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Revista de Estudos Politécnicos

Polytechnical Studies Review ISSN: 1645-9911


2010, Vol VIII, nº 13, 007-018

O Princípio da sustentabilidade como Princípio


estruturante do Direito Constitucional
José Joaquim Gomes Canotilho

I. Referências normativas

1. O princípio da sustentabilidade recebe uma consagração expressa no texto


constitucional português. É configurado (i) como tarefa fundamental no artigo 9.º/e
(“defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar o
correcto ordenamento do território”); (ii) como princípio fundamental da
organização económica no artigo 80.º/d (“Propriedade pública dos recursos
naturais…”); (iii) como incumbência prioritária do Estado nos artigos 81.º/a
(“…promover o aumento do bem-estar social (…) no quadro de uma estratégia de
uma estratégia de desenvolvimento sustentável”), 81.º/m (“Adoptar uma política
nacional de energia (…) com preservação dos recursos naturais e equilíbrio
ecológico”) e 81.º/n (“Adoptar uma política nacional da água, com aproveitamento,
planeamento e gestão racional dos recursos hídricos”); (iiii) como direito
fundamental no artigo 66.º/1 (“Todos têm o direito a um ambiente de vida humano,
sadio e ecologicamente equilibrado”); (iiiii) como dever jusfundamental do Estado
e dos cidadãos, no artigo 66.º/2 (“Para assegurar o direito ao ambiente, no quadro
de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado, por meio de organismos
próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos…”); (iiiiii) como
princípio vector e integrador de políticas públicas no artigo 66.º/2/c, d, e, f, g
(política de ordenamento do território, política cultural, política económica e fiscal,
política educativa, política regional).

2. A dimensão jurídico-constitucional do princípio da sustentabilidade encontra


numerosas densificações noutros textos, a começar pelos Estatutos das Regiões
Autónomas que hoje incluem matérias anteriormente incluídas pelo texto
constitucional no âmbito do “interesse específico das Regiões Autónomas”
(valorização dos recursos humanos e qualidade de vida, património, defesa do
ambiente e equilíbrio ecológico).

3. Assumem particular relevo as disposições textuais do direito da União


Europeia referentes ao ambiente (cfr. artigo 191.º e segs. e, em geral, todo o Título
XX do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia). Nelas se estabelecem
linhas da política da União destinadas à prossecução da preservação, protecção e
melhoria da qualidade do ambiente, da utilização prudente e racional dos recursos

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naturais, promoção de medidas destinadas a enfrentar os problemas regionais ou


mundiais do ambiente, e designadamente as alterações climáticas.

4. Nos países de língua portuguesa (CPLP), deparamos com importantes


inovações, a nível textual, na Constituição Brasileira de 1988. No Capítulo
dedicado ao “Meio Ambiente” consagra-se o direito e o dever de defender e
preservar o ambiente para as “presentes e futuras gerações”, de preservar e
reestruturar os processos ecológicos essenciais, de preservar a diversidade e a
integridade do património genético, de proteger a fauna e a flora, de promover a
educação ambiental. Digna de menção é também a Constituição de S. Tomé e
Príncipe de 1990, impondo o equilíbrio e da natureza e ambiente (artigo 10.º).

II – Sentido jurídico-constitucional

1. Um conhecido juspublicista alemão (PETER HÄBERLE) escreveu recentemente


“que é tempo de considerar a sustentabilidade como elemento estrutural típico do
Estado que hoje designamos Estado Constitucional”1. Mais do que isso: a
sustentabilidade configura-se como uma dimensão autocompreensiva de uma
constituição que leve a sério a salvaguarda da comunidade política em que se
insere. Alguns autores aludem mesmo ao aparecimento de um novo paradigma
secular, do género daqueles que se sucederam na génese e desenvolvimento do
constitucionalismo (humanismo no séc. XVIII, questão social no séc. XIX,
democracia social no séc. XX, e sustentabilidade no séc. XXI).

