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Pedra Escrita é um marco da resistência

Kindala Manuel | Calulo


9 de Junho, 2016

Fotografia: Kindala Manuel


A ocupação e dominação colonial do município de Libolo,
província do Cuanza Sul, ficou marcada pelas guerras de
resistências impostas pelo povo local às tropas
portuguesas, entre 1917 a 1932, numa zona conhecida
como “Pedra Escrita”, localizada no bairro Dala Uso.
O lugar, cercado de árvores e pedras enormes, era usado como esconderijo pelos nativos e
para combater os soldados portugueses que vinham de Massangano, Cuanza Norte, via
Munenga, para reforçar o contingente armado estacionado na Fortaleza de Calulo. 
No final da guerra de resistência, em reconhecimento aos soldados portugueses tombados no
local, a administração portuguesa gravou numa das pedras uma homenagem que simboliza o
acontecimento de 1917 a 1932: “1917 a 1932, homenagem aos combatentes portugueses da
resistência à ocupação”.
A população da região diz que o local deve ser elevado a categoria de Sítio Histórico de
Resistência do povo contra a ocupação colonial, em honra aos combatentes tombados.
O soba-geral do município do Libolo, Paulo Varanda, de 81 anos,  participou nas  guerras de
resistência ao colonialismo e da Independência Nacional,  no município. A  autoridade
tradicional quer eternizar a heróica resistência dos  combatentes, por isso todos os sobas e
pessoas mais velhas são orientados a transmitirem a história de forma oral à nova geração. 
Paulo Varanda explica que quando os portugueses chegaram a Calulo, auxiliados pelos
missionários católicos, entre os anos de 1890 e 1900, apareceram com uma política amistosa
para ajudar a população, entrando em contacto com os moradores   do monte, onde
actualmente existe    a fortaleza de Calulo.
Nos primeiros anos, os portugueses pediam  à população suplementos alimentares. Mais tarde
o pedido   passou a ser uma obrigação para cada soba do bairro abastecer com comida os
portugueses. De acordo com o soba-geral do Libolo, este motivo provocou entre 1912 e 1914 a
primeira guerra de resistência, na qual o povo exigia a retirada dos portugueses das suas
terras. Esta acção foi prontamente reprimida pelos portugueses devido à desorganização de
alguns sobas.
Enquanto durava a pequena paz entre 1914 e 1916, os portugueses  reforçaram-se com
material de guerra e homens. Em 1917, o regime colonial estabeleceu um estado de repressão
e pagamento obrigatório de impostos e de trabalho forçado. Com isso, os sobas de Calulo,
Mussende, Dambos, Quissongo, Mukongo e Cabuta  uniram-se na defesa da sua terra, no
ponto da Pedra Escrita, local de combate aos portugueses estacionados na então fortaleza
militar portuguesa em Calulo. “A partir daí, começou a segunda guerra de resistência de Calulo,
de 1917 a 1932”, explica o soba.
O povo, disse, usava  como material de guerra pedras, canhangulos, zagaias e um tipo de
arma de fabrico artesanal chamado “quiputula”, formada simplesmente de um cano. Na falta de
munições e pólvora, o povo fabricava  artesanalmente o material, usando pedaços de ferro,
vidro, casca e raízes de árvore, fósforo, enxofre e salitre.

Reabilitação
 
A zona da Pedra Escrita, com quase 200 metros de extensão, está cercada de arbustos,
rochas e árvores centenárias e ainda conserva um pequeno troço da estrada que ligava o
município. A falta de conservação do espaço e da pedra gravada é visível. Para a reportagem
do Jornal de Angola ter acesso ao local, a Administração Municipal teve de mandar cortar o
capim e os arbustos que cercam a entrada e o local.
A escrita na pedra é quase ilegível. Lê-se com dificuldades devido ao verde da seiva das
árvores que caem sobre a “ Pedra Escrita”. Durante a visita guiada ao local, Contreiras
Canhanga Muhongo, representante municipal da Cultura de Calulo, explicou que os mais-
velhos contam que,  além dos utensílios de guerra utilizados, a bravura dos combatentes
esteve também baseada na tradição. 
Contreiras Canhanga Muhongo informou que no dia da emboscada, perfilava em frente do
grupo de combatentes a esposa do soba de Quissongo (na altura uma região famosa em
práticas de feiticismo), chamada  Mubanda, mas que no período de guerra recebia o nome de
“Rainha de Guerra” que transportava um balaio à cabeça, com a função de absorver e
neutralizar as balas dos invasores durante o combate.
“Os mais-velhos contam que antes de irem para o combate, os nativos usavam rituais
tradicionais de preparo do corpo, que servia de protecção contra os tiros disparados pelos
portugueses, acompanhado de um decreto obrigatório de abstinência total de actos conjugais e
de consumo de certos alimentos. E antes de emboscarem os invasores, um vidente ou adivinho
fazia a antevisão ou adivinhação do dia dos ataques”, explicou. 

