórica inclui tanto a da etnomusicologia na fig. 1, com Hermann
música e a fala como atividades humanas quan- Helmholtz ([1863] 1954) e Mieczyslaw Ko-
to as necessidades gerais das sociedades huma- linsky (1973), entre outros, localizados na área
nas por abrigo, alimentação e cultura. da densidade estética; Merriam (1964), Ruth
Frustrado pelas inflexibilidades da lingua- Stone (1982), e muito da etnografia da músi-
gem acadêmica e pela operação mecânica da ca no campo musical chamado “densidade se-
dialética hegeliana, Seeger recorre a diagramas mântica”. Richard Wallaschek ([1893] 2007)
para apresentar o campo. Sobre a sua sinopse ocupa o meio da região biocultural da música,
ele escreve: enquanto Steven Feld ([1982] 1990) está fun-
damentado no estudo do lado esquerdo desse
Por sua natureza, tal esquema é estático e faz continuum. Alguns de meus escritos estão fun-
com que o campo que representa – uma coisa damentados na estruturação da cultura do lado
dinâmica e funcional – pareça estática… Ao me direito (A. Seeger, 1979, 1980, 1987). Estudos
limitar às duas dimensões da sinopse, o melhor de determinantes extrínsecos incluem Willard
que posso fazer é pedir ao leitor que comece pelo Rhodes (1958) e Merriam (1967), enquanto
topo e enquanto lê lembrar que está traçando George Herzog ([1928] 1930), Helen Roberts
seu próprio progresso sobre o terreno. Quando ([1936] 1970), Mervyn McLean (1979) e Nettl
chegar em uma bifurcação você deve decidir qual (1954) têm discutido relações geográficas entre
caminho seguir primeiro, mas não ficar nele por as tradições musicais.
Os diagramas de Seeger surgiram da apre- tantes para escrever sobre música, em relação
ciação de pesquisas realizadas, assim como de às questões gerais sobre o que é e o que faz a
possíveis empregos com êxito. Contudo, o música nas sociedades humanas.
foco estava sempre na necessária diversidade de
questões que temos para entender a música e
criar uma etnomusicologia adequada, ou uma O evento audiocomunicatório: a
musicologia. Ele tem argumentado freqüente- partir de mil circunstâncias
mente que o termo etnomusicologia foi infeliz,
desde que a verdadeira musicologia deveria ser Discussões de escritos históricos sobre mú-
etnomusicológica – no sentido de que incluiria sica devem distinguir as breves descrições de
toda a música e a abordaria de várias maneiras canto e dança comuns nos relatos dos explo-
diferentes (1977, p. 51-52). radores, mercadores, viajantes e missionários,
Durante os últimos 100 anos, as pergun- das descrições longas, intensivas e compara-
tas formuladas por musicólogos sobre a música tivas. Os relatos de viajantes podem ser úteis
têm surgido e desaparecido somente para rea- para pesquisadores posteriores, no entanto ha-
parecer novamente em formas diferentes. Po- bitualmente não são tentativas de estabelecer
de-se dizer que algumas partes do mapa foram generalizações sobre a música. Mais freqüente-
mais bem exploradas que outras. As razões para mente são curtas observações do tipo “quando
o desenvolvimento de um tipo de questão e a eu cheguei perto da casa do chefe eu ouvi fortes
diminuição de outro envolve a história intelec- ruídos de canções”. Apesar de que, às vezes, os
tual e social além da etnografia da música, mas autores são simpáticos aos sons – Jean de Léry,
enquanto as abordagens de algumas questões que publicou as primeiras transcrições de can-
mudaram ao longo das décadas, algumas das ções indígenas brasileiras (feitas em 1557-8),
questões permaneceram as mesmas. A figura escreveu que eles dançaram de uma maneira
de Seeger pode servir como um princípio or- tão harmoniosa “que ninguém poderia dizer
ganizador para a discussão, mesmo que outros que eles não conhecem música” (citado em Ca-
esquemas o fizessem tão bem quanto. mêu, 1977, p. 27). Os exploradores tenderam
a descrever as danças e os instrumentos com
muito mais cuidado do que empregavam para
Abordagens para a Etnografia da descrever o estilo musical.
Música Foi Jean-Jacques Rousseau que estabeleceu
algumas das características básicas da etnogra-
É impossível entender porque a etnografia fia da música. Em seu Dicionário Completo da
da música se desenvolveu da maneira como o Música ([1771] 1975), Rousseau reuniu em um
fez, sem examinar aqui algumas de suas raízes, lugar informações clássicas e contemporâneas,
ao menos brevemente. Outros capítulos deste organizadas em ordem alfabética. No intuito
volume apresentam um tratamento mais com- de fazer generalizações sobre a música como
pleto e algumas excelentes histórias livrescas de uma totalidade, a entrada na música é sempre
etnomusicologia já têm aparecido (entre elas citada enquanto um uso sistemático anterior
Kunst: 1959; Nettl: 1964, 1983), assim como da música não-ocidental. A definição inicial
alguns artigos sintéticos (por exemplo, Krader: de Rousseau sobre a música foi performativa:
1980). Esta seção apresenta uma discussão sele- é “a arte de combinar notas de uma maneira
tiva de algumas das fontes e abordagens impor- prazeirosa aos ouvidos”. Em seguida, porém,
“para colocar o leitor de maneira a julgar os di- Em outras palavras, para entender os efei-
ferentes acentos musicais de diferentes povos”, tos da música sobre uma audiência é necessário
ele apresenta transcrições de uma ária chinesa, entender de que maneira as performances afe-
uma ária persa, uma canção dos selvagens do tam tanto os performers quanto a audiência. De
Canadá e a ranz des vaches suíça. fato música é mais que física. Essa citação pode
Rousseau chegou a duas conclusões a partir ser considerada uma das primeiras justificativas
das transcrições. A primeira diz respeito à pos- para o estudo etnográfico da música na cultu-
sível universalidade das regras musicais, das leis ra. Se quisermos entender os “efeitos dos sons
físicas da música: no coração humano” devemos estar preparados
para retraçar com os ouvintes os “costumes,
“encontraremos nessas peças uma conformidade reflexões e miríades de circunstâncias” que do-
de modulações com a nossa música, que deve tam a música de seus efeitos.
nos fazer admirar a excelência e a universalidade
de nossas regras” ([1771] 1975, p. 266).
