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Lisboa, 8 de Novembro de 2015

Comentário textual
Documento 11 – O desenvolvimento
das Relações de Dependência Pessoal

Trabalho apresentado na cadeira de História Medieval (Economia


e Sociedade), regida pela Prof. Doutora Ana Maria Rodrigues

Realizado por:

Diogo Jesus Nº 53154

Licenciatura de História – 1º Semestre, 2015/16


O presente trabalho centra-se na análise aos três textos que compõem o documento 11
(em anexo). Torna-se necessário, antes de mais, precisar os nossos objectivos. Em
primeiro lugar, clarificaremos o fio condutor que perpassa os excertos e a sua datação
no tempo. Em seguida, apresentaremos os dois principais factores explicativos deste
primeiro feudalismo. Posteriormente, indicaremos as linhas de força que regem a
tendência por detrás dos laços de vassalagem. Entrando no estudo dos textos
apresentados, começaremos por uma sucinta apresentação das fontes, seguida da análise
detalhada propriamente dita. Por fim, concluiremos com o que se seguiu a este período.

O documento 11 alista excertos dos séculos VIII a IX, uma época em que se regista um
gradual desenvolvimento das relações de dependência pessoal. Não será ainda um
feudalismo, na sua verdadeira e total acepção, gerando-se portanto algum debate na sua
compartimentação dentro do fenómeno feudal. Assim, alguns autores optam por falar
num primeiro feudalismo. O termo pode assumir, para os medievalistas, dois sentidos: o
tipo de sociedade centrada no feudo, organizada pela particularidade das relações entre
homens, abrangendo todas as esferas da vida (socioeconómica) ou apenas as relações
estabelecidas entre homens, isto é, estritamente, os laços de dependência e
hierarquização (jurídica). Marc Bloch afirma que o feudo/senhorio rural não é
articulação mas a chave do sistema; dos rendimentos do senhorio vive toda a sociedade
feudal1. F.-L. Ganshof declara que o feudalismo é, senão a trave mestra, pelo menos o
elemento mais saliente na hierarquia dos direitos sobre a terra (que a sociedade feudal
comporta); Georges Duby observa que o feudo é apenas uma das articulações do
sistema feudal2.

No período estudado (séculos VIII e IX) há efectivamente a aceleração de um processo


que culminará nos séculos seguintes. Não se pode falar de relações feudais mas apenas
de laços de dependência vassálica. Por enquanto, o vassalo escolhe o amo
voluntariamente, devendo-lhe fidelidade, conselho, ajuda militar e material. O amo deve
em troca fidelidade, protecção e sustento. O laço que os une é ainda, informal, ou
melhor, mais precário. Por um lado, esta constituição de laços sociopolíticos na Idade
Média é herança das tradições bárbaras, isto é, do companheirismo germânico. Por
outro lado, mescla-se com o legado das instituições romanas, a clientela, em que os
homens se colocam na dependência de um patrono, por exemplo, para ascender

1
Ver BLOCH, A Sociedade Feudal, pp. 60
2
Ver FOURQUIN, Senhorio e feudalidade na Idade Média, pp. 63 e seguintes
socialmente. A política das relações de subordinação pessoal de homem para homem
faz desaparecer o conceito público da esfera do político assumindo, então, raízes
privadas e patrimoniais (a commendatio e o feudo), o que origina a fragmentação do
poder e sua estratificação compartimentada3. Desenvolve-se aqui o que será uma classe
de senhores, cavaleiros dedicados à guerra e defesa, mantidas pela massa de
camponeses, livres ou servos por meio de tributos ou do cultivo directo do feudo.

Enumeremos as tendências que se vão afirmar na chamada primeira idade feudal. São
a fixação de laços de homem para homem, o estabelecimento e valoração dos costumes
e certas regras, a crescente maior precisão do vocabulário político e social das relações
de dependência, a hereditariedade dos feudos e cargos concedidos e a estreita ligação
entre exercício do poder, actividade das armas e posse das terras.