2. Tal como outros princípios estruturantes do Estado Constitucional –


democracia, liberdade, juridicidade, igualdade – o princípio da sustentabilidade é
um princípio aberto carecido de concretização conformadora e que não transporta
soluções prontas, vivendo de ponderações e de decisões problemáticas. É possível,
porém, recortar, desde logo, o imperativo categórico que está na génese do
princípio da sustentabilidade e, se se preferir, da evolução sustentável: os humanos
devem organizar os seus comportamentos e acções de forma a não viverem: (i) à
custa da natureza; (ii) à custa de outros seres humanos; (iii) à custa de outras
nações; (iiii) à custa de outras gerações. Em termos mais jurídico-políticos, dir-se-á
que o princípio da sustentabilidade transporta três dimensões básicas: (1) a
sustentabilidade interestatal, impondo a equidade entre países pobres e países ricos;
(2) a sustentabilidade geracional que aponta para a equidade entre diferentes
grupos etários da mesma geração (exemplo: jovem e velho); (3) a sustentabilidade

1 Cfr. PETER HÄBERLE, “Nachhaltigkeit und Gemeineuropäisches Verfassungsrecht”, in WOLFGANG


KAHL (org.), achhaltigkeit als Verbundbegriff, Tübingen, 2008, p. 200.

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intergeracional impositiva da equidade entre pessoas vivas no presente e pessoas


que nascerão no futuro.

3. Não é fácil, da mesma forma que acontece com outros princípios já


anteriormente mencionados, determinar o conteúdo jurídico2 do princípio da
sustentabilidade. Alguns autores consideram-no como um “conceito de moda e em
moda” favorecedor de ocultações ideológicas (era e é a tese de muitos
neoconservadores norte-americanos). Outros rotulam-no de “conceito holístico”
inteiramente assente em conceitos também holísticos como são os da globalização,
integração, justiça intergeracional, participação, equidade geracional. Outros ainda
vêem nele um “conceito-chave”, um “conceito represa” que, à semelhança do
princípio do Estado de direito e do princípio democrático, pressupõem operações
metódicas de optimização e de concretização.

4. Convém distinguir entre sustentabilidade em sentido restrito ou ecológico e


sustentabilidade em sentido amplo. A sustentabilidade em sentido restrito aponta
para a protecção/manutenção a longo prazo de recursos através do planeamento,
economização e obrigações de condutas e de resultados. De modo mais analítico,
considera-se que a sustentabilidade ecológica deve impor: (1) que a taxa de
consumo de recursos renováveis não pode ser maior que a sua taxa de regeneração;
(2) que os recursos não renováveis devem ser utilizados em termos de poupança
ecologicamente racional, de forma que as futuras gerações possam também,
futuramente, dispor destes (princípio da eficiência, princípio da substituição
tecnológica, etc.); (3) que os volumes de poluição não possam ultrapassar
quantitativa e qualitativamente a capacidade de regeneração dos meios físicos e
ambientais; (4) que a medida temporal das “agressões” humanas esteja numa
relação equilibrada com o processo de renovação temporal; (5) que as ingerências
“nucleares” na natureza devem primeiro evitar-se e, a título subsidiário, compensar-
se e restituir-se.

5. A sustentabilidade em sentido amplo procura captar aquilo que a doutrina


actual designa por “três pilares da sustentabilidade”: (i) pilar I – a sustentabilidade
ecológica; (ii) pilar II – a sustentabilidade económica; (iii) pilar III – a
sustentabilidade social3. Neste sentido, a sustentabilidade perfila-se como um
“conceito federador” que, progressivamente, vem definindo as condições e
pressupostos jurídicos do contexto da evolução sustentável. No direito

2 Cfr. WOLFGANG KAHL, “Einleitung: Nachhaltigkeit als Verbundbegriff”, in WOLFGANG KAHL


(org.), achhaltigkeit als Verbundbegriff, Tübingen, 2008, p. 12 e segs.
3 Cfr. WOLFGANG KAHL, “Einleitung: Nachhaltigkeit als Verbundbegriff”, in WOLFGANG KAHL
(org.), achhaltigkeit als Verbundbegriff, Tübingen, 2008.

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internacional, a sustentabilidade é institucionalizada como um quadro de direcção


política nas relações entre os Estados (exs.: Convenção sobre as mudanças
climáticas, Convenção sobre a biodiversidade, Convenção sobre o património
cultural).

