Você está na página 1de 360

REFLEXÕES SOBRE

A REVOLUÇÃO EM
FRANÇA
EDMUND BURKE

REFLEXOES SOBRE -
A REVOLUÇÃO EM
FRANÇA

Tradução e Introdução de
Ivone Moreira

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN


Traduzido do texto inglês de:
Edmund Burke ( 1865), Rejlections on the Revolution in France and
on the Proceedings in Certain Societies in London Relative to that Event: in
a Letter lntended to H ave Been Sent to a Gentleman in Paris, The Works of
the Right Honorable Edmund Burke, Vols. III, Revised Edition, Boston:
Lirde, Brown, and Company.

Reservados rodos os direitos de acordo com a lei


Edição d a
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
Av. de Berna I Lisboa
2015

Depósito Legal N. 0 40 1257/ 15


ISBN: 978-972-3 1-1575-8
NOTA DE TRADUTOR

A versão utilizada para esta tradução corresponde à última


revista por Burke, que foi publicada pelos seus testamentários, em
Londres, com os editores Francis and Charles Rivington em 1801.
A republicação de toda a obra de Burke com a casa Rivington, em
16 volumes, estender-se-ia até 1827. A edição que se usou é uma
reimpressão da edição Rivington, por Litde, Brown & Company,
publicada em Boston em 1865 1•
As notas que se encontram ao longo desta tradução têm duas
origens: algumas são notas do próprio autor, assinaladas por um
asterisco que antecede o número da nota e devidamente advertidas
como tal no rodapé; outras são notas da tradutora (N.T.), com o
objectivo de esclarecer algumas referências feitas pelo autor, ou as
opções feitas na tradução de alguns termos e o significado de alguns
conceitos.
Foram respeitados os itálicos do texto original e o uso de maiús-
culas e minúsculas, sempre que esse uso não se possa atribuir a uma
opção da língua. ~er no corpo do texto quer nas notas, usaram-
-se entre parêntesis rectos [.. .] expressões da autoria da tradutora,
acrescentadas para inteligibilidade do texto.
Foi critério fundamental que presidiu a esta edição que todo o
corpo do texto das Rejlections on the R evolution in France estivesse
em português. São excepções a esta regra as expressões breves fran-
Edm und Burke ( 1865 ), Reflections on the Revolution in France and on the Pro-
ceedings in Certain Societies in London Rela tive to that Event: in a L etter l ntended to H ave
Been Sent to a Gentleman in Paris, The Works of the Right H onorable Edmund Burke,
Vols. III, Revised Edition, Boston: Litde, Brown, and Company.
8

cesas que aparecem no texto de Burke e as expressões latinas. Em


nota de rodapé aparecem as traduções das citações em língua latina
ou grega. ~ando estas citações se encontram em notas de rodapé,
para o latim e o grego, foi mantido o texto original seguido da tra-
dução; para citações do autor em línguas vivas foi feita a tradução
com a referência ao texto original, ou à língua original, quando não
foi possível localizar o texto. As citações de Burke dos autores lati-
nos e gregos são muitas vezes alteradas e apropriadas por Burke e
nem sempre é respeitado o seu sentido original.
Na realização desta tradução consultaram-se também a tradu-
ção francesa de Pierre Gaeton Dupont 2 - que tinha sido revista por
Burke- e a tradução espanhola de Henrique Tierno Galván 3, com
o objectivo de comparar as opções de tradução de outras línguas
latinas e, assim, conseguir uma tradução tão fiel quanto possível em
língua portuguesa. Uma boa tradução brasileira por Eduardo Alves
foi entretanto publicada pela Topbooks. Duas razões fizeram que
ela não fosse tão significativa para a presente tradução: a primeira, é
que esta estava já na sua fase de revisão quando a tradução brasileira
foi publicada ; a segunda, é que se pretendia que o português fosse o
utilizado em Portugal e se considerou prudente evitar a influência
próxima.
Por fim, uma palavra de agradecimento é devida à Prof.• Dou-
tora Alexandra Alves de Sousa, que é a responsável pela tradução
das citações latinas e gregas presentes neste texto.
As páginas que se seguem têm por missão apresentar o autor
ao leitor e contribuir assim para um mais completo entendimento
da que é considerada a obra fundamental do seu pensamento polí-
tico.
Pierre Duponr ( 1790). T rad. (révisée, annotée et présenrée par) Michel De-
rouard, Réflexions sur la Révolution de France, et sur les Procédés de Certaines Sociétés a
L ondres, Relatifi a cet Événement, Saint Lambert des Bois: Authenrica, 1988.
3
- Henrique Tierno Galván ( 1978), (Traducción y Prólogo), Reflex iones sobre L a
R evolución Franma, Madrid: Centro de Escudios C onstitucionales.
9

INTRODUÇÃO

EDMUND BURKE- UM PERCURSO


BIOGRÁFICO-LITERÁRIO

Edmund Burke nasce em Dublin\ filho de Richard Burke,


um conceituado advogado anglicano, e de Mary Nagle, católica,
originária de uma família tradicional com raízes em Cork. A sua
saúde frágil é razão para que viva no campo, durante uma boa parte
da sua infância com a família católica da mãe. Embora, segundo
a tradição dos casamentos mistos entre católicos e anglicanos, os
filhos devessem ser educados na religião do pai e as filhas na religião
da mãe - o que aconteceu na família Burke - segundo investigação
recente 5, a sua formação na primeira infância passou por uma es-
cola, possivelmente clandestina, para católicos irlandeses, onde se
ensinava em Gaélico. Estuda depois num colégio privado em Balli-
tore, uma academia protestante, dirigida por Abraham Shackleton,
um ~aker, que Burke admirará toda a vida, saindo daí em 17446,
para o Trinity College em Dublin 7 •

Em relação à data de nascimento de Burke há alguma incerteza. Os principais


biógrafos divergem e oscilam entre as datas de 12 de Janeiro de 172 9 e a mesma data de
1730, ambas as escolhas apoiadas por boas justificações. Morre em Julho de 1797.
Cf. Katherine O 'Donnell (2007), "Burke and the Aisling: 'Homage of a Na-
tion '", British journalfor Eighteenth- Century Studies, 30, pp. 405-7.
Também aqui os biógrafos divergem: o seu nome consta nos registos de T rini-
tyCollege desde Abril de 1743. James Prior considera que só no ano seguinte Burke teria
de facto entrado em T. C.; Thomas Macknight considera que Burke teria entrado no ano
de 1743.
Cf. Ivone Moreira (20 12), A Filosofia Política de Edmund Burke, Lisboa: As-
ter, p. I. (De agora em diante: Ivone Moreira, Op. Cit. seg. da pág.)
10

Pela sua correspondência deste período de juventude, perce-


bemos que é um apaixonado da literatura clássica e que tenta ele
próprio aventurar-se na poesia, gosto que o acompanhará toda a
vida, embora tenha desistido de escrever poesia porque considerava
faltar-lhe o talento para tal8 . A sua incursão pública em actividades
literárias e editoriais começa justamente enquanto frequenta o Tri-
nity College, em Janeiro de 1748, quando, fruto de obra colectiva,
edita o The Reformer, do qual virão a lume 13 números, publicados
semanalmente até Abril de 1748. Trata-se de uma miscelânea que
inclui temas diversos como poesia, crítica teatral e peças de teatro.
Neste período, Burke mantém ainda um Note Book com o seu
amigo de juventude William Burke. Alguns dos textos nele con-
tidos enunciam já aspectos que o seu pensamento político há-de
aprofundar e ilustrar mais tarde. O caderno é publicado apenas no
século xx.
oJ
Obtém o seu diploma de Bachelor Arts em 1748. Há regis-
to da sua matrícula em Middle Temple, o mais famoso colégio que
formava na altura advogados e solicitadores. Frustrando as expec-
tativas do seu pai, e pagando por isso o preço alto de uma relação
difícil com ele e a falta do seu apoio para a carreira que escolhe,
Burke constata que a advocacia não tem para si grandes atractivos e
decide enveredar pela carreira literária, nunca tendo exercido como
advogado.
Em Maio de 1756 publica A Vindication of Natural Society
( Vindication ), uma obra irónica sobre os "malefícios" da sociedade
política. A publicação da Vindication aparece por ocasião de uma
edição das obras de Henry St. John , Visconde de Bolingbroke, mas
também por ocasião da publicação do Discours sur !'origine et les
Jondements de l'inégalité parmi les hommes de Jean-Jacques Rous-

Deve dizer-se a seu favor que, no q ue respeita à esc rita em prosa, chega a se r
mencionado, juntamente com Shakespeare e Milton , como um dos melhores escritO res
de língua inglesa.
11

seau, na sua versão inglesa. Usando a ironia e imitando o estilo de


Bolingbroke, Burke aplica os princípios que serviram a este autor
para atacar a religião revelada para tecer uma crítica à sociedade
estabelecida, elogiando a sociedade "natural" com o objectivo de
mostrar o carácter subversivo de tais princípios. A crítica foi tão
bem conseguida que o público imaginou tratar-se de uma obra de
Bolingbroke, publicada postumamente. Uma segunda edição da
Vindication, publicada um ano depois, esclarece no seu prefácio
o propósito satírico do texto 9 . Neste prefácio aparece já expressa,
com extraordinária clareza e coerência, a sua defesa da sociedade
política, numa posição idêntica à que há-de sustentar mais de três
décadas depois, nas Rejlections on the R evolution in France, que é
considerada a obra que melhor sintetiza o seu pensamento político
e que pertence à última década da sua vida.
Ainda em meados de 1756 colabora com William Burke 10
oJ
na redacção de An Account the European Settlements in Ameri-
ca, importante para o historial do que pensa sobre a escravatura.
A primeira edição aparece sem o seu nome, mencionando apenas
a autoria de William Burke, embora hoje haja a convicção de que a
maioria do texto seja de sua autoria 11 •
Em 17 57 publica A Philosophical Enquiry into the Origin of
Our Ideas of the Sublime and Beautiful (A Philosophical Inquiry),
no qual tinha trabalhado desde os seus tempos de estudante em
Trinity College 12• Burke cedo encontrou na psicologia um tema de

Cf. Ivone Moreira, Op. Cit., pp. 1-2.


10
Um parente afasrado, a quem chama "cousin ", mas que, em boa verdade, é
mais um amigo que um parente, rem mesmo sido impossível esrabelecer alguma ligação
entre as suas famílias. Burke só o conhece quando vem para Londres esrudar em Midd.le
T emple. Cf. Idem , p. 2.
11
Esra é, por exemplo, a opinião de F rederick Perer Lock, auror da mais complera
biografia de Burke, expressa numa rroca de correspondência com a rradurora.
12
Cf. Frederick Perer Lock ( 1998 ), Edmund Burke 1730-1 784. vol. I, Oxford:
Oxford Clarendon Press, p. 91. (De agora em diante Lock (clara), Op. Cit., n. 0 do vol., seg.
da pág. ).
12

interesse filosófico. Num certo sentido, a psicologia é objecto de


um estudo sistemático único na obra do autor. Em A Philosophical
Inquiry, pretende encontrar um padrão para as ideias do sublime e
do belo, bem como para as várias percepções do gosto. Estas primei-
ras investigações contribuíram decisivamente para estruturar a sua
compreensão da natureza humana, que se revelará um instrumen-
to muito útil - mesmo fundamental - para a sua filosofia política.
O seu conhecimento da natureza humana acompanhará sempre as
suas considerações políticas sobre os sistemas e as sociedades e há-
-de servir de base à sua interpretação da Revolução Francesa.
Nesse mesmo ano assina com Dodsley13 , o seu primeiro editor,
um contrato para escrever uma história de Inglaterra, que nunca
chega a ser publicada e da qual subsiste apenas o Abridgment on
English History. Conta-se que desistiu de publicar a sua investiga-
ção histórica porque, entretanto, David Hume tinha publicado a
sua própria História de Inglaterra. Frederick Lock chama a atenção
para o facto de Burke precisar de prover ao sustento da sua família,
o que o terá impelido para a prática do jornalismo durante alguns
anos e o terá afastado da escrita de um volume mais exigente como
seria uma História de Inglaterra 14•
É assim que em 1758 Burke assume com o mesmo editor o
compromisso de manter uma extensa revista anual dos aconteci-
mentos de interesse cultural, no mais amplo sentido, destinada ao
leitor de cultura média interessado em manter-se informado, a ser
publicada na Primavera e contendo o relato do que tinha aconte-
cido no ano anterior e que intitula Annual Register 15• O próprio
autor define o objectivo desta publicação como um esforço para
combinar a Magazine com a Revista, com uma primeira parte con-
siderada o Historical Artide, um suplemento intitulado Chronide,

13
Trata-se da Casa Editora de Robe rt andJames Dodsley com sede em Pall Mali.
". Cf. Lock ( 1998), Op. Cir., vol. I, p. 165.
11
Cf. Ivone Moreira, Op. Cir. , p. 2.
13

seguido de documentos num Appendix. O seu envolvimento com


esta publicação foi sempre mantido privado e a publicação editada
anonimamente. Os estudiosos divergem a propósito da extensão
desta colaboração, contudo, a investigação de Frederick Lock situa
Burke como principal responsável pela publicação entre os anos
de 1758 e 1764, embora possa, eventualmente, ter tido assistentes,
ainda que não registados 16.

UM PERCURSO POLÍTICO-PARTIDÁRIO

A sua actividade literária e jornalística, embora abundante,


não chega para tornar a sua família autónoma em relação ao seu so-
gro Dr. Nugent, médico conceituado, com quem viviam Edmund
Burke e a mulher, Jane 17. Embora a data precisa não seja conhecida,
é provável que em 1759 tenha começado o seu envolvimento como
assistente de William Gerard Hamilton o qual, em 1765, propõe
uma pensão vitalícia para Burke pelo lrish Establishment e, na se-
quência da sua atribuição, viria a exigir que este não publicasse nem
tivesse qualquer outro tipo de actividade para além de ser seu secre-
tário1 8. Apesar de a sua situação económica ser difícil, Burke recusa
a pensão e rompe relações com Hamilton acusando-o de absorver
rodo o seu tempo e de ver nele um escravo.
16
Cf. Lock (1998), Op. Cit., vol.I, p. 166.
1
- Não se sabe ao cerro a data nem o local do seu casamento. Alguns biógrafos
põem a hipótese de Burke se ter casado em França sob o rito católico, já que a sua mulher,
Jane Nugent de solteira, era católica e converte-se ao anglicanismo na altura do seu casa-
mento. Conversão que é sempre vista como um acto formal sem qualquer fundamento
espiritual.
18
H amilton tinha conseguido da coroa um a pensão anual vitalícia para Burke
através do lrish Establishment. A condição que Burke propun ha para aceitar a pensão
e continuar a colaborar com H amilton era poder reservar para a sua actividade literária
algum tempo, sempre q ue isso não prejudicasse as suas funções junto de Hamilton, coisa
que este último não aceitou exigindo que Burke assin asse um documento onde assumisse
o compromisso de trabalhar para ele toda a vida e em exclusividade.
14

Em Julho de 1765 Burke assume o cargo de secretário privado


de Lord Rockingham, líder do partido Whig e, na altura, First Lord
of Treasury . Apesar de, no futuro, Burke vir a ser imprescindível
como porta-voz do partido na Câmara dos Comuns, cargo que virá
a exercer fielmente durante 28 anos, muito para além da liderança
de Lord Rockingham, Burke não lhe deve a primeira oportunidade
para entrar no parlamento. De facto, o lugar que vai ocupar tinha
sido oferecido ao seu amigo William Burke, para ser deputado por
Wendover, pelo círculo eleitoral de Lord Verney, e é o amigo que
lho cede. Burke inicia assim a sua carreira política, tendo pronun-
ciado o seu primeiro discurso no Parlamento como Whig em Janei-
ro de 1766 19 •
~ando começa um novo mandato, em 1774, Burke continua
no Parlamento. Desta vez eleito por mérito próprio, concorrendo a
convite da Associação dos Comerciantes de Bristol como represen-
tante por aquela cidade. À altura, de facto, já tinha sido eleito pelo
círculo eleitoral de Lord Rockingham como deputado por Malton,
mas, quando surge a hipótese de ser deputado por Bristol, Burke,
zeloso da sua independência em termos políticos, opta pela cidade
portuária. É no seu primeiro discurso como deputado por aquela
cidade, logo no momento da eleição, que Burke se pronuncia a fa-
vor da independência dos parlamentares em relação às instruções
directas dos eleitores. O que pensa da representação política: que
o deputado deve ao eleitor fidelidade e defesa dos seus interesses,
mas não subserviência, e que o servirá melhor se mantiver a sua in-
dependência, vem brilhantemente expresso neste discurso e é fre-
quentemente evocado como doutrina Whig sobre a matéria mas é,
em boa verdade, uma ideia relativamente recente à época que surge
como resultado da resposta aos movimentos radicais das décadas de
70 e 80 do século XVIII e que Burke reformula. No século XVI era
muito comum o deputado ser um delegado do eleitor, como o mos-

19
Cf Lock (1 998), Op. Cir. , vol. I, p. 214.
15

tram estudos sobre as práticas eleitorais desse período 20 • Em 17 80,


é de novo eleito deputado, desta vez por Malton.

Em 19 de Março 17 82, Lord Rockingham sucede a Lord


North como primeiro-ministro e, cinco dias depois, Burke toma
posse como Paymaster- General of the Forces, um cargo modesto.
Lock julga que o próprio Burke não fazia campanha a seu favor
nunca se tendo candidatado a nenhum posto destacado, como era
próprio dos que se moviam nos círculos próximos de figuras de des-
taque como Lord Rockingham. Em 1 de Julho morre Rockingham
e é sucedido por Lord Shelburne. Burke resigna do seu cargo em
10 de Julho desse mesmo ano, para o voltar a ocupar de novo em
8 Abril de 1783. Em 24 de Abril desse mesmo ano o governo de
Shelburne cai para ser substituído pela coligação Fox-North 21 , com
o Duque de Portland como primeiro-ministro e com a saída defi-
nitiva de Burke.

Durante a sua passagem meteórica pela administração, Burke


apresenta um projecto de lei de reforma das despesas da casa real,
nomeadamente extinguindo cargos vazios de conteúdo que repre-
sentavam apenas uma espécie de pensão atribuída aos nomeados.
Além disso, tornou também os cargos de responsáveis por dinhei-
ros, como o cargo de Paymaster-General, obrigados a apresentarem
contas mensais e a estarem de certo modo dependentes do Banco
de Inglaterra. A lei será aprovada e posta em prática na vigência de
governos posteriores.

10
"Este conceiro de rep resentação política, que defende a independência do par·
lamentar, e que ve m sendo atribuído desde então aos velhos Whigs, surge como reacção
aos movimentos radicais das décadas de 70 e 80 do séc. XV III , mas não corresponde à
posição Whig mais amiga. De fac to, no século XVI , os parlamentares eram delegados dos
eleirores e aceitavam o papel de 'agente liberalmente pago para cuidar dos seus interesses
no Parlamento'". Cf. Ivone Moreira, Op. Cit., pp. 282-283. Sobre as doutrinas eleitorais
deste período Cf. Samuel Beer (Sep., 1957), "The Represe nration ofl nreresrs in British
Governmenr: H isrorical Background", The American Politica! Science Review, Vol. 5 1,
n.o 3, pp. 613-650 .. p. 6 15.
" Charles James Fox e Frederick Norrh.
16

UM PERCURSO IDEOLÓGICO

~em lê as Reflections on the Revolution in France, e todos os


textos de crítica à Revolução Francesa, pode ver em Burke apenas
um conservador, um contra-revolucionário. Se esta imagem capta
em parte o pensamento do autor, será certamente redutora e tal-
vez mesmo desajustada se não se tiver em conta todo o percurso
intelectual de Burke. É redutora porque Burke foi um empenhado
reformador: toda a sua vida parlamentar e mesmo o cargo políti-
co que desempenhou se caracterizou pela reforma. E é desajustada,
porque os motivos que o levam a opor-se à Revolução Francesa são
distintos dos que inspiram outros críticos da mesma altura.
Burke é o próprio a admitir que o Ancien Régime carecia de
reforma. A sua crítica feroz e lúcida à Revolução Francesa é uma
crítica ao método revolucionário, à índole demolidora do processo,
à arrogância intelectual jacobina que entende que pode fazer ta-
bula rasa de todo o património anterior, e é também, e fundamen-
talmente, uma crítica à teoria do contrato social de Rousseau, que
Burke julga inspirar os políticos franceses. Um contrato que pres-
supõe que uma sociedade emerge do acordo entre homens na posse
de todos os seus direitos naturais, cuja soberania reside no corpo da
nação assim formada, enquanto pessoa moral e colectiva, que esta-
belece um governo para a preservação destes direitos no qual todo e
qualquer um pode participar em condições de igualdade e enquan-
to executor da vontade geral, derivando daí a sua legitimidade. Mais
adiante se verá onde é que o contrato orgânico proposto por Burke
diverge desta concepção.
Burke é um reformador e gosta de sublinhar a diferença entre
dois processos: a mudança súbita, que caracteriza habitualmente
uma revolução, e a reforma:
17

Há uma grande diferença entre mudança e reforma.


A primeira altera a substância dos alvos da mudança ( ... ) de-
sembaraça-se do que neles é bom assim como do mal aciden-
tal que lhes está anexo ( ... ) a reforma não é uma mudança na
substância( ... ) mas uma aplicação directa de um remédio às
queixas( ... ) inovar não é reformar 22 •

A reforma caracteriza-se sobretudo pela capacidade em de-


fender o que de bom existe. Em qualquer instituição, que serviu
bem uma sociedade, há algo que vale a pena preservar e melhorar.
Nenhuma realização humana é totalmente perfeita, e a melhor
maneira de a ir aperfeiçoando é corrigi-la ao longo do tempo ajus-
tando-a aos novos desafios. Com isto obtém-se algo que é obra de
várias gerações e que acumula a sabedoria de todos os que sobre ela
reflectiram e para ela contribuíram.

As páginas que se seguem têm por objectivo dar ao leitor in-


formação sobre o autor e o seu percurso intelectual enquanto refor-
mador e assim fornecer-lhe instrumentos para uma adequada inter-
pretação da diatribe que constitui as Rejlections on the Revolution
in France.
Burke foi um parlamentar Whig que na história da sua longa
carreira, com início em 1765 e terminando oficialmente em Junho
de 1794, participou e, muitas vezes, tomou a dianteira, em debates
parlamentares que testemunharam a sua defesa da liberdade.

22
Cf. "( ... ) that is a marked distinction between change and reformation. The
former alters the substance of the objects themselves ( ...) gets rid of ali their essemial
good as well as of the accidemal evil annexed to them (...) Reform is not a change in the
substance (...) but a direct application of a remedy to the grievance complained of (... ).
'to innovate is not to refonn'". Edmund Burke ( !866 ),Letter to a Noble Lord on theAttacks
Upon H is Pension, The Works ofthe Right Honorable Edmund Burke, Vol V, Revised Edi·
tion, Boston: Little, Brown, and Company, pp. 186-7. (De agora em diante: Burke (data
da ed. ), Título, Works, n. 0 do vol. e pág. ).
18

A oposição à política de gabinete de Jorge III


Logo em Abril de 1770, Burke publica Thoughts on the Cau-
se of the Present Discontents. Este texto, cuidadosamente negocia-
do entre Burke e as várias figuras proeminentes do partido Whig
- como o confirma a correspondência de Burke na altura 23 - ,é ob-
jecto de algumas cedências em relação ao que primariamente havia
sido concebido e, sendo um texto que veicula inequivocamente a
sua posição, atenta a algumas sugestões do partido. Aqui, Burke visa
expor as manobras de manipulação do governo por parte da corte,
através da clique a que Burke chama os "amigos do Rei". Neste tex-
to, Burke despersonaliza este tipo de manobras, antes associadas a
Lorde Bute e, ao fazer isso, mostra como esquema político perni-
cioso, digno de ser analisado e combatido, o que era antes atribuído
a manobras individuais. A Corte acabaria por destruir a substância
da Constituição Inglesa mantendo a sua form a, ao exercer influên-
cia através de favoritismo. Contra isto Burke defende o respeito
pelo espírito da Constituição e a formação de um grupo de homens
de talento, interessados na vida pública e representantes da proprie-
dade. Trata-se da afirmação da importância de partidos políticos,
cuja actuação pudesse ser transparente e conhecida, como a melhor
forma de oferecer resistência à manipulação pela Corte através da
nomeação ou da protecção dos seus favoritos .
2
-' Veja-se a co rrespondência trocada desde 6 de Novembro de 1769 a este pro·
pósito nomead amente entre Si r George Savi le, Lord Rocki ngham e o próp rio Burke.
Lucy Surherland , edito ra do volume II da C01nspondence, refere em nota que, além dos
elementos cuj as ca n as se podem analisar, teria havido ainda uma reunião para "exami-
nar" o panfleto com o Marquês de Rockingham, Dowdeswell , o Duque de Pordand e Sir
George Savile, antes da abertura do Parlamento a 9 de Janeiro de 1770. Cf. Lucy Su ther-
land ( 1960), Thomas Copelan d, (Gen. Ed.), The Con·espondence ofEdmund Burke, Vol.
II , Cambridge: Cambridge Universiry Press, pp. 108-10, cana de Burke a Rockingham;
pp. 11 4-6, cana de Burke a Rockingham ; pp. 11 8-2 1, cana de Sir George Savile aRo-
ckingham: esta cana é extraordinariamente sugestiva refe rindo-se Savile às correcções que
teria introduzido no texto e à ren itência de Burke a que se alterassem as suas ideias tendo
mesmo afi rmado ter a expectat iva do apoio dos restantes membros (p. 118); e pp. 12 1-2,
carta de Burke a Rockingham e nota de Sutherland. (D e agora em diante a refe rência se rá
Burke (data ed. ), Co1nspondence, n.0 do ,-ol., pág.).
19

Nesta mesma peça, Burke invoca duas situações onde este tipo
de influência se fez sentir e perverteu o disposto pela Constituição:
a maneira como o governo lidou com o caso Wilkes, um deputado
eleito por Middlesex, rejeitado pelo parlamento pela sua imorali-
dade e substituído pelo número dois da eleição, que tinha perdido
para Wilkes por um número elevadíssimo de votos; e o pagamento
de despesas da Civil List, sem qualquer espécie de inquérito às mes-
mas.
O s Thoughts on the Cause oJ
the Present Discontents devem
também ser vistos como um testemunho da inclinação de Burke
para as pequenas reformas já que atribuiu o descontentamento que
se experimentava na altura a aspectos menos radicais do que algu-
ma oposição, que defendia a criação de "parlamentos" mais curtos
- ideia a que Burke se opõe - ou a eliminação dos pocket boroughs 2\
que viriam a ser objecto de reforma apenas por acto de 1832, e so-
bre os quais Burke não se pronuncia.

A liberdade religiosa na Irlanda


A luta pela liberdade religiosa na sua Irlanda natal e pelos di-
reitos dos católicos irlandeses 25 é mais um exemplo do seu empe-
24
Extensões de terra ou propriedades que tinham direiro a representantes no
Parlamento independentemente do número de habitantes. Cf. Lock ( 1998 ), Op. Cit. ,
Vol. I, p. 277.
25
"A sua relação familiar com a Irlanda, mesmo o facto de, na sua infância, ter
contactado de perto com as dificuldades que afligiam os católicos irlandeses, fez que roda
a sua vida mantivesse um vivo interesse pelos direiros dos católicos da terra natal. Pro-
nunciou-se inúmeras vezes no Parlamento em sua defesa, manteve correspondência com
membros do Parlamento irlandês e esforçou-se por passar ao seu filho o legado de con-
tinuar a lutar pela moderação na governação e pelo respeito dos direitos dos irlandeses,
nomeadamente o respeito da sua liberdade religiosa. O constante interesse que manteve
pelos assuntos da Irlanda valeu-lhe alguns dissabores: foi injustamente acusado pela im-
prensa de "papista" e "jesuíta secrero"; foi acusado de defender o comércio da Irlanda
em detrimento dos comerciantes de Bristol, cidade que representava no parlamento, um
factor que muito contribuiu para que viesse a perder um segundo mandara por aquela
cidade." Cf. Ivone Moreira, Op. Cit., p. 4.
20

nho pela causa da liberdade. Embora Burke fosse anglicano, era um


defensor da liberdade religiosa a que não era, por certo, alheio o
facto de ter convivido com o catolicismo desde cedo e ter sido ensi-
nado por um dissidente anglicano. Empenhou-se muito pela causa
católica tendo mesmo sido várias vezes acusado de ser um cripto-
-católico26. Desde cedo a situação dos católicos irlandeses foi ob-
jecto da sua reflexão. Julga-se que desde 1766 Burke se empenha na
redacção do Tract Relative to the Laws Against Popery in Ireland,
conhecido como Tract on the Popery Laws, um texto de análise crí-
tica às leis severas aplicadas aos católicos irlandeses, texto inacabado
que, embora tenha sido usado no seu contacto com dirigentes irlan-
deses, apenas vem a público após a sua morte.
O Tract on the Popery Laws apresenta uma síntese das leis con-
tra os católicos, com Burke a propor uma análise desapaixonada so-
bre se um tal sistema poderia corresponder a princípios sólidos de
legislação ou a alguma definição aceitável de lei concluindo que, se
os princípios que enformam estas leis e as práticas a que conduzem
são tão distintos do sentido geral para o qual apontam os princípios
e as leis próprias da humanidade civilizada, é conveniente e mode-
rado admitir que estas leis são, no mínimo, suspeitas.
O texto é marcado mais uma vez pelo seu modo prudente de
actuar, Burke argumenta que todas as leis, num momento ou nou-
tro, são ou podem vir a ser, em certa medida, objecto de censura,
mas nem por isso são objecto de anulação. Para que tal seja legí-
timo, é preciso que se prove que não são apenas imperfeitas mas
que são perversas e que a sua aplicação contradiz a própria natureza
da lei, que é a defesa do bem comum, o que se provaria na análise
das leis contra os católicos. ~ando as transgressões contra o di-
reito e contra os fins perseguidos pelo governo justo são graves e
os seus efeitos se repercutem em toda a sociedade, ou pelo menos

26
Julgá-lo católico apenas pod e porvir de não católicos, porque o seu pensamen-
to polít ico, no que respeita à relação entre Igreja e Est ado, é claramente anglican o.
21

em grande parte dela, estamos perante uma objecção que atinge a


raiz e os princípios da própria lei a qual, ao reger-se por um princí-
pio pervertido, não é boa pela sua eficácia mas são os seus defeitos
que resultam em benefício 27 • Esta inversão nos princípios de uma lei
permite que se manifeste o seu carácter antinómico.
No caso das leis contra os católicos, ninguém pensa que man-
ter um grande número de pessoas afastadas não apenas de privilé-
gios mas das comuns vantagens para as quais se constituiu a socie-
dade possa fazer-se para o bem dessas pessoas ou possa alguma vez,
ainda que tacitamente, ser ratificado por elas. As leis que se aplica-
vam à Irlanda careceriam desse sancionamento e não poderiam ser
reconhecidas propriamente como leis 28 •
Burke tentou passar ao filho, Richard Burke - embora sem
grande sucesso - a missão de lutar pelos direitos dos católicos ir-
landeses. Este, não tão experiente e certamente com menos tacto,
ganhou mais opositores que aliados durante a sua permanência na
Irlanda.
A sua tentativa de influência está também documentada no
texto escrito para influenciar/ aconselhar o governo da Irlanda por
ocasião de conflitos graves em Julho 1780, Some Thoughts on the
Approaching Executions, Humbly Ojfered to Consideration, onde
preconiza um procedimento a um tempo justo e clemente caracte-

Cf. Ivone Moreira, Op. Cit. , p. 320.


28
"They have no right tO make a law prejudicial tO the whole community, ( ... )
because it would be made against the principie of a superior law, which it is not in the
power of any communiry, o r of the whole race of mantO alter, - I mean the will of Him
who gave usou r nature, and in giving impressed ·a invariable law upon it. It would be hard
tO point out any error mo re truly subversive of ali the order and beauty of ali the peace
and happiness ofhuman society than the position that any body of men have a right to
make what laws they please, - o r that laws can drive any authority from their instirution
merely, and independent of the quality of the subject mane r. No arguments of policy,
reason of state, o r preservation of the constitution can be pleaded in favour of such a prac-
tice". Burke ( 1866), Fragments ofa Tract Relative to the Laws Against Popery in lreland,
Works VI, p. 322.
22

rizado pela prudência, pretendendo moderar, embora sem grande


êxito, as decisões do governo.
Durante roda a sua vida o papel de Burke a favor da Irlanda
foi notável. A sua correspondência com Sir Hercules Langrishe,
um depurado do Parlamento irlandês com quem Burke discute a
situação dos católicos e a quem dirige petições, e através de quem se
pode dizer que Burke influencia os destinos da Irlanda, mantém-se
até ao final da vida de Burke e é disso um exemplo.

Burke abolicionista
A abolição da escravatura também teve nele um defensor.
Burke reconhece que a situação de escravatura não é compatível
com a dignidade humana em nenhuma das suas formas , mas reco-
nhece também que a abolição imediata da mesma era impossíveF9 :

19
Cf. Ivone Moreira, Op. Cit., p . 205, nota 705: A sua baralha pela abolição da
escravatu ra teve vários modos de envolvimento, como muito bem se mostra na extraordi-
nária investigação de F. P. Lock: "Abour 1780, when (as he !are r said) aboli rion appeared
a chimerical projecr, Burke drew up a 'Skerch of a Negro Code' an elaborare sysrem of
regularions imended to improve rhe r rearmem of slaves" que, como aqui se refere, prepa-
ra a libertação futura dos escravos e rem uma função provisória, não se destina apenas à
melhoria das condições de vida dos escravos. Lock reporta outra fase do seu envolvimento
na questão : "Burke 's decision to resrricr himself to 'grear consriturional quesrions' meam
rhar he did no r comribure to rhe debate of2 Apri l 1792 on rhe abolirion of rhe slave rra-
de. On rhis occasion, perhaps because public op inio n was overwhelmingly againsr rhe rra-
de (hundreds of peririons had been received againsr ir), many of irs suppo rrers chose nor
to oppose abolirion outrigh r, bur to endorse an amendmem proposed by Henri Dundas,
inserring rhe wo rd 'gradually' imo rhe resolurion rhar rhe rrade ough r to be abolished.
Burke would cerrainly supporred rhe amended morion, which, approved by 193 to 125,
marked rhe apogee of rhe anri-slavery movemem in h is liferime. Bur whar precisely was
his arritude to rhe amendme m ? ln earlier debates he had spoken in favour ofimmediare
abolirion. H is silence on rhis occasion could be imerp rered as a weakening of his oppo-
sirion, may h ave conrribured to rhe equivocai nature of h is legacy on rhe subjecr. Afi:er
his dearh, advocares and opponems of abolirion borh claimed his appro barion ". Lock
(2006), Op. Cit., Vol. II, p. 4 13.
Em An Account ojthe European Settlements in America (An Account) , já é aflorado
o problema da escravatura. A obra é publicada anonimamente em 17 56-7, o editor de
1808.julga ter evidência da autoria de Edmund Burke. No tempo de Burke, Boswell e
agora o autor da sua melhor biografia, Lock, são da opin ião que muito do texto veicu la
23

[considera ser] vantajoso, e conformável com os princípios da


verdadeira religião e moralidade, e com as regras de uma política
correcta, pôr fim a todo o tráfico na pessoa dos homens, e à manu-
tenção das ditas pessoas no estado de escravatura, tão cedo quanto
isto possa fazer-se sem produzir grandes inconvenientes na súbita
mudança de práticas com tão longa permanência e, durante o tempo
da continuação das ditas práticas, considera ser desejável e vantajo-
so, através de regulações apropriadas, aliviar os inconvenientes e os
males que acompanham o referido tráfico e estado de servidão, até
[que] ambos venham a ser gradualmente extintos (.. .)3°.

as ideias de Edmund Burke. Baseando-se em An Account, Lock refere que os Burke acei-
tavam a escravatura como uma necessidade económica e o tratamento mais humano dos
escravos pelas mesmas razões: "Indeed they make a purely economic case for the more
human treatmem of slaves: less brurally". Lock ( 1998), Op. Cit., vol. I, p. 133. A leitura
atenta que se fez de An Account mostrou também outros aspectos. De facto, já tão cedo
quanto 1756/7 período em que a obra foi esc rita, os au tores defendem qualquer coisa de
oJ
muito se melh ante ao que vai aparecer, mais elaborado e assumido, em Sketch a Negro
Code. Ao comentarem a colonização fra ncesa elogiam o Code Noir que permitia, ao con-
trário do que acontecia com os escravos das colónias inglesas, um tratamento com uma
sensata mistura de humanidade e firmeza (An Account ...Vol. II , p. 47). Os dois jovens
autores, embora antecipando alguma discordância da parte dos principais envolvidos no
negócio da escravatura, e mantendo um certo compromisso com os preconceitos em vi-
gor, falam a favor de uma humanização no tratamento dos escravos e mesmo a favor de
uma sociedade, que afirmam ser a mais segura e de riqueza mais sólida, cuja estrutu ra
assentaria "in the number of low and middling men of a free condition, and that beauti-
ful gradation from the highest to the lowest where the transitions ali the way are almost
imperceptible" e acrescentam "to produce this ough t to be the aim and mark of every
well regulated commonwealth and none as ever Aourished upon other principies" (An
Account ... ,Voi. II , p. 118).
_;o "Whereas it is expedient, and comformable (sic ) to the principies of true re-
ligion and moraliry, and to the rules of sound policy, to pur an end to ali traflic in the
persons of men, and to the detention of thei r said persons in a state of slavery, as soon as
the sarne may be effected without producing great inconveniences in the sudden change
of practices of such long standing. and during the time of the continuance of the said
practices it is desi rable and expedient by proper regulations to lessen the inconveniences
and evils attendant on the said traflic and state of servitude, until both shall be gradually
clone away( ...)". Burke ( 1866), Sketch ofa Negro Code, Wo1·ks VI, p. 262.
24

Assim, à semelhança do Code Noir que já existia em França,


Burke empenhou-se, em 1780, na redacção de um Sketch a Ne- oJ
gro Code que se destinava a preparar a transição de uma sociedade
esclavagista para uma sociedade livre, manifestando deste modo o
que pensa da situação:

Se o tráfico africano pudesse ser olhado acendendo apenas a


ele mesmo, como um objecto isolado, eu julgo que a completa aboli-
ção seria, no conjunto, mais aconselhável do que qualquer esquema
de regulação e reforma. Em vez de tolerar a sua continuação cal qual
está, eu desejava sinceramente que ele acabasse 31 .

O que caracteriza sempre a sua actuação política é uma pre-


ocupação genuína por atender às circunstâncias - o que não deve
ser precipitadamente encarado como uma preocupação meramente
utilitarista, ignorando quaisquer princípios, mas antes como um
exercício prudencial - eis porque julga importante atender ao facto
de que muito da sociedade colonial está articulada e alicerçada na
escravatura e julga também que a Coroa de Inglaterra não tem ca-
pacidade para impedir à distância, de um modo efectivo, o tráfico,
pelo que seria sensato reformar primeiro para depois poder extin-
guir32.

3
' "If rhe African rrade could be considered wirh regard ro irself only, and as a
single objecr, I should rhink rhe mrer abolirion ro be on rhe whole more advisable rhan
any scheme of regularion and reform. Rarher rhan suffe r ir ro cominue as ir is, I hearrily
wish ir ar an end". Burke ( 1866), "A Lerrer ro rhe Righr Hon. Henry Dundas ...", Easrer-
-Monday nighr, 1792, Works VI, 257.
32
"I could nor rrusr a cessarion of rhe demand for rhis supply ro rhe mere ope-
rarion of any absrracr principie ( ... ) I am very apprehensive, rhar, so longas rhe slavery
cominues, some means for irs supply will be found. If so, I am persuaded rhar ir is bener
ro allow rhe evil, in order ro correcr ir, rhan by endeavoring ro forbid whar we cannor be
able wholly ro prevem, ro leave ir under an illegal, and rherefore an unreformed exisren-
ce". Burke (1866), "Lener ro rhe Righr Hon. Henry Dundas .. .", Easrer-Monday nighr.
1792, Works VI, 259.
25

oJ
O Skech a Negro Code pretende que sejam introduzidas leis
que protejam a dignidade humana do escravo dos abusos dos seus
senhores, e a educação e responsabilização progressiva dos escravos,
que passa pela introdução de trabalho remunerado e pela posse de
pequenas parcelas de terra, de molde a conduzir à libertação os es-
cravos que vão demonstrando estar preparados para a liberdade.
Burke não duvida que o respeito pela dignidade humana só será
atingido com a libertação do escravo. Nenhuma destas medidas
realiza esse propósito, tal como ele próprio afirma: "nada (... ) faz
um escravo feliz, mas [faz] um homem degradado" 33 .

A defosa dos indianos contra a administração tirânica por


parte da Companhia das Índias Ocidentais
A sua luta contra a opressão teve talvez um dos seus episódios
mais expressivos na investigação aturada que desenvolveu acerca da
administração inglesa na Índia, a qual era levada a cabo através da
Companhia das Índias Ocidentais34, e que haveria de culminar no
lmpeachment de Warren Hastings, o primeiro governador-geral
de Bengala, acusado de administração tirânica e ruinosa da Índia.
Burke presidia ao Secret Commitee que estava responsável pelo in-
quérito35.
33
"Nothing (... ) made a happy slave, but a degraded man". Burke ( 1816), Speech
Abolition ofthe Slave Trade, The Speeches ojthe Right Honourable Edmund Burke, in the
H ouse ofCommons and Westminster Hall, in four volumes, London: Longman, Hurst,
Rees, Orme, and Brown, Vol. III, p. 438.
34 Cf. Ivone Morei ra, Op. Cit. , p. 4: "A administração das feiro rias britânicas nas
Índias Orienrais considerava-se, de início, não ser tarefa do governo britân ico, mas am es
da East India Company. Com o tempo, esta companhia comercial recebeu dos monarcas
britân icos aurorização para adquirir possessões, administrar o território, constituir exér-
cito e cunhar moeda."
" Warren H astings, que foi o primeiro Governador Geral de Bengala, foi acu-
sado de vários crimes de má administração e alvo de impugnação, tendo sido condenado
na Câmara dos C omuns e absolvido na Câmara dos Lordes. Edmund Burke foi o líder do
comité parlamenrar, o Secret Committee, encarregado de investigar as irregularidades da
administração da East lndia Company e de levar por diante a impugnação.
26

É durante rodo o Impeachment que se estabelece de forma mais


estruturada a ligação de Burke ao direito natural. São constantes os
seus apelos à lei natural a cuja subordinação estava obrigada roda
e qualquer lei para poder ser válida. A administração das Índias ac-
tuava no desrespeito pela justiça fundamental usando o poder de
forma discricionária, sustentando o argumento de que o que era ti-
rania no ocidente poderia não o ser na Índia, o que Burke contesta:
Afirma em sua defesa que as acções não têm, na Ásia, a mesma
qualidade moral que estas mesmas acções teriam na Europa.( ... ) Ne-
gamos positivamente este princípio. Tenho autoridade para o negar
e sou chamado a fazê-lo. (... ) Estes Senhores formaram um plano de
moralidade geográfica, pela qual os deveres dos homens em situações
públicas e privadas não são para serem governados pela sua relação
com o Grande Governador do Universo, ou pela sua relação com a
humanidade, mas por climas, graus de longitude, paralelos, não de
vida mas de latitudes.( ... ) Nós contestamos esta moralidade geográ-
fica36.

~ando se percorrem os milhares de páginas que constituem


o processo de Warren Hastings assistimos a uma defesa renhida da
justiça que precisa seguir princípios universais de respeito pela dig-
nidade humana independentemente do contexto cultural em que
se exerce. O governo inglês na Índia precisava respeitar a cultura do
povo e actuar segundo verdadeiros princípios britânicos de liberda-
de, em defesa e protecção dos povos governados.

36
"H e as rold ( ... ) in h is defence rhar acrions in Asia do nor bear rhe sarne moral
qualiries which rhe sarne acrions would bear in Europe ( ...) we posirively deny rhar princi·
pie. Iam aurhorized and called upon ro deny ir. ( ...) rhese genrlemen have formed a plan
of geographical moraliry, by which rhe duries of men , in public and privare siruarions, are
nor to be governed by rheir relarion to rhe Grear Governor of rhe Unive rse, or by rheir
relarion ro mankind, bur by climares, degrees oflongirude, parallels, nor oflife, bur oflari-
rudes ( ... ) This geographical moralirv we do proresr agai nsr". Burke ( 1867), lmpeachment
of Wan·en Hastings, February 16, 1788, Works IX, pp. 447-8.
27

Em 1785 Burke manifesta pela primeira vez a intenção de pro-


cessar Hastings. O processo propriamente dito é votado no Parla-
mento em Maio de 1787 e começa efectivamente em Fevereiro de
1788. Haveria de durar até 1794 tendo sido muito penoso para to-
dos os envolvidos. Hastings era um homem poderoso e com muitos
amigos, todo o processo viria a representar para Burke um período
de perseguição pública que ele enfrenta galhardamente. Hastings é
julgado culpado das acusações na Câmara dos Comuns e acaba por
ser absolvido na Câmara dos Lordes em 23 de Abril de 1795.
O autor tinha a intenção de abandonar o Parlamento a seguir
à conclusão do processo de Hastings, e fá-lo de facto quando os
trabalhos terminam em 1794, e antes que a Câmara dos Lordes se
pronuncie em 1795, afirmando no entanto que a luta travada para
moralizar o poder exercido na Índia em defesa daquele povo era o
que considerava de mais importante na sua carreira, tudo o mais
que ele tivesse feito poderia ser esquecido.

A defesa dos Colonos americanos


Outro aspecto bem conhecido da sua vida parlamentar, pos-
to frequentemente em paralelo com a sua crítica à Revolução Fran-
cesa, é a defesa dos direitos dos colonos americanos. De facto, sem
que se possa dizer que apoia a Revolução Americana, Burke apoia
a luta dos colonos americanos, porque entende que o espírito que
preside às suas reivindicações é o mesmo que enforma as aspirações
dos ingleses porque respira os mesmos princípios de liberdade.
Combater ou desacreditar as exigências dos Colonos era impossível
sem pôr em causa as próprias liberdades do povo inglês e aquilo por
que tinham lutado os seus antepassados:
Com o objectivo de provar que os americanos não têm direi-
tO às suas liberdades, estamos constantemente a tentar subverter as
máximas que preservam todo o espírita das nossas liberdades. Para
28

provar que os americanos não devem ser livres, somos obrigados a


denegrir o valor da própria liberdade, e nunca ganhamos a mínima
vantagem sobre eles no debate sem atacarmos alguns daqueles prin-
cípios ou sem ridicularizarmos alguns daqueles sentimentos pelos
quais os nossos antepassados derramaram o seu sangue 3i .

Dito assim: Burke apoia a luta dos colonos americanos, luta


essa que se agudiza e que culmina na Revolução Americana e na
independência da Colónia, poderia pensar-se que Burke, afinal,
sempre apoia algumas revoluções. É verdade que vai salvaguardar
o direito à revolta em determinadas circunstâncias mas, neste caso
específico, quando apoia os colonos, o que Burke preconiza é que o
governo inglês volte à sua forma anterior de relacionamento com a
Colónia: que suspenda o Stamp Act- que lançava o imposto sobre
o chá - que levou ao justo protesto que na altura se desencadeou.
O governo de Inglaterra reivindica o seu direito em abstracto a taxar
a Colónia, uma vez que é a sua legítima potência administradora,
e é a isso que Burke se opõe, obedecendo a um antigo preceito: de
tallagio non concedendo, que supõe ser necessário o consentimento
para o lançamento do imposto: não taxar quem não está represen-
tado no Parlamento e não pode, por isso, ter dado o seu consenti-
mento.
Os seus discursos no Parlamento apontam todos para a sus-
pensão do imposto sobre o chá, este sim inovador e "revolucioná-
rio" no que respeita às relações antes mantidas entre a Inglaterra e
a sua Colónia. Relações que se tinham desenvolvido ao longo do

r " ( ... ) in arder to prove rhar rhe Americans have no righr to rheir liberries, we
are every day endeavoring to subverr rhe maxims which preserve rhe whole spirit of our
own. To prove rhar rhe Americans oughr nor to be free, we are obliged to depreciare rhe
value of freedom irself; and we never seem to gain a palrry advanrage over rhem in debate,
wirhour arracking some of rhose principies, or deriding some of rhose feelings, for which
our ancesrors have shed rheir blood". Burke ( 1865), Speech on Conciliation With the Co-
Úmies, Works li, p. 130.
29

tempo num respeito mútuo, que tinham sido objecto de reformas e


de cedências de parte a parte, e que estavam agora a ser prejudicial-
mente afectadas pela reivindicação abstracta de um direito a lan-
çar imposto, reivindicação que era a um tempo injusta e insensata.
Injusta porque, ao arrepio do respeito que se devia às liberdades e
direitos dos ingleses - fossem estes do continente ou das colónias
- se estava a tentar instituir um imposto votado num parlamento
sem a correspondente representatividade; e insensata, porque, pela
afirmação prepotente de um direito abstracto de domínio, que ma-
terialmente representava muito pouco, se punha em causa, como de
facto se pôs, todo o proveito de uma associação de longa data com
a América 38 •
Burke não era favorável à independência da América. Apre-
ciador da Constituição inglesa, achava que era uma grande vanta-
gem para qualquer colónia viver sob administração britânica, acha-
va isso para a América, como achava para a Índia e já tinha achado
isso para a sua Irlanda natal. Mas Burke era um grande defensor da
liberdade e o que se estava a fazer era uma grande ofensa à liberda-
de. Era também um grande defensor da prudência política - não
uma cautela mesquinha a que Burke chamou expressivamente rep-
tile prudence - mas uma prudência com respeito pelos princípios e,
como não podia deixar de ser, com atenção às circunstâncias. O que
estava a acontecer no procedimento de Inglaterra com a sua colónia
era que, em nome de um direito em abstracto ao domínio - em
abstracto porque não se estava a atender nem às circunstâncias nem
às consequências como mandaria uma deliberação política pruden-
te- , se estava a atropelar direitos que eram respeitados na terra-mãe
e que se deveriam respeitar na colónia porque os colonos eram tam-
bém cidadãos britânicos.

38
f questionável a ideia de Burke de que bastaria à Inglaterra desistir do Stamp
Act para que as relações com a C olónia voltassem ao que eram am es. f mesmo provável
que o movimento independentista tivesse eclodido mesmo sem o Stamp Act, ou após a sua
revogação.
30

De facto, o que há a reter da posição de Burke nesta contenda


é que ele defende que a Inglaterra volte à relação que anteriormente
mantinha com a Colónia, que respeite os direitos consignados na
sua própria Constituição aplicando-os também aos colonos, que
pondere prudentemente quais são os seus direitos em relação à Co-
lónia e quais os seus deveres e que não decida por um direito que,
apesar de válido em teoria, é verdade, porá em causa toda a relação
construída até ali. O que Burke propõe é que a Inglaterra não inove
na sua relação com a Colónia, que respeite a liberdade dos seus súb-
ditos, porque isso fortalecerá os laços existentes, com o que o pró-
prio Império tem tudo a ganhar. ~e não faça política baseada em
direitos abstractos mas atendendo à herança recebida, à tradição, ao
preconceito dos colonos e à prudência.
Não sendo um crítico do Império Britânico, bem ao contrário,
prezava os princípios de liberdade presentes nas instituições e nos
princípios de governação britânicos e ser súbdito do rei de Inglater-
ra era, em seu entender, um privilégio, na condição de que o rei não
se esquecesse de que deveria governar o Império segundo os princí-
pios ingleses mas no respeito pelas liberdades e idiossincrasias dos
povos que administrava39 •
Estes são alguns exemplos da luta persistente que Burke julga-
va ser o papel de um verdadeiro amante da liberdade. Como ele pró-
prio afirma nas Rejlections, os radicais mais apaixonados esgotam o
seu entusiasmo, com mais ruído que efeito, numa qualquer causa
espectacular do momento, mas depois deixam o trabalho mais con-
tínuo, e de efeitos mais profundos, para os que amam a liberdade
mais do que o palco.
Uma carreira longa e brilhante de deputado Whig, que sem-
pre teve um papel preponderante nas lutas pela liberdade que aci-
ma enunciámos, fez que fosse grande a surpresa em muitos meios,
quando Burke se pronunciou contra a Revolução Francesa. Thomas
19
· Cf. Ivone Moreira, Op. Cit., p. 3.
31

Jefferson chega mesmo a afirmar que o surpreende mais a revolução


em Burke do que a Revolução Francesa40 • Acusações de contradi-
ção e incoerência com os seus anteriores princípios levantaram-se
na altura e persistem mesmo na história dos seus comentadores.
Burke esclarece a coerência das suas posições numa obra publicada
em 1791 e intitulada Appeal ftom the New to the Old Whigs. De
facto, quem se preocupar com uma leitura atenta da sua obra, e dos
princípios políticos que defende, verifica que estes permanecem
inalterados desde muito cedo, mais precisamente desde 17 57, data
do prefácio à segunda edição da Vindication ofa Natural Society.

As Rejlections on the Revolution in France

Em 1 de Novembro de 1790 é publicada em Londres, por Do-


dsley, o Editor de Burke, a obra com o título: Rejlections on the Re-
volution in France and on the Proceedings in Certain Societies in Lon-
don Relative to That Event in a Letter Intended to Ha ve Been Sent
to a Gentleman in Paris. A forma adoptada para a publicação é a de
uma suposta carta a um correspondente francês. O correspondente
existiu, e como o próprio Burke esclarece, motivou o seu primeiro
levantamento de problemas relativos ao evento, o que constituiria
o conteúdo de uma primeira carta que não chegou a ser enviada por
receio de o prejudicar. Mas, de facto, era também verdade que este
estilo permitia um desenvolvimento mais informal da argumenta-
ção com um tom mais cativante para o leitor, e permitia abordar
questões morais e políticas de uma forma mais directa. O panfleto
político, por vezes longo e sob a forma de carta, era usual na altura.

Pela sua extensão e pela estrutura que acaba por assumir, só


esporadicamente este texto nos lembra uma carta. Não sendo um
texto sistemático ou um tratado teórico, é mais estruturado do que
40
"( ..• ) che Revolucion in France does not astonish me so much as che revolucion

in Mr. Burke", lhe Papers oflhomasj ejferson , 20, p. 304. Citado por Yuval Levin (2014)
lhe Great D ebate, New York: Basic Books, p. 35.
32

uma carta seria e o seu tom é, logo desde o início, pedagógico, o


que se compreende, já que o correspondente, Charles Jean François
Depont, era um jovem amigo de seu filho que tinha passado algum
tempo, em anos anteriores, na propriedade de Burke em Beacons-
field.
De Janeiro a Março de 1773, Burke tinha viajado até ao Con-
tinente com o filho , que aí iria passar algum tempo com o intuito
de aprender a língua. Esta passagem por França permitiu-lhe fazer
algumas amizades. Entre elas se conta a família do jovem Charles
Jean François Depont, que Burke recebe em Beaconsfield. ~ando
a Revolução eclode, este último apressa-se a escrever a Burke solici-
tando a sua opinião sobre os acontecimentos. Charles Jean François
Depont tinha ouvido Burke falar entusiasticamente sobre a liber-
dade, o que lhe teria causado uma viva impressão. Na sua breve, e
não muito interessante, resposta ao autor das Rejlections, publicada
em 1791 , Depont refere-se a essas conversas como ocasião de uma
descoberta que o tinha empolgado, julga então que a revolução em
França tem o apoio do velho e experiente parlamentar inglês 41•
O jovem Depont não é o único a pensar que Burke há-de ser
favorável à Revolução Francesa. Outros, que o deveriam conhecer
melhor, pensam o mesmo. ~ando a Revolução eclodiu, figuras
como Thomas Paine que tinha sido um activista a favor da Revo-
lução Americana, e que, nessa qualidade, tinha tido em Burke um
interlocutor favorável, pelo menos em certa medida- de facto, não
nos mesmos princípios, já que Paine era um republicano e Burke,
como antes se mostrou, apenas queria defender os direitos dos co-
lonos, não implantar uma república -, ou Jean-Baptiste Cloots,
barão francês, diletante e ateu, com grande fervor pela Revolução
Francesa, guilhotinado em 1794, que tinha sido visita de Burke em
Beaconsfield dez anos antes, escreveram-lhe longas cartas contando

41
Charles Jean François Deponr ( 1791 ),An Answer to the Rejlections ofthe Right
H onourable Edmund Burke, London.
33

pormenorizadamente os sucessos da Revolução Francesa em tom


de quem os partilhava com um correligionário.
~ando Burke anuncia que vai publicar um panfleto contra-
-revolucionário, a notícia é inesperada e muito mal recebida: que
um confessado apoiante das reivindicações dos colonos america-
nos fosse agora um inimigo da Revolução Francesa, que alguns jul-
gavam baseada nos mesmos princípios, era algo incompreensível,
mesmo para os amigos mais próximos de Burke. E, a partir de 1790,
Burke enfrentou oposição vinda de todo o lado: o seu amigo de
sempre, Charles James Fox, líder parlamentar dos Whigs, que diri-
gia a facção que apoiava a Revolução Francesa, opôs-se às posições
de Burke; os Tory, que viriam a dar origem ao actual partido conser-
vador, que admiraram profundamente o texto das Rejlections, não
estavam abertamente ao lado do seu autor, pelo menos de início.
Afinal, Burke tinha sido o orador brilhante que durante décadas
criticara as posições Tory na bancada Whil 2•
A primeira questão que se pode imediatamente colocar quan-
do analisamos o título é: porquê referir-se à Revolução Francesa
como revolução na ou em França? Burke acreditava que a Revo-
lução não era uma insurreição de todo o povo de França, acredi-
tava antes que o povo francês estava a ser manipulado por grupos
intelectuais, com uma agenda definida, jacobina, que se reuniam
há algum tempo nos salões de Paris. Estes grupos, de constituição
variada, de que tomavam parte os enciclopedistas, eram cliques que
teriam mobilizado os cabecilhas que depois levaram os parisienses
às ruas da capital, mas o resto do povo de França tinha sido forçado
a aderir muito contra a sua vontade. Reconhecendo que o Ancien
R egime requeria reforma, julga também que esta reforma já tinha
começado e que o rei Luís XVI era um monarca disposto a atender
às reivindicações do povo, como o demonstrava a convocatória dos
Estados Gerais.

'' Cf. l"one Mo reira, Op. Cit., p. 6.


34

Ao contrário da ideia de que os sujeitos transportam os di-


reitos naturais para o interior da sociedade civil, Burke julga que a
constituição da sociedade supõe, precisamente, que os sujeitos que
se dispõem a entrar nela abdicaram de parte dos seus direitos natu-
rais para adquirir outros apenas possíveis em sociedade. E, embora
não tenham deixado de possuir direitos naturais, no interior da so-
ciedade política, estes sofreram os ajustamentos necessários à sua
satisfação, e já não se apresentam com a clareza lógica dos direitos
naturais mas, contudo, são mais reais e efectivos 43 . Os benefícios da
Sociedade Civil resguardam e dão forma à satisfação dos direitos
naturais e essa forma é tanto mais eficaz quanto a sua resposta às
necessidades humanas foi ajustada ao longo de gerações.
No contrato social burkeano efectiva-se um compromisso en-
tre várias gerações, entre os que estão monos, os que estão vivos
e os que hão-de nascer, porque se trata de uma parceria em bens
cuja conquista demora várias gerações a conseguir e que não é para
ser destruída por uma atitude egoísta e imprudente. Este contrato
é um compromisso entre várias gerações e destas com a ordem eterna,
um compromisso moral de realização do humano, de que cada ge-
ração não se pode eximir e onde se reconhece que apenas uma longa
cadeia de gerações pode apurar a sociedade de molde a que esta per-
mita a plena realização do homem.

Este contrato não pode ser quebrado como um acordo comer-


cial porque é uma parceria, cultural, moral e espiritual. A sociedade
existe para o aperfeiçoamento humano e os indivíduos devem ver
nela um bem superior que não podem malbaratar. Nesta sociedade
todos têm qualitativamente iguais direitos e alguns destes direitos

43
"These meraphysic righrs emering imo com mon life, like rays of lighr which
pierce imo adense medi um, are, by rhe laws ofNarure, refracred from rheir srraighr line.
Indeed, in rhe gross and complicared mass of human passions and concerns, rhe primirive
righrs of men undergo such a variery of refractions and reAections rhar ir becomes absurd
to ralk of rhem as if they cominued in rhe simpliciry of rheir original direcrion ". Burke
( 1865), Rejlections on the Revolution in France, Works III, p. 312.
35

são incomensuráveis e por isso iguais para todos- como o direito à


vida e à liberdade; mas outros, embora qualitativamente iguais são
quantitativamente diferentes e variam de sociedade para sociedade
e cada um tem direito à proporção que ele, e a sua família antes dele,
investiu na comunidade política.
Se é possível pôr em causa a sociedade política quando em cir-
cunstâncias de tirania extrema, é preciso que não haja qualquer ex-
pectativa de melhora, o que não era o caso da França em 1789. Uma
revolução no governo serve para remover um mal cruel e premente
e deve ver-se com grande clareza o bem inequívoco a obter daí, an-
tes de pôr em causa o inestimável preço da moral e do bem-estar de
multidões pela revolução 44 •
~ando estudamos a sua correspondência deste período com
franceses 45, vemos que mantinha contacto com pessoas que conhe-
ciam bem a França profunda e lhe reportavam outras sensibilidades
do povo francês e o profundo desagrado com que este tinha de cor-
responder às exigências dos enviados de Paris.
Burke caracteriza a Revolução em França como a primeira re-
volução intelectual, concebida e desenhada teoricamente e levada
a cabo com a arrogância e a presunção de quem não nutre qual-

44
Cf "( ... ) the case of a revolution in government, this, I think, may be safely
affirm ed, - th at a so re and pressing evil is to be removed, and that a good, great in its
amount and unequ ivocal in its nature, must be probable alm ost to certainry, before the
inestimable price of ou r own morais and the well-being of a number of ou r fellow citizens
is paid for a revolutio n". Burke ( 1866 ),Appealfrom the New to the Old Wh igs, Works IV,
P· 81.
45
Eis algu ns dos corresponde ntes franceses deste período: Jean-Batiste- Fran-
çois-Pierre Parisot, fa mília do Bispo de Auxerre. A família Pari sor escreve a Burke contan-
d o as perturbações do período revolucionário em Auxerre. Ourros seus co rrespondentes
são figuras de relevo, algumas de futuros exilados: Agathon Marie René de la Bintinaye,
C harles-Alexandre de Calonn e, anrigo controlado r geral das fin anças, Pierre-Gaeton
Dupo nt, que vi rá a traduzi r as Rejiections para fra ncês, Abbé H onoré-Charles- Ignace
Foulon, François de Menonville, C laude François de Rivarol e Lally de T ollendal, C f.
Correspondence, Vol. VI, ao longo de rodo o volume, que é expressamente dedicado à
correspondênc ia deste período.
36

quer tipo de apreço pelo que as gerações anteriores construíram.


A mentalidade que subjaz a esta atitude é analisada em contraste
com a cultura inglesa que ele julga respeitadora da tradição e do
preconceito - termo que Burke usa com um sentido particular :
em Burke, o preco nceito não tem , habitualmente, um sentido pe-
jorativo: trata-se do preconceito associado à sua razão de se r, que
o autor designa por justo preconceito - não se trata de um costume
absurdo, mas de uma preferência justificada- ajuda o homem a de-
cidir mais rapidamente e a comprometer-se numa linha de actuação
condizente com a sabedoria sedimentada na sociedade em que se
vive ..6 . Burke considerava que o preconceito reflecti a uma espécie
de sentim ento moral que ocultava uma sabedoria profund a e que,
enquanto os franceses se empenhavam em destruir os preconceitos
sem se aplicarem a perceber se estes tinham ou não razão de ser, e
se valia ou não a pena preservá-los, os ingleses, sobretudo os mais
cultos, aplicavam-se a procurar a sua sabedoria escondida, o que se
provava valer a pena.

O que, internamente, desencadeia a escrita das Rejlections on


the R evolution in France é um Sermão pronunciado por um clérigo
diss idente muito erudito e considerado, Dr. Richard Price, numa
igreja na Antiga Judiaria ( Old j ewry ). O grupo qu e ass istiu ao ser-
mão dirigiu-se depo is para a London Tavern onde fez aprovar um
voto congratulatório que enviou à Assembleia ac ional Francesa.
Esta atitude preocupa Burke, preocupa-o que a sociedade inglesa
possa ser vista como apoiante da Revolução Francesa, preocupa-o
que este grupo, que ele não julgava importante nem representativo
no momento, pudesse ganhar popularidade, preocupa-o que os tu-
multos de França pudessem comunicar-se a Inglaterra, sobretudo,

* Co mo afirma Louis H um: "The com mon prejudices of a nari on are superio r
to the reason of rhe ind ividual, not o nly because they are the repo irory of rhe practical
wisdo m of preYious generati ons, bu t because uch p rejud ices engage the mind more effec ·
rivek rhan do rational precepts alo ne". Louis Hunt (2002 ), "Prin cipie and Prejudice:
Burke, Kant & H abe rmas on Prac t ical Rea on", H istory oJPolitical Thought, Vol. XXlll ,
n. 0 1, Sp ring, p. 132.
37

estando convencido, como está, de que se trata de uma revolução


de costumes, maneiras, convicções e que a permeabilidade da inte-
lectualidade inglesa pode acontecer, uma vez que estas ideologias
tinham começado a penetrar em alguns clubes ingleses e estavam a
fazer um caminho similar ao que tinham feito em França.
O líder da altura do partido Whig, a que Burke continuava a
pertencerr , Charles James Fox, defendia que a Revolução Francesa
se inspirava na Revolução Inglesa de 1688, posição não exclusiva
de Fox, outros o entendiam assim também. É também essa a inter-
pretação do autor do Dr. Price, o Teólogo Dissidente que Burke vai
criticar e a quem vai responder em grande parte do panfleto. Mas
esta posição de Fox foi motivo de profunda divergência de Burke
com o seu velho amigo e companheiro de partido. Burke aplica-se
nas Reflections on the Revolution in France a demonstrar a grande
diferença de princípios entre as duas revoluções, embora a sua in-
terpretação da Revolução de 1688 tenha um certo cunho original:
Burke escolhe apresentar a Revolução de 1688 como um acto de
unanimidade nacional, o que não é consensual entre os historiado -
res da Gloriosa Revolução.
Com esta resposta, a intenção de Burke é caracteristicamente
política. Afinal, Burke tinha estado na Câmara dos Comuns há dé-
cadas a combater pelos ideais em que acreditava e que, eles sim, se
opunham radicalmente aos ideais que presidiam à Revolução Fran-
cesa, não nas suas aspirações de justiça social, que também anima-
vam Burke, mas no modo como essa justiça se haveria de conseguir.
O objectivo do livro é alertar a sociedade inglesa para a riqueza da
sua própria Constituição e para o carácter demolidor da ideologia
,- Po r divergências q ue começaram com a Revolução Francesa, Burke abandona
o partido em 21 de Junho de 1794. Burke tinha há algum tempo afirmado que quando
terminasse o processo de impugnação de \Varren H astings deixari a o Parlamento. O pro-
cesso termina em Maio, no que respeita aos trabalhos da H ouse of Commons, e Burke
apresenta a sua demissão em Junho . Burke pensava deixar o seu lugar no Parlamento para
se r ocupado pelo seu filh o Richard Burke mas o seu filh o adoece gravemente e morre a
4 de Agosto desse mesmo ano deixando Burke devastado .
38

jacobina, que subjaz à Revolução que grassa em França, destrutiva


dos valores em que se funda a sociedade britânica, e cujas conse-
quências desastrosas estavam à vista no país vizinho.
As Rejlections on the Revolution in France são escritas antes do
período do terror, antes da condenação e morte do rei, antes da ex-
propriação das famílias nobres, antes de um general tomar conta
dos seus destinos, antes das invasões francesas. Burke prevê tudo
isto com perfeita clarividência.
O seu conhecimento da natureza humana permite-lhe ver dis-
tintamente, mais distintamente ainda porque à distância, a deriva
que estes líderes políticos sem qualquer experiência e com aversão
a ela- a quem anima apenas um espírito de engenharia social e que
julgam poder construir de raiz uma sociedade, sem atender ao teste-
munho transmitido pelas gerações precedentes e ao seu património
cultural -podem imprimir na sociedade de que, desgraçadamente,
tomaram conta, bem como naquelas a que futuramente se impuse-
rem.
O livro constitui uma extensa resposta às expectativas dos seus
opositores. Nele, Burke preocupa-se em distinguir os valores pelos
quais lutou toda a sua vida e que enformam a sociedade inglesa, dos
valores que subjazem aos acontecimentos em França.