Perto do ano 1000 chega a chamada “feudalidade clássica” 4 . Alguns chamam já


segunda feudalidade, outros a única. Ganshof faz distinção entre esta época e a anterior,
carolíngia, concluindo que são claramente diferentes. O período carolíngio é
extremamente importante, neste caso, na história dos laços de vassalidade5. Também a
evolução das villae romanas através da Alta Idade Média, associando a terra ao colonato
e escravos, facilita a compreender qual a utilidade e que modelos vão os feudos assumir,
concedidos para cimentar e permitir os laços dependência desde os últimos tempos
merovíngios.

Na base deste fenómeno estão sobretudo duas causas que explicam a feudalização
progressiva das relações de dependência. Estão relacionadas nem que seja pelo facto de
uma facilitar o sucesso da outra e vice-versa.

«O feudalismo medieval nasceu no seio de uma época infinitamente perturbada. Em


certa medida, nasceu dessas mesmas perturbações» 6 . A primeira deve-se a factores
externos: as invasões que se dão notadamente entre os séculos VIII e XI, precisamente
abarcando o período destes três documentos em análise. Mantém-se um ambiente
tumultuoso provocado a sul pelos fiéis do islão e povos arabizados. A leste, húngaros e
eslavos penetram ora lentamente ora de forma belicosa e recorrendo a incursões de
saque. A norte, os escandinavos, organizam campanhas sistemáticas de pilhagem desde

3
Ver BOUTRUCHE, Seigneurie et féodalité. Le premier age des liens d´homme à homme, t. 1, pp 161-162
4
Ver FOURQUIN, Senhorio e feudalidade na Idade Média, pp. 45
5
Ver GANSHOF, Que é o feudalismo?, pp. 13-19
6
Cf. BLOCH, A Sociedade Feudal, pp. 20
a actual Inglaterra, seguindo a costa, até ao território itálico. As guerras de fronteiras e a
penetração e saque levados a cabo pelos variados povos invasores revelam a
incapacidade dos reis na defesa dos seus domínios. Surgem então abades, senhores
castelãos, condes ou pequenos chefes que com a sua pequena hoste asseguram uma
pequena jurisdição. Quem defende é quem está no limes. Tornam-se autoridades no seu
território, originando uma fragmentação do poder em que as diferentes partes o
assumem com autorização régia ou não.

A segunda causa reside no deperecimento do Estado, naquilo que Otto Hinze aponta
como principal causa do feudalismo: um “imperialismo” precipitado” na evolução
social da tribo para o Estado. Os francos, ao aparecerem na transição e face ao vácuo de
poder deixado pelo império romano, assumem extemporaneamente um papel imperial,
gérmen do feudalismo de carácter tríplice: militar, político e económico7.

A formação da sociedade vassálica carolíngia foi um fenómeno espontâneo mas foi


essa mesma vassalagem que conduziu à desagregação do império e do Estado
carolíngios. Desde Pepino, o Breve, que é favorecida. Este carolíngio e seus sucessores
favorecem esta evolução social integrando-a no quadro dos organismos de Estado. São
utilizados os laços privados como instrumento de governo8. Essa é a alternativa face a
uma insuficiência e ineficácia dos quadros de estado, à expansão do reino franco sob
Pepino e Carlos Magno, às comunicações medíocres, à impossibilidade de recrutar
pessoal suficiente, competente e seguro, aos recursos da realeza sempre limitados e
irregulares. Só resta agarrarem-se a uma minoria, a aristocracia. Ligando-a a si
dominariam efectivamente o território conseguido. Multiplica-se o número de vassalos
directos do rei com privilégios e benefícios importantes. A estes associam-se vassalos
menores. Também militarmente os exércitos carolíngios formam-se por vassalos e seus
dependentes, aumentando os efectivos e valor das hostes. De referir ainda que em
matéria político-administrativa se integram tanto leigos como clérigos.

A multiplicação dos laços de recomendação e vassalidade, concomitante à


desagregação de todo o edifício centralizador é então produto dos momentos de
partilhas dinásticas, das invasões, clima de insegurança.

7
Cf. FOURQUIN, Senhorio e feudalidade na Idade Média, pp. 21
8
Ver GANSHOF, Que é o feudalismo?, pp. 27-69
Posto esta contextualização e explanação prévia, iniciemos o estudo do documento 11
propriamente dito.