Evento biocultural: a organização da
A segunda conclusão diz respeito ao fato de diversidade
que os efeitos exercidos pelas canções sobre as
pessoas não estão limitados aos efeitos físicos Os séculos de expansão mercantil colocaram
dos sons. Para explicar este ponto ele descreveu os europeus em contato com uma ampla diver-
como certa canção foi proibida para as tropas sidade musical e cultural. Na medida em que
suíças devido a seu efeito nos que a escutavam. relatos da vida musical se multiplicavam em
todas as partes do mundo, cientistas sentiram
A célebre ária acima, chamada Ranz des Vaches, necessidade de organizá-los. Para fazê-lo, eles
era tão amplamente amada pelos suíços que foi enfatizaram duas questões básicas da ciência do
proibida de ser tocada entre as tropas de seu século XIX. A primeira foi uma investigação da
exército, sob a pena de morte, devido ao fato origem e desenvolvimento da música (“Estrati-
de fazer chorar, desertar ou morrer a quem ou- grafia” de C. Seeger), e a outra foi a classificação
visse; tão grande era o desejo que neles surgia dos diferentes estilos em grupos (as “Famílias
de retornar à sua pátria. Procuraremos em vão Geográficas” de C. Seeger). As respostas a am-
encontrar nesta ária qualquer acento energético bas as questões foram tentativas de organizar a
capaz de produzir efeitos tão surpreendentes. Tais diversidade de tradições musicais em padrões
efeitos, que são nulos aos olhos estrangeiros, vêm – tanto históricos quanto espaciais.
unicamente do costume, reflexões e outras mil cir-
cunstâncias, as quais retomadas por aqueles que Períodos estratigráficos: origem e
a escutam e relembrando a idéia de sua terra, desenvolvimento
seus antigos prazeres, sua juventude e todas as
alegrias da vida, excita neles os amargos pesa- Alguns dos melhores estudos da música do
res da perda. Nesse caso a música não age como século XIX continuaram investigando, na tra-
música mas como um sinal de recordação Tanto dição de Rousseau, os efeitos da música sobre
é verdade que não devemos procurar pelos gran- os seres humanos. A organização do conhe-
des efeitos dos sons em sua ação física, mas no cimento, no entanto, estava freqüentemente
coração humano ([1771] 1975, p. 266-267). inserida em um quadro de referência evolu-
cionista. Às sociedades não-ocidentais foram
atribuídas afinidades “primitivas” à emoção, Ele descreve a música enquanto um poder or-
e posteriormente à música e à dança, que se ganizador para as massas, permitindo à tribo
acreditava ter sido perdida com a aquisição da atuar como uma unidade. Ele escreveu que isso
“civilização” (isso nos faz pensar no que esses dá aos grupos musicais uma vantagem na “luta
autores teriam feito com a música popular do pela vida” em relação aos menos musicais, e
século XX). Porém, os autores tinham muitas “então a lei da seleção natural se aplica na expli-
coisas a dizer que não podem ser facilmente re- cação da origem e desenvolvimento da música”
jeitadas e ainda requerem discussão. (p. 294-295). Grupos não-musicais simples-
Um exemplo de tratamento livresco à mú- mente não poderiam sobreviver. Podemos ver
sica de várias partes do mundo é o trabalho de tanto a influência darwiniana e a convergência
Richard Wallaschek, Primitive Music: an Inqui- com os argumentos em favor do “jazzercise”
ry into the Origin and Development of Music, (uma forma americana de exercícios musicais
Songs, Instruments, Dances, and Pantomimes of dos anos 80). Wallaschek antecipou grande
the Savage Races (Música Primitiva: uma Inves- parte do trabalho publicado 21 anos mais tarde
tigação sobre Origem e Desenvolvimento da (1915) e inspirado por ele As Formas Elementa-
Música, Cantos, Instrumentos, Danças e Pan- res da Vida Religiosa do sociólogo francês Émile
tomimas das Raças Selvagens) ([1893] 2007). Durkheim.
Wallaschek apresenta uma vasta quantidade de A despeito de algumas de suas ênfases pro-
descrições de performances musicais coletadas féticas, o trabalho de Wallaschek é marcado –
em diferentes fontes, um Ramo de Ouro do como grande parte da antropologia daqueles
conhecimento sobre música. No entanto, con- dias – por uma tendência a considerar o final
tém uma perspectiva teórica geral. Wallaschek do século XIX como o ápice do desenvolvi-
argumenta que a música surgiu de um desejo mento. Assim, Wallaschek colocou a escala de
humano geral pelo exercício rítmico e se desen- doze tons como o topo do desenvolvimento
volveu através dos tempos até o presente. musical:
Apesar de seu trabalho ser rotulado como
de interesse eminentemente histórico (Nettl, os intervalos cromáticos de nosso temperamento
1964, p. 28), Wallaschek estabeleceu vários igualado são de fato os menores intervalos pos-
pontos que continuam caracterizando os es- síveis, não para o ouvido ou a voz, ou as leis dos
critos etnomusicológicos de hoje. Um desses sons, mas para um instrumento prático (p. 158).