Logo nos primeiros comentários que aparecem na correspon-


dência sobre a Revolução Francesa, numa carta a Lord Charlemont,
escrita a 9 de Agosto de 1789 - cerca de 3 semanas após da tomada
da Bastilha- Burke afirma:

(... ) quanto a nós aqui, todas as reflexões sobre assuntos in-


ternos estão suspensas pelo nosso espanto em relação ao fantástico
espectáculo exibido no país nosso vizinho e nosso rival (... ) a Ingla-
terra está atónita de espanto pela luta de França pela liberdade, sem
saber se há-de aplaudir ou reprovar! (... ) o espírito é impossível não
admirar; mas a velha ferocidade parisiense rebentou de um modo
39

chocante. (... ) se isro é carácter e não acidente, então este povo não
está preparado para a liberdade (... ) Entretanto, o andamento de
rodo este assunto é um dos mais curiosos materiais para especulação
que alguma vez se viu 48 •

Embora, publicamente, Burke viesse a revelar qual era a sua


posição face à revolução só seis meses depois, em 9 de Fevereiro de
1790, anunciando no Parlamento que iria publicar um panfleto
criticando a revolução, no comentário precoce da sua correspon-
dência já estava implícita a posição que Burke viria a tomar sobre
o assunto, da qual a defesa da liberdade civil e ordeira era um im-
portante aspecto. Para protecção desta liberdade, era indispensável
a preservação do património, intelectual e cultural, de costumes,
maneiras e instituições, que tinham crescido como organismos vi-
vos, adaptando-se, desenvolvendo-se e reformando-se, corrigindo
o que importava corrigir e preservando o que era digno disso, que
tinham mostrado saber proteger a herança de séculos e saber usar
a sabedoria acumulada pelas civilizações, que nenhum homem ou
grupo de homens isolado, poderia ultrapassar.
Em 1791, um ano após a publicação das Rejlections on the Re-
volution in France, Burke admite que talvez uma grande mudança
ou revolução de mentalidade esteja para ocorrer e seja inelutável :
Se é para ser feita uma grande mudança nos assuntos humanos,
as suas mentes estarão preparadas para ela, as opiniões e sentimen-

48
Cf. "As to us here ou r rhoughrs of every rhing ar home are suspended, by our
asronishmenr ar rhe wonderful Specracle which is exhibired in a Neighbouring and rival
Counrry ( ... ) England gazingwirh asronishmenr ar a French srruggle for Liberry and nor
knowing wherher to blame or to applaud! ( ... ) rhe spirir ir is impossible nor to admire;
bur rhe old Parisian ferociry has broken ou r in a shocking manner. (... ) if ir should be
characrer rarher rhan accidenr, rhen rhar people are nor fir for Liberry ( ... ) ln the mean
rime rhe progress of rhis whole affair is one of rhe mosr curious marrers of Specularion
rhar ever was exhibired ", Burke ( 1967), "Burke to rhe Earl ofCharlemont", 9 Aug. 1789,
Correspondente, Vol. VI, p. 10.
40

tos gerais irão nesse sentido. Todos os receios e rodas as esperanças


a seguirão e, então, aqueles que persistem em opor-se a esta pode-
rosa corrente parecerão resistir não tanto aos meros desígnios dos
homens, quanto aos próprios decretos da Providência. Não serão
resolutos e firmes, mas perversos e obstinados·•9.

Charles Vaughan 50 , um importante comentador, julga que


estas afirmações ilustram a humildade do autor capaz de aceitar a
Revolução Francesa como um desígnio da Providência e portanto
disposto a aceitar estas mudanças morais. Como outro comenta-
dor, Rodney Kilcup 51 , bem observa, esta aceitação passaria por con-
siderar os valores como essencialmente históricos.

Há, todavia, uma interpretação mais consentânea com toda a


prática de Burke. O autor considera a Revolução Francesa como
uma revolução intelectual, cujos princípios estão aguerridamente
presentes nas convicções dos seus líderes, tomando conta da cultura
49
"If a great change is to be made in hum an afFairs, rh e minds of man will be fir-
ted to ir, rhe gene ral opinions and feelings will draw that way. Every fear , every hope, will
forward ir; and rh en they who persist in opposing this mighry current in human afFairs
will appea r rather to resist the decrees of Provide nce itself th an the mere designs of men.
They will not be resolute and firm , but perver e and obstin are". Burke ( 1866), 7houghts
on French A.lfoirs, Works IV, p. 377.
50
"But, in sp ite of al i his in consistencies and ali h is fears, h is fait h in human
reason was so great, h is belief in the durv of following nature was so rrong. rh at !ater
enquirers might well be proud to reckon him among their rank ( ... ) Burke was prepared
to sacrifice the apparenr work of a lifetime in th e cause of rrurh. And h is humility had
its rewa rd. H e saw furrher rh an anv of h is conrempo raries. ( ... ) he had so mething of the
temper, he had so me earnest of the ideas, whi ch when once the smoke and roa r of
rhe barde were spe nt, would go to blend the unreasonable srubborn ness of the past, and the
no less unreasonable desrrucriveness of the presem , in a wider, a more reaso nable, and
perhaps more enduring whole" . Charles Vaugh an ( 1939), Studies in the History• ofPoli-
tica! Philosophy Before and After Rousseau II, Litde, A. G . Ed., M anchester: M anchester
U niversity Press, p. 63.
1
; "There are no genui nely perm anenr moral principies for the guidance of po-
lirics except in the absrract sense th at whatever God will fo r men is mo rally obligarory" .
Kilcup (Sep., 1977 ), "Burke's H istoricis m", 7hejournal ofModern History, Vol. 49, n. 0 3.
pp. 394-4 1O, p. 395.
41

e da mentalidade dos parisienses. Julga que, no presente estado de


coisas em França, a Revolução ainda não tinha o acordo de todos
os franceses. Estas observações expressam o seu receio de que, como
afirma nas Rejlections on the Revolution in France, esta mudança ve-
nha a ser aceite, de que "o tempo da cavalaria" tenha, de facto, aca-
bado e que a era dos sofistas, dos economistas e dos contabilistas se
lhe suceda52.
É verdade que Burke é humilde e vê na marcha da história a in-
tervenção da Providência divina. Também é verdade que já desde a
sua redacção do A bridgement on aEnglish History, várias décadas an-
tes, reconhece que Deus pode permitir revoluções no mundo moral
do mesmo modo que permite milagres no mundo físico . Todavia,
Burke não julga que os resultados imediatos de uma revolução ins-
taurem uma nova ordem de bem, como preconiza Kilcup ao julgar
que as afirmações de Burke em 1houghts on French Ajfàirs supõem
a historicidade dos valores. Para o irlandês os caminhos da provi-
dência são misteriosos e Deus pode retirar o bem do mal que permi-
te53 e a história é preceptora de prudência, mas não de princípios 54.
As observações de Vaughan não parecem ter em conta que a
sua estrénua luta contra a Revolução Francesa continua até à sua
morte, em Beaconsfield em 9 Julho de 1797. Burke estará disposto
a considerar que existe uma revolução moral e que ela é um desígnio
da Providência quando puder certificar-se de que as mudanças são
em geral aceites por toda a sociedade, mas a sua prática não indicia
que tivesse chegado a essa conclusão.
51
"But the age of chivalry is gone. That of sophisters, eco nomists, and calculators
h as succeeded; and eh e glory of Europe is extingu ished fo rever". Burke ( 1865), Rejlecrions
on rhe Revolution in France, Works III, p. 33 1.
53
Para um dese nvolvimento mais aprofund ado desta problemática: C f. Ivone
Moreira, Op. Cit. pp. 373-379.
5
' "Historv is a preceptor of Prudence, no t of principies. The principies of crue
politicks are those of moraliry enlarged; and I neicher now do o r ever will admit of any
ocher". Burke (1960 ), "Letterto Dr. Will iam Markham ", pose 9 November 177 1, Corres-
pondence 11, p. 282.
42

Depois da escrita das Reflections on the R evolution in France,


Burke publica várias obras de fôlego a analisar o andamento da
Revolução, defende que a Inglaterra deve declarar guerra à França,
corresponde-se com os franceses no exílio chegando a interceder
por eles incitando outros países a coligarem-se contra a França, che-
ga mesmo a escrever a Catarina da Rússia a pedir-lhe que interfira.
Abre uma escola francesa em Inglaterra, com donativos que anga-
ria, para ser frequentada pelos filhos dos refugiados franceses no
exílio, a escola mantém-se em funcionamento até 1814 e, após ore-
torno da monarquia, com financiamento do governo francês. Toda
esta combatividade não se pode atribuir a alguém que reconhece
os valores que chegam com a Revolução Francesa. Burke poderá
achar que é preciso não combater contra moinhos como o "Cava-
leiro da Triste Figura" e que, por isso, se a sociedade parecer toda ela
inclinada à mudança, é preciso assistir a essa mudança e não tentar
intervir, mas com a resignação de quem suporta um castigo divino.
Ao comentar a Revolução Francesa, numa longa carta a Lord Fit-
zwilliam, Burke afirma:
Meu Senhor, nada se pode aprender destes exemplos, excepto
o perigo de se ser rei ou rainha, nobre, clérigo, e filho e se ser morto
por causa do que se herda. Estas são as coisas às quais não o vício, não
o crime, não a loucura, mas a sabedoria, a bondade, o conhecimen-
to, a justiça, a probidade e a benevolência se opõem. Por estes exem-
plos a nossa razão e o nosso sentido moral não são esclarecidos mas
confundidos, e não há refúgio para a virtude pasmada e amedron-
tada, senão aniquilar-se em humildade e submissão, mergulhando
em profunda adoração das imperscrutáveis dádivas da Providência
e, voando com asas trémulas deste mundo, com crimes tão escanda-
- losos e uma justiça fraca e pusilânime, buscar asilo noutra ordem de
coisas numa forma desconhecida mas numa vida melhor" .

;s "My Lord, norhing can be learned from such examples, excepr rhe danger of
being kings, queens, nobles, priesrs, and children, to be burchered on accounr of rheir
inherirance. These are rhings ar which nor vice, not crime, nor folly, bur wisdom, good-
43

Burke poderá estar disposto a reconhecer que a marcha dos


acontecimentos é inelutável - a sua prática até à sua morte não in-
dica isso - mas não para adm itir que daí venha algum ganho para
a sociedade.
Muito mais haveria a dizer acerca de um autor muito rico e
pouco conhecido entre nós, com uma obra vasta - constituída,
fundamentalmente, por discursos e correspondência- que marcou
muito significativamente o século em que viveu e que, por atender
ao que no homem é essencial e se encontra enraizado na sua natu-
reza, escreveu páginas intemporais onde ainda hoje se pode colher
sabedoria política. Fica ao leitor saborear as magníficas páginas das
Reflexões sobre a Revolução em França e, acredite, muitas outras de
igual sagacidade e beleza se encontram em outros escritos seus que
vale absolutamente a pena visitar.

Ivone Moreira

ness, learning. justice, probity, beneficence, stand aghast. By these examples our reason
and ou r moral se nse are not enlightened, but confounded; and there is no refuge for as·
toni shed and affrighted virtue, but being annihilated in humility and submission, sinking
into a silent ado ratio n of the in scrutable dispensations of Providence, and flying with
trembling wi ngs from this world of daring crimes, and fee ble, pu sillanimous, half-bred,
bastard justice, to the asylum of another order of things, in an unknown form, but in a
better life". Burke ( 1866), Letter on Regicide Peace IV, Works VI, p. 42.
REFLEXÕES SOBRE A REVOLUÇÃO EM FRANÇA
E ACERCA DOS PROCEDIMENTOS
EM CERTAS SOCIEDADES EM LONDRES
RELATIVOS A ESTE EVENTO:
NUMA CARTA SUPOSTAMENTE ENVIADA
A UM CAVALHEIRO EM PARIS
1790
Pode ser necessário informar o leitor que as Reflexões que se
seguem tiveram a sua origem numa correspondência entre o autor e
um cavalheiro muito jovem de Paris, que lhe deu a honra de desejar
a sua opinião acerca das transacções importantes que na altura - e
desde então - tanto têm ocupado toda a gente. Uma resposta foi
escrita em tempos no mês de Outubro de 1789; mas ficou retida
por considerações prudenciais. Alude-se a essa carta no início das
folhas seguintes. Foi entretanto enviada ao destinatário. As razões
do atraso em enviá-la foram mencionadas numa carta breve para o
mesmo cavalheiro. Isso produziu nele uma nova e premente solici-
tação acerca dos sentimentos do autor.
O autor começou uma segunda discussão mais completa sobre
o assunto. Esta com o intuito de a publicar no início da Primavera
passada. Mas, cativado pelo assunto, descobriu que o empreendi-
mento não só tinha excedido em muito as dimensões de uma car-
ta, mas também que a sua importância requeria uma consideração
mais detalhada do que o tempo de que o autor dispunha na altura
para lhe dedicar. Contudo, tendo posto as suas primeiras reflexões
sob a forma de carta- e, de facto, quando se sentou a escrever ten-
cionava que fosse uma carta privada - teve dificuldade em mudar a
forma de endereçar-se quando os seus sentimentos ganharam maior
amplidão e outra direcção. O autor tem consciência de que um pla-
no diferente podia ser mais favorável a uma mais ampla divisão e
distribuição da matéria.
48

C aro Senhor56 ,
Tem a bondade de voltar a solicitar, co m alguma urgência, o
meu parecer sobre os últimos acontecimentos em França. ão lhe
darei motivos para pensar que julgo os meus sentimentos de tal va-
lo r a ponto de desejar que me supliquem por eles. São de pouca
importância, quer para serem comunicados quer escondidos com
grande ansiedade. Fo i por atenção a si, e apenas a si, que hesitei, em
tempos, quando primeiro os quis conhecer. Na primeira carta que
tive a honra de lhe escrever 57 e que, por fim , lhe enviei, não escrevi
nem para nem a pedido de nenhum grupo em particular, também
não o farei nesta. O s meus erros, se os há, são só meus e apenas a
m inha reputação responde por eles.
O Senhor pode ve r pela longa carta que lhe escrevi que, em-
bora eu de todo o coração deseje que a França possa estar animada
po r um espírito de liberdade racional e que pense qu e deveis estar
obrigados em toda a verdadeira política a criar um co rpo perma-
s6 Nota de traduto r (N .T. ) Carta a C harles Jean Franço is D epont (n. 1767·
· 1796·7 '? ), jovem que iniciou a sua carreira política em 1784 como membro do Parl a·
menro de M etz, sob os auspícios do seu pai J ean-Samuel D epont, Intendente em Metz.
Em 1787 torna-se co nsultor do Parl amento de Pa ris. A atitude do jovem D epo nt perante
a Revolução era de moderado optimismo . Resolve esc reve r a Bu rke em 4 de ove mbro de
1789 a ped ir-lhe a sua opinião sobre os recentes desenvolvimentos em França.
Escreveu depois um panflero respost a às Refl exões t raduzido para inglês e publica·
do em Londres em Fevereiro de 179 1, no qu al D epont mantém o seu mod erad o oprimi s·
mo, argu menta a favo r da necessidade d a Revolução, conden ando embora os exage ros e
os "crimes" de O utub ro, manife tando ao mes mo tempo a esperança de que a Revolução
entrasse no caminho de uma maior mode ração. Cf. Cha rles Jea n Franço is Depo nt ( 179 1)
An Answer to the Reflections ofthe Right H onourable Edmund Burke, Lo ndo n, pp. 5-6,
11 -14.
s· N .T. A sua prim ei ra carta, uma longa carta escrita 4 meses após a qued a d a
Bastilh a, é a pri meira análise ex tensa que Burke faz da ReYolução Francesa. Não é ime-
diatamente enviada, em seu lugar Burke envia u ma ou tra carta ma is cu rta, a q ual não
há notÍcia de ter subsistido, pensa-se que a primei ra é enviada apenas no iníci o de 1790,
aparentemente porqu e Burke recea,·a que a carta pudesse se r interceptada e remia pela
segurança do eu jowm correspondente. Esta carta enco ntra-se publicada em Tho mas
Copeland, Jo hn A. Wood Eds. ( 1967), The Correspondence ofEdmund Burke, Cambrid -
ge e Ch icago: Cambridge UniYersirY Press, YOI. V I, pp. 39-50 . (D e agora em d iante Cor·
respondence, n. 0 do ,·o!. e pág. ).
49

nente no qual esse espírito de liberdade resida e um órgão através do


qual possa actuar eficazmente, é com muita pena que tenho grandes
dúvidas a respeito de alguns aspectos concretos das vossas últimas
conquistas.

A partir da aprovação pública solene que receberam de dois


clubes de cavalheiros em Londres: a Sociedade Constitucional' 8
e a Sociedade da Revolução 59 , o Senhor imaginava, na sua última
carta, que eu pudesse talvez se r contado entre os que apoiam cer-
tos procedimentos em França. Certamente que renho a honra de
pertencer a mais do que um clube onde a Constituição deste reino
e os princípios da gloriosa Revolução são tratados com grande reve-
rência, considero-me eu próprio entre os mais ousados no meu zelo
por manter a Constituição e estes princípios na sua maior pureza
e vigor, e é porque faço isso, que penso ser necessário que não haja
acerca de mim qualquer equívoco. Aqueles que cultivam a memória
da nossa Revolução, e aqueles que estão ligados à Constituição des-
te reino, hão-de tomar muito cuidado no modo como se envolvem
com pessoas que, sob o pretexto de zelo acerca da Revolução e da
Constituição, muito frequentemente se desviam dos seus verdadei-
ros princípios e estão sempre prontos a afastar-se do espírito firme,
mas cauteloso e prudente, que produziu uma e que preside à outra.

Antes de responder aos aspectos mais pertinentes da sua car-


ta, peço-lhe que me deixe dar-lhe a informação que obtive acerca
dos dois clubes que, enquanto tais, acharam por bem interferir nos
assuntos da França - assegurando-lhe, antes de mais, que não sou,
nem nunca fui , membro de qualquer destas sociedades.
A primeira, chamando-se a si própria Sociedade Constitucio-
nal, ou Sociedade de Informação Constitucional, ou outro nome
;s .T. A Society fo r Constitutional Information fora fundada em 1780 e os seus
membros estan m empenhados na reforma constitucional. Acabariam po r se r dissolvidos
pelo governo em 1794.
19
A Revolution Society tinha sido fu ndada em 1788 aquando do centenário da
Glorious Revolution e para sua co memo ração.
50

semelhante, existe, creio, há sete ou o iro anos. A instituição des-


ta socied ade parece ter sido de natureza caritativa e, enquanto tal,
louvável: visava a circulação, a expensas dos seus membros, de mui-
tos livros, que outros, po ucos, tinham o encargo de co mprar, e que
po deriam ter p erm anec ido nas mãos dos livre iros, [o que seria] uma
grande perda p ara esta efic iente sociedade. Se os livros, q ue tão ca-
ridosam ente circularam , fo ram algum a vez lidos co m igual carida-
de é mais do que eu sei. Poss ivelmente algum as des tas obras fo ram
expo rtadas para França e, não tendo procura aqui , talvez tenham
encontrad o mercado entre vós. Ouvi falar bastante acerca das luzes
qu e se p odem colh er em livros enviados daqu i. D e como se to rna-
ram melho res na viagem (co mo se diz de certas bebidas alcoólicas
que mel ho ram ao atravessar o mar) não sei dize r, mas nunca o uvi
ninguém de bom senso, o u medi anam ente instru ído, dizer uma p a-
lavra em lo uvor d a grande maio ria das publicações fe itas circular
por esta sociedade. Ne m as activid ades desta socied ade são tidas
com o impo rtantes, salvo po r alguns dos seus sóc ios.
A vossa Assembl eia Nac io nal p arece manter a m esma opinião
que eu acerca deste p o bre clube de caridade. Como nação, reserva-
ram rod o o vosso acervo de agradec imentos eloquentes p ara a So-
ciedade da Revolução, quando os seus co ngéneres da Constitucio -
nal também tinham, em justiça, direito a uma parte deles. U m a vez
que escolheram a Sociedade d a Revolução como o grande objecto
dos vossos agradecimentos nac io nais e dos vossos louvo res, o Se-
nho r desculpar- me-á se eu fi zer da recente conduta desta Sociedade
o objecto das m inhas observações.
A Assembleia Nacio nal de França concedeu impo rtância a
estes cavalheiros adoptando-os e eles retri buíram o favor actuan-
do -como co m ité p ara a prop agação dos p rincípios da Assembleia
Nacio nal em Inglaterra. De agora em diante devemos co nsiderá-los
como um tipo de pessoas privilegiadas, como distintos memb ros do
co rpo diplomático. Esta é uma d as revoluções que conferiu esplen-
do r à obscuridade e d istinção a méritos até então desp ercebidos.
51

Até muito recentemente, não me recordo de ter ouvido falar


deste clube. Estou mesmo seguro de que ele nunca ocupou o meu
pensamento, nem por um momento, nem, creio, o de quem quer
que fosse fora dos da sua própria súcia. Inquirindo, fiquei a saber
que, no aniversário da Revolução de 1688, um clube de Dissiden-
tes60, não sei de que denominação, tinham há muito tempo o hábito
de ouvir um sermão numa das suas igrejas e a seguir passavam o
dia alegremente, como outros clubes fazem, na taverna. Mas nunca
ouvira dizer que alguma medida pública ou sistema político, muito
menos os méritos de uma constituição de uma nação estrangeira,
tivessem sido o alvo de um procedimento formal nos seus festejos,
até que, para minha indizível surpresa, os descubro numa espécie
de mandato público dando a sua aprovação aos procedimentos da
Assembleia Nacional france sa através de uma saudação congratu-
latória.
Nos antigos princípios e conduta do clube, pelo menos tanto
quanto eram manifestos, não vi nada que se possa censurar. Pen-
so que, muito provavelmente, novos membros se infiltraram com
algum propósito - e que alguns políticos verdadeiramente cris-
tãos, que gostam de conceder benefícios, mas que são cautelosos
em ocultar a mão que distribui a esmola, podem tê-los feito ins-
trumento dos seus desígnios piedosos. Ainda que eu tenha razão
para suspeitar de um controlo privado, falarei apenas do que tenho
a certeza e do que é público.
Teria pena que me julgassem directa ou indirectamente envol-
vido nas suas actividades. Certamente que tomo parte, juntamente
com o resto do mundo, privadamente e enquanto indivíduo, na es-
60
N .T. Dissidentes da Igreja Anglicana eram aqueles que recusavam subscrever
os 39 artigos de fé impostos pela Rainha Isabel, filh a de H enrique VIII. O s grupos de
dissidentes proliferavam e ganhavam denominações dive rsas de acordo com os princípios
da sua própria contestação. Para mais informação sobre o tema cf. William Waterworth
( 1854), Origin and Developments ofAnglicanism. OrA H ist01y ofthe Liturgies, H omilies,
Articles, Bibles, Principies and Governmental System of the Church ofEngland, London:
Burns & Lambert.
52

peculação acerca do que tem sido feito , ou que está a ser feito, na
cena pública, em qualquer lugar, amigo ou moderno- na república
de Roma ou na república de Paris, mas, não tendo nenhuma missão
apostólica universal, sendo um cidadão de um Estado particular, e
estando consideravelmente sujeito à sua vontade pública, teria jul-
gado no mínimo impróprio e irregular encetar uma correspondên-
cia pública formal com o actual governo de uma nação estrangeira,
sem a expressa autorização do governo sob o qual vivo.
Menos ainda quereria entabular essa correspondência sob a ca-
tegoria equívoca que, para muitos, não familiarizados com os nos-
sos costumes, poderia produzir um discurso ao qual eu me juntasse,
que se parecesse com um acto de pessoas investidas de dignidade
pública, reconhecidas pelas leis deste país e autorizadas a falar em
nome de uma parte dele. Por causa da ambiguidade e da incerteza
de grupos de carácter genérico não autorizados e do logro que pode
ser praticado sob a sua alçada, e não por mero formalismo, a Câma-
ra dos Comuns rejeitaria a mais secreta petição com o mais insig-
nificante propósito assinada por estas entidades. Vós escancarastes
as portas da vossa sala de audiências e fizestes entrar na vossa As-
sembleia Nacional um tal documento, com tão grande cerimónia e
aparato e com tal salva de aplausos, como se tivésseis sido visitados
pela majestade que representa roda a nação Inglesa.
Se o que esta sociedade tivesse achado próprio enviar-vos fosse
um discurso, teria significado pouco, fosse qual fosse o argumento.
Não teria sido nem mais nem menos convincente, atendendo ao
partido de que provinha. Mas isto é apenas um voto e uma reso-
lução. Baseia-se apenas na autoridade. Neste caso é apenas a mera
autoridade de indivíduos e poucos aparecem. As suas assinaturas
deveriam, em minha opinião, ter sido anexadas ao seu documento.
O mundo teria tido então meios de saber quantos são eles, quem
são eles e qual pode ser o valor das suas convicções, a partir das suas
capacidades pessoais, do seu conhecimento, da sua experiência,
ou da sua liderança e autoridade neste Estado. Para mim, que sou
53

apenas um homem comum, este procedimento parece um pouco


refinado e engenhoso demais, tem demasiado ar de estratagema
político, adoptado com o objectivo de dar uma importância às de-
clarações públicas deste clube, sob um nome sonante, importância
que, quando o assunto é observado mais de perto, estas declarações,
no seu conjunto, não merecem. É uma política que tem muito o
aspecto de fraude.
Orgulho-me de amar uma liberdade viril, moral e regrada,
tanto quanto qualquer um dos cavalheiros desta sociedade, seja ele
quem for. Talvez tenha também dado boas provas do meu apego a
esta causa no decurso de roda a minha vida pública. Penso que, tal
como eles, também eu não invejo a liberdade de outra nação. Mas
não posso apoiar, louvar, ou condenar, seja o que for que se rela-
cione com acções ou preocupações humanas, numa visão simples
do objecto, enquanto isolado, em toda a nudez e solidão da abs-
tracção metafísica. As circunstâncias (que alguns cavalheiros me-
nosprezam) dão, na realidade, a rodo o princípio político a cor que
o distingue e o efeito que o discrimina. As circunstâncias tornam
cada esquema, civil ou político, benéfico ou nocivo para a humani-
dade. Falando abstractamente, o governo, bem como a liberdade,
são bons, contudo poderia eu, com sensatez, há dez anos ter felicita-
do a França por gozar de um governo (porque ela tinha, então, um
governo) sem inquirir qual era a natureza desse governo, ou como
era administrado? Posso eu agora congratular a mesma nação pela
sua liberdade? Será por causa da liberdade em abstracto poder ser
classificada entre as bênçãos da humanidade que eu posso, com se-
riedade, felicitar um louco que se escapou do retiro protector e da
obscuridade benéfica da sua cela, porque ele voltou a gozar da luz
e da liberdade? Devo felicitar um salteador de estrada, assassino,
que se evadiu da prisão pela recuperação dos seus direitos naturais?
Isto seria representar de novo a cena dos criminosos condenados às
galeras e do seu libertador heróico, o metafísico Cavaleiro da Triste
Figura.
54

~ando vejo o espírito de liberdade em acção, vejo um vigo-


roso princípio a trabalhar, e isso, por enquanto, é tudo o que pos-
so saber acerca deste assunto. O gás em turbulência, o dióxido de
carbono 61, está em franca libertação : devemos suspender o nosso
juízo até que a primeira efervescência amaine um pouco, até que
o líquido se aclare e até que vejamos um pouco mais fundo que a
agitação da superfície inquieta e espumosa. Antes de me aventurar
a felicitar publicamente os homens por terem recebido uma bênção
preciso estar minimamente seguro que eles, de facto, a receberam.
A lisonja corrompe quem a recebe e quem a dá, a adulação tem a
mesma serventia para o povo que para os reis. Por conseguinte, eu
teria suspendido as minhas congratulações acerca da nova liberdade
de França, até que estivesse informado sobre como ela se articulava
com o governo, com a força pública, com a disciplina e a obediência
do exército, com a cobrança de um imposto efectivo e bem distri-
buído, com a moralidade e a religião, com a solidez e a propriedade,
com a paz e a ordem, com os costumes civis e sociais. Tudo isto (à
sua maneira) são também coisas boas e, sem elas, nem a liberdade é
um benefício, nem é de crer que dure muito.
O efeito da liberdade nos indivíduos é que eles podem fazer
o que lhes agrada: temos de ver o que lhes agrada fazer antes de
arriscar congratulações que poderão talvez em breve transformar-se
em queixas, a prudência recomendaria isto tratando-se de homens
isolados e em privado, mas a liberdade quando os homens agem
corporativamente é poder. As pessoas prudentes, antes de se pro-
nunciarem, devem observar o uso que é feito do poder - particu-
larmente de uma coisa tão complicada quanto um novo poder em
novas pessoas, acerca de cujos princípios, carácter e temperamento
se conhece pouco ou nada, e em situações onde aqueles que mais
aparecem em cena podem não ser os verdadeiros motores da acção.

61
A expressão usada é "the fixed air" designação utilizada para o dióxid o de car·
bono. Este gás teria sido descoberto po r Jan Baptiste van Helmom e designado como tal
por Joseph Black ( 1728-99 ).
55

Contudo a Sociedade da Revolução considerou a sua dignida-


de transcendental acima de todas estas considerações. Enquanto eu
estive no campo, de onde tive a honra de lhe escrever, não tinha uma
ideia clara dos seus negócios. Indo eu para a cidade, mandei procu-
rar uma relação do que tinham publicado que incluía o sermão do
Dr. Price, a carta do Duque de La Rochefoucault e do Arcebispo de
Aix 62 e vários outros documentos anexos. Todas estas publicações,
com o propósito claro de vincular os assuntos de França aos de In-
glaterra e o desígnio de nos levar a uma imitação da conduta da
Assembleia Nacional, deixaram-me bastante inquieto.

O efeito da conduta da Assembleia sobre o poder, o crédito,


a prosperidade e a tranquilidade da França torna-se cada dia mais
evidente. A nova constituição, a estabelecer para a sua futura po-
lítica, torna-se mais clara. Estamos agora em condição de discernir
com uma precisão razoável a verdadeira natureza do modelo que
nos é apresentado para que o imitemos. Se a prudência da reserva
e do decoro ditam o silêncio em algumas circunstâncias, em outras
circunstâncias uma prudência de ordem mais elevada pode justifi-
car que se diga o que se pensa. Sem dúvida que a confusão em Ingla-
terra é ainda muito pouca, mas convosco vimo-la ainda mais fraca
no início e cresceu até ser uma força capaz de empilhar montanhas
sobre montanhas e declarar guerra ao próprio Céu. ~ando a casa
do vizinho está a arder, não é despropositado accionar as bombas de
água na nossa. É preferível ser ridicularizado por se preocupar com
muita ansiedade do que arruinar-se por estar demasiado confiante.

Ainda que a situação no vosso país me preocupe, estou sobre-


tudo preocupado com a paz do meu próprio país, por isso quero
difundir mais amplamente o que primeiro foi pensado ser apenas
para a sua própria satisfação. Continuarei, contudo, a visar os vos-
sos assuntos e continuarei a dirigir-me a si, permitindo a mim pró-

62
O Arcebi spo de Aix era o pres idente da Asse m bleia Nacional no fi nal de 178 9
e é em se u no me que segue a resposta aos ,·oros e m-iados pela Sociedade da Revolução .
56

prio a liberdade da relação epistolar. Peço-lhe que me deixe deitar


cá para fora o que penso e expressar o que sinto tal como me chega
à mente, com muito pouca atenção ao aspecto formal 63 .
Comecei pelos procedimentos da Sociedade da Revolução,
mas não me limitarei a eles. E seria possível limitar-me? Vejo-me
como se estivesse no meio de uma grande crise, não apenas dos as-
sumos de França, mas dos de toda a Europa e talvez de mais que
da Europa. Tendo em coma todas as circunstâncias, a Revolução
Francesa é a mais espantosa que até agora aconteceu no mundo. As
coisas mais extraordinárias são provocadas em várias instâncias pe-
los meios mais absurdos e caricatos, da maneira mais ridícula e, apa-
rentemente, pelos instrumentos mais vis. Tudo parece comranarura
neste estranho caos, de leviandade e ferocidade, de toda a espécie de
crimes misturados com toda a espécie de loucuras. Ao ver esta cena
monstruosa tragicómica, as paixões mais contraditórias sucedem-se
necessariamente e, por vezes, misturam-se umas com as outras na
alma: alternando o desprezo e a indignação, alternando o riso e as
lágrimas, alternando o escárnio e o horror.

Contudo, não pode negar-se que, para alguns, este espectácu-


lo estranho aparece sob um outro ponto de vista, a esses inspira ape-
nas sentimentos de exaltação e entusiasmo. Em tudo o que está a ser
feito em França, não vêem mais do que um exercício de liberdade
firme e comedido - no seu todo, tão compatível com a moral e a
piedade que o faz merecer não apenas o aplauso secular de políticos
arrojados e maquiavélicos, mas também tornar-se um tema apro-
priado para todas as efusões devotas da eloquência sacra.

63
A propósiro do estilo epistolar aqui utilizado F. P. Loc k afirm a que há muito
que a "carta a um amigo" era a forma favorita p ara os panAerários polít icos porque ofe-
recia as vantagens de se r um texto directo que rornava mais acei táve is e mais credíveis os
apelos à ética e às emoções. Cf. Frederick Peter Lock ( 1985), Burke's Rejlections on the
Revolution in France, London: George Allen & U nwin, p. 11 4. De facto , o estilo ep isrolar
estava em voga e a ideia de que o autor escreverá livremente, como sugere, é também ela
um artifício literário. já que é visível que Burke presta muita atenção ao estilo durante
rodo o texto.
57

Na tarde do último 4 de Novembro, o Dr. Richard Price, um


eminente sacerdote não conformista pregou na assembleia de Dis-
sidentes de Old Jewry, para o seu clube ou sociedade, uma extra-
ordinária miscelânea, sob a forma de sermão, onde há alguns bons
sentimentos religiosos e morais, nada mal expressos, misturados
com uma espécie de caldo de várias opiniões políticas e reflexões,
mas a Revolução Francesa é o principal ingrediente do caldeirão.

Considero que a resolução transmitida pela Sociedade da Re-


volução à Assembleia Nacional, através do Conde de Stanhope,
teve origem nos princípios deste Sermão e que é o seu corolário.
Foi desencadeada pelo pregador deste discurso. Foi aprovada por
aqueles que vinham empestados com os efeitos do sermão, sem ne-
nhuma censura ou restrição, implícita ou explícita. Se, porventura,
algum dos cavalheiros envolvidos quiser separar o sermão da reso-
lução, sabem como reconhecer um e repudiar a outra. Eles podem
fazer isso, eu não.

Pelo meu lado, olho para este sermão como a declaração públi-
ca de um homem estreitamente ligado à cabala literária e a filósofos
intriguistas, a políticos teológicos e teólogos políticos, de Inglaterra
e do estrangeiro, que o constituíram como uma espécie de oráculo,
porque, com as melhores intenções do mundo, ele naturalmente
Jilipiza64 e canta a sua canção profética em uníssono com os seus
desígnios.

Creio que o estilo deste sermão não se ouvia neste reino, em


nenhum dos púlpitos que aqui são tolerados ou apoiados, desde
o ano de 1648, quando um antecessor do Dr. Price, o Reverendo
Hugh Peters, fez a abóbada da própria capela do Rei em St. James
ressoar com a honra e o privilégio dos Santos que, com "um grande
louvor a Deus na sua boca e uma espada de dois gumes nas suas

64 1.T. A expressão é philippizes. Fil ipiza era a acusação fe ita por Dem óstenes

ao Oráculo de Delfos querendo com isso dizer que as profecias emitidas pelo oráculo
serviam os interesses de Filipe da M acedó nia.
58

mãos, devem executar o juízo sobre os gentios e castigos sobre os


povos, prender os seus reis com cadeias e os seus nobres com gri-
lhões de ferro"• 65 .

Poucas arengas de púlpito, exceptuando nos dias da vossa Liga


em França, ou nos dias da nossa Solene Liga e Pacto em Inglater-
ra, exalaram menos espírito de moderação que este sermão em Old
Jewry. Suponhamos, contudo, que qualquer coisa de parecido com
moderação fosse visível neste sermão político, mesmo assim a po-
lítica e o púlpito são termos que combinam pouco. Nenhuma voz
se deve ouvir na Igreja senão a voz apaziguadora da caridade cris-
tã. Nem a causa da liberdade e do governo civis nem a da religião
ganham com esta confusão de deveres. Os que desistem do que é
próprio ao seu carácter para assumir o que não lhes pertence, são,
em grande medida, ignorantes quer do papel que abandonam quer
daquele que assumem. Completamente desconhecedores do mun-
do no qual gostam tanto de imiscuir-se, e inexperientes de todos os
seus assuntos, sobre os quais se pronunciam com tanta confiança,
não têm nada de político a não ser as paixões que suscitam. A Igreja
é justamente o local onde devia ser permitido um dia de tréguas às
dissensões e animosidades da humanidade.

Este estilo de púlpito, ressurgido após tão longo abandono,


teve para mim um ar de novidade, e de uma novidade não com-
pletamente isenta de perigo. Não imputo este perigo igualmente a
todas as partes do discurso. A sugestão que dá o nobre e reverendo
pastor-laico, que supostamente tem um posto elevado em uma das
nossas universidades 66 , a outros pastores-laicos "literatos de posi-
ção;' pode ser própria e adequada, embora de algum modo inova-
dora. Se os ilustres Seekers 6- não encontrarem nada que satisfaça as
65
• ota do autor: Sal mo 149.
66
"No ta do auto r: Discourse on The L ove ofour Country, Nov. 4, 1789, pelo Dr.
Rich ard Price, 3.' Edição pp. 17, 18.
6- N .T. Independentes pu ritanos dos séculos XV I e XVII, que constitu íam mais
um a sociedade rel igiosa que uma sei ta, e que vieram, mais tarde, a juntar-se aos ~ake rs.
59

suas fantasias piedosas nem no velho empório da Igreja nacional,


nem em toda a rica variedade que se pode encontrar nos armazéns
bem fornecidos das várias congregações de Dissidentes, o Dr. Price
aconselha-os a melhorarem a sua Dissidência68 e a estabelecer cada
um deles uma igreja69 separada, segundo os seus princípios parricu-
lares70*.

É de algum modo notável que este reverendo teólogo seja tão


fervoroso no que respeita ao estabelecimento de novas igrejas, e
tão perfeitamente indiferente sobre qual a doutrina que possa ser
ensinada nelas. O seu zelo é de um tipo curioso. Não é para a pro-
pagação das suas próprias convicções mas de todas as convicções.
Não é para a difusão da verdade, mas para disseminar a contradi-
ção. Deixemos que os nobres professores divirjam, não interessa de
quem ou de quê. Uma vez assegurado este ponto fundamental, está
garantido que a sua religião será racional e viril. Eu duvido que are-
ligião colha os benefícios que o pastor calculista conta retirar desta
"grande companhia de grandes pregadores". Haverá certamente um
grande incremento de não-conformistas, à ampla colecção de clas-
ses, géneros e espécies já conhecidas, que presentemente alindam o
Hortus sicus dos Dissidentes. O sermão de um nobre duque, ou de
um nobre marquês, ou de um nobre conde, ou de um barão ousado,
cerram ente que aumenta e diversifica os divertimentos desta cidade,
que começa a estar farra da ronda uniforme pelas suas distracções

Como o nome indica, procu ravam a verdadei ra Igreja, sem se vincularem a nenhuma
facção.
68 N .T. "No n-Conformity".
69
N.T. O termo utilizado é "meeting-house".
-o • N ota do auto r (fo ram respeitados os itál icos) "Aqueles que não gostarem
daquele modo de culto presc rito pelas autoridades públicas devem, se não puderem en-
contrar nenhum culto que aprovem fora da Igreja, estabelecer um culto separado para eles
próprios; e fazendo isto, dando um exemplo de um modo de culto racional e viril, homens
de peso pelo seu estatuto e pela sua cultu ra podem prestar o maior serviço à sociedade e ao
mundo."- p. 18, Sermão do Dr. Price.
60

insípidas. Apenas estipularia que estes novos Messjohns 71 de toga


ou diadema mantivessem alguma espécie de limites nos princípios
democráticos e niveladores que se esperam dos seus púlpitos coroa-
dos. Atrevo-me a dizer que os novos evangelistas desapontarão as
esperanças concebidas acerca deles. Não se tornarão, nem literal
nem figuradam ente, pastores polém icos - nem estarão dispostos a
instruir as suas congregações, de tal modo que possam, como em
outros benditos tempos, pregar as suas doutrinas a regimentos de
cavalaria e unidades de infantaria e artilharia. Tais disposições, em-
bora favoráveis à causa da liberdade compulsiva, civil e religiosa, po-
dem não ser igualmente propícias à tranquilidade nacional. Espero
que estas poucas restrições não sejam um exagero de intolerância,
nem um exercício de despotismo muito violento.
Mas posso dizer do nosso pregador, "Utinam nugis tota illa
dedisset tempora soevitio'r 2• Nesta bula fulminante dele nem todas as
coisas são de tendência tão inócua. As suas doutrinas atingem a nos-
sa Constituição nas suas partes vitais. Neste sermão político, ele diz
à Sociedade da Revolução, que Sua Majestade "é quase o único rei
legítimo no mundo, porque é o único que deve a sua coroa escolha a
do seu povo". ~anto aos reis do mundo, a todos eles (excepto um),
este arquipontífice dos direitos do homem, com um poder seme-
lhante em plenitude e superior em audácia ao poder de depor papal,
no seu fervor meridiano do século XII, submete-os à cláusula arra-
sadora de excomunhão e anátema e proclama-os usurpadores em
vários círculos de latitude e longitude por esse mundo fora. Cum-
pre-lhes considerar como estes hão-de admitir nos seus territórios
aos missionários apostólicos que ali vão para dizer aos seus súbdi-
tos que eles não são reis legí timos. Isto é problema deles. O nosso,
como interesse doméstico da mais alta importância, é considerar

., T ermo jocoso com que se designavam os pasrores presbiterianos escoceses.


~, "' Q::em dera que tive se dedicado a frivolidades rodo aquele tempo que dedi-
cou à crueldade ", Juv. 4. 150-151.
61

seriamente a solidez do único princípio segundo o qual estes cava-


lheiros reconhecem ao rei da Grã-Bretanha o direito à sua lealdade.

Esta doutrina, aplicada ao príncipe agora no trono britânico,


ou é um absurdo, e nessa altura não é verdadeira nem falsa , ou então
sustenta uma posição profundamente infundada, perigosa, ilegal e
inconstitucional. De acordo com este médico espiritual da política,
se Sua Majestade não deve a sua coroa à escolha do seu povo, não
é um rei legítimo. Ora nada é mais falso do que a coroa deste rei-
no p ertencer a Sua Majestade nessas condições. Então, se seguirdes
a sua regra, o rei da Grã-Bretanha, o qual, muito certamente, n ão
deve o seu cargo elevado a nenhuma forma de eleição popular, não
é sob nenhum aspecto melhor do que o resto do bando de usurpa-
dores, que reinam , ou antes pilham, em toda a face deste nosso mi-
serável mundo, sem nenhuma espécie de direito ou tÍtulo ao preito
do seu povo.

A política desta doutrina geral, assim caracterizada, é bastante


evidente. O s propagadores deste evangelho político têm a esperan-
ça de que o seu princípio abstracto (o princípio de que é necessária
a escolha popular para a existência legal da magistratura soberana)
será tolerado enquanto o rei da Grã-Bretanha não for afectado por
ele. Entretanto, os ouvidos das suas congregações habituar-se-ão
gradualmente a ele, como se fosse um primeiro princípio admitido
sem discussão. No presente operará apenas como uma teoria, con-
servad a73 nos sucos preservadores da eloquência de púlpito, e posta
de lado para futuro uso. Condo et compono quae mox depromere pos-
sim -4• Através desta política, enquanto se lisonjeia o nosso governo,
com uma reserva em seu favor à qual ele não tem direito, é-lhe reti-
rada a segurança que ele tem em comum com todos os governos, até
onde a opinião-; é uma segurança.
-; N .T. O termo que Burke usa é pickled.
-, N.T. "Reúno e componho aquilo que mais tarde eu posso usar", H or. Ep. , l. l. 12.
-s N.T. O termo usado é opinion e rem habitualmente o sentido de concepção
acei te e difundida e é neste sentido que será usado aqui.
62

Assim avançam estes políticos, enquanto pouca atenção se dá


às suas doutrinas. Mas quando começamos a examinar o significado
evidente das suas palavras e a tendência directa das suas doutrinas,
então, equívocos e explicações evasivas entram em cena. ~ando
afirmam que o rei deve a sua coroa à escolha do seu povo, e é assim o
único soberano legítimo no mundo, dir-nos-ão talvez que com isso
não querem dizer mais do que o facto de que alguns dos soberanos
que o precederam foram chamados ao trono por uma espécie de es-
colha e, por isso, ele deve a sua coroa à escolha do seu povo. E assim,
com este subterfúgio mise rável , esperam tornar segura a sua teoria
pelo facto de a terem tornado nula. Encerremo-los no manicómio
já que escolheram refugiar-se na sua loucura. Porque, se se admitir
esta interpretação, em que é que a sua ideia de eleição difere da nos-
sa de hereditariedade? E como é que o estabelecimento da coroa
na linha de Brunswick, derivada de Jaime Primeiro, vem legalizar a
nossa monarquia mais do que qualquer outra dos países vizinhos?
Num momento ou noutro, sem dúvida, rodos os que começaram
dinastias foram escolhidos por aqueles que os chamaram a gover-
nar. Há bases suficientes para sustentar a opinião de que rodas as
monarquias da Europa foram num tempo remoto electivas, com
maiores ou menores limitações no objecto da eleição.
Mas o que quer que possam ter sido os reis, aqui ou noutro lu-
gar há mil anos, ou seja qual for o modo como as dinastias reinantes
de Inglaterra ou França possam ter começado, o rei da Grã-Breta-
nha é rei neste momento por uma regra fixa de sucessão, de acordo
com as leis do seu país. E, enquanto ele cumprir as condições legais
do pacto de soberania (como cumpre) mantém a sua coroa ades-
peito da Sociedade da Revolução, que não tem nenhum direito a
eleger o seu rei, nem singular nem colectivamente, embora eu não
tenha dúvida que eles depressa se constituiriam em colégio eleito-
ral, se as coisas estivessem maduras a ponto de dar cumprimento
às suas reivindicações. O s herdeiros e sucessores de Sua Majestade,
cada um a seu tempo e na sua ordem, chegarão à coroa com o mes-
63

mo desdém pela sua escolha com que Sua Majestade herdou aquela
coroa que traz.
~alquer que seja o resultado da sua fuga à explicação do gros-
seiro erro dejàcto, que supõe que Sua Majestade, embora mantenha
a coroa de acordo com os seus desejos, a deve à escolha do seu povo,
não se pode, todavia, contornar a sua proclamação directa e explí-
cita do princípio do direito do povo a escolher - direito esse que
sustenta directamente e a que tenazmente adere. Todas as insinua-
ções indirectas à eleição assentam neste princípio e têm-no como
referência. Temendo que a fundamentação do título exclusivamen-
te legal do rei passasse por mero palavreado de uma liberdade adula-
dora, o pastor político prossegue dogmaticamente para defender*76,
que, pelos princípios da Revolução, o povo inglês adquiriu três di-
reitos fundamentais , todos eles, segundo ele, compõem um sistema
e assentam todos num breve veredicto, nomeadamente que adqui-
rimos o direito a:
1. "Escolher os nossos governantes"
2. "Expulsá-los por má conduta"
3. "Constituir um governo para nós próprios".

Esta nova carta de direitosT, de que até agora não se tinha ou-
vido falar, embora elaborada em nome de todo o povo, pertence a
estes cavalheiros e apenas à sua facção. O conjunto do povo inglês
não partilha dela e recusa-a totalmente. Resistirá à tentativa para a
pôr em prática com a sua vida e a sua fortuna . Está obrigado a isso
pelas leis do seu país, feitas no tempo da própria Revolução a que
apela esta sociedade para apoiar os direitos fictícios que reivindica,
insultando o seu nome.

-6 "Nota do autor: p. 34, Discourseon the L oveofour Country, pelo Dr. Price
N.T. O termo usado é bill of rights nome originariamente dado ao acordo
co nstitucional inglê de 1689.
64

Estes cavalheiros de Old Jewry, em tudo o que pensam sobre


a Revolução de 1688, têm uma Revolução que aconteceu em In-
glaterra, cerca de 40 anos antes, e a recente Revolução Francesa tão
presentes a seus olhos e nos seus corações, que estão constantemen-
te a confundir todas três entre si. É necessário que separemos o que
eles confundem. É preciso compararmos as suas fantasias erráticas
com os actos da Revolução que tanto respeitamos para que se des-
cubram os seus verdadeiros princípios. Se os princípios da Revolução
de 1688 se podem encontrar em algum lado, é na chamada Declara-
ção de Direito. Nesta declaração muito sábia, moderada e prudente,
planeada por grandes juristas e grandes estadistas, e não por entu-
siastas acesos e inexperientes, nem uma palavra é dita, nem é feita
nenhuma sugestão, acerca de um direito geral "a escolher os nossos
próprios governantes, a expulsá-los por má conduta, ou a formar o
governo por nós próprios".
Esta Declaração de Direito (Acto do 1.0 de Guilherme e Ma-
ria, sess. 2, Cap. 2) é a pedra angular da nossa Constituição, reforça-
da, explicada, melhorada e estabelecida para sempre nos seus prin-
cípios fundamentais. Chama-se: "Um acto para declarar os direitos
e as liberdades dos súbditos e para estabelecer a sucessão da coroa."
Como o Senhor poderá ver, os direitos e a sucessão estão declarados
num mesmo todo e ligados indissoluvelmente.
Alguns anos depois destes acontecimentos, apresentou-se uma
segunda ocasião para reivindicar o direito de eleger a coroa. A pers-
pectiva de não haver descendência do Rei Guilherme e da princesa,
depois Rainha Ana, levou de novo ao Parlamento a questão da de-
cisão sobre a coroa e de uma garantia maior das liberdades do povo.
Nesta segunda vez tomou o Parlamento alguma medida para legali-
zar a coroa segundo os princípios revolucionários bastardos de Old
Jewry ? Não, seguiram os princípios que prevaleceram na Declara-
ção de Direito, indicando com maior precisão as pessoas que a de-
viam herdar dentro da linha Protestante. Seguindo o critério antes
65

adoptado incorporaram num mesmo acto político as nossas liber-


dades e a sucessão hereditária. Em lugar do direito a eleger os nossos
próprios governantes o Parlamento declarou que o estabelecimento
da sucessão nesta linha (a linha Protestante traçada a partir de Jaime
Primeiro) era "absolutamente necessário para a paz, tranquilidade e
segurança do reino", e que, nestes actos, era igualmente imperativo
"manter uma regra fixa na sucessão da coroa, à qual os súbditos pu-
dessem recorrer com segurança para sua protecção".
Em ambas as actas, em vez de se aprovarem as profecias ciga-
nas enganadoras de um "direito a escolher os nossos governantes",
ouvem-se os infalíveis e inequívocos oráculos da política da Revo-
lução demonstrarem até que ponto a sabedoria da nação era total-
mente adversa à conversão de um caso de necessidade numa regra
de direito.
Inquestionavelmente, havia na Revolução, na pessoa do Rei
Guilherme, um pequeno desvio temporário da estrita ordem da su-
cessão regular hereditária, mas é contra todos os verdadeiros prin-
cípios de jurisprudência estabelecer um precedente a partir de uma
lei feita para um caso especial e tendo em vista uma pessoa parti-
cular. Privilegium non transit in exemplum78• Se alguma vez houve
uma época favorável ao estabelecimento do princípio que um rei
escolhido pelo povo era o único rei legítimo, sem dúvida nenhuma
que foi na Revolução. ~e não se tivesse estabelecido então, é a pro-
va de que a nação era da opinião de que isso não deveria fazer-se em
tempo algum. Não há ninguém que ignore a nossa história a ponto
de não saber que a maioria no Parlamento, de ambos os partidos,
estava tão pouco inclinada ao que quer que fosse que se parecesse
com esse princípio, que primeiro estava na disposição de pôr a co-
roa, não na cabeça do Príncipe D 'Orange, mas na da sua mulher,
Maria, filha do Rei Jaime, a primogénita dos filhos que se sabiam ser

-s Princípio da jurisprudência romana: "U ma concessão particular não passa a


ser uma regra geral".
66

legítimos sem dúvida alguma. Seria repetir uma história banalíssi-


ma, relembrar todas aquelas circunstâncias que demonstram que a
aceitação do rei Guilherme pelo Parlamento não foi propriamente
uma escolha. Mas para todos aqueles que efectivamente não que-
riam voltar a chamar o Rei Jaime, nem mergulhar o seu país em san-
gue, e voltar a pôr a sua religião, as suas leis e a suas liberdades, num
perigo do qual acabavam de escapar, foi um acto de necessidade, no
sentido moral mais estrito em que esta palavra se pode entender79•
No mesmo acto em que, por um período restrito, e num caso
singular, o Parlamento se afastou da estrita ordem hereditária, a fa-
vor de um príncipe que, ainda que não fosse o sucessor, estava, con-
tudo, muito perto na linha de sucessão, é curioso observar como se
comportou Lord Sommers, que redigiu o projecto de lei chamado
Declaração de Direito, nesta ocasião delicada. É curioso observar
a habilidade com que se dissimulou esta solução de continuidade
temporária. Tanto este grande homem quanto o Parlamento que o
secundou esforçaram-se por trazer à luz, sublinhar e valorizar tudo
o que pode encontrar-se neste acto de necessidade que expresse a
ideia de uma sucessão hereditária.
Abandonando o estilo seco e imperativo de um acto parla-
mentar, Lord Somers levou Lords e Comuns a caírem num piedo-
so discurso legislativo e a declarar que consideravam "como uma
extraordinária providência e bondade misericordiosa de Deus para
com esta nação, ter preservado Suas Majestades Reais para, feliz-
mente, reinarem sobre nós no trono dos seus antepassados, pelo que
apresentam os seus humildes agradecimentos e louvores, do fundo
dos seus corações".
9
- Os críticos de Burke, especialmente Joseph Priesrley, Catharine Macauley e
James Mackintosh, insistiram em que este estratagema de desvio da linha hereditária fu n-
damental correspondia inequivocamente a urna escolha e que, urna vez feiro o desvio da
linha hereditária, o princípio estava comprometido. Burke é um ho mem lúcido e não du-
vida de que há um elemento de escolha, o que Burke sublinha é que a escolha foi imposta
pela necessidade e que esta se mostrou co ndicionada pela vontade de fazer prevalecer a
linh a hereditária.
67

O Parlamento, manifestamente, teve em mente a Acta de Re-


conhecimento, a primeira da Rainha Isabel, Cap. 3. 0 e de Jaime Pri-
meiro, Cap. 1. 0 , ambas as actas fortemente afirmativas da natureza
hereditária da coroa, e em mais de uma ocasião seguem, com uma
precisão quase literal, as palavras e mesmo a forma da acção de gra-
ças encontrada nestes antigos estatutos declaratórios.
As duas Câmaras (Lordes e Comuns), na acta do Rei Guilher-
me, não agradeceram ter uma boa oportunidade para reivindicar
o direito a escolher os seus próprios governantes e muito menos a
fazer da eleição o único título legítimo de acesso à coroa. E conside-
raram uma saída providencial terem as condições para evitar, tanto
quanto possível, toda a aparência disso. Estenderam um espesso véu
político sobre todas as circunstâncias que poderiam debilitar os di-
reitos que eles queriam perpetuar, melhorada a ordem de sucessão,
ou que poderiam constituir um precedente para um afastamento
futuro do que eles estabeleceram então para sempre. Com o fim
de não enfraquecer a monarquia e de preservarem uma estrita con-
formidade com a prática dos seus antepassados, tal como aparece
nas declarações estatutárias da Rainha Maria80* e da Rainha Isabel,
reconheceram na cláusula seguinte a suas Majestades todas as prer-
rogativas da coroa, declarando "que, nelas, estas prerrogativas eram
o mais perjêita, legítima e completamente investidas, incorporadas,
[a elas] associadas [e delas] empossadas". Na cláusula que se segue,
para evitar dificuldades que pudessem surgir por causa de algum
pretenso título à coroa, o Parlamento declarou (observando tam-
bém nisto a linguagem tradicional, conjuntamente com a política
tradicional da nação e repetindo, como se fosse um refrão, a lin-
guagem dos Actos precedentes de Isabel e Jaime) que se preservasse
"uma regra fixa na SUCESSÃO da qual dependiam completamen-
te a unidade, a paz e a tranquilidade da nação, Deus a proteja".

80
"Nota do autor: !.• Maria, sess. 3, Cap. I.
68

Sabiam que um título duvidoso de sucessão se pareceria de-


masiado com uma eleição e que uma eleição seria completamen-
te destrutiva da "unidade, paz e tranquilidade desta nação;' o que
consideraram da maior importância. Para garantir estes objectivos
e, por conseguinte, excluir para sempre a doutrina de Old Jewry
do "direito a escolher os nossos próprios governantes", a cláusula
seguinte contém um penhor muito solene, retirado do precedente
Acto da Rainha Isabel - o penhor mais solene que alguma vez foi
ou pode ser dado a favor de uma sucessão hereditária, e uma renún-
cia tão solene quanto pode ser feita dos princípios que lhes são im-
putados por esta sociedade : "Os Lordes Espirituais e Temporais e
os Comuns, em nome de todo o povo acima referido, muito humil-
de e fielmente submetem-se a eles próprios, aos seus herdeiros e pos-
teridade para sempre, e fazem fielmente a promessa que defenderão
Suas Majestades, e também a regulação da Coroa aqui especificada e
contida, até ao limite das suas forças" etc. etc.
Está tão longe de ser verdade que adquirimos pela Revolução
o direito a eleger os nossos reis que, se nós o tivéssemos tido an-
tes, a nação inglesa tinha renunciado e abdicado solenemente dele
nessa altura, para eles próprios e para toda a sua posteridade, para
sempre. Estes cavalheiros podem orgulhar-se dos seus princípios
Whigs tanto quanto quiserem, mas eu nunca quererei ser um me-
lhor Whig que Lord Sommers, ou compreender melhor os princí-
pios da Revolução que aqueles que a fizeram , ou ler na Declaração
de Direito mistérios desconhecidos para aqueles cujo estilo pene-
trante gravou nos nossos decretos, e nos nossos corações, as palavras
e o espírito desta lei imortal.
É verdade que a nação estava na altura investida de poderes que
lhe vinham da força e das circunstâncias e, num certo sentido, era
livre para pôr no trono quem melhor lhe parecesse - mas livre para
fazer isso apenas pela mesma razão que teria podido abolir com-
pletamente a sua monarquia ou qualquer outra parte da sua Cons-
69

tituição. Contudo, os seus representantes não pensaram que estas


mudanças importantes fizessem parte das suas atribuições. É, efec-
tivamente, difícil, talvez impossível, impor limites à competência
meramente abstracta do poder supremo, tal como este era exercido
pelo Parlamento nesse tempo, mas os limites de uma competência
moral, mesmo em poderes mais indiscutivelmente soberanos, sujei-
tando a vontade ocasional à razão permanente e às máximas cons-
tantes de fé, justiça e de uma política fundamental estabelecida, são
perfeitamente inteligíveis e perfeitamente obrigatórios para aqueles
que exercem qualquer autoridade, sob qualquer nome ou a qual-
quer título, no Estado. A Câmara dos Lordes, por exemplo, não é
moralmente competente para dissolver a Câmara dos Comuns -
não, nem mesmo para se dissolver a si própria, nem para abdicar, se
o desejasse, do poder legislativo que possui. Embora um rei possa
abdicar pela sua pessoa, não pode abdicar pela monarquia. Por uma
igual razão, ou ainda mais forte, a Câmara dos Comuns não pode
renunciar à sua parte de autoridade. O compromisso e pacto social,
que geralmente dá pelo nome de Constituição, proíbe tais abusos e
demissões. As partes constituintes de um Estado estão obrigadas a
manter a confiança pública umas nas outras, e perante rodos aque-
les que, do seu compromisso, derivam algum interesse importante,
do mesmo modo que o rodo, Estado, está obrigado a manter os seus
compromissos com as comunidades autónomas: de outro modo,
jurisdição e poder cedo se confundiriam e a única lei que subsistiria
seria a vontade do mais forte.
Sob este princípio, a sucessão da coroa foi sempre o que hoje
é: uma sucessão hereditária prevista por lei. Na linha antiga, era
uma sucessão pelo direito consuetudinário, na nova linha, pela lei
criada pelo poder legislativo 8 1, operando sobre os princípios do di-
reito consuetudinário, não mudando a substância mas regulando o
modo e nomeando as pessoas. Estes tipos de lei têm ambos a mesma
força, e derivam de uma autoridade idêntica, emanando do acordo
81
Os termos que Burke usa são Common Law e Statute L aw.
70

comum e pacto original do Estado, communi sponsione reipublicae,


e obrigam igualmente o rei e o povo, enquanto os termos forem
cumpridos e se continue sob o mesmo corpo político.
Está longe de ser impossível reconciliar - se não estivermos
emaranhados nos labirintos da metafísica sofística- o uso simultâ-
neo de uma regra fixa e de um desvio ocasional: a sacralidade de um
princípio hereditário de sucessão no nosso governo com o poder
de mudar a sua aplicação em casos de extrema necessidade. Mesmo
nestes casos - se medirmos os nossos direitos pelo exercício que
fizemos deles na Revolução -, a mudança é para estar confinada
apenas à parte que prevarica, à parte que produz a necessidade do
desvio e, mesmo aí, é para ser realizada sem a desagregação de todo
o corpo civil e político sob o pretexto de querer criar uma nova or-
dem civil a partir dos elementos primitivos da sociedade.
Um Estado em que não se pode mudar nada carece de meios
para a sua própria conservação. Sem estes meios pode chegar mes-
mo a arriscar perder aquela parte da Constituição que mais religio-
samente queria preservar. Estes dois princípios -de conservação e
de correcção - operaram fortemente nos dois períodos críticos da
Restauração e da Revolução, quando a Inglaterra se viu sem rei. Em
ambos os períodos a nação perdeu os laços de união do seu antigo
edifício: contudo, não se desmoronou por completo a construção.
Ao contrário, em ambos os casos se regenerou a parte defeituosa da
antiga Constituição por intermédio das que não estavam danifica-
das. Mantiveram as partes antigas sãs tal como estavam, de modo
a que a parte reconstituída pudesse adaptar-se a elas. Actuaram à
maneira dos antigos estados constituídos segundo o modelo da sua
organização antiga, e não pelas moleculae orgânicas de um povo em
debandada. O momento da Revolução talvez fosse aquele momento
em que a legislatura soberana manifestou maior consideração pelo
princípio fundamental da política constitucional britânica, quando
este princípio foi desviado da linha directa de sucessão hereditária.
71

A coroa foi transferida um pouco para fora da linha que seguia an-
tes, mas a nova linha provinha da mesma fonte. Manteve-se uma
linha de sucessão hereditária descendente, do mesmo sangue, mas
uma descendência hereditária qualificada com o Protestantismo.
~ando a legislatura alterou a direcção mas manteve o princípio,
mostrou com isso que o considerava inviolável.
Antigamente, muito antes da era da Revolução, a lei da suces-
são admitiu algumas emendas neste princípio. Algum tempo de-
pois da Conquista, surgiram grandes questões acerca dos princípios
legais da descendência hereditária. Tornou-se matéria de dúvida se
seria o herdeiro per capita ou o herdeiro per stirpes que haveria de
suceder82. Mas, quer fosse o herdeiro per capita que desse lugar ao
direito de sucessão per stirpes, ou o herdeiro católico, quando o pro-
testante era preferido, o princípio de hereditariedade sobreviveu
com uma espécie de imortalidade através de todas as transmigra-
ções:
Multosque per annos

Statfortuna domus, et avi numerantur avorum 83•

Este é o espírito da nossa Constituição, não apenas no seu cur-


so estabelecido, mas também em todas as suas revoluções. ~em
quer que entre, ou como quer que entre, quer tenha obtido a coroa
pela lei ou pela força, a sucessão hereditária foi, ou continuada, ou
adoptada.

82 .T. Na lei da sucessão os dois rermos, per capita e per stirpes, fixam a parre
que os descendentes ou ourros beneficiários hão-de receber: se per capita rodos perten-
centes a essa mesma classe recebem igualmente, se per stirpes recebem de acordo com o
que esrá destinado ao ramo da sua fam ília. Cf. L. G. MircheU (Ed. ) Paul Langford (Gen.
Ed.) ( 1989), Rejlections on the Revolution in France, The Writings and Speeches ofEdmund
Burke, Gen., Vol. VII, Oxford: Clarendon Press, p. 73, nora. (De agora em diante: Rejlec-
tions on rhe Revolution in France, The Writings and Speeches ofEdmund Burke, seguido da
pág.).
83 1.T . "E a forruna da casa manrém-se por muiros anos, e conta-se geração sobre

geração", Verg. G. 4. 208-209.