A fonte comum aos três textos aí contidos é a Monumenta Germaniae Historica


(MGH). Esta é uma série ou compilação cuidada de fontes primárias, tanto crónica
como arquivística, para o estudo da história germânica, em sentido lato (Bretanha,
República Checa, Polónia, Áustria, França, Países Baixos…). Abarca temporalmente
desde o fim do império romano até às cercanias do ano 1500. Iniciada nos princípios do
século XIX insere-se na tentativa de revestir a História de um carácter científico. Nasce
no actual território da Alemanha, ao mesmo tempo que se desenvolve o romantismo. É
composta por inúmeros volumes eé um projecto continuado ainda nos dias de hoje.

O texto 1, está identificado com o título “A Recomendação na Época Merovíngia


(Fórmula de Tours, 2º quartel séc. VIII) ”. Podemos desde logo depreender que se trata
de uma fórmula protocolar utilizada no tempo dos últimos reis francos merovíngios. É
retirado de um formulário ou repertório de modelos provenientes de Tours (daí
Formulae Turonenses) onde foram reunidos durante o segundo quartel do século VIII
os actos habituais que serviam de quadros ou modelos aos escribas para a redacção de
documentos oficiais. Este dado (ser uma fórmula) pode ser corroborado pela informação
bibliográfica (apelidado de Formulae Turonenses, inserido nas Formulae Merowingici
et Karolini Aevi da MGH) ou pela abertura do prólogo onde se deixa por preencher o
nome dos intervenientes («Magnífico Senhor X…, eu Y…»).

Observamos que quem se recomenda é claramente um homem miserável, desprovido,


na pobreza: «não tenho com que me alimentar nem vestir». Pediu então auxílio a um
agente mais poderoso ou um senhor, consequentemente.

O preâmbulo relembra um dos mobiles da recomendação ao mesmo tempo que


sublinha a sua natureza e efeitos: um individuo isolado, sem recursos, coloca-se na
dependência de uma personagem a quem promete não abandonar («não terei o poder de
me subtrair ao vosso poder»), podendo exigir, o senhor, dele todos os tipos de serviços,
que se podem exigir à dignidade de um homem livre. Em retorno a sua existência
material é assegurada. Responderia esta relação às necessidades e desejos dos homens
livres. O recomendado serve o seu dominus, senhor, aumentando o seu poder e
influência. É um contrato recíproco. O vassalo escolhe o amo voluntariamente e o amo
recebe-o da mesma forma.
O sustento a dar poderia ser uma concessão por período prolongado de uma terra, ao
beneficiário visto que nesta época, a agricultura é a actividade económica por
excelência.

Diz-nos que quis «poder entregar-me ou encomendar-me ao vosso mundoburdum, o


que eu fiz». Dois conceitos urgem ser explicitados. Em primeiro lugar, a recomendação
ou encomendação. Proveniente do latim commendatio, passa a ser empregue sobretudo
a partir do século IX mas existem antecedentes na expressão se commendare, presente
no latim clássico e depois nas leis bárbaras e crónicas do século VI. Recomendar-se
seria tornar-se no “homem de outros”, cobrir-se com a sua autoridade e comprometer-se
a obedecer ou respeitá-lo. Em segundo lugar, o mundoburdum ou maimbour. Significa
entrar no patrocinato ou protecção de um terceiro. É uma expressão do francês antigo,
apropriada do germânico latinizado mundeburnis/mundium (com o valor de
patrocinium). Representa o acto pelo qual um homem livre entrava no patrocínio de
outro, objectivo da recomendação ou commendatio.

Estipula depois as condições em que se ligou ao seu senhor. Primeiramente a


longevidade da contratualização é repetida ao longo da fórmula. «Enquanto viver»,
«durante toda a minha vida» ou «permanecer todos os dias da minha vida» evidenciam
que termina com a morte do vassalo, mencionado assim expressamente, ficando
implícito que a morte do senhor resultaria igualmente no termo.

Estamos perante um verdadeiro contracto que mostra a existência de uma ligação visto
que este já está amarrado por gestos e palavras, quando se apresenta a fórmula
(preenchida) às duas partes. Não parece ser o documento que institua a recomendação.
Apenas estabelece uma emenda punitiva aos desvios nas obrigações contratuais, exposta
no final9. A referência à relação entre os dois é sempre no passado (por exemplo «roguei
à vossa piedade – e a vossa vontade concedeu-mo»).