Traição dita derrota 

O representante da Cultura conta que a grande baixa em combate da parte dos portugueses se
regista num dos confrontos que levou à captura de um capitão e do seu pelotão. Com esta
derrota, a tropa portuguesa implementa uma investigação para saber a causa das sucessivas
derrotas diante do povo que até aí estava  fragilizado do ponto de vista do material de guerra.
Para tal, infiltraram no seio dos combatentes um grupo de pessoas vindas do Huambo e Bié, os
“Candimbas”, a quem os portugueses prometeram oferecer   terras na região do Mukongo. 
Os “Candimbas”, subtilmente, ofereceram-se como voluntários para a resistência contra os
colonos, integrando-se nas fileiras do povo de Calulo até descobrirem os segredos e as tácticas
e, a partir daí provocaram conflitos internos no seio dos combatentes. A acção dos
"Candimbas" foi uma das causas que ajudou os portugueses a desferirem mortíferos ataques
entre 1930 e 1932, ditando assim a derrota e morte de muitas pessoas.
Vencida a guerra, explicou, os portugueses retaliaram a atitude da população com a morte dos
sobas que estiveram ligados à resistência e a partir desta data começa o tráfico de escravos na
região. 
As autoridades municipais estão a trabalhar num projecto para a divulgação da zona da “Pedra
Escrita”, um sítio histórico de interesse turístico, assim como vários outros lugares existente na
região como o Miradouro da Fazenda Cabuta, Forte do Quissongo, Margem do Rio Kwanza na
ponte Filomena, barragem da Fazenda Belo Horizonte e o monte Quiria Matoge. 
O estado de degradação em que se encontram os vários lugares considerados sagrados e
históricos como túmulos, muros de pedras, instrumentos que identificam os usos e costumes
dos antepassados, vandalizados pelos caçadores furtivos,     preocupa as autoridades locais. 
No dia 13 de Junho realizam-se as festas da cidade,  Festi-Calulo,   seguidas de peregrinação
à capela de Nossa Senhora de Fátima de Calulo. O titular da Cultura informou  que no Fest-
Calulo deste ano, o seu sector prevê organizar, pela primeira vez, a feira do artesanato, para
mostrar algumas peças de artesanato produzido na região.
O administrador municipal informou que a administração portuguesa instituiu oficialmente a vila
de Calulo no dia 31 de Janeiro de 1900. O 13 de Junho  é uma data religiosa, dedicada a Santo
António, padroeiro do Libolo e não corresponde ao dia da fundação instituído pela
administração portuguesa.
Com vista a contextualizar a data, o administrador municipal de Calulo informou que foi
encontrada a data instituída pela administração colonial, no dia 31 de Janeiro de 1900, como  a
ideal para os dias actuais mas ainda carece de consenso dos vários sectores que congregam a
sociedade calulense, para depois se estabelecer uma data certa.
O administrador do município do Libolo, Luís Mariano Lopes Carneiro, disse que a
Administração tem em carteira um projecto que visa requalificar   os vários sítios de atracção
turística da região, de que faz parte a zona da “Pedra Escrita”.  
“A Pedra Escrita faz parte de um projecto integrado com a Fortaleza de Calulo. Estamos a
trabalhar para valorizar o local, em homenagem aos nativos tombados na resistência contra o
colonialista português”, disse Luís Mariano Lopes Carneiro.

Dados geográficos
  
Libolo é um município da província do Cuanza Sul e a sua sede é a vila do Calulo. Tem 9.000
quilómetros quadrados e cerca de 89 mil habitantes, de acordo com dados do Censo de 2014. 
É limitado a norte pelos municípios de Cambambe e Cacuso, a este pelo município de
Mussende, a sul pelo município da Quibala, e a oeste pelo município da Quiçama. É constituído
pelas comunas de Calulo, Cabuta, Munenga e Quissongo. Está localizado a 268 quilómetros da
sede capital de província, Sumbe, e a 285 quilómetros da capital do pais. 

Uma fortaleza com dois séculos de história

Fortaleza de Calulo, situada no centro da vida sede, foi construída entre 1893 a 1894  pelos
conquistadores portugueses e servia para auxiliar no avanço das conquistas militares contra os
povos da região e facilitar o comércio de escravos. 
A sua edificação teve a participação   do trabalho forçado da população que levou à morte de
muitas pessoas que eram obrigadas a carregar as pedras para a edificação do muro do forte
em balaios à cabeça. 
Os primeiros habitantes da região habitavam em zonas montanhosas, entre elas o bairro
Luculo que se situava no cimo da montanha onde actualmente está localizada a Fortaleza de
Calulo. Nos primeiros contactos com a população, após a tomada da zona, os portugueses,
com dificuldade para pronunciarem o nome “Luculo”, entenderam chamar o bairro   de “Calulo”.
Libolo, é proveniente de “Lubulo”, nome do antigo soba de Calulo, Ngana Lubulo, oriundo da
Quiçama. 
Construída no centro da vila e próximo da residência oficial do administrador colonial do
município, a fortaleza é considerada  importante monumento de arquitectura militar que
continua a receber o tratamento que lhe confere no contexto nacional o símbolo do património
cultural angolano, dada a sua dimensão histórica.

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