72

Os cavalheiros da Sociedade em prol das Revoluções, nesta de


1688, não vêem nada a não ser o desvio em relação à Constituição e
tomam o desvio do princípio pelo princípio. Têm em pouca atenção
as consequências óbvias da sua doutrina, embora possam ver que ela
reconhece verdadeira autoridade a muito poucas instituições des-
te país. ~ando esta máxima insustentável for de vez estabelecida,
que nenhum trono é legítimo senão o electivo, nenhum acto dos
príncipes que precederam esta era de eleição fictícia pode ser válido.
~erem estes teóricos imitar alguns dos seus antecessores que ar-
rancaram à paz dos seus túmulos os corpos dos nossos antigos reis?
~erem proscrever e incapacitar retrospectivamente todos os reis
que reinaram antes da Revolução e, consequentemente, manchar
o trono de Inglaterra com o estigma de uma usurpação contínua?
~erem invalidar, anular ou pôr em questão, juntamente com os
títulos de toda a linhagem dos nossos reis, o grande corpo das nos-
sas leis constitucionais estabelecidas no reinado daqueles que eles
tratam por usurpadores? Anular leis de inestimável valor para as
nossas liberdades -pelo menos de tão grande valor como as votadas
na altura da Revolução e depois dela? Se os reis que não devem as
suas coroas à escolha do seu povo não têm direito a fazer leis, o que
é que vai acontecer à lei De tallagio non concedendo? 84 à Petition of
Right? 85 ao acto de Habeas Corpus? 86 Será que estes doutores dos di-
reitos do homem se atrevem a afirmar que o Rei Jaime Segundo que
chegou ao trono como o mais próximo de sangue, de acordo com
as regras de uma sucessão, na altura não qualificada, não era, para
8
' N.T. Princípio não vinculativo estabelecido aquando da "Confi rmation of the
Charters" - convertido mais tarde em estatuto pela "Petition ofRight" em 1628- segun-
do o qual o tallagio (primeiro uma forma particular de imposto e depois estendido o seu
sentido a qualquer tipo de imposto) não poderia ser cobrado sem o consentimento dos
visados.
85
N.T. A Petition ofRight data de 1628 e ob rigava Carlos I a não aumentar os
impostos se m o acordo do Parlamento, a prender apenas no cumprimento da lei e a não
estabelecer o tribunal marcial.
86
N .T . O H abeas Corpus Act foi votado pelos Whigs em 1679, proibia ter al-
guém detido mais de 24 horas sem conhecer a acusação e sem dispor de um defensor.
73

todos os efeitos, um rei legítimo de Inglaterra, ames de ter cometi-


do todos aqueles actos que levaram, com justiça, à sua abdicação da
coroa? Se ele não fosse legítimo, ter-se-iam evitado muitos proble-
mas no Parlamento no período que estes cavalheiros comemoram.
Mas o Rei Jaime era um mau rei investido de um título justo, e não
um usurpador. Os príncipes que se sucederam, de acordo com o
acto do Parlamento que estabeleceu a coroa no ramo da Eleitora
Sofia e nos seus descendentes, sendo Protestantes, chegam ao tro -
no por título hereditário, tanto quanto o Rei Jaime tinha chegado.
Este reinou de acordo com a lei que vigorava no momento da sua
ascensão ao trono, e os príncipes da Casa de Brunswick acabam por
herdar a coroa não por eleição, mas pela lei que fixava a sucessão na
descendência Protestante, tal como ela existia no momento da sua
respectiva coroação, como espero ter mostrado suficientemente.
A lei, pela qual esta família real está especificamente destina-
da à sucessão, está na acta do 12.0 e 13. 0 anos do reinado do Rei
Guilherme. O s termos desta acta ligam-nos "a nós e aos nossos her-
deiros, e a nossa posteridade, a eles, aos seus herdeiros e à sua poste-
ridade", sendo Protestantes, até aos fins dos tempos, nos mesmos
termos que a Declaração dos Direitos nos ligava aos herdeiros do
Rei Guilherme e da Rainha Maria. Esta acta assegura, então, uma
coroa e uma fidelidade hereditárias. Em que é que se baseou a re-
jeição desdenhosa do Parlamento das possibilidades boas e abun-
dantes de sucessão que se apresentavam no nosso próprio país, para
procurar em terras estranhas uma princesa estrangeira, de cujo seio
deveria derivar a linhagem dos nossos futuros governantes e o seu
título a governar milhões de homens ao longo dos séculos a não ser
na política constitucional para a formação de uma instituição que
fixasse este tipo de sucessão e que tinha por fim excluir p ara sempre
a escolha popular?
A Princesa Sofia foi nomeada, na acta do 12.0 e 13.0 anos do
reinado do Rei Guilherme, como cepa e raiz do direito de sucessão
74

dos nossos reis, não pelos seus méritos como administradora do po-
der, que ela poderia não vir a exercer e, de facto, nunca o exerceu. Ela
foi adoptada apenas por uma e uma só razão, porque rezam os actos
"a mui Excelsa Princesa Sofia Eleitora e Duquesa Viúva de Hanôver,
éfilha da mui Excelsa Princesa Isabel, falecida rainha da Boémia, fi-
lha do nosso falecido Soberano e Senhor Rei Jaime Primeiro, de boa
memória, e é por esta acta declarado ser ela a próxima na sucessão na
linha Protestante", etc. etc., "e a coroa continuará nos seus herdeiros
conquanto sejam Protestantes". Esta limitação foi feita pelo Parla-
mento para que através da Princesa Sofia se garantisse, não apenas
uma linha hereditária que continuaria no futuro, mas (o que eles
julgaram muito importante) que, através dela, essa linha estivesse
ligada à velha linha hereditária do Rei Jaime Primeiro, para permi-
tir que a Monarquia pudesse preservar uma inquebrantável unidade
ao longo dos tempos e se pudesse conservar (com segurança para a
nossa religião) no modo amigo já aprovado por descendência, que,
se ameaçou uma vez as nossas liberdades, também as defendeu mui-
tas vezes, através de todas as tempestades e lutas de prerrogativas e
privilégios. O Parlamento fez bem. Não temos experiência de ou-
tro processo, ou método, senão uma coroa hereditária, em que as
nossas liberdades possam ser regularmente perpetuadas e mantidas
sagradas como nosso direito hereditário. Um movimento irregular
e convulsivo pode ser necessário para nos livrar de uma doença ir-
regular e convulsiva. Mas o decurso da sucessão é o hábito saudável
da Constituição Britânica.
Será que o Parlamento, que aliou a Coroa à linha de Hanôver,
traçada a partir da descendência feminina de Jaime Primeiro, des-
conhecia os perigos para a coroa inglesa de terem dois ou três, ou
possivelmente mais, estrangeiros na sucessão ao trono britânico?
Não! -o Parlamento tinha a devida consciência, e mais que a de-
vida consciência, dos males que poderiam advir desta regra estra-
nha. Ao continuar a adoptar um plano de sucessão hereditária
75

Protestante segundo a velha linha, com todos os perigos e todos


os inconvenientes de esta ser uma linha estrangeira perfeitamente
à vista e operando fortemente no seu espírito, dá a prova mais de-
cisiva que pode ser dada, da total convicção da nação britânica de
que os princípios da Revolução não a autorizavam a eleger reis a
seu belo prazer, sem ter em coma os fundamentos amigos do nosso
sistema de governo.
Há alguns anos eu ter-me-ia envergonhado de insistir na expli-
cação de algo evidente por si mesmo, que, por isso, não carecia de
nenhum argumento. Mas esta doutrina sediciosa e inconstitucional
é agora publicamente ensinada, confessada e impressa. O desagrado
que sinto pelas revoluções, cujos sinais tanta vez nos vêm a partir
dos púlpitos - o total desrespeito de todas as amigas instituições
que prevalece entre vós, e que pode vir a prevalecer connosco, como
contraposto a um sentido real da conveniência -, todas estas con-
siderações fazem-me julgar aconselhável, chamar a atenção para os
verdadeiros princípios das nossas leis internas, que o Senhor, meu
amigo francês, deve começar a conhecer, e que nós devemos conti-
nuar a estimar. Nós, os de ambas as margens do canal, não devíamos
tolerar que nos impingissem mercadoria falsificada que algumas
pessoas, por uma dupla fraude vos exportam em porões clandes-
tinos, como matéria-prima de origem britânica, embora ela seja
estranha ao nosso solo, com o objectivo de mais tarde a contraban-
dear de novo para este país, manufacturada segundo a mais recente
moda parisiense de uma liberdade melhorada.
O povo inglês não imita as modas que nunca experimentou,
nem torna àquelas que achou más por experiência, olha para a
sucessão hereditária da sua coroa como um dos seus direitos, não
como algo ilegítimo - como um benefício, não como uma injusti-
ça, como uma garantia das suas liberdades, não como um símbolo
da sua servidão. Olha para a estrutura do seu Estado, tal como está,
76

como sendo de valor inestimável, e concebe a sucessão pacífica da


coroa como uma garantia da estabilidade e perpetuidade de todas
as outras partes da nossa Constituição.
Antes de prosseguir, peço licença para me ocupar de alguns
estratagemas mesquinhos que os criminosos que consideram a elei-
ção como único título legítimo à coroa estão prontos a empregar
com vista a tornarem difícil a defesa dos princípios justos da nos-
sa Constituição. Sempre que defenderdes a natureza hereditária
da Coroa, estes sofistas substituem a vossa causa por uma fictícia
com supostos personagens, que julgam que estais empenhados em
apoiar. É comum neles discutirem como se estivessem em conflito
com um desses fanáticos da escravatura que antes sustentavam, o
que eu acredito que nenhuma pessoa hoje mantém, "que a coroa
é ocupada por direito divino, hereditário e irrevogável". Estes ve-
lhos fanáticos de um poder arbitrário único, doutrinavam como
se a realeza hereditária fosse o único governo legítimo no mundo
- tal como os nossos novos fanáticos do poder arbitrário popular
sustentam que a eleição popular é a única fonte legal de autorida-
de. É verdade que os entusiastas da velha prerrogativa especulavam
disparatadamente, e talvez também impiamente, como se a monar-
quia tivesse o privilégio da aprovação divina mais do que os outros
modos de governo - como se o direito a governar por herança fosse
rigorosamente irrevogável em todas as pessoas que se encontrassem
na sucessão a um trono, e em todas as circunstâncias, o que nenhum
direito civil ou político o pode ser. Mas uma opinião absurda sobre
o direito hereditário do rei à coroa não prejudica uma outra opinião
[sobre o assunto] que é racional, e fundada em sólidos princípios
do direito e da política. Se todas as teorias absurdas de juristas e
de· clérigos fossem viciar os objectos sobre os quais versam, já não
teríamos leis nem religião no mundo. Mas uma teoria absurda de
um lado da questão não constitui justificação para a outra facção
afirmar um facto falso ou promulgar máximas prejudiciais.
77

A segunda reivindicação da Sociedade da Revolução é "o direi-


to a expulsar os seus governantes por má conduta". Os receios que
os nossos antepassados tiveram em constituir um precedente como
o de "expulsar por má conduta" foram talvez a causa de que a decla-
ração do acto que implicou a abdicação do Rei Jaime, a ter algum
defeito, fosse o de ser excessivamente cautelosa e circunstancial*87•
Mas todo este cuidado e todo este conjunto de circunstâncias serve
para mostrar o espírito prudente que predominou nos conselhos
nacionais, na situação em que homens, irritados pela opressão e
exaltados por um triunfo sobre ela, estão aptos a abandonar-se a
excessos, isto mostra a preocupação desses homens notáveis, que
influenciaram a condução dos assuntos nesse grande evento, em
fazerem da Revolução uma fonte de acordo e não um gérmen de
novas revoluções.
Nenhum governo se aguentaria se pudesse ser derrubado por
algo tão vago e indefinido como a opinião sobre a "má conduta".
~em conduziu a Revolução não fundamentou a abdicação virtual
do Rei Jaime à luz de um princípio tão incerto. Acusaram-no de
nada menos que a intenção, confirmada por uma multidão de actos
evidentemente ilegais, de subverter a Igreja Protestante e o Estado, as
suas leis e Liberdades fundamentais: acusaram-no de ter quebrado
o pacto original entre o rei e o povo. Isto é muito mais que má con-
duta. Uma necessidade grave e imperiosa obrigara-os a dar o passo
que deram, e deram-no com infinita relutância, como se estivessem
sob a mais rigorosa das leis. A sua confiança na preservação futu-
ra da Constituição não estava nas revoluções que estavam por vir.
A grande política de todas as suas disposições foi tornar quase
impraticável para qualquer futuro soberano levar o Parlamento a
recorrer de novo a estas soluções violentas. Deixaram a coroa tal
s- "Nota do autor [fora m respeitados os itálicos): "~e o Rei J aime Segundo,
rendo forçado a subversão da Constituição do reino, rompendo o contr-ato original entre
o rei e o povo e, por conselho dos J esuíras e de outras pessoas perversas, rendo violado as
leisfundamentais, e tendo-se retirado do reino, abdicou do governo, e o trono ficou, assim,
vacante. "
78

como ela sempre tinha sido aos olhos da lei e na sua avaliação, total-
mente isenta de responsabilidade. Com o objectivo de aliviar ainda
mais a Coroa, agravaram a responsabilidade dos ministros de Es-
tado. Pelo 1.0 estatuto do Rei Guilherme, secção 2.•, chamada "o
acto para declarar os direitos dos súbditos e para estabelecer a sucessão
da coroa", decretaram, que os ministros deveriam servir a coroa nos
termos dessa declaração. E garantiram pouco depois as reuniões fre-
quentes do Parlamento, através das quais todo o governo estaria sob
a constante inspecção e controlo activo dos representantes do povo
e dos grandes do reino. No grande acto constitucional que se lhe se-
guiu, o do 12. 0 e 13. 0 anos do reinado do Rei Guilherme, para uma
maior limitação da coroa, e para melhores garantias dos direitos e
liberdades dos súbditos, assegurou-se que, "nenhum perdão selado
com o grande selo de Inglaterra poderia opor-se a uma impugnação
votada pelos comuns no Parlamento".
Os nossos antepassados julgaram que as regras do governo na
Declaração de Direitos, a constante inspecção do Parlamento e o
uso da prática da impugnação, eram infinitamente melhores como
segurança, quer para a sua liberdade constitucional quer contra os
vícios da administração, do que a reserva de um direito a "expulsar
os seus governantes", tão difícil na prática, tão incerto na conclusão
e frequentemente tão pernicioso nas suas consequências.
O Dr. Price, no seu sermão* 88 condena, muito acertadamente,
a prática grosseira de discursos adulatórios aos reis. Em vez deste es-
tilo bajulador, ele propõe que seja dito a Sua Majestade em ocasiões
festivas que "o rei deve considerar-se a si mesmo mais propriamente
o servo do que o soberano do seu povo". Como cumprimento, esta
nova forma de saudação não parece ser muito gentil. Aqueles que
são servos de nome, bem como de facto, não gostam que se lhes
fale da sua situação, do seu dever e das suas obrigações. O escra-
vo, na antiga peça, diz ao seu senhor, "Haec commemoratio est quasi

88
"Nora do auror: Price, 22, 23 e 24
79

exprobatio" 89• Não é agradável como cumprimento, não é salutar


como lição. Ao fim e ao cabo, se o rei fosse fazer eco deste novo
tipo de discurso, e o adoptasse nestes termos, mesmo até ao ponto
de aceitar o cognome de Servo do Povo, como a sua divisa real, não
consigo imaginar como ele ou nós poderíamos tornar-nos melho-
res com isso. Já vi cartas muito arrogantes assinadas: "o seu muito
obediente e humilde servo". O domínio mais altivo que alguma vez
se sofreu na terra tomou um título de uma maior humildade que
aquele que agora nos é proposto para os soberanos pelo Apóstolo
da Liberdade. Reis e nações foram calcados aos pés por alguém que
se chama a si próprio "O Servo dos Servos", e mandatos para depor
soberanos foram selados com o sinete "O Pescador" 90 •
Teria considerado isto tudo como não mais que um discurso
irreverente e vão, desagradável fumaça em que alguns gostariam de
ver evaporar-se o espírito da liberdade, se isto não fosse claramente
um suporte da ideia, e uma parte do esquema de "expulsar reis por
má conduta". Nesta perspectiva, o assunto merece algumas obser-
vações.
Os reis, num certo sentido, são indubitavelmente os servos
do povo, porque o seu poder não tem outro fim racional que o do
bem comum, mas não é verdade que eles sejam, num sentido vulgar,
(pela nossa Constituição, pelo menos) algo parecido com servos,
cuja essência da sua situação é obedecer às ordens de outrem e po-
derem ser dispensados a gosto. O Rei da Grã-Bretanha não obedece
a ninguém. Todas as outras pessoas lhe estão, individual e colec-
tivamente, subordinadas e devem-lhe obediência legal. A lei, que
não sabe nem adular nem ofender, chama a este alto magistrado,
não nosso servo, como este humilde pastor lhe chama, mas "nosso
soberano Senhor o Rei", e nós, pela nossa parte, aprendemos a falar

89
N .T . "Esta recordação é como que um a exprobação", Ter. An. 43.
90
N .T. O Papa usa o tÍtulo "Servus servorum Dei " e usa também a designação de
"O Pescado r", em alusão à profissão e missão do Apóstolo Pedro.
80

apenas a linguagem primitiva da lei, e não a gíria confusa dos púlpi-


tos babilónicos deles.
Como ele não nos deve obediência, mas antes somos nós que
temos de obedecer à lei que ele representa, a Constituição não to-
mou nenhuma providência para o tornar responsável, seja em que
grau for, como o faz a um servo. A nossa Constituição não conhece
magistratura semelhante à dajusticia de Aragão 9 1, nem a nenhum
tribunal legalmente estabelecido que possa exigir ao Rei a respon-
sabilidade própria dos servos. Nisto não se distingue Sua Majestade
dos Comuns, nem dos Lordes que, nas suas competências legais pú-
blicas, nunca podem ser chamados a prestar contas da sua conduta.
Embora a Sociedade da Revolução escolha afirmar, em franca opo-
sição a uma das partes mais sábias e mais belas da nossa Constitui-
ção, que "um rei não é mais que o primeiro servo do povo, criado
por ele e que a ele responde".
Os nossos antepassados, autores da Revolução, não teriam me-
recido fama de sábios se não tivessem encontrado outra segurança
para a sua liberdade senão a debilidade do governo, tornando-o
fraco nos actos e precário no título - se não tivessem encontrado
melhor remédio contra o poder arbitrário que a confusão civil. Dei-
xemos que estes cavalheiros nos apresentem este povo representati-
vo perante quem o Rei é responsável como servo. Nessa altura, será
o tempo oportuno de eu lhes citar os preceitos da lei escrita que
afirmam que ele não o é.
A cerimónia de destituição dos reis, da qual estes cavalheiros
falam tão à vontade, muito raramente pode ser levada a cabo, se é
que pode, sem o uso da força. Nessa altura, torna-se mais um caso
de guerra do que um direito constitucional. As armas obrigam as
leis a calarem-se, e os tribunais são derrubados juntamente com a
paz que já não são capazes de manter.

91
N.T. O Rei no de Aragão, na Idade Méd ia, tinh a aj usticia, um trib unal que
resolvia os diferendos entre o rei e os nobres.
81

A Revolução de 1688 foi levada a cabo por uma guerra justa,


no único caso em que uma guerra pode ser justa, ainda para mais
uma guerra civil: "justa bella quibus NECESSARIA" 92 • A questão
de destronar ou, se estes cavalheiros gostam mais da frase, "demitir"
reis será, como sempre foi, uma questão extraordinária de Estado,
e completamente à margem da lei: uma questão (como todas as
outras questões de Estado) de carácter, de meios, de consequências
prováveis, mais do que de direitos positivos. Assim, como não se
depõe o rei por abusos comuns, tão -pouco a questão deve ser agita-
da por inteligências comuns. A linha teórica de demarcação, onde a
obediência deve acabar e a resistência deve começar, é ténue e obs-
cura e não é definível facilmente. Não é um acto isolado ou um úni-
co acontecimento que a determina. É preciso que haja grande des-
respeito e perturbação num governo, e que a perspectiva do futuro
seja tão má quanto a experiência passada, antes que se possa pensar
em derrubá-lo. ~ando as coisas se encontram nesta lamentável si-
tuação, a natureza do distúrbio indica o remédio, àqueles a quem
a Natureza qualificou para administrar, nestas situações extremas,
críticas e ambíguas, a poção amarga ao Estado doente. Os tempos,
as ocasiões e as provocações ensinam as suas próprias lições. O s sen-
satos decidem a partir da gravidade do caso, os irritados a partir
da sua sensibilidade à opressão, os espíritos superiores, a partir do
desdém e da indignação diante do poder abusivo em mãos indignas,
os valentes e audazes, a partir do amor ao perigo em favor de uma
causa nobre: mas, com ou sem razão, a revolução será o último re-
curso dos prudentes e dos bons.
O terceiro princípio de direito reivindicado pelo púlpito de
Old Jewry, nomeadamente: "o direito a formar governo por nós
mesmos", teve tão pouco a ver com o que se fez na Revolução, quer
como precedente quer como princípio, quanto o tiveram as duas
primeiras reivindicações. A Revolução foi feita para preservar as
nossas leis e liberdades antigas e indiscutíveis, e a antiga constitui-
92 N.T. "A guerra é justa para quem é necessária." Liv. 9.1.10.
82

ção, que é a nossa única segurança para a lei e a liberdade. Se desejar


conhecer o espírito da nossa Constituição, e a política que predo-
minou neste grande período e que a preservou até este momento,
peço-lhe que veja ambos na nossa história, nos nossos registos, nos
nossos actos do Parlamento e nos nossos diários Parlamentares, não
nos sermões de Old Jewry, nem nos brindes após o jantar da So-
ciedade da Revolução. Neles encontrará outras ideias e outra lin-
guagem. Uma reivindicação destas é tão pouco adequada ao nosso
temperamento e aos nossos desejos quanto não é corroborada por
nenhum tipo de autoridade.
Só a própria ideia de constituir um novo governo é o bastante
para nos encher de desgosto e de horror. ~i semos neste período
da Revolução, e queremos agora, derivar tudo o que possuímos da
herança dos nossos antepassados. Tivemos o cuidado de não enxertar,
neste corpo e acervo da herança, nenhum rebento alheio à natureza
da planta original. Todas as reformas que fizemos até hoje funda-
ram-se na relação com a antiguidade, e espero, mais, estou conven-
cido, que todas aquelas que possam ser feitas daqui para a frente
serão concebidas cuidadosamente a partir de idênticos precedentes,
de semelhante autoridade e exemplo.
A nossa última reforma é a que consta da Magna Carta. Pode-
rá ver que Sir Edward Coke, o grande oráculo da nossa lei, e de facto
todos os grandes homens que o seguiram, até Blackstone 93, se apli-
caram a provar a genealogia das nossas liberdades. Conseguiram
provar que a antiga carta, a Magna Carta do rei João, estava ligada a
uma outra carta promulgada por Henrique I, e que, quer uma quer
outra, não eram mais que o reafirmar da ainda mais antiga lei do
~eino. Para dizer a verdade, em grande parte, estes autores parecem
estar certos, talvez nem sempre, mas se os juristas se enganaram em
alguns aspectos particulares, isso prova ainda mais fortemente a
minha posição: porque isso demonstra a forte simpatia pela anti-

9
; "Nora do auto r: Ver a Magna Carta, de Blackstone, impressa em Oxford, 17 59.
83

guidade que sempre povoou as mentes de todos os nossos juristas


e legisladores, e de todo o povo que eles queriam influenciar, e a
política estável deste reino ao considerar os seus direitos e garantias
mais sagrados como uma herança.
Na famosa lei do 3. 0 ano do reinado de Carlos I, chamada a Pe-
tição de Direito, o Parlamento disse ao Rei," Os vossos súbditos her-
daram esta liberdade": reclamando os seus direitos, não na base de
princípios abstractos, "como os direitos do homem", mas como os
direitos dos ingleses, e como um património proveniente dos seus
antepassados. Selden 94, e outros profundos conhecedores que redi-
giram esta Petição de Direito, estavam igualmente familiarizados,
com todas as teorias gerais respeitantes aos "direitos do homem"
pelo menos tanto quanto os oradores dos nossos púlpitos ou das
vossas tribunas: tanto quanto o Dr. Price ou o Abade de Sieyes 95 .
Mas, por razões dignas da sabedoria prática, que suplantou o seu
saber teórico, eles preferiram este título positivo, registado e here-
ditário a tudo o que pode ser caro ao homem e ao cidadão, àque-
le direito vago e especulativo, que expunha a sua herança segura a
ser dissipada e feita em pedaços por qualquer espírito litigioso e re-
belde.
A mesma política perpassa por todas as leis que desde aí fo-
ram feitas para a preservação das nossas liberdades. No 1. 0 ano de
Guilherme e Maria, no famoso estatuto chamado a Declaração
de Direito, as duas Câmaras não pronunciaram nem uma sílaba a
propósito do "direito a eleger um governo para si mesmos". Verá
o Senhor que a sua única preocupação foi assegurar a religião, as
leis e as liberdades que há muito se possuíam e que ultimamente
tinham estado em perigo. "Tomando 96 na mais alta consideração os
94
N .T. John Selden, 1584-1 654. jurista que de fe ndeu o rebelde J ohn H ampden ,
que se revoltou contra Carlos I.
95
N .T. Abade Emmanuel-Joseph de Sieyi:s ( 1748- 1816), um dos teóricos legis-
ladores da Constituição Francesa de 179 1.
% Nota do autor: I Gu ilherme e Maria.
84

melhores meios de constituir um tal estado de coisas no qual a sua


religião, as suas leis e as suas liberdades pudessem não estar em risco
de ser de novo desrespeitadas", começaram os seus procedimentos
estabelecendo como alguns destes melhores meios: "em primeiro
lugar", fazer "como os seus antepassados fiz eram habitualmente em
casos semelhantes para reivindicarem os seus direitos e liberdades
antigos, declarar"- e a seguir pedem ao rei e à rainha- "que possa
ser proclamado e decretado que todos e cada um dos direitos e liber-
dades reivindicados e declarados são os antigos direitos e liberdades
do povo deste reino".
O Senhor há-de reparar que, desde a Magna Carta à Declara-
ção de Direito, foi política invariável da nossa Constituição reivin-
dicar e afirmar as nossas liberdades como uma herança que nos vem
dos nossos antepassados, para ser transmitida à nossa descendência,
- como uma propriedade que especialmente pertencesse ao povo
deste reino, sem qualquer referência a outro direito mais geral ou
mais antigo. Por este meio, a nossa Constituição preserva a unida-
de na grande diversidade de todas as suas partes. Temos uma coroa
hereditária, uns pares hereditários, e uma Câmara dos Comuns e
um povo que herda privilégios, direitos e liberdades desde há uma
longa linhagem de antepassados.
Esta política parece-me ser o resultado de uma profunda refle-
xão - ou antes, o feliz efeito de seguir a Natureza, que é sabedoria
sem reflexão e acima dela. Um espírito de inovação é geralmente
o resultado de um temperamento egoísta e de vistas curtas. Não
cuidará da posteridade quem não olhou nunca para os seus ante-
passados. Além disso, o povo de Inglaterra sabe bem que a ideia de
hereditariedade proporciona um princípio seguro de conservação,
e um princípio seguro de transmissão, sem de modo algum excluir
um princípio de aperfeiçoamento. Deixa a aquisição livre, mas as-
segura o que adquire. ~aisquer vantagens obtidas por um Esta-
do, actuando segundo estas máximas, depressa se vêem envolvidas
85

numa espécie de contrato familiar, seguras numa espécie de bens


de mão-morta para sempre. Através de uma política constitucional
que opera segundo o modelo da Natureza, recebemos, mantemos
e transmitimos o nosso governo e os nossos privilégios, do mesmo
modo que usufruímos da nossa propriedade e das nossas vidas. Re-
cebemos e legamos a outros do mesmo modo e pela mesma ordem
as instituições políticas, as riquezas e as dádivas da Providência.
O nosso sistema político está colocado numa justa correspondên-
cia e simetria com a ordem do mundo e com o modo de existência
destinado a um corpo permanente composto de partes transitó-
rias: pela disposição de uma sabedoria extraordinária, que preside
ao grande mistério da unidade da raça humana, o todo, num dado
momento, nunca é velho ou de meia idade ou novo mas, numa con-
dição de imutável constância, move-se segundo o curso diverso da
decadência, da queda , da renovação e do progresso perpétuos. As-
sim, preservando os métodos da Natureza na condução do Estado,
naquilo que modernizamos nunca seremos completamente novos
e naquilo que conservamos nunca seremos completamente obsole-
tos. Ao aderir desta maneira e segundo estes princípios aos nossos
antepassados, somos guiados, não pela superstição saudosista, mas
pelo espírito da analogia filosófica. Nesta escolha do que é herda-
do, demos ao contexto político a figura de uma relação de família:
ligando a Constituição do nosso país com os laços domésticos mais
queridos, seguindo as nossas leis fundamentais no seio dos nossos
afectos familiares , mantendo inseparáveis e alimentados com o ca-
lor da sua benevolência mútua e conjunta, o nosso Estado, os nossos
lares, os nossos sepulcros e os nossos altares.
Através do mesmo plano que nos fez conformar as nossas ins-
tituições artificiais à Natureza e, recorrendo à ajuda dos seus ins-
tintos certeiros e poderosos para fortalecer as capacidades da nossa
razão, de si fracas e erróneas, retirámos vários outros benefícios - e
não pequenos - do facto de considerarmos as nossas liberdades à
luz do património herdado. Actuando sempre como se estivésse-
86

mos em presença de santos antepassados, o espírito de liberdade,


que, por si mesmo, leva ao desregramento e ao excesso, é tempera-
do por uma gravidade solene. Esta ideia de uma ascendência liberal
inspira-nos com o sentido de uma dignidade habitual e inata, a qual
previne a insolência arrivista que quase inevitavelmente afecta e de-
sonra aqueles que primeiro atingem uma distinção qualquer. Atra-
vés destes meios a nossa liberdade torna-se uma independência no-
bre. Tem um aspecto imponente e majestoso. Tem uma genealogia
e ilustres antepassados. Tem o seu porte e o seu insigne brasão de ar-
mas. Tem a sua galeria de retratos, as suas inscrições monumentais,
os seus registos, os seus testemunhos e os seus títulos. Tributamos
reverência às nossas instituições civis segundo o princípio pelo qual
a Natureza nos ensina a reverenciar os indivíduos: tendo em conta
a sua idade e a sua ascendência. Todos os vossos sofistas não podem
produzir nada mais adaptado a preservar a liberdade racional e viril
que este percurso que seguimos, que escolhe a nossa natureza de
preferência às nossas especulações e o nosso coração de preferência
às nossas invenções, para salvaguarda e depósito dos nossos direitos
e privilégios.
Teriam podido, se quisessem, aproveitar do nosso exemplo, e
dar à vossa liberdade recuperada a correspondente dignidade. Os
vossos privilégios, se bem que interrompidos, não estavam esque-
cidos. É verdade que a vossa Constituição, enquanto estivestes fora
do poder, sofreu perdas e deteriorou-se, mas vós possuíeis em al-
gumas partes as paredes e, na sua totalidade, as fundações, de um
castelo nobre e venerável. Os senhores poderiam ter reparado es-
sas paredes, poderiam ter construído sobre essas fundações. A vos-
sa Constituição foi suspensa antes de ter sido aperfeiçoada, mas
tínheis os elementos de uma Constituição quase tão boa quanto
se poderia desejar. As vossas antigas instituições possuíam aquela
multiplicidade de partes correspondentes aos vários tipos de que a
vossa comunidade, felizmente, era composta. Os senhores tinham
todas as combinações e todos os conflitos de interesses, tinham a
87

acção e a oposição que, tanto no mundo natural como no políti-


co, da luta recíproca entre poderes que se opõem, faz derivar a har-
monia do universo. Estes interesses opostos e em conflito, que vós
considerais uma coisa tão condenável, quer na amiga quer na actual
Constituição, interpõem um obstáculo salutar a todas as resoluções
precipitadas. Tornam a deliberação um assumo não de escolha mas
de necessidade. Fazem que todas as mudanças sejam objecto de um
compromisso, o que, naturalmente, gera moderação e produz tempe-
rança, prevenindo o mal doloroso das reformas rígidas, grosseiras e
inábeis e tornam os exercícios precipitados de poder arbitrário, de
poucos ou de muitos, para sempre impraticáveis. Graças a esta di-
versidade de membros e de interesses, a liberdade geral teria tantas
garantias quantas as várias perspectivas nas várias ordens, ao mesmo
tempo que, submetendo o todo ao peso de uma real monarquia, se
impedia que as várias partes empenassem e saíssem dos lugares que
lhes estavam destinadas.
Os senhores tinham todas estas vantagens nas vossas amigas
instituições, mas escolheram agir como se nunca tivessem sido
moldados pela sociedade civil e tivessem de começar tudo de novo.
Começaram mal, porque começaram por desprezar tudo o que vos
pertencia. Começaram o vosso negócio sem capital. Se as últimas
gerações do vosso país pareciam ter pouco brilho aos vossos olhos,
podíeis tê-las deixado de lado e ter feito derivar as vossas reivin-
dicações de uma raça mais amiga de antepassados. Sob um apre-
ço reverente por estes antepassados, a vossa imaginação teria per-
cebido neles um nível de virtude e sabedoria muito para além da
prática vulgar do momento, e os Senhores ter-se-iam elevado em
virtude do exemplo que aspiravam imitar. Respeitando os vossos
antepassados teríeis aprendido a respeitar-vos a vós mesmos. Não
teríeis optado por considerar os franceses como um povo sem his-
tória, como uma nação de malnascidos, escravos desgraçados até ao
ano da emancipação, 1789. Com vista a vos desculpardes das vossas
múltiplas enormidades aos vossos adeptos daqui, não vos impor-
88

tastes de serdes representados, a expensas da vossa honra, como um


bando de escravos Maroon 97 , subitamente fugidos do cativeiro, e
por isso desculpáveis pelo vosso abuso da liberdade à qual não es-
táveis acostumados e estáveis mal adaptados. Não teria sido mais
sensato, meu caro amigo, os senhores terem de vós o conceito, que
eu sempre tive: uma nação magnânima e valorosa, há muito tempo
desencaminhada, por desgraça sua, por causa dos seus sentimentos
elevados e românticos de fidelidade, de honra e de lealdade? ~e os
acontecimentos vos tinham sido desfavoráveis, mas que os senho-
res não eram escravos de nenhuma inclinação baixa ou servil, que,
na vossa submissão mais devotada, os senhores tinham actuado por
um princípio de espírito público, que era o vosso país que venera-
vam na pessoa do vosso rei? Se os senhores tivessem feito para que
se entendesse que, na ilusão daquele amável erro, tinham ido mais
longe do que os vossos sábios antepassados e que estavam decidi-
dos a reatar os vossos privilégios antigos, enquanto preservavam o
espírito da fidelidade e da honra antiga e recente, ou se, desconfia-
dos de vós mesmos, e não discernindo claramente a Constituição
dos vossos antepassados quase suprimida, tivessem olhado para os
vossos vizinhos nesta terra, que mantiveram vivos os princípios e
modelos antigos do velho direito consuetudinário europeu, melho-
rado e adaptado ao presente estado da Europa - seguindo modelos
sensatos teríeis dado novos exemplos de sabedoria ao mundo. Os
senhores teriam tornado a causa da liberdade venerável aos olhos
dos sábios de todas as nações. Teriam desprestigiado o despotismo
no mundo inteiro ao mostrar que a liberdade não é apenas reconci-
liável com a lei, mas é, quando bem disciplinada, um auxiliar desta.
Teriam tido impostos produtivos sem serem opressivos. Teriam tido
um comércio florescente para os alimentar. Teriam tido uma Cons-
tituição livre, uma monarquia forte , um exército disciplinado, um
clero reformado e venerado - uma nobreza branda, mas intrépida,

N.T. Descendente de escravos fugitivos da Guiana H olandesa e Índias Oci-


dentais.
89

para dar o exemplo da virtude e não para a sufocar, teriam tido uma
burguesia liberal, para competir e estimular a nobreza, teriam tido
um povo protegido, satisfeito, laborioso e obediente, ensinado a
esforçar-se e a reconhecer a felicidade que é basear-se na virtude em
todas as condições - no que consiste a verdadeira igualdade moral
da humanidade, não naquela ficção monstruosa que, por inspirar
falsas ideias e expectativas vãs em homens destinados a percorrer o
caminho obscuro de uma vida de trabalho, serve apenas para agra-
var e tornar mais amarga a desigualdade real que nunca pode desa-
parecer e que a ordem da vida civil estabelece tanto para benefício
daqueles a quem precisa de deixar numa condição humilde como
para aqueles a quem pode elevar a uma condição mais sumptuosa,
mas não mais feliz. Tinham um caminho tranquilo e fácil de felici-
dade e glória aberto para vós, para além de tudo o que há memória
na história do mundo, mas mostraram que a dificuldade convém
aos homens.
Contem o que ganharam, vejam o que conseguiram com todas
essas especulações extravagantes que ensinaram os vossos líderes a
desprezar os seus predecessores e todos os seus contemporâneos,
e mesmo a desprezarem-se a si próprios, até ao momento em que
se tornaram verdadeiramente desprezíveis. Por seguir estas falsas
luzes, a França comprou calamidades inegáveis, a um preço mais
elevado do que o que alguma outra nação pagou pelas bênçãos mais
inequívocas. França comprou a pobreza com o crime! França não
sacrificou a sua virtude ao seu interesse, mas abandonou o seu inte-
resse, para poder prostituir a sua virtude! Todas as outras nações co-
meçaram a constituir um novo governo, ou a reforma de um antigo,
estabelecendo originalmente, ou impondo mais meticulosamente
algum rito religioso. Todos os outros povos basearam os funda-
mentos da liberdade civil em costumes mais severos e num sistema
moral mais austero e viril. A França, quando deixou perderem-se as
rédeas da autoridade real, duplicou a licenciosidade de uma devas-
sidão feroz nos costumes e duma irreligiosidade insolente nas opi-
90

niões e nas práticas - e espalhou, por todas as dimensões da vida,


como se estivesse a distribuir algum privilégio, ou a facilitar o acesso
a algum benefício antes privado, todas as desventuradas corrupções
que antes costumavam ser a doença da riqueza e do poder. Este é um
dos novos princípios de igualdade em França.
A França, pela perfídia dos seus líderes, desacreditou por
completo o tom conciliador nos gabinetes dos príncipes e arredou
deles os seus mais importantes tópicos. Tornou sagradas as máxi-
mas sinistras e suspeitas da desconfiança tirânica, e ensinou os reis
a tremer perante (o que doravante se chamará) as probabilidades
enganadoras dos políticos moralistas. Os soberanos considerarão
como conspiradores contra o seu trono aqueles que os aconselha-
rem a depositar uma confiança ilimitada no seu povo - como trai-
dores que visam a sua destruição, ao levarem a sua natureza boa e
despreocupada, sob falsos pretextos, a admitir que associações de
homens desleais e atrevidos participem do seu poder. Só isto, ain-
da que não houvesse mais nada, já era uma calamidade irreparável,
para vós e para a humanidade. Lembrem-se que o vosso Parlamento
em Paris disse ao rei que, mandando reunir os Estados, não tinha
nada a recear a não ser o pródigo excesso do seu zelo em apoiar o
trono. É certo que estes homens deveriam esconder as suas cabe-
ças98. É verdade que eles deveriam ter o seu quinhão na ruína que
o seu conselho trouxe ao seu soberano e ao seu país. Tais declara-
ções confiantes tendem a adormecer a autoridade, a encorajá-la a
comprometer-se em aventuras perigosas de políticas não testadas,
a descuidar as medidas, preparativos e precauções, que distinguem
a benevolência da imbecilidade, e sem as quais nenhum homem
pode responder pelo efeito salutar de nenhum plano abstracto de
governo ou de liberdade. Por falta destas medidas, viram o remédio
do Estado corromper-se em veneno. Viram os franceses revoltar-se
contra um monarca brando e legítimo, com mais fúria, ultrajes e
95
.T. A expressão é "hide t hei r heads", que rem sido interpretado como o
temer a guilhoti na.
91

insultos, do que alguma vez se teve conhecimento que um povo se


levantasse contra o mais ilegal dos usurpadores ou o mais sangui-
nário dos tiranos. A sua resistência foi contra as concessões, a sua
revolta contra a proteção, o seu golpe foi contra a mão pródiga em
graças, favores e imunidades.
Isto foi contranatura. O resto está em ordem: encontraram o
seu castigo no seu próprio sucesso. Leis viradas do avesso, tribunais
subvertidos, indústria sem vigor, comércio moribundo, os impostos
não são pagos e o povo empobrece, uma Igreja roubada e o Estado
não aliviado, a anarquia civil e militar fazem a constituição do rei-
no , tudo quanto é humano e divino é sacrificado ao ídolo do crédito
público e a consequência é a bancarrota nacional e, para coroar o
conjunto, o papel-moeda de um novo poder, precário e vacilante,
é desacreditado por uma fraude empobrecedora e uma rapina de
mendigos. É o papel-moeda que é mantido como suporte de um
império, em lugar dos dois grandes valores reconhecidos que re-
presentam o crédito convencional duradouro da humanidade, que
desapareceram e se ocultaram na terra de onde vieram, quando o
princípio de propriedade, do qual são os representantes e de que são
as criaturas, foi sistematicamente subvertido.
Eram necessárias rodas estas coisas horríveis? Eram o resulta-
do inevitável da luta desesperada de determinados patriotas, impe-
lidos a atravessar com dificuldade, através de sangue e tumulto, para
a praia calma de uma liberdade tranquila e próspera? Não, nada
disso. As recentes ruínas de França, que nos horrorizam para onde
quer que voltemos os olhos, não são a devastação de uma guerra
civil: são os monumentos tristes, mas instrutivos, do conselho pre-
cipitado e ignorante em tempo de profunda paz. São a exibição de
uma autoridade irrefletida e presunçosa, porque sem [encontrar]
resistência e irresistível. As pessoas que deste modo desperdiça-
ram o tesouro precioso dos seus crimes, as pessoas que fizeram esta
devastação pródiga e selvagem de calamidades públicas (o último
92

recurso, reservado para o derradeiro resgate do Estado) depararam


no seu avanço com pouca, ou mesmo nenhuma, oposição. A sua
progressão foi mais uma marcha triunfal que o avanço de uma guer-
ra. Os seus pioneiros vieram à frente e demoliram tudo raso a seus
pés. Não derramaram nem uma gota do seu sangue pela causa do
país que arruinaram. Não sacrificaram aos seus projectos nada que
fosse além das fivelas dos sapatos99 , enquanto prenderam o seu rei,
assassinaram os seus compatriotas, banharam em lágrimas e mer-
gulharam em pobreza e angústia milhares de homens admiráveis e
de valorosas famílias. A sua crueldade nem sequer foi o resultado
vil do medo. Foi antes consequência de se sentirem em completa
segurança, ao autorizarem traições, roubos, violações, assassínios,
massacres e queimadas através da sua terra devastada. Mas a causa
de tudo isto era evidente desde o início.
Esta escolha voluntária, esta predilecção pelo mal, pareceria
perfeitamente inexplicável se não conhecêssemos a composição da
Assembleia Nacional. Não me refiro à sua constituição formal que,
tal como agora está, é bastante censurável, mas aos materiais de que
é composta na sua maior parte, os quais são dez mil vezes mais im-
portantes do que todas as formalidades do mundo. Se nada mais
soubéssemos desta Assembleia a não ser o seu título e a sua fun-
ção, não haveria cores que pintassem nada mais venerável à nossa
imaginação, o espírito de quem indaga, subjugado por imagem tão
reverente como a da virtude e sabedoria de todo um povo reunida
num só lugar, teria parado e hesitado em condenar mesmo ante os
piores indícios. Em vez de condenáveis, os acontecimentos teriam
aparecido apenas como enigmáticos. Mas nenhum nome, nenhum
poder, nenhuma função, nenhuma instituição artificial seja ela qual
for, pode fazer dos homens, dos quais se compõe qualquer sistema
de autoridade, algo diferente daquilo que Deus, a Natureza, a edu-

99
l.T. Burke refere-se aqui ao gesto dos Deputados à Assembleia Constituinte
quando deixaram sobre a mesa da presidência as fivelas de prata dos sapatas, como home-
nagem patriótica e contribuição para a revolução.
93

cação e os seus hábitos de vida fizeram deles. Capacidades para além


destas o povo não tem para dar. A virtude e a sabedoria podem ser
objectos da sua escolha, mas a eleição não confere nem uma nem a
outra àqueles sobre os quais eles impuseram as mãos. Não têm este
poder, nem por natureza, nem por nenhuma garantia revelada.
Após eu ter lido a lista de pessoas e os círculos dos eleitos para
o Tiers État, nada do que depois fizeram me pareceu surpreenden-
te. No meio deles, de facto, vi alguns de categoria reconhecida e
alguns talemos brilhantes, mas com experiência prática de Estado
nem um se podia encontrar. Os melhores eram apenas teóricos.
Mas quem quer que tenham sido os poucos que se distinguiram, é
a substância e a totalidade de uma organização que constitui o seu
carácter e, forçosamente, acaba por determinar a sua direcção. Em
todas as organizações, em grande medida, aqueles que lideram têm
também de seguir. Têm de adequar as suas propostas ao gosto, ao
talento e à disposição daqueles a quem querem conduzir: daí que
uma assembleia que seja, em grande parte, viciosa ou fracamente
composta, nada a não ser um supremo grau de virtude como rara-
mente aparece no mundo, e que por essa razão não pode ser tomado
em conta, pode impedir que os homens de talento disseminados se
tornem hábeis instrumentos de projectos absurdos. Se, o que é o
mais provável acontecer, em vez desse raro grau de virtude, eles fo-
rem comandados por uma ambição sinistra e o desejo de uma glória
infame, então a parte mais fraca da assembleia, a quem no início
obedecem, torna-se, por sua vez, subordinada e instrumento dos
seus desígnios. Nesta transição política, os líderes serão obrigados a
inclinar-se perante a ignorância dos seus seguidores e os seguidores
tornar-se-ão subservientes aos piores desígnios dos seus líderes.
Para assegurar algum grau de sobriedade nas propostas feitas
pelos líderes numa assembleia pública, estes devem respeitar, e em
certa medida mesmo recear, aqueles que conduzem. Os seguidores,
para serem conduzidos de outro modo que não cegamente, preci-
94

sam de ter qualidades, se não para protagonistas, pelo menos para


juízes, precisam também de ser juízes com poder natural e autori-
dade. O único modo de assegurar uma conduta firme e moderada
nestas assembleias é que o seu corpo seja respeitável: pela sua con-
dição na vida, pelo seu património, pela sua educação e por hábiros
que alarguem e liberalizem o entendimento.
Nos chamados Estados Gerais de França, a primeira coisa que
me impressionou foi o seu grande afastamento do rumo antigo. Vi
que a representação do Terceiro Estado era composta por seiscentas
pessoas. Eram em número igual ao conjunto dos representantes das
outras duas ordens. Se as ordens fossem para actuar separadamen-
te, o número não teria sido de grande importância, para além da
questão da despesa. Mas quando ficou claro que as três ordens eram
para ser misturadas numa só, a política e o inevitável efeitO desta
numerosa representação tOrnaram-se óbvios: uma pequena deser-
ção de qualquer uma das outras duas ordens poria o poder de ambas
nas mãos da terceira. Com efeitO, rodo o poder do Estado em breve
lhes estava entregue. A sua adequada composição rornou-se então
infinitamente mais importante.
Julgue pois o Senhor, qual não foi a minha surpresa quando
descobri que a grande maioria da Assembleia (creio que a maio-
ria dos membros que participam) era composta por praticantes do
direitO. Não era composta de magistrados distintos que tivessem
prometido ao seu país a sua ciência, prudência e integridade - nem
de advogados líderes da glória dos tribunais - nem de professores
universitários de renome - mas, na sua maior parte, como tem de
ser num número destes, de membros da profissão inferiores, igno-
rantes, mecânicos e meramente instrumentais. Havia excepções
distintas, mas a composição geral era de obscuros advogados de
província, de comissários de insignificantes jurisdições locais, de
procuradores rústicos, de notários, e roda a comitiva de ministros
do contencioso municipal, os fomentadores e líderes das guerras
95

mesquinhas de vexames da aldeia. A partir do momento em que li a


lista vi claramente, quase tal como ocorreu, tudo o que iria suceder.
O grau de consideração em que cada profissão é tida em con-
ta torna-se o padrão da estima em que os profissionais se têm a si
próprios. ~alquer que tenha sido o mérito pessoal de muitos ad-
vogados, individualmente (e em muitos casos foi sem dúvida mui-
to considerável), no vosso reino militar ninguém desta profissão é
particularmente considerado, excepto a categoria mais elevada de
todas, que frequentemente unia aos seus escritórios profissionais o
seu grande prestígio familiar e eram investidos de grande poder e
autoridade. A estes tinha-se grande respeito mesmo misturado com
muito temor. O nível seguinte não era muito considerado, a sua
parte mecânica tinha uma reputação de muito baixo nível.
Sempre que se investe da autoridade suprema um corpo assim
composto, evidentemente que se produzem as consequências da
autoridade suprema estar nas mãos de homens que habitualmente
não foram educados a respeitarem-se a si próprios - que não arris-
cam nenhuma reputação - que não se poderia esperar que se com-
portassem com moderação ou que conduzissem com descrição um
poder que eles próprios, mais do que quaisquer outros, se deviam
surpreender de encontrar nas suas mãos. ~em poderia gabar-se de
que estes homens, arrebatados repentinamente, e como por encan-
tamento, ao nível mais humilde de subordinação, não se embriaga-
riam com a sua inesperada grandeza? ~em poderia conceber que
homens que habitualmente se imiscuem, são atrevidos, subtis, ac-
tivos, de disposição conflituosa e de espírito inquieto, retornariam
facilmente à sua antiga condição de obscura contenção e laborio-
sa, baixa e inútil charlatanice? ~em duvidaria senão esses, que a
qualquer preço para o Estado, do qual nada entendiam, tinham de
perseguir os seus interesses privados, dos quais entendiam muito
bem? Nada disto dependia da sorte ou da contingência. Era inevi-
tável, era necessário, estava inscrito na natureza das coisas. Devem
96

apoiar (se a sua capacidade não lhes permite liderar) qualquer pro-
jecto que lhes proporcione uma Constituição litigiosa - que pode
abrir-lhes os postos inumeráveis e lucrativos que se seguem a todas
as grandes convulsões e revoluções no Estado, e particularmente a
todas as transferências violentas de propriedade. Seria de esperar
que se preocupassem com a estabilidade da propriedade, aqueles
cuja existência tinha dependido sempre de tudo o que torna a pro-
priedade questionável, ambígua e precária? Os seus objectivos ha-
veriam de alargar-se com a sua promoção, mas a sua disposição, os
seus hábitos e o modo de cumprirem os seus desígnios haveriam de
permanecer os mesmos.
Bem! Mas estes homens eram para ser moderados e restringi-
dos por outros grupos, de espíritos mais sóbrios e com maior discer-
nimento. Deveriam eles então ter reverência pela autoridade supe-
reminente e dignidade venerável de uma mão cheia de palhaços rús-
ticos, que têm assento nesta Assembleia, de quem se diz que alguns
não sabem ler nem escrever, e por um número não muito grande de
comerciantes, os quais, embora um pouco mais instruídos e mais
notáveis na hierarquia social, nunca conheceram nada para além
do seu escritório de contabilidade? Não! Ambos estes círculos esta-
vam mais talhados para serem dominados pelas intrigas e artifícios
dos advogados do que para se tornarem o seu contrapeso. Com esta
desproporção tão perigosa, o todo tem, obrigatoriamente, de ser
governado por eles.
À classe de direito juntou-se uma muito considerável propor-
ção da classe dos médicos. Tal como a classe de direito, esta não
. tem sido tida em justa estima em França. Por isso, os seus profissio-
nais têm de ter as qualidades de homens que não estão habituados
a sentimentos de dignidade. Mas suponhamos que subiram na hie-
rarquia como têm de subir, e como entre nós subiram de facto, as
cabeceiras dos doentes não são academias para formarem estadistas
e legisladores. A seguir vêm os negociantes de capitais e especula-
97

dores da bolsa, que têm de ser ávidos, a rodo o custo, em trocar a


sua riqueza abstracta em papel pela substância mais sólida da terra.
A isso se juntaram homens de outros círculos, de quem se espera-
va pouco conhecimento de ou pouca atenção aos interesses de um
grande Estado, bem como pouca atenção à estabilidade de qualquer
instituição- homens formados para serem instrumentos, não cabe-
cilhas. - Tal era, em geral, a composição do Tiers État na Assem-
bleia Nacional, na qual escassamente se percebia o mais leve traço
daquilo a que chamamos os naturais interesses fundiários do país.
Sabemos que a Câmara dos Comuns inglesa, sem fechar as
portas ao mérito seja de que classe for, pela actuação segura das
causas adequadas, está cheia de tudo o que o país pode dar do que
é ilustre em categoria, em ascendência, em opulência hereditária e
adquirida, em talentos cultivados, em distinções militares, civis, na-
vais e políticas. Mas suponhamos, o que dificilmente se pode supor,
que a Câmara dos Comuns deveria ser composta da mesma maneira
que o Tiers État em França - seria este domínio da chicana supor-
tado com paciência, ou sequer concebido sem horror? Deus me
defenda de insinuar o que quer que seja de depreciativo acerca da
profissão da administração da sagrada justiça, que é outro sacerdó-
cio! Mas, enquanto eu reverencio os homens nas funções que lhes
pertencem, e farei o que for possível para impedir a sua exclusão de
qualquer delas, não posso, para elogiá-los, mentir à Natureza. São
bons e úteis integrados no conjunto. Serão certamente prejudiciais
se predominarem e também se virtualmente se tornarem o rodo.
A sua excelência em funções particulares está longe de ser qualifica-
ção para as outras. Não podemos deixar de observar, que quando os
homens estão muito confinados a hábitos profissionais e de classe
e, como aconteceu, arraigados ao trabalho costumeiro deste estrei-
to círculo, estão mais incapacitados do que qualificados para tudo
aquilo que dependa do conhecimento da humanidade, da experiên-
cia em múltiplos assuntos, de uma visão englobante e conexa dos
98

vários e complexos interesses, internos e externos, que formam esta


coisa multifacetada chamada Estado.
E, finalmente, se a Câmara dos Comuns fosse para ter uma
composição completamente profissional ou de classe, qual é o poder
da Câmara dos Comuns, circunscrito e encerrado nos inamovíveis
limites das leis, dos usos, das regras positivas de doutrina e prática,
contrapesados pela Câmara dos Lordes e, a cada momento da sua
existência, à disposição da coroa para a sua continuação, prorroga-
ção ou dissolução? O poder da Câmara dos Comuns, directo ou in-
directo, é de facto grande: e oxalá por muito tempo possa preservar
a sua grandeza, e o espírito, que pertence à verdadeira grandeza por
inteiro! -e fará isso, enquanto conseguir impedir os que violam a
lei na Índia de se tornarem legisladores em Inglaterra 100 • O poder
da Câmara dos Comuns, todavia, sem o diminuir em nada, é como
uma gota de água no oceano quando comparado com aquele que
reside numa maioria estabelecida da vossa Assembleia Nacional.
Esta Assembleia, desde a destruição das ordens, não tem nenhu-
ma lei fundamental , nenhuma convenção estrita, nenhum costu-
me respeitável que a refreie. Em vez de se encontrarem obrigados
a conformarem-se a uma Constituição estabelecida, têm o poder
para fazer uma Constituição que se conformará aos seus desígnios.
Não há nada no céu nem na terra que lhes possa servir de controlo.
~ais teriam de ser as cabeças, os corações e as disposições para
serem qualificados, ou para se atreverem, não apenas a fazer leis sob
uma Constituição estabelecida mas, numa mesma jogada, traçar
uma nova Constituição para um grande reino e cada uma das suas

100
N.T. N esta alrura deco rria, ainda, o julgamento de W arren H astings, primei-
ro governado r geral de Bengala, começado o fi cial mente em 1788, cujo comité de acu-
sação, Secret Committee, constitu ído na C âmara dos Co mun s, era liderado por Burke.
A impugn ação teria o seu epílogo em Abril de 1795, co m a absolvição de H astings na
Câmara dos Lordes, previamente condenado na Câmara dos Comuns. Entre a investiga-
ção e a impugnação Burke dedicou perto de uma década da sua vida a esta causa.
99

partes, desde o monarca no trono até à sacristia da paróquia? Mas


"os loucos precipitam-se onde os anjos temem pôr o pé" 10 1•
Num tal estado de poder descontrolado, ao serviço de pro-
pósitos não definidos e indefiníveis, uma inaptidão moral e quase
física do homem para as funções, deve ser o mal maior que se pode
imaginar que aconteça na condução dos negócios humanos.
Tendo considerado a composição do Terceiro Estado, tal como
ele se apresentou no seu quadro original, olhei para os representan-
tes do clero. Também aí, parecia que se tinha prestado muito pouca
atenção à segurança geral da propriedade, ou à aptidão dos deputa-
dos para o seu cargo público, nos princípios eleitorais. Esta eleição
foi tão artificial a ponto de enviar uma grande proporção de sim-
ples curas de aldeia para o trabalho grandioso e árduo de remodelar
o Estado: homens que nunca tinham visto o Estado nem sequer
em ilustração, homens que nada sabiam do mundo para além dos
muros da obscura aldeia que, afundados numa pobreza irremediá-
vel, não podiam olhar a propriedade, quer secular quer eclesiástica,
com outros olhos que não os da cobiça. Entre eles deve haver mui-
tos que, à mais pequena esperança de retirar o mínimo dividendo
da pilhagem, prontamente se juntariam a qualquer atentado contra
um conjunto de riquezas no qual dificilmente podiam esperar ter
parte, excepto na confusão geral. Em vez de contrabalançarem o
poder dos charlatães activos na outra assembleia, estes curas devem
necessariamente tornar-se os seus coadjutores activos ou, no me-
lhor dos casos, os instrumentos passivos daqueles por quem foram
habitualmente guiados nos seus interesses mesquinhos de aldeia.
Também estes dificilmente podiam ser os mais conscienciosos da
sua classe, eles que, arrogantes no seu fraco entendimento, urdem
intrigas para obter um cargo de confiança que os conduzirá para
fora das relações naturais com o seu rebanho e das suas próprias
esferas de acção, para levarem a cabo a regeneração de reinos. Este

101
N.T. Provérb io inglês: "fools rush in where angels fea r ro u ead".
100

peso dominante, acrescentado à força do corpo de charlatães do


Tiers État 102, completam aquele ímpeto de ignorância, temeridade,
presunção e pilhagem cobiçosa a que coisa alguma tem conseguido
resistir.
Para homens observadores, deve ter parecido desde o início
que a maioria do Terceiro Estado, em conjugação com esta repre-
sentação do clero tal como a descrevi, ao mesmo tempo que tentava
destruir a nobreza, iria inevitavelmente tornar-se subserviente dos
piores desígnios de indivíduos desta classe. No saque e na humilha-
ção da sua própria classe, estes indivíduos granjeiam um fundo se-
guro para pagamento dos seus novos sequazes. Desbaratar os bens
que fizeram a felicidade dos seus pares não seria para eles nenhum
sacrifício. Homens bem-nascidos, truculentos e descontentes, à
medida que se empolam com o seu orgulho pessoal e a sua arrogân-
cia, geralmente desprezam os da sua própria classe. Um dos primei-
ros sintomas que revela neles uma ambição egoísta e mesquinha é
um desprezo dissoluto da dignidade que partilham com os outros.
Estar ligado à subdivisão, amar o pequeno pelotão ao qual perten-
cemos na sociedade, é o primeiro princípio (como se fosse o germe)
dos nossos afectos sociais. É o primeiro elo da cadeia de amor que
nos une à nossa pátria e à humanidade inteira. O interesse nesta
parcela deste arranjo social é um capital depositado nas mãos da-
queles que o compõem, e, do mesmo modo que apenas homens vis
poderiam justificar um mau uso desse capital, assim também apenas
os traidores poderiam trocá-lo em seu próprio proveito.
Houve, no tempo dos conflitos civis em Inglaterra (não sei se
têm alguns idênticos na vossa Assembleia em França), vários indi-
. víduos, como o Conde de Holanda 103 de então, que, por eles pró-
102
N.T . H á variações na design ação do T erceiro Estado, escriro ora com minús·
cuJas, ora com maiúsculas, ora em francês sem itálico, que foram respeitadas. ~and o no
texto aparece em francês, essa caracrerísrica foi mantida aqui sem rradução.
103
NT. Sir H enry Ri ch I" Earl of H olland ( 1590-1 649 ), que repartiu a sua fide -
lid ade ora pelo Rei o ra pelo Parl amento e que foi decapitado em 1649, no mesmo ano em
que o fo i Carlos L
101

prios ou através das suas famílias, atraíram o ódio sobre o trono pela
prodigalidade das mercês que lhes foram feitas, e que, depois, se
juntaram às rebeliões que tiveram origem nos descontentamentos
de que eles eram a causa: homens que ajudaram a derrubar o trono
ao qual deviam, alguns deles, a sua existência, outros, todo aquele
poder que usaram para arruinar o seu benfeitor. Se se estabelecem
alguns limites às exigências rapaces deste tipo de gente, ou se se
permite a outros partilharem os bens que eles absorveriam, a vin-
gança e a inveja depressa enchem o vazio insaciado deixado na sua
avareza. Confundidos pelo embaraço de paixões desmedidas, a sua
razão está perturbada, os seus pontos de vista tornam-se amplos e
confusos - para os outros inexplicáveis, para eles próprios incertos.
Encontram, por todos os lados, limites à sua ambição sem escrú-
pulos em toda a ordem estabelecida das coisas, mas na névoa e na
neblina da confusão tudo se agiganta e parece sem qualquer limite.
~ando homens de posição social sacrificam todas as ideias de
dignidade a uma ambição sem um objectivo distinto, e trabalham
com instrumentos baixos para fins pouco elevados, a composição
do todo torna-se baixa e vil. Não acontecerá algo semelhante agora
em França? Não se produz algo de ignóbil e inglório: uma espécie de
mediocridade em toda a política reinante, uma tendência em tudo
o que é feito para rebaixar, juntamente com os indivíduos, toda a
dignidade e importância do Estado? Outras revoluções foram con-
duzidas por pessoas que, ao mesmo tempo que tentavam ou reali-
zavam mudanças na éomunidade política, santificavam a sua am-
bição por melhorarem a dignidade do povo a quem perturbavam
a paz. Tinham vistas largas. Tinham por objectivo governar, não
destruir o seu país. Eram homens de grandes talentos civis e milita-
res e, se eram o terror, eram também as glórias do seu tempo. Não
eram como agiotas judeus altercando entre si sobre quem consegue
remediar melhor, com a circulação fraudulenta de papel-moeda
desvalorizado, a miséria e ruína trazida ao seu país pelos seus maus
conselhos. O cumprimento feito a um dos grandes homens maus
102

de marca antiga (Cromwell) pelo seu parente, um poeta favorito


desse tempo, mostra o que ele propunha e o quão verdadeiramente
ele, em grande medida, cumpriu através do triunfo da sua ambição:

Enquanto vós subis também se eleva o Estado


Sem que nada se destempere do que vós haveis mudado
Mudado como muda o cenário do mundo, quando sem ruído
o sol que se levanta destrói, da noite, os comuns luzeiros 104 •

Estes revolucionários não eram tanto homens a querer usurpar


o poder como a reivindicar o seu lugar natural na sociedade. A sua
ascensão iluminava e embelezava o mundo. A sua vitória sobre os
que com eles competiam era por ofuscar o seu brilho. A mão que,
como a de um anjo exterminador, castigou o país, comunicou-lhe
a força e a energia sob a qual sofreu. Não direi (Deus me defenda! )
não direi que as virtudes destes homens são para ser tidas em conta
para compensar os seus crimes, mas eram, de algum modo, um cor-
rectivo aos seus efeitos. Assim era, como disse, o nosso Cromwell.
Assim eram toda a vossa raça de Guises, Condés e Colignys. Assim
eram os Richelieus 10', que em tempos de paz actuaram ao espíri-
to de guerra civil. Assim eram o vosso Henrique ~arto e o vosso
Sully, homens melhores e em causas menos dúbias, embora alimen-
tados por confusões civis e não completamente isentos da sua man-
cha. É uma coisa admirável de ver quão depressa a França, logo que

104
.T. Versos de Edmund Waller que era parente próximo de Cromwell, em
A Pangyric to my Lord Protector, v. 36. Cf. Rejlections on the Revolution in Fran ce, The
Writings and Speeches ofEdmund Burke, p. 99, n. I.
10
; N.T. Durante as guerras religiosas do final do séc. XV I , o Duque Henrique de
Guise e o Cardeal de Lorraine- também da famüia De Guise - foram os líderes da facção
cató lica, enquanto o Almirante Gaspard de Colign~· pertencia aos líderes Huguenotes.
No início do séc. XVII , coube a Arm and-Jean du Plessis, Cardeal de Richelieu , ministro
de Luís XIII, a perseguição dos pro testantes franceses.
103

pôde respirar, recobrou e emergiu da guerra civil mais longa e mais


horrível de que alguma vez houve conhecimento em qualquer país.
Porquê? Porque no meio de rodos os seus massacres, eles não ma-
taram o espírito no seu país. Uma dignidade consciente, um orgu-
lho nobre, um sentido generoso de glória e sacrifício, não estavam
extintos. Ao contrário, estavam acesos e inflamados. Os órgãos do
Estado, se bem que abalados, existiam. Todos os prémios de honra
e virtude, todas as recompensas, rodas as distinções, perduravam.
Mas a vossa actual confusão atacou, como uma paralisia, a própria
fonte da vida. No vosso país rodas as pessoas em situação de serem
animadas por um princípio de honra, estão desonradas e degrada-
das e não alimentam outra sensação na vida senão uma indigna-
ção mortificante e humilhante. Mas esta geração passará depressa.
A próxima geração da nobreza assemelhar-se-á aos artífices e palha-
ços, financeiros, usurários e judeus, que serão sempre seus compa-
nheiros e, por vezes, os seus amos. Acredite-me o Senhor, aqueles
que tentam nivelar nunca igualam. Em rodas as sociedades cons-
tituídas por diferentes classes de cidadãos, algumas destas classes
precisam de se destacar. Visto isso, os niveladores apenas pervertem
a ordem natural das coisas: sobrecarregam o edifício da sociedade
colocando em cima o que a solidez da estrutura pedia que estivesse
na base. As associações de alfaiates e carpinteiros, das quais a repú-
blica (de Paris, por exemplo) é composta, não podem estar à altura
das situações a que vós, fundados na pior das usurpações a usurpa-
ção das prerrogativas da natureza, tentais obrigá-los.
O Chanceler de França, na abertura dos Estados, disse, num
tom de retórica florida, que rodas as profissões eram honrosas. Se
ele quis dizer simplesmente que nenhum emprego honesto é ver-
gonhoso, não disse nada além da verdade. Mas ao afirmar que qual-
quer coisa é honrosa, está nisso implícito alguma distinção em seu
favor. A ocupação de um cabeleireiro, ou de um fabricante de velas
de sebo, não pode ser para ninguém um motivo de honra, para não
falar de muitas outras ocupações ainda mais servis. Estas classes não
104

devem ser oprimidas pelo Estado, mas serão elas a oprimir o Esta-
do se aos da sua laia, quer individual quer colectivamente, lhes for
permitido governar. Nisto, os senhores pensam estar a combater o
preconceito mas estão em guerra com a Natureza* 106 •
Eu não julgo que o meu caro Senhor tenha aquele espírito
sofista e insidioso ou aquela ignorância maliciosa que requer, para
qualquer observação ou opinião geral, as correcções e as excepções
explícitas em pormenor, que a razão já presume estarem incluídas
em todas as proposições gerais enunciadas por um homem razoá-
vel. Não imagine que eu quero limitar o poder, a autoridade e a
distinção ao sangue, aos nomes e aos títulos. Não senhor. Não há
qualificação para a governação senão a virtude e a sabedoria, efecti-
vas ou presumíveis. Onde quer que de facto se encontrem, em qual-
quer estado, condição, profissão ou negócio, receberam do Céu o
passaporte para uma posição de honra entre os homens. Ai do país
que louca e impiamente rejeita o serviço dos talentos e das virtu-
des, civis, militares ou religiosas que lhe são dadas para o honrar e
servir e que condena à obscuridade aquilo que tem por função dar
brilho e glória ao Estado! Também desgraçado país que, passando
para o extremo oposto, considera uma educação inferior, uma visão
mesquinha e estreita das coisas, uma profissão sórdida e mercenária,
como a melhor qualificação para o comando! Todos os postos têm
de ser abertos a todos - mas não indiferentemente a qualquer ho-

106
·Nota do autor: Eclesi ástico, cap. xx.xviii, Vers. 24, 25: "O letrado adquire a
sabedoria no tempo em que está livre de negóc ios, e aquele que tem poucas ocupações
pode chegar a ser sábio. Como pode ser sábio o que rem de manejar a charru a, que a sua
glória é aguilhoar os bois, que se ocupa constantemente dos seus trabalhos, e só sabe falar
· das crias dos tOuros?" Vers. 27: "Assim acontece com todo o carpinteiro e arqui tectO, que
passa no trabalho os dias e as noites," &c. Vers. 33: "Porém, eles mesmos não tOmarão
parte nas assembleias, não se se ntarão nas cadeiras dos juízes, não entenderão as leis da
justiça, não ensinarão as regras da justiça e do direito, nem serão encontrados a estudar
parábolas" Vers. 34 "Entretanto, sustentam as coisas deste mundo ". Não opino sobre se
este livro é canónico, a Igreja Anglican a (até recentemente) considerou-o tal, ou apócrifo,
como aqui se considera. Estou ce rro de que contém bastante bom senso e ve rdade. [Burke
segue a numeração da Bíblia de King James. ]
105

mem. Em geral, nenhuma alternância, nenhuma nomeação à sorte,


nenhum modo de eleição actuando segundo o espírito de sorteio ou
rotatividade, pode ser bom num governo que se ocupe de grandes
realizações, porque estes métodos não têm tendência, nem directa
nem indirectamente, para seleccionar o homem com visão para a
tarefa a realizar, ou para atribuir aos homens o seu devido posto. Eu
não hesito em dizer que o caminho para a distinção e o poder, par-
tindo de uma condição obscura, não se deveria tornar fácil demais,
nem certamente, uma coisa excessiva. Se um raro mérito é a mais
rara dentre rodas as coisas raras deve passar por uma certa provação.
O templo da honra deve estar assente na eminência. Se ele é aberto
pela virtude, deve também recordar-se que a virtude é sempre expe-
rimentada por uma certa dificuldade e uma certa luta.
Não há representação do Estado que seja devida e adequada
se não estão representados os seus talentos bem como a sua pro-
priedade. Mas como o talento é um princípio vigoroso e activo, e
a propriedade é lenta, inerte e tímida, nunca pode estar a salvo das
invasões perpetradas pelo talento se não tiver uma representação
predominante, para além de qualquer proporção. Precisa também
de estar representada por grandes latifúndios ou não estará devi-
damente protegida. A característica essencial da propriedade é ser
desigual, resultado da combinação dos princípios da aquisição e da
conservação. Portanto, os grandes latifúndios, que excitam a inveja
e tentam a cobiça, precisam de ser colocados fora de qualquer pe-
rigo. Formam, assim, uma muralha natural em defesa de rodas as
propriedades menores em rodos os níveis. A mesma quantidade de
propriedade, que, pelo natural curso das coisas, se encontrar dividi-
da por muitos, não desempenha a mesma função. O seu poder de
defesa enfraquece à medida que se difunde. Na sua dispersão a por-
ção que cabe a cada homem é menor do que, na avidez dos seus de-
sejos, ele se pode gabar de obter gastando a propriedade que outros
acumularam. A pilhagem dos bens de apenas alguns, em verdade,
daria uma parte infinitamente pequena na repartição por muitos.
106

Mas a multidão não é capaz de fazer estes cálculos, e aqueles que a


levam à rapina nunca tencionaram fazer tal distribuição.
O poder de perpetuar a nossa propriedade nas nossas famílias
é uma das circunstâncias mais valiosas e interessantes que elas têm, e
a que mais tende a perpetuar a própria sociedade. Faz que as nossas
fraquezas sirvam a nossa virtude, até a benevolência se pode fundar
na avareza. O s que possuem riquezas de família e a distinção que
acompanha a posse de uma herança são (como mais empenhados
nela) a segurança natural para a sua transmissão. Entre nós, a Câ-
mara dos Lordes baseia-se neste princípio. É totalmente composta
pela propriedade e distinção hereditárias e constitui, portanto, um
terço da legislatura e, em última instância, é o único juiz de toda a
propriedade em todas as suas divisões. A Câmara dos Comuns é
também assim composta igualmente, embora não necessariamente,
contudo, é-o de facto na sua maior parte. Deixemos estes grandes
proprietários serem o que eles quiserem (têm a sua oportunidade de
estar entre os melhores), serão sempre, no pior dos casos, o lastro
no barco da nação. Pois embora a riqueza hereditária e a distinção
que a acompanha sejam muito idolatradas por sicofantas furtivos
e por admiradores cegos e abjetos do poder, são também depressa
insultadas por especulações vis de diletantes, petulantes e preten-
siosos, de vistas curtas na filo sofia. Alguma proeminência decente e
comedida, alguma preferência (não exclusiva) dada ao nascimento,
não é antinatural, nem injusta, nem impolítica.