Esta dependência criada estabelece direitos e deveres tanto para o senhor como para o
vassalo, mantendo um elevado grau de revogabilidade. Primeiro, só prenderá por uma
vida e não hereditariamente. Depois, está dependente da boa conduta do senhor sujeito a

9
Directamente do texto 1, do documento 11, em anexo, referimo-nos à passagem: «foi estabelecido
que se um de nós quisesse subtrair-se a estas convenções, pagaria ao seu par uma composição de dez
soldos, e que a convenção ficaria em vigor.»
multa pecuniária ou no limite abandono da relação pessoal. Por fim, é afirmado que são
emitidas duas cópias que confirmam a vontade das partes.

Numa consideração final acerca deste texto, permitam-nos assertar dois pontos. A
formação de clientelas na monarquia franca, durante a época merovíngia, está na origem
das instituições “feudovassálicas”. Especialmente entre o Loire e o Reno onde as
clientelas armadas são recorrentes e as ameaças mais presentes. Muitos são os que
teriam necessidade de protecção e vinham pedi-la a alguma poderosa personagem.

As obrigações de ambas as partes são aqui gerais e os seus contratantes parecem poder
ser de condição social variada (desde auxílio económico a militar ou ambas), tendo de
ser homens livres, e portanto ajusta-se a situações muito diferentes.

Os textos 2 e 3, tanto pela sua natureza, como datação e conteúdo devem ser, a nosso
ver, agrupadas para um melhor entendimento do grau de relação de dependência pessoal
que estamos presentes.

O texto 2 trata-se de uma “Capitular do ano 847”, referida em nota de rodapé como
dada por Carlos, o Calvo, em Meersen. O texto 3, “Capitular do ano 869”, é também de
Carlos, o Calvo. Ambas se inserem na Capitularia Regnum Francorum, integrante da
MGH. Para terminar esta introdução da parte externa dos textos resta especificar o
sentido de capitular. São as leis, em capítulos (daí a sua denominação), emanadas das
grandes reuniões de homens livres francos.

Falemos sucintamente das personagens e contexto por detrás destas duas capitulares.
Carlos, o Calvo, a quem são atribuídas, foi neto de Carlos Magno juntamente com os
seus irmãos e co-herdeiros Luís e Lotário. É-lhe incumbida como parte da tripartição
dos domínios deixados por seu pai Luís, o Pio, desde 843, a Francia Occidentalis
(tornando-se seu rei). De 875 até à sua morte em 877 torna-se rei de Itália e imperador
do Sacro Império Romano-Germânico sob o nome de Carlos II. Estes dois textos
inserem-se na luta de poder entre os irmãos pela posse do trono do império unificado. O
primeiro (texto 2), datado de 847, é outorgado no princípio do reinado de Carlos, o
Calvo, num período coexistência mais ou menos pacífica. Insere-se numa série de
acordos entre os irmãos, neste caso específico para a região de Meersen, situada nos
actuais Países Baixos. Do segundo excerto (texto 3) apenas sabemos o seu autor e a data
de 869, ano em que, instigado pela morte do seu sobrinho Lotário II, Carlos vai tentar
apoderar-se desses domínios lotaríngios.

É precisamente durante o reinado de Carlos, o Calvo que o vassalo, na França, cede o


feudo aos seus herdeiros. O reinado de Carlos, o Calvo é «a fase decisiva em que foram
concentrados elementos-chave até então mal reunidos»10. Lembremos que já Pepino, o
Breve e sucessores fomentaram os laços privados numa tentativa de maior eficácia
governativa. Estamos perante aquilo que Ganshof chama de «feudalismo carolíngio»11.

Observa-se então em todo o documento uma verdadeira formalização e


institucionalização das relações de dependência pessoal. Expressões como «queremos
também que cada homem livre no nosso reino possa (…) escolher um senhor, tal como
deseje» ou «da mesma maneira, recomendamos-vos, e a todos os outros nossos fiéis,
que assegureis aos vossos homens (…)» são sintomáticas de um sistema que quer por
forças externas quer pela decisão real impõe a instituição da vassalagem.