6. No contexto do direito da União Europeia, é adequado falar de um princípio


constitucional da União Europeia densificado directamente através de princípios
directamente vinculativos dos Estados-Membros e mediatamente operativo no
âmbito das políticas ambientais dos mesmos Estados (Tratado de Maastricht, art.
2.º; Tratado de Amesterdão, preâmbulo, art. 2.º, 6.º e 177.º; Carta dos Direitos
Fundamentais, art. 37.º, inserida no Tratado de Lisboa (art. 6.º); Tratado sobre o
Funcionamento da União Europeia segundo o Tratado de Lisboa, art. 191.º).

7. O princípio da sustentabilidade aponta para a necessidade de novos esquemas


de direcção propiciadores de um verdadeiro Estado de direito ambiental. Isto
implica que, ao lado dos tradicionais esquemas de ordem, permissão e proibição
vasados em actos de poder público, se assista ao recurso a diversas formas de
“estímulo” destinadas a promover programas de sustentabilidade (exemplo: política
fiscal de incentivo a tecnologia limpa, estímulo para a efectivação de políticas de
energia à base de recursos renováveis). Nestes “estímulos” ou “incentivos” que,
muitas vezes, se traduzem em preferências ou internalizações de efeitos externos,
devem observar-se as exigências normativas do Estado de direito ambiental quanto
às competências (legislador e executivo) e aos princípios (proibição do excesso,
igualdade). Nesse sentido, a transformação do direito e da governação segundo o
princípio da sustentabilidade não significa a preterição da observância de outros
princípios estruturantes como o princípio do Estado de direito e o princípio
democrático4.

III – Juridicidade ambiental 5

1. Instrumentos conformadores
8. Não pertence a uma lei-quadro fundamental, como é a Constituição, fixar
concretamente os instrumentos políticos, económicos, jurídicos, técnicos e
científicos indispensáveis à solução dos problemas ecológico-ambientais, sejam
eles da primeira ou da segunda geração. Também neste aspecto, o texto

4 Veja-se, precisamente, Klaus Bosselmann, The Principle of Sustainability, Transponing Law and
Governance, 2008; Maria da Glória Garcia, O Lugar do Direito do Ambiente na Protecção do Ambiente,
Coimbra, 2007, p. 369 e segs.
5 Seguimos de perto o que escrevemos em J.J. Gomes Canotilho/J. Rubens Morato Leite (org.),
Direito Constitucional Ambiental Luso-Brasileiro, São Paulo, 3.ª ed., 2003.

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constitucional português é um texto aberto. Tanto acolhe instrumentos dúcteis como


a informação, o procedimento, a autoregulação e a flexibilização, como
instrumentos directivos reconduzíveis a planos e controlos ambientais estratégicos.
Em termos teóricos e práticos, é visível uma oscilação entre dois paradigmas: (1) o
paradigma da flexibilização dos modos, formas e procedimentos julgados
adequados à defesa e protecção do ambiente; (2) o paradigma do planeamento
orientador e directivo preocupado, nos últimos tempos, com o déficite de comando
e eficácia dos instrumentos de flexibilização jurídico-ambiental. A primeira
orientação anda associada a postulados teóricos veiculados por diversos cultores da
sociedade de informação, da processualização do direito e das teorias dos sistemas
autopoiéticos. O segundo paradigma surge como uma tentativa de recuperação da
ideia de comando e direcção considerada como indispensável à prossecução da
tarefa básica do novo século: a sustentabilidade ecológico-ambiental6.

9. Uma posição particular demonstrativa da nova ordem ambiental inspirada nas


ideias de global legal pluralism e de good governance ambiental, é a que procura
fugir aos códigos binários da forma jurídica (directividade/flexibilização) e aos
códigos binários das éticas ou moralidades ecológico-ambientais (“natureza como
recurso”/ “natureza como santuário”) através da institucionalização de mecanismos
nacionais e internacionais de cooperação e controlo da prossecução das metas
ambientais7.