Tem sido dito que vinte e quatro milhões deviam prevalecer


sobre duzentos mil. Verdade, se a constituição de um reino for um
problema de aritmética. Esta espécie de discurso funciona quan-
do secundado pela ameaça 10-: para homens que podem raciocinar
calmamente, é ridículo. A vontade de muitos e os seus interesses

10
- N.T. A expressão usada é: "This sort of discourse does well enough with the
lamp-post fo r its second " e alude à ameaça dos enforcamentos nos candeeiros de ru a, que
tinham aco ntecido, efectivamente.
107

diferem entre si com frequência e as divergências serão grandes


quando fizerem uma má escolha. Um governo de quinhentos ad-
vogados de província e de vigários humildes não é bom para vinte
e quatro milhões de homens, ainda que tivesse sido escolhido por
quarenta e oito milhões, nem é melhor ser-se guiado por uma dúzia
de pessoas de qualidade que traíram a confiança da sua classe em or-
dem a obter o poder. Presentemente parece que em todas as coisas
vos extraviastes do caminho natural. A propriedade de França não a
governa. Claro que a propriedade está destruída e a liberdade racio-
nal não existe. Tudo o que conseguiram até ao momento foi a cir-
culação de papel-moeda e uma constituição de agiotagem e, quanto
ao futuro, os senhores pensam seriamente que o território de França
sob o sistema republicano de oitenta e três municipalidades inde-
pendentes, (para nada dizer das partes que as compõem), pode al-
guma vez ser governado como uma unidade? Ou pode alguma vez
movimentar-se sob o impulso de um mesmo espírito? ~ando a
Assembleia Nacional tiver terminado o seu trabalho terá consuma-
do a sua própria ruína. Estas comunidades não suportarão por mui-
to mais tempo a sua sujeição à república de Paris. Não tolerarão que
este corpo singular monopolize o cativeiro do rei e o domínio sobre
a assembleia que se chama a si própria Nacional. Cada uma guarda-
rá para si própria uma porção do espólio da Igreja e não suportará
que esse espólio ou, os mais justos frutos do seu trabalho, ou a pro-
dução natural do seu solo, sejam enviados para inchar a insolência
ou mimar o luxo dos mecânicos de Paris. Não verão nisto nada da
igualdade sob cujo pretexto foram tentados a pôr de lado a sua fi-
delidade ao seu soberano e também a antiga constituição do seu
país. Não pode haver nenhuma cidade capital numa constituição
como a que se acaba de fazer. Esqueceram-se que, quando concebe-
ram os governos democráticos, virtualmente desmembraram o seu
país. À pessoa, a quem continuam a chamar rei, não lhe deixaram
nem a centésima parte do poder que seria necessário para manter
coesa esta colecção de repúblicas. A república de Paris conseguirá,
108

de facto, completar o deboche do exército e perpetuar ilegalmente


a Assembleia, sem recorrer aos seus constituintes, como meio de
continuar o seu despotismo. Fará esforços para reconduzir tudo a si,
tornando-se o coração da circulação ilimitada do papel-moeda, mas
em vão. Toda esta política se mostrará, no final, tão fraca quanto
agora é violenta.
Se esta é a vossa situação actual, comparada com a situação à
qual fostes chamados, por assim dizer, pela voz de Deus e dos Ho-
mens, não posso de coração congratular-vos pela escolha que fizes-
tes, nem pelo êxito que alcançaram os vossos esforços. Tão-pouco
posso recomendar a qualquer outra nação uma conduta baseada em
tais princípios e que produza tais efeitos. Isso deixo para aqueles
que possam perscrutar melhor os vossos assuntos do que eu sou
capaz, e que sabem melhor quanto as vossas acções são favoráveis
aos seus desígnios. Os cavalheiros da Sociedade da Revolução, que
foram tão precoces nas suas congratulações, parecem ser fortemen-
te da opinião de que existe algum plano político relativo ao meu
país para o qual os vossos procedimentos podem, em certa medida,
ser úteis. Porque o vosso Dr. Price, que parece ter especulado ele
próprio com grande fervor acerca deste assunto, dirigiu-se ao seu
auditório nestes termos extraordinários: "Não posso concluir sem
lembrar particularmente para vossa reflexão uma ideia à qual aludi
mais que uma vez, e que, provavelmente, o vosso pensamento tem
vindo a antecipar, uma reflexão com a qual a minha alma se impres-
siona mais do que posso exprimir: quero eu dizer a consideração do
quãofavoráveis são os tempos presentes a todos os esforços pela causa da
liberdade. 108 "

É claro que a mente deste pregador político estava na altura


cheia de um desígnio notável, e é muito provável que os pensamen-
tos da sua audiência, que o entendia bem melhor que eu, se tenham
N .T. Richard Price ( 1790), A D iscourse on rhe L ove ofour Cou ntry, Lo ndo n:
T. Cadell, p. 49. (Para rod as a noras de tradutor esta é a ed ição usada e, de agora em diante,
se rá ei rada com título e página apenas. )
109

todo o tempo antecipado a ele nesta sua reflexão e em todo o con-


junto de consequências a que ela conduz.
Antes de eu ler este sermão, pensava verdadeiramente ter vivi-
do num país livre. Foi um erro que acarinhei porque me fez ter um
maior amor pelo país em que tenho vivido. Sabia, sem dúvida, que a
nossa maior sabedoria e o nosso primeiro dever era mantermos uma
vigilância ciosa e sempre alerta para guardar o tesouro da nossa li-
berdade, não apenas da invasão, mas da decadência e da corrupção.
Contudo, considerava-a mais um tesouro a preservar que um pré-
mio a conquistar. Não consigo disce rnir em que medida o tempo
presente se dá como tão favorável a todos os esforços em favor da
causa da liberdade. O tempo presente difere de todos os outros ape-
nas pela circunstância do que está a ser feito em França. Se o exem-
plo desta nação é para ter alguma influência nisto, posso facilmente
conceber porque é que alguns dos seus procedimentos que têm um
aspecto tão desagradável, e que não são muito reconciliáveis com a
humanidade, generosidade, boa-fé e justiça, são paliados com uma
tão branda atitude em relação aos protagonistas e tolerados com
uma fortaleza de espírito heróica em relação às vítimas. Não é cer-
tamente muito prudente desacreditar a autoridade de um exemplo
que pretendemos seguir. Mas, consentindo nisto, somos levados a
colocar uma questão muito natural:- que causa da liberdade é esta
e quais são os esforços em seu favor para os quais o exemplo de Fran-
ça é tão particularmente auspicioso? É a de aniquilar toda a nossa
monarquia com todas as leis, todos os tribunais e todas as antigas
corporações do reino? É a de deitar fora todos os marcos divisórios
do território a favor de uma organização geométrica e aritmética?
É a Câmara dos Lordes para ser considerada inútil por votação? É o
Episcopado para ser abolido? São as terras da Igreja para serem ven-
didas a judeus e a especuladores, ou dadas como suborno às recém-
-inventadas repúblicas municipais pela sua participação no sacrilé-
gio? Serão todos os impostos para serem considerados injustiças e
as receitas fiscais reduzidas a contribuições patrióticas ou presentes
110

patrióticos? Servirão as fivelas de prata dos sapatos para substituir


o imposto sobre as terras e o imposto sobre o malte para sustentar a
força naval deste reino? Serão todas as ordens, hierarquias e distin-
ções para serem confundidas, será que da universal anarquia, junta
à bancarrota nacional, devam sair três ou quatro mil democracias
que se devam formar em oitenta e três, e que elas possam todas, por
um qualquer tipo de poder de atracção desconhecido, organizar-se
numa? É para este grande fim que o exército é para ser desviado
da sua disciplina e da sua fidelidade , primeiro por toda a espécie
de deboches e depois pelo terrível precedente de um donativo em
aumento de salário? São os vigários para serem afastados dos seus
bispos, por lhes acenarem com a esperança ilusória de uma oferta
retirada dos despojos da sua própria ordem? Serão os cidadãos de
Londres para serem afastados da sua lealdade alimentando-os às
expensas dos seus compatriotas? Será o papel-moeda compulsivo
para substituir o lugar da moeda legal deste reino? É o que resta da
pilhagem do rendimento público para ser empregue no projecto
bárbaro de manter dois exércitos para se vigiarem e guerrearem um
com o outro? Se estes são os fins e os meios da Sociedade da Revo-
lução, eu admito que estão de acordo uns com os outros e a França
pode fornecer precedentes adequados para ambos.
Vejo que o vosso exemplo nos é mostrado para nos envergo-
nhar. Sei que nós somos considerados uma raça embotada e mole,
tornada passiva por achar a sua situação tolerável, impedida, por
uma liberdade medíocre, de alguma vez atingir a total perfeição
desta. Os vossos líderes em França começaram por fingir que admi-
ravam, que quase adoravam, a Constituição Britânica, mas, à medi-
. da que avançavam, acabaram por olhá-la com desprezo soberano.
Os amigos da vossa Assembleia Nacional, entre nós, têm igualmen-
te má opinião do que antes era considerada a glória do seu país.
A Sociedade da Revolução descobriu que a nação inglesa não é li-
vre. Estão convencidos de que a desigualdade na nossa representa-
ção é um "defeito na nossa Constituição tão grosseiro e palpável que
111

faz que ela seja excelente sobretudo na forma e em teoria"* 109 - que
uma representação na legislatura do reino não só é a base de toda a
liberdade constitucional do reino, mas também de "todo o governo
legítimo , que, sem isso, um governo não é mais que uma usurpação",
que "quando a representação é parcial, o reino possui liberdade
apenas parcialmente, e se for extremamente parcial, dá apenas uma
aparência de liberdade, e se não for extremamente parcial, mas for
corruptamente escolhida, torna-se um problema" 11 0• O Dr. Price
considera esta inadequação da representação como a nossa injustiça
fundamental e, embora tenha esperança que a corrupção desta apa-
rência de representação não tenha chegado ainda à sua depravação
perfeita, ele teme que "nada seja feito com vista a ganhar para nós
esta vantagem essencial, até que um grande abuso de poder provo-
que o nosso ressentimento, ou alguma grande calamidade acorde de
novo os nossos medos ou, talvez até que a aquisição de uma repre-
sentação pura e igualitária por parte de outros países, enquanto nós
estamos a ser iludidos com uma sombra, acenda a nossa vergonha".
A isto ele junta uma nota nestes termos: - "Uma representação es-
colhida principalmente pelo Tesouro, e por alguns milhares de escó-
ria do povo, que geralmente são pagos pelos seus votos."

O Senhor não deixará aqui de se rir da consistência destes de-


mocratas que, quando não estão à sua frente, tratam a parte mais
humilde da comunidade com o maior desprezo, enquanto, ao mes-
mo tempo, pretendem fazer deles os depositários de todo o poder.
Seria necessário um longo discurso para lhe apontar as muitas
falácias que nos espreitam na natureza geral e equívoca dos termos
"representação inadequada". Direi apenas aqui, em justiça para com
aquela Constituição antiquada sob a qual há muito tempo temos
prosperado, que a nossa representação se achou perfeitamente ade-

109
• ora do auto r: D iscourse on the L ove ofour Country•, 3.' edição, p. 39, obra do
Dr. Price.
11 0
N .T. Richard Price, A D iscourseon rhe L ove ofour Coun try, p. 40.
112

quada a todo o propósito para o que a representação popular pode


ser desejada ou concebida. Desafio os inimigos da nossa Consti-
tuição a demonstrar o contrário. Pormenorizar os aspectos parti-
culares em que esta logra alcançar os seus fins exigiria um tratado
sobre a nossa Constituição na prática. Apresento aqui a doutrina
dos revolucionários apenas para que o Senhor, e outros, possam ver
que opinião têm estes cavalheiros da Constituição do seu país, e
porque é que eles parecem julgar que, para os seus sentimentos, se-
ria muito desculpável um grande abuso de poder, ou alguma grande
calamidade, que fossem propiciadores da bênção de uma Consti-
tuição de acordo com os seus ideais. Podeis ver porque é que eles
estão tão enamorados da vossa representação justa e igual da qual,
uma vez obtida, deverão decorrer idênticos efeitos. Veja o Senhor
que consideram a nossa Câmara dos Comuns como apenas "uma
imitação", "uma forma", "uma teoria", "uma sombra", "um arremedo",
talvez "um problema".
Estes cavalheiros têm-se na conta de serem sistemáticos, e não
sem razão. Devem portanto olhar para este defeito de representa-
ção grosseiro e palpável, esta afronta fundamental (assim eles lhe
chamam) como uma coisa, não só viciosa em si mesma, mas a pon-
to de tornar o nosso governo absolutamente ilegítimo e em nada
melhor que uma verdadeira usurpação. Outra revolução, para nos
vermos livres deste governo usurpado e ilegítimo seria, com certe-
za, perfeitamente justificável, senão mesmo absolutamente neces-
sária. De facto, os seus princípios, se os observardes com atenção,
vão muito mais longe que uma alteração da eleição da Câmara dos
Comuns, porque se a representação popular ou escolha é necessária
para a legitimação de todos os governos, a Câmara dos Lordes é, de
um golpe, ilegitimada, e corrompida na sua essência. Esta Câmara
não é representativa do povo de modo algum, nem na "aparência"
nem na "forma". O caso da coroa é igualmente mau. Em vão a coroa
se pode esforçar por proteger-se contra estes cavalheiros recorrendo
113

à autoridade da Instituição estabelecida pela Revolução 111 • A Revo-


lução, à qual recorre para a sua legitimação, no sistema deles, carece
ela própria de legitimidade. A Revolução alicerça-se, de acordo com
a sua teoria, numa base que não é mais sólida que as nossas forma-
lidades presentes, porque foi feita por uma Câmara dos Lordes que
apenas se representava a si própria, e por uma Câmara dos Comuns
exactamente como a presente, isto é, como eles lhe chamam, por
uma mera "sombra e arremedo" de representação.

Alguma coisa têm de destruir ou, a seus olhos, parecerá que


não têm um propósito na vida. Alguns são pela destruição do po-
der civil através do poder eclesiástico, outros, pela demolição do
eclesiástico através do civil. Sabem que esta dupla ruína da Igreja e
do Estado pode ter para o povo as piores consequências, mas estão
tão entusiasmados com as suas teorias, que dão a entender que esta
ruína seria aceitável e nem sequer estaria muito afastada dos seus
desejos, com todas as desordens que podem conduzir a ela e que
daí podem resultar, e que a eles lhes parecem mais que certas. Um
homem dos deles, de grande autoridade e, certamente, de grande
talento, ao falar de uma suposta aliança entre a Igreja e o Estado,
diz: "Talvez tenhamos de esperar pela queda do poder civil, antes que
esta aliança, tão contrária à natureza, seja quebrada. Esse tempo
será, sem dúvida, calamitoso. Mas que convulsão no mundo políti-
co poderá ser objecto de lamentações se for acompanhada por um
efeito tão desejável?" Podeis ver o olhar impassível com que estes
cavalheiros se preparam para assistir às maiores calamidades que
podem acontecer ao seu país!

Não é, por isso, de espantar que, com a ideia de que tudo na


sua Constituição e no governo do seu país, quer na Igreja quer no
Estado, é ilegítimo e usurpado ou, no melhor dos casos, um vão ar-
remedo, eles olhem para o estrangeiro com um entusiasmo ardente
e apaixonado. Enquanto estão possuídos por estas ideias, é inútil

III
.T. Está a referir-se à revolução inglesa de 1688.
114

falar com eles da prática dos seus antepassados, das leis fundamen-
tais do seu país, da forma invariável de uma Constituição cujos mé-
ritos estão confirmados pelo teste sólido de uma longa experiên-
cia, de uma crescente força do povo, e da prosperidade nacional.
Desprezam a experiência como sendo a sabedoria dos analfabetos
e, de resto, colocaram no subsolo uma mina que há-de explodir,
com grande estrondo, todos os exemplos de antiguidade, todos os
precedentes, todas as leis e actos do Parlamento. Têm "os direitos
do homem". Contra estes a prescrição aquisitiva nada pode, contra
estes nenhum argumento vincula: não admitem nem o génio nem
o compromisso: tudo o que não corresponder às suas exigências é
fraude e injustiça. Os seus direitos do homem não deixam nenhum
governo procurar a segurança na continuidade da sua permanência,
ou na justiça e clemência da sua administração. As objecções destes
especuladores, se as formas de governo não quadram com as suas
teorias, são tão válidas contra um governo antigo e benevolente
como contra a tirania mais violenta ou a usurpação mais recente.
Eles estão sempre em guerra com os governos, não em guerra contra
o abuso, mas em guerra pela competência e pela legitimidade. Não
tenho nada a dizer acerca da subtileza desastrada da sua metafísica
política. Deixá-los ter o seu divertimento nas escolas.
"illa se jactet in aula
Aeolus, et clauso ventorum carcere regnet'" 12•

Mas não os deixemos evadir da prisão e irromper como o ven-


to de leste para varrer a terra como um furacão, fazer brotar as nas-
centes das profundezas e submergir-nos!
Estou tão longe de negar em teoria, como está longe o meu
coração de os recusar na prática (se eu tivesse o poder de os dar ou

1
" "Janctancie-se Eolo naquele pal ácio e rein e nos limites do cárcere dos ventos",
V erg. A. l. 140-1 4 1.
115

de os reter) os efectivos direitos do homem. Ao negar as suas falsas


reivindicações de direito, não quero cometer nenhuma injúria con-
tra as que são reais, e são tais que os seus pretensos direitos destrui-
-las-iam totalmente. Se a sociedade civil foi instituída para a vanta-
gem dos homens, todas as vantagens para as quais ela foi instituída
tornaram-se direitos seus. A sociedade é uma instituição benevo-
lente e a própria lei é tão-só benevolência actuando por meio de
regras. Os homens têm o direito de viver segundo essas regras, têm
o direito à justiça entre os seus pares, quer os seus pares estejam em
funções políticas, quer estejam em ocupações comuns. Têm o direi-
to aos frutos do seu trabalho e aos meios pelos quais podem tornar
o seu trabalho frutífero . Têm o direito ao património dos seus pais,
a alimentar e a criar a sua prole, à instrução em vida e à consola-
ção na morte. Cada homem tem o direito de fazer tudo aquilo que
possa fazer individualmente, sem violar direitos alheios, tem ainda
direito a uma razoável porção de tudo aquilo que a sociedade, com
todas as suas combinações de capacidade e força, pode fazer em seu
favor. Nesta parceria todos os homens têm iguais direitos, mas não
a coisas iguais. Aquele que apenas tem cinco shillings na sociedade
tem tanto direito a isso como aquele que tem quinhentas libras tem
à sua proporção maior, mas não tem o direito a receber um igual
dividendo sobre os benefícios da sociedade. No que diz respeito à
partilha de poder, de autoridade, e de direcção que cada indivíduo
deve ter na administração do Estado, isso eu tenho de negar que
esteja entre os direitos fundamentais do homem na sociedade civil,
porque tenho em vista apenas o sujeito pertencente à sociedade ci-
vil e nenhum outro. É uma coisa a ser estabelecida por convenção.
Se a sociedade civil é o fruto de uma convenção, esta conven-
ção deve ser a sua lei. Essa convenção deve limitar e modificar todos
os tipos de constituição formada sob a sua alçada. Todo o tipo de
poder - legislativo, judicial ou executivo - é criatura sua. Nenhum
deles pode ter existência em qualquer outro estado de coisas. Como
é que um homem pode reclamar, sob a convenção da sociedade
116

civil, direitos que nem sequer supõem a sua existência e que são
absolutamente incompatíveis com ela? Um dos primeiros motivos
para a existência da sociedade civil, e que se torna uma das suas prin-
cipais regras, é: nenhum homem deverá serjuiz em causa própria. Por
causa disto cada pessoa se despojou a si própria do primeiro direito
fundamental dos que não são membros de nenhuma sociedade o
qual é: julgar por si próprio e defender a sua própria causa. Abdi-
ca de todo o direito de se governar a si próprio, e inclusivamente,
em grande medida, abandona o direito à autodefesa, a primeira lei
da natureza. Os homens não podem usufruir ao mesmo tempo dos
direitos próprios de quem vive em sociedade e dos direitos de um
estado não civil. Para que possa obter justiça, ele abdica do seu di-
reito de determinar o que é a este propósito mais essencial para ele.
Com o fim de assegurar alguma liberdade, ele entrega à guarda da
Sociedade a totalidade dela.
O governo não foi criado em virtude dos direitos naturais, os
quais podem e devem existir em total independência dele, e existem
na maior clareza, e num maior grau de perfeição abstracta: mas a
sua perfeição abstracta é o seu defeito prático. Por terem direito a
tudo, eles querem tudo. O governo é uma invenção da sabedoria
humana para prover às necessidades humanas. Os homens têm direi-
to a que estas necessidades sejam satisfeitas por esta sabedoria. En-
tre estas necessidades conta-se a necessidade, que nasce da socieda-
de civil, de uma suficiente restrição das paixões. A sociedade requer
não só que as paixões dos indivíduos sejam refreadas, mas também
no conjunto da sociedade, assim bem como nos indivíduos, que as
inclinações dos homens devam ser frequentemente contrariadas, a
sua vontade controlada e as suas paixões domadas. Isto apenas pode
ser feito por um poder fora deles mesmos e que não esteja, no exer-
cício desta função, sujeito à vontade e às paixões que é sua função
refrear e submeter. Neste sentido, devem contar-se entre os direitos
do homem não só as suas liberdades, mas também as suas restrições.
Mas como as liberdades e as restrições variam com o tempo e com
117

as circunstâncias, e admitem infinitas modificações, não podem ser


estabelecidas por nenhuma regra abstracta e nada é tão insensato
como discuti-las partindo desse princípio.
No momento em que suprimis algo aos plenos direitos de cada
um a governar-se a si mesmo, e suportais algumas limitações artifi-
ciais efectivas a estes direitos, a partir desse momento, roda a orga-
nização do governo se torna matéria de conveniência. Isto é aquilo
que torna a constituição de um Estado, e a devida distribuição dos
seus poderes, uma matéria da mais delicada e complicada habilida-
de. Requer um profundo conhecimento da natureza humana e das
necessidades humanas, das coisas que facilitam ou obstruem os vá-
rios fins que devem ser obtidos pelos mecanismos das instituições
civis. O Estado deve ter homens que garantam a sua força e remédio
para as suas enfermidades. Mas qual é a vantagem de discutir o di-
reito abstracto do homem a alimentos ou a medicamentos? A ques-
tão é acerca do método de os conseguir e de os administrar. Nesta
deliberação aconselho sempre pedir ajuda ao lavrador e ao médico,
em vez de a pedir ao professor de metafísica.
A ciência de construir uma nação, de a renovar, ou de a re-
formar, não é susceptível, como acontece com muitas outras ciên-
cias experimentais, de ser ensinada a priori. Nem é uma experiência
curta que pode instruir-nos nesta ciência prática, porque os verda-
deiros efeitos das causas morais nem sempre são imediatos, aqueles
que em primeira instância são prejudiciais podem ser excelentes
nos seus efeitos remotos, e a sua excelência pode mesmo surgir a
partir dos maus efeitos produzidos no início. O inverso também
acontece: sistemas muito plausíveis, com começos muito auspicio-
sos, frequentemente têm conclusões vergonhosas e lamentáveis.
Há com frequência nos Estados algumas causas obscuras e quase
latentes, coisas que, à primeira vista, parecem de pouca importân-
cia, das quais depende, muito essencialmente, uma grande parte
da sua prosperidade ou adversidade. Portanto, sendo a ciência de
118

governar tão prática em si mesma, e pensada para propósitos práti-


cos, uma matéria que requer experiência, mesmo mais experiência
do que qualquer pessoa pode ganhar em toda a sua vida, por muito
sagaz e observador que seja, é com um cuidado infinito que qual-
quer homem se deve aventurar a deitar abaixo um edifício que há
muito tempo responde satisfatoriamente aos fins comuns da socie-
dade, ou aventurar-se a construí-lo de novo, sem ter ante os seus
olhos modelos e padrões de utilidade comprovada.
Esçes direiços metafísicas ao entrar na vida comum, como
raios de luz que penetram num rneio denso, são refractados do seu
percurso linear, pelas leis da natureza. De facto, na massa grosseira
e complicada de paixões humanas e de interesses, os direitos primi-
tivos do homem sofrem tal variedade de refracções e reflexões que
se torna absurdo falar deles como se eles continuassem na simpli-
cidade da sua direcção original. A natureza humana é intrincada,
os fins da sociedade são da maior complexidade e, por isso, nenhu-
ma simples disposição ou orientação do poder pode ser adequada
quer à natureza do homem quer às características dos seus assuntos.
~ando eu oiço a simplicidade dos esquemas que se propõem e
que se louvam, em qualquer nova constituição política, não tenho
dificuldade em decidir que os seus artífices ou são grandemente
ignorantes do seu ofício, ou totalmente negligentes do seu dever.
Os governos simples são fundamentalmente defeituosos, para não
dizer nada de pior. Se se quiser observar a sociedade apenas sob um
ponto de vista, todos estes modos simples de fazer política são in-
finitamente cativantes. Com efeito, cada um deles responderá pelo
seu fim particular muito mais perfeitamente do que o modo mais
complexo é capaz de atingir todos os seus objectivos complexos.
Mas é preferível que o todo seja enquadrado, ainda que imperfeita
e anomalamente, do que se atenda com grande exactidão a algumas
partes enquanto outras possam ser completamente negligenciadas,
ou talvez prejudicadas materialmente, pelo excesso de cuidados em
relação a uma parte favorita.
119

Os pretensos direitos destes teóricos são todos extremos e, na


proporção em que são metafisicamente verdadeiros, são moral e po-
liticamente falsos. Os direitos do homem estão numa espécie de po-
sição intermédia, incapaz de se definir, mas não impossível de se dis-
cernir. Os direitos do homem nos governos são as suas vantagens,
e estas são frequentemente um balanço entre diferentes bens - em
compromissos por vezes entre bem e mal e, às vezes, entre um mal
e outro mal. A razão política é um princípio aritmético: somando,
subtraindo multiplicando e dividindo, moralmente e não metafisi-
camente ou matematicamente, verdadeiros denominadores morais.
Para estes teóricos o direito do povo é, quase sempre, sofisti-
camente confundido com o seu poder. A comunidade como um
todo, sempre que entra em acção, não se confronta com nenhuma
resistência efectiva. Mas até que poder e direito sejam o mesmo,
a comunidade toda não tem direitos incompatíveis com a virtu-
de, nem com a primeira de todas as virtudes, a prudência. Os ho-
mens não têm direito ao que não é razoável e ao que não é para
seu benefício, pois apesar de um grande escritor dizer "Liceat perire
poetis" 11 3, quando de um deles se conta que, a sangue frio, se atirou
às chamas de uma revolução vulcânica, "ardentem frigidus AEtnam
insiluit" 114, eu considero tal brincadeira mais como uma liberdade
poética injustificável que uma das benesses de Parnasus. E quer fos-
se poeta, ou clérigo, ou político, que escolhesse exercer este tipo de
direito, creio que reflexões mais sensatas, porque mais caridosas,
levar-me-iam antes a salvar o homem do que a guardar as suas san-
dálias queimadas como um monumento à sua loucura.
O tipo de sermões de aniversário, ao qual se refere grande
parte do que eu escrevi, se os homens não se envergonharem do
seu actual caminho, ao comemorarem o facto, enganarão a muitos

10
N.T. "Seja líciro aos poeras morrer", H or. Ars. 466.
11
' N .T. "Lançou-se, frio , ao Erna ardenre", H or. A rs. 465 e 466 (fala de Empé-
docles).
120

desviando-os dos princípios e privando-os dos benefícios da Revo-


lução que comemoram. Confesso-lhe Senhor, que nunca gostei
desta conversa recorrente acerca da resistência e da revolução, ou da
prática de fazer de um tratamento extremo da Constituição o seu
pão de cada dia. Isso torna os hábitos da sociedade perigosamen-
te doentios: é como se tomássemos doses periódicas de mercúrio
sublimado e engolido repetidamente irritantes cantáridas 115 , para
estimular o nosso amor à liberdade.
Este destempero de medicação, tornado habitual, relaxa e
esgota, por um uso vulgar e degradado, a energia daquele espírito
que deve actuar em grandes ocasiões. Foi no período mais pacien-
te da servidão romana que os temas do tiranicídio constituíram os
exercícios quotidianos dos rapazes na escola - cum perimit soevos
classis numerosa tyrannos 116• Numa situação normal, isto produz,
num país como o nosso, os piores efeitos, mesmo para a causa da tal
liberdade, de que se abusa com a depravação da especulação extra-
vagante. ~ase todos os republicanos extremistas do meu tempo se
tornaram , em curto espaço, os cortesãos mais decididos e convictos.
Depressa deixaram o ofício de uma resistência entediante, mode-
rada, mas prática, para aqueles dentre nós que eles - orgulhosos e
embriagados pelas suas teorias - tinham menosprezado como não
muito melhores que Tories. À hipocrisia, seguramente, agradam-
-lhe as especulações mais sublimes, porque, não pretendendo nun-
ca ir além das especulações, não custa nada tê-las grandiosas. Mas,
mesmo nos casos em que era de suspeitar mais de leviandade do
que de fraude nestas especulações empoladas, o resultado foi pra-
ticamente o mesmo. Estes professores, achando os seus princípios
extremes não aplicáveis a casos que pedem apenas uma qualificada
ou, posso dizer, uma resistência cívica e legal, nestes casos não em-
pregam nenhuma resistência. Com eles, ou é uma guerra, ou uma

"' 1.T.
Bebida irriranre e róxica preparada à base de insecros (canrárides) secas,
usado como afrodisíaco.
116
N.T. · ~ando um numeroso grupo mara os riranos cruéis", Juv. 7. 151.
121

revolução, ou então não é nada. Achando que os seus planos políti-


cos nunca se adaptam ao estado do mundo em que vivem, frequen-
temente pensam com leviandade acerca de todos os princípios pú-
blicos e, pela sua parte, estão prontos a abandonar por um interesse
muito banal, o que eles acham ser de um valor muito banal. Alguns,
de facto, são de uma natureza mais estável e perseverante, mas estes
são políticos entusiastas, de fora do Parlamento, que têm pouco o
que os tente a abandonarem os seus projectos favoritos. Têm sem-
pre alguma mudança em vista, ou na Igreja, ou no Estado, ou em
ambos. ~ando é esse o caso, são sempre maus cidadãos e ligações
pouco fiáveis. Pois, considerando os seus desígnios especulativos de
infinito valor, e tendo a ordem efectiva do Estado em pouca estima,
o melhor que pode acontecer é esta ser-lhes indiferente. Não vêem
mérito na boa, nem falta na viciosa gestão dos assuntos públicos,
ficam mesmo mais satisfeitos com esta última, porque é mais propí-
cia à revolução. Não vêem mérito ou demérito em nenhum homem,
em nenhuma acção, em nenhum princípio político, a não ser o de
poder apressar ou retardar o seus planos de mudança. Por isso, num
dia defendem os privilégios mais exagerados e abusivos e, noutro
momento, as mais rebeldes ideias democráticas de liberdade, e pas-
sam de uns para as outras sem nenhuma espécie de atenção à causa,
à pessoa ou ao partido.
Em França os senhores estão na crise de uma revolução, e em
trânsito de uma forma de governo para outra, não podeis ver este
carácter dos homens exactamente na mesma situação em que nós
o vimos neste país. Connosco é militante, convosco é triunfante, e
vós sabeis como eles podem agir quando o seu poder é proporcional
à sua vontade. Não me agradaria que se pensasse que eu confino
estas observações a um tipo específico de homens, ou que englobo
todos os homens de todos os tipos nesta descrição- não, longe dis-
so! Sou tão incapaz dessa injustiça como sou incapaz de me relacio-
nar com aqueles que professam princípios extremistas, e que, sob o
nome de religião, não ensinam outra coisa senão políticas insensa-
122

tas e perigosas. O pior destas políticas revolucionárias é que tem-


peram e endurecem o coração com vista a prepará-lo para os golpes
desesperados que são por vezes utilizados em situações extremas.
Mas, como estas situações podem nunca acontecer, a alma recebe
uma mancha inutilmente e os sentimentos morais sofrem bastante
com isso, ao mesmo tempo que não se serve nenhum fim político
com a depravação. Esta espécie de gente está tão exaltada com as
suas teorias acerca dos direitos do homem, que esqueceu totalmen-
te a sua natureza. Sem abrir à inteligência nenhum caminho novo,
conseguiram cortar aqueles caminhos que conduziam ao coração.
Perverteram, neles próprios e naqueles que os ouvem, todos os bons
sentimentos do coração humano.
Na sua parte política, este famoso sermão de Old Jewry não
respira senão este espírito. Para alguns, intrigas, massacres e assassi-
natos parecem um preço banal para se conseguir a revolução. Uma
reforma vulgar sem sangue, uma liberdade sem culpa, parecem mo-
nótonas e sem-sabor para o seu gosto. Precisa de haver uma grande
mudança de cena, precisa de haver um efeito de palco magnífico,
precisa de haver um grande espectáculo para estimular a imagina-
ção, que se tornou entorpecida com o gozo preguiçoso de sessenta
anos de segurança e com o repouso tranquilo da prosperidade pú-
blica. O pregador encontra tudo isso na Revolução Francesa. Isto
inspira um calor jovial a todo o seu sermão, o seu entusiasmo infla-
ma-se à medida que ele avança e quando ele chega ao fim do seu ser-
mão está completamente em chamas. Então considerando do alto
do seu púlpito, o livre, moral, feliz, florescente e glorioso estado de
França, parece-lhe ver de cima a paisagem de uma terra prometida e
· irrompe no êxtase que se segue:
u ~e período memorável este! Eu estou grato por ter vi-
vido nele, quase que posso dizer, Senhor, agora podes deixar
partir em paz o teu servo, porque os meus olhos viram a Tua
salvação. - Vivi para ver a difusão de conhecimentos que en-
123

fraqueceu a superstição e o erro. - Vivi para ver os direitos do


homem mais bem compreendidos do que nunca e nações ane-
lando pela liberdade, quando pareciam ter perdido até a ideia
dela. - Vivi para ver trinta milhões de pessoas, indignadas e re-
solutas, repelindo a escravatura, exigindo a liberdade com uma
voz irresistível, o seu rei conduzido em triunfo, e um monarca
arbitrário render-se aos seus súbditos. "* 11 7

Antes de prosseguir, devo fazer notar que o Dr. Prke parece


sobrevalorizar as grandes aquisições das luzes que ele obteve e di-
fundiu nesta época. O último século parece-me ter sido igualmente
iluminado. Teve, se bem que noutro lugar, um triunfo tão memorá-
vel quanto este do Dr. Price, e alguns dos grandes pregadores deste
período partilharam dele com tanta avidez quanto ele partilhou do
triunfo de França. No julgamento por alta traição do Reverendo
Hugh Peters, foi testemunhado que quando o Rei Carlos foi levado
a Londres para o seu julgamento, o Apóstolo da Liberdade, condu-
ziu nesse dia o triunfo. "Eu vi", diz a testemunha, "Sua Majestade
num coche com seis cavalos e Peters, triunjànte, cavalgando à frente
do rei." O Dr. Price quando fala como se tivesse feito uma descober-
ta, apenas segue um precedente, porque, após o início do julgamen-
to do rei, este precursor, o mesmo Dr. Peters, concluindo uma longa
oração na Capela real em Whitehall (muito triunfalmente tinha es-
colhido este lugar), disse: "Rezei e preguei estes vinte anos e agora
posso dizer com o velho Simeão, Senhor agora podes deixar partir
em paz o teu servo, porque os meus olhos viram a Tua salvação.'~ 18
Peters não colheu os frutos da sua oração, porque nem partiu tão
w "Nota do autor: Outro destes ve neráveis cavalheiros, que testemunhou alguns
dos espectáculos que Paris tem ultimamente exibido, expressou-se assim: "Um Rei arras-
tado em submisso triunfo pelos seus súbditos conquistadores é uma daquelas manifes-
tações de grandeza que raramente surgem no panorama dos assuntos humanos, e que,
durante o resto da minha vida, eu recordarei maravilhado e gratificado." Estes cavalheiros
coincidem maravilhosamente nos seus sentimentos.
118
"Nota do autor: State Trials, Vol. II, p. 360, 363.
124

cedo quanto desejava, nem partiu em paz. Tornou-se ele própr~o (o


que eu espero de todo o coração que nenhum dos seus seguidores o
seja neste país) uma vítima do triunfo que ele pontificou. Na Res-
tauração talvez tenham tratado com demasiada dureza este pobre
bom homem. Devemos isto à sua memória e aos seus sofrimentos:
que ele teve tanta erudição e tanto zelo que, de facto, derrubou toda
a superstição e erro que pudesse impedir o grande negócio em que
ele estava metido, como nenhum dos que o seguiram e imitaram
nos dias de hoje e que pretendem ter o conhecimento exclusivo dos
direitos do homem e todas as consequências gloriosas de tal conhe-
cimento.
Após esta saída do pregador de OldJewry, que apenas difere no
lugar e no tempo, mas que concorda perfeitamente com o espírito e
a letra do empolgamento de 1648, a Sociedade da Revolução, os fa-
bricantes de governos, o heróico bando de demissores de monarcas,
eleitores de soberanos e condutores de reis em triunfo, empertiga-
dos com uma orgulhosa consciência da difusão do conhecimento,
do qual, cada membro, tinha obtido tão grande quinhão na dádiva,
tinham pressa de fazer uma divulgação generosa do conhecimento
que tão graciosamente tinham recebido. Para fazerem esta magnâ-
nima comunicação, depois da igreja em Old Jewry dirigiram-se à
London Tavern 11 9 onde, o mesmo Dr. Price, em quem as emanações
do tripé oracular não se tinham evaporado totalmente, tomou a ini-
ciativa e fez votar a resolução, ou discurso de felicitações, transmiti-
do pelo Lord Stanhope à Assembleia Nacional de França.
É assim que um pregador do Evangelho, profanando a jacula-
. tória bela e profética comummente chamada "Nunc dimittis", feita
na primeira apresentação do nosso Salvador no templo, a aplicou,
com um arrebatamento desumano e contranatura, ao espetácu-
lo mais horrível, atroz e aflitivo que talvez alguma vez foi ofere-

11 9
Local onde era frequeme reunirem-se clubes pol íticos e de cuj as reuniões
eram, por vezes, publicad as as conclusões sob a forma de panfletos.
125

cido à piedade e indignação da humanidade. Este "conduzido em


triunfo" 120 , uma coisa indigna e ímpia, no melhor dos casos, que
enche o nosso pregador com tal enlevo profano, deve chocar, creio,
os sentimentos morais de qualquer alma bem-nascida. Alguns in-
gleses foram espectadores indignados e estupefactos deste triunfo.
Era (a não ser que tenhamos sido estranhamente enganados) um
espectáculo que mais parecia uma procissão de selvagens america-
nos entrando em Onondaga após algum dos seus morticínios a que
chamaram vitórias, conduzindo para as suas cabanas, com escalpes
dependurados à volta, os seus cativos, humilhados pelo escárnio e
pelas pauladas de mulheres tão ferozes quanto eles mesmos, parecia
muito mais isso do que a pompa triunfal de uma nação civilizada e
guerreira - isto se uma nação civilizada, ou alguém com o sentido
da generosidade, fosse capaz de um triunfo pessoal sobre os desgra-
çados e atormentados.
Isto, meu caro Senhor, não foi o triunfo de França. Preciso
acreditar que, enquanto nação, isto vos esmagou de vergonha e hor-
ror. Preciso acreditar que a própria Assembleia Nacional se encon-
tra num estado de grande humilhação por não ser capaz de punir os
aurores deste triunfo, ou os que nele intervieram, e que está numa
situação em que qualquer inquérito que ela pudesse fazer acerca do
assunto seria destituído até da própria aparência de liberdade ou
imparcialidade. A desculpa desta assembleia está na sua situação,
mas quando nós aprovamos o que eles têm de suportar, isso é, em
nós, a escolha degenerada de uma mente corrupta.
Com uma aparência forçada de deliberação, a vossa Assem-
bleia vota sob o domínio de uma dura necessidade. Reúne-se como
se se encontrasse no seio de uma república estrangeira, reside numa
cidade cuja constituição não emanou nem de um decreto régio
nem do seu poder legislativo. A Assembleia está cercada por um
120
N .T. Refere-se ao 6 de Outubro de 178 9, quando toda a família real é condu-
zida de Versalhes a Paris, após assalro violento ao palácio com tentativa de assassinara da
rai nha e execução de alguns membros da guarda do rei.
126

exército que não foi mobilizado nem pela autoridade da coroa nem
pela sua autoridade, e o qual, se ela ordenasse a sua dissolução, no
mesmo instante a dissolveria. Assim se reúne, após um bando de
assassinos ter forçado à saída algumas centenas de membros 12 1, en-
quanto aqueles que sustentam os mesmos princípios moderados,
com mais paciência ou com melhor esperança, continuam todos
os dias expostos a insultos ultrajosos e ameaças de morte. Aí, uma
maioria, às vezes real, às vezes simulada, ela própria cativa, força um
rei cativo a promulgar como éditos reais, em terceira mão, os dispa-
rates corruptos dos seus cafés mais desregrados e levianos. É notó-
rio que todas as suas medidas são decididas antes de serem debati-
das. Não há dúvida de que, sob a ameaça das baionetas, dos postes
da luz e das tochas a incendiarem as suas casas, eles são obrigados a
adoptar as medidas cruas e desesperadas sugeridas por clubes com-
postos de uma monstruosa amálgama de gente de todas as condi-
ções, línguas e nações. Entre estes encontram-se pessoas que Cati-
lina, comparado com elas, seria julgado escrupuloso e Cathegus 122
um homem sóbrio e moderado. Não é apenas nesses clubes que as
medidas públicas são deformadas e tornadas monstruosas. Elas são
primeiro distorcidas nas academias, que estão destinadas a ser ou-
tros tantos seminários para estes clubes, e que ficam situadas sempre
em lugar onde há afluência de público. Nestas reuniões de todos os
tipos, cada conselho, quanto mais atrevido, violento e pérfido for,
mais é tido como um sinal de um génio superior. A humanidade
e a compaixão são ridicularizadas como frutos da superstição e da
ignorância. A solicitude para com os indivíduos é considerada trai-
ção pública. A liberdade é sempre considerada perfeita quando a
· propriedade se torna insegura. No meio de assassínios, massacres,
confiscações, perpetradas ou projectadas, estão a formar os planos
121
Em meados de O utubro de 1789 várias centenas de memb ros da Asse mbleia
Nacio nal a abandonam alegando os mais va ri ados motivos. Th omas Arthur, Co mte de
Lal!Y de T ollendal, correspondente de Burke e refu giado em Inglaterra, fo i um dos que
abandonou a Assembleia nesta altu ra e comenta o facro numa carta mais adi ante citada.
m N .T. Gaius Cornélius Cath egus que se associou a Catilin a na conspiração.
127

para a boa ordem da sociedade futura. Abraçando os cadáveres dos


criminosos mais vis, e promovendo as suas famílias à conta dos seus
crimes, eles levam centenas de pessoas virtuosas ao mesmo fim, for-
çando-os a subsistirem pela mendicidade ou pelo crime.
A Assembleia, órgão destas academias, representa perante elas
a farsa da deliberação com tão pouca decência quanto liberdade.
Actua como os comediantes numa feira, perante uma audiência al-
voroçada, actua no meio de gritos tumultuosos de uma turba con-
fusa de homens furiosos e de mulheres sem vergonha que, de acor-
do com os seus caprichos insolentes, dirigem, controlam, aplau-
dem, enfurecem-se e por vezes misturam-se e tomam assento no
meio dos seus membros - dominam sobre eles com uma estranha
mistura de petulância servil e autoridade orgulhosa e presunçosa.
Como inverteram a ordem de todas as coisas, as galerias estão no lu-
gar da plateia. Esta assembleia que derruba reis e reinos, nem sequer
tem a fisionomia e o aspecto grave de um corpo legislativo - "nec
color imperii, necJrons erat ulla senatús" 123• Têm um poder que lhes
foi dado, como aquele do princípio do mal, para subverter e des-
truir - mas nenhum para construir, excepto os instrumentos que
possam servir para futuras subversões e mais destruições. ~em é
que admira, e está afeiçoado de coração às assembleias nacionais re-
presentativas, e que precisa, não obstante, de se afastar com horror
e desgosto de uma tal perversão desta sagrada instituição, profana,
burlesca e abominável? ~e r os que amam a monarquia, quer os
que amam a república devem abominá-la igualmente. Os membros
desta Assembleia devem eles próprios gemer sob a tirania em que
vivem e da qual se envergonham, de que não recebem orientação e
da qual recebem poucos proveitos. Estou certo de que muitos dos
membros que compõem mesmo a maioria desta Assembleia sentem
o mesmo que eu, apesar dos aplausos da Sociedade da Revolução.
Infeliz rei! Infeliz Assembleia! ~amo não se escandalizará em
n; 1 .T . "Não tinha o aspecto de um governo nem rraços de um senado", Luc.
9.207.
128

silêncio esta Assembleia com aqueles seus membros que conse-


guem chamar "un beau jour"* 124 a um dia que parecia apagar o sol
do céu! ~anto não devem eles estar indignados no íntimo ao ou-
virem outros que acharam por bem dizer-lhes que "a nave do Estado
navegaria em frente no seu caminho para a regeneração com mais
velocidade que nunca", com o impulso do duro vendaval de traição
e homicídio que precedeu o triunfo de que fala o nosso pregador!
O que não devem eles ter sentido enquanto, com aparente paciên-
cia e Íntima indignação, ouviam acerca da matança de inocentes
cavalheiros em suas próprias casas que "o sangue derramado não
era do mais puro" 125 ! O que é que eles não devem ter sentido quan-
do, rodeados de queixas acerca das deso rdens que sacudiam o país
até aos alicerces, foram obrigados a dizer aos queixosos, friamente ,
que eles estavam sob a protecção da lei, e que iriam dirigir-se ao rei
(o rei cativo) para que obrigasse a cumprir as leis para sua protecção,
quando os ministros escravizados deste rei cativo tinham formal-
mente notificado a Assembleia de que não restavam nem lei, nem
autoridade, nem poder, para sua protecção! O que é que eles não
devem ter sentido ao serem obrigados, como saudação neste ano
novo, a pedir ao seu rei cativo para esquecer o período conturba-
do do ano passado, em nome dos grandes benefícios que ele agora
podia conceder ao seu povo - para a perfeita concretização desse
benefício eles adiavam as demonstrações práticas da sua lealdade,
assegurando-lhe a sua obediência quando ele já não possuísse qual-
quer autoridade para mandar!

Certamente que este discurso foi feito com muito bons sen-
timentos e afeição. Mas entre as revoluções que ocorrem em Fran-
ça deve contar-se uma considerável revolução na sua concepção de
educação. Em Inglaterra dizem-nos que aprendemos as boas manei-

12
' • Nora do auror: 6 de Outubro, 1789.
121
N .T. C omentário atribu ído a Anto ine-Pierre-J oseph-M arie Barnave a propó-
sitO da morte de Foullon e Berrhier: "Senhores, querem fazer-vos enternecer pelo sangue
Yertido o ntem em Paris. Era este angue tão puro que não ousássemos derramá-lo'"
129

ras em segunda mão, daí dessa margem, e que adornamos o nosso


comportamento com os enfeites de França. Se assim é, nós conti-
nuamos com a moda antiga e, por enquanto, não nos conformámos
à nova moda parisiense de boa educação a ponto de pensar que o
estilo mais refinado de cumprimentar (quer em condolências quer
em congratulações) é dizer à criatura mais humilhada que rasteja ao
cimo da terra, que grandes benefícios derivam do assassinato dos
seus servos, da tentativa de assassinato dele mesmo e da sua mulher
e da mortificação, desgraça e degradação que ele próprio sofreu.
É um tópico para consolação que o nosso eclesiástico de Newga-
te1 26 seria demasiado humano para usar com um criminoso ao pé
da forca. Eu estou em crer que [mesmo] o carrasco de Paris, agora
que se tornou liberal pelo voto da Assembleia Nacional e lhe fo-
ram reconhecidos a sua categoria e brasão de armas pelo Herald's
College dos direitos do homem, seria um homem tão generoso e
tão galante, tão cheio do sentido da sua nova dignidade, que não
empregaria esta consolação dilacerante a qualquer pessoa que a leze
nation colocasse sob a administração dos seus poderes executivos.
Um homem está deveras decaído para ser assim lisonjeado.
Um trago anódino de esquecimento, assim administrado, foi bem
calculado de modo a preservar uma insónia humilhante, a alimen-
tar a chaga viva de uma lembrança corrosiva. Assim, administrar a
poção opiácea da amnistia, pulverizada com todos os ingredientes
de desdém e desprezo, é levar aos seus lábios, em vez "do bálsamo
das almas feridas", a taça da miséria humana cheia a transbordar e
obrigá-lo a bebê-la até às borras.
Cedendo a razões pelo menos tão convincentes como aquelas
que lhe foram tão delicadamente aconselhadas nos cumprimentos
de Ano Novo, o rei de França, provavelmente, esforçar-se-á pores-
quecer estes eventos e aquele cumprimento. Mas a História, que
guarda um registo duradouro de todos os nossos actos e exerce a

126 1
.T. Eclesiástico que consolava os condenados à morre na prisão de Newgare.
130

sua censura terrível sobre a conduta de todos os tipos de soberano,


não esquecerá, quer estes eventos, quer a era deste requinte liberal
nas relações humanas. A História registará, que, na manhã de seis
de Outubro de 1789, o rei e a rainha de França, após um dia de
confusão, alarme, medo e carnificina, deitados, sob a promessa de
segurança feita pelo povo, concederam à natureza algumas horas
de descanso e de repouso perturbado e melancólico. Deste sono a
rainha foi a que foi primeiro acordada pela voz da sentinela à sua
porta, que lhe gritava que se salvasse fugindo - que esta foi a última
prova de fidelidade que pode dar-, já que eles lhe caíram em cima e
ele foi morto. Instantaneamente foi passado à espada. Um bando de
rufias cruéis e assassinos, tresandando ao seu sangue, precipitou-se
para o quarto da rainha e perfuraram o leito com uma centena de
golpes de baioneta e punhal, de onde esta mulher perseguida tinha
tido apenas o tempo de fugir, quase nua e, por caminhos desconhe-
cidos dos assassinos, se tinha escapado a procurar refúgio aos pés de
um rei e marido que de modo algum estava seguro, nem sequer da
própria vida.
Este rei - para não dizer mais acerca dele - e esta rainha e os
seus filhos (que em tempos tinham sido o orgulho e a esperança de
um povo generoso) foram então forçados a abandonar o santuá-
rio do palácio mais esplêndido do mundo, que deixaram banhado
em sangue, profanado pelo massacre e juncado de membros e de
cadáveres mutilados. Daí foram conduzidos à capital do seu país.
Foram selecionados dois dos gentis-homens que compunham a
guarda pessoal do rei, na promíscua chacina que não foi provoca-
da e à qual não se ofereceu resistência, estes dois cavalheiros foram
cruel e publicamente arrastados para o cepo e decapitados no gran-
de tribunal do palácio, com a parada de uma execução de justiça. As
suas cabeças foram então cravadas na ponta de lanças e levadas em
procissão, enquanto isso, os reis cativos que seguiam na comitiva
foram lentamente levados para a frente, no meio de gritos horríveis
e berros estridentes, danças frenéticas e insultos detestáveis e todas
131

as abominações indescridveis das fúrias do inferno, na adulterada


forma das mulheres mais vis. Após terem sido obrigados a provar,
gota a gota, mais que a amargura da morte, na lenta tortura de uma
caminhada de doze milhas 127 , que se prolongou por seis horas, sob
a guarda dos mesmos soldados que os tinham conduzido ao longo
deste celebrado triunfo, foram alojados num velho palácio de Paris,
agora convertido numa Bastilha para reis.

Será este um triunfo para ser consagrado em altares, para ser


comemorado com acção de graças, para ser oferecido à Divina Hu-
manidade com preces fervorosas e entusiásticas jaculatórias ? - Es-
tas orgias dignas de Tebas e de Trácio, representadas em França, e
aplaudidas apenas em Old Jewry, acendem entusiasmos proféticos
na mente de muito pouca gente neste reino : apesar de um santo
apóstolo, que sufocou completamente as superstições mesquinhas
do seu coração, ter revelações tão particulares que o fazem inclinar-
-se a achar pio e decoroso comparar este triunfo com a apresentação
ao mundo do Príncipe da Paz, proclamada num templo santo por
um venerável sábio e, não muito tempo antes, anunciada pela voz
dos anjos à inocência tranquila dos pastores.

Primeiro eu estava perplexo sobre como explicar este êxtase


exaltado. Sabia, certamente, que o sofrimento de reis é um repas-
to delicioso para certo tipo de paladares. Há reflexões que talvez
sirvam para manter este apetite dentro dos limites da temperança.
Mas quando eu tomei em consideração uma circunstância, fui obri-
gado a confessar que muito desconto tem que ser dado à socieda-
de, e que a tentação era muito forte para o comum discernimento:
quero dizer, a circunstância do lo Paean 128 do triunfo, o animado
grito que clamava por "todos os BISPOS enforcados nos postes da

" - N .T. Cerca de 19 km.


8
" N.T. Palavras do coro no hino grego a Apolo cujo sentido é "canto de rriunfo".
Cf. Réfl.exions sur la Révolution de France, The Writings and Speeches ofEdmund Burke,
p. 95.
132

luz"* 129 pode bem ter trazido ao cimo uma explosão de entusiasmo
pelas consequências previsíveis desse dia feliz . Concedo que tanto
entusiasmo é um pequeno desvio em relação à prudência. Concedo
a este profeta que irrompa em hinos de alegria e acção de graças
num evento que aparece como precursor do Milénio, e do projecta-
do ~into Império, na destruição de todas as instituições da Igreja.
Havia, contudo (como há em todos os assuntos humanos), no meio
desta alegria, algo para exercitar a paciência destes dignos cavalhei-
ros e pôr à prova a grande capacidade de sofrer da sua fé. O assassi-
nato efectivo do rei e da rainha, e do seu filho, estava a faltar a todas
as outras circunstâncias auspiciosas deste "belo dia". O assassinato
efectivo dos bispos, embora reclamado por tantas jaculatórias pias,
também estava em falta. Um grupo de matanças regicidas e sacríle-
gas estava já planeado audaciosamente, mas estava apenas planeado.
Isso, infelizmente, tinha sido deixado inacabado, nesta grande peça
histórica do massacre dos inocentes. ~al o lápis ousado de grande
mestre da escola dos direitos do homem o acabará, está para se ver
daqui para a frente. Esta época não tem ainda o benefício total desta
difusão de saber que enfraqueceu a superstição e o erro, e o rei de
França carece ainda de um ou dois acontecimentos que votará ao
esquecimento, tendo em consideração todo o bem que advirá dos
seus próprios sofrimentos e dos crimes patrióticos deste século das
luzes 130 *.
129
"Nota do autor: "Tous les fvêques à la lanterne!".
130
"Nota do autor: f apropriado referir aqui uma carta escrita acerca deste as-
sunto por uma testemunha ocular. Esta testemunha ocular foi um dos mais honestos,
inteligentes e eloquentes membros da Assembleia Nacional, um dos mais activos e zelosos
reformadores do Estado. Foi obrigado a afastar-se da Assembleia e tornou-se depois um
exilado voluntário - à conta dos horrores deste pio triunfo e das disposições de homens
que, aproveitando-se dos crimes, senão mesmo causando-os, to maram a liderança dos as-
suntos públicos.
Extracto da segunda carta do Senhor. Lally de T olendal para um amigo:
"Falemos do partido que eu tomei, que está bem justificado na minha consciência.
-Nem esta cidade culpável, nem esta Assembleia mais culpável ainda, merecem que eu me
justifique, mas tenho no coração que o Senhor e as pessoas que pensam como o Senhor,
não me condenam. -A minha saúde, juro-lhe, tornou impossíveis as minhas funções, mas
133

Embora este trabalho da nossa nova iluminação e conheci-


mento não tivesse ido tão longe como, com toda a probabilidade,
se pretendia levar, contudo devo pensar que um tal tratamento de
qualquer criatura humana deve ser chocante para todos excepto
para os que são feitos para levar a cabo revoluções. Mas não posso
parar aqui. Influenciado pelos sentimentos inatos à minha nature-
za, e não sendo iluminado por um único raio desta recém-surgi-
da luz moderna, confesso-lhe, Senhor, que o estatuto elevado das

mesmo pondo-as de lado foi superior às minhas forças suportar por mais tempo o horror
que me causava este sangue - estas cabeças - , esta rainha quase decapitada -, este rei,
levado escravo, entrando em Paris no meio destes assassinos, e precedido das cabeças dos
seus infelizes guardas -, estes pérfidos janízaros, estes assassinos, estas mulheres canibais,
este grito TODOS OS BISPOS P'RÀ LANTERNA, no momento em que o rei entrava
na sua capital com dois bispos do seu conselho, no seu carro - um golpe de fuzil, que eu
vi atirar para dentro de uma das carruagens da rainha-, o Senhor Bailly chamando a isto
um belo dia-, a assembleia tendo declarado friamente de manhã, que não correspondia à
sua dignidade ir roda ela rodear o rei- , o Senhor Mirabeau dizendo impunemente nesta
Assembleia, que o barco do Estado, longe de ter sido parado na sua corrida, se lançava
agora com mais velocidade que nunca para a sua regeneração - o Senhor Barnave, rindo
com ele, quando rios de sangue corriam à nossa volta - , o virtuoso Senhor Mounier•
escapando por milagre a vinte assassinos, que tinham querido fazer da sua cabeça mais um
troféu: Eis o que me fez jurar jamais pôr o pé nesta caverna de antropófagos, onde eu já
não tinha força para elevar a vós, onde desde há seis semanas eu a elevava em vão.
Eu, Mounier, e toda a gente honesta, pensámos que o último esforço a fazer pelo
bem era sair. Nenhuma ideia de medo se acercou de mim. Envergonhar-me-ia de me de-
fender. Tinha ainda recebido, na rua, da parte deste povo, menos culpável que aqueles
que o embriagaram de furor, aclamações e aplausos, que a outros teriam lisonjeado e que
a mim me fizeram estremecer. Foi à indignação, foi ao horror, foi às convulsões físicas que
só o aspecto do sangue me fazia experimentar, que eu cedi. Afrontamos apenas uma mor-
te, afrontamo-la várias vezes, quando ela pode ser útil. Mas nenhum poder deste mundo,
nenhuma opinião pública ou privada têm o direito de me condenar a sofrer inutilmente
mil suplícios por minuto e a morrer de desespero, de raiva, no meio dos triunfos do crime
que eu não pude suster. Eles vão proscrever-me, vão confiscar os meus bens. Trabalharei
a terra e não os verei mais. Eis a minha justificação. Vós podeis lê-la, mostrá-la, deixá-la
copiar, tanto pior para aqueles que não a compreendem, nessa altura, não serei eu que
errei em dar-vo-la." [Em francês no original. )
Este militar não tinha tão bons nervos quanto o pacato cavalheiro de Old Jewry.
- Veja-se a narrativa do Senhor Mounier acerca destas transacções: um homem também
de honra, virtude e talentos, e por isso mesmo um fugitivo.
• NB: M. Mounier era à altura porta-voz da Assembleia Nacional. Foi obrigado
desde então a viver no exílio, embora fosse um dos mais firmes adeptos da liberdade.
134

pessoas que estão a sofrer e, particularmente, o sexo, a beleza, e as


amáveis qualidades dos descendentes de tantos reis e imperadores,
junto com a tenra idade dos infantes reais, que apenas pela sua in-
fância e inocência não sentiram os ultrajes cruéis aos quais os seus
pais foram expostos, em vez de ser um objecto de exultação, afecta
grandemente a minha sensibilidade nesta ocasião tão triste.
Ouvi que a augusta pessoa, que foi o principal objecto do
triunfo do nosso pregador, ainda que se tenha contido, sofreu muito
nesta ocasião vergonhosa. Como homem, coube-lhe sentir pela sua
mulher e pelos seus filhos, e pelos guardas pessoais fiéis que foram
massacrados a sangue frio à sua frente, como príncipe coube-lhe la-
mentar a transformação estranha e assustadora dos seus súbditos
civilizados e estar mais aflito por eles do que preocupado consigo
mesmo. Isto em pouco diminui a sua fortaleza, enquanto aumenta
infinitamente a honra da sua humanidade. Lamento muito dizê-lo,
lamento mesmo muito, que tais personalidades estejam numa situa-
ção em que não nos fica mal louvar as virtudes dos grandes.
Ouvi, e fiquei satisfeito por isso (interessa-me que os seres
feitos para o sofrimento o suportem com fortaleza), que a grande
senhora, o outro objecto do triunfo, aguentou esse dia, e que supor-
tou todos os dias que se seguiram, como suporta o aprisionamento
do seu marido, o seu próprio cativeiro, o exílio dos seus amigos, a
adulação insultuosa dos discursos e todo o peso dos seus erros acu-
mulados, com uma paciência serena, de um modo que se adequa ao
seu estatuto e à sua raça e que convém à descendente de uma sobe-
rana que se distinguiu pela sua piedade e pela sua coragem; que, tal
como ela, tem sentimentos elevados, que sofre com a dignidade de
üma matrona romana, que no último momento se salvará da derra-
deira desgraça, e que, se ela tiver de tombar, não tombará às mãos
de ignóbeis.

Faz agora dezasseis ou dezassete anos que eu vi a rainha de


França, então Delfina, em Versalhes. Visão mais encantadora segu-
135

rameme que nunca brilhou neste mundo, que ela apenas ao de leve
parecia tocar. Vi-a quando despontava no horizonte, decorando e
animando a elevada esfera para a qual tinha acabo de entrar- bri-
lhando como a estrela da manhã, cheia de vida, de esplendor e de
alegria. Oh! que mudança! E que coração precisaria eu de ter, para
contemplar sem emoção tal elevação e tal queda! Mal sonhava eu,
quando ela acumulava protestos de veneração e de amor entusiás-
tico, distante e respeitoso, que alguma vez ela seria obrigada a es-
conder no seu peito o antídoto pronto contra a desgraça! Mal eu
sonhava que haveria de viver para ver tais desastres caírem sobre ela
numa nação de homens galantes, de homens de honra e de cavalei-
ros! Eu pensava que dez mil espadas deveriam ter saltado da bainha
para vingar até um olhar que a ameaçasse de insulto. Mas a idade da
cavalaria já se foi . Sucedeu-lhe a dos sofistas, dos economistas, dos
calculadores e a glória da Europa extinguiu-se para sempre. Nunca,
nunca mais nós veremos aquela lealdade generosa à posição social
e ao sexo, aquela submissão orgulhosa, aquela obediência dignifica-
da, aquela subordinação do coração, que mantém vivo, mesmo na
própria servidão, o espírito de uma liberdade exaltada! A graça da
vida, que se não pode comprar, a defesa desinteressada das nações,
o berço do sentimento viril e do empreendimento heróico, desapa-
receu! Foi-se aquela sensibilidade de princípio, aquela castidade da
honra que sente o desdouro como uma ferida, que inspira coragem
enquanto mitiga a ferocidade, que enobrece tudo aquilo em que
toca e, sob a qual, o próprio vício perde metade do seu mal ao per-
der toda a sua grosseria!
Este sistema misto de maneira de pensar e sentimento teve a
sua origem na amiga cavalaria. O seu princípio, ainda que variado
na sua aparência, pelo estado diverso dos assuntos humanos, subsis-
tiu e influenciou durante uma longa sucessão de gerações, mesmo
até ao tempo em que vivemos. Se alguma vez ele se extinguir com-
pletamente, a perda, receio, será enorme. Foi isto que deu carácter
próprio à Europa moderna. Foi isto que a distinguiu, sob todas as
136

suas formas de governo, e que a distinguiu, com vantagem sua, dos


Estados da Ásia e, possivelmente, daqueles Estados que floresceram
nos períodos mais brilhantes do mundo antigo. Foi este princípio
que, sem confundir as classes, produziu uma nobre igualdade e a
fez descer através de todos os níveis da vida social. Foi esta maneira
de pensar que moderou os reis, fez deles companheiros e elevou os
particulares à sua camaradagem. Sem força nem oposição subjugou
a brutalidade do orgulho e do poder, obrigou os soberanos a sub-
meterem-se à canga suave da estima social, levou a autoridade mais
feroz a submeter-se à elegância, a abdicar do comando conquista-
dor das leis, para se render às maneiras.

Mas agora tudo vai mudar. Todas as ilusões agradáveis que tor-
naram o poder gentil e a obediência liberal, que harmonizaram os
diferentes cambiantes da vida, e que, por uma assimilação branda,
incorporaram na política os sentimentos que embelezam e suavi-
zam as relações privadas, serão desfeitas por este novo império vito-
rioso das luzes e da razão. Toda a roupagem decente da vida é para
ser rudemente arrancada. Todas as ideias supervenientes que nos
foram fornecidas pelo guarda-roupa da imaginação moral, que o
coração reconhece e o entendimento ratifica como necessárias para
cobrir os defeitos da nossa natureza nua e trémula e para a elevar em
dignidade aos nossos olhos, são para serem desacreditadas, como
uma moda ridícula, absurda e antiquada.

Neste esquema de coisas, um rei não é senão um homem, uma


rainha não é senão uma mulher, uma mulher não é senão um animal
-e um animal que não é da ordem mais elevada. Toda a homenagem
prestada a este sexo em geral e enquanto tal, só porque são mulhe-
res, é para ser vista como romantismo e loucura. Regicídio, parricí-
dio e sacrilégio, são apenas ficções da superstição, que corrompem a
jurisprudência destruindo a sua simplicidade. O assassinato de um
rei ou de uma rainha, ou de um bispo, ou de um pai é apenas um
homicídio comum- e se o povo por acaso e de algum modo, ganha
137

com isso, um tipo de homicídio muito mais perdoável, em relação


ao qual não se deve instaurar um inquérito muito severo.

Segundo o sistema desta filosofia bárbara, que é o fruto de co-


rações frios e espíritos vis, que estão tão vazios de uma sabedoria
sólida quanto destituídos de qualquer bom gosto ou elegância, as
leis são para serem sustentadas apenas pelo medo que inspiram, e
pela importância que cada indivíduo pode achar nelas a partir das
suas próprias especulações, ou dispensar-lhes a partir do que priva-
damente lhe interessa. Nos bosques da academia deles, até onde a
vista alcança, não se verão senão patíbulos. Nada resta para captar
a afeição por parte da sociedade. Segundo os princípios desta fi-
losofia mecânica, as nossas instituições nunca podem incarnar, se
posso usar a expressão, nas pessoas - de molde a criar em nós amor,
veneração, admiração ou laços. Mas esta espécie de razão que baniu
as afeições é incapaz de preencher o seu lugar. Estes afectos públi-
cos, combinados com as maneiras, requerem-se às vezes como su-
plementos, outras vezes como correctivos, e sempre como auxiliares
da lei. O preceito dado por um homem sábio, e grande crítico, para
a construção de poemas, é também verdadeiro para a construção
de Estados : - "Non satis est pulchra esse poemata, dulcia sunto. " 131
Deveria haver em cada nação um sistema de bons costumes que um
espírito bem formado estivesse inclinado a admirar. Para que nos
façam amar o nosso país, este deve ser amável.

Mas o poder, de um tipo ou de outro, sobreviverá ao choque


no qual as maneiras e as convicções pereceram e encontrará outros
meios para se sustentar, ainda que piores. Os usurpadores que, com
vista a subverter as antigas instituições destruíram os princípios an-
tigos, sustentarão o poder por artes semelhantes àquelas pelas quais
o adquiriram. ~ando o antigo espírito de menagem, feudal e cava-
lheiresco, for extinto na alma dos homens, que por libertar os reis

131
N.T. "Não basta que os poemas sejam belos, fo rça é que sejam agradáveis",
H or. Ars. 99.
138

do medo, libertava ambos, reis e súbditos, da prevenção da tirania,


as conspirações e assassinatos serão acautelados por assassinato pre-
ventivo e confiscação preventiva, e por aquele longo rol de máximas
cruéis e sangrentas que formam o código político de rodo o poder
que não se funda na sua própria honra e na honra daqueles que lhe
devem obedecer. Os reis serão tiranos por política, quando os súb-
ditos forem rebeldes por princípio.
~ando antigas convicções e regras de vida são retiradas,
a perda é talvez incalculável. A partir desse momento não temos
compasso que nos governe, nem podemos saber distintamente para
que porto navegar. A Europa, tomada no seu conjunto, estava, in-
dubitavelmente, numa condição florescente no dia em que a vossa
Revolução se deu. ~anto desse estado próspero se devia ao espíri-
to dos nossos costumes antigos e das nossas convicções não é fácil
dizer, mas, como o operar destas causas não pode ser indiferente,
devemos presumir que, no rodo, a sua actuação era benéfica.
Estamos sempre prontos a considerar as coisas no estado em
que as encontramos, sem advertir o bastante acerca das causas pe-
las quais elas foram produzidas, e sobre as quais, possivelmente, se
sustentam. Neste nosso mundo europeu, nada é mais certo do que
terem os nossos bons costumes, a nossa civilização e rodas as coisas
boas com eles relacionadas, dependido há séculos de dois princípios,
e foram, de facto, o resultado de uma combinação de ambos: refiro-
-me ao espírito do cavalheirismo e ao espírito da religião. A nobreza
e o clero, um por profissão, e a outra pelo patrocínio, perpetuaram
o saber, mesmo no meio das armas e das confusões, enquanto os
governos estavam mais em germe que propriamente formados. O
saber retribuiu à nobreza e ao clero o que deles tinha recebido, e
pagou-o com juros, alargando as suas ideias e adornando os seus es-
píritos. ~e felicidade se rodos tivessem sabido manter a sua união
e conhecido o seu próprio lugar! ~e felicidade se o saber, sem se
debochar pela ambição, se tivesse contentado em continuar a ser
139

o instrutor e não tivesse aspirado a governar! Juntamente com os


seus naturais guardiães e protectores, o saber será lançado na lama e
calcado pelos cascos 132 de uma multidão*133 imunda 134 •
Se, como suspeito, a literatura actual deve mais do que usual-
mente se quer admitir aos antigos costumes, o mesmo acontece
com outras vantagens que estimamos muito porque muito valem.
Mesmo o comércio, o negócio e as manufacturas, os deuses dos
nossos políticos economistas, são eles mesmos talvez apenas criatu-
ras, são eles próprios apenas os efeitos, que nós resolvemos venerar
como se fossem causas primeiras. Certamente todos eles cresceram
à sombra sob a qual floresceu o conhecimento. Também eles po-
derão cair juntamente com os princípios que os protegeram. En-
tre vós, pelo menos por agora, todos eles ameaçam desaparecer em
conjunto. ~ando o negócio e as manufacturas faltam a um povo,
e o espírito de nobreza e religião se mantém, o sentimento supre a
sua falta, e nem sempre supre mal, mas se o comércio e as artes se
perderem na experiência que testava quão bem um Estado se pode
manter sem aqueles velhos princípios fundamentais, que espécie de
coisa será uma nação de grosseiros, estúpidos, ferozes e ao mesmo
tempo pobres e sórdidos bárbaros, destituídos de religião, honra ou
orgulho viril, nada possuindo no presente e nada esperando daqui
para frente?
O que desejo é que não estejam a ir depressa, e pelo caminho
mais curto, para esta situação horrível e chocante. A pobreza de
concepção, a grosseria e a vulgaridade já são manifestas em todos
os procedimentos da Assembleia e nos de todos os seus mentores.