pontos é a constatação de que o estudo da
música não-européia pode ser útil porque so- Ele pode ter sido um tecladista; mas se ti-
mos capazes de perceber na música de outras vesse familiaridade com a música indiana pro-
comunidades aspectos da música menos óbvios vavelmente não teria enunciado tal argumento.
a nós mesmos, na música de nossas próprias Ele também considerou a harmonia como o
tradições ([1893] 1970: 163). maior desenvolvimento evolucionário e escre-
Wallaschek também antecipou muitos tra- veu sobre a música de diferentes sociedades
balhos subseqüentes quando notou que música tirando-as de seu contexto e comparando as
(“primitiva”) não é uma arte abstrata, mas uma formas de acordo com um ou outro aspecto.
arte profundamente arraigada na vida. Ele ar- Nada disso teria sido feito nos estudos compa-
gumenta que dançar e fazer música aumenta rativos contemporâneos de música.
a solidariedade do grupo, organiza atividades Apesar das convincentes críticas de Franz
coletivas e facilita a associação na ação (p. 294). Boas às metodologias evolucionistas (1896), a
coleção de músicas do mundo, no intuito de que estilos de canções variam de acordo com
apresentar uma história natural do desenvolvi- diferenças na escala produtiva, nível político,
mento das estruturas e formas musicais, conti- nível de estratificação das classes, severidade
nuou por mais meio século. Apareceu na obra dos costumes sexuais, equilíbrio de domina-
de Carl Stumpf, Die Anfange der Musik ([1911] ção entre homens e mulheres e nível da coesão
2006), e continuou com várias formas modi- social (1968, p. 6). Na sua formulação mais
ficadas em livros de Curt Sachs sobre música, simples, os estilos de cantos podem ser divi-
instrumentos musicais e dança. Para Sachs, na didos em dois grupos, modelo A e modelo B
música “primitiva” (1968, p. 16):
estilos musicais de forma mais geral do que Dado que a compreensão de um sistema
seria possível somente pela pesquisa de cam- musical requer um conhecimento intensivo do
po solitária, e fornecem um meio de discutir mesmo, a etnografia da música requer o conhe-
relações históricas entre grupos e estilos. As cimento em primeira mão e em profundidade
desvantagens incluem problemas de dados da tradição musical e da sociedade da qual tal
(freqüentemente coletados por viajantes), de tradição é uma parte. Embora isso seja uma
vocabulário (McLean mostra que nem os via- característica da pesquisa de campo contem-
jantes, nem os etnomusicólogos utilizam de porânea, certamente ocorreu antes do famoso
forma consistente palavras como “recitativo”), capítulo de Argonauts of the Western Pacific de
de desconsiderar diferenças em favor das simi- Bronislaw Malinowski, no qual exorta os antro-
laridades, de amostragem (que tipo de seleção pólogos a viver em barracas nas aldeias nativas
proporcionaria uma amostra adequada) e de ([1922] 2002). Um livro que resulta de uma
diferentes níveis de análise das fontes. Os ana- profunda imersão em outra sociedade é The
listas definem diferentes áreas de acordo com Music of Hindostan ([1914] 1966) de A. H. Fox
atributos que eles escolhem enfatizar e com a Strangways, que surpreende pela clareza do seu
elegância de suas análises. Assim, Erich M. von foco, sua admiração pela música indiana e sua
Hornbostel pensou que distinguia um estilo constante comparação entre a música ocidental
dos índios americanos, o que Herzog refutou (inclusive dos compositores contemporâneos)
em seu influente artigo comparando os estilos e a música indiana. Fox Strangways argumen-
musicais dos Pueblo e dos Pima (1936), e Nettl ta que a música indiana merece ser estudada
dividiu os nativos da América do Norte em seis porque carece da influência dos conceitos eu-
estilos (1954). O mundo tem sido diferente- ropeus de harmonia e, portanto, é similar às
mente dividido em três (Nettl), cinco (Lomax), canções da Europa Medieval e da Grécia Anti-
ou muitas áreas de estilo dependendo dos obje- ga. Então, um estudo da música indiana deve
tivos do pesquisador. Em um nível mais geral, permitir uma melhor compreensão da história
certas características musicais são amplamente musical da Europa. Ele argumenta que é ne-
compartilhadas tanto intra quanto interáreas cessária uma compreensão da tradição musical
geográficas. Na medida em que as descrições para sua apreciação estética, mas essa compre-
se tornam mais precisas, cada vez menos tal ca- ensão pode ser difícil de alcançar porque nós
racterística será encontrada fora de um peque- não sabemos o que fazer com o que ouvimos
no grupo geográfico ou cultural. De maneira ([1914] 1966, p. 2). Em descrições de músicas
geral, nem a pesquisa em áreas musicais tem ele escreve que “nós não sabemos o que fazer da
conduzido a qualquer nova compreensão do música que é lenta sem ser sentimental e que
significado da música para as sociedades. expressa paixão sem veemência” (p. 2) e pensa-
Outra abordagem da música enfatiza a di- mos em notas graciosas como adicionadas.
versidade e a compreensão em música, em vez ‘Graça’ indiana é de uma espécie diferente.
das similaridades e das relações históricas. Cada Não há nunca a menor sugestão de que alguma
tradição musical é tomada como uma unidade coisa tenha sido “adicionada” às notas graciosas
e as concepções sobre música, assim como os (p. 182).
atributos das performances, são tratadas como Strangways empreendeu sua análise com
uma totalidade integral. Esta abordagem pro- cuidadosa atenção às categorias da musicologia
voca questionamentos que provam ser mais re- indiana, as quais ele explicou em detalhe. Ele
levantes à etnografia da música. abre seu livro com um capítulo sobre a filosofia
indiana. Sua abordagem é ao mesmo tempo es- própria música. A sociologia da música foi de-
pecífica para uma única tradição e comparativa finida como um campo que
com outras.
