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Comentário textual
Documento 11 – O desenvolvimento
das Relações de Dependência Pessoal
Realizado por:
O documento 11 alista excertos dos séculos VIII a IX, uma época em que se regista um
gradual desenvolvimento das relações de dependência pessoal. Não será ainda um
feudalismo, na sua verdadeira e total acepção, gerando-se portanto algum debate na sua
compartimentação dentro do fenómeno feudal. Assim, alguns autores optam por falar
num primeiro feudalismo. O termo pode assumir, para os medievalistas, dois sentidos: o
tipo de sociedade centrada no feudo, organizada pela particularidade das relações entre
homens, abrangendo todas as esferas da vida (socioeconómica) ou apenas as relações
estabelecidas entre homens, isto é, estritamente, os laços de dependência e
hierarquização (jurídica). Marc Bloch afirma que o feudo/senhorio rural não é
articulação mas a chave do sistema; dos rendimentos do senhorio vive toda a sociedade
feudal1. F.-L. Ganshof declara que o feudalismo é, senão a trave mestra, pelo menos o
elemento mais saliente na hierarquia dos direitos sobre a terra (que a sociedade feudal
comporta); Georges Duby observa que o feudo é apenas uma das articulações do
sistema feudal2.
1
Ver BLOCH, A Sociedade Feudal, pp. 60
2
Ver FOURQUIN, Senhorio e feudalidade na Idade Média, pp. 63 e seguintes
socialmente. A política das relações de subordinação pessoal de homem para homem
faz desaparecer o conceito público da esfera do político assumindo, então, raízes
privadas e patrimoniais (a commendatio e o feudo), o que origina a fragmentação do
poder e sua estratificação compartimentada3. Desenvolve-se aqui o que será uma classe
de senhores, cavaleiros dedicados à guerra e defesa, mantidas pela massa de
camponeses, livres ou servos por meio de tributos ou do cultivo directo do feudo.
Enumeremos as tendências que se vão afirmar na chamada primeira idade feudal. São
a fixação de laços de homem para homem, o estabelecimento e valoração dos costumes
e certas regras, a crescente maior precisão do vocabulário político e social das relações
de dependência, a hereditariedade dos feudos e cargos concedidos e a estreita ligação
entre exercício do poder, actividade das armas e posse das terras.
Na base deste fenómeno estão sobretudo duas causas que explicam a feudalização
progressiva das relações de dependência. Estão relacionadas nem que seja pelo facto de
uma facilitar o sucesso da outra e vice-versa.
3
Ver BOUTRUCHE, Seigneurie et féodalité. Le premier age des liens d´homme à homme, t. 1, pp 161-162
4
Ver FOURQUIN, Senhorio e feudalidade na Idade Média, pp. 45
5
Ver GANSHOF, Que é o feudalismo?, pp. 13-19
6
Cf. BLOCH, A Sociedade Feudal, pp. 20
a actual Inglaterra, seguindo a costa, até ao território itálico. As guerras de fronteiras e a
penetração e saque levados a cabo pelos variados povos invasores revelam a
incapacidade dos reis na defesa dos seus domínios. Surgem então abades, senhores
castelãos, condes ou pequenos chefes que com a sua pequena hoste asseguram uma
pequena jurisdição. Quem defende é quem está no limes. Tornam-se autoridades no seu
território, originando uma fragmentação do poder em que as diferentes partes o
assumem com autorização régia ou não.
A segunda causa reside no deperecimento do Estado, naquilo que Otto Hinze aponta
como principal causa do feudalismo: um “imperialismo” precipitado” na evolução
social da tribo para o Estado. Os francos, ao aparecerem na transição e face ao vácuo de
poder deixado pelo império romano, assumem extemporaneamente um papel imperial,
gérmen do feudalismo de carácter tríplice: militar, político e económico7.
7
Cf. FOURQUIN, Senhorio e feudalidade na Idade Média, pp. 21
8
Ver GANSHOF, Que é o feudalismo?, pp. 27-69
Posto esta contextualização e explanação prévia, iniciemos o estudo do documento 11
propriamente dito.
Estamos perante um verdadeiro contracto que mostra a existência de uma ligação visto
que este já está amarrado por gestos e palavras, quando se apresenta a fórmula
(preenchida) às duas partes. Não parece ser o documento que institua a recomendação.
Apenas estabelece uma emenda punitiva aos desvios nas obrigações contratuais, exposta
no final9. A referência à relação entre os dois é sempre no passado (por exemplo «roguei
à vossa piedade – e a vossa vontade concedeu-mo»).
Esta dependência criada estabelece direitos e deveres tanto para o senhor como para o
vassalo, mantendo um elevado grau de revogabilidade. Primeiro, só prenderá por uma
vida e não hereditariamente. Depois, está dependente da boa conduta do senhor sujeito a
9
Directamente do texto 1, do documento 11, em anexo, referimo-nos à passagem: «foi estabelecido
que se um de nós quisesse subtrair-se a estas convenções, pagaria ao seu par uma composição de dez
soldos, e que a convenção ficaria em vigor.»
multa pecuniária ou no limite abandono da relação pessoal. Por fim, é afirmado que são
emitidas duas cópias que confirmam a vontade das partes.
Numa consideração final acerca deste texto, permitam-nos assertar dois pontos. A
formação de clientelas na monarquia franca, durante a época merovíngia, está na origem
das instituições “feudovassálicas”. Especialmente entre o Loire e o Reno onde as
clientelas armadas são recorrentes e as ameaças mais presentes. Muitos são os que
teriam necessidade de protecção e vinham pedi-la a alguma poderosa personagem.