132
N .T. A expressão usada é "under the hoofs", espezinhado seria "trampled ou
underfoot", por isso se manteve a exp ressão brutal.
133
·Nota do autor: Veja·se a sorte de Bailly e Condorcet, que é suposto ser aqui,
também, particularmente referido. Compare·se as circunstâncias do julgamento e execu·
ção do primeiro com este vaticínio.
,,.. N.T. A expressão usada, que foi muito criticada na altura, é swinish multitude.
140

A sua liberdade não é liberal. A sua ciência é ignorância presunçosa.


A sua humanidade é selvagem e brutal.
Não está claro se foi a Inglaterra que aprendeu de vós os prin-
cípios distintos de decoro e os bons costumes, de que ainda restam
consideráveis traços, ou se foram os senhores a aprendê-los de nós.
Mas penso que provieram de vós. Parece-me que sois "gentis incu-
nabula nostrae" 135 • A França exerceu sempre maior ou menor in-
fluência sobre os costumes em Inglaterra, e quando a vossa nascente
é obstruída e se polui, a torrente não correrá por muito tempo, nem
muito límpida do nosso lado, talvez até em nenhuma nação. Em
minha opinião, isto causa em toda a Europa um interesse e preocu-
pação muito próximos pelo que se está a passar em França. Perdoe-
-me, portanto, se tratei tão longamente o espectáculo atroz do seis
de Outubro de 1789, ou se levei longe demais as reflexões que me
vieram à mente por ocasião da mais importante de todas as revolu-
ções, a qual pode ser datada desse mesmo dia: refiro-me à revolução
nos sentimentos, nos costumes e nas convicções morais. No actual
estado de coisas, com tudo quanto é respeitável à nossa volta des-
truído, e com a tentativa de destruir dentro de nós todo e qualquer
princípio de respeito, quase somos obrigados a desculparmo-nos
por acalentar sentimentos humanos comuns.
Porque sinto eu de maneira tão diferente do Reverendo Dr.
Price e daqueles seus paroquianos que escolherem adoptar os senti-
mentos do seu discurso? - Por esta simples razão: porque é natural
que eu sinta de modo diferente, porque fomos feitos para, perante
estes espectáculos, sermos afectados de sentimentos melancólicos
acerca da condição instável da prosperidade dos mortais e da tre-
menda incerteza da grandeza humana, porque com estes sentimen-
tos naturais aprendemos grandes lições, porque em acontecimentos
destes as nossas paixões instruem a nossa razão, porque quando reis
são arrancados dos seus tronos pelo Supremo Director deste grande

IJS N .T. "O berço da nossa nação".


141

drama, e se tornam objectos de ultrajo para os vis e de piedade para


os bons, devemos encarar estes desastres na moral como olharíamos
para um milagre na ordem mecânica das coisas. Somos despertados
para a reflexão, as nossas almas (como há muito tempo tem vindo
a ser observado) são purificadas pelo terror e pela piedade, o nosso
orgulho doentio e insensato é tornado humilde pela prodigalidade
de uma misteriosa sabedoria. Eu teria vertido algumas lágrimas se
este espectáculo fosse representado num palco. Ficaria muito en-
vergonhado se descobrisse em mim essa sensibilidade superficial e
teatral ao sofrimento representado, enquanto exultava com ele na
vida real. Com uma alma assim pervertida, nunca poderia aparecer
numa tragédia. As pessoas pensariam que as lágrimas que outrora
Garrick e recentemente Siddons 136 , me arrancaram, eram lágrimas
de hipocrisia, e eu saberia que eram as lágrimas da loucura.
De facto, o teatro é melhor escola para os sentimentos morais
do que as igrejas onde os sentimentos de benevolência são assim ul-
trajados. Os poetas, que têm de lidar com uma audiência ainda não
formada na escola dos direitos do homem, e que têm de adereçar-
-se à constituição moral do coração, não se atreveriam a apresentar
um tal triunfo como motivo de júbilo. Aí, onde os homens seguem
os seus impulsos naturais, não seriam suportadas as máximas odio-
sas de uma política maquiavélica, quer aplicadas na concretização
de uma tirania monárquica quer na de uma tirania democrática.
Rejeitá-las-iam nos palcos de hoje como as rejeitaram nos palcos
antigos, onde nem mesmo a proposta hipotética de uma maldade
assim na boca de um personagem tirano puderam suportar, ainda
que adequada ao papel que ele representava. Nenhuma plateia tea-

' 36 N.T. Refere-se a David Garrick e Sara Siddons, dois actores famosos da altura.
David Garrick é amigo de Burke. H á notícia de correspondência trocada entre ambos
pelo menos desde 1765, Burke tem nessa altura 35 (ou 36 anos, recorde-se que a sua data
de nascimento pode ter sido 1729 ou 1730} e Garrick tem 48. Garrick é convidado a
visi tar Burke em Beaconsfield em Junho de 1768. A amizade entre ambos perdura até ao
final da vida do actor em 1779. Burke escreve-lhe um sentido epitáfio. Cf. Corresponden-
ce, Vols. I. II , III e IX.
142

tral em Atenas suportaria o que foi suportado nesta tragédia real


deste dia triunfal: um actor principal pesando na balança, como
numa loja de horrores, tantos crimes de hoje contra vantagens tão
contingentes e - após pôr dentro e fora pesos - declara que o ba-
lanço está do lado das vantagens. Não suportariam ver os crimes da
nova democracia postos no rol ao lado dos crimes do despotismo,
e os guarda-livros políticos a julgarem que a democracia ainda con-
tinuava em débito, mas de modo algum incapazes ou relutantes em
pagar o seu débito. No teatro, um primeiro relance intuitivo, sem
nenhum processo elaborado de raciocínio, mostraria que este mé-
todo de contabilidade política justificaria todos os crimes. Teriam
visto que, segundo estes princípios, mesmo quando não se desse o
pior, isso dever-se-ia mais à sorte dos conspiradores do que à sua
parcimónia no uso da traição e do sangue. Depressa veriam que
os meios criminosos, uma vez tolerados, em breve são os preferi-
dos. Representam um atalho para o objectivo, menos longo do que
percorrer a estrada das virtudes morais. Justificando a perfídia e o
crime com o benefício público, o benefício público cedo será o pre-
texto, e a perfídia e o crime o fim - até que a voracidade, a malícia,
a vingança e o medo, mais horrível que a vingança, possam saciar os
seus apetites insaciáveis. Estas serão as consequências de se perder,
no esplendor destes triunfos dos direitos do homem, todo o sentido
natural do certo e do errado.
Mas o reverendo pastor exulta neste "conduzido em triunfo",
porque, verdadeiramente, Luís XVI era "um monarca arbitrário":
isto é, dito noutros termos, nada mais nem nada menos que porque
ele era Luís XVI, e porque ele teve a infelicidade de ter nascido rei
de França, com as prerrogativas com que uma longa linha de an-
cestrais, e um longo consentimento do povo, sem nenhum acto de
sua parte, o puseram na posse do trono. De facto, foi para ele uma
infelicidade que tivesse nascido rei de França. Mas infelicidade não
é crime e nem sempre a imprudência é a maior das faltas. Um prín-
cipe, cujos actos de todo o seu reinado foram concessões sucessivas
143

aos seus súbditos, que estava disposto a abrandar a sua autoridade,


reduzir as suas prerrogativas e a fazer o seu povo participar de uma
liberdade desconhecida, e talvez não desejada, pelos seus antepas-
sados - um tal príncipe, embora sujeito às fraquezas próprias dos
homens e dos príncipes, embora ele há muito devesse ter julgado
necessário recrutar forças contra os planos terríveis que manifesta-
mente se arquitectavam contra a sua pessoa e contra o resto da sua
autoridade - embora tudo isto deva ser tido em consideração, vejo
com grande dificuldade que ele mereça o triunfo cruel e ultrajante
de Paris, ou do Dr. Price.

Tremo pela causa da liberdade à vista de um exemplo destes


dado aos reis. Tremo pela causa da humanidade, pelos ultrajes im-
punes infligidos pelos homens mais perversos. Mas há algumas pes-
soas com uma forma de pensar vil e degradada que olham para cima
numa espécie de veneração complacente e admiração para reis que
sabem manter-se seguros no seu trono, ter mão firme nos seus súb-
ditos, fazer valer as suas prerrogativas, e, pela vigilância atenta de
um severo despotismo, acautelar-se em relação aos primeiros sinais
de abordagem da liberdade. Contra príncipes como estes nunca le-
vantam a sua voz. Desertores em relação a princípios, mercenários
da fortuna, nunca vêem nada de bom numa virtude sofrida, nem
vêem nenhum crime na usurpação próspera.
Se me demonstrassem claramente que o rei e a rainha de Fran-
ça (refiro-me àqueles que o eram antes do triunfo) tinham sido ti-
ranos cruéis e inexoráveis, que tinham concebido deliberadamente
planos para massacrar a Assembleia Nacional (julgo ter visto algo
parecido insinuado em certas publicações), eu julgaria justo o seu
cativeiro. Se isso fosse verdade, muito mais deveria ter sido feito ,
mas feito, julgo eu, de outro modo. A punição de reis tiranos é um
acto de justiça nobre e terrível e com verdade se tem dito que é apa-
ziguador da alma humana. Mas se eu tivesse de punir um rei perver-
so, teria em conta a dignidade ao vingar o crime. A justiça é grave
144

e decorosa e ao castigar parece mais agir por necessidade que por


escolha. Se Nero, ou Agripina, ou Luís XI, ou Carlos IX tivessem
sido os alvos - se Carlos XII da Suécia, após o assassinato de Patk:ul,
ou a sua antecessora, Cristina, após o assassinato de Monaldeschi,
tivessem caído nas suas mãos, Senhor, ou nas minhas, estou certo
que a nossa conduta teria sido diferente.
Se o rei de França, ou o rei dos franceses (ou por qualquer
outro nome que ele seja conhecido no novo vocabulário da vossa
Constituição) tivesse, na sua pessoa ou na da sua rainha, merecido
estes inconfessos e não vingados atentados às suas vidas, e aqueles
ultrajes constantes, mais cruéis que a morte, uma tal pessoa dificil-
mente mereceria a responsabilidade executiva, mesmo a subordina-
da, que julgo estar-lhe confiada, nem seria próprio chamar-lhe che-
fe numa nação a quem ele tivesse ultrajado e oprimido. Para exercer
tais funções numa nova comunidade, não poderia escolher-se pior
do que um tirano deposto. Mas aviltar e insultar um homem como
o pior dos criminosos e a seguir confiar nele para a guarda dos vos-
sos interesses mais elevados, como um funcionário leal, honesto e
zeloso, é inconsistente como raciocínio, não é prudente como po-
lítica e não é seguro na prática. Tal eleição seria, por parte daqueles
que a fizeram uma traição maior de que outra qualquer já cometida
contra o povo. Como este é o único crime em que os vossos líderes
políticos podem ter agido inconsistentemente, eu concluo que não
há nenhuma espécie de fundamento nestas insinuações horríveis.
Não penso melhor de todas as outras calúnias.
Em Inglaterra, não lhes damos crédito. Somos inimigos ge-
nerosos, somos fiéis aliados. Afastamos de nós com desgosto e in-
dignação os caluniadores, aqueles que nos trazem as suas anedotas
atestadas pela flor-de-lis ao ombro. Temos Lord George Gordon
bem fechado em Newgate, e nem o facto de ele ser um proselitista
público do Judaísmo, nem o de ele, no seu zelo contra os padres
católicos e todo o tipo de eclesiásticos, ter sublevado uma genta-
lha (desculpai-me o termo, ainda está em uso por aqui) que deitou
145

abaixo rodas as nossas prisões, lhe preservou a liberdade da qual ele


não se tinha mostrado digno sabendo fazer bom uso dela. Recons-
truímos Newgate e arrendámos o solar. Temos prisões quase tão
fortes quanto a Bastilha, para aqueles que se atreverem a insultar
as rainhas de França. Deixemos estar este nobre caluniador neste
retiro espiritual. Deixemo-lo aí a meditar no seu Talmud, até que
ele aprenda uma conduta mais adequada ao seu nascimento e aos
seus dotes, e não tão insultuosa para a antiga religião de que se tor-
nou prosélito- ou até que algumas pessoas daí dessa margem, para
agradarem ao vosso novo irmão hebreu, o venham resgatar. Poderá
então comprar, com os antigos tesouros da sinagoga, e uma muito
pequena comissão nos juros acumulados das trinta moedas de pra-
ta (o Dr. Price mostrou-nos os milagres que estes juros realizaram
em 1790 anos), as terras que ultimamente se descobriu terem sido
usurpadas pela Igreja galicana. Mandem-nos o vosso Arcebispo Ca-
tólico de Paris, que nós enviar-vos-emos o nosso Rabino Protestan-
te. Trataremos a pessoa que nos enviarem em troca como um cava-
lheiro e um homem honesto, que ele o é: mas por favor deixem-no
trazer consigo a riqueza da sua hospitalidade, bondade e caridade
e podeis estar seguros que nunca confiscaremos um cêntimo desse
capital honrado e piedoso, nem pensaremos em enriquecer o nosso
tesouro com o espólio da caixa das esmolas dos pobres.
Para lhe dizer a verdade, meu caro Senhor, eu penso que no
desmentir das conclusões da sociedade de Old Jewry a da London
Tavern está implicada, de algum modo, a honra da nossa Nação.
Não tenho mandato de ninguém. Falo apenas por mim mesmo,
quando repudio, como eu o faço com a maior sinceridade, qualquer
comunhão com os participantes neste triunfo, ou com os seus ad-
miradores. ~ando afirfno outra coisa diferente, a respeito do povo
inglês, falo por ter observado, não por autoridade, mas falo a partir
da vasta experiência que tive ao comunicar de vários modos com os
habitantes deste reino, de rodos os tipos e classes, e após uma ob-
servação atenta, que começou cedo na minha vida e que continua
146

há perto de quarenta anos. Frequentemente me tenho espantado ao


considerar que o que nos separa é apenas um estreito canal de vinte
e quatro milhas 137 e que o mútuo intercâmbio entre os nossos dois
países tem sido muito grande ultimamente, para que nos conheçais
tão pouco. Suspeito que isso se deva a que os senhores formaram
um juízo de nós a partir de certas publicações, que representam
muito mal, se é que, de todo, representam, as opiniões e disposições
prevalecentes em Inglaterra. A vaidade, o desassossego, a p etulância
e espírito de intriga de várias cabalas mesquinhas, que tentam es-
conder a sua total falta de importância pela azáfama, pelo barulho
e pelo empolamento e citação mútua uns dos outros, fez-vos ima-
ginar que o desprezo com que negligenciamos as suas h abilidades é
um sinal de concordância geral com as suas opiniões. Não é ass im,
asseguro-vos. Lá porque meia dúzia de gafanhotos debaixo de um
feto fazem o campo tinir com o seu barulho incómodo, enquanto
milhares de cabeças de gado repousam à sombra do carvalho in-
glês e ruminam silenciosos, por favor não imagine que os que fazem
barulho são os únicos habitantes do campo - que, de certeza, são
em grande número -, ou que, no fim de contas, eles diferem dos
pequenos, amarfanhados, magros, saltitantes, embora barulhentos
e incómodos, insectos do momento.

~ase me atrevo a afirmar que nem um por cento de nós par-


ticipa do "triunfo" d a Sociedade d a Revolução. Se o rei e a rainha de
França e os seus filho s viessem a cair nas nossas mãos por uma guer-
ra, na mais acesa das hostilidades (abomino tal evento e tais hostili-
dades) seriam recebidos com um outro tipo de entrada triunfal em
Londres. Em tempos tivemos um rei de França nessas condições 138 :

u- N.T. Cerca de 44 km .
138
.T. Refere-se a Jean le Bo n, que é aprisionado na Baralh a de Poi riers em 1356.
O rei é primeiro alojado em Bordéus com honras reais onde lhe permitem co nstituir a sua
corte. Em defesa dos in teresses da França e dos interesses do seu herdeiro contra o rei de
Navarra, Jean le Bon decide precipitar as negociações com Ricardo III e é transportado
para Lo ndres para se encontrar com o rei inglês onde é, ele mesmo, tratado com roda a
dignidade real sendo-lhe permitido mante r uma corte de cerca de uma centen a de pessoas.
147

lestes como ele foi tratado pelo vencedor no campo e de que manei-
ra foi recebido depois em Inglaterra. ~atrocentos anos passaram
sobre nós, mas eu acredito que não mudámos substancialmente de-
pois desse período. Graças à nossa resistência obstinada à inovação,
graças à fria indolência no nosso carácter nacional, continuamos a
ostentar a marca dos nossos antepassados. Não perdemos, julgo eu,
a generosidade e dignidade de pensar do século catorze, nem nos
transformámos ainda, subtilmente, em selvagens. Não somos coo-
versos de Rousseau, não somos discípulos de Voltaire, Helvetius não
fez progressos entre nós. Os ateus não são nossos pregadores nem os
loucos são nossos legisladores. Sabemos que nós não fizemos nenhu-
mas descobertas na moralidade, e pensamos que nesse campo não
há descobertas a fazer, nem há também muitas descobertas sobre
os grandes princípios de governo, ou sobre as ideias de liberdade,
os quais foram compreendidos muito antes de nós nascermos, tão
bem quanto o serão depois da terra se ter amontoado sobre as nos-
sas presunções e o silêncio do túmulo ter imposto a sua lei sobre a
nossa petulante loquacidade. Em Inglaterra ainda não fomos com-
pletamente estripados das nossas entranhas naturais: continuamos
a sentir dentro de nós, acarinhamos e cultivamos aqueles sentimen-
tos inatos que são os fiéis guardiães e os que activamente controlam
o nosso dever, os verdadeiros sustentáculos da nossa moral liberal
e viril. Nós não fomos esvaziados e costurados, com vista a sermos
enchidos, como os pássaros empalhados nos museus, com palha,
farrapos, e reles indistintos pedaços de jornal acerca dos direitos do
homem. Preservámos todos os nossos sentimentos naturais e intei-
ros, não sofisticados pela pedantice e infidelidade. Temos, a bater
no nosso peito, corações autênticos de carne e sangue. Tememos a
Deus, elevamos o olhar para os Reis com temor, com emoção para
os Parlamentos, com respeito para os magistrados, com reverência
para os sacerdotes e com deferência para a nobreza*139 •

139
• Nora do autor: Os ingleses são, segundo julgo, derurpadamenre descriros

numa carra publicada num dos jornais, por um cavalheiro que penso ser um pasror Dis-
148

Porquê? Porque, quando estas ideias nos vêm à mente é natu-


ral sermos afectados deste modo, porque todos os outros sentimen-
tos são falsos e espúrios e tendem a corromper o nosso espírito, a
viciarem a nossa moral original, a tornar-nos inaptos para a liber-
dade racional e, por nos ensinarem uma insolência servil, licenciosa
e depravada - para ser o nosso desporto vil de alguns dias de folga
- tornam-nos perfeitamente aptos para a escravatura, e com justiça
merecedores dela, durante o resto das nossas vidas.
Saiba o Senhor que nesta era iluminada sou suficientemen-
te corajoso para confessar que nós somos geralmente homens de
sentimentos espontâneos: que, em vez de deitarmos fora os nossos
antigos preconceitos os acarinhamos ao mais alto grau e, para nossa
maior vergonha, acarinhamo-los porque são preconceitos e, quanto
mais tempo tiverem durado e quanto mais generalizadamente pre-
valeceram, mais os acarinhamos. Temos receio de pôr os homens a
viver e a negociar com a sua reserva privada de razão, porque sus-
peitamos que esse capital em cada homem é pequeno e que os indi-
víduos fariam melhor em abastecer-se no capital e no banco geral
das nações e dos séculos. Muitos dos nossos intelectuais, em vez de
destruírem os preconceitos gerais, empregam a sua sagacidade em
descobrir a sabedoria latente que prevalece neles. Se encontram o
que procuram (e raramente falham ), julgam mais acertado conti-
nuar com o preconceito 140 , com a razão à mistura, do que deitar
sidente. ~a ndo escreve para o Dr. Price a propósito do espírito que prevalece em Paris,
diz: "O espírito popular neste lugar aboliu todas as distinções presunçosas que o rei e os
nobres usu rparam, em seu entender, quer falem do rei, do nobre ou do sacerdote, roda a
sua linguagem é a mais iluminada e liberal entre os ingleses." Se este cavalheiro quer con·
finar os termos iluminado e liberal a um ripo de homens em Inglaterra, pode ser que seja
verdade. Geralmente, não é assim.
140
N.T. Burke não é indiscriminadamente favorável ao preconceito, por isso lhe
acrescenta habitualmente o adjectivo de justo e define o justo preconceito como o pre-
conceito associado à sua razão de ser. estas circunstâncias, o preconceito transforma
a virtude do homem num hábito. Burke combateu preconceitos absurdos, que se iden -
tificam mais com o sentido pejorativo que damos à palavra preconceito, quer na crítica
à governação inglesa da Índia, quer na crítica à perseguição aos católicos irlandeses. Para
mais info rmação sobre o assunto ver: Ivone Moreira, Op. Cir., pp. 57-60.
149

fora a capa do preconceito e deixar apenas a razão despida, porque o


preconceito, com a sua razão, tem um motivo para levar essa razão a
agir e um afecto que lhe dará constância. O preconceito é de aplica-
ção imediata numa emergência: compromete previamente a mente
num percurso firme de sabedoria e virtude e não deixa o homem
hesitante no momento da decisão, céptico, perplexo e irresoluto.
O preconceito torna a virtude do homem o seu hábito e não uma
série de actos isolados. Através do preconceito justo, o seu dever
passa a fazer parte da sua natureza.

Os vossos literatos e os vossos políticos - acontece o mesmo a


rodo o nosso clã de iluminados - diferem de modo essencial nestes
pontos. Não têm respeito pela sabedoria dos outros, mas compen··
sam isso com uma grande confiança na sua própria sabedoria. Com
eles há motivo suficiente para destruir a velha ordem das coisas,
apenas por ser velha. ~anto ao que é novo, não têm nenhum tipo
de receio no que respeita à duração de uma construção erguida à
pressa, porque a duração não é importante para aqueles que pensam
que pouco ou nada se fez antes do seu tempo e que põem toda a
sua esperança na descoberta. Pensam, muito sistematicamente, que
rodas as coisas que dão perpetuidade são prejudiciais e, por isso,
estão em guerra implacável com rodos os sistemas. Pensam que os
governos podem variar como as modas de vestir e que essa mudan-
ça é igualmente inofensiva, que não é necessário nenhum princípio
de ligação a nenhuma constituição do Estado, excepto o sentido da
conveniência presente. Falam sempre como se tivessem a convicção
de que há um tipo de pacto singular entre eles e os seus magistrados,
que compromete o magistrado, mas que esse comprometimento
não é recíproco, e que a soberania do povo tem o direito de dissol-
ver esse pacto sem precisar de outra razão senão a sua vontade. Mes-
mo a ligação ao seu próprio país só vai até onde ela se ajusta a alguns
dos seus projectos transitórios: ela começa e acaba com o esquema
político que se enquadra nas suas opiniões do momento.
150

Estas doutrinas, ou melhor, estes sentimentos, parecem preva-


lecer nos vossos novos homens de Estado. Mas são completamente
diferentes daqueles sob os quais sempre temos actuado neste país.
Ouvi que, às vezes, em França se considera que o que está a
acontecer entre vós é feito seguindo o exemplo de Inglaterra. Peço
licença para afirmar que dificilmente alguma das coisas levadas a
cabo entre vós se inspirou na prática ou nas opiniões prevalecentes
entre nós, quer na sua concretização, quer no seu espírito. Deixe-
-me acrescentar, que não queremos aprender estas lições de vós, do
mesmo modo que estamos seguros de não vo-las termos ensinado.
As cabalas que aqui de algum modo tomam parte nas vossas tran-
sacções, por enquanto, não passam de um punhado de homens. Se,
infelizmente, pelas suas intrigas, os seus sermões, as suas publicações
e por causa de uma confiança que lhes vem do facto de esperarem
unir-se aos conselhos e às forças da nação francesa, conseguirem
atrair muita geme para as suas fileiras e, em virtude disso, tentarem
aqui alguma coisa parecido com o que se tem passado entre vós, o
que acontecerá, atrevo-me a vaticinar, é que, com alguma inquieta-
ção para o país, depressa conseguirão a sua própria destruição. Este
povo, em tempos remotos, recusou-se a mudar as suas leis aceitando
a infalibilidade dos Papas e não as há-de alterar agora por causa de
uma fé implícita e fervorosa no dogmatismo dos filósofos- embora
o primeiro estivesse armado com o anátema e as cruzadas e os últi-
mos possam actuar usando a difamação e os postes da luz.
Antigamente os vossos assuntos apenas a vós diziam respeito.
Sentíamos por vós enquanto homens, mas mantínhamo-nos afas-
tados deles, porque não éramos cidadãos franceses. Mas quando
vimos o que vos acontece ser-nos apresentado como modelo, preci-
samos sentir como ingleses e, sentindo, precisamos prepararmo-nos
como ingleses. Os vossos assuntos, mau grado nosso, são em parte
do nosso interesse - pelo menos para mantermos à distância quer
a vossa panaceia quer a vossa peste. Se for a vossa panaceia, não a
151

queremos: conhecemos as consequências de um remédio desneces-


sário. Se for a peste, é uma peste tal que, para a prevenir, deverá ser
estabelecida a mais severa das quarentenas.
Ouço dizer por rodo o lado que uma seita, que se chama a
si própria de filosófica, recolhe os louros de muitos dos últimos
acontecimentos e que as suas convicções e os seus sistemas são o
verdadeiro espírito que actua em rodos eles. Não ouvi falar de ne-
nhum partido em Inglaterra, literário ou político, que fosse conhe-
cido por essa denominação. Não é esse grupo, por acaso, composto
entre vós por aquele tipo de homens a que o vulgo, no seu estilo
franco e simples, comummente chama ateus e infiéis? É que se é,
eu admito que também nós já tivemos escritores dessa espécie, que
fizeram algum barulho no seu tempo. Neste momento, repousam
num esquecimento que perdura. ~em é que, nascido nos últimos
quarenta anos, leu uma palavra de Collins, de Toland e de Tindal,
de Chubb e de Morgan, e de roda a raça dos chamados livres-pen-
sadores? ~em é que agora lê Bolingbroke ?14 1 ~em é que alguma
vez o leu de fio a pavio? Perguntem aos livreiros de Londres o que
é que aconteceu a rodos estes luminares do mundo? Em idênticos
escassos anos os seus poucos seguidores irão para o jazigo de família
de "rodos os Capuletos". Mas o que quer que eles tenham sido ou
sejam, entre nós, foram e são indivíduos isolados. Connosco, man-
tiveram a natureza que é comum à sua espécie: não foram gregários.
Nunca actuaram corporativamente, nem sequer eram conhecidos
como uma facção do Estado, nem se presume que tenham influen-
ciado, em seu nome ou servindo os propósitos de tal facção, algum
dos nossos interesses públicos. Mesmo admitindo que devem exis-
tir, que lhes seja permitido agir é outra questão. Como estas cabalas

'" N .T . Burke é um crítico antigo de Bolingbroke. U m a das suas primeiras obras


A Vindication oja Natural Society, publicad a em 17 56, é uma obra irónica e imita o es-
tilo de Boli ngbroke para demo nstrar que as ideias deste últim o ace rca da religião eram
ide ias pe rigosas e, quando aplicadas à socied ade política, se riam destruido ras desta. Burke,
contudo, co nhecia bem este auror, já q ue a sua sát ira ch ega a passar por obra póstuma de
Bolingbroke.
152

não existiam em Inglaterra, assim também o seu espírito não teve


nenhuma influência no estabelecimento e enquadramento original
da nossa Constituição, ou em alguma das correcções e dos melho-
ramentos que ela sofreu. O todo da Constituição foi concebido sob
os auspícios, e confirmado pelas sanções, da religião e da piedade.
O todo emanou da simplicidade do nosso carácter nacional e duma
espécie de elementaridade nativa e rectidão de entendimento que,
por muito tempo, caracterizou os homens a quem fomos, sucessiva-
mente, entregando a autoridade. Esta disposição mantém-se, pelo
menos na grande maioria do povo.
Sabemos, e o que é melhor, sentimos intimamente, que a
religião é a base da sociedade, a fonte de todo o bem e de todo o
consolo• 142 • Em Inglaterra estamos tão convencidos disto que, no-
venta e nove por cento de nós, preferiríamos toda a ferrugem de
superstição, que a mente humana absurdamente tivesse acumula-
do ao longo do tempo, à impiedade. Nunca seremos tão tolos que
convidemos um inimigo estrutural de um sistema a remover as suas
corrupções, a suprir os seus defeitos, ou a aperfeiçoar a sua constru-
ção. Se os nossos princípios religiosos alguma vez precisarem de ser
mais elucidados, não recorreremos ao ateísmo para no-los explicar.
Não iluminaremos o nosso templo com esse fogo profano. Será ilu-
minado com outras luzes. Será perfumado com outro incenso que
não o material infecto importado pelos contrabandistas de uma

'" ·Nota do autor: Sit igitur hoc ab initio persuasum civibus, dominos esse omnium
rerum ac moderatores deos, eaque, quae gerantur, eorum geri vi, ditione, a c numine, eosdem-
que oprime degenere hominum mereri, et qualis quisque sit, quid agat, quid in se adm ittat,
qua mente, qua pietatecolat refigiones intueri: piorum et impiorum habere rationem . H is
enim rebus imbutae mentes haud sane abhorrebunt ab utili et a vera sententia. - [ ~e os
cidadãos sejam, desde logo, persuadidos de q ue os deuses são senhores e gove rnantes de
rodas as coisas; de que tudo o que acontece, acontece pelo seu poder, pela sua autoridade
e pela sua vo ntade; de que são notáveis benfeitores da human idade; e de que vigiam como
cada um é, o que faz, o que permite para si, com que pensamentos e com qu e piedade
observa os ritos religiosos: fazem o cálculo exacto da piedade e da impiedade. Assim, as
mentes instruídas nestes princípios não se afastarão de uma fo rm a de pensar útil e verda-
dei ra. Cic. L eg. 2. 15-16. )
153

metafísica adulterada. Se as nossas instituições eclesiásticas carece-


rem de uma revisão, não será a avareza ou a rapacidade públicas ou
privadas que empregaremos para fazer a auditoria, o recebimento
ou a aplicação, dos rendimentos consagrados. Não condenando
violentamente nem o grego, nem o arménio nem, desde que o seu
ardor abrandou, o sistema da religião romana, nós preferimos o
protestante: não porque pensemos que existe nele menos religião
cristã, mas porque entendemos que existe mais. Somos protestantes
não por indiferença mas por zelo.

Sabemos, e temos orgulho em saber, que o homem é pela sua


constituição um animal religioso, que o ateísmo é contrário não
apenas à nossa razão mas aos nossos instintos e que não pode sus-
tentar-se por muito tempo. Mas se, no meio de um motim e num
ébrio delírio de bebidas infernais destiladas no alambique do in-
ferno - que em França ferve agora tão furiosamente - viermos a
descobrir a nossa nudez despindo-nos da religião cristã, que tem
sido até aqui o nosso orgulho e o nosso conforto e grande fonte de
civilização entre nós e entre muitas outras nações, preocupa-nos,
(estando muito conscientes que a alma humana não suporta o va-
zio), que alguma superstição grosseira, perniciosa e degradante ve-
nha tomar o seu lugar.

Por essa razão, antes de retirarmos ao nosso sistema motivos


de estima naturais e humanos e o abandonarmos ao desprezo, como
o senhores fizeram e, fazendo isso, incorreram nos castigos que bem
merecem sofrer, desejamos que outro nos possa ser oferecido em
seu lugar. Nessa altura faremos o nosso juízo.

A propósito destas ideias, em vez de estarmos em conflito com


as instituições, como alguns que fizeram da sua hostilidade a tais
instituições uma filosofia e uma religião, nós cedo cortámos com
eles. Estamos resolvidos a manter a Igreja instituída, a monarquia
estabelecida, a aristocracia estabelecida, e a democracia estabelecida
154

cada uma no grau em que existe e não em grau maior. Vou mostrar-
-lhe agora quanto temos de cada uma.
É um infortúnio deste nosso tempo (não, como estes cavalhei-
ros pensam, uma glória), que tudo seja objecto de discussão: como
se a Constituição do nosso país fosse para ser matéria de constante
altercação em vez de regozijo. Por esta razão, e também para satis-
fação daqueles que de entre vós (se é que há alguns desses entre vós)
possam querer aprender com os exemplos, aventuro-me a incomo-
dá-lo com algumas reflexões sobre cada uma destas instituições. Na
Roma antiga, julgo que não eram destituídos de bom senso aqueles
que, quando queriam remodelar as suas leis, mandavam comissários
para examinarem as repúblicas mais bem constituídas que estives-
sem ao seu alcance.
Primeiro peço-lhe que me deixe falar-lhe da nossa Igreja insti-
tuída, que é o mais importante dos nossos preconceitos - não um
preconceito destituído de razão, mas envolvido na sua sabedoria ex-
tensa e profunda. Falarei dela primeiro. Porque, no nosso espírito,
ela é a primeira, a última e a que ocupa o centro. Porque, baseados
no sistema religioso que temos agora, continuaremos a agir segun-
do o bom senso originalmente recebido pela humanidade e trans-
mitido até nós de um modo uniforme e contínuo. Esse bom senso,
como um sábio arquitecto, não apenas pôs de pé a estrutura augusta
dos Estados, como, actuando como um proprietário prudente, para
preservar a construção da profanação e da ruína, como a um templo
sagrado, limpou-a de todas as impurezas: da fraude, da violência,
da injustiça e da tirania, consagrou solenemente a comunidade e
todos os que nela desempenham cargos. Essa consagração é de tal
modo que todos aqueles que administram o governo, função onde
representam o próprio Deus, devem ter, do seu destino e do seu
papel, um conceito elevado e digno, que a sua esperança esteja cheia
de imortalidade, que não olhem para o lucro mesquinho de oca-
sião, nem para os louvores passageiros do vulgo, mas para uma exis-
155

tência sólida e permanente na parte imutável da sua natureza, para


uma fama e glória permanentes, no exemplo que deixam ao mundo
como uma rica herança.

Estes princípios sublimes precisam de ser infundidos em pes-


soas de condição elevada, e as instituições religiosas providenciam
para que eles se possam reavivar e reforçar constantemente. É neces-
sário todo o tipo de instituição, moral, civil e política, na ajuda aos
laços racionais e naturais que ligam o entendimento e as afecções
humanas às divinas, tendo em vista a construção daquela espantosa
estrutura que é o Homem, cuja prerrogativa é a de ser, em grande
medida, uma criatura que se faz a si mesma, e que, quando feita
como deve ser, está destinada a ocupar um lugar importante na cria-
ção. Mas sempre que o homem é posto a comandar homens, como
a natureza melhor deve sempre presidir, nesse caso, mais particular-
mente, ele deve aproximar-se o mais possível da sua perfeição.

A consagração do Estado, por uma instituição religiosa estatal,


é necessária também para inspirar um saudável temor nos cidadãos
livres, porque com o objectivo de assegurar a sua liberdade, eles pre-
cisam desfrutar de uma determinada porção de poder. Portanto,
para eles, uma religião ligada ao Estado e ligada aos seus deveres para
com ele, torna-se ainda mais necessária que em sociedades onde o
povo, pelos termos em que se deu a sua sujeição, está confinado aos
seus sentimentos privados e à gestão dos seus assuntos familiares.
Todas as pessoas possuidoras de alguma parcela do poder deve ser-
-lhes muito fortemente inculcada a ideia de que actuam por delega-
ção, e de que, a esse título, devem prestar comas da sua conduta ao
grande Mestre, Autor e Fundador da sociedade.

Este princípio deve estar ainda mais fortemente inculcado no


espírito daqueles que compõem uma soberania colectiva do que
no espírito de príncipes que governam sós. Sem instrumentos, es-
tes príncipes nada podem fazer. ~em quer que use instrumentos,
se neles encontra ajuda encontra também impedimentos. O seu
156

poder nunca é total, nem tão-pouco estão a salvo de injúria extre-


me. Tais pessoas, embora exaltadas pela lisonja, pela arrogância e
pelo seu autoconceito, devem ser sensíveis a que, quer estejam ou
não protegidas pelo direito positivo, de uma maneira ou de outra,
têm que prestar contas, mesmo nesse caso, pelo abuso do poder que
lhes tinha sido confiado. Se não forem degolados por uma rebe-
lião do seu povo, podem ser estrangulados pelos próprios soldados
mantidos para sua segurança contra qualquer outra rebelião. Assim
nós vimos o Rei de França ser vendido pelos seus soldados em troca
de um aumento do pré. Mas onde a autoridade popular é absoluta
e em nada refreada, o povo tem uma confiança infinitamente maior
no seu poder, porque muito melhor fundada. São eles próprios, em
grande medida, os instrumentos desse poder. Estão mais próximos
dos seus objectivos. Alem disso, não estão tanto sob a alçada de um
dos poderes mais controladores no mundo : atender ao bom nome e
à consideração. A parcela de infâmia que é provável que caiba a cada
indivíduo por participar em actos públicos é deveras pequena: a
actuação da censura processa-se na razão inversa do número daque-
les que abusam do poder. A própria aprovação dos seus actos tem
para eles a aparência de um juízo público a seu favor. Uma perfeita
democracia é, por isso, a coisa mais desavergonhada do mundo. E
como é a mais desavergonhada é também a mais destemida. Nin-
guém se convence que pode ser sujeito a um castigo. Certamente, o
povo inteiro nunca o deve ser: porque, como todos os castigos são
dados como exemplo e para a conservação de todo o povo, a tota-
lidade do povo nunca pode ser objecto de punição por nenhuma
mão humana*143 • É por isso de uma importância infinita que eles
não se permitam imaginar que seja a sua vontade, mais do que a
dos reis, o padrão do certo e do errado. Devem ser persuadidos de
que estão muito menos no direito, e que são muito menos habili-
tados a fazê-lo em segurança, a usar de um poder arbitrário seja ele

3
'• ·Nota do autor: Quicquid multis peccawr inultum. [U ma fal ta cometida por
muitos, qualquer que seja, fica impune. Luc. 5.260.)
157

qual for, que, por conseguinte, não devem, sob uma falsa aparência
de liberdade, estar de facto a exercer um poder contranatura, in-
versivo, exigindo tiranicamente dos seus mandatários que exercem
funções no Estado, não uma inteira devoção ao seu interesse, o que
seria seu direito, mas uma abjecta submissão à sua vontade arbitrá-
ria: extinguindo desse modo, em rodos aqueles que os servem, rodo
e qualquer princípio moral, rodo o sentido de dignidade, rodo o
poder de ajuizar e roda a consistência de carácter, enquanto, exac-
tamente pelo mesmo processo, eles próprios constituem uma presa
adequada e conveniente, mas muito lamentável, da ambição servil
dos sicofantas populares ou dos bajuladores da corre.
~ando o povo se tiver esvaziado de toda a ambição da sua
vontade egoísta, o que sem a religião é absolutamente impossível
que alguma vez o faça - quando estiver consciente de que exerce o
poder, e talvez num elo mais elevado na ordem da delegação, que,
para ser legítimo, precisa estar de acordo com aquela lei eterna e
imutável na qual vontade e razão são uma só - será mais cuidadoso
no que respeita a colocar o poder em mãos incapazes e vis. Na no-
meação para gabinetes, não apontará para o exercício da autoridade
como um trabalho deplorável, mas como para uma função sagrada,
não de acordo com o seu interesse egoísta e sórdido, nem de acor-
do com o seu capricho arbitrário, mas conferirá esse poder (ante o
qual qualquer homem pode com razão tremer ao dar ou ao receber)
apenas àqueles em quem possa discernir uma proporção predomi-
nante de virtude e sabedoria activas, tomadas no seu conjunto e
adequadas ao cargo, pelo menos tanto quanto se pode encontrar
na imensidão da inevitável mistura de imperfeições humanas e de
enfermidades.
~ando estiverem habitualmente convencidos de que, para
Aquele cuja essência é o bem, nenhum mal pode ser aceitável, quer
por acção, quer por omissão, estarão mais aptos a extirpar da mente
de todos os magistrados, civis, eclesiásticos ou militares, tudo o que
tiver a mínima semelhança com um poderio arrogante e sem lei.
158

Mas um dos primeiros princípios, dos mais fundamentais, ao


qual a comunidade e as leis estão consagradas é que não aconteça
que, os proprietários temporários e arrendatários vitalícios na co-
munidade, esquecidos do que receberam dos seus antepassados, ou
do que devem à sua posteridade, ajam como se fossem os donos ab-
solutos, que não se contem entre os seus direitos cortar o vínculo ou
desperdiçar a herança, destruindo a seu bel-prazer a tecitura origi-
nal da sua sociedade: arriscando-se a deixar aos que vêm depois uma
ruína em vez de uma casa- ensinando os seus sucessores a respeita-
rem as suas criações tão-pouco quanto eles próprios respeitaram as
instituições dos seus antepassados. Pela facilidade sem escrúpulos
de mudar tanto e tão frequentemente o Estado e de formas tão va-
riadas, como as há nas flutuações do gosto ou das modas, a longa
cadeia e a continuidade da comunidade serão quebradas, nenhuma
geração poderá ligar-se à outra e os homens tornar-se-ão pouco me-
lhores que as moscas de um verão.
Em primeiro lugar, a ciência da jurisprudência, orgulho do in-
telecto humano que- com todos os seus defeitos, redundâncias e er-
ros- é o acervo de razão compilado em muitas gerações, combinan-
do os princípios da justiça primordial com a variedade infinita das
preocupações humanas, jamais seria estudada, tal como uma pilha
vergonhosa de velhos erros eliminados. A auto-suficiência pessoal
e a arrogância (companheiras inseparáveis de quem nunca experi-
mentou mais que a sua própria sabedoria) usurpariam os tribunais.
Certamente, não iriam existir leis que, estabelecendo patamares in-
variáveis de esperança e temor, mantivessem os homens num certo
curso, ou os dirigissem para um determinado fim. A instabilidade
no modo de conservar a propriedade ou de exercer os cargos não
poderia fornecer um terreno sólido para qualquer pai especular so-
bre a educação dos filhos, ou sobre a escolha do seu futuro estabele-
cimento no mundo. Não haveria princípios que fossem desde cedo
inculcados nos hábitos. Assim que o mais hábil preceptor tivesse
terminado a trabalhosa tarefa da formação, em vez de poder lançar
159

para a frente o seu pupilo, educado através de uma disciplina vir-


tuosa adequada a obter para ele a atenção e o respeito ajustado ao
lugar que ele ocupa na sociedade, encontraria tudo mudado, e dar-
-se-ia conta de que ele se tornara numa pobre criatura para desprezo
e escárnio do mundo, ignorante dos verdadeiros fundamentos do
respeito. ~em poderia garantir um sentido terno e delicado da
honra que pulsasse em uníssono com as primeiras batidas do co-
ração, quando ninguém soubesse qual era a prova de honra numa
nação que constantemente mudasse o valor desta moeda? Nenhum
aspecto da vida manteria o que já adquiriu. Seguir-se-ia infalivel-
mente a barbárie no que dissesse respeito à ciência e à literatura,
inexperiência no que respeitasse às artes e manufacturas, na falta de
uma educação firme e princípios estáveis, assim, a própria comuni-
dade em algumas gerações desagregar-se-ia, seria desfeita em pó, na
poeira da individualidade, e por fim dispersa aos sete ventos.

Portanto, para evitar os males da inconstância e da versatilida-


de, dez mil vezes piores que os da obstinação e do mais cego precon-
ceito, nós consagramos o Estado, que nenhum homem se aproxime
para observar os seus defeitos ou corrupções senão com o devido
cuidado, que nunca ninguém pense começar a sua reforma subver-
tendo-o, que se aproximem das faltas do Estado como das feridas de
um pai, com piedosa reverência e trémula solicitude. Através deste
preconceito sábio somos ensinados a olhar com horror para aque-
les filhos do vosso país que estão prontos para, precipitadamente,
cortar o pai idoso em pedaços e pô-lo na caldeira dos mágicos, com
esperanças que pelos seus sucos venenosos e encantamentos bárba-
ros possam regenerar a constituição paterna e renovar a vida do pai.

A Sociedade é de facto um contrato. Os contratos subordi-


nados que dizem respeito a meros interesses ocasionais podem ser
dissolvidos à vontade, mas o Estado 144 não pode ser visto como um
,..., N.T. Burke faz aqui uma identificação entre Sociedade e Estado, neste ponto,
como em muiws outros aspecws da sua doutrina sobre o ContratO Social, ele está pró·
ximo de Francisco Suárez- amor que conhece e que cita- para quem a distinção entre
160

acordo de comércio de pimenta e café, chita ou tabaco, ou outro


qualquer interesse menor, instaurado para satisfazer uma neces-
sidade do momento e dissolvido a gosto pelas partes. O Estado é
para ser olhado com outra reverência, porque não é uma parceria
em coisas que servem apenas a existência animal grosseira, de uma
natureza temporária e precária. O Estado é uma parceria em toda
a ciência, em toda a arte, uma parceria em toda a virtude e em toda a
perfeição. Como os fins de uma tal parceria não podem ser obtidos
em muitas gerações, torna-se uma parceria não apenas entre aqueles
que estão vivos, mas entre os que estão vivos, os que estão mortos
e os que estão para nascer. Cada contrato de cada Estado particu-
lar é apenas uma cláusula do grande contrato primevo da sociedade
eterna, ligando as naturezas inferiores às superiores, fazendo co-
municar o mundo visível com o invisível, de acordo com um pacto
firmado sancionado pelo inviolável juramento que mantém todas
as naturezas físicas e morais no seu devido lugar. Esta lei não está
sujeita à vontade daqueles que, por um dever que os sobrepuja, in-
finitamente superior, estão sujeitos a submeter a sua vontade a essa
lei. As corporações municipais desse reino universal não são moral-
mente livres de, segundo o seu prazer, nas suas especulações sobre
um melhoramento contingente, afastar completamente e romper
os laços que unem as comunidades que lhes estão subordinadas, e
de as dissolver num caos de princípios elementares anti-social, não-
-cívico, desagregado. É apenas a primeira e a suprema necessidade,
uma necessidade que não é escolhida, mas que escolhe, uma neces-
sidade superior à deliberação, que não admite discussão e que não
requer provas, a única que pode justificar o recurso à anarquia. Esta
necessidade não é uma excepção à regra, porque esta mesma neces-

sociedade organizada e Esrado é, num cerro sentido do rermo Esrado, uma disrinção fe ira
absrracramente, para comodidade de rraramento do rema, m as que na realidade não acon-
rece, um a vez que a caracre rização da sociedade como corpo polírico é impossível sem o
Esrado. E só um corpo polírico organ izado pode derer o poder. Ourra coisa será quando se
fala de Esrado como os ó rgãos de poder supremo, onde já não faz sentido a identificação.
Cf. De Legibus Ill,Ill, §§ 5-6.
161

sidade é também ela parte daquele arranjo moral e físico das coisas
ao qual o homem deve ser obediente, ou por consentimento ou à
força: mas, se aquilo que é apenas a submissão à necessidade for fei-
to objecto de escolha, a lei está quebrada, a Natureza foi desobede-
cida e os rebeldes são banidos, expulsos e exilados, deste mundo de
razão, e ordem, e paz, e virtude, e frutuoso sacrifício, para o mundo
antagonista da loucura, da discórdia, do vício e da confusão e de
vão pesar.
Estes, meu caro Senhor, são, eram, e penso que serão por mui-
to tempo, os sentimentos da grande parte da geme mais instruída e
mais sensata deste país. O s que se incluem nesta categoria formam
as suas convicções segundo os princípios que os devem guiar. Os
menos curiosos recebem estes princípios da sua autoridade, o que
não envergonha aqueles a quem a Providência destinou a viver sob
tutela. Estes dois tipos de homens movem-se na mesma direcção,
embora em lugares diferences. Ambos se movem no sentido da or-
dem do universo. Todos eles ou sabem ou sentem esta grande ver-
dade amiga: - "Quod i/li principi et proepotenti Deo quiomnem h une
mundum regit nihil eorum quoe quidemjiant in terris acceptius quam
concilia et coetus hominum jure sociati quae civitates appellantur.'~ 45
Recebem esta regra da cabeça e do coração, não do grande conceito
que ela imediatamente evoca, nem do conceito maior de quem este
deriva, mas apenas por aquilo que por si só pode dar verdadeiro
peso e sancionar qualquer opinião esclarecida: a natureza comum
dos homens e a sua relação comum. Convencidos de que todas as
coisas devem ser feitas com referência a, e remetendo para, o pon-
to de referência para onde tudo deveria estar dirigido, eles julgam-
-se comprometidos, não apenas como indivíduos no santuário do
coração, ou como congregados nesta capacidade pessoal, a renovar

" 1 N. T. "Porque nada daquilo que aconteça na terra é mais agradável àquele pri·
meiro e poderosíssimo Deus, que governa rodo este mundo, do que os conselhos e as
assembleias dos homen s reu nidos pelo direiro, aos qu ais chamamos cidades". Cic. Rep.
6. 13.
162

a memória da sua origem excelsa e casta, mas também enquanto


corporação a prestar homenagem ao Fundador, Autor e Protector
da sociedade civil, sem a qual o homem não poderia chegar à per-
feição de que a sua natureza é capaz, nem mesmo fazer uma páli-
da e remota aproximação a essa perfeição. Emendem que Ele, que
nos deu a nossa natureza para ser aperfeiçoada pela nossa virtude,
determinou também os meios necessários para a sua perfeição: Ele
concebeu, por conseguinte, o Estado e quis a sua conexão com a
fonte e o arquétipo original de toda a perfeição. Aqueles que estão
convencidos de que esta é a Sua vontade, que é lei das leis e soberana
dos soberanos, não podem julgar repreensível que esta nossa fideli-
dade e homenagem corporativa, que este nosso reconhecimento de
um elevado senhorio, quase diria esta oblação do próprio Estado
como uma oferta digna no altar excelso do louvor universal, deva
ser desempenhado, como todos os actos solenes e públicos são de-
sempenhados, em edifícios, em música, em decoração, em discurso,
na dignidade das pessoas, de acordo com os costumes dos homens,
ensinados pela sua natureza - quer dizer, com modesto esplendor,
com discreto status, com leve majestosidade e sóbria pompa. Para
estes fins o povo pensa que uma parte da riqueza do país é tão bem
empregue quanto o é ao fomentar o luxo de personalidades. É um
ornamento público. Uma consolação pública. Alimenta as esperan-
ças do povo: os mais pobres encontram nisso a sua própria impor-
tância e dignidade, enquanto a riqueza e o orgulho dos indivíduos,
fazem sentir constantemente aos de mais humilde condição, a sua
inferioridade e degradam e aviltam a sua condição. É para o homem
de vida humilde, e para elevar a sua natureza- para pôr na sua men-
te a ideia de um Estado no qual os privilégios da opulência hão-de
acabar, quando ele for igual por natureza e pode, por virtude, ser
mais que igual - que esta porção da riqueza geral do seu país é em-
pregue e consagrada.
Asseguro-lhe que não pretendo ser único. Transmito-lhe con-
vicções que têm sido aceites entre nós - desde os primórdios até
163

ao presente - com uma concordância geral e permanente, e de que


a minha mente está tão deveras imbuída que sou incapaz de dis-
tinguir o que aprendi de outros do que resultou da minha própria
reflexão.

É com base em alguns princípios idênticos que a maioria do


povo inglês, em vez de pensar a religião nacional como ilegítima, di-
ficilmente concebem ser legítimo não ter tal instituição. Em Fran-
ça, estais completamente enganados se pensais que não estamos
sobremaneira ligados a ela e muito mais que todas as outras nações,
e quando este povo actuou injustificada e imprudentemente a seu
favor (como, certamente, o fizeram em algumas ocasiões) nos seus
próprios erros descobrireis, pelo menos, o seu zelo.

Este princípio percorre todo o sistema da sua política. O nosso


povo não considera a sua Igreja apenas conveniente, mas considera-a
essencial para o seu Estado: não como uma coisa heterogénea e
separável- algo adicionado para acomodação - que se pode manter
ou dei.xar de lado, de acordo com as conveniências. Considera-a os
alicerces de toda a sua Constituição, com a qual, e com cada uma
das suas partes, a Igreja mantém uma indissolúvel união. Igreja e
Estado são ideias inseparáveis na sua mente, e dificilmente uma
é mencionada sem se mencionar o outro.

A nossa educação está formada de molde a confirmar e a gra-


var esta impressão. um certo sentido, ela está completamente na
mão dos eclesiásticos, isto em todas as etapas, da infância à idade
adulta. Mesmo quando a nossa juventude, deixando as escolas e as
universidades, entra nesse tão importante período da vida que co-
meça por ligar a experiência ao estudo, e quando, com vista a isso,
visita outros países, em vez de levar consigo um velho criado, que
já se têm visto como tutores de homens importantes de outros lu-
gares, três quartos dos que vão para o estrangeiro acompanhando a
nossa jovem nobreza e os nossos cavalheiros são eclesiásticos: não
como senhores austeros, não como meros acompanhantes, mas
164

como amigos e companheiros mais responsáveis e, não raramente,


pessoas tão bem nascidas quanto eles. Muitos ficam a relacionar-se
com eles ao longo da vida, como se fossem família. Através destas
ligações pretende-se afeiçoar os nossos Pares à Igreja, e tornamos a
Igreja liberal, por manter um relacionamento com as personalida-
des que lideram o nosso país.
Somos tão obstinados em que se mantenha nos velhos mol-
des esta instituição que muito pouca alteração foi feita neles desde
o século XIV ou XV: aderindo, neste aspecto particular, como em
tudo o resto, à nossa velha máxima: nunca nos separarmos comple-
tamente nem de repente do que é antigo. Julgámos que estas antigas
instituições são, no seu todo, favoráveis à moralidade e à disciplina,
e pensámos que elas eram susceptíveis de serem melhoradas, sem
se alterarem os seus fundamentos. Pensámos que elas eram capazes
de acolher e melhorar, e acima de tudo preservar, as realizações da
ciência e da literatura, à medida que a ordem da Providência as fosse
produzindo. Ao fim e ao cabo, com esta educação gótica e monás-
tica, (porque ela é assim no seu fundamento), pudemos reivindi-
car uma partilha tão ampla quanto precoce em rodos os progressos
da ciência, das artes e da literatura, que iluminaram e adornaram o
mundo moderno, tanto quanto qualquer outra nação da Europa:
pensamos que uma das causas principais deste progresso foi o não
termos desprezado o património de conhecimento que nos foi lega-
do pelos nossos antepassados.
É por causa da nossa ligação a uma instituição eclesiástica que
a nação Inglesa não julga prudente confiar esse grande interesse fun-
damental do rodo a quem não confia nem uma parte do seu serviço
público, civil ou militar - isto é, à instável e precária contribuição
dos indivíduos. E vai mais longe. A nação inglesa certamente nunca
suportou , nem nunca suportará, ver convertida a propriedade per-
manente da Igreja numa pensão, dependente do Tesouro, a ser adia-
da, retida, ou talvez extinta por dificuldades fiscai s: dificuldades
165

que podem por vezes ser fictícias, para atingir fins políticos, e são de
facto frequentemente provocadas pela extravagância, a negligência
e a ganância dos políticos. O povo inglês pensa que tem motivos
constitucionais, bem como religiosos, contra qualquer projecto de
converter o seu clero independente em pensionistas eclesiásticos do
Estado. Tremem pela sua liberdade, sob a influência de um clero de-
pendente da coroa, tremem pela tranquilidade pública, pela desor-
dem de ter um clero faccioso, se ele tivesse de depender de outrem
sem ser a coroa. Por essa razão o povo inglês tornou a sua Igreja- tal
como o seu rei e a sua nobreza - independente.

Da consideração conjunta da religião e da política constitu-


cional, da sua convicção do dever de garantir uma provisão certa
para consolo dos fracos e instrução dos ignorantes, o povo inglês
incorporou e identificou a propriedade da Igreja com a massa da
propriedade privada, da qual o Estado não é o proprietário, nem
para o uso, nem para domínio, mas apenas o guardião e o regulador.
O povo inglês ordenou que a provisão desta instituição fosse tão
estável quanto o solo sobre o qual assenta, e que não devesse flutuar
com o Eu ripus dos fundos e das acções.

O s homens de Inglaterra - quero eu dizer os homens que são


líderes esclarecidos de Inglaterra- cuja sabedoria (se têm alguma) é
aberta e directa, ficariam envergonhados, como de uma fraude idio-
ta, de professar de nome uma religião, que pelos seus actos pareces-
sem condenar. Se pela sua conduta (a única linguagem que rara-
mente mente) parecerem considerar o grande princípio regulador
do mundo moral e do mundo natural como uma mera invenção
para manter o vulgo em obediência, temem que, com essa conduta,
destruam o propósito político que têm em vista. Acham difícil fazer
outros acreditar num sistema ao qual, eles próprios, manifestamen-
te, não dão crédito. O estadista cristão desta terra teria de facto,
ames de mais, provido à multidão, porque é a multidão, e é, portan-
tO, nessa qualidade, o primeiro objectivo da instituição eclesiástica,
166

e de todas as instituições. Foram ensinados que a circunstância de


o Evangelho ser pregado aos pobres era um dos grandes testes da
sua verdadeira missão. Pensam, portanto, que não acreditam nele,
aqueles que não cuidam de que ele seja pregado aos pobres. Mas
como sabem que a caridade não está confinada a nenhum grupo
particular, mas que deve aplicar-se a todos os homens que têm ne-
cessidades, não estão desprovidos da devida sensação de comisera-
ção preocupada com as infelicidades dos grandes. Não se coíbem,
por uma delicadeza enfastiada ao -.:heiro da sua arrogância e presun-
ção, de prestarem cuidados médicos aos seus furúnculos espirituais
e às suas feridas supuradas. São sensíveis a que a instrução religiosa é
mais importante para estes do que para quaisquer outros: por causa
da enorme tentação a que estão expostos, por causa das consequên-
cias importantes que têm as suas faltas, por causa do contágio do
seu mau exemplo, por causa da necessidade de dobrarem o pescoço
altivo do seu orgulho e ambição ao jugo da moderação e da virtu-
de, por causa de terem em conta a grande estupidez e a ignorância
grosseira no que concerne ao que mais importa aos homens saber,
aquilo que prevalece nos tribunais, à frente dos exércitos, nos sena-
dos, bem como ao tear ou no campo.

O povo inglês está satisfeito que para os grandes as consolações


da religião sejam tão necessárias quanto as suas instruções. Também
eles estão entre os infelizes. Sentem dores pessoais e sofrimento par-
ticular. Nisto não têm privilégios e estão igualmente sujeitos a pa-
gar por inteiro os impostos da sua condição mortal. Estando menos
familiarizados com as necessidades limitadas da vida animal, pre-
cisam deste excelso bálsamo sobre os cuidados e ansiedades que os
corroem, que proliferam, diversificadas por combinações infinitas
oriundas das regiões selvagens de uma imaginação descontrolada.
Falta alguma dádiva caridosa para os nossos, frequentemente muito
infelizes, irmãos, para preencher o vazio de breu que reina em almas
que não têm na terra nada a esperar ou a temer, alguma coisa para
aliviar no meio da languidez mortífera e lassidão muito elaborada
167

daqueles que nada têm para fazer, algo que excite o apetite de exis-
tir na enfastiada saciedade que os espera nos prazeres que podem
comprar-se, onde não se deixa agir a Natureza, onde mesmo o dese-
jo é antecipado e, por isso mesmo, o seu gozo é frustrado por esque-
mas meditados e prazeres inventados, e nenhum intervalo, nenhum
obstáculo, se interpõe entre o desejo e a sua realização.
O povo de Inglaterra sabe quão pouca influência os professo-
res de religião provavelmente têm nos ricos e nos poderosos que há
muito o são e, muito menos ainda, com os novos-ricos, sobretudo
se aparecem de uma maneira que não combina com aqueles com
quem eles precisam associar-se, e sobre os quais precisam mesmo de
exercer, em alguns casos, algo parecido com autoridade. O que de-
vem eles pensar de este corpo de professores, se não os olham como
mais do que criados? Se a sua pobreza fosse voluntária, poderia ha-
ver uma diferença. Pessoas com forte capacidade de auto-renúncia
actuam poderosamente sobre o nosso espírito, um homem que não
rem necessidades alcançou uma grande liberdade e firmeza , e mes-
mo dignidade. Mas como um qualquer conjunto de homens são
apenas homens e a sua pobreza não pode ser voluntária, o desrespei-
to que atinge roda a pobreza laica não será diferente do que atinge
a pobreza eclesiástica. A nossa constituição, providente, tomou por
isso conta daqueles que devem ensinar a ignorâncias presunçosas.
Aqueles que devem ser os críticos do vício insolente, nunca devem
ser desprezados pelos viciosos ou viver das suas esmolas, nem a sua
pobreza remará os ricos a pomo de negligenciarem a verdadeira
cura das suas almas. Por estas razões, cuidando antes de tudo dos
pobres com uma solicitude de pais, não relegámos a religião (como
algo que tivéssemos vergonha de mostrar) para vilas obscuras ou
aldeias rústicas. Não! Temo-la, para exaltar a fronte com mitra na
corte e nos parlamentos. Temo-la misturada na maioria dos assun-
tos da nossa vida, e combinada com rodas as classes sociais. O povo
inglês mostrará aos grandes potentados do mundo, e aos seus sofis-
tas retóricos, que uma nação livre, generosa e informada honra os
168

altos magistrados da sua Igreja, que ela não tolera que a insolência
da riqueza e dos títulos, ou qualquer outra espécie de pretensão or-
gulhosa, olhe de cima com desprezo para quem deveria olhar com
reverência, nem presuma que pode maltratar aquela nobreza pessoal
adquirida que sempre se julga ser, e que frequentemente é, o fruto,
não a recompensa (porque o que é que pode ser a recompensa? ) do
conhecimento, da piedade e da vi rtude. O povo inglês pode ver,
sem qualquer pena ou protesto um arcebispo preceder um duque.
Pode ver o Bispo de Durham O'J o Bispo de Winchester na posse
de dez mil libras anuais, e não consegue conceber porque have-
-riam de estar em piores mãos do que propriedades de igual valor
nas mãos de um Conde ou de um fidalgo, embora possa ser verdade
que os bispos não mantêm tantos cavalos e tantos cães alimentados
com as vitualhas que serviriam para alimentar os filhos do povo.
É verdade que a totalidade do rendimento da Igreja nem sempre é
empregue, até ao cêntimo, em caridade, nem talvez devesse ser, mas
uma parte é, geralmente, empregue assim. É bem melhor partilhar
a virtude e a humanidade, deixando muito à livre iniciativa, mesmo
que seja com alguma perda de eficácia, que tentar fazer dos homens
meras máquinas e instrumentos de benevolência política. O mun-
do no seu todo ganhará com a liberdade sem a qual, a própria virtu-
de, não poderá existir.
~ando em tempos a comunidade inglesa estabeleceu os bens
da Igreja como sua propriedade, deixou, em coerência, de poder fa-
lar acerca do demais ou de menos. Demasiado ou demasiado pouco
são traições em relação à propriedade. ~e mal pode advir de de-
masiada propriedade na mão seja de quem for, enquanto a autori-
dade suprema tem a total superintendência sobre esta, como sobre
qualquer outra propriedade, para prevenir toda a espécie de abuso
e, sempre que claramente se desvie, dar-lhe a direcção adequada aos
propósitos da sua instituição?
169

Em Inglaterra muitos de nós pensam que é inveja e maldade


em relação àqueles que são muitas vezes os próprios a começar a
constituir a sua fortuna, e não um amor da renúncia e da mortifi-
cação da Igreja primitiva, que faz que alguns olhem de soslaio para
as distinções, honras e rendimentos que, sem terem sido retirados
a ninguém, são postos de lado para a virtude. O ouvido do povo
inglês sabe distinguir. Ele ouve estes homens falarem abertamente
e a sua língua trai-os. A sua linguagem é o patois da fraude, a lenga-
-lenga da hipocrisia. O povo inglês deve pensar isso mesmo, quan-
do estes tagarelas fingem estar a reconduzir o clero à sua primitiva
e angélica pobreza, pobreza que, em espírito, deve sempre existir
neles, (e em nós também, mesmo que não nos agrade), mas que na
realidade deve variar, quando se mudou a relação entre a Igreja e o
Estado - quando as maneiras, os modos de vida e, em verdade, toda
a ordem de interação entre os homens sofreu uma revolução total.
Acreditaremos que estes reformadores são honestos entusiastas da
pobreza, não como agora, que os julgamos vigaristas e trapaceiros,
quando os virmos a eles porem os seus próprios bens em comum e a
submeterem-se a si mesmos à disciplina austera da Igreja primitiva.