Aqui, tal como no texto 3 (onde a ideia subjacente é análoga), notamos uma clara
evolução face ao período anterior, patente no texto 1 (que é do século VIII, final do
ultimo rei merovíngio versus este referente ao mundo do carolíngio Carlos, o Calvo
mais de um século depois). Já não é um homem livre qualquer que se encomenda por
iniciativa própria. É o próprio rei que obriga («Ordenamos») cada um desses homens a
ter um senhor. Estipula que esse laço só poderá ser quebrado por força maior, tal como
manda os senhores assegurar (proteger, defender…) os seus dependentes e «não lhes
façais nada contra a razão». Ressalta ainda, além da repetição desta última expressão
citada que se traduz no desejo de boa-fé na condução da aliança senhor-vassalo, o
constante apelo ao costume. Defende este status quo que pretende impor legitimado e
salvaguardado pela «maneira habitual na época dos nossos predecessores».

No terceiro texto a estudar, como já referido há uma repetição do sentimento e ideias


expressas no seu par (capitular do texto 2). Acrescentemos só que a vontade de criar
uma verdadeira rede ou hierarquia é aqui mais explícita. Também se diferencia por
regular, aqui, apenas a alta nobreza, o alto clero. São contemplados os «nossos bispos,
abades, condes e vassalos».

10
Cf. BOUTRUCHE, Seigneurie et féodalité. Le premier age des liens d´homme à homme, t. 1, pp 161-162
11
Cf. GANSHOF, Que é o feudalismo?, pp. 28
«Desde 880, a França do norte se cobre de fortificações privadas devido aos grandes
senhores eclesiásticos e leigos. A permissão real não é mais solicitada a não ser de
quando em vez»12.

A tradição alicerça de novo as predisposições deste fragmento. Os grandes senhores,


vassalos do rei, são obrigados, nos moldes de uma dependência igualmente de homem
para homem, a ter por sua vez vassalos13. Estabelece-se formalmente uma verdadeira
pirâmide, base de toda a medievalidade vindoura.

Portanto, focando o desenvolvimento das relações de dependência pessoal, podemos, a


partir de meados do século IX, perceber que a encomendação havia originado a
vassalidade. As relações de dependência pessoal enquadram-se numa hierarquia cujo rei
figura no topo. A configuração de emanação do poder é Rei, vassi dominici 14 , seus
vassalos. Um senhor podia ter na sua dependência outros senhores (como provam os
textos 2 e 3), que por sua vez dependiam de um superior hierárquico de quem lhe viera a
concessão. Gera-se assim uma relação pessoal a vários níveis, a qual era comprovada no
momento de cada investidura por uma homenagem (termo usado a partir do séc. XI mas
cujo ritual se filia na commendatio) e um juramento de fidelidade (em prática desde o
século VIII). Na base da mesma escala, os vilãos, colonos e servos trabalham a terra,
cimentando com o seu trabalho, a pirâmide social.

O sustento dos senhores poderá ser na forma de terra, benefício ou feudo. Toda a
hierarquia consequente leva à fragmentação dos direitos de propriedade. Exercem,
assim, em proveito próprio poderes normalmente detidos pelo Estado.

Chegámos, então, à parte final deste exame. O que se segue a estes séculos VIII e IX
que procuramos explicar? Em traços gerais, a partir do século X-XI instala-se o
feudalismo ou a sociedade feudal. Passamos da vassalidade à feudalidade. Como
acertadamente afirma E. Peroy, «a transição entre vassalidade e feudalidade é o
“desfasamento no tempo entre as relações pessoais e o regime de terras»15.

O governo dos homens vai ser regido por uma vassalidade rígida, feudal, estabelecida e
muito clara. O latifúndio tenta ser autárcico e a vida quotidiana procede dele. Os condes

12
Cf. GIORDANI, História do mundo feudal, pp. 111
13
Em conformidade com o excerto do texto 3: «queremos e ordenamos que os vassalos dos nossos
[vassidominici] (…) recebam dos seus respectivos senhores a lei e a justiça»
14
Isto é “vassalos do senhor”, com o significado de vassalos directos do rei.
15
Cf. FOURQUIN, Senhorio e feudalidade na Idade Média, pp. 46
e duques antes representantes, agora são substitutos do monarca. Impõem a sua vontade
(com grande autonomia ou até independência) ao conjunto dos homens livres do
condado ou pagus. Continuam a ser chefes militares e agora os homens livres, em caso
de guerra, servem primeiramente como seus soldados e não do rei.

