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Guillaume Le Blanc – Creio que Foucault se interessava mais pelo “nós” do que pelo
casal. Se trata sempre de ver como se pode afirmar um “nós”. Um “nós” é,
potencialmente, um coletivo possível. Então, é certo que quando o casal se torna um
“nós”, ele interessa a Foucault. O que é se tornar um “nós”? É intensificar todo um modo
de relações pouco institucionais, à margem do casamento, da família, pelas quais formas
de relação a si são experimentadas em ligação com novos prazeres, mas também com
modos de ser amoroso, que desafiam as instituições. Numa entrevista, Foucault assinala
que “a possibilidade de utilizar nosso corpo como a fonte possível de uma multiplicidade
de prazeres é alguma coisa de muito importante”. De fato, para Foucault a amizade
perturba o casal muito mais do que o institui novamente. O risco do casal é o de
transformar a sexualidade num segredo de alcova entrevisto em função da questão “qual
é o segredo do meu desejo?” e também pela questão de saber em que se é concernido pelo
segredo do desejo do outro. Foucault se desvia desse esquema e quer explorar o que está
em jogo fora das relações institucionais da família e da profissão, como ele o explica em
“Da amizade como modo de vida”.
LCD – Foucault via no casal conjugal casado “uma relação pobre e extremamente
esquematizada”. É o que ele indica numa entrevista com Gilles Barbedette, em 20 de
outubro de 1981. Você pode comentar isso para nós?
G. Le B. – A questão essencial para Foucault era a seguinte: até que ponto é possível
inventar novos modos de vida? Essa era para ele uma questão de atitude e não de direito.
A formulação legal não dita/diz o estilo de vida. Ora, para Foucault o casamento, no
contexto histórico que é o seu, institui a normalidade do casal heterossexual e arrisca pois
fechar o acesso à criação de novas formas de vida. Foucault opõe as instituições às
relações e mostra que “nós vivemos num mundo relacional que as instituições têm
consideravelmente empobrecido”. É claro que, para ele, essas instituições são as do
casamento e a da família.
1
Um clichê, uma visão comum, um estereótipo (N. do T.).
2
Foucault, M. “O triunfo social do prazer sexual: uma conversação com Michel Foucault”. Em português
no volume V da edição dos Ditos e escritos, da editora Forense-Universitária (N. do T.).
integrar a adoção dos mais jovens pelos mais velhos ou dos mais velhos pelos mais jovens
no interior de uma mesma “monosexualidade”. De fato, Foucault quer integrar a
sexualidade numa cultura alternativa à normalização da sexualidade e o casamento lhe
parece ir nesta direção da normalização. É isso que ele vê em obra nos estilos
homossexuais de vida.
LCD – Ao contrário, a cultura gay era para ele uma força de invenção, permitindo resultar
em outras formas de relações. Parece que, segundo ele, a homossexualidade não devia ser
“reintroduzida na normalidade geral das relações sociais”3. Ao contrário, essa cultura
transformaria as normas, tirando as consequências sociais e jurídicas dessa experiência
sexual subversiva, que era a homossexualidade. Não é interessante voltar a esse ponto
hoje, à luz das lutas em torno do casamento para todos?
G. Le Blanc – Penso que as lutas a favor do casamento para todos tem sido interessantes,
pois tem contribuído para desnaturalizar a questão do casamento que, histórica e
tradicionalmente, é relaciona à ficção da heterossexualidade em vista da reprodução. È
todo esse dispositivo de estabilização da sexualidade no casamento que foi perturbado em
nome do argumento da igualdade entre os casais, interpretado como prolongamento de
uma reivindicação amorosa.
3
Referência ao texto “Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e política da identidade”, que será
também entregue aos alunos do curso (N. do T.).
interessante e conduz a assinalar, ao contrário de Kant, que o que é verdadeiro na prática
não o é, talvez, na teoria.
O uso tático que pode ser feito da identidade, me parece funcionar também para o
casamento. Eu diria que podemos nos casar na prática, mas não forçosamente na teoria,
no sentido de que a reivindicação do casamento para todos pode contribuir, aqui e agora,
para estender suportes jurídicos às formas relacionais que eram privadas e, assim, melhor
apreender, reconhecer e sustentar formas de vida que são ao mesmo tempo formas
culturais. Resta, para retomar Foucault, que “as relações que devemos entreter conosco
mesmos não são relações de identidade, mas, muito mais relações de diferenciação, de
criação, de inovação”.4 Reclamar um direito ao casamento não é, necessariamente, querer
retornar ao mesmo, reintegrar os esquemas da normalidade social, mas poder participar
de um deslocamento da hegemonia das normas.
4
No mesmo texto acima citado (N. do T.).