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Culturas tradicionais: o que florescem e o que esmagam

Não é raro se referir à nobreza da presença negra ressaltando seu teor


comunitário e isso diz muito em tempos de exaltação ao individualismo. Há
várias apreciações, e até idealizações, sobre as chamadas “culturas
tradicionais” de fonte africana no Brasil. Coletividades que pulsam políticas e
estéticas, compondo lugares e formas propícias ao ninho e às lutas - por vezes
contundentes e, noutros momentos, gingadoras -, arrodeando caminhos em
vez de atalhar cortes em conflitos abertos. Porém, além de frisar a criatividade
que renova com fundamento, estremece certezas e lida com escamas
costumeiras, quais seriam as tradições que, por outro lado, nos esfaqueiam o
pensamento e ofendem o corpo? Quais seriam as linhas tão arraigadas, e
mesmo oficializadas, dessa tecelagem que emoldura e recheia o racismo por
nossas terras? Ou seja, se já destacamos e tanto se debate a fortaleza e o
balanço dos elementos que qualificariam e estruturariam uma “negritude”, até
mesmo balizando diferenças entre si, o que caracterizaria historicamente uma
“branquitude”? Como podemos compreender seus fatores no campo
psicológico, geográfico, econômico, filosófico e histórico? Pois, se as culturas
negras giram dentro (e ao mesmo tempo à margem) de sistemas regionais e de
um tabuleiro nacional de ideias e forças que visam dominar, definhar ou
arrefecer gente negra, não seria também tradicional a cultura do racismo?
Quais pilares engenharam-se através de cinco séculos na modelagem dessa
branquitude que, escancarada ou aparentemente branda, se aloja nos âmbitos
de poder, seja no graúdo dos palacetes, edifícios empresariais e quartéis ou no
miúdo das vielas e beiras de córrego?

Por um instante então não apenas louvaremos a boniteza, a galhardia e


a inventividade negra, mas refletiremos sobre o pano de fundo, as paredes da
casa e os traçados do mapa que delineiam e metem cor, mesmo que cinza-
chumbo ou pálida, no sufoco de um país em que 90% das pessoas dizem
haver racismo, mas também são 90% as que afirmam não serem racistas.
Nesse curto espaço, orna-se ao trazer apenas gotas dessa bacia, vislumbres
dessa lâmina que tanto escalpela como corta rente e sutil, tão recorrente que
passa despercebida para muitos, mas firma pilares e veredas negras.
Conceituamos como se estruturam algumas vertentes tradicionais - e
letais - da branquitude: perceber-se como “universal” e não como pessoas
também racializadas, numa sociedade que distribui oportunidades e condições
pela corporeidade e proveniência de seus indivíduos; forjar alianças intrar-
raciais pela negação, mudez e manutenção de hierarquias diante do racismo
excludente (o chamado pacto narcísico); defesas da retorção discursiva que
carimba a pecha de racista em quem denuncia o racismo; organização de um
imaginário regido por símbolos de dominação ou de tutela benevolente;
aspectos de perversão, pânico e terror mental cultivados em esquemas
cognitivos e educacionais que deformam mentalmente seres moldados desde a
infância a exercer superioridade e desprezo; crises de uma identidade
fascinada pelo “outro”, ao catalogar, controlar ou mercantilizar esse “outro” e
suas faces, consumindo de modo efêmero ou duradouro o que pinta como
“exótico” - ao desfrute de seu olhar ou de seu tecnocapital; projeções de
hipersexualização, brutalidade e incapacidade atribuídas às pessoas pretas;
autorização de uma visão parcial que define pelos comportamentos de uma
pessoa negra o que seria próprio de toda sua comunidade; definições e
jurisprudências de validades distintas para lugares e pessoas diferentes (como
as metrópoles faziam com suas colônias e hoje os centros poderosos fazem
com as periferias e morros) determinando quais vidas menos valem e quais
decisões são tomadas por viaturas e tribunais, de acordo com o fenótipo e o
CEP dos sujeitos em questão; racionalização que dita lógicas de estado de
exceção e de sítio a espaços de destacada população não-branca;
normalização de poderes médicos e discursos que estabelecem noções de
patologia social desembocando em práticas de “higienização” e
encarceramento.