10. Deve reconhecer-se que os progressos da juridicidade ambiental começaram,


no ordenamento jurídico português, com a Constituição de 1976 e com a Lei de
Bases do Ambiente de 1987. Desde o seu texto originário que a Constituição da
República Portuguesa incluiu no catálogo dos direitos económicos, sociais e
culturais o direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente
equilibrado (art. 66.º) como direito constitucional fundamental. Esta opção dos
constituintes portugueses no sentido de elevar à dignidade de direito fundamental o
direito do ambiente não deixou de ter um relevantíssimo significado no plano jus-
ambiental. Independentemente de se saber se o direito ao ambiente é um verdadeiro

6 Uma visão global e actualizada do problema ver-se-á em FELIX EKARDT, Steuerungsdefizite vom
Umweltrecht – Ursachen unter besonder Berücksichtigung des Naturschutsrecht und das Grundrechte.
Zugleich zur Relevanz religiösen Säkularisats im öffentlichen Recht, 2001. Do mesmo Autor veja-se
também o recente trabalho “Information, Verfahren, Selbsregulierung, Flexibilisierung. Instrumente
eines effektiven Umweltrechts?”, in Natura und Recht, 4/2005, p. 215 e segs.
7 O exemplo mais elaborado de good governance global é o do Protocolo de Quioto que entrou em
vigor em 16 de Fevereiro de 2005. Veja-se o ilustrativo estudo de C. KREUTER – KIRCHHOF,
“Dinamisierung des internationalen Klimaschutzregimes durch Institutionalisierung” in ZaörRV
(Zeitschrift für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht), 65 (2005), p. 967 e segs. Entre a
literatura jusambiental em língua portuguesa cfr. MARIA DA GLÓRIA GARCIA, O Lugar do Direito do
Ambiente na Protecção do Ambiente, cit., p. 348 e segs.

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direito subjectivo, tornou-se claro que a problematização constitucional deste


direito não deveria limitar-se ao recorte do ambiente como tarefa ambiental do
Estado. A orientação jus-subjectiva da Constituição Portuguesa é tanto mais de
assinalar quanto se assiste, ainda hoje, à elaboração de robustas posições
doutrinárias contra a jus-fundamentalização do ambiente8. Precisamente por isso, a
primeira ideia forte do enquadramento jurídico-constitucional do ambiente é a de
que no ordenamento jurídico português a conformação jurídico-subjectiva do
ambiente é indissociável da sua conformação jurídico-objectiva.

11. As dimensões essenciais da juridicidade ambiental poderão resumir-se da


seguinte forma: (i) dimensão garantístico-defensiva, no sentido de direito de defesa
contra ingerências ou intervenções do Estado e demais poderes públicos; (ii)
dimensão positivo-prestacional, pois cumpre ao Estado e a todas as entidades
públicas assegurar a organização, procedimento e processos de realização do direito
do ambiente; (iii) dimensão jurídica irradiante para todo o ordenamento,
vinculando as entidades privadas ao respeito do direito dos particulares ao
ambiente; (iiii) dimensão jurídico-participativa, impondo e permitindo aos cidadãos
e à sociedade civil o dever de defender os bens e direitos ambientais.

12. A força normativa da Constituição ambiental dependerá da concretização do


programa jurídico-constitucional, pois qualquer Constituição do ambiente só poderá
lograr força normativa se os vários agentes – públicos e privados – que actuem
sobre o ambiente o colocarem como fim e medida das suas decisões9. Neste sentido,
é legítimo falar de ecologização da ordem jurídica portuguesa sob vários pontos de
vista. Em primeiro lugar, o direito do ambiente, além do seu conteúdo e força
própria como direito constitucional fundamental, ergue-se a bem constitucional
devendo os vários decisores (legislador, tribunais, administração) tomar em conta
na solução de conflitos constitucionais esta reserva constitucional do bem ambiente.
Em segundo lugar, a liberdade de conformação política do legislador no âmbito das
políticas ambientais tem menos folga no que respeita à reversibilidade político-
jurídica da protecção ambiental, sendo-lhe vedado adoptar novas políticas que se
traduzam em retrocesso retroactivo de posições jurídico-ambientais fortemente
enraizadas na cultura dos povos e na consciência jurídica geral. Em terceiro lugar, o