As obrigações de ambas as partes são aqui gerais e os seus contratantes parecem poder
ser de condição social variada (desde auxílio económico a militar ou ambas), tendo de
ser homens livres, e portanto ajusta-se a situações muito diferentes.
Os textos 2 e 3, tanto pela sua natureza, como datação e conteúdo devem ser, a nosso
ver, agrupadas para um melhor entendimento do grau de relação de dependência pessoal
que estamos presentes.
O texto 2 trata-se de uma “Capitular do ano 847”, referida em nota de rodapé como
dada por Carlos, o Calvo, em Meersen. O texto 3, “Capitular do ano 869”, é também de
Carlos, o Calvo. Ambas se inserem na Capitularia Regnum Francorum, integrante da
MGH. Para terminar esta introdução da parte externa dos textos resta especificar o
sentido de capitular. São as leis, em capítulos (daí a sua denominação), emanadas das
grandes reuniões de homens livres francos.
Falemos sucintamente das personagens e contexto por detrás destas duas capitulares.
Carlos, o Calvo, a quem são atribuídas, foi neto de Carlos Magno juntamente com os
seus irmãos e co-herdeiros Luís e Lotário. É-lhe incumbida como parte da tripartição
dos domínios deixados por seu pai Luís, o Pio, desde 843, a Francia Occidentalis
(tornando-se seu rei). De 875 até à sua morte em 877 torna-se rei de Itália e imperador
do Sacro Império Romano-Germânico sob o nome de Carlos II. Estes dois textos
inserem-se na luta de poder entre os irmãos pela posse do trono do império unificado. O
primeiro (texto 2), datado de 847, é outorgado no princípio do reinado de Carlos, o
Calvo, num período coexistência mais ou menos pacífica. Insere-se numa série de
acordos entre os irmãos, neste caso específico para a região de Meersen, situada nos
actuais Países Baixos. Do segundo excerto (texto 3) apenas sabemos o seu autor e a data
de 869, ano em que, instigado pela morte do seu sobrinho Lotário II, Carlos vai tentar
apoderar-se desses domínios lotaríngios.
Aqui, tal como no texto 3 (onde a ideia subjacente é análoga), notamos uma clara
evolução face ao período anterior, patente no texto 1 (que é do século VIII, final do
ultimo rei merovíngio versus este referente ao mundo do carolíngio Carlos, o Calvo
mais de um século depois). Já não é um homem livre qualquer que se encomenda por
iniciativa própria. É o próprio rei que obriga («Ordenamos») cada um desses homens a
ter um senhor. Estipula que esse laço só poderá ser quebrado por força maior, tal como
manda os senhores assegurar (proteger, defender…) os seus dependentes e «não lhes
façais nada contra a razão». Ressalta ainda, além da repetição desta última expressão
citada que se traduz no desejo de boa-fé na condução da aliança senhor-vassalo, o
constante apelo ao costume. Defende este status quo que pretende impor legitimado e
salvaguardado pela «maneira habitual na época dos nossos predecessores».
10
Cf. BOUTRUCHE, Seigneurie et féodalité. Le premier age des liens d´homme à homme, t. 1, pp 161-162
11
Cf. GANSHOF, Que é o feudalismo?, pp. 28
«Desde 880, a França do norte se cobre de fortificações privadas devido aos grandes
senhores eclesiásticos e leigos. A permissão real não é mais solicitada a não ser de
quando em vez»12.
O sustento dos senhores poderá ser na forma de terra, benefício ou feudo. Toda a
hierarquia consequente leva à fragmentação dos direitos de propriedade. Exercem,
assim, em proveito próprio poderes normalmente detidos pelo Estado.
Chegámos, então, à parte final deste exame. O que se segue a estes séculos VIII e IX
que procuramos explicar? Em traços gerais, a partir do século X-XI instala-se o
feudalismo ou a sociedade feudal. Passamos da vassalidade à feudalidade. Como
acertadamente afirma E. Peroy, «a transição entre vassalidade e feudalidade é o
“desfasamento no tempo entre as relações pessoais e o regime de terras»15.
O governo dos homens vai ser regido por uma vassalidade rígida, feudal, estabelecida e
muito clara. O latifúndio tenta ser autárcico e a vida quotidiana procede dele. Os condes
12
Cf. GIORDANI, História do mundo feudal, pp. 111
13
Em conformidade com o excerto do texto 3: «queremos e ordenamos que os vassalos dos nossos
[vassidominici] (…) recebam dos seus respectivos senhores a lei e a justiça»
14
Isto é “vassalos do senhor”, com o significado de vassalos directos do rei.
15
Cf. FOURQUIN, Senhorio e feudalidade na Idade Média, pp. 46
e duques antes representantes, agora são substitutos do monarca. Impõem a sua vontade
(com grande autonomia ou até independência) ao conjunto dos homens livres do
condado ou pagus. Continuam a ser chefes militares e agora os homens livres, em caso
de guerra, servem primeiramente como seus soldados e não do rei.
Refira-se, por fim, que este feudalismo não tem uma única faceta. Varia de acordo com
as regiões, apresentando diferentes tonalidades.
REFERENCIAÇÃO BIBLIOGRÁFICA
FONTES:
BIBLIOGRAFIA GERAL:
BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA:
BIBLIOGRAFIA:
FOSSIER, Robert, Enfance de l’Europe: aspects économiques et sociaux, Paris, PUF, 1982.