Desse modo, a consciência negra também marcou em sua peleja


movimentos que, em laboratórios científicos, páginas de bibliotecas, versos e
orikis de terreiro ou adivinhas de encruzilhada, elaboraram reflexões profundas
e dúvidas férteis sobre o racismo brasileiro. Isso se destaca na busca de
consciências libertas e subjetividades livres que abordem suas cicatrizes e
mutilações, dediquem-se a pensar os espelhos trincados e as minas explosivas
dos caminhos, porém também tocam cultivos ancestrais e oferecem golaços
em uma sociedade que demonstra salivar por masmorras ou quartinhos de
empregada para nós. Se há resistência e celebramos a anunciação, a
sensibilidade e a sapiência negra, é porque isso se confronta com aspectos
sólidos plantados neste chão e que ainda frutificam seus arames farpados e
flores de sangue.

Mestras em dilemas pesados, as culturas negras brasileiras e suas


africanias entrelaçadas ao lado de cá da grande kalunga1, ou oceano Atlântico
(maior cemitério de morte física e social da história da humanidade, devido ao
infame tráfico escravista que ainda nos sequela), lidam com o
hiperencarceramento que já comprovamos ser um plano macro-gerencial de
estado diante do avassalador miserê e da escassez de políticas públicas; com
o empilhamento de nossos jovens em cemitérios e estatísticas medonhas; com
salários desiguais, escolaridade rala e o coração em permanente alerta para
escarros, depreciações, acusações e mesmo fuzis corriqueiros que disparam
em nossa nuca sob a alegação de que a câmera fotográfica, o caderno ou o
guarda-chuva em nossas mãos parecia ser uma arma.

Bordamos contestações às fronteiras, emblemas e troféus nacionais, e


atravessamos limites para as linguagens nas artes, sejam as plásticas, as da
palavra ou do corpo, que pulsam quando atentamos ao manancial de nossas
matrizes antigas, ainda tão estereotipadas, vampirizadas e folclorizadas.
Celebramos também a teimosia de esmiuçar por dentro muitos conceitos e
práticas do urbanismo, do direito e da educação, tão tramados sobre nossos
cangotes para nos fixarem como o avesso da tal humanidade evoluída e
bela; ou como portadores de tal “estágio cultural” a superar. Concebemos
também as possibilidades de viver o tempo para além da primazia de uma linha
única que nos direcione apenas ao futuro e imponha a novidade como valor
absoluto, pois lidamos com temporalidades que cultivam o princípio da
ancestralidade e as várias dimensões temporais da memória, dos traumas e
dos sonhos, desde suas formas difusas até as mais objetivas. Essas gingas do

1
“Kalunga é um grande rio que se pode percorrer com os olhos, mas não com as pernas.”
Fórmula de adivinhação entre os povos Bampanga do Congo. Cf. Lienhard, 1998, p.46.
pensamento, por necessidade e gosto, também são legados de cultura negra.
Estão aí no construir e no retinir de um berimbau, na botânica de um terreiro e
nos improváveis doutorados pretos trincando chicotes disfarçados em
currículos e cartilhas escolares.

Por isso, também celebremos mocambos, comemoremos a dignidade, a


vitalidade e a memória salobra que insiste em ajardinar no lodo, escrevendo
nossas contradições, filosofando nossos enigmas e cantando nossas matrizes.
Seguimos com os dedos trançados de mãos que se negam a serem decepadas
e que, apesar dos bueiros mentais e das valas da mortandade, pontearam
glórias nas artes, nas ciências e no cotidiano umedecido de sonhos. 

***
Allan da Rosa é escritor de ficção e educador popular. Angoleiro, historiador,
mestre e doutorando em Educação pela USP. Autor de “Pedagoginga,
Autonomia e Mocambagem”, “Zumbi Assombra Quem?” e “Reza de Mãe”,
entre outros livros.

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