8 Para uma visão global da discussão vide MICHAEL KLOEPFER, “Umweltschutz und
Verfassungsrecht”, in DVBL, 1988, p. 305 e segs. Veja-se a série de argumentos jurídico-dogmáticos
contra o reconhecimento de um direito fundamental ao ambiente em ASTRID EPINEY, anotação do art.
20.ºem MANGOLDT/KLEIN/STARCK, Bonner Grundgesetz Kommentar, 4.ª ed., vol. 2.º, München, 2000,
p. 203 e segs.
9 Veja-se, neste sentido, CH. CALIESS, Rechtsstaat und Umwelstaat, Tübingen, 2001, p. 74 e segs.
ALEXANDRA ARAGÃO, “Direito Constitucional do Ambiente e a União Europeia”, in J.J. GOMES
CANOTILHO/J. RUBENS MORATO LEITE (org.), Direito Constitucional Ambiental Luso-Brasileiro, cit., p.
36 e segs.

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sucessivo e reiterado incumprimento dos preceitos da Constituição do ambiente


(nos vários níveis: nacional, europeu e internacional) poderá gerar situações de
omissão constitucional conducentes à responsabilidade ecológica e ambiental do
Estado. Em quarto lugar, o Estado (e demais operadores públicos e privados) é
obrigado a um agir activo e positivo na protecção do ambiente, qualquer que seja a
forma jurídica dessa actuação (normativa, planeadora, executiva, judicial). Esta
protecção, como se verá adiante, vai muito para além da defesa contra simples
perigos, antes exige um particular dever de cuidado perante os riscos típicos da
sociedade de risco.

13. No seu conjunto, as dimensões jurídico-ambientais e jurídico-ecológicas


permitem falar de um Estado de direito ambiental e ecológico. O Estado de direito,
hoje, só é Estado de direito se for um Estado protector do ambiente e garantidor do
direito ao ambiente; mas o Estado ambiental e ecológico só será Estado de direito se
cumprir os deveres de juridicidade impostos à actuação dos poderes públicos.
Como se irá ver nos desenvolvimentos seguintes, a juridicidade ambiental deve
adequar-se às exigências de um Estado constitucional ecológico e de uma
democracia sustentada10. A natureza de princípio conferida a muitas normas
estruturantes da Constituição ambiental – princípio do desenvolvimento sustentável,
princípio do aproveitamento racional dos recursos, princípio da salvaguarda da
capacidade de renovação e de estabilidade ecológica, princípio da solidariedade
entre gerações – obrigará a uma metódica constitucional de concretização
particularmente centrada nos critérios de ponderação e de optimização dos
interesses ambientais e ecológicos.

2. O desenvolvimento do Estado de direito democrático e ambiental – a


responsabilidade de longa duração

14. A articulação de problemas ecológicos de primeira geração com os


problemas de segunda geração obriga a dar arrimo jurídico-constitucional a novas
categorias dogmático-constitucionais. Aludiremos, em primeiro lugar, à chamada
responsabilidade de longa duração11. A responsabilidade de longa duração
convoca, como sugerimos no capítulo anterior, quatro princípios básicos
intrinsecamente relacionados: o princípio do desenvolvimento sustentável (art.
66.º/2), o princípio do aproveitamento racional dos recursos (art. 66.º/2/b), o
princípio da salvaguarda da capacidade de renovação e estabilidade ecológica

10 As expressões pertencem a Rudolf Steinberg, Der Ökologische Verfassungsstaat, 1998, p. 126 e


segs.
11 O conceito do texto é tributário do conceito alemão Langzeitverantwortung. Cfr., precisamente, a
obra de Gethmann/Kloepfer/Nutzinger, Langzeitverantwortung im Umweltstaat, 1993. Esta
responsabilidade de longa duração insere-se numa ideia de protecção ecológico-ambiental dirigida à
posteridade. A literatura germânica fala aqui de Nachweltschutz.

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destes recursos (art. 66.º/2/d) e o princípio da solidariedade entre gerações (art.


66.º/2/d).