O foco central do livro de Strangways é a toma como base para sua investigação as cir-
estrutura e a forma musical – aspectos bastante cunstâncias materiais da produção e recepção da
complexos da música indiana. Não pretende música e, portanto, começa por determinar as
nem uma reinterpretação da cultura indiana condições sociais gerais sob as quais a música é
nem uma interpretação do significado da músi- produzida (Boehmer, 1980, p. 432).
ca Hindustan. Porém, ele fornece algo do con-
texto social da música. Em obras posteriores, Porém as próprias forças materiais são cria-
isso seria desenvolvido com uma profundidade das por mentes influenciadas por processos
bem maior. mentais anteriores, e a música pode ser parte
do ethos ou dos padrões gerais de pensamen-
to da uma sociedade. Estes fornecem parte das
Contexto: a relação da música com a motivações da atividade econômica e de certa
vida social forma “conduzem” o sistema, como Max We-
ber sugeriu em seu estudo do protestantismo
Qual o efeito que a música exerce na vida (Weber, [1930] 2003).
social? Essa questão tem uma longa história Antropólogos ingleses e americanos não
e pode ser relacionada a várias teorias sobre a estavam interessados nesses debates. Mais in-
própria sociedade e sobre a música. Karl Marx fluenciados por Durkheim do que por Weber
sustentava que a música era parte da superes- ou Marx, eles tendiam a expressar suas ques-
trutura de uma sociedade e, portanto, um esti- tões em termos de funções musicais. Partindo
lo musical seria determinado pela organização da inter-relação entre a música e o resto da vida
dos meios de produção. social, os pesquisadores tentaram descobrir
como a música funcionava para dar suporte ou
A sociologia marxista da música de cunho segue para desestabilizar o resto do sistema social e
os princípios estabelecidos em Uma Contribui- cultural.
ção à Crítica da Economia Política, de acordo Merriam foi um expoente nessa abordagem,
com a qual todo movimento e mudança na su- e distinguiu entre usos e funções:
perestrutura social (os domínios político, legal,
religioso, filosófico e artístico) é determinado Quando falamos dos usos da música, estamos
por mudanças na base material (econômica) da nos referindo às maneiras nas quais a música
sociedade. (Boehmer, 1980, p. 436). é usada na sociedade humana, como a prática
habitual ou exercícios costumeiros de música
Essa posição geral continua sendo uma tanto como uma coisa em si ou em conjunção
importante força no estudo da música, es- com outras atividades... Música é usada em cer-
pecialmente em sociedades complexas e in- tas atividades, e se torna parte delas, mas pode
dustrializadas. Pode ser proposto um grau de ou não ter uma função profunda (1964, p. 210,
independência da música em relação aos pro- grifos meus).
cessos econômicos, mas tais processos rece-
bem tratamento considerável – especialmente Se a música é usada para efeito de cura, por
os processos econômicos relacionados com a exemplo, sua função mais “profunda” pode
ser uma função inconsciente, passível de ser Portanto, da perspectiva dessa abordagem,
descoberta por observadores do “alívio emo- a música tem usos – aparentes tanto para o na-
cional”. Merriam listou um número de prová- tivo quanto para o observador – e funções.
veis funções, incluindo expressão emocional, Ninguém pode negar que as pessoas usam a
prazer estético, entretenimento, comunicação, música conscientemente. Basta observar como
representação simbólica, respostas físicas, con- está extendida a censura da música no mundo e
formidade às normas sociais, validação de ins- o uso extensivo da música na propaganda para
tituições sociais e contribuição à continuidade ver dois possíveis usos muito contraditórios,
e estabilidade da cultura (1964, p. 221-225). aos quais podem ser-lhe atribuídos. Porém, a
O capítulo de Merriam sugere que somente o procura de funções não tem se dirigido às par-
investigador tem a clareza de visão para deter- ticularidades da música em si. Se a função da
minar funções, enquanto os usuários parecem música é controlar as relações de um grupo
ser capazes apenas de usar a música, cujas fun- com o sobrenatural, precisamos saber por que
ções lhes são inconscientes. Porém, na medida os membros de um grupo usam a música para
em que a investigação avançou, tornou-se claro exercer tal controle e por que um gênero parti-
que muitos povos ao redor do mundo têm teo- cular de música, enquanto distinto de todos os
rias de música e sociedade que, mesmo expres- outros, pode ser empregado para outros fins. As
sas diferentemente, são tão sofisticadas quanto afirmações mais gerais sobre as funções têm sido
as nossas. Assim que antropólogos começaram muito amplas e têm ignorado quase completa-
a apreciar a irrefutabilidade das teorias nativas mente a estrutura e a performance dos sons. A
das sociedades que estudavam, a distinção en- cisão entre linhas de pesquisas antropológicas e
tre uso e função não se sustentava. musicológicas pode ser atribuída parcialmente
Nettl enfrentou o problema das funções e à separação entre a busca por funções, que re-
usos 17 anos mais tarde, em outra introdução quer muito pouca atenção à música, e a busca
à etnomusicologia (1983, p. 159). Sugeriu que pelas estruturas sonoras. Colocá-las no mesmo
tanto nativos quanto antropólogos poderiam plano requer atenção aos significados dos sons
discutir usos e funções que podem ser dispos- em si e suas várias combinações.