Com estas ideias enraizadas no seu espírito, os Comuns da


Grã-Bretanha, nas emergências nacionais, nunca procurarão recur-
sos na confiscação dos bens da Igreja e dos pobres. O sacrilégio e a
proscrição não se encontram entre as soluções e os meios da Co-
missão de Abastecimento. Os judeus em Change Alley ainda não se
atreveram a aludir às suas esperanças de hipotecar os rendimentos
que pertencem à diocese de Canterbury. Não temo vir a ser des-
mentido quando lhe asseguro que não há um só homem com cargos
públicos neste país, a quem o Senhor queira citar, não, nem um, seja
de que partido ou de que grupo for, que não reprove a confiscação
desonesta, pérfida e cruel que a Assembleia Nacional foi forçada a
fazer da propriedade que era o seu primeiro dever proteger.
170

É com a exultação de um orgulhozinho nacional que lhe digo que


aqueles de entre nós que quiseram brindar às sociedades de Paris
com a taça das suas abominações, ficaram desapontados. O roubo
à vossa Igreja tornou-se uma segurança para os bens da nossa. Le-
vantou o povo. Ele vê com horror, alarmado, este acto enorme e
desavergonhado de proscrição. Isto abriu e abrirá cada vez mais os
seus olhos para o agravamento do espírito egoísta e a estreita libera-
lidade de sentimentos de homens insidiosos que, começando com
hipocrisia e fraude, às escondidas, acabaram abertamente em vio-
lência e rapina. Entre nós observámos idênticos começos. Estamos
vigilantes contra idênticas conclusões.
Espero que nós nunca percamos completamente o sentido do
dever que nos impõe a lei da união da sociedade a ponto de, sob
o pretexto de serviço público, confiscar os bens de um só cidadão
inofensivo. ~em senão um tirano (um nome que expressa tudo
quanto pode viciar e degradar a natureza humana) pode pensar em
confiscar a propriedade de homens, que não foram acusados, não
foram ouvidos, não foram julgados, em todas as classes, às centenas
e aos milhares por junto? ~em , senão quem perdeu todo o traço
de humanidade, poderia pensar em rebaixar homens de classe ele-
vada e com funções sagradas, alguns deles de uma idade capaz de
suscitar ao mesmo tempo reverência e compaixão, em os derrubar
da sua elevada posição na sociedade, na qual se mantinham graças
ao facto de possuírem terras, para um estado de indigência, desâni-
mo e desprezo?
O s confiscadores em verdade fizeram algumas concessões às
suas vítimas dos restos e das migalhas da sua própria mesa- da qual
foram tão cruelmente arrancados -que têm sido tão generosamen-
te espalhados para o festim das harpias da usura. Mas levar homens
independentes a viver de esmolas é, por si só, uma grande cruelda-
de. Aquilo que pode ser uma condição tolerável para homens numa
determinada situação na vida, e que nunca foram habituados a
171

outras coisas, pode, quando as circunstâncias são diferentes, ser uma


horrível revolução, a cuja condição qualquer alma virtuosa sentiria
pena de condenar alguém por qualquer crime, excepto crime que
requeresse a vida do criminoso. Para muitas almas este castigo de
degradação e infomia é pior que a morte. É, indubitavelmente, um
enorme agravamento deste sofrimento cruel, que as pessoas que
foram ensinadas a ter redobrada reverência em relação à religião,
por educação e pelo lugar que ocupavam na administração das suas
funções, tenham de receber as sobras das suas propriedades como
esmolas, das mãos profanas e ímpias daqueles que os roubaram de
tudo o resto - receber (se é que vão chegar a receber) não das ca-
ridosas contribuições dos fiéis, mas da delicadeza insolente de um
ateísmo reconhecido e confessado, a manutenção da religião, medi-
da pelo padrão de desprezo em que esta é tida, e com o propósito de
tornarem aqueles que recebem a pensão vis e desprezíveis aos olhos
da humanidade.
Mas este acto de arresto de propriedade parece ser uma sen-
tença legal e não uma confiscação. Parece que eles descobriram nas
academias do Palais Royal e dos jacobinos, que alguns homens não
tinham direito aos bens que possuíam legalmente, que usavam, que
foram objecto de decisão dos tribunais e de prescrição aquisitiva
cumulativa de mil anos. Dizem que os eclesiásticos são pessoas fic-
tícias, criaturas do Estado, que eles podem destruir como lhes apraz
e, certamente, limitar e modificar em todos os aspectos, que os bens
que eles possuem não são propriamente seus, mas pertencem ao Es-
tado que criou a ficção, e nós, portanto, não devemos preocupar-
-nos com o que eles possam sofrer, nos seus sentimentos e nas suas
pessoas naturais, por causa daquilo que lhes é feito nesta sua pessoa
fictícia. ~e importância tem a que título se injuriam os homens, e
se privam da justa retribuição de uma profissão na qual eles não são
apenas autorizados mas são encorajados pelo Estado a envolver-se,
que planearam as suas vidas contando com a certeza dessa retribui-
172

ção, contraíram dívidas e levaram multidões a uma total dependên-


cia dela?
Não imagine o Senhor que eu vou prestar tributo a esta mise-
rável discriminação de pessoas com uma longa discussão. Os argu-
mentos da tirania são tão censuráveis quanto a sua força é terrível.
Não obtiveram os vossos confiscadores com os seus crimes iniciais
um poder que lhes assegura a imunidade de todos os crimes de que ,
desde então, têm sido culpados ou que poderão vir a cometer? Não
era o silogismo do lógico, mas o chicote do carrasco, que teria refu-
tado a sofística que se tornou cúmplice do roubo e do assassínio. Os
tiranos sofistas de Paris clamam bem alto contra os falecidos tiranos
reais que em tempos passados oprimiram o mundo. Atrevem-se as-
sim, porque estão a salvo das masmorras e das gaiolas de ferro dos
seus antigos senhores. Seremos nós mais brandos com os tiranos
do nosso tempo, quando os vemos desempenhar as piores tragédias
ante os nossos olhos? Não usaremos nós da mesma liberdade que
eles usam, quando a podemos usar com a mesma segurança, quando
falar verdade apenas nos custa que desprezemos as opiniões daque-
les cujas acções abominamos?
Este ultraje a todos os direitos de propriedade estava primeiro
encoberto com o que, no sistema da sua conduta, era o pretexto
mais espantoso de todos- uma preocupação com a lealdade à nação.
Os inimigos da propriedade primeiro fingiram a ansiedade mais ter-
na, delicada e escrupulosa em manter os compromissos do rei com
o credor público. Estes professores dos direitos do homem estão tão
ocupados em ensinar os outros, que não têm tido vagar para apren-
der eles próprios, de outro modo teriam sabido que é em relação à
propriedade do cidadão, e não às exigências do credor do Estado,
que é penhorada a lealdade primária e original da sociedade civil.
A propriedade dos cidadãos é prioritária no tempo, primordial por
direito, e superior em equidade. As fortunas dos indivíduos, quer
tenham sido adquiridas, quer tenham sido herdadas, ou obtidas em
virtude da participação nos bens de uma determinada comunidade,
173

não eram parte da segurança do credor, nem explícita nem implici-


tamente. Nem ele as tinha em mente quando fez a transação. Sabia
muito bem que o público, quer representado por um monarca quer
por um senado, não pode penhorar nada a não ser os bens públicos,
e não pode ter bens públicos, excepto naquilo que deriva de um im-
posto justo e proporcional sobre os cidadãos em geral. Apenas isto
estava empenhado ao credor público e nada mais. Nenhum homem
pode hipotecar a sua injustiça como penhor da sua fidelidade.
É impossível evitar algumas observações às contradições que
influenciaram este contrato, causadas pelo extremo rigor e o extre-
mo laxismo desta nova garantia pública, e que influenciaram não
de acordo com a natureza da obrigação mas em função do grupo
de pessoas com quem se relacionava. Nenhuns actos do antigo go-
verno dos reis de França foram considerados válidos pela Assem-
bleia Nacional, excepto os seus compromissos pecuniários: actos
que, entre todos os outros, eram os de legalidade mais ambígua.
O resto dos actos desse governo real foram vistos sob uma luz tão
odiosa que ter direitos ao abrigo da sua autoridade é olhado como
uma espécie de crime. Uma pensão, dada a título de recompensa
por serviços ao Estado é, seguramente, um fundamento tão bom
de propriedade como qualquer título por dinheiro emprestado ao
Estado. É ainda melhor, porque é pago, e bem pago, para se obte-
rem estes serviços. Vimos, contudo, multidões em França a quem
isto se aplica, que nunca tinham sido privados das suas pensões pe-
los ministros mais arbitrários nos períodos mais arbitrários, que por
esta assembleia dos direitos do homem foram roubados sem pie-
dade. Tem-lhes sido dito, em resposta ao seu pedido do pão ganho
com o seu sangue, que os seus serviços não foram prestados à nação
que agora existe.
Esta negligência em relação à confiança do povo não está con-
finada a estas infelizes pessoas. A Assembleia, com perfeita consis-
tência, deve dizer-se, está empenhada numa respeitável deliberação
para saber até onde está obrigada a cumprir tratados com outras
174

nações celebrados no anterior governo e este comité deve reportar


quais deles devem ser ratificados e quais não. Por este processo puse-
ram a fidelidade externa do seu Estado virgem a par com a interna.
Não é fácil conceber sob que princípio racional o governo real
não deveria, dos dois, possuir antes o poder de recompensar serviços
e fazer tratados, em virtude da sua prerrogativa, do que o poder de
penhorar a credores o rendimento do Estado, o efectivo e o prová-
vel. O tesouro da nação foi, de todas as coisas, aquela que menos se
permitiu que fosse prerrogativa do rei de França ou prerrogativa de
qualquer rei da Europa. Hipotecar o rendimento público implica
o domínio soberano, em sentido pleno, sobre a bolsa do povo. Vai
muito além da ousadia de lançar um imposto mesmo temporário e
ocasional. Contudo, os actos deste poder perigoso (a marca distin-
tiva de um despotismo sem limites) foram os únicos considerados
sagrados. De onde surgiu esta preferência dada por uma assembleia
democrática a um conjunto de propriedades derivando o seu direi-
to do mais crítico e detestável de todos os exercícios da autoridade
monárquica? A razão não pode dar argumentos que conciliem a
inconsistência, nem pode um favorecimento faccioso ser tido em
conta sob a tutela de princípios justos. Mas a contradição e a par-
cialidade que não admite justificação não deixa de ter uma causa
justificada, e essa causa não me parece difícil de descobrir.
Por causa da grande dívida da França um enorme interesse
monetário foi crescendo insensivelmente, e com ele um grande po-
der. Por causa dos costumes antigos que prevalecem naquele reino,
a circulação geral da propriedade, e em particular a convertibilidade
mútua de terra em dinheiro e de dinheiro em terra, foi sempre um
assunto difícil. O s domínios familiares, bastante mais generalizados
e mais fechados do que são em Inglaterra, o jus retractusw', a grande

46
' 1 .T. O j us retraaus é o princípio jurídico pelo qual alguém poderia, com-

pulsoriamente. readquirir bens alienados que anterio rmente tinham pertencido aos seus
domínios.
175

massa da propriedade da terra é posse da coroa e, por uma máxima


da lei francesa, é posse inalienável, as vastas propriedades das cor-
porações eclesiásticas, tudo isto manteve os interesses da terra e do
capital mais separados em França, menos misturáveis, e os donos
das duas diferentes espécies de propriedade não tão cordatos uns
com os outros como o são neste país.
A propriedade do capital foi, durante muito tempo, vista com
maus olhos pelo povo. Este via-a relacionada com as suas dificulda-
des, e como agravante delas. Não era menos invejada pelos antigos
interesses do latifúndio - em parte pelas mesmas razões que a tor-
navam odiosa para o povo- mas mais ainda porque ela eclipsava,
pelo esplendor ostensivo do luxo, as linhagens de não dotados e os
títulos destituídos de alguma nobreza. Mesmo quando a nobreza,
que representa de modo mais permanente o interesse fundiário, se
uniu pelo casamento (o que era muitas vezes o caso) com a outra
classe, a riqueza, que salvava a família da ruína, supostamente con-
taminava-a e degradava-a. Assim, a inimizade e a mágoa entre estas
duas classes aumentava mesmo à custa dos meios pelos quais habi-
tualmente cessa a discórdia e as querelas se convertem em amizade.
Entretanto, por isso mesmo, o orgulho dos ricos, não nobres ou de
nobreza recente, aumentava. Ressentiam-se de uma inferioridade
cujo fundamento não reconheciam. Não havia medida que não se
dispusessem a adoptar para se vingarem dos ultrajes deste outro or-
gulho rival e para exaltarem a sua riqueza ao que eles consideravam
ser o seu próprio nível. Combatiam a nobreza através da coroa e da
Igreja. Atacavam-na particularmente pelo lado em que a julgavam
mais vulnerável - isto é, os bens da Igreja que, através da protecção
da coroa, eram entregues à nobreza. Os episcopados e as grandes
abadias comendatórias eram, com poucas excepções, ocupadas por
esta classe.
este ~stado de verdadeira guerra, embora nem sempre visí-
vel, entre os interesses da nobreza antiga com terras e os novos inte-
176

resses do capital, a maior força, porque a mais aplicável, estava nas


mãos destes últimos. O capital está, pela sua natureza, mais apto
para qualquer aventura, e os que o detêm mais dispostos a novos
empreendimentos seja de que tipo for. Sendo de recente aquisição,
cede mais facilmente às novidades. É por isso o tipo de riqueza a
que recorrerão aqueles que aspiram à mudança.
Juntamente com o capital, cresceu também um novo tipo de
homens, com os quais o capital cedo formou uma união estreita
e marcante: refiro-me aos políticos letrados. O s homens de letras,
a quem agradam as distinções, raramente são adversos à inovação.
Desde o declínio da vida e do fausto de Luís XIV, que não se tinha
muito o seu culto, quer por ele, quer pelo Regente 147 , quer pelos
sucessores da coroa, nem eram tão sistematicamente empregues na
corte por meio de favores e emolumentos como durante o esplên-
dido período daquele reinado faustoso e político. O que perderam
da protecção da antiga corte esforçaram-se por conseguir juntando-
-se numa espécie de corporação constituída apenas por eles, para a
qual contribuíram bastante as duas academias de França e depois o
grande empreendimento da Enciclopédia, levada a cabo por uma
sociedade destes senhores.
A cabala literária há alguns anos que concebeu algo semelhan-
te a um plano regular para a destruição da religião cristã. Persegui-
ram este objectivo com um grau de zelo que até aqui apenas se tinha
encontrado nos que propagavam algum sistema de piedade. Esta-
vam possuídos por um espírito de proselitismo no seu grau mais
fanático e, desde aí, progredindo facilmente, com um espírito de
perseguição de acordo com os seus meios 148 • O que não se pudesse

"- N .T. Philippe II d'Orléans, que fo i Prínci pe Rege nte desde 17 15 até à sua
mo rte em 1723.
148
• Nota do auto r: Isto (até ao fim da primeira frase do próx imo parágrafo) e

algumas outras partes, aqu i e ali, fora m inseridas pelo meu fal ecido filh o aquando da sua
leitura do man uscri to .
177

fazer, tendo em vista o seu grande objectivo, directa ou imediata-


mente, podia ser trabalhado através de um longo processo por meio
da opinião. Para manipular a opinião, o primeiro passo é estabele-
cer o domínio sobre aqueles que a controlam. Esforçaram-se por
se apoderarem de todos os caminhos para a fama literária. Muitos
deles, de facto, chegaram aos mais altos níveis da literatura e da
ciência. O mundo fez-lhes justiça, e à conta do seu talento em geral,
perdoou-lhes a tendência perversa dos seus princípios peculiares.
Isto foi verdadeira liberalidade, que eles retribuíram esforçando-se
por confinar a reputação de bom-senso, cultura e gosto a si mesmos
e àqueles que os seguiram. Atrevo-me a dizer que este espírito li-
mitado e exclusivo não foi menos prejudicial à literatura e ao gosto
do que o foi à moral e à verdadeira filosofia. Estes pais do ateísmo
têm um fanatismo que lhes é próprio, e aprenderam a falar contra
os monges com o espírito de um monge. Mas em algumas coisas são
homens do mundo. O recurso à intriga é chamado para suprir os
defeitos de argumentação e de talento. A este sistema de monopólio
literário juntou-se um constante empenho em denegrir e desacredi-
tar, em todos os aspectos e por todos os meios, todos aqueles que
não apoiam a sua facção. Para aqueles que têm observado o espírito
da sua conduta há muito que ficou claro que não queriam outra
coisa senão poder passar da intolerância da língua e da pena à perse-
guição que atacasse a propriedade, a liberdade e a vida.
A perseguição desconexa e fraca movida contra eles - mais por
condescendência com a forma e com a decência do que por ressen-
timento sério- nem enfraqueceu a sua força nem abrandou os seus
esforços. O problema disto tudo foi que com oposição e com suces-
so, um zelo violento e pérfido, de um tipo até agora desconhecido
no mundo, tomou completamente conta das suas mentes e tornou
toda a sua conversa, que de outro modo teria sido agradável e ins-
trutiva, absolutamente repugnante. Um espírito faccioso de intriga
e proselitismo impregnava todos os seus pensamentos, palavras e
acções. E como o zelo controverso em breve converteu os seus pen-
178

samentos em força, começaram a insinuar-se numa correspondên-


cia com príncipes estrangeiros, com esperanças de que através da
sua autoridade, a qual de início eles elogiavam, conseguissem levar a
cabo as mudanças que tinham em vista. Para eles era indiferente se
estas mudanças se concretizavam através do relâmpago do despotis-
mo ou do terremoto do motim popular. A correspondência entre
esta cabala e o falecido rei da Prússia 149 lança bastante luz sobre o
espírito do seu procedimento*150 • Com o mesmo propósito com
que teceram intrigas com príncipes, cultivaram de modo especial
as relações com o capital de França, e em parte através dos meios
fornecidos por aqueles cujo trabalho específico lhes dava o meio de
comunicação mais vasto e mais certeiro, ocuparam cuidadosamente
todas as vias para o domínio da opinião.
Escritores, especialmente quando actuam corporativamente e
num mesmo sentido, têm grande influência na mente das pessoas,
de resto, a aliança destes escritores com o capital* 151 teve um efeito
considerável no remover do ódio e inveja populares que atingiam
esta espécie de riqueza. Estes escritores, como os propagadores de
todas as novidades, fingem ter um grande zelo pelos pobres e pelas
classes mais baixas, enquanto que nas suas sátiras tornam odiosas,
pelo seu exagero, as faltas dos tribunais, da nobreza e do clero. Tor-
naram-se uma espécie de demagogos. Tendo em vista um objectivo,
servem de elo de união que une a riqueza odiosa à pobreza desespe-
rada e agitada.

149
N .T. Refere-se a Frederico II d a Prúss ia, conhecido como Frederico o Grande
( 17 12-1 786 ), que era um monarca amante d a cultura e das artes e que mantinha corres-
pondência com alguma da intelectualidade francesa, nomeadamente com Voltaire.
ISO "Nota do autor: Prefiro não chocar os sentimentos do leitor decente com algu-

ma citação da sua linguagem vulgar, baixa e blasfe ma.


ISI • ora do autor: A sua conexão com T urgor e co m quase rodas as pessoas da
finança.
179

Porque estes dois tipos de homens parecem ser os principais


líderes nos últimos acontecimentos, a sua união e as suas políticas
servem de justificação, não a partir de princípios da lei ou de po-
lítica, mas como uma causa, para a fúria geral com que tem sido
atacada roda a propriedade fundiária das ordens religiosas, e o gran-
de cuidado que se tem tomado, contrariamente aos seus alegados
princípios, com o capital originado a partir da autoridade da coroa.
Toda a inveja contra a riqueza e o poder foi artificialmente dirigida
contra outra espécie de ricos. Por que outro princípio, sem ser o
que mencionei, poderíamos justificar o fenómeno tão extraordiná-
rio e tão pouco natural da aplicação dos bens eclesiásticos - que se
mantiveram por tantas gerações e através de choques de violência
civil e que foram protegidos, simultaneamente, pela justiça e pelos
preconceitos - no pagamento de dívidas, que eram comparativa-
mente recentes e odiosas, contraídas por um governo desacreditado
e corrupto?
Seriam os bens públicos garantia suficiente para as dívidas pú-
blicas? Assumamos que não eram e que uma perda deveria ocorrer
em algum lugar. ~ando a única propriedade possuída legalmente,
cujas partes contratantes tinham em consideração na altura em que
este negócio se fez, falha, quem, de acordo com os princípios da
equidade legal e natural, teria de sofrer com isso? Certamente te-
ria de ser ou a parte fiadora ou a parte que os persuadiu a afiançar,
ou ambas, e não terceiros que nada tinham a ver com a transacção.
Ocorrendo alguma insolvência, deveria sofrer quem tivesse sido
tão fraco que tivesse emprestado com tão más garantias, ou aqueles
que, por fraude, avançaram com uma garantia que não era válida.
As leis não conhecem outras regras de decisão. Mas através desta
nova instituição dos direitos do homem, as únicas pessoas que em
equidade devem sofrer são as únicas pessoas que deveriam ter sido
preservadas do prejuízo: os que devem responder pela dívida, são os
que nem emprestaram nem pediram emprestado, não hipotecaram
nem aceitaram a hipoteca.
180

O que tinha o clero a ver com estas transacções? ~e tinham


eles a ver com algum compromisso público para além da sua pró-
pria dívida? Por essa dívida, seguramente, responderiam as suas
propriedades até ao último acre. Nada nos guia melhor até ao ver-
dadeiro espírito da Assembleia, que se reúne para a confiscação pú-
blica, com a sua nova equidade e a sua nova moralidade, do que
atender ao seu procedimento em relação a esta dívida do clero.
O grupo dos confiscadores, fiéis aos interesses do capital, razão pela
qual eram infiéis em relação a todos os outros, acharam que o clero
estava qualificado para ser legalmente devedor. Claro que declara-
ram que o clero, legalmente, tinha direito à propriedade, o que a
possibilidade de incorrer em dívida e de hipotecar ao Estado impli-
cava, reconhecendo os direitos daqueles cidadãos perseguidos no
próprio acto em que esses direitos eram rudemente violados.
Se, como disse, alguém devesse compensar o défice aos credo-
res públicos, deveriam ser aqueles que negociaram o acordo. Porquê
então, não são confiscadas as propriedades de todos os controla-
dores-gerais ?* 152 Porque não o são as da longa sucessão de minis-
tros, financeiros e banqueiros, que enriqueceram enquanto a nação
empobrecia por causa dos seus negócios e dos seus conselhos? Por-
que é que não é a propriedade do Senhor Laborde que é declarada
confiscada em vez da do Arcebispo de Paris, que não teve nada a
ver com a criação ou com a especulação dos fundos públicos? Ou,
se é preciso confiscar propriedades antigas em favor dos especula-
dores financeiros , porque é que a penalidade está adstrita a uma só
classe? Não sei se com as despesas do Duque de ChoiseuP 53 restou
alguma coisa das imensas somas que ele retirou da liberalidade do
seu senhor, durante as transações de um reinado que contribuiu lar-
gamente - com vários tipos de prodigalidade, na guerra e na paz -
para a presente dívida de França. Se algo sobrou, porque é que isso
112
"Nora do au tor: T odas acabaram por se r confiscadas.
113
1 .T. Refere-se a Étienn e- François Duque de C hoiseul ( 17 19-1 785), que foi

ministro de Luís À'V.


181

não foi confiscado? Lembro-me de ter estado em Paris no tempo


do antigo governo. Estive aí justamente a seguir ao Duque de Ai-
guillon1 54 ter sido (era a convicção geral) arrancado do cepo pela
mão de um despotismo protector. Era ministro e teve algo a ver
com os negócios desse período pródigo. Porque é que eu não vejo a
sua propriedade entregue aos municípios onde se situa? Os mem-
bros da família nobre de Noailles 155 são há muito tempo servidores
(servidores de mérito, admito) da coroa de França e, certamente,
beneficiaram em parte das suas mercês, porque é que não ouço nada
acerca da aplicação dos seus bens na dívida pública? Porque é que a
propriedade do Duque de Rochefoucault é mais sagrada que a do
Cardeal de Rochefoucault? 156 Não duvido que o primeiro seja uma
pessoa digna, e (se não fosse uma espécie de profanação falar do uso
como afectando o direito à propriedade) faz bom uso dos seus ren-
dimentos, mas não é nenhum desrespeito em relação a ele dizer, o
que informações fidedignas me autorizam a dizer, que o uso da pro-
priedade de valor idêntico que faz o seu irmão*157, o Cardeal Arce-
bispo de Rouen, foi muito mais louvável e muito mais animado pelo
interesse público. Pode-se ouvir falar que tais pessoas foram pros-
critas e foram confiscados os seus bens, sem indignação e horror?

's4 N .T. Refere-se a Emm anuel-Armand de Vigno ret du Plessis· Richelieu, Du-
que d'Aiguillo n ( 1720· 1788), ministro dos negócios estrangeiros de Luís XV, que foi acu-
sado de abuso de pode r em 1770. O caso terá abo n ado pela intervenção do rei Lu ís XV.
ISS N.T. Louis-M arie, Visconde de oailles ( 1756- 1804) se rviu sob as ordens
do Marquês de Lafayene na Guerra da Independênci a nos Estados U nidos. Fez pane da
Assembleia Nacional e propôs, juntamente com Armand-Dés iré de Vignoret du Plessis-
· Richelieu, novo Duque de Aiguillo n ( 176 1-1 800), a lei votada na noite de 4 de Agosto
de 1789, que abuli a os privilégios de certas co munidades, as imunidades mun icipais e os
dire itos feudais. Noailles acabou po r fugi r de França e viria a morrer em H avana.
1 6
s N.T. Dominique de la Rochefoucauld ( 17 13-1800 ), C ardeal Arcebispo de
Rouen, que viria a exilar-se em Inglaterra. ~amo ao D uque de la Rochefo ucauld, Burke
é pouco preciso e não se pode saber a quem se referia já que havia pelo menos dois duques
co m o apeli do Rochefoucauld: De la Rochefoucauld d'Anville e De la Rochefoucauld-
-Liancoun.
w ' Nota do autor: Não é seu irm ão ne m nenhum parente próxi mo, mas este erro
não afec ta o argu mento.
182

Não é homem quem não sente tais emoções em ocasiões como es-
tas. Não merece o nome de homem livre quem não as expressa.
Poucos conquistadores bárbaros fizeram uma revolução tão
horrível na propriedade. Nenhum dos líderes das facções romanas,
quando instituíram crude/em illam hastam 158 em todos os leilões
das suas rapinas, jamais pôs à venda bens dos cidadãos conquistados
em tão grande quantidade. Deve conceder-se a favor destes tiranos
da antiguidade, que o que foi feito por eles dificilmente se pode di-
zer que tenha sido feito a sangue frio. As suas paixões estavam ace-
sas, os seus temperamentos azedados e o seu entendimento turvado
pelo espírito de vingança, com inúmeros e recentes castigos mútuos
e retaliações de sangue e de rapina. Eram compelidos a ir além de
todos os limites da moderação pelo medo que retornassem ao po-
der, com o respectivo retorno à propriedade, as famílias daqueles
a quem eles tinham prejudicado para lá de qualquer esperança de
perdão.
Estes confiscadores Romanos, que estavam ainda nos primór-
dios da tirania e 'não estavam instruídos nos direitos do homem
para infligir todo o tipo de crueldades uns aos outros sem provo-
cação, julgaram necessário espalhar um certo colorido sobre a sua
injustiça. Consideravam a parte vencida composta de traidores, que
tinham empunhado armas, ou que de outro modo qualquer tives-
sem agido de forma hostil contra a nação. Olhavam-nos como ten-
do sido privados das suas propriedades por causa dos seus crimes.
Convosco, no vosso estado de mentalidade superior não houve tal
formalidade. Apoderastes-vos de cinco milhões de libras de renda
anual, e arrancastes quarenta ou cinquenta mil seres humanos de
suas casas, porque "assim vos aprouve". O tirano Henrique Oita-
vo de Inglaterra, como não era mais iluminado que os romanos

•ss N.T. Bu rke refere-se ao costume romano de cravar uma espada no chão du-
rante os leilões públicos, o riginalmente significando saque ganho em batalha.
183

Mário 159 e Sila 160 , e não tinha estudado nas vossas novas escolas, não
sabia que um instrumento eficaz de despotismo se haveria de en-
contrar nesse grande depósito de armas ofensivas que são os direitos
do homem. ~ando resolveu roubar as abadias, como o clube dos
jacobinos roubou os eclesiásticos, começou por nomear uma comis-
são para investigar os crimes e abusos que reinavam nestas comu-
nidades. Como se poderia esperar, a comissão reportou verdades,
exageros e mentiras. Mas, com verdade ou sem ela, reportou abusos
e ofensas. Contudo, como os abusos se podem corrigir, como nem
de todos os crimes das pessoas resulta uma penalização contra as
comunidades, e como a propriedade, naquela idade das trevas, não
estava identificada como uma criação do preconceito, todos estes
abusos (e havia bastantes) dificilmente podiam julgar-se fundamen-
to suficiente para uma tal confiscação, como era seu propósito levar
a cabo. Ele então obteve a entrega formal destes bens. Todos estes
procedimentos trabalhosos foram adoptados por um dos mais de-
cididos tiranos dos anais da história, como preâmbulos necessários
antes que ele se aventurasse, através do suborno dos membros das
suas duas Câmaras servis com um quinhão nos despojos, acenando -
-lhes ainda com uma imunidade nos impostos para sempre, pedir a
confirmação deste procedimento iníquo através de uma lei parla-
mentar. Se o destino o tivesse reservado para os nossos dias, quatro
termos técnicos teriam feito o serviço e ter-lhe-iam poupado todo
o trabalho, não precisava mais do que uma breve fórmula mágica:
"Filosofia, Iluminismo, Liberalidade e Direitos do Homem ".
Não posso dizer nada em louvor destes actos de tirania, que
ninguém elogiou ainda sob nenhuma das suas falsas cores, contudo,
nestas falsas cores, o despotismo prestava uma homenagem à justi-
ça. O poder, que estava acima de todo o medo e de todo o remorso,
não estava acima de toda a vergonha. Enquanto a vergonha se man-

I 59 N.T. Gaius Marius ( 155·86 a. C.).


160
N .T. Lucius Cornelius Sila ( 138-78 a. C).
184

tém vigilante, a virtude não se extingue por completo no coração,


nem a moderação é totalmente banida da mente dos tiranos.
~ero crer que todos os homens honestos simpatizam nestas
reflexões com o nosso poeta político daquele tempo, e pedirão para
que se afaste o augúrio sempre que estes actos de despotismo rapace
se apresentem aos seus olhos ou à sua imaginação:
" ~e tal tempestade
Não caia sobre o nosso tempo, onde a ruína precisa emendar-se
Diz-me, minha Musa, que monstruosa, terrível ofensa
~e crimes podem exasperar um rei cristão
A uma tal raiva? Foi o luxo, foi o desejo?
Era ele tão temperado, tão casto, tão justo?
Eram estes os seus crimes? Foram estes e muito mais:
~e riqueza é crime bastante para aquele que é pobre."*16 1
161
"Nota do Auto r:
"O resto da passage m é:
quem, tendo despendido os tesouros da sua co roa
Condena o luxo de outros para alimentar o seu '
E contudo, este acto para dar verniz à ve rgonha
do sacrilégio, deve levar nome de Devoção
Nenhum crime é tão atrevido, mas se ria compreensível
U m bem real, ou pelo menos aparente
~em não teme faze r mal, mas que teme qu ando isso se lhe chama
E livre de consciênc ia é um escravo da fama
Então ele, ao mesmo tempo, protege a Igreja e a saqueia
E dos príncipes, mais do que o estilo, é afi ada a espada
E assim aos tempos passados faz justiça,
Destrói-lhes a caridade e defende-lhes a devoção
Então a religião numa cela ociosa vivia
Entretida em contemplação aérea e vazia,
E, como um cepo, imóvel ficava: mas a nossa,
Activa demais, co mo a cegonha devora.
Não há para conhecer uma zona temperada
Entre a nossa zona tó rrida e a deles gelada?
ão podemos aco rdar deste letárgico sono,
Se não para se rmos agi tados n um extremo pior?
E para a letargia não havia outra cura
Senão ser lançado em tal quentura?
Não pode o conh ecimento ter lim ites,
185

Esta mesma riqueza, que é sempre traição e crime de leze na-


tion para um despotismo indigente e voraz, sob qualquer tipo de
política, foi a vossa tentação para violar a propriedade, a lei e a reli-
gião reunidas num mesmo objecto. Mas estaria o Estado francês tão
miserável e tão desfeito, que não lhe restasse outro recurso senão a
rapina para preservar a sua existência? Sobre este ponto gostava de
receber algumas informações. ~ando os Estados [Gerais] se reu-
niram, as Finanças estavam em tais condições que após economizar
em princípios de justiça e de misericórdia em todos os sectores, uma
repartição justa dos encargos por todas as ordens não pudesse res-
taurá-las? Se a imposição equitativa fosse suficiente, o Senhor sabe
bem que facilmente se poderia ter feito isto. O Senhor Necker 162 ,
no orçamento que apresentou às ordens reunidas em Versalhes, fez
uma exposição pormenorizada da situação da nação francesa.* 163

e rem de avançar a pom o de nos faze r desej ar a ignorância?


Am es na escu ridão ratear o nosso cam inho
Do que por um falso guia extraviar-se de di a?
~e m , ve ndo esta grande desgraça
Não pe rgum aria que invasor bárbaro saqueou esta terra?
Mas quando ouvir que o autor, não foi godo, nem turco mas rei cristão, que trouxe esta
desolação
~and o nada se não o nome do zelo
Aparece emre as nossas melho res acções e as p iores deles,
O que é que acha que o nosso sacrilégio pouparia
~a n do um tal efeito a nossa devoção teri a?"
Cooper 's Hill de Sir John Denham
16
' N .T. J acques Necker foi um banqueiro su íço estabelecido em Paris que foi
chamado para Director-Ge ral das Fin anças de 1777 a 178 1, altura em que é demit ido
pelo rei por criticar as excessivas despesas da corte. É chamado de novo em 25 de Agosto
de 1788, numa tem ativa do rei para evitar a banca rota. ecker impõe ao monarca a
convocação dos Estados Gerais. Descom em e com o resultado da convocação, o soberan o
dispensa Necker em 11 de J ulho de 1789 o que provoca a insurreição em Paris. ecker
volta a ser chamado em 29 de Julho do mesmo ano e fica à cabeça do governo da França
até 8 de Setembro de 1790, altu ra em que apresem a a sua demissão e volta para a Suíça.
163
·Nora do Autor: Relatório do Senhor D irector-Ge ral das Finanças, feito por
ordem do rei em Versalhes. M aio 5, 1789. [T exto em francês no original.)
186

Se lhe dermos crédito, não era necessano ter recorrido a


nenhuma nova imposição, fosse qual fosse, para pôr as receitas
da França equilibradas com as suas despesas. Ele declarou que
os encargos permanentes de todos os departamentos, incluindo os
juros de um novo empréstimo de quatrocentos milhões, eram
531,444,000 livres. Os proveitos fixos em 475,294,000: fazendo
o défice 56,150,000, ou menos de 2,200,000 libras esterlinas. Mas
para equilibrar isto, avançou com poupanças e aumentos de pro-
veitos (considerados como inteiramente certos) em muito mais do
que o que soma o défice , e conclui nestes termos enfáticos (p. 39):
" ~al é o país, senhores, onde, sem impostos, e com objectivos sim-
ples e imperceptíveis, se pode fazer desaparecer um défice que tanto
alarido causou na Europa!" 164 ~amo ao reembolso, à amortização
da dívida e a outros grandes objectivos do crédito público e dos ar-
ranjos políticos referidos no discurso do Senhor Necker sem dúvida
que podem ser considerados, mas uma tributação muito moderada
e proporcional sobre todos os cidadãos sem distinções teria susten-
tado todos eles plenamente na medida das suas necessidades.
Se este quadro do Senhor Necker era falso então a Assembleia
é culpada no mais alto grau por ter forçado o rei a aceitá-lo como
ministro e, desde que o rei foi deposto, por tê-lo empregado en-
quanto seu ministro, um homem que tinha sido capaz de abusar
tão notoriamente da confiança do seu Senhor e da deles mesmos,
numa matéria que era da mais alta importância e que pertencia di-
rectamente ao seu pelouro. Mas, se o quadro estava certo (tendo eu
tido sempre, tal como vós, um grande respeito pelo Senhor Necker,
não tenho dúvida de que estava), então o que é que pode ser dito em
abono daqueles que, em vez de uma contribuição geral, moderada e
razoável, a sangue frio e sem necessidade, recorreram a uma confis-
cação facciosa e cruel?

1
6; N.T. Texro em francês no original.
187

Seria esta contribuição recusada sob o pretexto de privilégio


por parte do clero ou por parte da nobreza? Certamente que não.
~amo ao clero, eles até se anteciparam na satisfação dos desejos da
terceira ordem. Antes da reunião dos Estados, tinham dado ordens
expressas em todas as instruções aos seus representantes para renun-
ciarem a toda a imunidade que os colocasse em pé de desigualdade
em relação à condição dos seus concidadãos. Nesta renúncia o clero
foi ainda mais explícito que a nobreza.
Mas suponhamos que o défice se manteve nos cinquenta e seis
milhões (ou 2,200,000 libras esterlinas), como primeiro foi decla-
rado pelo Senhor Necker. Admitamos que todos os recursos que
ele contrapôs ao défice eram ficções sem fundamento e impruden-
tes e que a Assembleia (ou os seus Lords ofArticles* 165 nos Jacobi-
nos) estavam, assim, justificados por terem lançado todo o fardo do
défice sobre o clero - ainda admitindo tudo isso, a necessidade de
2,200,000 libras esterlinas não justifica a confiscação de um mon-
tante de cinco milhões. A imposição de 2,200,000 libras sobre o
clero, sendo facciosa, teria sido tirânica e injusta, mas não teria sido
completamente ruinosa para aqueles a quem era imposta, e assim
não teria cumprido as verdadeiras intenções dos seus gerentes.
Talvez quem não esteja inteirado do estado da França, ao ouvir
que o clero e a nobreza eram privilegiados no que diz respeito aos
impostos, podem ser levados a imaginar que, antes da revolução,
estas classes não tinham contribuído nada para o Estado. Isso é um
grande equívoco. Certamente não contribuíram ambos por igual,
nem cada um deles em paridade com o povo. Contudo, ambos
contribuíram largamente. Nem a nobreza nem o clero gozaram de
isenções no que diz respeito ao imposto sobre bens consumíveis, às
taxas alfandegárias, ou de muitos outros impostos indirectos, que
em França, bem como em Inglaterra, constituem uma larga fatia
165
• 1ota do Autor: Na Constituição escocesa, durante o reinado dos Stuart

estabeleceu-se um comité para preparar os projectos de lei e nenhum projecto lei passava
oJ
sem ser primeiro aprovado por eles. Este Comité era chamado de Lords Articles.
188

da contribuição pública. A nobreza pagava a capitação. Pagavam


também um imposto sobre terras chamado o Vigésimo penny até à
taxa de 3 ou mesmo 4 shillings 166 numa libra: ambos impostos di-
rectos, que não eram leves e cujo rendimento não era pouco. O clero
das províncias anexadas à França pelas conquistas (que em extensão
perfazem uma oitava parte do todo, mas em riqueza representam
uma proporção muito maior) pagava igualmente a capitação e o Vi-
gésimo penny à mesma taxa que era paga pela nobreza. O clero das
velhas províncias não pagava a capitação, mas tinha-se isentado ao
custo de vinte e quatro milhões, mais ou menos um milhão de ester-
linas. Estavam isentos do Vigésimo mas faziam doações livremente,
endividavam-se pelo Estado e estavam sujeitos a muitas outras ta-
xas, que ascendiam a 13% do seu rendimento líquido. Deveriam ter
pago anualmente cerca de 40,000 libras a mais para ficarem a par da
contribuição da nobreza.
~ando os horrores desta tremenda proscrição pendiam so-
bre o clero, este ofereceu uma contribuição, através do Arcebispo
de Aix, a qual não deve ter sido aceite pela sua extravagância. Mas
era óbvia e evidentemente mais vantajosa para o credor público do
que qualquer outra coisa que pudesse racionalmente prometer-se
obter através da confiscação. Porque é que não foi aceite? A razão é
simples: não havia qualquer vontade que a Igreja fosse levada a ser-
vir o Estado. O serviço do Estado constituiu-se num pretexto para
destruir a Igreja. No seu método para a destruição da Igreja eles não
tinham escrúpulos em destruir o seu país, e destruíram-no. Um dos
grandes objectivos do projecto teria fracassado se o plano de extor-
são tivesse sido adoptado em vez do esquema de confiscações. Os
novos interesses fundiários ligados à nova república, e ligados a ela
para existirem, não se poderiam ter criado. Esta foi uma das razões
porque aquele resgate extravagante não foi aceite.

166
N .T. No século X V III um a libra valia 20 shillings ou 240 penny.
189

A loucura do projecto de expropriação, no plano inicialmente


previsto, depressa se tornou evidente. Levar aquela massa imensa
de propriedades, alargada pela confiscação de vastos domínios de
terras da coroa, ao mesmo tempo para o mercado era, obviamente,
frustrar os proveitos planeados com a expropriação, pela desvalori-
zação destas terras e, em bom rigor, pela desvalorização de todas as
propriedades por toda a França. Este súbito desvio do dinheiro em
circulação, do comércio para as terras, deve ser um prejuízo adicio-
nal. ~e medida foi tomada? A Assembleia ao tomar consciência
dos maus efeitos que teria esta venda planeada recuou aceitando as
ofertas do clero? Nenhuma aflição poderia forçá-los a tomar um
caminho errado mesmo que aparentasse ser justo. Abandonando
todas as esperanças de uma venda geral imediata, outro projecto
vingou. Propuseram-se comprar acções em troca das terras da Igre-
ja. Neste projecto surgiram grandes dificuldades ao tentar encon-
trar uma equivalência entre os objectos a trocar. Surgiram outros
obstáculos que fizeram com que eles recuassem e pensassem outra
vez em algum projecto de venda. Os municípios alarmaram-se. Não
queriam ouvir falar na transferência de todo o saque do reino para
os accionistas de Paris. Muitos destes municípios foram (por siste-
ma) reduzidos à indigência mais deplorável. Não se via dinheiro em
lado nenhum. Tinham-nos conduzido assim ao ponto tão arden-
temente desejado. Ansiavam por uma moeda qualquer que pudes-
se fazer reviver a sua indústria moribunda. Os municípios foram
então admitidos a participarem na partilha dos despojos, o que,
evidentemente, tornou o primeiro plano (se é que ele alguma vez
foi verdadeiramente considerado) completamente impraticável. As
exigências municipais pressionavam por todos os lados. O Ministro
das Finanças reiterou o seu pedido de provisão com o tom mais ur-
gente e ansioso de mau presságio. Assim, pressionados por todos os
lados, em vez do plano inicial de converter os seus bispos e abades
em banqueiros, em vez de pagarem a dívida antiga, contraíram uma
nova dívida, a três por cento, criando um novo papel-moeda, fun-
190

dado numa eventual venda das propriedades da Igreja. Emitiram


este papel-moeda para satisfazer, em primeiro lugar, sobretudo, as
exigências que lhes foram feitas pelo bank of discount 167 , a grande
máquina ou fábrica de papel da sua riqueza fictícia.
O espólio da Igreja tornara-se agora o único recurso de todas
as suas operações financeiras, o princípio vital de todas as suas po-
líticas, a única segurança para a existência do seu poder. Era neces-
sário, por todos os meios, mesmo os mais violentos, pôr todos num
mesmo pé, comprometer a nação com este lucro criminoso ratifi-
cando este acto e a autoridade daqueles que o cometeram. Com o
objectivo de forçar os mais relutantes a uma participação na sua pi-
lhagem, tornaram a circulação do papel-moeda compulsória em to-
dos os pagamentos. Todos aqueles que consideram que a tendência
geral dos seus planos tem como centro este objectivo, e um centro a
partir do qual todas as suas medidas irradiam, não acharão que me
demorei demasiado a considerar esta parte das acções da Assem-
bleia Nacional.
Para acabar com qualquer aparência de conexão entre a coroa
e a justiça públicas e para levar o todo a uma obediência implíci-
ta aos ditadores de Paris, a antiga magistratura independente dos
Parlamentos, com todos os seus méritos e todos os seus defeitos,
foi completamente abolida. Enquanto os Parlamentos existiram era
evidente que o povo poderia, num momento ou noutro, recorrer
a eles e unir-se sob a divisa das leis antigas. Tornou-se, todavia, um
assunto a reflectir o facto de que os magistrados e os oficiais dos
tribunais agora abolidos tinham comprado os seus lugares por um
valor muito alto, por eles e pelo papel que desempenhavam, recebe-
ram um rendimento de valor muito baixo. A confiscação simples é
uma mercê feita apenas ao clero: para os advogados há que observar
alguma aparência de equidade e eles estão para receber indemniza-

w N .T. Trata-se da Caisse d 'escompte que foi o único banco autorizado a emitir
notas até 1793, al tura em que foi extinto.
191

ções de elevado montante. As suas indemnizações tornaram-se par-


te da dívida nacional, para cuja liquidação apenas existe um mesmo
fundo inesgotável. Os advogados vão obter a sua compensação com
o novo papel moeda da Igreja, o que há-de avançar com os novos
princípios judiciais e legislativos. Os magistrados dispensados ou
recebem a sua quota parte de martírio com os eclesiásticos, ou rece-
bem a sua propriedade deste fundo e desta maneira, e hão -de olhar
para isto com horror, como todos aqueles que foram habituados
aos antigos princípios de jurisprudência e juraram ser guardiães da
propriedade. Mesmo o clero deve receber a sua pensão nesse papel
moeda desvalorizado, impresso com o indelével carácter de sacri-
légio e com os símbolos da sua própria ruína, ou então morrer de
fome. Em qualquer que seja o período e qualquer que seja a nação,
raramente se viu uma ofensa tão grave contra o crédito, aproprie-
dade e a liberdade, como este papel moeda obrigatório, proveniente
da aliança entre a bancarrota e a tirania.
No decurso de todas estas operações revela-se por fim o gran-
de arcanum: que, na realidade, e justamente, as terras da Igreja (até
onde algo de certo se pode concluir do seu procedimento) não são
para vender. Pelas últimas resoluções da Assembleia Nacional, elas
são de facto para ser entregues à melhor oferta. Mas deve observar-
-se que apenas uma certa porção do dinheiro da compra é para ser de-
positado. Um período de doze anos será dado para o pagamento do
resto. Os compradores filosóficos são, contudo, postos de imediato
na posse da propriedade, mediante o pagamento de uma espécie
de caução. Em certos aspectos isto torna-se uma espécie de mercê
que lhes é feita, para ser tida, como a posse feudal, pelo seu zelo
pelo novo regime. Este projecto é evidentemente para um grupo de
compradores sem dinheiro. A consequência será que estes compra-
dores, ou antes, concessionários, pagarão, não apenas com as rendas
à medida que elas aumentam, que poderiam também ser recebidas
pelo Estado, mas com o espólio de materiais de edifícios, com a de-
vastação das florestas , e com quaisquer dinheiros que, mãos habi-
192

tuadas à usura, hão-de espremer do pobre agricultor. O qual é para


ser entregue aos mercenários e à descrição arbitrária de homens que
serão estimulados a roda a espécie de extorsão pelas crescentes exi-
gências feitas a lucros crescentes de uma propriedade mantida sob o
acordo precário de um novo sistema político.

Ao mesmo tempo que rodas as fraudes, imposturas, violências,


rapinas, incêndios, assassinatos, expropriações, circulação compul-
siva do papel-moeda e rodo o tipo de tirania e crueldade empregue
para levar a cabo e para sustentar esta Revolução exercem o seu efei-
to natural, isto é, chocar os sentimentos morais de rodas as almas
virtuosas e sóbrias, os cúmplices deste sistema filosófico logo en-
rouquecem a clamar contra o velho governo monárquico de Fran-
ça. ~ando eles tiverem denegrido bastante a imagem deste poder
deposto, prosseguirão então com o argumento, como se rodos
aqueles que desaprovam os recentes abusos tenham que ser forço-
samente partidários dos antigos, como se aqueles que reprovam os
seus projectos crus e violentos de liberdade tivessem de ser tratados
como defensores da servidão. Admito que as suas necessidades os
obriguem a esta fraude baixa e deplorável. Nada reconcilia melhor
as pessoas com os seus procedimentos e os seus projectos do que a
suposição de que não há uma terceira opção entre eles e uma tirania
tão odiosa quanto a que pode ser fornecida pelos registos da his-
tória ou pela invenção dos poetas. Esta sua tagarelice dificilmente
merece o nome de sofística. É simplesmente falta de vergonha. Será
que estes cavalheiros nunca ouviram falar, em todo o círculo dos
mundos da teoria e da prática, de nada existente entre o despotis-
mo do monarca e o despotismo da multidão? Nunca terão ouvido
falar de uma monarquia dirigida por leis, controlada e balanceada
pela grande riqueza hereditária e pela dignidade hereditária de uma
nação, e ambas mais uma vez verificadas por um judicioso controlo
da razão e do sentimento do povo em geral, actuando através de
órgão adequado e permanente? É então impossível que se encontre
um homem que, sem intenção criminosa, ou sem ser lamentavel-
193

mente absurdo, prefira um governo misto e moderado a qualquer


dos extremos, e que possa acusar esta nação de ser completamente
destituída de sabedoria e de virtude, de tal modo que, tendo pos-
sibilidade de escolher obter um tal governo facilmente, ou melhor,
ratificá-lo quando dejàcto o possuíam, achou melhor cometer milha-
res de crimes e sujeitar o seu país a males infindáveis, a fim de evitá-
-lo? Será então uma verdade tão universalmente reconhecida que
uma democracia pura é a única forma tolerável na qual a sociedade
humana tenha que se precipitar, que não se permite a um homem
hesitar acerca dos seus méritos sem a suspeita de ser um amigo da
tirania, isto é, de ser um inimigo da humanidade?
Não sei em que categoria classificar a autoridade que neste mo-
mento dirige a França. ~er aparentar ser uma pura democracia,
embora eu a julgue a caminhar em linha recta para se tornar em
breve uma oligarquia pérfida e ignóbil. Para já admito que seja um
capricho da natureza e um efeito daquilo que pretende ser. Não re-
provo nenhuma forma de governo baseado apenas em princípios
abstractos. Pode haver situações em que a democracia pura se torne
necessária. Pode haver alguns casos (muito poucos e em circunstân-
cias muito particulares) onde possa ser claramente desejável. Não
creio ser esse o caso de França, ou o de nenhum outro grande país.
Até agora, não vimos exemplos consideráveis de democracias. O s
antigos estavam mais familiarizados com elas. Não sendo comple-
tamente iletrado acerca dos autores que viram a maior parte des-
sas constituições, e que melhor as entenderam, não posso deixar
de concordar com a sua opinião de que uma democracia absoluta,
bem como a monarquia absoluta, não são para ser contadas entre
as formas legítimas de governo. Pensam que ela é mais a corrupção
e degeneração do que a constituição sólida de uma república. Se
bem me lembro, Aristóteles observa que uma democracia tem mui-
tos pontos de uma semelhança impressionante com a tirania*168 .
• 1ota do autor: ~ando escrevi isto ci tei de memória depois de vários anos
168

terem passado sobre a minha leitura da passagem. U m amigo entendido encontrou-a e


194

Disto eu tenho a certeza, que numa democracia a maioria dos ci-


dadãos é capaz de exercer as opressões mais cruéis sobre a mino-
ria, sempre que prevalecem fortes dissensões neste tipo de política,
como devem acontecer frequentemente , e esta opressão da minoria
estender-se-á a números muito maiores, e será levada a cabo com
muito mais fúria do que aquela que se pode temer sob o domínio de
um único ceptro. Nesta perseguição popular as vítimas estão numa
condição muito mais deplorável do que em qualquer outra. Sob o
domínio de um príncipe cruel têm o bálsamo da compaixão da hu-
manidade para suavizar as suas feridas, têm o aplauso das pessoas
para animar a sua generosa constância no sofrimento: mas aqueles
que estão sujeitos à injustiça por parte das multidões estão privados
de toda a consolação externa, parecem ter sido abandonados pela
humanidade, subjugados por uma conspiração da espécie inteira.

Mas admitindo que a Democracia não tem esta tendência


inevitável para a tirania de partido, a qual eu suponho que tem, e
admitindo que ela possui tanto de bom quando pura quanto es-
tou certo que terá quando composta com outras formas , será que
a monarquia não tem nada que a torne recomendável? Eu não cito
muitas vezes Bolingbroke, nem as suas obras, em geral, deixaram
impressão indelével em mim. É um escritor superficial e presunço-
so. Mas tem uma observação que, na minha opinião, tem profundi-
dade e solidez. Afirma que prefere a monarquia a outros governos,

é corno se segue: To 118oÇ TO auTo, Kat a~$ w o~:cr rro nKa T(!)V ~ t: À n ovov , Kat
Ta '1'11$1cr~ a T a wcrrrt: p l:Kl: l Ta ~:rr nay ~ aTa , Kat o 0 11~aywy o cr Kat o KoÀaÇ
0 1 U\.JTO I KUI ava Àoyov Kat ~U À IOTU l:KUT!:p0 1 1!Up l:KU T!:pO IÇ IOK\.J O\.JOI V,OI
~ ~: v KOÀaKt:cr rrapa wpavvo 1Ç, 0 1 01: 0 11~ aywyo 1 rrapa TO lO 0 11~ 0 10 1:01Ç
1:010\.JTO IÇ.
(Tradução proposta por Burke:) "O carácter ét ico é o mesmo: ambos exe rci tam o
despot ismo sobre a melho r cl asse dos cidadãos, e os decretos são para um, o que o rdenan·
ças e juízos são para o outro: também o dem agogo e o favo rito d a corte são frequenrernen·
te os mesmos homens, e têm sempre urna analogia próxi ma; e estes têm o poder maior,
cada um nas suas respectivas fo rmas de gove rno, favo ritos co m o mo narca absoluto, e os
de magogos co m o povo, tal co rno desc revi" Arist. Pol. Li v. IV, cap. 4.
195

porque se pode mais facilmente inscrever qualquer tipo de repú-


blica numa monarquia do que qualquer coisa de monárquico em
formas republicanas. Penso que ele está perfeitamente cerro. Esse
é o facto, historicamente, e é compatível com a teoria. Eu sei que é
um assunto muito apetecido falar das faltas dos grandes após a sua
queda. Por uma revolução no Estado o adulador sicofanta de on-
tem converte-se no austero crítico de hoje. Mas os espíritos firmes e
isentos, quando têm um assunto tão importante para a humanidade
como o governo para analisar, recusam assumir o papel de cínicos
ou de pregadores. Julgarão as instituições humanas como julgam
o carácter humano. Separarão o bom do mau, que sempre aparece
misturado nas instituições humanas do mesmo modo que aparece
misturado nos homens morrais.
O vosso governo em França, embora usualmente, e penso
que justamente, reputado como a melhor das inqualificáveis, ou
mal qualificadas, monarquias, estava cheio de abusos. Estes abusos
acumularam-se durante um certo tempo, como acaba por acontecer
em toda a monarquia que não está sob a inspecção constante de um
representante do povo. Não sou alheio às faltas e defeitos do gover-
no francês deposto, e penso que não sou inclinado, por natureza
nem por política, a fazer o panegírico sobre o que quer que seja que
mereça justa censura. Mas a questão agora não são os vícios dessa
monarquia, mas a sua existência. É então verdade que o governo
de França estava de tal modo que fosse incapaz de reforma nem a
merecesse, que fosse absolutamente necessário que roda a estrutura
tivesse de ser deitada abaixo e o terreno limpo para permitir levan-
tar uma construção teórica e experimental no seu lugar? A França
toda era de opinião diferente no início do ano 1789. As instruções
para os representantes aos Estados Gerais, de rodos os distritos des-
se reino, estavam cheias de projectos para a reforma do governo,
sem a mais remota sugestão de qualquer intenção de o derrubar. Se
essa intenção tivesse sido, nessa altura, insinuada sequer, acredito
que só haveria uma voz e essa voz seria para rejeitar o propósito com
196

desprezo e horror. Os homens às vezes são conduzidos gradualmen-


te outras empurrados para coisas, que se tivessem podido ver todo
o conjunto, nunca se teriam permitido a mais remota aproximação.
~ando estas instruções foram dadas, não se punha em questão de
que teriam havido abusos e que esses abusos requeriam uma refor-
ma, como agora também não se põe. No intervalo entre as instru-
ções e a Revolução as coisas mudaram de forma e, em consequência
desta mudança, a verdadeira questão agora é se são os que teriam
reformado ou os que destruíram tudo que estão certos. Ouvir al-
guns homens falar da extinta monarquia de França, pensa-se que
estão a falar da Pérsia sangrando sob a espada feroz de Thamas Kou-
li Khan 169 , ou no mínimo a descrever o despotismo anárquico e bár-
baro da Turquia, onde os melhores campos no mais fantástico dos
climas são devastados pela paz mais do que quaisquer outros países
foram perturbados pela guerra, onde as artes são desconhecidas, as
manufacturas agonizam, a ciência está extinta, a agricultura deca-
dente, onde a própria raça humana se dissipa e perece diante dos
olhos do observador. Era este o caso de França? Não tenho maneira
de resolver a questão senão por referência a factos. Os factos não
apoiam esta comparação. Juntamente com muita coisa má, há algo
de bom na própria monarquia. A monarquia de França deve ter re-
cebido algum remédio para os seus males da religião, dos costumes,
das convicções, o que a tornou um despotismo mais na aparência
que na realidade, se bem que não a tenha tornado livre, e logo não a
tenha tornado numa boa constituição.

Entre os padrões pelos quais se devem medir os efeitos de um


governo num país qualquer considero o estado da sua população
como um dos mais seguros. Nenhum país no qual a população está
florescente e está a prosperar progressivamente pode estar sob um
governo muito mau. Há cerca de sessenta anos os Intendentes das

169
N.T. T ambém conhecido por ãder Shãh Afs hãr, rei da Pérsia entre 1736-
-1747.
197

Généralités 170 de França fizeram, juntamente com outros assuntos,


um relatório sobre a população dos seus vários distritos. Não tenho
os livros comigo que são muito volumosos, nem sei onde os encon-
trar (sou obrigado a falar de memória e a estar, por isso, menos se-
guro), mas eu penso que a população de França, mesmo naquele
período, estimava-se em 22 milhões de almas. No final do século
passado foi geralmente calculada em 18 milhões. Em qualquer des-
tas estimativas a França não estava mal povoada. O Senhor Necker,
que é uma autoridade para o seu tempo, pelo menos tão importan-
te quanto os intendentes no tempo deles, regista, e aparentemente
baseado em princípios seguros, a população de França, no ano de
1780, em vinte e quatro milhões seiscentos e setenta mil pessoas.
Mas seriam essas as últimas estimativas da população sob o anti-
go regime? O Dr. Price é de opinião que o crescimento da popu-
lação em França de modo algum esteve no seu auge nesse ano. Eu,
certamente, concedo mais crédito à autoridade do Dr. Price nestas
especulações do que concedo à sua política em geral. Este Senhor,
baseando -se nos dados do Senhor Necker, está muito confiante de
que, desde o período dos cálculos deste ministro, a população de
França aumentou muito rapidamente, tão rapidamente, que no ano
de 1789 ele pensa que ela não era inferior a trinta milhões. Depois
de um grande desconto (e penso que temos de dar um grande des-
conto) ao cálculo optimista do Dr. Price, não tenho dúvidas que
a população de França aumentou consideravelmente neste último
período: mas, supondo que ela aumentou não mais que o suficiente
para passar dos vinte e quatro milhões seiscentos e setenta mil para
os vinte e cinco milhões, mesmo assim, uma população de vinte e
cinco milhões e em franco progresso num espaço de vinte e sete mil
léguas quadradas, é imenso. É, por exemplo, muito maior em pro-
porção do que a população desta ilha, ou mesmo de Inglaterra, que
é a parte mais povoada do Reino Unido.

n N .T. U nidade administrativa do Ancien Régime.


198

Não é verdade universal que a França seja um país fértil. Con-


sideráveis extensões de França são estéreis e trabalhadas sob outras
desvantagens naturais. Em partes deste território onde as coisas são
mais favoráveis, até onde consigo descortinar, os números da popu-
lação correspondem à benevolência da natureza* 17 1• A Comarca de
Lisle, (admito que este seja o exemplo mais significativo), numa ex-
tensão de quatrocentas e quatro léguas e meia, dez anos atrás tinha
setecentos e trinta e quatro mil e seiscentas pessoas, o que significa
mil setecentos e setenta e dois habitantes por légua quadrada 172 •
A média para o resto de França é de cerca de novecentos habitantes
para o mesmo espaço.
Não atribuo esta população ao governo deposto, porque não
gosto de felicitar os homens por feitos que em grande parte se de-
vem à bondade da Providência. Mas aquele governo desacreditado
não pode ter obstruído, e o mais provável é que tenha favorecido, a
acção das causas (quaisquer que elas fossem) , quer de natureza do
solo, quer de hábitos de trabalho das populações, que produziram
um tão grande número de membros da espécie em todo aquele
reino e que exibe, em lugares particulares, tais prodígios de povoa-
mento. Nunca hei-de julgar aquela estrutura de Estado como a pior
de todas as instituições políticas, a qual, por experiência se verifica,
contém um princípio favorável (por muito latente que seja) ao au-
mento da humanidade.
A riqueza de um país é outro indicador a não menosprezar
pelo qual podemos julgar se, no todo, o governo é protector ou des-
truidor. A França excede em muito Inglaterra no grande número
de população, mas temo que a sua riqueza comparativa seja muito
inferior à nossa, que não é tão equitativa na distribuição, nem tão
expedita na circulação. Acredito que a diferença de forma entre os

n • 1ota do au tor: De L 'Administration des Finances de France, par M. Necker.