15. Como é sabido, o tema da responsabilidade de longa duração ganhou


acuidade depois da Conferência do Rio de Janeiro de 1992 ancorada no princípio de
“Sustainable Development”. Em termos jurídico-constitucionais, ela implica, desde
logo, a obrigatoriedade de os Estados (e outras constelações políticas) adoptarem
medidas de protecção ordenadas à garantia da sobrevivência da espécie humana e
da existência condigna das futuras gerações. Neste sentido, medidas de protecção e
de prevenção adequadas são todas aquelas que, em termos de precaução, limitam ou
neutralizam a causação de danos ao ambiente, cuja irreversibilidade total ou parcial
gera efeitos, danos e desequilíbrios negativamente perturbadores da sobrevivência
condigna da vida humana (responsabilidade antropocêntrica) e de todas as formas
de vida centradas no equilíbrio e estabilidade dos ecossistemas naturais ou
transformados (responsabilidade ecocêntrica)12.

16. A responsabilidade de longa duração pressupõe a obrigatoriedade não apenas


de o Estado adoptar medidas de protecção adequadas mas também o dever de
observar o princípio do nível de protecção elevado quanto à defesa dos
componentes ambientais naturais. Embora a Constituição Portuguesa não consagre
expressis verbis este princípio, ele vem servindo de parâmetro e de standard
material no ordenamento jurídico da União Europeia (no âmbito do ambiente, da
saúde, do emprego). Coloca-se, desde logo, o problema de saber se existe um
direito a um mínimo de existência ecológico13. Talvez seja mais rigoroso, no
contexto conceptual do direito português, falar de um núcleo essencial de um
direito fundamental ao ambiente e à qualidade de vida. Este núcleo essencial
pressupõe, desde logo, a procura do nível mais adequado de acção, ou seja, que a
execução das medidas de política do ambiente tenha em consideração o nível mais
adequado de acção, seja ele de âmbito internacional, nacional, regional, local ou
sectorial (art. 3.º/f da Lei de Bases do Ambiente). A Constituição não exige, porém,
a protecção máxima do ambiente como pressuposto ineliminável da salvaguarda do
núcleo essencial do direito ao ambiente se com isso se pretende significar a
proibição de qualquer intervenção humana prejudicial ao ambiente. Mas já é
razoável convocar o princípio da proibição de retrocesso no sentido de que as
políticas ambientais – desde logo as políticas ambientais do Estado – são obrigadas
a melhorar o nível de protecção já assegurado pelos vários complexos normativo-

12 Veja-se L. Michel, Staatszwecke, Staatsziele und Grundrechtsinterpretation unter besonderes


Berücksichtigung der Positivierung des Umweltschutzs in Grundgesetz, Frankfurt/M., 1986, p. 277 e
segs.
13 Vide K. Whechter, “Umweltschutz als Staatsziel“, in Natur und Recht, 1996, p. 321 e segs;
Alexandra Aragão, O Princípio do Nível Elevado de Protecção e a Renovação Ecológica do Direito do
Ambiente e dos Resíduos, Coimbra, 2006.

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ambientais (Constituição, tratados internacionais, direito comunitário europeu e


leis)14. A proibição do retrocesso não deve interpretar-se como proibição de
qualquer retrocesso referido a normas concretas ou como proibição geral de
retrocesso. Não se pode falar de retrocesso quando forem adoptadas medidas
compensatórias adequadas para intervenções lesivas no ambiente, sobretudo quando
estas medidas contribuírem para uma clara melhoria da situação ambiental. De
qualquer modo, há hoje determinantes heterónomas – constitucional e
internacionalmente impostas – possibilitadoras da delimitação normativa
constitucional do nível adequado de protecção. Situam-se aqui – na qualidade de
determinantes heterónomas – os princípios de desenvolvimento sustentável, do
aproveitamento racional dos recursos, da salvaguarda da capacidade de renovação
ecológica e do princípio da solidariedade entre gerações.

17. Além disso, as agressões ao direito ao ambiente, traduzidas sobretudo na


perturbação da integridade dos componentes ambientais naturais, carecem de
justificação adequada caso se trate também de restrições ao núcleo essencial do
direito ao ambiente e qualidade de vida na sua dimensão de direito, liberdade e
garantia. Dentre as ponderações a incluir na justificação adequada deve incluir-se o
juízo sobre alternativas ambiental e ecologicamente amigas, desde que elas se
revelem adequadas, necessárias e proporcionais15.