tos em uma pirâmide, cuja base contém os usos As diferentes abordagens da sociologia da
“evidentes” da música, o meio os “usos abstra- música compartilham um objetivo comum:
tos” ou generalizações sobre música, e final- descobrir a maneira em que a música é usada
mente o nível analítico mais abstrato, que para e os significados que lhe são dados pelos in-
ele é uma função: tegrantes da comunidade que os executa. Isso
extrapola os interesses de Fox Strangways e
A função da música na sociedade humana, o aparece em várias descrições etnográficas con-
que a música faz em último caso, é controlar temporâneas de sociedades particulares.
o relacionamento da humanidade com o sobre-
natural, intermediando pessoas e outros seres, e
dando suporte à integridade dos grupos sociais Música enquanto valor: recentes
individuais. Isso é feito expressando os valores etnografias da música
centrais relevantes da cultura em formas abstra-
tas... Em cada cultura a música funcionará para As abordagens da etnografia da música rea-
expressar, de uma forma particular, uma série de lizadas durante os últimos 20 anos têm envol-
valores particulares (1983, p. 159). vido tentativas de dedicar-se a questões mais
específicas do que seria possível através das Todos os autores reconhecem que as defi-
discussões de uso ou função. Autores têm abor- nições daquilo que chamamos “música” são
dado a música a partir do ponto de vista dos amplamente diversificadas. Isso significa que se
nativos, usando as categorias nativas de expres- nos restringirmos a perguntar somente sobre o
são. Apesar de Merriam ter afirmado que que nós chamamos de música, poderemos estar
fazendo uma investigação parcial sobre o que as
deve haver um corpo teórico conectado a todo outras pessoas pensam que estão fazendo. Exis-
sistema musical – não necessariamente uma teo- tem várias maneiras de superar esse problema.
ria da estrutura do som musical, mesmo que esta Uma delas é definir cuidadosamente um objeto
também esteja presente, mas uma teoria sobre o de estudo recortado, tal qual o evento da per-
que é música, o que ela faz e como é coordena- formance e enfocar tudo o que acontece nesse
da com o ambiente total, tanto natural quanto evento, seja musical ou não. A outra é abarcar
cultural nos quais transita, ele foi incapaz de lo- conjuntos de conceitos e ações com respeito à
calizar isso claramente entre os índios Flathead música que parecem estar relacionados e inves-
(Merriam, 1967). Outros pesquisadores encon- tigar sua inter-relação. Stone e Feld escolheram,
traram dificuldades em localizá-la, embora não cada qual, uma dessas duas opções.
seja impossível (Marshall, 1982). Stone descreve sistematicamente a interação
entre os performers e a audiência nos eventos
Mais recentemente, investigadores têm se de música Kpelle. Ela afirma que estes eventos
empenhado na busca por idéias nativas sobre são esferas limitadas de interação, distinguíveis
a música, que possam ser expressas diferente- pela análise detalhada. Ela estudou a interação
mente da terminologia européia. Virtualmen- dos indivíduos que produzem música e aqueles
te todos os autores contemporâneos enfocam que a escutam. Outros autores que enfocaram
conjuntos de termos nativos e tentam analisar a ocasião ou evento musical – freqüentemente
a música de dentro do campo semântico utili- inspirados no trabalho pioneiro de R. Bauman
zado pelos membros da sociedade em questão. e J. Sherzer (1974) – incluem M. Herndon e
Alguns dos trabalhos recentes incluem Glossary R. Brunyate (1976), N. McLeod e Herndon
of Hausa Music and its Social Contexts (1971), (1980) e G. Béhague (1984). Feld, por outro
de David Ames e Anthony King, e Musique lado, abarcou uma maior gama de atitudes e
Dan (1971), de Hugo Zemp. O Tiv Song, de crenças sobre todas as formas de comunicação
Charles Keil, começa com uma discussão dos sonora, incluindo gritos e o choro dos pássaros,
domínios semânticos e investiga pormenori- para mostrar como as análises dos códigos da
zadamente os verbos associados com a músi- comunicação sonora podem conduzir à com-
ca (1979, p. 30). Em Let the Inside be Sweet preensão do ethos e da qualidade de vida na so-
(1982), Stone se aplica à estética Kpelle através ciedade Kaluli.