Refira-se, por fim, que este feudalismo não tem uma única faceta. Varia de acordo com
as regiões, apresentando diferentes tonalidades.

O oeste da actual França e em especial a Alemanha, vêem um desmembramento dos


poderes públicos em pequenos grupos de comando pessoal. A Germânia a leste do
Reno, vê um período de vassalidade depois tornado feudalismo. A unidade de base é a
castelania. No fim do séc. X, a fortuna fundiária carolíngia vê-se reduzida
progressivamente e o seu possuidor é já rei só de nome. Na Francia Occidentalis o
particularismo é menos acentuado que na Alemanha. Nesses estados alemães
desenvolve-se um feudalismo original vindo da resistência das instituições imperiais
carolíngias. No entanto, a França vai conseguir com maior facilidade regressar a uma
unidade centralizadora, que os alemães só conhecerão completamente na segunda
metade de 1800.

No século X, em Itália, o lasso controlo franco leva à emergência de principados, com


força autónoma. Curioso é o caso do papa francês Silvestre II que tenta impor o feudo,
nos estados pontificais.

Mencione-se as chamadas “feudalidades de importação” implantadas na Inglaterra e


nos estados latinos no Oriente para onde os conquistadores francos ou normandos
levaram a sua maneira de sistema feudal. Falando da Inglaterra, antes de 1066, somos
levados a crer que os anglo-saxónicos e anglo-dinamarquesas tinham relações pessoais,
mas nem tão difundidos nem formais como os carolíngios. A batalha de Hastings nesse
ano, não marcara a ruptura completa. Guilherme impõe de cima para baixo um sistema
feudovassálico. Os anglo-normandos vêem o feudalismo não como adversário mas
como aliado do poder régio.

Na Europa meridional, leia-se Espanha, França a sul do Loire, Portugal, o senhorio é a


marca mais que o feudalismo (na sua verdadeira significação).

A recomendação evolui para o ritual da homenagem. Faz-se então o juramento sobre


relíquias ou um corpo santo. Os deveres recíprocos evoluem para um peso da ajuda
militar que passa a justificar per si o feudo. Cada vez mais a concessão do feudo, bens
fundiários, domínios rurais, porções de terra ou funções, cargos administrativos, rendas
até, tornam-se condição necessária da vassalagem. O termo feudo passa a substituir o
beneficio. Logo, observamos que os laços de solidariedade enfraquecem pelo
estabelecimento de um vassalo numa terra. Rompem-se os estreitos laços e o feudo
passa a ser visto como hereditário e propriedade da estirpe que o detém.

REFERENCIAÇÃO BIBLIOGRÁFICA

FONTES:

Formulae Turonenses, nº 43, em Monumenta Germaniae Historica, Formulae


Merowingici et Karolini Aevi, ed. ZEUMER, 1ª parte, 1882, p. 158, traduzido pela
docente a partir da versão francesa de R. BOUTRUCHE, Signeurie et Feodalité, vol. I,
Paris, Aubier, 1959, pp. 363-364

Capitularia Regnum Francorum, em Monumenta Germaniae Historica, ed. A.


BORETIUS e V. KRAUSE, t. II, Hannover, 1883-1897, pp. 71 e 337, traduzido por
Fernanda ESPINOSA, Antologia de Textos Históricos Medievais, 1ª ed., Lisboa, 1972,
pp. 171-172

BIBLIOGRAFIA GERAL:

BLOCH, Marc, A Sociedade Feudal, Lisboa, Ed. 70, 1982.

BOUTRUCHE, Robert, Seigneurie etféodalité, t. 1 – Le premier age des liens


d´homme à homme, Paris, Aubier, 1959. pp. 12-20; 161-198

FOSSIER, Robert, Enfance de l´europe: aspects économiquesetsociaux, Paris,


PUF, 1982.

FOURQUIN, Guy. Senhorio e Feudalidade na Idade Média, edições 70, 1970.


pp. 11-156
GANSHOF, F.-L., Que é o feudalismo?, publicações Europa América, 4ª ed,
1976

BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA:

GALASSO, G., Poder e Instituições em Itália. Desde a queda do Império


Romano aos dias de hoje: “Os francos e o feudalismo”. Livraria Bertrand, 1984. pp. 34-
42

GIORDANI, Mário Curtis, História do Mundo Feudal, t. 1, 2ª edição, 1984.pp.