3. O princípio da solidariedade entre gerações

18. A Constituição Portuguesa faz menção expressa ao princípio da


solidariedade entre gerações. O significado básico do princípio é o de obrigar as
gerações presentes a incluir como medida de acção e de ponderação os interesses
das gerações futuras. Os interesses destas gerações são particularmente
evidenciáveis em três campos problemáticos: (i) o campo das alterações
irreversíveis dos ecossistemas terrestres em consequência dos efeitos cumulativos
das actividades humanas (quer no plano espacial, quer no plano temporal); (ii) o
campo do esgotamento dos recursos, derivado de um aproveitamento não racional e
da indiferença relativamente à capacidade de renovação e da estabilidade ecológica;
(iii) o campo dos riscos duradouros. O texto constitucional não se refere a direitos

14 Note-se que não se trata, em rigor, de rigidificar uma garantia de perpetuação do actual complexo
normativo-ambiental. Seria, por isso, mais adequado – até porque se dá centralidade à defesa da
integridade dos componentes ambientais naturais – falar de uma proibição de retrocesso ecológico. Cfr.,
precisamente, M. Kloepfer, Umweltrecht, 3.ª ed., § 3.º, anotação 38. Há que ter em conta, porém, as
garantias jurídico-normativas do nível de protecção como eventual limite às desregulações do ambiente
por imposições económicas. Veja-se, por exemplo, Kadelbach, “Verfassungsrechtliche Grenzen für
Deregulierungen des Ordnungsverwaltungsrecht”, in Kritische Viertel Jahresschrift, 1997, p. 263.
15 Veja-se, entre outros, o estudo de Bernsdorf, “Positivierung des Umweltschutzs im Grundgesetz”,
Natur und Recht, 1997, p. 328 e segs.

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das futuras gerações. As dificuldades teorético-dogmáticas e jurídico-dogmáticas no


recorte de um sujeito de direitos e de relações jurídicas nebulosamente identificado
como “gerações futuras” e “futuras gerações” leva muitos autores a acentuarem que
o que está em causa é a inclusão dos interesses das gerações futuras nos princípios
materiais de actuação político-constitucionalmente relevantes.

19. Pretende-se, além disso, que a inclusão desses interesses ganhe efectividade e
operacionalidade prática. Articulado com outros princípios, o princípio da
solidariedade entre gerações pressupõe logo, como ponto de partida, a efectivação
do princípio da precaução. Configurado como verdadeiro princípio fundante e
primário16 da protecção dos interesses das futuras gerações é ele que impõe
prioritariamente e antecipadamente a adopção de medidas preventivas e justifica a
aplicação de outros princípios como o da responsabilização e da utilização das
melhores tecnologias disponíveis. O princípio da responsabilização, ao implicar a
assumpção das consequências pelos agentes causadores de danos ao ambiente,
significa imputação de custos e obrigação de medidas de compensação e de
recuperação que conduzirão à consideração, de forma antecipativa, dos efeitos
imediatos ou a prazo das respectivas actuações ambientalmente relevantes.

4. O princípio do risco ambiental proporcional

20. A literatura juspublicística, à semelhança do que acontece com outros ramos


do saber, passou a incorporar como tema quase obrigatório o risco ambiental.
Abundam, hoje, obras sobre a problemática do risco perspectivado em termos
políticos, económicos, sociológicos e filosóficos. Nada mais natural que ele adquira
também centralidade dogmática e metódica no âmbito do direito constitucional17.
Vamos aqui dar como adquiridas as compreensões teóricas do risco e limitar-nos ao
enquadramento constitucional do risco ambiental.