da elucidação da frase: “let the inside be sweet”, Feld descreve a expressão sonora dos Kaluli
e Sound and Sentiment ([1982] 1990), de S. como “incorporações de sentimentos profun-
Feld, investiga a estética Kaluli através de suas damente sentidos” ([1982] 1990, p. 3) e suas
metáforas e emoções. Esses livros estão entre performances como esforços para despertar tais
as mais importantes etnografias etnomusicoló- sentimentos tanto na audiência como nos pró-
gicas dos anos 1970 e 1980, e cada uma for- prios performers. Outros autores analisaram a
mula interessantes propostas para a etnografia música como um meio dentro de um conjunto
da música. de formas. Um deles é Richard Moyle em sua
análise dos cantos Pintupi, na qual ele começa aponta para muitos dos tópicos tratados nos
distinguindo o canto Pintupi de outras cate- outros livros. Poeticamente escrito, ilustrado
gorias de sons humanos, incluindo recitações, com transcrições e registros suplementares de
ensaios de leituras de textos, a fala, o choro e gravações folclóricas e trazendo instruções para
os chamados para dança (1979). Outra análi- a construção de uma karimba Shona, The Soul
se é o meu trabalho sobre o canto Suyá, que of Mbira é um excelente exemplo do sucesso
estabelece um conjunto de inter-relações entre com o qual uma abordagem entusiasta de outra
as categorias Suyá das formas verbais e depois tradição pode ser transmitida ao leitor. Outros
enfoca um grupo dessas formas que define a livros cujo envolvimento dos autores com a
música Suyá (1987). O trabalho de Stone é im- performance musical tem um papel importan-
portante pelo detalhe com o qual aborda o que te é a descrição de M. Hood do aprendizado
ela define como o evento musical; o trabalho musical na Indonésia ([1971] 1982) e a descri-
de Feld é importante pela sua abordagem da ção dos tocadores de tambor da África Ociden-
música como um entre os vários modos inter- tal (1979), de J. M. Chernoff. Hood defendeu
relacionados de comunicação que tem profun- a abordagem conhecida como bi-musicalidade
dos efeitos sobre a emoção. Se o livro de Stone para a etnomusicologia, na qual o estudan-
enfoca uma abordagem para estudar a música, te tanto aprende a executar um instrumento
Feld encaminha as questões centrais sobre o como uma abordagem para o entendimento
porquê das pessoas fazerem música. da música, tal como ele aprende uma língua
Outro grupo de autores iniciou suas pesqui- pra falar com as pessoas. Com certeza muito da
sas com estusiasmo por um instrumento par- sensibilidade de etnomusicólogos aos detalhes
ticular ou um tipo de música. Podemos dizer de outras tradições é em parte o resultado da
que eles começaram com um interesse numa pesquisa como um encontro entre músicos.
tradição enquanto densidade estética (ver fig. Regula Qureshi propôs uma abordagem
1), porém se deslocaram para o estudo da den- sintética para a música dirigida tanto às carac-
sidade semântica. Freqüentemente, tais autores terísticas contextuais quanto especificamente às
eram performers também, e as etnografias eram características acústicas das performances mu-
tanto descrições engajadas de encontros com sicais (1987). Os dois tipos de análises que ela
músicos em outras sociedades, quanto descri- propõe combinar são (i) o sistema de regras do
ções da vida musical a partir da perspectiva de sistema de sons musicais, que pode ser obtido
um aprendiz e performer. Um dos trabalhos de especialmente com os músicos, e (ii) a análise
maior sucesso nessa linha é The Soul of Mbira do contexto, em termos de conceitos e com-
(1978), de Paul Berliner, que faz uma descri- portamento, estrutura e processo, utilizando a
ção de sua busca pela compreensão musical e teoria antropológica, os métodos de observação
intelectual do mbira (também conhecido como e dedução. Qureshi sugere que a análise deve-
sanza e “piano de polegar” africano). Berliner ria proceder em três passos. Primeiro, o idioma
descreve como ele aprendeu a tocar e entender musical deve ser analisado como uma estrutura
os conceitos estéticos dos tocadores de mbira de unidades e regras musicais para sua combi-
Shona do Zimbawe: “O objetivo deste livro é nação, no sentido de uma gramática formal.
dar atenção ao mbira” (1978, p. xiii) – um ob- Isso pode ser obtido com os performers. No gê-
jetivo bem diferente de Feld e Stone. Berliner nero musical do Paquistão, que ela estudou, ha-
apresenta os conceitos e os sons executados no via conceitos musicológicos “literalmente para
instrumento – um modo de investigação que pergunta”, algo que não se encontra em todo
vando o público pode-se ver que (quem) seus do. Essas categorias locais de pessoa, lugar e
membros estão em grupos de ambos os sexos, tempo não fazem muito sentido em si mesmas,
na maioria em idade universitária, caucasianos, mas formam sistemas com outras categorias de
vestidos com uma aparente informalidade que pessoa, lugar e tempo. Tomados como uma to-
em alguns casos disfarçam considerável des- talidade e relacionados entre si, os sistemas for-
pesa e cuidado, sentados às mesas, bebendo e necerão pistas importantes para o significado
falando. Uma banda local (o que) “esquenta o do evento que está acontecendo.
público” proporcionando música para passar o A análise estrutural argumenta que as coi-
tempo, criar suspense sobre o evento principal sas derivam seu sentido de suas relações com
e apresentar seus próprios talentos ante uma outras coisas (Lévi-Strauss, 1963), e as cate-
audiência que de outra maneira não poderia gorias nativas não são exceções. Investigações
ouvi-los. Quando os músicos do conjunto de suplementares (novamente conversando com
reggae (mais quem) chegam, vemos que são pessoas da comunidade) podem revelar um
afro-americanos, com dreadlocks e executam conjunto de categorias locais de pessoas (ti-
uma música (mais o que) que se desenvolveu na pos de quem): “multidão universitária” pode
Jamaica, um som diferente, que é recebido en- contrastar com “jovens locais”, “yuppies” e
tusiasticamente pela audiência. Uma relação é “veteranos”. Podemos descobrir que diferen-
estabelecida entre os músicos e a audiência, que tes espaços de performance na cidade (tipos de
possibilita a criação de uma atmosfera emocio- onde) são largamente reservados, em sua maio-
nal e resulta em dança e aplausos entusiasma- ria, para diferentes tipos de música – a “casa de
dos. Depois de certo período a apresentação ópera” não contrata bandas de reggae, nem a
termina, os músicos conversam com algumas biblioteca pública, as igrejas ou as organizações
pessoas da audiência, a maioria das quais sai e fraternais. Em vez disso, cada um desses esta-
volta para suas casas ou dormitórios. belecimentos possui categorias de músicas que
Isso é o que se pode ver apenas sentando são regularmente contratadas e uma clientela
tranqüilamente numa mesa (recebendo alguns que freqüenta regularmente os eventos. Outros
olhares dúbios por estar tão calado). No en- tipos de música podem ser tocadas em outros
tanto, podemos falar com pessoas em outras locais, em diferentes noites da semana (tipos
mesas e fazer perguntas sobre os performers, a de quando). Os músicos podem se sobrepor to-
audiência e o estabelecimento. Podemos apren- cando diferentes tipos de música em diferentes
der que os performers são “os melhores que já bandas. As audiências podem se sobrepor da
vieram para esta cidade”, que a audiência é for- mesma maneira, já que uma pessoa pode apre-
mada “principalmente por tipos universitários ciar mais de um tipo de música. No entanto, as
e alguns freqüentadores habituais”, assim como audiências geralmente são bastante diferentes.