Vol. !, p. 288.
,-, N.T. Por cada 25 km' .
199

dois governos esteja entre as causas da vantagem de estar do lado


da Inglaterra: falo da Inglaterra, não da totalidade dos domínios
britânicos - cujos dados, se comparados com os de França, em cer-
ta medida enfraqueceriam o valor comparativo da riqueza a nosso
favor. Mas essa riqueza, que não resistirá a uma comparação com as
riquezas de Inglaterra, pode constituir um grau de opulência muito
respeitável. O livro do Senhor Necker, publicado em 17 85, contém
uma acurada e interessante colecção de factos relativos à economia
pública e à aritmética política, e as suas especulações sobre o assun-
to são em geral sensatas e liberais. Nesta obra, ele dá uma ideia do
estado da França, muito longe do retrato de um país cujo governo
fosse absolutamente injusto, um mal absoluto, que não admitisse
cura senão através do remédio violento e incerto de uma revolução
total. Ele afirma que desde o ano de 1726 até ao ano de 1784 foi
cunhada moeda na Casa da Moeda de França, em espécies de ouro
e prata, até ao montante aproximado de cerca de cem milhões de
libras esterlinas*173 •

É impossível que o Senhor Necker estivesse errado acerca da


quantidade de metal precioso cunhado na Casa da Moeda. Isso é
objecto de registo oficial. Os raciocínios deste financeiro hábil que
dizem respeito à quantidade de ouro ou prata que restavam para cir-
culação, quando ele escreveu em 1785, isto é, quatro anos antes da
deposição e detenção do rei francês, não são de igual precisão, mas
estão baseados em fundamentos aparentemente tão sólidos que é
difícil não concordar bastante com os seus cálculos. Ele calcula o
numéraire, ou o que nós chamamos espécie, efectivamente existente
em França na altura, em aproximadamente oitenta e oito milhões
do mesmo dinheiro inglês. É uma grande acumulação de riqueza
para um país, por muito vasto que ele seja! O Senhor Necker, quan-
do escreveu em 1785, estava tão longe de considerar que este fluxo
de riqueza estava prestes a acabar, que prevê um aumento anual de
n "Nota do autor: Vol. III, Caps. 8 e 9. [Refere-se à obra: M. Necker, De
L 'Administration des Finances de France. ]
200

dois por cento no fururo sobre o dinheiro trazido para França du-
rante os períodos que servem de base ao seu cálculo.
Alguma causa adequada deve ter introduzido originariamente
rodo o dinheiro cunhado na sua Casa da Moeda naquele reino, al-
guma ourra causa igualmente eficaz pode tê-lo mantido na pátria,
ou ter feito voltar ao seu seio um tão vasto fluxo do tesouro como
o Senhor Necker calcula que resta para a circulação doméstica.
Supondo que se fazem algumas deduções aos cálculos do Senhor
Necker o que resta deve ser ainda uma soma imensa. Causas assim
poderosas para adquirir e poupar não se podem encontrar com uma
indústria desmoralizada, uma propriedade insegura, e um governo
positivamente desrrurivo. De facto , quando eu considero o Reino
de França tal como ele me aparece, o sem-número e a opulência das
suas cidades, a útil magnificência das suas estradas espaçosas e das
suas pontes, quão oportunos são os seus canais artificiais e nave-
gações abrindo a facilidades de comunicação marítima através de
um continente maciço de uma extensão imensa, quando volto os
meus olhos para o estupendo trabalho dos seus portos e abrigos,
e para rodo o seu aparato naval, quer de guerra quer de comércio,
quando me deparo com o número das suas fortalezas, construídas
com audácia e perícia de mestre, feitas e mantidas a tão grande cus-
to, apresentando uma fronte armada e uma barreira impenetrável
para os seus inimigos de rodos os lados, quando me lembro que
apenas uma pequena parte dessa extensa região está sem cultivo, e
a perfeição total com que foi feita a cultura de muitas das melho -
res produções da terra que foram introduzidas em França, quando
reflicto na excelência das suas manufacturas e dos seus tecidos, a
nenhuns, excepto aos nossos, inferiores e, em alguns aspectos, nem
aos nossos são inferiores, quando vejo as grandes instituições de ca-
ridade, públicas e privadas, quando examino o seu estado nas artes
que aperfeiçoam e refinam a vida, quando me lembro dos homens
que ela gerou que levaram longe a sua fama na guerra, os seus ho-
mens de Estado hábeis, a multidão dos seus profundos legisladores
201

e teólogos, os seus filósofos, os seus críticos, os seus historiadores e


arqueólogos, os seus poetas e os seus oradores, sacros e profanos, eu
vejo em tudo isto algo que inspira temor e domina a imaginação,
que acautela a mente à beira da censura precipitada e indiscrimina-
da e que requer que examinemos seriamente quais e quão grandes
são os vícios latentes que nos poderiam autorizar a deitar por terra
de imediato uma tão vasta estrutura. Não reconheço nesta visão das
coisas o despotismo da Turquia. Nem detecto aí o carácter de um
governo que tivesse sido no seu rodo tão opressivo, ou tão corrupto,
ou tão negligente de tal modo que fosse totalmente impróprio para
qualquer reforma. Devo pensar que um tal governo bem merecia
ver valorizados os seus bons aspectos, as suas faltas corrigidas e as
suas capacidades melhoradas ao nível da Constituição Britânica.
~em quer que tenha examinado as medidas do governo de-
posto durante os últimos anos não pode deixar de ter observado, no
meio da inconstância e da flutuação natural nas corres, um sincero
esforço visando a prosperidade e o melhoramento do país e tem
de admitir que este esforço há muito que é empregue, em algumas
instâncias para eliminar completamente, em muitas para corrigir
consideravelmente, as práticas e costumes abusivas que tinham pre-
dominado no Estado, e que mesmo o poder ilimitado do soberano
sobre as pessoas dos seus súbditos, inconsistente, como sem dúvida
o era, com a lei e a liberdade, todavia, a cada dia se tornava mais
brando no seu exercício. Longe de recusar reformar-se, este gover-
no estava aberro, com um grau de facilidade repreensível, a rodo
o tipo de projectos de reforma e de reformadores. Talvez tivesse
sido dada demasiada expressão ao espírito de inovação, que cedo
se voltou contra os que o tinham adoptado e acabou por ser a sua
ruína. É apenas uma justiça fria , e não muito lisonjeira, feita aquela
monarquia derrubada, dizer que durante muitos anos, em muitos
dos seus planos, prevaricou mais por leviandade e falta de discer-
nimento do que por falta de diligência ou de espírito público. Não
seria justo comparar o governo de França dos últimos quinze ou
202

dezasseis anos com instituições sábias e bem constituídas, nesse ou


noutro período. Mas se no que diz respeito à prodigalidade no gas-
to de dinheiro ou no que respeita ao rigor no exercício do poder é
comparável com qualquer um dos reinados anteriores, acredito que
juízes imparciais darão pouco crédito às boas intenções daqueles
que perpetuamente insistem nas doações aos favoritos, nas despesas
da coroa e nos horrores da bastilha do reinado de Luís Dezasseis. 174 •
Se o sistema, se é que merece esse nome, agora construído sobre as
ruínas dessa antiga monarquia, será capaz de dar melhor conta da
população e da riqueza do país que tem a seu cuidado é matéria
muito duvidosa. Em vez de melhorar com a mudança, eu penso que
uma longa série de anos precisam contar-se antes que a França possa
recobrar, em certa medida, dos efeitos desta Revolução filosófica e
antes que a nação possa estar de novo no pé em que estava anterior-
mente. Se o Dr. Price achar por bem fornecer-nos, daqui a alguns
anos, uma estimativa da população de França, dificilmente conse-
guirá recompor a sua fábula dos trinta milhões de almas, segundo
o cômputo de 1789, ou a contagem da Assembleia de 26 milhões
nesse ano, ou mesmo os vinte e cinco milhões do Senhor Necker em
1780. Ouvi que há considerável emigração em França, e que muitos
dos que emigram, deixando aquele voluptuoso clima e aquela sedu-
tora liberdade circeana 175, procuraram refúgio nas regiões geladas
do Canadá sob o despotismo britânico.
No presente desaparecimento da moeda, ninguém poderia
pensar que era o mesmo país onde o actual ministro das finanças foi
capaz de descobrir oitenta milhões de esterlinas em espécie. A par-
tir do aspecto geral poderíamos concluir que ele teria estado desde
há algum tempo sob a especial direcção de sábios académicos de
n • 1ota do Autor: O mundo está grato ao Senho r de C alonne pelo trabalho
que de teve a refutar os exageros escandalosos relativos aos montantes das despesas reais e
no detectar as contas falsas dadas sobre as pensões, com os propósitos perversos de provo·
car a populaça e fazê-los co meter roda a espécie de crimes.
n N.T. Liberdade de Ci rce a feiticeira da Odisseia que transfo rm ava os homens
em porcos.
203

Laputa e Balnibarbi 176 • A população de Paris já decresceu tanto que


o Senhor Necker apresentou à Assembleia Nacional a provisão a ser
feita para a sua subsistência diminuída de um quinto em relação à
que anteriormente tinha sido julgada necessária* 177 • Tem sido dito
(e nunca ouvi ser desmentido) que cem mil pessoas estão desempre-
gadas em Paris, embora se tenha tornado a sede da Corre aprisiona-
da e da Assembleia Nacional. Nada, estou bem informado, excede o
espectáculo chocante e repulsivo da mendicidade nessa capital. De
facto, os votos da Assembleia Nacional não deixam dúvidas desse
facto 178 • Ultimamente nomearam uma comissão permanente para
a mendicância. Estão a planear um vigoroso policiamento neste
domínio e, pela primeira vez, a imposição de uma taxa para man-
ter os pobres, para cujo alívio aparecem grandes somas nas comas
públicas do ano*179 • Enquanto isso, os líderes dos clubes legislati-

n · Nora do Auro r: Vejam-se as Viagens de G ulive r para se ter um a ideia de


países governados po r fil ósofos.
1
- • N ora d o autor: O Senhor de C alo nne apresenta a queda da população de

Paris como muito mais apreciável, e pode ser que seja, desde o período em que o Senho r
Necker fez os cálculos.
n N.T. Burke mantinha-se info rmado lendo os registos dos trabalhos da Assem-
bleia Nacional. O Senhor de C alonne, mencionado acim a, estava exilado em Inglaterra,
manteve com Burke uma relação próxima e era seu ass íduo correspondente já que Burke
teve um impo rtante papel no apoio aos refugiados franceses.
n "Nora d o auto r:
Livres Libras esterlinas s. d.
Trabalhos de caridade para
faze r face ao dese mprego em 3,866,920 161,121 13 4
Paris e nas províncias
Eli minação da vagabundagem
1,67 1,4 17 69.642 7 6
e da mendicidade
Prémios para a importação de
5,67 1,907 236,329 9 2
cereais
Despesas relativas à
subsistênc ia, dedução feira das 39,87 1,790 1,661 ,324 11 8
colectas que tiveram lugar
Tora!
51 ,082,034 2,128,4 18 8
204

vos e dos cafés estão deslumbrados com a sua própria sabedoria e


habilidade. Falam com o desprezo mais altivo do resto do mundo.
Dizem ao povo, para o confortar dos farrapos com que o vestiram,
que são uma nação de filósofos e, por vezes com todas as artes de
um desfile burlesco, com espectáculo, tumulto e azáfama, por ve-
zes através de alarme de conspirações e invasões, tentam afogar os
gritos de indigência e desviar o olhar do observador da ruína e da
miséria do Estado. Um povo corajoso certamente preferirá a liber-
dade acompanhada de uma pobreza virtuosa a uma servidão rica e
depravada. Mas ames que o preço do conforto e da opulência seja
pago, é preciso estar seguro de que é a verdadeira liberdade que se
está a comprar e que ela não pode ser adquirida senão a este preço.
No entanto, eu sempre considerarei a liberdade como muito equí-
voca na sua aparência, quando não tem por companhia a sabedoria
e a justiça e quando não traz consigo prosperidade e abundância.
Os defensores desta Revolução, não satisfeitos com o terem
exagerado nos defeitos do seu antigo governo, atacam a própria boa
fama do seu país descrevendo como horríveis quase tudo o que po-
dia atrair a atenção dos estrangeiros, isto é, a sua nobreza e o seu
clero. Se isto fosse apenas difamação não era grande coisa. Mas tem
consequências práticas. Se a vossa nobreza e fidalguia, que forma-
vam a grande maioria dos senhores das terras e a totalidade dos vos-
sos oficiais militares, se parecessem aos da Alemanha no período em

~ando enviei este livro para a imprensa mantinha algu mas dúvidas no respeitan·
te à natureza e extensão do último artigo nas contas acima expostas, que está ape nas sob
um tÍtulo ge nérico e sem qualquer pormenor. Depois disso vi o trabalho do Senhor de
Calonne. Penso que é uma grande pena que eu não tivesse tido essa oportunidade antes.
O Senhor de Calonne pensa que esse artigo corresponde à subsistência geral, mas
não é capaz de explicar como um decréscimo tão grande, que ascende 1,661,000 libras es·
terlinas, pode basear-se na diferença entre o preço de custo e de venda dos cereais, parece
atribuir este valor tão elevado de gastos a despesas sec retas da Revolução. 1ão posso dizer
nada de concreto sob re este assu nto. O leitor é capaz de ajuizar pelas contas agregadas
destas despesas imensas, acerca do estado e da condição de França e ace rca do sistem a de
economia pública adoptado nesta nação. Esta prestação de contas não produziu nenhum
inquérito ou discussão por parte da Assembleia Nacional.
205

que as cidades da Hansa precisaram de se confederar contra os no-


bres em defesa da sua propriedade, tivessem elas sido como os Orsi-
ni e os Vitelli 180 em Itália, que costumavam sair do bastião dos seus
esconderijos em investidas para roubar o negociante e o viajante,
tivessem elas sido como os Mamelucos 18 1 do Egipto, ou os Nair 182
da Costa de Malabar, reconheço que não seria aconselhável inquirir
de modo tão crítico sobre os meios de libertar o mundo de tal incó-
modo. Os bustos da Equidade e da Misericórdia poderiam estar ve-
lados por algum tempo. As mentes mais brandas, confundidas com
a horrível exigência na qual a moralidade se submete à suspensão
das suas próprias regras a favor dos seus princípios, poderiam olhar
para outro lado, enquanto a fraude e a violência levavam a cabo a
destruição de uma falsa nobreza, que desonrava a natureza humana
ao mesmo tempo que a perseguia. As pessoas que mais abominam
o sangue, a traição e o confisco arbitrário, poderiam permaneceres-
pectadores silenciosos desta guerra civil entre vícios. Mas a nobreza
privilegiada que se reuniu sob os auspícios do rei em Versalhes em
1789, ou os seus constituintes, merecem ser olhados como os Nair
ou os Mamelucos desta era, ou como os Orsini e Vitelli dos tempos
antigos? Se, na altura, eu tivesse perguntado isso, teria passado por
louco. O que fizeram eles desde então, para serem conduzidos ao
exílio, as suas pessoas serem caçadas, mutiladas, torturadas, as suas
famílias dispersadas, as suas casas reduzidas a cinzas, a sua classe
abolida, e a memória dela, se poss ível, extinta, impondo-lhes que

80
' .T. A fa mília Orsini é uma poderosa fa mília da alta nobreza italiana que viu
elege r no seu seio três papas: C elestino III, N icolau III e Bento XIII, bem como vários car-
deais. A sua pos ição favo rável ao papado fê-la opo r-se à família Colonna que era contra o
poder papal. A luta sangrenta entre estas duas fa mílias assolou as ruas de Ro ma. Era natu·
ral que Burke, como anglicano, nutrisse maio r simpatia pela fa mília Colonna. O s Vitelli
eram uma família de ricos mercadores de Cità di Castello que se to rnaram senhores da
cidade e mant inham um poderio desproporcionado, q uer político quer militar. T ambém
eram apoiantes do Papa.
81
' N .T . Casta militar.
182
N .T. U ma catego ria de castas ind ianas com um histo rial de envolvi mento em
confli tos armados.
206

mudem os próprios nomes pelos quais eram, habitualmente, co-


nhecidos? Leiam as instruções deles aos seus representantes. Eles
respiram o espírito de liberdade tão acaloradamente e recomendam
reformas com tanto vigor, quanto qualquer outra classe. Os seus
privilégios em relação ao imposto foram voluntariamente cedidos,
como o rei abdicou desde o início de qualquer pretensão ao direito
de taxar.
Acerca da constituição livre a opinião era unânime em França.
A monarquia absoluta estava no fim. Tinha dado o último suspiro
sem um gemido, sem luta, sem convulsão. Toda a luta e toda adis-
córdia levantou-se a seguir, quando se preferiu uma democracia des-
pótica a um governo com controlo recíproco. O triunfo do partido
vitorioso foi sobre os princípios de uma Constituição Britânica.
Observei o hábito que durante muitos anos predominou em Paris
de idolatrar, num grau perfeitamente infantil, a memória de Hen-
rique IV. Se alguma coisa poderia pôr alguém indisposto com esta
descrição do carácter real, era este estilo exagerado de panegírico
insidioso. As pessoas que mais empenhadamente fizeram trabalhar
esta máquina foram aqueles que terminaram os seus elogios destro-
nando o seu sucessor e descendente: um homem, no mínimo, de
tão boa índole quanto Henrique IV 183 , totalmente dedicado ao seu
povo e que fez mais para corrigir os antigos vícios do Estado do que
fez aquele grande monarca, ou que alguma vez ele tencionou fazer,
estamos seguros. Ainda bem para os autores destes panegíricos que
não é com ele que têm de lidar! Porque Henrique de Navarra era
um príncipe, resoluto, activo e político. Possuía de facto grande hu-
manidade e brandura, mas uma humanidade e uma brandura que
nunca interferiu no curso dos seus interesses. Nunca procurou ser
amado sem se colocar primeiro na condição de ser temido. Usava

183
H enrique III de Navarra e IV de França. Sucede ao cunhado Henrique III de
França. Pertencia antes aos H uguenores e abjura a fé calvinista quando ascende ao trono
de França. O seu rein ado é marcado por grande tolerância religiosa que consagra com a
pro mulgação do Éd ito de Nantes em 1598.
207

linguagem branda com conduta firme. Afirmava e mantinha a sua


autoridade no todo, distribuía as suas concessões apenas nos por-
menores. Despendia com nobreza o lucro dos seus privilégios, mas
cuidava de não delapidar o capital, não abandonando nem por um
momento nenhuma das exigências que fez ao abrigo das leis funda-
mentais, nem se coibindo de derramar o sangue daqueles que se lhe
opunham, muitas vezes no campo de batalha, outras vezes no ca-
dafalso. Porque ele sabia fazer os ingratos respeitar as suas virtudes,
mereceu os elogios daqueles que, se ele vivesse neste nosso tempo,
teria trancado na Bastilha e teria castigado, juntamente com os regi-
cidas que ele enforcou, após ter forçado Paris à rendição pela fome.
Se estes apologistas são sinceros na sua admiração de Henri-
que ~arto, devem lembrar-se de que eles não têm um conceito
mais elevado do monarca do que ele teve da nobreza de França, cuja
virtude, honra, coragem patriotismo e lealdade eram o seu tema
constante.
Mas a nobreza de França degenerou desde os tempos de Hen-
rique ~arto. É possível. Mas [o que dizem dela] é mais do que
eu posso acreditar ser verdade ainda que tivesse degenerado muito.
Não pretendo conhecer a França tão bem quanto outros, mas tentei
durante toda a minha vida conhecer a natureza humana, de outro
modo, não teria préstimo nem mesmo para desempenhar o meu
humilde papel ao serviço da humanidade. Neste estudo não pude
passar ao lado de grande parte da nossa natureza, tal como ela apa-
rece modificada num país que fica apenas a vinte e quatro milhas
da costa desta ilha. Na minha observação cuidada, comparada com
a minha melhor investigação, achei a Vossa nobreza, em grande
parte, composta por homens de espírito elevado e de um delicado
sentido da honra, quer em relação a eles próprios, individualmente,
quer em relação a toda a sua classe, sobre a qual têm um olhar cen-
sório mais do que é comum em outros países. São razoavelmente
bem educados, muito prestáveis, humanos e hospitaleiros. Na sua
208

conversação são francos e abertos, com um bom tom militar, com


um certo verniz literário, particularmente sobre os autores da sua
própria língua. Muitos tinham pretensões muito acima desta des-
crição. Falo daqueles que geralmente se encontravam.
~anto ao seu comportamento em relação às classes inferio-
res, pareceu-me que se comportavam bem em relação a elas, e com
algo que se aproximava da familiaridade mais do que é geralmente
praticado entre nós na relação entre as camadas mais altas e as mais
baixas. Bater em alguém, mesmo da mais abjecta condição, era uma
coisa de certa forma desconhecida e seria altamente vergonhoso.
Exemplos de outros tipos de maus tratos à parte mais humilde da
sociedade eram raros e, quanto a ataques feitos à propriedade ou à
liberdade do povo, nunca ouvi de nenhum caso de sua autoria, nem
quando as leis do antigo regime estavam em vigor seria permitida
uma tal tirania sobre os súbditos. Como proprietários de terras,
não encontro faltas para apontar na sua conduta, embora encontre
muito a censurar-lhes e muita coisa que gostaria de ver mudada nos
antigos domínios. ~ando arrendavam as suas terras, não vi que os
seus acordos com os rendeiros fossem opressivos, nem quando eram
em parceria com o rendeiro, como era muitas vezes o caso, ouvi di-
zer que ficassem com a parte do leão. As proporções não pareciam
injustas. Talvez existissem excepções. Mas, certamente, eram ape-
nas excepções. Não tenho razões para acreditar que, a este respei-
to, a nobreza francesa com propriedades fosse pior que os fidalgos
proprietários de terras deste país, certamente, em nenhum aspecto
seriam mais opressores do que os proprietários de terras, não no-
bres, do seu próprio país. Nas cidades a nobreza não tem hábitos
de poder, no campo, muito poucos. Saiba o Senhor, que muito do
governo civil e do controlo, na sua parte mais essencial, não estava
nas mãos daquela nobreza que primeiro apreciámos. Os rendimen-
tos, cujo sistema e a cobrança eram os aspectos mais gravosos do go-
verno de França, não eram administrados pelos homens de espada,
209

nem eles eram responsáveis pelos vícios dos princípios do sistema


ou pela opressão, se é que ela existia, da sua administração.
Negando, como eu estou autorizado a fazer, que a nobreza ti-
vesse parte na opressão do povo, em casos em que uma opressão real-
mente existiu, estou pronto a admitir que eles não estavam isentos
de faltas consideráveis e de erros. Uma imitação imprudente da pior
parte dos costumes de Inglaterra, que prejudicaram o seu carácter
natural, sem colocar no seu lugar aquilo que eles talvez quisessem
copiar, de certeza que os tornou piores do que eles originalmente
eram. Uma dissolução habitual de costumes, que continuava para
além daquele período da vida em que é desculpável, era mais co-
mum entre eles que entre nós e reinava sem a mais pequena espe-
rança de remédio, embora talvez com um pouco menos de dano,
por ser encoberta por um certo decoro exterior. Encorajaram por
demais aquela filosofia licenciosa que ajudou a levá-los à ruína.
Houve outro erro entre eles mais fatal. Aqueles, dentre a plebe, que
se aproximaram ou que excederam muita da nobreza em riqueza
não foram plenamente admitidos no nível social e com a conside-
ração que a riqueza, com razão e por boa política, deve outorgar
em qualquer país, se bem que, penso, não em pé de igualdade com
a outra nobreza. Os dois tipos de aristocracia eram muito escrupu-
losamente separadas, contudo, talvez menos que na Alemanha e em
algumas outras nações.
Esta separação, como já tomei a liberdade de lhe sugerir, pen-
so ser uma das principais causas da destruição da antiga nobreza.
A classe militar, particularmente, estava reservada aos homens de
família. Mas, ao fim e ao cabo, este era um erro de opinião, que outra
opinião contrária poderia ter rectificado. Uma Assembleia perma-
nente na qual o povo tivesse a sua parte de poder, teria rapidamente
abolido o que quer que fosse de demasiado ofensivo e insultuoso
nestas distinções, e mesmo as faltas morais da nobreza teriam pro-
210

vavelmente sido corrigidas pela maior multiplicidade de ocupações


e interesses a que uma constituição por classes teria dado origem.

Este grito violento contra a nobreza penso que é apenas uma


simples obra de astúcia. Ser honrado e mesmo privilegiado pelas
leis, pela opinião e por imemoriais costumes do país, que surgiram
a partir de preconceitos com séculos, não tem nada que provoque
horror e indignação seja em quem for. Mesmo ser muito tenaz em
relação a estes privilégios não tem nada de criminoso. A luta enérgi-
ca de cada indivíduo para preservar o que ele acha que lhe pertence
e lhe confere distinção é uma das defesas contra a injustiça e o des-
potismo implantadas na nossa natureza. Opera como um instinto
que protege a propriedade e que preserva a estabilidade da comuni-
dade. O que é que há de chocante nisto? A Nobreza é um ornamen-
to gracioso da ordem civil. É o capitel Coríntio de uma sociedade
refinada. "Omnes boni nobilitati semper jàvemus" 18\ era o dito de
um homem sábio e bom. É, de facto, um sinal de uma alma liberal e
benevolente ser tendenciosamente propenso a inclinar-se para isso.
Não tem um princípio enobrecedor no coração quem quer nivelar
todas as instituições artificiais que foram adoptadas para dar cor-
po a convicções e constância a uma estima fugaz. Um carácter aze-
do, maldoso e perverso, sem gosto pela realidade ou por qualquer
imagem ou representação da virtude, é que vê com alegria a queda
imerecida do que tinha florescido em esplendor e honra durante
tanto tempo. Não gosto de ver nada destruído, nenhum vazio pro-
duzido na sociedade, nenhuma ruína à face da terra. Foi, por isso,
sem decepção nem descontentamento, que as minhas investigações
e as minhas observações não me mostraram vícios incorrigíveis na
nobreza francesa ou algum abuso que não pudesse ser removido
por uma reforma que não chegasse à abolição. A vossa nobreza não
merecia castigo, mas degradar é punir.

IS<
.T . "Nós, homens bons, favorece mos se mpre a nobreza". Cic. Sest. 2 1.
211

Foi com a mesma sarisfação que descobri que o resulrado das


minhas invesrigações em relação ao clero não era muiro diference.
Não são norícias agradáveis aos meus ouvidos saber que grandes as-
sociações de homens são incuravelmenre corrupras. Também não
sou muiro crédulo quando ouço alguém falar mal daqueles a quem
se prepara para saquear. Anres suspeiro que os seus vícios são inven-
rados e exagerados, quando se espera rerirar proveiro do seu casrigo.
Um inimigo é uma má resremunha, um ladrão é uma resremunha
ainda pior. Vícios e abusos exisriam, sem dúvida, nesra classe, ne-
cessariamenre. Era uma insriruição anriga e não era revisra com fre-
quência. Mas não vi crimes nos indivíduos que merecessem o con-
fisco dos seus bens, nem aqueles insulros cruéis, aquela degradação e
aquela perseguição desnarurada, que ocupou o lugar das regras que
os melhorassem.
Se houvesse alguma causa jusra para esra nova perseguição reli-
giosa, os caluniadores areus, que acruaram como rrombereiros para
animar a populaça ao saque, não reriam ranra compaixão por nin-
guém a ponro de não se dererem, complacenres, nos vícios do cle-
ro. Não fizeram isro. Viram-se obrigados a remexer nas hisrórias de
rempos idos (que repescaram com um empenho maldoso e devas-
so) porque rodos os exemplos de opressão e perseguição que foram
levados a cabo por esra insriruição ou em seu favor, serviram para
jusrificar, arravés de iníquos, porque muiro ilógicos, princípios de
reraliação, as suas perseguições e as suas próprias crueldades. Após
rerem desrruído rodas as ourras genealogias e disrinções familiares,
invenraram uma espécie de pedigree de crimes. Não é muiro jusro
casrigar alguém pelas ofensas dos seus anrepassados, mas adoprar a
ficção da ancesrralidade numa sucessão de uma comunidade, como
fundamenro para punir homens que não rêm qualquer relação com
acros culposos, salvo no nome e na caregoria geral, é uma espécie
de refinamenro da injusriça que é própria da filosofia desres rempos
iluminados. A Assembleia pune homens que, muiros deles, se não
a maioria, abominam a condura violenra de eclesiásricos de rempos
212

idos, tanto quanto os seus actuais perseguidores podem abominar, e


que expressariam esse sentimento alto e bom som se não estivessem
perfeitamente conscientes dos propósitos para que seriam aprovei-
tadas essas declarações.
As corporações são imortais para o bem dos membros, mas
não para o seu castigo. As Nações também são corporações des-
te tipo. De igual modo, poderíamos nós em Inglaterra pensar em
empreender uma guerra irremissível contra todos os franceses pe-
los males que eles nos acarretaram nos vários períodos das nossas
hostilidades mútuas. Os senhores poderiam, por sua vez, julgar-se
no direito de arremeter contra rodos os ingleses, em nome das in-
comparáveis calamidades causadas ao povo de França pelas invasões
injustas dos nossos Henriques e dos nossos Eduardos. De facto , es-
taríamos mutuamente justificados nesta guerra de extermínio uns
contra os outros, tanto quanto os senhores estão da perseguição a
inocentes do vosso próprio país por causa de homens com a mesma
denominação noutras eras.
Nós não retiramos as lições morais que poderíamos retirar da
história. Pelo contrário, sem cuidado, ela pode ser usada para vi-
ciar as nossas almas e para destruir a nossa felicidade. Na história,
um grande volume se desenrola para nossa instrução, esboçando as
fontes de uma sabedoria futura a partir dos erros do passado e das
debilidades da humanidade. Pode, se usada perversamente, servir
de recurso, fornecendo armas ofensivas e defensivas para grupos da
Igreja e do Estado, e alimentar os meios para manter vivas, ou para
fazer reviver, as antigas dissenções e animosidades, acrescentando
achas à fogueira da fúria civil. A História consiste, na sua maior
parte, da desolação causada ao mundo pelo orgulho, a ambição, a
avareza, a vingança, a luxúria, a sedição, a hipocrisia, o zelo desgo-
vernado e roda uma comitiva de apetites desordenados, que agitam
a sociedade com idênticas "tempestades turbulentas que sacodem
213

o Estado e tornam a vida amarga" 185 • Os vícios são as causas des-


tas tempestades. A religião, a moral, as leis, as prerrogativas, os pri-
vilégios, as liberdades, os direitos do homem, são os pretextos. Os
pretextos são sempre encontrados numa aparência falsa de um bem
real. Protegerão os homens da tirania e da sedição arrancando da
sua alma os princípios aos quais se aplicam estes pretextos fraudu-
lentos? Se o fizerem, arrancarão fora tudo o que tem valor no cora-
ção do homem. Tal como estes são os pretextos, também os acto-
res comuns e os instrumentos dos grandes males públicos, são reis,
clérigos, magistrados, senados, parlamentos, assembleias nacionais,
juizes e capitães. Não curareis o mal por decidirdes que passarão a
não existir, monarcas, nem ministros de Estado, nem do Evange-
lho, nem intérpretes da lei, nem generais, nem assembleias públicas.
Podeis mudar-lhes o nome, as coisas de uma forma ou de outra de-
verão manter-se. Um certo quantum de poder deve existir sempre
na comunidade, nas mãos de alguém e sob alguma designação. Os
homens sábios aplicam os seus remédios aos vícios não aos nomes,
às causas do mal - as quais são permanentes- não aos órgãos ocasio-
nais pelos quais os vícios actuam, nem às formas transitórias que es-
tes assumem. Caso contrário, o Senhor seria historicamente sábio,
mas um tolo na prática. Raramente duas épocas tiveram a mesma
moda nos seus pretextos ou o mesmo tipo de maldade. A maldade é
um pouco mais inventiva. Enquanto os senhores discutem a moda,
a moda já se foi. O mesmo vício assume um outro corpo. O seu espí-
rito transmigra e, longe de perder a sua vitalidade pela mudança da
sua aparência, remoça nos seus novos órgãos no fresco vigor de uma
actividade juvenil. Sai em várias direcções e continua a sua devasta-
ção enquanto vós enforcais a sua carcassa ou demolis o seu túmulo.
Aterrorizais-vos com fantasmas e aparições enquanto a vossa casa
é um refúgio de ladrões. Acontece assim com todos aqueles que,
atendendo apenas à concha e à casca da história, pensam que estão a
fazer guerra à intolerância, ao orgulho e à crueldade enquanto, sob
181
N .T. Edmund Spencer, The Faerie Queene, ll, canto VII, xiv.
214

a capa de abominarem os maus princípios dos velhos partidos, eles


estão a consentir e a alimentar os mesmos vícios odiosos em facções
diferentes e talvez piores.
Os vossos cidadãos de Paris prestaram-se a ser instrumentos
do assassínio dos seguidores de Calvino nos infames massacres de
S. Bartolomeu 186 • ~e diríamos nós aos que pensassem em retaliar
nos parisienses de hoje os horrores abomináveis de então? Eles são
de facto, levados a odiar aquele massacre. Ferozes como são, não
é difícil fazê-los detestá-lo, porque os políticos e os professores da
moda não têm qualquer interesse em dar às suas paixões exactamen-
te a mesma direcção. No entanto, interessam-se por manter vivas as
mesmas disposições selvagens. Foi há poucos dias que eles fizeram
este mesmo massacre ser representado para diversão dos descenden-
tes daqueles que o cometeram. Nesta trágica farsa representaram
o Cardeal de Lorraine, paramentado, comandando a matança ge-
ral. Seria intenção deste espectáculo fazer os parisienses abominar
a perseguição e detestar o derramamento de sangue? Não: era para
ensiná-los a perseguir os seus próprios pastores, era para os exci-
tar, fazendo crescer neles o ódio e o horror ao seu clero a ponto de
com alacridade, levarem à destruição uma classe que, se é que tem
de existir, deve existir não só em segurança mas como objecto de
reverência. Era para estimular os seus apetites canibais (que, seria
de pensar, já tinham sido bastante saciados) pela variedade e pelo
condimento, deixando-os prontos para ficarem alerta em relação
a novos assassínios e massacres, caso isso sirva os propósitos dos
Guise dos dias de hoje. Uma Assembleia na qual têm assento uma

186
N.T. O massacre da noite de S. Bartolomeu teve lugar na noite de 23 para
24 de Agosto de 1572 em plena guerra civil religiosa francesa, constituiu um ataque aos
huguenotes - calvinistas franceses - por parte dos católicos. O rei católico, Carlos IX,
terá mandado assassinar alguns líderes huguenotes e o massacre estendeu-se a rodos os
huguenotes de Paris nessa noite e, nas semanas seguintes, a outras cidades e vilas de Fran·
ça. O número de vítimas e a extensão no tempo do massacre variam bastante consoante as
fo ntes. O Duque Henrique de Guise e o Cardeal de Lorraine, também membro da família
Guise, fo ram os condutores do massacre.
215

multidão de padres e prelados foi obrigada a sofrer este ultraje à sua


porta. O autor não foi mandado para as galeras, nem os actores para
casas de correcção. Pouco tempo depois desta exibição, estes actores
entraram na Assembleia, declarando os ritos da religião que se atre-
veram a expor, e mostraram a sua cara desenvergonhada no senado,
enquanto o Arcebispo de Paris cuja função era conhecida do seu
povo apenas pelas suas orações e pelas suas bênçãos, e a sua rique-
za apenas pelas esmolas, é forçado a abandonar a sua casa e a fugir
do seu rebanho (como de lobos raivosos) porque, de facto, no
século XVI o Cardeal de Lorraine era um rebelde e um assassino 187 *.
Este é o efeito da perversão da História por aqueles que, para
os mesmos nefandos propósitos, corromperam todo o resto da
aprendizagem. Mas aqueles que, ascendendo ao plano da razão,
resolverem colocar os séculos sob o nosso olhar e resolverem com-
parar verdadeiramente, o que ofusca os nomes pequenos e esbate
as cores de algumas facções de tal modo que apenas se destaque o
espírito e a qualidade moral das acções humanas, dirão a estes pro-
fessores do Palais Royal: o Cardeal de Lorraine foi um assassino
do século dezasseis, os senhores têm a glória de serem os assassinos
do século dezoito e esta é a única diferença entre vós. Mas a histó-
ria no século dezanove, mais bem compreendida e melhor aplicada,
acredito que ensinará a uma posteridade civilizada a abominar os
crimes de ambas as épocas igualmente bárbaras. Ensinará aos futu-
ros padres e magistrados a não retaliarem contra ateístas especula-
tivos e inactivos dos tempos futuros pelas enormidades cometidas
pelos actuais zelotes praticantes e fanáticos furiosos deste erro infa-
me que, no seu estado inerte, tem a punição bastante na sua adop-
ção. Ensinará a posteridade a não fazer guerra quer à religião quer à
filosofia, pelos abusos que os hipócritas de ambas fizeram contra as
duas melhores bênçãos concedidas à humanidade pela bondade do

18
- • • ora do auror: Isro é, supondo que a história é verdadeira, mas ele não esrava

em França nessa alrura. Um nome serve rão bem quanro ourro.


216

Patrono universal, que em todas as coisas muito favorece e protege


a raça humana.
Se o vosso clero, ou qualquer clero, se mostrasse corrupto para
além dos limites que, pela fraqueza humana, são aceitáveis, e pa,ra
além daquelas faltas profissionais que dificilmente são separáveis
das virtudes profissionais, embora os seus vícios nunca possam fa-
vorecer a prática da opressão eu, de facto, admito que realmente
esses vícios teriam o efeito de moderar muito da nossa indignação
contra os tiranos que excedessem a medida e a justiça no seu castigo.
Posso admitir no clero, em todas as classes, alguma tenacidade nas
suas convicções, algum extravasar do seu zelo proselitista, alguma
predilecção pelo seu próprio estado e função, algum apego aos in-
teresses do seu corpo, alguma preferência por aqueles que ouvem
docilmente as suas doutrinas em relação àqueles que escarnecem e
zombam delas. Admito tudo isso, porque sou um homem que tem
de lidar com homens e que não irá, por uma violação da tolerância,
chegar ao extremo da intolerância. Tenho de suportar as fraquezas
até que se degradem em crimes.
Sem dúvida que a progressão natural das paixões, de fragilida-
des a vícios, deve ser prevenida por um olhar vigilante e uma mão
firme. Mas será verdade que o conjunto do vosso clero passou os
limites do que era justamente admissível? Pelo estilo geral das vos-
sas últimas publicações, de todos os tipos, seríamos levados a acre-
ditar que o vosso clero em França era constituído por uma espécie
de monstros: numa horrível composição de superstição, ignorância,
preguiça, fraude , avareza e tirania. Mas é isto verdade? Será verdade
que o decorrer do tempo, o fim dos conflitos de interesse, a terrível
experiência dos erros resultantes das rivalidades sectárias não tive-
ram nenhuma espécie de influência na melhoria gradual das suas al-
mas? Será verdade que eles reincidiam diariamente nas intromissões
no poder civil perturbando a paz interna do seu país e tornando as
acções do seu governo fracas e precárias? Será verdade que o actual
217

clero oprimia com mão de ferro a laicidade, e por todo o lado ateava
as fogueiras de uma perseguição feroz? Terão eles conseguido au-
mentar pela fraude os seus bens? Era-lhes habitual exigir mais pro-
priedade do que lhes era devida? Ou enredaram de tal modo o que
era bom e o que era mau que converteram o que era uma exigência
legal numa extorsão vergonhosa? ~ando não eram detentores de
poder estariam cheios dos vícios daqueles que o cobiçam? Estariam
inflamados por um espírito de controvérsia violemo e litigioso? Es-
tariam eles, picados pela ambição da supremacia intelectual, pron-
tos a sair à face da justiça a queimar igrejas, a massacrar os padres de
outras ordens, a derrubar altares, e a abrir caminho - sobre as ruínas
do governo corrompido - para um império da doutrina levando as
consciências dos homens, às vezes pela adulação outras pela força, a
subtraírem-se à alçada das instituições públicas para uma submissão
à sua autoridade pessoal, tendo começado com uma reivindicação
de liberdade e acabando num abuso de poder?
Estes, ou alguns destes, eram os vícios combatidos e não total-
mente infundados, contra alguns dos clérigos de tempos idos, que
pertenciam aos dois grandes partidos que, à altura, dividiam e agi-
tavam a Europa.
Se houvesse em França como há, visivelmente, em outros paí-
ses, um grande decréscimo e não um aumento destes vícios, em vez
de se sobrecarregar o actual clero com os crimes de outros homens
e com o carácter odioso de outros tempos, com toda a justiça, deve-
riam ser louvados, admirados e apoiados, por se terem afastado de
um espírito que difamou os seus predecessores e por terem assumi-
do uma atitude mental e uns hábitos mais conformes com as suas
funções sagradas.
~ando assuntos meus me levaram a França, no final do anti-
go regime, o clero, sob todas as suas formas, atraiu bastante a minha
curiosidade. Então, longe de ter encontrado (salvo num grupo de
homens, à altura não muito numeroso, se bem que muito activo)
218

as queixas e os descontentamentos contra o clero que algumas pu-


blicações me teriam levado a esperar, encontrei pouco ou nenhum
descontentamento, quer público quer privado, em relação a ele.
Observando melhor, achei o clero em geral, pessoas de espírito
moderado e costumes decorosos: incluo clero secular e regular de
ambos os sexos. Não tive a sorte de conhecer grande parte do clero
paroquial mas, em geral, recebi boas referências da sua moral e da
atenção que prestavam aos seus deveres. Encontrei-me pessoalmen-
te com alguns membros do alto clero e quanto aos restantes mem-
bros dessa classe tive bons meios de informação. Eram quase todos
pessoas nobres de nascimento. Assemelhavam-se a outras da mes-
ma classe e, quando neles havia alguma diferença, era a seu favor.
Eram mais bem-educados que a nobreza militar, de modo algum
deixavam ficar mal a sua profissão por ignorância ou por falta de
capacidade para o exercício da sua autoridade. Pareceram-me, para
além do seu carácter clerical, serem liberais e abertos, com coração
de cavalheiros e de homens honrados, não insolentes nem servis nas
suas maneiras ou na sua conduta. Pareceram-me mais uma classe
superior de homens entre os quais não nos surpreenderíamos de
encontrar um Fénelon 188 • Vi entre o clero parisiense (muitos de um
tipo que não ~e encontra em mais nenhum lado) homens de grande
saber e franqueza, tenho razões para pensar que este tipo não es-
tava confinado a Paris. O que encontrei em outros lugares, sei que

188
N.T . François de Salignac de la Morhe- Fénelon ( 16 51 -17 15), foi um orador
talentoso, um pedagogo e um esc ri tor de renome cuj as ideias influenciaram a cultura do
seu tempo. O s seus dotes fi zeram q ue fosse escolhido para tutor do filh o do Delfim de
França, o Duque da Bo rgonha. T em obras de fi cção, como seja L es Aventures de T éléma-
que, considerada uma crítica à política de Lu ís XIV, e por cuja auto ria acaba por ser bani -
do da co rte em 1699. T em também obras de índole fil osófico- teológica co mo a Réfutation
du systbne de Malebranche sur la nature et sur la grdce ou a D émonstration de l'existence de
D ieu, tirée de la connaissance de la Nature et proportionnée à la foible intelligence des plw
simples. Por uma obra teológica, E.xplication des maximes des saints sur la vie intérieure, foi
condenado pelo Papa Inocêncio XI sob a acusação de esta se r próxima do ~i eti s m o. O
auto r humildemente abj ura o seu conteúdo. Após ter sido banido da corte, retira-se para
a arquidiocese de Cambrai onde se ded ica à sua actividade pastoral rendo adquirido justa
fa ma de sacerdote bom e erudito.
219

foi acidental, e por isso deve ser encarado como uma amostra justa.
Passei vários dias numa cidade de província, onde, na ausência do
Bispo, passei as minhas tardes com três clérigos, seus vigários-gerais,
pessoas que honrariam qualquer Igreja. Eram rodos muito bem in-
formados, dois deles com uma erudição profunda, geral e extensa,
amiga e moderna, Oriental e Ocidental, particularmente na sua
profissão. Tinham um conhecimento maior do que eu esperava dos
teólogos ingleses e penetravam o génio desses aurores com argúcia
crítica. Um destes cavalheiros já morreu: o Abade Morangis. Sem
relutância, pago este tributo à memória daquela nobre, venerável,
erudita e excelente pessoa, e deveria fazer o mesmo, com igual en-
tusiasmo, aos méritos dos outros que acredito que ainda vivem, não
fora eu temer prejudicar aqueles a quem não posso socorrer.
Alguns destes eclesiásticos destacados são, a rodos os títulos,
pessoas merecedoras do respeito geral. Merecem a minha gratidão
e a de muitos ingleses. Se esta carta algum dia chegar às suas mãos,
espero que acreditem que há quem em Inglaterra sinta particu-
larmente a sua queda injusta e a confiscação cruel da sua fortuna.
O que digo deles é um testemunho que presto à verdade, que vai até
onde a minha fraca voz pode ir. Enquanto durar esta perseguição
desnaturada, prestá-lo-ei. Ninguém me pode impedir de ser justo
e grato. Este tempo é apropriado para cumprir o dever, é particu-
larmente oportuno mostrar justiça e gratidão quando, aqueles que
merecem de nós e de roda a humanidade o melhor, estão a trabalhar
sob o descrédito do povo e sob perseguições de um poder opressivo.
Os senhores tinham ames da Vossa revolução cerca de cento
e vime bispos. Alguns deles eram homens de grande santidade e de
uma caridade sem limites. Se falamos de virtudes heróicas falamos
de virtudes raras. Creio que exemplos de grande depravação podem
ser tão raros entre eles como os de uma bondade transcendente.
Exemplos de avareza e de licenciosidade podem encontrar-se, não
questiono isso, para aqueles que se deleitam em investigações que
220

conduzem a tais descobertas. Um homem velho, como sou, não se


admira que outros, seja em que classe for, não levem uma vida de
perfeita auto-renúncia em relação à fortuna ou em relação ao pra-
zer, que de facto são desejados por rodos, por alguns com expecta-
tiva, mas por ninguém com mais exigência do que por aqueles que
estão mais atentos aos seus próprios interesses e mais indulgentes
com as suas paixões. ~ando estive em França, tenho a certeza que
o número de prelados corruptos não era grande. Alguns indivíduos
dentre eles que não se destinguiam pela regularidade das suas vidas,
fizeram algumas correcções à sua falta de virtudes austeras possuin-
do virtudes liberais. Escavam dotados de qualidades que os faziam
úteis à Igreja e ao Estado. Foi-me dito que, com algumas excepções,
Luís Dezasseis tinha sido mais atento ao carácter, nas promoções
que fez para essas posições, do que o seu imediato antecessor, e eu
acredito que possa ser verdade uma vez que um certo espírito de
reforma dominou rodo o seu reinado. Mas o actual poder mostrou
apenas disposição para saquear a Igreja. Castigou rodos os Prela-
dos: o que favorece os corruptos, pelo menos no que diz respeito
à reputação. Criou uma instituição degradante de pensionistas, ao
qual nenhum homem de ideias liberais ou de condição liberal des-
tinará os seus filhos. Precisará estabelecer-se nas classes mais baixas
do povo. Como convosco o baixo clero não é em numero suficiente
para os seus deveres, como os seus deveres são extremamente urgen-
tes e penosos, como não deixaram bem nenhuma classe intermédia
do clero, no futuro não existirá ciência ou erudição na Igreja gali-
cana. Para completar este projecto, sem o mínimo de atenção aos
direitos da clientela, a Assembleia providenciou para o futuro um
clero electivo: uma combinação que afastará da profissão clerical
os homens sóbrios e rodos aqueles que aspiram pela independência
nas suas funções e na sua conduta, e que entregará a orientação da
opinião pública às mãos de um bando de licenciosos, atrevidos, as-
tuciosos, facciosos, bajuladores miseráveis, de uma cal condição e de
uns tais hábitos de vida que farão que as suas pensões desprezíveis
221

(em comparação com elas o salário de um cobrador de impostos é


lucrativo e honrado) sejam objecto de intrigas reles e mesquinhas.
Estes funcionários, a quem continuam a chamar Bispos, deverão ser
eleitos para uma provisão comparativamente insignificante, através
das mesmas artes (isto é, artes eleitorais) por homens de todas as
facções religiosas, conhecidas ou passíveis de serem inventadas. Os
novos legisladores não determinaram o que quer que fosse em rela-
ção às suas qualificações, quer relativas à sua doutrina quer relativas
à sua moral, não mais do que o fizeram em relação ao clero subordi-
nado, nem parece senão que quer o alto quer o baixo clero podem,
à sua descrição, praticar ou pregar o modo de religião, ou irreligião,
que lhes agrade. Por enquanto não vejo qual será a jurisdição dos
bispos sobre os seus subordinados, ou sequer se, de todo, vão ter
alguma jurisdição.
Abreviando, saiba o Senhor que me parece que esta nova ins-
tituição eclesiástica se pretende apenas que seja temporária e prepa-
ratória de uma ulterior abolição da religião cristã, sob qualquer das
suas formas, quando as mentes dos homens estiverem preparadas
para este novo golpe contra ela, cumprido o plano de tornar os seus
ministros alvo do desprezo geral. Aqueles que não acreditam que os
filosóficos fanáticos que conduzem estes assuntos há muito que ali-
mentam tais desígnios, são ignorantes acerca do seu carácter e dos
seus estratagemas. Estes entusiastas não têm escrúpulos em confes-
sar as suas convicções de que o Estado pode subsistir sem qualquer
religião melhor do que com religião e que são capazes de suprir o
bem que a religião pode ter pondo no seu lugar um outro projecto
de sua autoria, nomeadamente, uma espécie de educação que ima-
ginaram, fundada no conhecimento das necessidades físicas do ho-
mem, levada progressivamente a um esclarecido interesse-próprio,
que, quando bem entendido, explicam eles, se identificará com um
interesse mais alargado e público. O esquema desta educação é co-
nhecido há muito. Ultimamente distinguem-no (já que criaram
222

uma nomenclatura completa de termos técnicos) pelo nome de


Educação Cívica .

Espero que os seus partidários em Inglaterra (a quem eu an-


tes prefiro atribuir uma conduta irreflectida que o objectivo último
deste plano odioso) não sejam bem sucedidos, nem na pilhagem do
clero, nem na introdução de um princípio de eleição popular para
os nossos bispos e os nossos párocos. Isto, nas presentes condições
do mundo, seria a corrupção final da Igreja e a ruína total do espíri-
to clerical, seria o mais perigoso choque que o Estado já sofreu por
meio de um tratamento equívoco da religião. Sei muito bem que
as dioceses e paróquias, sob protecção do rei e protecção senhorial,
como são agora em Inglaterra e como têm sido ultimamente em
França são, por vezes, obtidas por métodos indignos, mas o outro
modo de eleger eclesiásticos submete-os, de modo infinitamente
mais certo e mais geral, a todas as artes perversas de uma ambição
vil, as quais, actuando através e sobre um número maior, produzem
os prejuízos correspondentes.
Aqueles de vós que roubaram o clero pensam que facilmente
vêem aprovada a sua conduta por todas as nações protestantes, por-
que o clero a quem eles pilharam, reduziram a condições degradan-
tes, e expuseram ao gozo e ao escárnio, pertence à Igreja Católica
Romana, isto é, à sua suposta denominação religiosa. Eu não tenho
dúvida de que se podem encontrar aqui, como em todo o lado, al-
guns miseráveis fanáticos , que detestam seitas e facções diferentes
das deles mais do que amam a própria religião e que estão mais irri-
tados contra os que diferem deles nos seus planos e sistemas parti-
culares do que descontentes com aqueles que atacam os fundamen-
tos da nossa esperança comum. Estes homens escreverão e falarão
sobre este tema como se espera que falem, atendendo à sua têmpera
e ao seu carácter. Burnet 189 diz que, quando esteve em França, no
ano de 1683, "o método que seguiam os homens mais importantes

189
1 .T. G ilbert Burnet ( 1643-17 15), eminente teólogo anglicano.
223

do catolicismo era este: punham em causa a totalidade da religião


cristã: quando isso estava feito, parecia a coisa mais indiferente de
que lado ou sob que modo eles prosseguiam exteriormente". Se esta
era então a política eclesiástica de França, é a que têm desde então
e têm mais do que razões para se arrependerem dela~ Preferiram o
ateísmo a uma forma de religião não compatível com. as suas ideias.
Venceram destruindo essa forma de religião e o ateísmo venceu
destruindo-os a eles. Eu acredito na história de Burnet, porque ob-
servei muitas vezes um espírito semelhante entre nós (porque um
pouco disto já é "por demais" 190 ). Todavia, não é o espírito geral.
Os professores que reformaram a nossa religião em Inglaterra
não se podem comparar com os vossos actuais doutores reformistas
em Paris. Talvez estivessem (como aqueles a quem se opunham),
mais do que se pode desejar, sob a influência de um espírito fac-
cioso, mas eram crentes muito sinceros, homens da piedade mais
fervorosa e exaltada, prontos a morrer (e alguns de facto morre-
ram) como verdadeiros heróis em defesa da sua visão particular do
cristianismo, como o fariam com igual fortaleza, e galhardamente,
por aquele acervo de verdade comum àqueles vários ramos que eles
combatiam com o seu sangue. Estes homens teriam repudiado com
horror estes miseráveis que reclamam ser seus camaradas em nome
do facto de eles terem pilhado aquelas pessoas com quem mantêm
controvérsias e de terem desprezado a religião comum, por cuja pu-
reza eles se esforçaram com um zelo que revela inequivocamente a
mais elevada reverência pela substância do sistema que eles queriam
reformar. Muitos dos seus descendentes mantiveram o mesmo zelo,
mas (porque menos envolvidos no conflito) com mais moderação.
ão se esquecem que a justiça e a misericórdia são partes funda-
mentais da religião. Os homens ímpios não se credenciam para per-
tencer àquele grupo pela iniquidade e crueldade para com quais-
quer dos seus semelhantes.

190
N .T . "Much too much".
224

Ouvimos estes novos professores a alardear constantemente o


seu espírito de tolerância. ~e estas pessoas devam tolerar todas as
opiniões porque não consideram nenhuma delas, tem muito pouco
mérito. Igual negligência não é o mesmo que bondade imparcial.
O tipo de benevolência que provém do desprezo não é verdadeira
caridade. Há em Inglaterra muitos homens que toleram com ver-
dadeiro espírito de tolerância. Pensam que os dogmas da religião,
se bem que em graus diferentes, são rodos de grande importância
e que neles há, como em rodas as coisas de valor, um fundamento
justo para a sua preferência. São benevolentes e por isso tolerantes.
Toleram não porque desprezem as convicções mas porque respei-
tam a justiça. Protegeriam reverentemente e afectuosamente rodas
as religiões, porque amam e veneram o grande princípio acerca do
qual todas concordam e o grande objectivo que todas elas perse-
guem. Começam a discernir cada vez mais abertamente que rodos
temos uma causa comum contra um inimigo comum. Não serão tão
desorientados pelo facciosismo a ponto de não distinguirem o que
é feito a favor da sua subdivisão, daqueles actos de hostilidade que,
por meio de uma facção, atingem todo o corpo no qual eles pró-
prios, sob outra denominação, se incluem. É impossível para mim
dizer qual pode ser o carácter de todas as categorias de homens que
existem entre nós, mas falo pela maior parte e por eles tenho de di-
zer-vos que esse sacrilégio não faz parte da sua doutrina sobre boas
acções que, longe de apelarem a que se associem a eles por esse mo-
tivo, se os vossos professores forem admitidos ao convívio com eles,
precisam dissimular cuidadosamente a sua doutrina que torna legal
proscrever homens inocentes e hão-de obrigá-los a restituir rodos
os bens roubados, quaisquer que eles sejam. Até que isso aconteça,
não são dos nossos.
Pode supor que nós não aprovamos a vossa confiscação de
bens aos bispos, aos decanos, aos cónegos e ao clero paroquial que
possuía bens autónomos provenientes das terras, porque nós temos
exactamente o mesmo tipo de instituição em Inglaterra. Essa objec-
225

ção, dirá o Senhor, não pode manter-se no que diz respeito à con-
fiscação dos bens de monges e freiras e à abolição das suas ordens.
É verdade que este aspecto particular do vosso confisco geral não
afecta a Inglaterra como um precedente na matéria, mas essa razão
aplica-se, e de forma óptima. O Long Parliament 19 1 confiscou as
terras dos decanos e dos cónegos em Inglaterra com base nas mes-
mas ideias em que a Vossa Assembleia se baseou para pôr à venda
as terras das ordens monásticas. Mas é no princípio de injustiça que
o perigo reside e não no tipo de pessoas sobre as quais se exerceu
primeiro. Vejo, num país bem perto de nós, que a política toma um
curso que põe em causa a justiça, preocupação comum da humani-
dade. Para a Assembleia Nacional de França a posse de bens é nada,
a lei e o costume nada são. Vejo a Assembleia Nacional reprovar
abertamente a doutrina da prescrição aquisitiva, que um dos vos-
sos próprios eminentes advogados* 192 nos diz, com muita verdade,
é parte do direito natural. Diz-nos ele que a afirmação peremptória
dos seus limites e a sua segurança contra a invasão, estavam entre as
causas pelas quais a sociedade civil foi instituída. Se o princípio de
prescrição aquisitiva for abalado, nenhuma espécie de proprieda-
de estará segura, sempre que se tornar suficientemente grande para
tentar a cobiça de um poder indigente. Vejo uma prática que corres-
ponde perfeitamente ao seu desprezo por este aspecto fundamental
do direito natural. Vejo os confiscadores a começarem pelos bispos,
pelos cabidos e pelos mosteiros mas não os vejo a ficarem por aí.
Vejo os príncipes por nascimento que, pelos antigos costumes des-
se país, têm extensas propriedades (duramente e sem a cortesia de
uma deliberação), privados das suas propriedades e, em lugar da sua

191
N .T. Parlamento convocado por C arlos I em 1640 e que deve o seu nome ao
facro de ter fe ito aprovar uma lei que determinava que ele só poderia ser dissolvido por
acordo dos seus membros. Esteve em funções até 1653, quando fo i suspenso por Oli-
ve r Cromwell. Após a morte deste último, volrou a reunir-se. Foi finalmente extinto em
1660.
192
• Nota do Autor: Domat. [Trata-se de Jean D omat ( 1625-96) autor de L es

Lois Civiles dans leur Ordre N ature!.]


226

propriedade estável e independente, ficarem reduzidos à esperança


de uma pensão precária e caridosa à mercê da uma Assembleia, que
certamente prestará pouca atenção aos direitos dos pensionistas
às suas ordens, já que despreza os direitos dos proprietários legais.
Entusiasmados com a insolência das suas primeiras vitórias vergo-
nhosas, pressionados pelas desgraças provocadas pela sua cobiça
em relação a lucros ímpios, desapontados mas não desencorajados,
atreveram-se finalmente a subverter toda a propriedade, de todos os
tipos e a toda a extensão de um grande reino. Forçaram os homens
a aceitar, em todas as transacções comerciais, na cedência das terras,
nos negócios civis e através de toda uma comunhão de vida, como
pagamento real e como boa moeda corrente, os símbolos das suas
especulações sobre a venda projectada do seu saque. ~e vestígios
de liberdade ou de propriedade deixaram eles? Os direitos de ar-
rendamento de uma horta, o rendimento anual de um casebre, a
benfeitoria de uma cervejaria ou de uma padaria, a própria sombra
de uma propriedade objectiva é mais cerimoniosamente tratada no
nosso Parlamento do que entre vós as propriedades mais antigas e
valiosas nas mãos das personagens mais respeitáveis, ou que todo o
conjunto dos interesses financeiros e comerciais do vosso país. Te-
mos em grande conta a autoridade legislativa mas nunca pensámos
que os Parlamentos tivessem qualquer direito a violar a proprie-
dade, a passar por cima do princípio de prescrição aquisitiva, ou a
impor uma moeda fruto da sua própria ficção no lugar da moeda
verdadeira, reconhecida pelo direito das nações. Mas os senhores,
que começaram por recusar submeter-se às restrições mais modera-
das, acabaram por estabelecer um despotismo de que nunca antes se
ouviu falar. Acho que o princípio segundo o qual os vossos confisca-
dores actuam é o de que, de facto, o seu procedimento não pode ser
sustentado num tribunal, mas que as regras da prescrição aquisiti-
va não podem limitar a assembleia legislariva 193 • De forma que esta

193
"Nora do auror: Discu rso do Senhor Camus, publicado por ordem da Assem-
bleia acional. [Burke esrá a referir-se a Armand Gasron Camus nascido em Paris em
227

Assembleia legislativa de uma nação livre reúne-se não para garantir


a segurança mas para destruir a propriedade, e não só a propriedade,
mas toda e qualquer regra ou máxima que lhe possa dar estabilidade
e dos únicos instrumentos que a poderiam fazer circular.
~ando os Anabaptistas de Münster, no século XVI, enche-
ram a Alemanha de confusão com o seu sistema de nivelamento e as
suas opiniões insensatas sobre a propriedade, qual foi o país da Eu-
ropa que não se sentiu, com justiça, alarmado pela progressão da sua
fúria? De todas as coisas, a sabedoria é a que mais se aterroriza com
o fanatismo endémico, porque, de todos os inimigos, é contra este
que ela tem menos recursos. Não podemos ignorar o espírito de um
fanatismo ateu inspirado por uma multidão de escritos difundidos
com incrível assiduidade e despesa e por sermões feitos em todas
as ruas e praças com afluência de público em Paris. Estes escritos e
sermões encheram a alma da populaça de uma atrocidade tenebrosa
e selvagem, que neles se sobrepõe aos sentimentos comuns da Natu-
reza bem como a todos os sentimentos da moralidade e da religião,
a tal ponto que estes desgraçados são levados a suportar com uma
paciência taciturna as dificuldades intoleráveis que lhes trouxeram
as convulsões e as trocas feitas na propriedade 194 • O espírito de pro-
1740 e que morreu em Montmo rency em 1804. Inicialmente advogado do clero é, depois,
eleiw para o T erceiro Estado por Paris. M ais tarde, é ele quem faz votar a constituição
civil do clero. f também ele quem obtém a abolição de wdos os tÍtulos nobiliárquicos.
Acabou a sua carreira como responsável pelos Arquivos Gerais.]
19
' "Nota do autor: N ão sei se a descrição que se segue é estritamente verdade, mas
foi o que os que a publicaram fizeram passar pela verdade para anim ar outros. Numa carta
prove niente de T oul, publicada num dos seus jornais, está a seguinte passagem respeitante
ao povo daquele distrito: "Na revolução actual, eles têm resistido a tod as as tentações de
intolerância, perseguição e assédio dos inimigos da Revolução. Esquecendo os seus maio-
res interesses para honrar a visão de ordem geral que motivou a Assembleia N ac ional,
vêem, se m se queixarem, suprimir esta multidão de instituições eclesiásticas pelas quais
eles subsistiam, e até mesmo perder a sua sede episcopal, o único de wdos estes recursos
que poderia, ou melhor, que deveria em toda a equidade ser-lhes preservado; condenados
à miséria mais assustadora, sem terem sido nem poderem ser ouvidos, nada murmuram ,
pe rmanecem fi éis aos princípios do patrio tismo mais puro, estão mesmo di spostos a der-
ramar o seu sangue para a manutenção da Constituição, que reduzirá a sua cidade ao vazio
mais deplorável. " [em francês no original ]- Este povo não era suposw ter supo rtado estes
228

selitismo atinge o espírito de fanatismo. Têm sociedades com quem


conspirar e se corresponder, em casa e fora , para a propagação das
suas doutrinas. Um dos seus objectivos é a destruição da república
de Berna, um dos países mais felizes, mais prósperos e mais bem
governados da terra. Foi-me dito que, em certa medida, tiveram
sucesso ao semear lá o descontentamento. Estão activos por toda
a Alemanha. A Espanha e a Itália também foram postas à prova.
A Inglaterra não ficou fora deste plano abrangente da sua carida-
de maligna: e em Inglaterra encontramos quem lhes abra os bra-
ços, quem recomende o seu exemplo em mais do que um púlpito, e
quem escolha, em mais do que uma assembleia comemorativa, cor-
responder-se publicamente com eles, aplaudi-los e apontá-los como
exemplo a ser imitado, encontramos quem receba deles presentes
simbólicos de confraternização*195 , e estandartes consagrados pelos
seus rituais e mistérios que lhes sugerem pactos de amizade perpé-
tua ao mesmo tempo que o órgão de poder, a quem a nossa Cons-
tituição delegou de modo exclusivo a capacidade federativa deste
reino, poderá achar por bem declarar-lhes guerra.
Não temo que, seguindo o exemplo de França, procedamos à
confiscação da propriedade da nossa Igreja, embora não pense que
isso fosse um mal banal. O grande objecto da minha preocupação
é que alguma vez se pense em Inglaterra adoptar como política de
Estado procurar recursos em expropriações de qualquer tipo, ou
que, qualquer grupo de cidadãos, possa olhar para quaisquer outros
como sua presa ' 96 . As nações estão a mergulhar cada vez mais fundo
so frim entos e injustiças na luta pela liberdade, po rque este mesmo relato d iz posi tiva-
mente que eles sempre tinh am sido livres, a sua paciência na misé ria e na ruí na sofrendo,
sem um queixume, a mais Aagrance e confessada injustiça, se fo r estritamente verdade,
não pode ser outra coisa senão o efeito desce fanatismo extremo. Po r toda a França, um a
grande multidão está nas mesmas condições e com a mes ma disposição.
19
; ·Nota do autor: Vej am-se as actas da C onfederação de Nantes.
196
· Nota do autor: "Si plures sunc ii improbe dacum esc, quam illi quibus in -
jusce ademptum esc, idcirco plus etiam valem ? Non enim numero haec judicantur, sed
po ndere. ~am aucem habec aequ itatem , ut agrum multis annis, aut etiam saeculis ante
possessum, qui nuUum habuit habeat, qu i aucem habuit am ittat ? Ac, proper hoc injuriae
229

num mar de dívidas sem limites. As dívidas públicas, que primeiro


eram uma segurança para os governos, porque interessavam muita
gente na tranquilidade pública, parecem, no seu excesso, tornar-se
instrumentos de subversão dessa segurança. Se os governos paga-
rem as dívidas por meio de pesados impostos caem por se tornarem
odiosos aos olhos do povo. Se não pagarem as dívidas, serão dis-
solvidos pelos esforços do partido mais perigoso de todos: isto é,
por um vasto capital descontente, prejudicado mas não destruído.
Os homens que compõem este grupo procuram a sua segurança, em
primeira instância na fidelidade ao governo, em segunda instância,
no poder deste. Se encontram os velhos governos caducos, desgas-
tados e relaxados, portanto sem suficiente vigor para os seus propó-
sitos, podem procurar novos governos que tenham mais energia e
esta derivará não da aquisição de recursos mas do desrespeito pela
genus, Lacedaemonii Lysandrum Ephorum expulerunr, Agin regem (quod nunquam atea
apud eos acciderac) necaverunr, exque eo cempo re canrae discordi ae secucae sunr, ut et
cyranni exsisterenr, et optimates excermin arenrur, et preclarissime consticuca respublica
dilaberecur. Nec vero solum ipsa cec idic, sed eciam reliquam Graeciam evercit contagio·
nibus maio rum, qu ae a Lacedaemoniis profec tae manarunr lacius." ["Se aqueles a quem é
dado errad amente são mais do que aqueles a quem é tirado injustamente, são esses por isso
também mais forres? Na verdade, estas coisas não se julgam pelo número mas pelo peso.
Mas que equidade existe em que aquele que não possuía nenhum terreno, tenha um que
am es, durante muitos anos, ou mesmo séculos, era propriedade de outro, e que aquele que
possuía a perda ? E, po r causa deste tipo de injustiça, os Espartanos expulsaram o éfo ro
Lisandro, mataram o rei Ágis (coisa que nunca am es acontece ra entre eles), e desde aquela
alcura seguiram-se cão grandes discórdias que surgiram tiranos, as classes mais altas foram
expulsas e o Estado, constituído com grande gló ria, des moro nou-se. E Esparta não foi a
única a cai r, mas destru iu ela própri a também o resto da G récia pelo contágio dos males,
que, partindo dos espartanos, se espalharam para mais longe." C ic. Off. 2.79-80)- Após
te r falado da conduta do modelo dos verdadeiros patriotas, Aracus de Sicyon, que estava
numa disposição mui co diferente, disse - "S ic par este agere cum civibus, non (ut bis jam
vid imus) hastam in foro ponere et bona civium voei subjice re praeconis. Ar ille Graecus
(id quod fu it sapienris et praestanris viri ) omnibus consulendum esse pucavit: eaque esc
su mma rat io et sapientia boni civis, commoda civium non divellere, sed omnes eadem
aequirate co nrinere".- [t jusco agir assim com os cid adãos; não (como já vimos acontecer
duas vezes) pôr uma lança na praça pública e submeter os bens dos cidad ãos aos pregões.
;-.. las o célebre grego pensou que rodos deviam ser consulcad os (coisa que foi digna de um
homem sábio e distinto): e este é o supremo método e sabedoria do bom cidadão: não
separar à fo rça os interesses dos cidadãos, mas manter rod os unidos segundo a mesma
ju tiça. C ic. Off. 2.83.)
230

justiça. As revoluções são favoráveis ao confisco e é impossível saber


sob que odiosos epítetos as próximas expropriações serão permiti-
das. Estou certo de que os princípios que predominam em França
se estendem a muitas pessoas e muitos tipos de pessoas, em todos
os países, que julgam que a sua indolência inócua é a sua seguran-
ça. Este tipo de inocência em proprietários pode ser demonstrada
como inutilidade, e a inutilidade pode justificar que sejam incapa-
zes de manter as suas propriedades. Muitas partes da Europa estão
em franco tumulto. Em muitas outras há um surdo murmúrio sub-
terrâneo, sente-se um movimento confuso que ameaça vir a ser um
terramoto geral no mundo político. Já se formam confederações e
correspondências da mais extraordinária natureza em vários paí-
ses 197. Num tal estado de coisas devemos manter-nos em guarda.
Em todas as mudanças (se tem de haver mudanças) a circunstância
que serve melhor para limar as arestas dos seus danos e promover
o bem que possa haver nelas é que nos encontrem com o espírito
tenaz em matéria de justiça e zelosos em relação à propriedade.
Mas há-de dizer-se que estas confiscações em França não
devem alarmar as outras nações. Dizem que não são feitas por ga-
nância arbitrária, que é uma grande medida de política nacional
adoptada para remover um grande mal inveterado e supersticioso.
- É com a maior dificuldade que separo a política da justiça. A jus-
tiça é em si mesma a grande e eminente política da sociedade civil
e qualquer afastamento importante em relação a ela, seja sob que
circunstâncias for, é suspeito de não ser, de todo, política.
~ando homens são encorajados a adoptarem um certo modo
de vida pelas leis existentes e protegidos nesse modo de vida como
em ocupação legítima, quando acomodaram todas as suas ideias e
os seus hábitos a isso, quando a lei há muito que consagrou a ade-
são a essas regras como estimável e o afastamento em relação a elas

l!r" · Nora do Autor: Ver dois livros que se intitulam Einige Originalshriften des
Illuminateordens - System und Folgen des Illuminateordens , München, 1787.
231

como vergonhoso e mesmo sujeito a penalização, estou certo que


é injusto o poder legislativo, por um decreto arbitrário, recorrer a
uma violência súbita contra a sua mentalidade e o seu modo de sen-
tir e à força derrubá-los do seu estado e condição e estigmatizar,
com a vergonha e a infâmia, aquele carácter e aqueles costumes que
antes tinham sido constituídos medida da sua felicidade e da sua
honra. Se a isso se acrescentar expulsá-los das suas casas e confiscar
todos os seus bens, não sou suficientemente sagaz para descobrir
como é que este jogo despótico com os sentimentos, as consciên-
cias, os preconceitos, e o património dos homens pode distinguir-se
da mais perfeita tirania.
Se a injustiça do rumo tomado em França é clara, a política
desta medida, quer dizer o benefício público que se pode esperar
disto, deve ser pelo menos igualmente evidente e, pelo menos,
igualmente importante. A um homem que não age sob a influência
de qualquer paixão e que com os seus projectos apenas tem em vista
o bem público, imediatamente o impressionará a grande diferen-
ça, entre o que é que a política ditaria, na introdução original de
tais instituições, e o que diria sobre a questão da sua total abolição,
após terem lançado raízes profusa e profundamente, e quando, por
hábitos antigos, coisas que são mais importantes que elas estão tão
adaptadas a elas e, de certo modo, inter-relacionadas com elas, que
não se pode destruir uma sem se danificarem muito as outras. Ele
poderia ficar constrangido, se o caso fosse exactamente como osso-
fistas o representam no seu estilo mesquinho de debate. Mas nisto,
como na maioria das questões de Estado, existe um meio termo. Há
algo mais que a mera alternativa entre a destruição absoluta e conti-
nuar a existir sem reforma. Spartam nactus es, bane exorna 198 • Essa é,
na minha opinião, uma regra de profundo bom senso, da qual um

198
N.T. "Spanam nactus es; hanc orna". Tradução latina da frase grega: Lmtpntv
de Eurípedes, Telephus. Cuja tradução pode ser: "Esparta é sua,
EÀaXEÇ, Tairrav lCOap.él
adorne-a" ou, por vezes, aparece também em tradução livre como "Espana é o seu país,
melhore-o".
232

reformador honesto nunca se deve afastar. Não posso conceber


como é que alguém pôde guindar-se à presunção extrema de con-
siderar o seu país apenas como carte blanche, sobre a qual pode ra-
biscar o que quer que lhe agrade. Um homem de uma benevolência
calorosa e dado à especulação pode desejar ver a sua sociedade c~ns­
tituída de modo diferente do qual a encontra, mas um bom patriota
e um verdadeiro político, sempre pondera sobre o modo como tirar
o melhor proveito do que efectivamente existe no seu país. Uma
disposição para preservar e uma capacidade para melhorar, toma-
das em conjunto, constituem o meu modelo de homem de Estado.
Tudo o mais é grosseiro na concepção e perigoso na execução.
Há momentos nos destinos dos Estados, em que homens par-
ticulares são chamados a melhorar o Estado através de um grande
esforço mental. Nestes momentos, mesmo quando parecem gozar
da confiança do seu Soberano e do seu país e parecem estar inves-
tidos de grande autoridade, nem sempre dispõem de instrumentos
adequados. Um político, para fazer grandes coisas, precisa de uma
força, aquilo que os nossos trabalhadores chamam uma alavanca
e, se descobre essa força, em política tal como em mecânica, ele
não pode deixar de aplicá-la. Nas instituições monásticas, em meu
entender, foi encontrada uma grande força para o mecanismo da
benevolência política. Havia proveitos com uma finalidade públi-
ca, havia homens retirados e dedicados a fins públicos, sem outros
vínculos que os vínculos públicos e regendo-se por princípios pú-
blicos, homens sem a possibilidade de converter a propriedade da
comunidade em fortuna pessoal, homens que renunciaram ao inte-
resse próprio e cuja avareza é em proveito da comunidade, homens
para quem a pobreza pessoal é uma honra e a obediência implícita
ocupa o lugar da liberdade. Em vão procura o homem fazer tais coi-
sas quando precisa delas. O Espírito sopra onde quer. Estas institui-
ções são produtos do entusiasmo, são instrumentos da sabedoria. A
sabedoria não cria os materiais de que se serve, são dádivas da Na-
tureza ou do acaso, ela apenas se orgulha de os usar bem. A existên-
233

cia perene das Instituições e a sua sorte são coisas particularmente


apreciadas pelo homem de vistas largas, que reflecte sobre projectos
que requerem tempo para se formarem e que, quando realizados, se
querem duradouros. Não merece ocupar altos cargos, nem mesmo
ser mencionado no grupo dos grandes homens de Estado, aquele
que, tendo obtido o comando e a direcção de um poder como o que
existe na riqueza, na disciplina, e nos hábitos, dessas instituições,
que os senhores precipitadamente destruíram, não souber encon-
trar um modo de o converter num benefício grande e duradouro
para o seu país. Em vista deste assunto, uma infinidade de usos se
apresentam a uma mente inventiva. Destruir um poder que cresce
espontaneamente da força produtiva da mente humana equivale,
no mundo moral, à destruição das propriedades visivelmente acti-
vas dos corpos no mundo material. Seria equivalente à tentativa de
destruir (se estivesse na nossa mão destruir) a potência expansiva do
dióxido de carbono, do nitrato de potássio, ou o poder do vapor de
água, ou da electricidade, ou do magnetismo. Estas energias sempre
existiram na Natureza e sempre foram discerníveis. Algumas pare-
ciam não servir para nada, outras pareciam prejudiciais, outras, não
pareciam mais que divertimentos para crianças, até que uma capa-
cidade contemplativa, combinada com uma competência prática,
domou a sua natureza selvagem, conseguiu utilizá-las e tornou-as,
a um tempo, as forças mais poderosas e mais fáceis de dominar, ao
serviço de grandes ideias e de grandes planos do homem. Será que
cinquenta mil pessoas - cujo trabalho físico e mental os senhores
podiam dirigir - e tantas centenas de milhar de rendimento por
ano, o que não era nem ocioso nem supersticioso, vos pareceram
grandes demais para a vossa capacidade de os manejar? Não teriam
outro meio de usar os homens sem ser convertendo monges em
pensionistas? Não teriam outro meio de tirar partido do rendimen-
to senão através do recurso imprudente a uma venda ao desbarato?
Se os senhores estavam assim tão desprovidos de recursos mentais,
então o processo está a seguir o seu curso natural. Os vossos polí-
234

ricos não entendem nada do ofício e, por isso, vendem as suas pró-
prias ferramentas 199 •
Mas as instituições tresandam a superstição na sua origem e
alimentam-na por uma influência permanente e regular. Não con-
testo, mas isso não devia impedir-vos de retirar da própria supers-
tição recursos que ela poderia fornecer para vantagem pública.
Os senhores retiram benefícios de muitas disposições e muitas pai-
xões humanas que, sob o ponto de vista moral, têm uma cor tão
duvidosa quanto a própria superstição. Era tarefa vossa corrigir e
mitigar o que era prejudicial nesta paixão, como em todas as outras.
Mas é a superstição o maior dos vícios possíveis? Nos seus eventuais
excessos penso que se torna um grande mal. É, todavia, uma questão
moral e é claro que admite todos os graus e todas as modificações.
A superstição é a religião dos espíritos fracos, devemos tolerar-lhes
que se misture em assuntos de pouca importância, ou sob a forma
dos seus entusiasmos ou noutra, doutro modo seria privar os espí-
ritos fracos de um recurso que reconhecemos necessário aos fortes.
O corpo de toda a religião consiste, com efeito, na obediência à
vontade do Soberano do mundo, numa confiança na Sua palavra e
na imitação das Suas perfeições. O resto é nosso. Pode ser prejudi-
cial para o grande fim, ou pode ser uma ajuda. Os homens sensatos,
que, como tal, não são admiradores (não admiram pelo menos os
munera terrat?- 00 ) , não estão muito ligados a estas coisas mas tam-
bém não as odeiam, a sabedoria não é quem mais severamente cor-
rige a loucura. São as loucuras rivais que mutuamente empreendem
uma guerra feroz e que fazem um uso cruel das suas vitórias, quan-
do acontece mobilizarem os arruaceiros para um ou para o outro
lado da contenda. A prudência seria neutra, mas na controvérsia
entre um grande entusiasmo ou uma grande antipatia a propósito
de coisas que, pela sua natureza, não foram feitas para tais fervores,
199
.T. A Assembleia Nacional extinguiu as ordens religiosas por decreto de
13 de Feve reiro de 1790.
200 .T. "Dádivas da terra" .
235

um homem prudente estava obrigado a escolher quais os erros e ex-


cessos de entusiasmo que ele iria condenar ou quais iria tolerar, tal-
vez pensasse que a superstição construtiva era mais tolerável do que
a destrutiva, aquela que ornamenta um país mais do que aquela que
o deforma - aquela que o favorece mais do que aquela que o põe a
saque -, aquela que se pode enganar acerca da benevolência mais
do que aquela que estimula a verdadeira injustiça, aquela que leva
um homem a recusar para si próprio prazeres legítimos mais do que
aquela que arranca a parca subsistência de quem já faz sacrifício.
Parece-me que é aproximadamente este o estado da questão entre
os antigos fundadores da superstição monástica e a superstição dos
pretensos filósofos do momento.