21. O direito constitucional acompanha o esforço da doutrina no sentido de se


alicerçar a determinação jurídica dos valores limite do risco ambientalmente danoso
através da exigência da protecção do direito ao ambiente segundo o estádio mais
avançado da ciência e da técnica. Isto significa que o princípio da melhor defesa
possível dos perigos e os princípios da precaução e da prevenção do risco ambiental
segundo o patamar mais avançado da ciência e da técnica marcam também os
limites da razão prática no plano do direito constitucional. E não cabe a uma

16 Assim, A. EPINEY, Umweltrecht in der europaïschen Union, 1997, p. 101 e segs.


17 Cfr. a exposição de JOSÉ RUBENS MORATO LEITE sobre a sociedade de risco e o Estado, in
J.J.GOMES CANOTILHO/J. RUBENS MORATO LEITE (org.), Direito Constitucional Ambiental Luso-
Brasileiro.

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Constituição aderir a postulados filosóficos de segurança (“segurança


deterministicamente determinada”, “segurança probabilisticamente determinada”)18
para extrinsecar o desenvolvimento jurídico-constitucional de concretização do
risco. De qualquer modo, o que parece constitucionalmente aceitável é tentar uma
aproximação à fixação normativa de valores limite através de princípios jurídico-
constitucionais. Neste contexto, o primeiro princípio a ter em conta é o princípio da
proporcionalidade dos riscos que se pode formular assim: a probabilidade da
ocorrência de acontecimentos ou resultados danosos é tanto mais real quanto mais
graves forem as espécies de danos e os resultados danosos que estão em jogo. Esta
fórmula, que não anda muito longe da seguida pela jurisprudência alemã, põe em
evidência que o risco, ao exigir particulares deveres de precaução, não pode ser
determinado independentemente do potencial danoso.

22. O segundo princípio constitucional é o princípio da protecção dinâmica do


direito ao ambiente (e de todos os direitos fundamentais) segundo o estádio,
evolução e progresso dos conhecimentos da técnica de segurança. Sob o ponto de
vista do direito constitucional só são aceitáveis os riscos de agressão ao direito ao
ambiente que não podiam ser previstos segundo os critérios de segurança
probabilística mais actuais (ex.: directivas do Euratom, guia de segurança da
IAEB).

23. O terceiro princípio é o princípio da obrigatoriedade da precaução, mesmo


que os juízos de prognose permaneçam na insegurança. A falta de certeza científica
absoluta não desvincula o Estado do dever de assumir a responsabilidade de
protecção ambiental e ecológica, reforçando os standards de precaução e prevenção
de agressões e danos ambientais19. Se é uma utopia pretender com o princípio da
precaução um “grau zero” de risco ambiental, já é razoável assumir, a nível
normativo – desde logo normativo-constitucional –, a necessidade de as
“ignorâncias tecnológicas” e dos “slogans políticos” darem origem a regras
densificadoras das “ciências incertas”20. Dentre estas regras densificadoras incluir-
se-ão novos modelos probatórios, como a inversão do ónus da prova, as
conferências de consenso e os standards de fiabilidade probatória.

18 Sobre a determinação da segurança contra riscos, vide RENGELING, Probabilistische Methoden


für der atomrechtlichen Schadenvorsorge, 1986, p. 217 e segs.
19 Vide J. CAMERON/W. WADE-GERY/ J. ABOUCHAN, “Precautionary Principle and Future
generations” in E. AGIUS/S. BASUTTI (org.), Future Generations and International Law, 1998, p. 93 e
segs.
20 Cfr. M. TALLACHIM, “Ambiente e diritto della scienza incerta”, in S. GRASSI/ M. CECCHETTI/ A.
ANDRONIO (org.), Ambiente e Diritto, I, Firenze, 1999, p. 58 e segs.

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Tékhne, 2010, Vol VIII, nº13
José Joaquim Gomes Canotilho

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José Joaquim Gomes Canotilho, conhecido jurista é professor catedrático da Faculdade


de Direito da universidade de Coimbra. É um dos maiores especialistas portugueses em
Direito constitucional. Tem exercido funções docentes em conhecidas Universidades
portuguesas e estrangeiras. Recebei em 2003 o prestigiante prémio Fernando pessoa e foi
condecorado com a Comenda da Ordem da Liberdade em 2004. Entre as suas obras
destaque-se Direito Constitucional e Teoria da Constituição editado pela Almedina que em
2008 estava já na 7.ª Edição.

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