por “amigos próximos da banda”, e que tem um Poucos universitários vão assistir eventos nas
policial à paisana no clube, que “este lugar tem organizações fraternais como o Rotary Club;
uma acústica péssima, mas é o único lugar que muitas crianças assistem eventos na biblioteca
contrata apresentações de fora”, e que “a noite (dirigidos à crianças); nos bares de fora da cida-
de quinta-feira é terrível para atrair uma boa de que tocam música country deve haver menos
platéia, deveriam ter programado para sábado”. estudantes quanto mais nos afastamos do cam-
Essa parte da investigação fornece “categorias pus universitário; e eventos musicais em igrejas
nativas” e/ou as palavras e frases que as pessoas são geralmente freqüentados de acordo com a
usam para definir e se inserirem em seu mun- denominação.
namento da canção humana com a canção dos fala de um grupo de homens cegos que foram
pássaros e pela análise do relacionamento das levados a visitar um elefante. Por fim, depois
canções cantadas que relembram áreas da flores- de ouvirem muitas coisas a respeito, os cegos
ta e eventos do passado que evocam sentimentos foram levados para dentro da jaula e rodea-
intensamente sentidos por parte dos ouvintes. ram um dos enormes animais. Um dos cegos
Ele analisa os mitos Kaluli, suas idéias sobre a apalpou a tromba e concluiu que um elefante
natureza e exemplos específicos de performance era longo e flexível como uma grande cobra.
musical. Feld demonstra que o relacionamen- Outro tocou a pata e concluiu que era circular
to de humanos e o canto dos pássaros é uma e firme como o tronco de uma árvore. Aque-
expressão específica de um paralelo mais geral le que sentiu o rabo decidiu que ele era mui-
entre humanos e pássaros, traçado pelos Kaluli. to pequeno, enquanto aquele que ficou em pé
As canções gisalo são designadas para levar os embaixo do ventre do animal sentiu seu peso
ouvintes às lágrimas, e a audiência expressa o opressivo e concluiu que era firme e pesado.
êxito do cantor em produzir uma tristeza deses- Quando eles saíram da jaula do elefante, come-
peradora, queimando-o com uma tocha. çaram a comparar suas impressões do animal e
iniciaram uma discórdia sobre a natureza dos
Estes sons e cantos de pássaros reorganizam a elefantes. Por sua experiência pessoal, cada um
experiência em um plano emocional ressonan- deles acreditava que estava certo.
do com os sentimentos profundamente sentidos Em muitos sentidos, a música é como o ele-
dos Kaluli. Quando texto, música e caracterís- fante e nós somos os homens cegos. Privados de
ticas performativas se aglutinam, alguém será uma visão de todas as partes, diferentes discipli-
levado às lágrimas ([1982] 1990, p. 216). nas e estudiosos têm se fixado em certos aspectos
e declarado: “é disto que a música trata”. A força
Através da investigação tanto cognitiva e o rancor das diferenças de opiniões está evi-
quanto emotiva dos aspectos da canção, Feld dente nas revistas e livros. No entanto, em vez
fornece um dos estudos mais cuidadosos sobre de defendermos nossos pontos de vista talvez
o significado de canções até o presente. devêssemos transitar mais, abordar a música de
A performance musical possui aspectos fisioló- diferentes lados e ouvir aqueles que a descrevem
gicos, emocionais, estéticos e cosmológicos. Tudo de maneiras diferentes. Em vez de limitarmos os
isso está envolvido no por que pessoas fazem e tipos de questões que consideramos aceitáveis,
apreciam certas tradições musicais. Uma etno- eu acredito que devêssemos definir nossa pesqui-
grafia da música deve estar preparada para tratar sa em termos de questões amplas, e reconhecer
desses aspectos – mesmo que poucos autores o a força da diversidade de pesquisas e publicações
tenham feito. Algumas análises se concentram na feitas nos anos 1990. Nenhuma pessoa ou dis-
influência fisiológica, outras na tensão emocio- ciplina possui o monopólio das questões que
nal liberada através da música, outras tratam da podemos fazer sobre música. Se nossas respostas
correlação social e outras dos efeitos das crenças diferem é porque as perspectivas dos eventos são
cósmicas no interior da tradição. Provavelmente diferentes. Se trabalharmos separados, como os
todos estão envolvidos seja qual for a tradição. cegos da fábula, nunca descobriremos o que é
Uma combinação de pesquisa de campo, investi- um elefante. Se trabalharmos juntos, poderemos
gação das categorias nativas e uma descrição cui- começar a ver a totalidade invisível e compreen-
dadosa são as marcas da etnografia da música. der o fenômeno que por nós mesmos só pode-
Uma anedota, provavelmente da Índia, mos perceber parcialmente.