110-122

TREVELYAN, G., História da Inglaterra, t. 1, Lisboa, 1945, edições Cosmos,


tradução de Vitorino Magalhães Godinho. pp. 107-144
O DESENVOLVIMENTO DAS RELAÇÕES DE DEPENDÊNCIA PESSOAL

1 – A RECOMENDAÇÃO NA ÉPOCA MEROVÍNGIA (FÓRMULA DE TOURS, 2º QUARTEL SÉC. VIII)


Magnífico senhor X..., eu Y.... Sabido que é por todos que não tenho com que me
alimentar nem vestir, roguei à vossa piedade - e a vossa vontade concedeu-mo - poder
entregar-me ou encomendar-me ao vosso mundoburdum., o que eu fiz nas seguintes
condições. Deveis ajudar-me e manter-me, tanto no que toca à comida como ao vestuário,
na medida em que poderei servir-vos e merecê-lo. Enquanto viver, dever-vos-ei o serviço e
a obediência que se podem esperar de um homem livre; e, durante toda a minha vida, não
terei o poder de me subtrair ao vosso poder ou mundoburdum, mas deverei, pelo contrário,
permanecer todos os dias da minha vida sob o vosso poderio e protecção. Em consequência,
foi estabelecido que se um de nós quisesse subtrair-se a estas convenções, pagaria ao seu
par uma composição de dez soldos, e que a convenção ficaria em vigor. Também foi
estabelecido que, deste acto, seriam redigidas duas cartas de mesmo teor, confirmadas
pelas partes, o que elas fizeram.
(Formulae Turonenses, nº43, em Monumenta Germaniae Historica, Formulae Merowingici et
Karolini Aevi, ed. ZEUMER, 1ª parte, 1882, p. 158, traduzido pela docente a partir da versão
francesa de R. BOUTRUCHE, Seigneurie et Féodalité, vol. I, Paris, Aubier, 1959, pp. 363-364).

2 - CAPITULAR DO ANO 8471.


[...]
Queremos também que cada homem livre no nosso reino possa, de entre nós2 ou
de entre os nossos fiéis, escolher um senhor, tal como o deseje.
Ordenamos também que nenhum homem possa deixar o seu senhor sem uma
causa justa e que ninguém o receba, salvo da maneira habitual na época dos nossos
predecessores.
E sabei que queremos assegurar aos nossos fiéis o seu direito e não queremos fazer-
lhes nada contra a razão. Da mesma maneira, recomendamo-vos, e a todos os outros nossos
fiéis, que assegureis aos vossos homens o seu direito e não lhes façais nada contra a
razão.[...]

1 Dada por Carlos o Calvo em Meerssen.


2 Referência a Lotário, Luis e Carlos.
3 - CAPITULAR DO ANO 8693.
[...]
Conservaremos aos nossos fiéis a sua lei e justiça, tal como foram aplicadas aos seus
predecessores no tempo dos nossos predecessores; e queremos e ordenamos que os
vassalos dos nossos bispos, abades, abadessas, condes e vassalos recebam dos seus
respectivos senhores a lei e a justiça tal como foram aplicadas aos seus predecessores pelos
seus senhores, no tempo dos próprios predecessores.
[...]
(Capitularia Regnum Francorum, em Monumenta Germaniae Historica, ed. A. BORETIUS e V.
KRAUSE, t. II, Hannover, 1883-1897, pp. 71 e 337, traduzido por Fernanda ESPINOSA,
Antologia de Textos Históricos Medievais, 1ª ed., Lisboa, 1972, pp. 171-172)

BIBLIOGRAFIA:

BLOCH, Marc, A Sociedade Feudal, Lisboa, Ed. 70, 1982.

BOUTRUCHE, Robert, Seigneurie et féodalité, t. 1 – Le premier âge des liens d’homme à


homme, Paris, Aubier, 1959.

FOSSIER, Robert, Enfance de l’Europe: aspects économiques et sociaux, Paris, PUF, 1982.

3 Também de Carlos o Calvo.

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