KRADER, B. “Ethnomusicology”. In: The New Grove RHODES, Willard. “A Study of Musical Diffusion Based
Dictionairy of Music and Musicians. London & Wa- on the Wandering of the Opening Peyote Song”, Jour-
shington, DC: Macmillan Publishers Limited, vol. 6, nal of the International Folk Music Council – JIFMC,
1980. p. 275 – 282. vol. 10, 1958. p. 42 – 49.
KROEBER, A. L. Cultural and Natural Areas of Native ROBERTS, Helen. Heffron. Musical Areas in Aborigi-
North America. Berkeley: Coyote Press, 1947. 254 p. nal North America. Yale University Publications in
KUNST, J. Ethnomusicology. Netherlands: Martinus Ni- Anthropology No 12. New Haven: Human Relations
jhoff, 1959. 303 p. Area Files Press, [1936] 1970. p.41.
LEVISTRAUSS, C. Structural Anthropology. New York: ROUSSEAU, J.-J. Dictionnaire de Musique. Paris,
Basic Books, 1963. 443 p. 1768/1825/1969; Traduzido para o Inglês por W.
LOMAX, A. Folksong Style and Culture. Washington, Waring, London [1771, 1779], A Complete Dictionary
DC: Library of Congress, 1968. 349 p. of Music. 1975.
MALINOWSKI, B. Argonauts of the Western Pacific: an ROWELL, L. Thinking about Music: an Introduction to
account of native enterprise and adventure in the ar- the Philosophy of Music. Amherst: University of Massa-
chipelagoes of Melanesian New Guinea / Bronislaw chusetts Press, 1983. 308 p.
Malinowski ; with a preface by Sir James George Fra- SACHS, Curt. World History of Dance. [Traduzido de Eine
zer. New York & London: Routledge, [1922] 2002. Weltgeschichte des Tanzes, Berlin, 1933]. New York: W.
527 p. W. Norton & Company, [1937] 1963. 516 p.
MARSHALL, C. “Towards a Comparative Aesthetics ______. The History of Musical Instruments. New York:
of Music”. In: Cross-Cultural Perspectives in Music, R. W. W. Norton & Company, 1940. 540 p.
FALCK and T. RICE (Orgs.). Toronto: University of SEEGER, A. “What can we Learn When They Sing?
Toronto Press, 1982. 162 p. Vocal Genres of the Suyá Indians of Central Brazil”,
MCLEAN, Mervyn. “Towards the Differentiation of Ethnomusicology, vol. 23, 1979. p. 373-394.
Musical Areas in Oceania”. Anthropos, vol. 74, 1979. ______. “Sing for Your Sister: the Structure and Perfor-
p. 717. mance of Suyá akia” In: The Ethnography of Musical
MCLEOD, Norma & HERNDON, Marcia. (Eds). The Performance, Norma MCLEOD and Marcia HERN-
Ethnography of Musical Performance. Norwood, PA, DON (Eds.), Norwood, PA: Norwood Editions,
1980. 212 p. 1980. 212 p.
MERRIAM, Alan P. The Anthropology of Music. Evans- ______. Why Suyá Sing: a Musical Anthropology of an
ton: Northwestern University Press, 1964. 358p. Amazonian People. Cambridge, England, 1987. 170
______. Ethnomusicology of the Flathead Indians. New p.
York: Aldine Pub. Company, 1967. 403 p. SEEGER, C. L. Studies in Musicology 1935-1975. Berke-
______. “Definitions of ‘Comparative Musicology’ and ley: University of California Press, 1977. 438 p.
‘Ethnomusicology’: an Historical-Theoretical Perspec- STONE, Ruth. M. Let the Inside be Sweet: the Interpreta-
tive”. Ethnomusicology, vol. 21, No 2, 1977. p. 189 tion of Music Event Among the Kpelle of Liberia. Bloo-
– 204. mington: Indiana University Press, 1982. 180 p.
MOYLE, Richard M. Songs of the Pintupi: Musical Life STRANGWAYS, A. H. Fox. The Music of Hindostan.
in a Central Australian Society. Canberra: Australian Oxford at the Clarendon, [1914] 1966. 364 p.
Institute of Aboriginal Studies, 1979. 183 p. STUMPF, C. Die Anfänge der Musik. Leipzig: VDM Ver-
NETTL, Bruno. Theory and Method in Ethnomusicology. lag, [1911] 2006. 209 p.
Glencoe, IL, and London, 1964. 319 p. WALLASCHEK, R. Primitive Music: an Inquiry into the
______. North American Indian Musical Styles. Philadel- Origin and Development of Music, Songs, Instruments,
phia: American Folklore Society, 1954. 51 p. Dances and Pantomimes of Savage Races. London:
______. The Study of Ethnomusicology: Twenty-nine Issues Longmans, Green and Company, [1893, 1970]. Kes-
and Concepts. Urbana IL: University of Illinois Press, senger Publishing, LLC, 2007. 348 p.
1983. 424 p. WEBER, Max. The Protestant Ethic and the Spirit of Ca-
QURESHI, Regula Burckhardt. “Music Sound and pitalism. London: Dover Publications, [1930] 2003.
Contextual Input: a Performance Model for Musical 320 p.
Analysis”, Ethnomusicology, xxxi, 1987. p. 56-87. WISLLER, C. The American Indian. New York, [1917],
1922.
traduzido de
MYERS, Helen. Ethnomusicoly. an Introduction. New York/ London: W.W.
Norton & Company, 1992. p. 88-109.
Recebido em 30/03/2008
Aceito para publicação em 10/10/2008