Por ora, adio rodas as considerações sobre o suposto proveito


público da venda, o qual, contudo, eu suponho ser completamen-
te ilusório. Considerá-lo-ei aqui simplesmente como uma transfe-
rência de propriedade. Acerca da política desta transferência vou
incomodá-lo com algumas das minhas reflexões.

Em roda a comunidade próspera é produzido mais do que


aquilo que vai para o sustento imediato do produtor. Este exce-
dente constitui o lucro do capitalista fundiário. Será usado por um
proprietário que não trabalha. Mas esta ociosidade é ela mesma fon-
te de actividade, este repouso um incentivo ao trabalho. A única
preocupação do Estado é que o capital das rendas das terras volva
à actividade que as produziu e que o seu gasto se dê com o menor
dano para a moral daqueles que gastam o capital e daqueles a quem
parte deste produto retorna.

Sob rodos os pontos de vista, receita, despesa e emprego pes-


soal do rendimento, qualquer legislador prudente teria comparado
o proprietário actual, que lhe recomendaram que despedisse, com
o estranho que lhe propuseram para ocupar o seu lugar. Antes de
incorrer em rodos os inconvenientes que forçosamente advêm das
236

revoluções violentas na propriedade, fruto de grandes expropria-


ções, devemos ter alguma garantia racional que os compradores da
propriedade confiscada serão em grau apreciável mais trabalhado-
res, mais virtuosos, mais prudentes, menos inclinados a extorquir
uma proporção insensata dos ganhos do trabalhador, ou a consu-
mirem para si próprios uma proporção maior do que aquela que
se adequa ao consumo de um indivíduo, ou que estão mais aptos
a despender os lucros de modo mais regrado e equitativo de forma
a corresponder aos objectivos desta política de consumo, melhor
que os antigos proprietários, chamem-se esses proprietários bispos,
cónegos, abades comendatários, ou monges ou o que se quiser.
Os monges são preguiçosos. Seja. Suponha que eles não se
empregam em mais nada do que a cantar no coro. Estão tão bem
empregues como aqueles que nem cantam nem falam, mesmo tão
bem empregues quanto aqueles que cantam num palco. Estão tão
bem empregues quanto se estivessem de manhã à noite a trabalhar
em muitas ocupações, servis, degradantes, indecorosas, indignas, e
muitas vezes insalubres e pestilentas, às quais, pela economia so-
cial, muitos infelizes estão inevitavelmente condenados. Se, em
geral, não fosse prejudicial perturbar o curso natural das coisas e
impedir de algum modo o movimento da grande roda que se move
directamente pelo trabalho estranhamente orientado destes infeli-
zes, eu estaria infinitamente mais inclinado a resgatá-los das suas
ocupações miseráveis do que a perturbar com violência o tranquilo
repouso da quietude monástica. A humanidade, e talvez a política,
poderiam justificar-me melhor numa acção que noutra. Este é um
assunto sobre o qual reflecti muitas vezes, e nunca pensei nele que
não me comovesse. Estou certo de que, num Estado bem regulado,
nenhuma consideração pode justificar a tolerância de tais profissões
e tais trabalhos, a não ser a necessidade de nos submetermos ao jugo
do fausto e ao despotismo das nossas fantasias que, no modo autori-
tário que lhes é próprio, se encarregarão de distribuir os dividendos
do produto do solo. Mas no que diz respeito à distribuição, parece-
237

-me que as despesas ociosas dos monges são tão bem empregues
quanto as nossas despesas ociosas de leigos que nada fazem.

~ando as vantagens que se retiram da posse actual e as que se


retirarão do projecto são iguais, não há razão para haver mudança.
Mas, no presente caso, talvez, não estejam a par e a vantagem cai
para o lado da posse actual. Não me parece que os gastos daqueles
que ides expulsar tomem, de facto, um curso que conduza tão direc-
ta e generalizadamente a viciar, degradar e tornar miseráveis, aque-
les por quem passam como acontece com os gastos dos favorecidos
que vós estais a meter abusivamente nas casas deles. Porque é que
os gastos de uma grande propriedade fundiária, que é a dispersão
do excesso da produção do solo, há de parecer intolerável a si ou
a mim, quando se destina à acumulação de vastas bibliotecas que
são a história das forças e fraquezas da mente humana, à constitui-
ção de grandes colecções de antigos registos, medalhas e moedas
que atestam e explicam leis e costumes, a pinturas e estátuas que
por imitarem a Natureza parecem ampliar os limites da criação, a
grandes monumentos aos mortos que prolongam para lá da tumba
os cuidados e as ligações que mantinham em vida, a colecções de
espécimes da Natureza que se tornam um conjunto representativo
de rodas as classes e famílias do mundo, que, por organização, faci-
litam e, por excitarem a curiosidade, abrem avenidas à ciência? Se,
através de grandes instituições permanentes, rodos estes objectos
de despesa estiverem mais protegidos de serem um joguete de ca-
prichos e extravagâncias pessoais estarão eles pior do que se estes
mesmos gostos prevalecessem em indivíduos dispersos? Não será
que o suor do pedreiro e do carpinteiro, que se afadigam para parti-
lharem o esforço do camponês, flui tão prazenteira e saudavelmente
na construção dos majestosos edifícios religiosos como nas barra-
cas coloridas e nos sórdidos antros de vício e luxúria? Tão honrada
e proveitosamente a reparar estas obras sagradas que envelhecem
com incontáveis anos, como a trabalhar nos sítios onde se recebe a
transitória voluptuosidade: na ópera, nos bordéis, nos casinos, nos
238

clubes e nos obeliscos do Champ de Mars? É o lucro da oliveira e da


vinha mais mal empregue no sustento frugal de pessoas a quem as
ficções de uma imaginação piedosa elevam à dignidade por edifi-
carem ao serviço de Deus do que em mimar a imensa multidão da-
queles que estão degradados por se terem tornado criados inúteis ao
serviço do orgulho do homem? São as decorações dos templos uma
despesa menos merecedora de um homem sensato que fitas, laços,
cocar 20 1 nacionais, petites maisons, petits soupers, e todas as inume-
ráveis loucuras e janotices em que a opulência se diverte a gastar o
fardo da sua superfluidade?
Mesmo estas coisas toleramos - não por amor a elas mas por
medo de outras piores. Toleramo-las porque a propriedade e a liber-
dade, num certo grau, requerem esta tolerância. Mas porquê pros-
crever os outros usos da propriedade, seguramente sobre todos os
pontos de vista mais louváveis? Porque é que, através da violação de
toda a propriedade, através do ultraje ao próprio princípio da liber-
dade, forçamos o uso das riquezas a ir de melhor a pior?
Esta comparação entre as novas individualidades e o antigo
corpo é feita com base na suposição de que nenhuma reforma pode-
ria ser feita neste último. Mas, no que diz respeito à reforma, consi-
dero sempre que as entidades corporativas - quer isoladas quer em
conjunto - são muito mais susceptíveis de uma orientação pública,
pelo poder do Estado quanto ao uso da sua propriedade e quanto
à regulação de modos e hábitos de vida dos seus membros, do que
os cidadãos privados alguma vez o serão, ou que, talvez mesmo, o
devam ser, e isto parece-me uma questão pertinente para aqueles
que querem levar a cabo o que quer que seja que mereça o nome de
empreendimento político. E basta no que respeita às propriedades
dos mosteiros.

201
N.T. Laço ou rosera usado no chapéu como disrinrivo, ou em arreios como
en fei re.
239

Com respeito às propriedades na posse de Bispos, Cónegos


e Abades Comendatários, não consigo descobrir a razão pela qual
algumas propriedades fundiárias não podem ser tidas a outro título
que não o da herança. Pode algum demolidor filosófico encarregar-
-se de demonstrar o mal efectivo ou comparativo de ter uma certa, e
também uma grande, porção de propriedade fundiária a passar por
sucessão a pessoas cujo direito a essa propriedade é- em teoria sem-
pre, e frequentemente na prática - um grau eminente de piedade, de
moral e de saber, uma propriedade que pela sua finalidade, por sua
vez, e como resultado do mérito, dá às famílias mais nobres, regene-
ração e apoio, e às de nível mais modesto um meio de dignificação
e elevação, uma propriedade cujo título de posse requer o cumpri-
mento de certos deveres (seja qual for o valor que se escolha atribuir
a esses deveres), cujo carácter dos seus proprietários requer, pelo
menos, um decoro exterior e gravidade de maneiras, e que é supos-
to que pratiquem uma hospitalidade generosa mas comedida, em
que uma parte do seu rendimento devem considerá-lo em depósito
para caridade, e que, mesmo quando falham na sua missão, quando
deslizam e se afastam do seu carácter, degenerando em simples eco-
muns nobres ou cavalheiros seculares, não são em nenhum aspecto
piores que aqueles que lhes poderão suceder na posse dos bens que
lhes foram confiscados? Será que é melhor as propriedades estarem
na posse de quem não tem deveres nenhuns do que na mão daqueles
que os têm? Na mão daqueles cujo carácter e a finalidade apontam
para as virtudes do que na mão dos que não têm regra ou direcção
no dispêndio das suas propriedades, que não seja a da sua própria
vontade e apetite? Nem estes bens são, no seu conjunto, mantidos
com o carácter e com os inconvenientes presumivelmente inerentes
aos bens de mão-morta. Passam de mão em mão com uma circula-
ção mais rápida que qualquer outra. Nenhum excesso é bom, assim,
não convém que uma grande proporção de propriedade territorial
possa ser vinculada oficialmente de um modo vitalício, mas não me
parece que constitua prejuízo material para qualquer sociedade que
240

possam existir algumas propriedades que possam ser adquiridas por


outros meios que não a aquisição prévia pelo dinheiro.
Esta carta cresceu demasiado, embora, de facto, seja curta em
relação à infinita extensão do tema. Várias solicitações vieram, de
tempo em tempo, desviar a minha mente deste assunto. E não me
arrependo de ter dado a mim próprio tempo para observar se na
actuação da Assembleia Nacional eu não poderia vir a encontrar ra-
zões para mudar ou para me certificar de alguns dos meus primeiros
sentimentos. Mas tudo confirmou ainda mais fortemente a minha
opinião inicial. Era minha intenção original passar em revista os
princípios da Assembleia Nacional no que diz respeito às grandes
instituições fundamentais e comparar a totalidade do que havíeis
colocado no lugar daquilo que destruístes, com os diversos órgãos
da Constituição Britânica. Mas este plano é muito mais extenso do
que eu calculava inicialmente e creio que vós não tendes o menor
desejo de tirar proveito de quaisquer exemplos. Contentar-me-ei,
por agora, com algumas observações sobre as vossas instituições,
reservando para outra altura aquilo que me propus dizer a respeito
do espírito da nossa monarquia, aristocracia e democracia britâni-
cas, tal como existem na prática.
Passei em revista o que tem sido feito pelo governo de França.
Certamente que falei da sua actuação livremente. ~em tem por
princípio desprezar o bom senso antigo e estabelecido da humani-
dade e constituir um esquema de sociedade sobre novos princípios
deve naturalmente esperar que nós, que julgamos preferível o dis-
cernimento da humanidade ao deles, devamos julgá-los a eles e aos
seus expedientes como no seu tribunal eles julgam os homens e os
regimes. Devem ter por garantido que daremos muita atenção às
suas razões e nenhuma à sua autoridade. Não têm um único dos
preconceitos mais influentes da humanidade a seu favor. Eles pró-
prios confessam a sua hostilidade contra a opinião [pública]. Com
certeza que não esperam apoio dessa influência, que eles - tal como
241

fizeram a todas as outras autoridades - depuseram da sede da sua


jurisdição.
Jamais poderei considerar esta Assembleia como outra coisa
senão uma associação voluntária de homens que se aproveitaram
das circunstâncias para se apoderarem do poder do Estado. Não
têm a aprovação e a autoridade do carácter sob o qual primeiro se
reuniram. Assumiram outro, de uma natureza totalmente diferen-
te, e alteraram e inverteram completamente todas as relações que ao
início mantiveram. Não detêm a autoridade que exercem por qual-
quer lei constitucional do Estado. Afastaram-se das instruções do
povo que os enviou, instruções que, como a Assembleia não actua
em virtude de nenhum costume amigo ou lei estabelecida, eram a
única fonte da sua autoridade. Os seus mais importantes actos não
foram aprovados por grandes maiorias e, nesta espécie de facções,
que veiculam apenas a autoridade construtiva do todo, os de fora
considerarão as razões mas também as resoluções.
Se tivessem estabelecido este novo governo experimental como
o substituto necessário de uma tirania deposta, a humanidade ante-
ciparia a prescrição aquisitiva, que através de um longo uso ama-
durece202 e torna legais governos que foram violentos ao início. To-
dos aqueles que estimam a conservação da ordem pública, teriam
reconhecido ainda no berço a criança como legítima, nascida sob
as condições de interesse inequívoco, ao qual todos os governos le-
gítimos devem o seu surgimento e graças ao qual justificam a sua
continuidade. Mas serão lemos e relutantes em dar qualquer tipo de
apoio às manobras de um poder que não nasceu nem da lei nem da
necessidade, mas que, pelo contrário, teve a sua origem em vícios e
práticas sinistras que perturbam a união da sociedade e por vezes a
destroem. Esta Assembleia ainda não tem um ano de existência. E,
nas suas próprias palavras, fizeram uma revolução. Fazer uma revo-

202
N.T. O termo usado é mellows que também pode significar "a patine do
tempo".
242

lução é uma medida que primâ fronte, requer uma desculpa. Fazer
uma revolução é subverter o antigo Estado do nosso país, e não se
podem invocar razões comuns para justificar um procedimento tão
violento. A sabedoria da humanidade autoriza-nos a examinar o
modo como se adquiriu um poder recente e a criticar o uso que dele
foi feito, com menos respeito e reverência do que os que habitual-
mente se concedem a uma autoridade instalada e reconhecida.
Na obtenção e consolidação do seu poder, a Assembleia pro-
cede segundo princípios que parecem ser completamente opostos
àqueles que a guiam no uso dele. A observação desta diferença levar-
-nos-á a compreender o verdadeiro espírito da sua conduta. Tudo o
que eles fizeram, e continuam a fazer, em ordem a obter e a manter
o seu poder, segue o que é comum fazer-se . Procedem exactamente
como antes deles o fizeram os seus antepassados na ambição. Se se
inspeccionarem rodos os seus artifícios, fraudes e violências, não se
conseguirá achar nada de novo. Seguem os exemplos precedentes
com a minuciosa exactidão de um advogado. Nunca se afastam das
fórmulas autênticas da tirania e da usurpação. Mas em rodas as nor-
mas relativas ao bem público, o espírito tem sido o inverso deste.
Aí entregam a comunidade à mercê de especulações não testadas,
entregam os interesses públicos mais caros àquelas teorias vagas a
quem nenhum deles confiaria o menor dos seus interesses privados.
A diferença deve-se ao facto de, no que diz respeito ao seu desejo de
obter e segurar o poder, eles serem muitíssimo sérios. Neste aspecto
vão por um caminho muito batido. Os interesses públicos, acercados
quais eles não são minimamente zelosos, abandonam-nos comple-
tamente à sua sorte: digo à sorte porque os seus esquemas não têm
do seu lado experiência que prove que a sua tendência seja benéfica.
Devemos sempre olhar com uma piedade não isenta de res-
peito os erros daqueles homens que são tímidos e duvidam de si
mesmos, em relação aos aspectos que dizem respeito à felicidade
da humanidade. Mas, nestes cavalheiros, não há nenhum traço da
243

solicitude de um pai que teme operar o seu filho para levar a cabo
uma experiência. Na imensidão das suas promessas e na confiança
das suas previsões eles ultrapassam largamente as fanfarronices dos
charlatães. A arrogância das suas pretensões, de certo modo, provo-
ca-nos e desafia-nos a inquirir sobre os seus fundamentos.
Estou convencido de que há homens de consideráveis talentos
entre os dirigentes populares na Assembleia Nacional. Alguns de-
les mostram eloquência nos seus discursos e nos seus escritos. Isto
não é possível sem ter cultivado um grande talento. Mas a eloquên-
cia pode também existir sem um grau proporcional de sabedoria.
~ando falo de capacidade sou obrigado a fazer distinções. O que
eles fizeram a favor do seu sistema é prova de que não são homens
vulgares. No próprio sistema, tomado como uma república cons-
truída para proporcionar a prosperidade e segurança dos cidadãos e
para promover a força e a grandeza do Estado, confesso que não sou
incapaz de descobrir o que quer que seja, nem um só exemplo, que
mostre ser este o trabalho de uma mente abrangente e organizada,
ou mesmo descobrir nele as cautelas da prudência mais comum. Em
toda a parte, o seu propósito parece ter sido fugir e passar ao lado
das dificuldades . Confrontar e ultrapassar as dificuldades foi a glória
dos grandes mestres em todas as artes e, quando tinham superado a
primeira dificuldade, convertê-la em instrumento para empreender
novas conquistas sobre novas dificuldades: e assim permitir-lhes
alargar o império da sua ciência e mesmo levar mais adiante, para
lá do que primeiro tinham imaginado, os marcos do próprio enten-
dimento humano. A dificuldade é um instrutor severo, que pende
sobre nós por ordem suprema de um Pai protector e legislador, que
nos conhece melhor do que nós próprios nos conhecemos e que
nos ama mais também. Pater ipse colendi haudJàcilem esse viam v o-
luif03. Aquele que luta connosco fortalece os nossos nervos e aguça
a nossa perícia. ~em se nos opõe presta-nos grande ajuda. Este
20
; N .T. "O próprio pai qu is que o caminho não fosse fácil de cultivar." (Verg. G.
1. 12 1-2 o autor apropria-se do texto latino para lhe conferir um outro sentido.)
244

conflito amigável com a dificuldade obriga-nos a um conhecimento


íntimo do nosso objectivo e leva-nos a considerá-lo em todas as suas
relações. Não nos permitirá que sejamos superficiais. É a falta de
vigor de entendimento para compreender este confronto, e o gosto
degenerado por atalhos falsos e pela facilidade enganosa, que ·em
muitas partes do mundo criaram governos com poderes arbitrários.
Criaram a extinta monarquia arbitrária de França. Criaram a re-
pública arbitrária de Paris. Entre eles, a falta de sabedoria é para
ser suprida pelo uso pleno da força. Não ganham nada com isso.
Tendo começado por um princípio de indolência têm a sorte de
todos os preguiçosos. As dificuldades, a quem eles iludiram mais
do que escaparam, surgem de novo no seu caminho, multiplicam-se
e adensam-se. São envolvidos num labirinto de pormenores con-
fusos, numa azáfama sem limite e sem norte e como consequência
disso todo o seu trabalho se torna fraco, corrupto e precário.
É esta falta de habilidade para lutar com a dificuldade que obri-
ga a arbitrária Assembleia de França a começar os seus planos de
reforma com a abolição e a total destruição 204 • Mas será destruindo
e deitando abaixo que a habilidade surge? A vossa populaça pode
fazer isso pelo menos tão bem quanto as vossas assembleias. Uma
inteligência superficial e a mão mais rude são mais do que capazes
de desempenhar estas tarefas. A raiva e a agitação destruirão mais
em meia hora do que a prudência, a deliberação, e a clarividência,

204
·Nota do Autor: U m membro líder da Asse mbleia, M. Rabauc de Se. Étienne,
expressou o princípio de todos os seus procedimentos o mais claramente possível, nada
pode se r mais simples: " Todas as instituições em França coroam a infelicidade do povo: para
o tornarfeliz é preciso renová-lo, mudar as suas ideias, mudar as suas leis, mudar os seus cos-
tumes ... mudar os homens, mudar as coisas, m udar as palavras.. . destruir tudo, sim, destruir
tudo, porque há que recriar tudo." Este cavalheiro foi escolhido como presidente numa
Assembleia que não se reúne nos Quinze-Vingt [os Q uinze- Vingt eram , desde a sua funda-
ção no séc. Xlll·, um hospício para cegos ] nem nas Petites Maisons [as ilos para lun áticos].
que é composta po r pessoas cujos membros se têm por razoáveis, mas nem as suas ideias
nem a sua linguagem di fe re, po r pouco que seja, dos discursos, opiniões e acções daqueles
que dentro e fora da Asse mblei a dirige m as operações da máquina posta em marcha em
França.
245

conseguem construir num século. Os erros e defeitos das velhas ins-


tituições são visíveis e palpáveis. Requer pouca ou nenhuma habili-
dade apontá-los e, quando se trata do poder absoluto, requer apenas
uma palavra para abolir completamente o vício e a instituição ao
mesmo tempo. É a mesma disposição ociosa mas inquieta, que ado-
ra a indolência e odeia o sossego, que conduz estes políticos quan-
do eles se dispõem a preencher o vazio criado pelo que destruíram.
Fazer exactamente o oposto daquilo que tinham conhecido é quase
tão fácil como destruir. Nunca surgem dificuldades naquilo que
ainda não foi experimentado. Ao criticismo é impossível descobrir
defeitos no que não existiu e um entusiasmo fervoroso e uma espe-
rança enganosa têm no vasto campo da imaginação o terreno onde
se podem expandir com pouca ou nenhuma oposição.
Preservar e reformar ao mesmo tempo é, de facto, outra coisa.
~ando as partes úteis de uma velha instituição são mantidas e o
que é acrescentado é para se harmonizar com o que se manteve é
preciso ter-se uma mente vigorosa, uma atenção constante e per-
severante, capacidades diversas de comparação e combinação, bem
como a prática de uma inteligência pródiga em recursos, e todos se
devem exercer em permanente conflito com as forças combinadas
dos vícios opostos: com a obstinação que rejeita todo e qualquer
melhoramento e a leviandade que se cansa e desgosta de tudo aqui-
lo que possui. Mas, o Senhor poderá objectar: "Um processo deste
tipo é lento. Não é o adequado a uma Assembleia que se gloria de
ter feito em poucos meses o trabalho de séculos. Um tal modo de
reformar pode demorar muitos anos." Sem dúvida nenhuma que
pode, e deve. É uma das qualidades de um método que considera
o tempo um dos seus instrumentos, que a sua actuação seja lenta e,
em alguns casos, quase imperceptÍvel. Se, quando se trabalha apenas
sobre matéria inanimada, a circunspecção e a prudência são sábias,
quando o objecto de demolição e construção não são tijolos, nem
madeira, mas seres com sentimentos, cuja súbita alteração de esta-
do, condição ou hábitos pode tornar miseráveis, converte-se num
246

dever. Mas parece ser uma opinião predominante em Paris, que um


coração insensível e uma indubitável confiança em si próprio são
as únicas qualificações exigidas a um perfeito legislador. Muito di-
ferente é o meu conceito dessa eminente função . O verdadeiro le-
gislador deve ter um coração muito sensível. Deve amar e respeitar
o seu semelhante e desconfiar de si próprio. Pode acontecer que,
por temperamento seja capaz de ver intuitivamente num relance o
seu objectivo final, mas os seus movimentos para o atingir devem
ser ponderados. Os pactos políticos, porque têm uma finalidade so-
cial, devem ser forjados apenas com meios sociais. Aí a mente deve
conspirar com outras mentes. É preciso tempo para operar aquela
união do espírito que é a única a poder produzir todo o bem a que
se aspira. Nisto, a nossa paciência conseguirá mais do que a nossa
força. Se me é permitido apelar para algo que está tão fora de moda
em Paris - isto é, a experiência -, devo dizer-lhe que no meu per-
curso conheci e, em certa medida, colaborei com grandes homens
e nunca vi nenhum plano que não tivesse sido corrigido pelas ob-
servações daqueles que, em entendimento, eram muito inferiores a
quem liderava o assunto. Através de um progresso lento mas susten-
tado, o efeito de cada passo é observado e o bom ou mau sucesso do
primeiro passo ilumina-nos o caminho no segundo, e assim, de luz
em luz, somos conduzidos em segurança ao longo de todo o percur-
so. Vemos se as partes do sistema não entram em conflito. Os males
latentes, mesmo nos projectos mais prometedores, são remediados
logo que aparecem. Sacrifica-se, o menos possível, uma vantagem
a outra. Compensamos, conciliamos, balanceamos. Somos capazes
de unir, num todo consistente, as várias anomalias e os princípios
conflituosos que se encontram na mente e nos negócios humanos.
Daqui surge, não uma excelência na simplicidade, mas uma muito
superior: a excelência na composição. No que respeita aos grandes
interesses da humanidade ao longo da sucessão de muitas gerações,
tem de admitir-se que esta sucessão de gerações de algum modo par-
ticipe nos conselhos que tanto as afectarão. Se a justiça requer isso,
247

a tarefa em si mesma requer a ajuda de mais mentes do que aque-


las que uma geração pode fornecer. É a partir desta visão das coisas
que os melhores legisladores se contentaram muitas vezes com o
estabelecimento de um princípio de governação seguro, sólido e
dominante, um poder que alguns filósofos chamaram de natureza
plástica e, depois de terem estabelecido o princípio, deixaram-no a
operar por si mesmo.
Proceder deste modo, isto é, agir através de um princípio do-
minante e uma energia prolífica é para mim um critério profun-
damente sábio. O que os vossos políticos pensam ser traços de um
génio ousado e destemido são apenas provas de uma deplorável
falta de habilidade. Pela sua precipitação violenta e a sua rebeldia
em relação ao processo natural, entregam-se cegamente a qual-
quer aventureiro com um projecto, a qualquer alquimista empíri-
co. Desesperam de encontrar proveito em tudo e que seja normal.
A dieta não está entre os remédios que adoptam. O pior é que esta
sua recusa em curar os males vulgares com remédios comuns não
advém apenas da falta de compreensão dos assuntos mas de uma
disposição de algum modo perversa. Os vossos legisladores pare-
cem ter tirado o seu conhecimento acerca de todas as profissões,
ordens e ofícios dos versos e brincadeiras de alguns poetas satíricos,
que ficariam eles próprios surpreendidos que tomassem à letra as
suas afirmações. Por darem ouvidos apenas a isto, os vossos líderes
olham para todas as coisas apenas pelo lado dos seus vícios e faltas,
co m um colorido exagerado. É indubitavelmente verdade, embora
possa parecer paradoxal, que, em geral, aqueles que habitualmente
são utilizados a detectar e a mostrar as falhas, não são os qualifica-
dos para o trabalho de reformar, porque não só as suas mentes estão
desprovidas dos padrões do que é justo e bom, mas também porque,
por hábito, acabam por não retirar prazer da contemplação destas
coisas. Por odiarem demais os vícios acabam por amar de menos os
homens. Não é, portanto, de admirar que não estejam disponíveis
e que sejam incapazes de os servir. Daqui surge o propósito pro-
248

blemático de alguns dos vossos líderes de destruir tudo. Neste jogo


perverso exibem roda a sua actividade de quadrimanous 20 ; . ~amo
ao resto, os paradoxos de escritores eloquentes, elaborados apenas
como puro divertimento, com o qual exercitaram os seus talentos
e chamaram sobre si as atenções por causarem surpresa, são roma-
dos por estes cavalheiros, não no espírito em que os tomaram os
seus autores originais - isto é, como meio de cultivarem o gosto
e melhorarem o estilo - estes paradoxos tornaram-se verdadeiros
fundamentos da acção, pelos quais passaram a regular os mais im-
portantes interesses de Estado. Cícero, de modo caricato, descreve
Carão como tentando agir na sociedade segundo os paradoxos de
escola que se destinavam a exercitar o espírito dos alunos mais jo-
vens na filosofia Estóica. Se isto era verdade para Carão, estes cava-
lheiros seguiram o seu exemplo adoptando o estilo de alguns seus
contemporâneos, pede nudo Catonem 206• Hum e disse-me que tinha
recebido do próprio Rousseau o segredo dos princípios da sua escri-
ta: aquele observador agudo, se bem que excêntrico, percebeu que
para chocar e interessar o público se deve produzir algo de fantás-
tico, que o maravilhoso da mitologia há muito que perdeu os seus
efeitos, que gigantes, magos, fadas e heróis de romance, que lhes su-
cederam, esgotaram o potencial de crença do seu tempo, que agora
nada mais resta a um escritor senão aquela espécie de fantástico, que
ainda pode ser produzido e com mais efeitos que nunca, embora de
um outro tipo, isto é, o fantástico na vida, nos costumes, no carácter
e em situações extraordinárias, dando lugar a choques na política e
na moral, novos e inesperados. Eu acredito que, se Rousseau estives-
se vivo, e num dos seus intervalos de lucidez, ficaria chocado com
o frenesim levado à prática pelos seus discípulos, os quais o imitam

20
s N.T "De quatro mãos".
206
1 .T. "Catão de pé descalço" (H or. Ep. l.l9.12- 13) verso que ironiza sobre o

facto de apesar de alguém poder trajar-se co mo C a tão não passa, por isso, a ter as virtudes
de Carão, o que nós di ríamos po r: "O hábito não faz o mo nge".
249

servilmente nos seus paradoxos e que têm uma fé implícita, mesmo


na sua incredulidade.
Os homens que levam a cabo tarefas importantes, mesmo que
o façam de uma forma regular, devem dar-nos fundamento para
presumirmos que têm talento. Mas o médico do Estado que, não
satisfeito com a cura das suas enfermidades, se habilita a regenerar
constituições, deve mostrar ter poderes extraordinários. Manifes-
tações de uma invulgar sabedoria devem revestir os desígnios da-
queles que não se baseiam na prática nem seguem nenhum modelo.
Houve alguma manifestação destas? Passarei em relance (que será,
para o tema, muito breve) aquilo que a Assembleia fez em relação,
primeiro, à constituição da legislatura, segundo, em relação à cons-
tituição do poder executivo, e a seguir, em relação ao poder judicial,
seguidamente ao modelo do exército, e concluirei com o sistema
financeiro: a ver se conseguimos descobrir em alguma parte do seu
plano a habilidade extraordinária que pode justificar estes empre-
endedores ousados na superioridade que assumem em relação à hu-
manidade.

É do modelo da parte soberana e dirigente desta nova repúbli-


ca que devíamos esperar a grande demonstração. Nisso devia provar
o direito que tem às suas pretensões. ~anto ao plano em si mesmo,
em geral, e quanto às razões em que se fundamenta, tomarei como
referência os diários da Assembleia de 29 de Setembro de 1789 e
os procedimentos subsequentes que fizeram alterações a este plano.
Tanto quanto - em matéria tão obscura - é possível ver luz, o sis-
tema permanece, substancialmente, como foi originalmente estru-
turado. As minhas poucas observações dirigir-se-ão ao espírito, à
tendência, e à capacidade da Assembleia para estruturar uma nação,
tal como dizem ser a sua, adequada aos fins para os quais qualquer
comunidade é criada e, em particular, uma comunidade deste tipo.
Ao mesmo tempo tenciono apreciar a sua consistência interna e os
seus próprios princípios.
250

As velhas instituições são julgadas pelos seus efeitos. Se o povo


está feliz, unido, saudável e forte , nós presumimos o resto. Concluí-
mos que é bom aquilo donde deriva o bem. Nas antigas instituições
foram encontrados vários remédios para as suas aberrações teóricas.
De facto, eles são o resultado de necessidades várias e de soluções.
Normalmente não são construídos segundo nenhuma teoria, mas
antes são eles que servem de base às teorias. Muitas vezes vimos que
atingem melhor os fins onde os meios não parecem completamente
reconciliáveis com o que podemos imaginar que fosse o seu propó-
sito original. Os meios aprendidos na experiência podem ser mais
adequados aos fins políticos do que aqueles concebidos no projecto
inicial. Também actuam sobre a constituição primitiva e por vezes
melhoram o seu propósito do qual pareciam ter-se afastado. Penso
que tudo isto pode ser curiosamente exemplificado pela Constitui-
ção Britânica. No pior dos casos, os erros e desvios de todo o tipo
são, no cômputo final, encontrados e avaliados e o barco prossegue
o seu curso. É isso que acontece nas antigas instituições. Mas, num
novo sistema apenas teórico, espera-se que cada esquema concebi-
do, à primeira vista, responda aos fins a atingir, especialmente quan-
do os que os inventam não se incomodam com qualquer esforço
para adequar o que é novo ao que já existia, nem na construção nem
nos alicerces.
Os construtores franceses varreram à sua frente, como se fosse
lixo, tudo o que encontraram e, como os seus jardineiros artísticos,
cortando cada coisa a um determinado nível, propuseram-se alicer-
çar toda a legislatura local e geral em três bases de três diferentes
tipos, um geométrico, um aritmético e o terceiro financeiro, ao
primeiro dos quais chamaram a base territorial, ao segundo, a base
populacional, e ao terceiro a base contributiva. Para o cumprimento
do primeiro destes propósitos dividiram a área do seu território em
oitenta e três bocados, regularmente quadrados, de dezoito por de-
zoito léguas. Estas grandes divisões são chamadas Departamentos.
Parcelaram estes departamentos, dividindo ainda em quadrados,
251

em 1720 distritos, chamados Comunas. A estes distritos, por sua


vez, subdividiram em outros menores, continuando a dividir em
quadrados, chamados Cantões, que ao rodo somam 6400.
À primeira vista, nesta base geométrica que usam, não há mui-
to para admirar ou para condenar. Não requer um talento legislati-
vo particular. Para este plano não se requer mais nada do que ser um
agrimensor perspicaz, com a sua fira, a sua visão e o seu teodoliro.
Nas antigas divisões do país, acidentes vários em diversas épocas, o
fluxo e refluxo de várias propriedades e jurisdições, estabeleceram
os seus limites. Estes limites, indubitavelmente, não foram consti-
tuídos segundo nenhum sistema fixo. Estas divisões estavam sujei-
tas a alguns inconvenientes, mas eram inconvenientes para os quais
o uso encontrava remédios e o hábito provia resignação e paciência.
Neste novo pavimento, de quadrados dentro de quadrados, e nesta
organização e semiorganização feita segundo o sistema de Empédo-
cles e Buffon 207 , e não segundo nenhum princípio político, é impos-
sível que não venham a aparecer inumeráveis inconvenientes locais
aos quais os homens não estão habituados, mas estes eu passo por
cima, porque a sua especificação requer um apurado conhecimento
do país, que eu não possuo 208 •
~ando estes agrimensores do Estado vieram ver o seu traba-
lho de medida depressa descobriram que em política não há coisa
mais falaz que a demonstração geométrica. Tiveram então de re-
correr a outra base (ou a contrafortes) para sustentar o edifício que
20
- T.T. ~er Empédocles (490-430 a. C.), filósofo , quer George-Louis Leclerc,

Conde de Buffon ( 1708-88 ), matemático, astrónomo e naturalista, são aqui invocados


como criadores de sistemas, uma função sempre vista como suspeita para Burke.
208
N.T. Burke toma pela lei final o que tinha sido uma proposta de Jacques-
·Guillaum e Thou ret ( 1746-94) - girondino guilhotinado no período do terror- que de-
senhou a planificação, em representação do Comité Constitucional o qual não aplicaria
este sistema. T odo o raciocí nio de Burke se baseia nesta divisão geométrica. Apesar de não
se ter efectivado, como eram muitos os planos abstractos da Assembleia para França, este
equh·oco permi te uma apreciação muito lúcida por parte de Burke em relação aos planos
políticos abstractos. Cf. Rejlecrions on the Revolution in France, The Writings and Speeche.<
ofEdmund Burke, p. 221 , nota 2.
252

oscilava, graças a estes falsos alicerces. Era evidente que a boa quali-
dade do solo, o número de pessoas, a sua saúde e a generosidade das
suas contribuições, originavam tantas variações de quadrado para
quadrado a ponto de tornar a medição um padrão ridículo de poder
da nação, e a igualdade geométrica a mais desigual das medidas na
distribuição de pessoas. Apesar de tudo, não puderam desistir disto.
Mas antes, dividindo a sua representação política e civil em três par-
tes, destinaram uma destas partes à medição quadriculada, sem um
único facto ou cálculo que averiguasse se esta proporção territorial
de representação era uma atribuição justa, ou se realmente deveria
haver uma terceira parte, fosse sob que justificação fosse. Todavia,
tendo concedido à geometria esta proporção de um terço do seu
dote, suponho que por deferência para com esta sublime ciência,
deixaram as outras para serem disputadas pelas outras partes, popu-
lação e contribuição.
~ando se tratou de abastecer a população, não foram capa-
zes de agir tão facilmente como o fizeram quando se tratou da sua
geometria. Aqui, a sua aritmética voltou-se contra a metafísica ju-
rídica. Tivessem eles mantido os seus princípios metafísicos que o
processo aritmético teria sido verdadeiramente simples. Os homens
para eles são estritamente iguais e têm a prerrogativa de direitos
idênticos no que toca ao seu próprio governo. Cada cabeça, nes-
te sistema, teria o seu voto e cada homem votaria directamente na
pessoa que deveria representá-lo na legislatura. "Mas devagar, pelos
degraus habituais, por enquanto não." 209 Este princípio metafísico,
perante o qual a lei, o costume, o uso, a política e a razão deveriam
ceder, é para vergar-se ele próprio aos caprichos deles. Devem exis-
tir vários degraus e algumas fases antes que o representante possa
chegar ao contacto com o seu constituinte. De facto, como vere-
mos em breve, estas duas pessoas não vão ter qualquer espécie de
contacto entre si. Primeiro os votantes no Cantão, que compõem

209
1 .T. Alexander Pope, Epistle to Burlington, linha 129.
253

aquilo a que chamam assembleias primárias, têm de satisfazer uma


condição. O quê?! Pré-requisitos para os irrevogáveis direitos do
homem? Sim, mas é um pequeníssimo requisito. A nossa injustiça
será muito pouco opressora: apenas o valor local de três dias de tra-
balho dados à comunidade. Porquê? Não é de facto muito, admito,
não serve para nada a não ser para subverter completamente o vosso
princípio de igualdade. Como requisito também poderia ter sido
posto de lado, porque não serve a nenhum propósito para o qual
as condições se estabelecem e, segundo as vossas convicções, exclui
do voto exactamente o homem que, dentre rodos os outros, mais
precisa de ver protegida e defendida a sua igualdade natural: isto
é, o homem que não tem mais nada que o defenda a não ser a sua
igualdade natural. Os senhores obrigam-no a comprar o direito que
antes lhe disseram ter-lhe sido dado gratuitamente pela natureza ao
nascer, do qual nenhuma autoridade ao cimo da terra podia legal-
mente privá-lo. Em relação à pessoa que não logra corresponder à
exigência do vosso mercado, como acontece com ele, estabelecem
uma aristocracia tirânica, os senhores, que pretendem ser inimigos
professos da aristocracia.

A gradação prossegue. Estas assembleias primárias do Cantão


elegem deputados para a Comuna, um para cada duzentos habitan-
tes qualificados. Aqui está o primeiro intermediário colocado entre
o eleitor primário e o representante legislativo, e aqui uma nova bar-
reira se instala para taxar os direitos do homem com uma nova con-
dição: porque ninguém pode ser eleito para a Comuna se não pagar
a quantia de dez dias de trabalho. Ainda não acabámos. Ainda nos
resta mais um degrau*210• Estas Comunas, escolhidas pelo Cantão ,

21 0
"N o ta do auror: A Assembleia, ao executar o plano do seu comité fez algum as
alterações. Eles suprimiram uma destas gradações o que remove um a parte da objecção,
mas a objecção principal, nomeadamente, que no seu esquem a o primeiro constituinte a
,.otar não tem relação co m o representante legislativo, perm anece com toda a sua fo rça.
H á outras al terações, algumas talvez para melhor, outras certamente para pior: mas, para
o auro r, o mérito ou deméritO destas pequenas alterações parecem não ser muito impor-
tantes quando o esquema em si mesmo é, fund amentalmente, vicioso e absurdo.
254

elegem para o Departamento, os deputados do Departamento ele-


gem os seus deputados para a Assembleia Nacional. Aqui, está uma
terceira barreira de um requisito absurdo: cada deputado à Assem-
bleia Nacional precisa de pagar a contribuição directa de um marco
de prata. Pensamos o mesmo de todas estas barreiras de selecção:
que elas são impotentes para assegurarem a independência e válidas
apenas para destruírem os direitos do homem.
Em todo este processo, que nos seus elementos fundamentais
parece dizer respeito apenas à população, segundo um princípio de
direito natural há uma manifesta atenção à propriedade o que, se
bem que justo e razoável em outros sistemas, no da Assembleia Na-
cional é perfeitamente insuportável.
~ando os vossos legisladores chegaram à terceira base, a da
Contribuição, descobrimos que perderam de vista ainda mais com-
pletamente os direitos do homem. Esta última base funda-se exclu-
sivamente na propriedade. Um princípio totalmente diferente da
igualdade entre os homens - e completamente irreconciliável com
ele- é, assim, admitido: mas mal este princípio é adoptado (como
é hábito), é subvertido, e não é subvertido (como agora veremos)
para aproximar a desigualdade de riquezas ao nível da natureza.
A quota adicional na terceira parte da representação, uma parte re-
servada exclusivamente para a contribuição mais elevada, tem em
vista apenas o distrito, e não os indivíduos que aí pagam. É fácil
perceber, pelo caminho que levam os seus raciocínios, quanto eles
deviam estar embaraçados pelas suas ideias contraditórias acerca
dos direitos do homem e dos privilégios dos ricos. O que disse o
Comité da Constituição equivale a admitir que são completamente
irreconciliáveis. "A proporção no que diz respeito às contribuições é
sem dúvida nula, (dizem eles) quando a questão se coloca no balan-
ço dos direitos políticos entre indivíduos, sem os quais a igualdade
pessoal seria destruída e uma aristocracia dos ricos seria estabelecida.
Mas este inconveniente desaparece inteiramente, quando a rela-
255

ção proporcional da contribuição é considerada apenas na grande


massa e apenas entre províncias, nesse caso, serve só para constituir
uma justa reciprocidade e proporção entre as cidades, sem afectar os
direitos pessoais dos cidadãos."

Aqui o princípio de contribuição, considerado entre sujeitos,


é reprovado e considerado nulo e destrutivo da igualdade, e consi-
derado pernicioso também, porque conduz ao estabelecimento de
uma aristocracia dos ricos. Contudo, não deve ser abandonado. E a
maneira de se verem livres da dificuldade é estabelecer a desigual-
dade entre cada departamento, deixando todos os indivíduos que
pertencem ao mesmo departamento em condições de estrita igual-
dade. Observe-se que esta paridade entre indivíduos já fora destruí-
da antes, quando a qualificação no interior de cada departamento
foi estabelecida, nem parece ser uma questão muito importante se
a igualdade dos homens é desrespeitada em massa ou individual-
mente. Um indivíduo não tem a mesma importância num colectivo
representado por poucos como tem num representado por muitos.
Será excessivo dizer a um homem, zeloso da sua igualdade, que tem
igual regalia o eleitor que vota para eleger três membros quanto o
que vota para eleger dez.

Coloquemo-nos agora num ponto de vista diferente e supo-


nhamos que foi bem imaginado o princípio de representação de
acordo com a contribuição, isto é, de acordo com as riquezas, e
que este seja uma base necessária para a vossa república. Com esta
terceira base assumia-se que as riquezas deveriam ser respeitadas,
e que a justiça e a política requeriam que elas deveriam qualificar
os homens, de alguma maneira, para um maior quinhão na admi-
nistração dos negócios públicos. Está para se ver como proveria a
Assembleia à proeminência, ou mesmo à segurança, dos ricos ao
conceder, em virtude da sua opulência, uma maior participação no
poder ao seu distrito quando a eles, pessoalmente, lhes é negada. Eu
admito prontamente (de facto , devo estabelecê-lo como um prin-
256

cípio fundamental) que num governo republicano, que tem uma


base democrática, os ricos necessitam de uma segurança adicional
para além da que necessitam nas monarquias. Estão sujeitos à inve-
ja e, por causa desta, à opressão. No sistema presente é impossível
adivinhar qual a vantagem que retiram da prevalência aristocrática
sobre a qual se funda a representação desigual das massas. Os ricos
não podem senti-la nem como um sustentáculo da dignidade, nem
como uma segurança para a riqueza: porque a massa aristocrática é
gerada a partir de princípios puramente democráticos, a predomi-
nância que lhes é dada na representação geral não tem qualquer es-
pécie de referência ou conexão com as pessoas por cuja propriedade
esta superioridade da massa se estabelece. Se os que estabeleceram
este sistema tencionassem favorecer os ricos, por causa da sua con-
tribuição, tinham de ter conferido o privilégio ou aos indivíduos ri-
cos ou a uma classe formada por pessoas ricas (tal como os historia-
dores dizem que fez Servius T ullius 2 11 na primitiva constituição de
Roma), porque a disputa entre ricos e pobres não é uma luta entre
corporações mas uma disputa entre homens, uma competição, não
entre distritos mas entre categorias. Se este esquema fosse invertido,
satisfaria melhor o seu propósito: que os votos dos grupos fossem
iguais e, dentro de cada grupo, os votos fossem proporcionais à pro-
priedade.

Suponhamos, é fácil de imaginar, que um homem num dis-


trito contribui tanto quanto uma centena dos seus vizinhos. Con-
tra esses cem, ele tem apenas um voto. Se houver apenas um re-
presentante para todo o grupo, os seus vizinhos derrotam-no por
cem votos contra um, para a eleição daquele representante único.
É bastante mau! Mas está a caminho a sua compensação. Como?
O distrito, em virtude da sua riqueza, deverá escolher, digamos, dez
membros, em vez de um: isso quer dizer, que por pagar uma contri-

"' Servius T ullius (578-543 a. C.) sexro rei de Ro ma. A C onstiruição Romana na
refo rma de Servius T ull ius passou a considerar a propriedade de cada indivíduo para os
d ireitos devoro.
257

buição importante ele terá a felicidade de se ver derrotado pelos po-


bres, por cem votos contra um, para a eleição de dez representantes,
em vez de ser derrotado, exactamente na mesma proporção, para a
eleição de um só. De facto, em vez de beneficiar deste aumento de
representação, o homem rico é sujeito a uma adversidade adicional.
O aumento de representação na sua província elege mais nove pes-
soas, e podem ser muito mais que nove porque são candidatos de-
mocráticos que bajularão o povo e alimentarão a cabala e a intriga,
isto às suas expensas e para sua opressão. Por esta via surgirá um
interesse acrescido num sem-número de pobres, de conseguirem
um salário de dezoito livres por dia - para eles um grande objecti-
vo - para além do prazer de residirem em Paris e de partilharem o
governo do reino. ~amo mais se multiplicam os objectos da am-
bição e se tornam democráticos, na mesma proporção aumenta o
perigo para os ricos.
Eis o que deve acontecer entre pobres e ricos na província su-
postamente aristocrática, que nas suas relações internas é o inverso
disso. Nas suas relações externas, isto é, na sua relação com outras
províncias, não consigo ver de que modo a representação desigual
que é dada às circunscrições por causa da sua riqueza se torna um
meio de preservar o equilíbrio e a tranquilidade do Estado. Porque,
se fo sse um dos objectivos proteger os fracos de serem esmagados
pelos fortes - como o é em toda a sociedade - como é que as mais
pequenas e mais pobres dentre estas circunscrições são salvas da ti-
rania das mais abastadas? É pelo facto que darem às mais ricas cada
vez mais meios e meios mais sistemáticos de as oprimirem? ~ando
se trata de chegar a um equilíbrio de representação entre corpora-
ções, podem muito bem surgir entre elas o mesmo que acontece
entre os indivíduos: interesses provinciais, rivalidades e invejas, e é
muito provável que as suas dissensões produzam um espírito vio-
lento de discórdia, algo que conduza a qualquer coisa mais próxima
de uma guerra.
258

Vejo que estas massas aristocráticas são constituídas segundo o


que é chamado o princípio da contribuição directa. Não pode haver
padrão mais desigual que este. A contribuição indirecta que pro-
vém dos impostos sobre o consumo é, de facto, um melhor padrão,
e segue e descobre a riqueza mais naturalmente que a contribuição
directa. É difícil, de facto, estabelecer um padrão local de preferên-
cia, por conta de uma, de outra, ou de ambas, porque pode haver
províncias que paguem mais de uma, ou de outra, ou de ambas, não
por causas intrínsecas mas por causas que têm a ver com as relações
com os outros distritos sobre os quais estas circunscrições obtive-
ram a primazia graças à sua contribuição aparente. Se estas massas
fossem corpos soberanos e independentes que tivessem de prover
ao tesouro federativo com contingentes diversos, e se a renda públi-
ca não incluísse - como de facto inclui - muitos impostos que se
aplicam a todo o país, os quais afectam os homens individualmente
e não corporativamente, e que, pela sua natureza, esbatem todas as
divisões territoriais, poderia defender-se o critério da contribuição
das massas. Mas, de todas as coisas, a mais difícil de estabelecer se-
gundo princípios de equidade - num país que considera os seus
distritos como partes de um todo - é esta representação medida
pela contribuição de cada um. Porque uma cidade grande, como
Bordéus ou Paris, aparenta pagar uma grande quantidade de impos-
tos que praticamente está fora de qualquer proporção em relação
a outros locais e a sua massa é assinalada de acordo com isso. Mas
serão essas cidades verdadeiros contribuintes em tais proporções?
Não. Os consumidores dos géneros importados por Bordéus e que
estão espalhados por toda a França, pagam as taxas de importação
de Bordéus. O produto da vindima da Guienne e do Languedoc
dá a esta cidade os meios pelos quais cresce a sua contribuição que
provém do comércio de exportação. Os proprietários de terras
que gastam os seus bens em Paris, e que são com isso os criadores
desta cidade, contribuem para Paris a partir das províncias de onde
provém os seus rendimentos. Os argumentos que se aplicam à parte
259

que representa os rendimentos provenientes da contribuição direc-


ta são aproximadamente os mesmos: porque a contribuição directa
deve basear-se na riqueza, real ou presumível, e esta riqueza local
provém ela mesma de causas não locais que, por essa razão, em equi-
dade, não deveriam produzir privilégios locais.
É espantoso que, nesta regulação fundamental que estabelece
a representação das massas com base na contribuição directa, a As-
sembleia não tenha ainda decidido como é que esta contribuição
deverá ser lançada nem como deverá ser distribuída. Talvez sob a
capa deste estranho procedimento esteja latente alguma política
que sirva a continuação da Assembleia. Contudo, até que eles de-
cidam sobre isto, não pode haver verdadeira Constituição. Porque
esta depende em última instância do sistema de tributação e muda-
rá com qualquer variação neste. Como têm este sistema artificial, os
seus impostos não dependem tanto da sua Constituição, quanto a
sua Constituição depende dos seus impostos. Isto deve introduzir
grande confusão entre as massas, do mesmo modo que a qualifica-
ção variável para os votos no interior do distrito, se tiverem lugar
eleições verdadeiramente disputadas, deve causar imensa contro-
vérsia interna.
Se compararmos em conjunto as três bases, não do ponto de
vista político mas do ponto de vista das ideias com as quais trabalha
a Assembleia, e testarmos a sua consistência através delas, não se
pode deixar de observar que o princípio a que o comité chama a
base populacional não começa a operar a partir do mesmo ponto
que os princípios de base territorial e de base contributiva, que são
ambos de natureza aristocrática. Isto tem por consequência que,
quando todos os três princípios actuam em conjunto, ocorre a mais
absurda desigualdade pela actuação do primeiro princípio sobre os
dois últimos. Cada cantão contém quatro léguas quadradas, e cal-
cula-se que tenha uma média de 4000 habitantes, ou 680 votantes
nas assembleias primárias, o que varia com a população do cantão,
260

e envia um deputado para a comuna por cada 200 votantes. Nove


cantões fazem uma comuna.
Agora tomemos um cantão contendo uma cidade porto de mar
comercial, ou uma grande cidade manujàctureira. Suponhamos que
a população deste cantão é de 12 700 habitantes, ou seja 2193 vo-
tantes, formando três assembleias primárias e mandando dez depu-
tados para a comuna.
Oponhamos a este único cantão dois outros dentre os restan-
tes oito da mesma comuna. Podemos supor que estes possuem uma
população razoável de 4000 habitantes e 680 votantes cada, ou
8000 habitantes e 1360 votantes considerados em conjunto. Isto
formará apenas duas assembleias primárias e enviam apenas seis de-
putados para a comuna.
~ando a assembleia da comuna vota segundo a base territo-
rial, cujo princípio é o primeiro a operar aí, o único cantão que tem
metade do território dos outros dois, terá dez votos contra seis na
eleição de três deputados, para a assembleia do departamento, esco-
lhida expressamente sobre a base de uma representação territorial.
Esta desigualdade, chocante como é, será ainda muitíssimo agrava-
da se supusermos, como razoavelmente podemos supor, os outros
vários cantões da comuna a ficarem abaixo da média da população,
na proporção em que o cantão principal a excede.
Consideremos agora a base contributiva, que é também um
princípio primário a operar na assembleia da comuna. Considere-
mos de novo um cantão, semelhante ao que apresentámos acima.
Se a totalidade das contribuições directas pagas por uma grande
cidade comercial ou manufactureira for dividida igualmente pelos
habitantes, achar-se-á que cada indivíduo pagará muito mais que
um indivíduo que viva no campo, de acordo com a mesma mé-
dia. O total pago pelos habitantes da cidade, comercial ou manu-
factureira, será mais que o total pago pelos habitantes do campo,
261

podemos razoavelmente admitir que seja um terço a mais. Então os


12 700 habitantes ou 2193 votantes do cantão, pagarão tanto quan-
to 19 050 habitantes, ou 3289 votantes, de outros cantões, o que é,
aproximadamente, a proporção estimada de habitantes e de votan-
tes de cinco outros cantões. Ora os 2193 votantes enviarão, como
antes foi dito, apenas dez depurados para a Assembleia, os 3289
votantes enviarão dezasseis. Assim, para uma igual partilha na con-
tribuição de roda a comuna, haverá uma diferença de dezasseis votos
para dez na votação para os depurados a serem escolhidos segundo
o princípio que representa a contribuição geral de roda a comuna.
Segundo o mesmo modo de cálculo, teremos 15 87 5 habitan-
tes, ou 274 1 votantes, dos outros cantões que pagam um sexto ME-
NOS para a colecta de roda a comuna, que terão mais três votos que
os 12 700 habitantes, ou 2193 votantes, de um cantão.
Esta é a fantástica e injusta desigualdade entre as várias mas-
sas nesta repartição curiosa dos direitos de representação segundo
o território e segundo a contribuição. As qualificações que o territó-
rio e a contribuição conferem são de facto qualificações negativas, já
que concedem direitos na inversa proporção do que delas se possui.
Em rodo este dispositivo das três bases, considerado seja sob
que perspectiva for, não vejo uma variedade de objectivos concilia-
dos num todo consistente, mas vários princípios contraditórios e
irreconciliáveis que, não obstante, foram reunidos e mantidos em
conjunto pelos vossos filósofos, quais feras selvagens encerradas na
mesma jaula que se arranham e mordem umas às outras até mutua-
mente se destruírem.
Receio que me tenha alongado acerca do modo como os vos-
sos legisladores vêem a formação de uma Constituição. Eles têm
muita, mas má, metafísica, muita, mas má, geometria, muita arit-
mética proporcional, mas falsa, mas se tudo isto fosse tão exacto
quanto a metafísica, a geometria e a aritmética devem ser, e se os
262

seus esquemas fossem perfeitamente consistentes em todas as suas


partes, isso apenas produziria uma visão mais justa e agradável.
É notável que, tratando-se de um grande acordo entre os homens,
não se encontre sequer uma referência a algo que seja moral, ou po-
lítico, a nada que se relacione com as preocupações, as acções, as
paixões e os interesses dos homens. Hominem non sapiunf2 12•
Veja que eu apenas considero esta Constituição como eleitoral
e conduzindo por degraus à Assembleia Nacional. Não me intro-
meto no governo interno dos departamentos e na sua genealogia
de comunas e cantões. Estes governos locais eram, no plano origi-
nal, para ser tanto quanto possível compostos do mesmo modo e
segundo os mesmos princípios que as assembleias electivas. Cada
um deles forma em si mesmo um corpo perfeitamente compacto e
rotundo.
Não se pode deixar de perceber neste esquema que ele tem
uma tendência directa e imediata a dividir a França numa grande
variedade de repúblicas, e em torná-las totalmente independentes
umas das outras, sem nenhuns meios constitucionais directos que
lhes dêem coerência, conexão ou subordinação, excepto o que se
pode retirar da aprovação que dão às determinações do congresso
geral dos embaixadores de cada uma das repúblicas independentes.
Tal é, em realidade, a Assembleia Nacional. Admito que tais gover-
nos existam de facto no mundo, embora sob formas infinitamente
mais de acordo com as circunstâncias locais e habituais dos respec-
tivos povos. Mas tais associações, mais do que corpos políticos, são
geralmente o efeito da necessidade e não da escolha, eu acredito que
o poder francês actual é o primeiro corpo de cidadãos que, tendo
obtido plena autoridade para fazerem do seu país o que quisessem,
escolheram dividi-lo desta maneira bárbara.

212
N .T . "N ão cheiram a se r hum ano".
263

É impossível não observar que, no espírito desta distribuição


geométrica e deste arranjo aritmético, estes supostos cidadãos tra-
tam a França exactamente como um país conquistado. Actuando
como conquistadores imitaram os mais cruéis dentre estes. A polí-
tica destes vencedores bárbaros, que desprezam um povo subjuga-
do e insultam os seus sentimentos, tem sido sempre destruir, tanto
quanto lhes é possível, todos os vestígios do antigo país no que res-
peita à religião, à política, às leis e às maneiras, confundindo todos
os limites territoriais, produzindo uma pobreza geral. Põem as suas
propriedades em hasta pública, esmagam os seus príncipes, os seus
nobres e os seus prelados, arrasam tudo o que tenha levantado a
cabeça acima do nível comum, ou que possa servir para agregar e
reagrupar, sob o estandarte das antigas convicções, um povo desgra-
çado em debandada. Tornaram a França livre, do mesmo modo que
aqueles amigos sinceros dos direitos da humanidade, os Romanos,
fizeram livres os Gregos, os Macedónios e outras nações. Destruí-
ram os laços que os uniam, sob o pretexto de prover à independên-
cia de cada uma das suas cidades.
~ando os membros que compõem estes novos corpos de
cantões, comunas e departamentos, arranjos propositadamente
produzidos através da confusão, começarem a actuar, descobrirão
que em grande medida são estranhos uns para os outros. Os elei-
tores e os elegidos, especialmente nos cantões rurais, carecerão fre-
quentemente de hábitos e conexões civis, ou daquela disciplina que
é a alma de uma verdadeira república. Agora, magistrados e colec-
tores de impostos deixaram de conhecer os seus distritos, os bispos,
as suas dioceses e os curas, as suas paróquias. Estas novas colónias
dos direitos do homem têm grande semelhança com aquelas coló-
nias militares que Tácito comentou na política decadente de Roma.
Em tempos mais ditosos e mais sábios, os Romanos, fosse qual fosse
a atitude que tomavam para com as nações estrangeiras, cuidavam
de criar os factores de subordinação metódica em simultâneo com
a colonização e mesmo de fundar os princípios da disciplina nos
264

militares· 213 • Mas, quando toda a sua arte de governar caiu em ruí-
nas continuaram, como o faz a vossa Assembleia, seguindo princí-
pios de igualdade dos homens, com a mesma falta de discernimento
e o mesmo descuido por todas aquelas coisas que tornam uma repú-
blica tolerável ou estável. Mas nisso, como em quase todas as outras
instâncias, a vossa nova sociedade nasceu, produziu-se e alimentou-
-se daquela corrupção que caracteriza as repúblicas degeneradas e
exaustas. O vosso filho vem ao mundo com os sintomas da morte, a
jàcies hippocratica 214 forma a sua fisionomia e o prognóstico do seu
destino.

Os legisladores que estruturaram as antigas repúblicas sabiam


que a sua tarefa era demasiado árdua para ser levada a cabo com ins-
trumentos não melhores que a metafísica de um colegial e as mate-
máticas e aritméticas de um cobrador de impostos. Tinham de lidar
com homens e eram obrigados a estudar a sua natureza. Tinham de
lidar com cidadãos e eram obrigados a estudar os efeitos dos hábitos
que lhes eram comunicados pelas circunstâncias da vida em socie-
dade. Eram sensíveis ao facto de que a acção desta segunda natureza
sobre a primeira produzira uma nova combinação, donde surgira
grande diversidade nos homens, de acordo com o seu nascimento,
a sua educação, as suas profissões, os períodos das suas vidas, o facto
de viverem na cidade ou no campo, os vários modos de adquirir e
de conservar a propriedade, e de acordo com a qualidade da pro-

213
"Nora do am o r: "N on, ur olim , universe legiones deducebanrur, cu m rribunis,
er cenrurio nibus, er sui cujusque o rdinis miliribus, ur con sensu er carirare rem publicam
efficerenr, sed igno ri inrer se, d iversis manipulis, sine recrore, sine affecribus muruis, quas i
ex alio genere mo nalium repenre in unum collecri, numerus magis quam colonia." [Já não
era como ourrora qu ando se esrabeleciam legiões inreiras com os seus rribunos, os seus
cenruriões e os seus soldados, cada um conforme a sua ordem , de manei ra a formarem
pelo seu enrendimenro e pela sua afeição recíproca uma co munidade polírica, mas eram
homens que não se co nheciam de di ferences manípulos, sem líder, sem afeição múrua
co mo se fossem mo rrais de ourra raça su biramenre reun idos, uma mulridão mais do que
uma coló nia. T ac. Ann. 14.27) . T udo isro apl icar- e-á ai nda melhor às assembleias bia-
nuais nacionais, desconexas e rorarivas, nesra consriruição absurda e insensara.
21
' N.T . Semblanre lívido do agon izanre descriro po r Hipócrares.
265

priedade, tudo isto os tornara como se fossem diferentes espécies de


animais. Por esta razão, aqueles legisladores pensaram que deviam
ordenar os seus cidadãos em classes e agrupá-los de acordo comes-
sas classes no Estado, segundo aquilo para que os seus hábitos os
capacitavam, e conferiam-lhes os privilégios que assegurassem o
que a sua condição requeria e que pudessem fornecer a cada clas-
se a força necessária à sua protecção no conflito gerado pela diver-
sidade de interesses, que necessariamente existem e forçosamente
competem, em todas as sociedades complexas: porque o legislador
ter-se-ia envergonhado que o rude camponês soubesse muito bem
separar e usar as suas ovelhas, os seus cavalos e bois e tivesse bom
senso para não abstrair e igualizar todos eles enquanto animais, sem
cuidar de prover para cada espécie a comida, o cuidado e o empre-
go apropriados, enquanto ele, o economista, árbitro e pastor dos
seus semelhantes, armando-se em etéreo metafísico, resolvesse não
saber nada do seu rebanho senão que eram homens em geral. É por
essa razão que Montesquieu 215 observou, muito justamente que, na
sua classificação dos cidadãos, os grandes legisladores da antigui-
dade deram a maior demonstração do seu talento ultrapassando-
-se a si mesmos. É neste ponto que os vossos modernos legisladores
foram fundo na escala negativa, abaixo do seu próprio nada. Do
mesmo modo que o primeiro tipo de legisladores tinha em conta
os diferentes tipos de cidadãos e os combinavam dentro da comuni-
dade, os outros, os legisladores metafísicas e alquimistas, tomaram
exactamente o rumo oposto. Tentaram misturar todos os tipos de
cidadãos, tão bem quanto podiam, numa massa homogénea e de-
pois dividiram a sua amálgama em inúmeras repúblicas incoerentes.
Reduzem os homens a meras cifras, atendendo apenas ao seu núme-
ro e não atendendo ao seu valor, cujo poder deveria provir do seu
lugar na mesa. Os rudimentos da sua própria metafísica poderiam

21 1
.T. Charles-Lou is de Secondat, Baron de Montesquieu ( 1689- 1755 ). Ad-
mirador da Constituição de Inglaterra, cuja obra fundamental , De l'E.sprit des Lois, era
conhecida de Burke.
266

ter-lhes ensinado melhor lição. A recitação da sua tábua de catego-


rias poderia tê-los informado de que havia mais alguma coisa no
mundo intelectual para além da substância e da quantidade. Pode-
riam ter aprendido do catecismo da metafísica que havia mais oito
categorias 2 16 em cada deliberação complexa, nas quais eles nunca
haviam pensado, embora seja só através delas, todas as dez, que o
entendimento humano pode actuar.
Longe das sábias disposições de alguns amigos legisladores re-
publicanos, que acompanharam com solicita precisão a condição
moral e as inclinações dos homens, eles nivelaram e amalgamaram
em conjunto todas as classes que existiam, mesmo aquelas que per-
tenciam ao arranjo rude e natural da monarquia, modo de governo
em que a divisão dos cidadãos em classes não tem tanta importân-
cia como na república. Contudo, é verdade que toda a classificação
desse tipo, quando convenientemente ordenada, é boa em qualquer
forma de governo e constitui uma forte barreira contra os excessos
do despotismo, bem como constitui o meio necessário à efectivação
e à continuidade de uma república. Por falta de qualquer coisa deste
género, se o actual projecto de república falhar, todas as garantias
de uma liberdade moderada falharão também, porque foram reti-
radas todas as restrições indirectas que mitigam o despotismo, de
tal modo que, se a monarquia mais alguma vez se restabelecer em
França, sob esta ou outra dinastia, será provavelmente o poder mais
arbitrário que já se viu à face da terra se, ao estabelecer-se, não for
voluntariamente moderada pelo desígnio sábio e virtuoso do prín-
cipe. Isto é jogar um jogo muito arriscado.
Os vossos legisladores declaram que a confusão que afecta
todo o seu procedimento é um dos seus objectivos, e que esperam
garantir a Constituição pelo terror que inspira o retorno aos males
que acompanharam a sua feitura. "Com isso", dizem eles, "a des-
216 1ora do autor: fl!:aliras, Relario, A crio, Passio, Vbi, fl!:ando, Sirus, Habirus.

[ ~alid ade , Relação, Acção, Paixão, Lugar, T empo, Situação, H ábiro- as restantes oiro
catego rias do ser, segundo Aristóteles, além da Substânc ia e da ~a nrid ade ) .
267

truição da Constituição será difícil à autoridade, que não poderá


dissolvê-la sem a total desorganização do Estado". Presumem eles
que, se esta autoridade alguma vez chegar ao mesmo grau de po-
der que eles próprios adquiriram, fará um uso mais moderado e
disciplinado dele e tremerá piedosamente perante a possibilidade
de desorganizar o Estado da maneira selvagem que eles o fizeram.
Esperam, das virtudes do despotismo que voltar, a segurança de que
hão-de desfrutar os frutos dos seus vícios populares.
Gostaria que o Senhor e os meus leitores considerassem com
atenção o trabalho do Senhor de Calonne 2 17 a este propósito. De
facto, é um trabalho não apenas eloquente, mas hábil e instrutivo.
Limitar-me-ei àquilo que diz a propósito da Constituição do novo
Estado e da condição do rendimento. ~anto às disputas deste
ministro com os seus rivais, não quero pronunciar-me acerca de-
las. Como tão-pouco tenciono arriscar uma opinião sobre as suas
vias e os meios financeiros ou políticos que propõem para retirar o
seu país da infeliz e deplorável situação presente de servidão, ban-
carrota, e indigência. Não posso especular com tanto ardor quanto
ele o faz , mas ele é um francês e tem mais obrigação de o fazer em
relação a estes objectivos, e melhores meios para os avaliar, do que
eu posso ter. Gostaria que atendêssemos particularmente à declara-
ção formal a que ele se refere, feita por um dos principais líderes da
Assembleia, segundo a qual a tendência é levar a França não apenas
de uma Monarquia para uma República mas de uma República para
uma mera confederação. Isso acrescenta uma nova força às minhas
observações e, de facto , o trabalho do Senhor de Calonne, supre as
minhas deficiências acrescentando argumentos novos e surpreen-
dentes acerca de muitos dos assuntos desta carta218 •
Foi esta resolução de repartir o seu país em repúblicas separa-
das que conduziu os vossos legisladores a tantas dificuldades e con-

.T . C harles Alexandre Vicomre de Calonne ( 1734- 1802).


218
"Nora do autor: Ve r L 'État de la France, p. 363.
268

tradições. Se não fosse por causa disso, todas as questões que dizem
respeito a uma exacta igualdade e toda esta procura de equilíbrio
- que nunca se há-de encontrar - entre direitos, população e con-
tribuição, seriam completamente escusados. A representação, ainda
que derivasse das partes, seria um dever que também diria respeito
ao todo. Cada deputado à Assembleia seria um representante de
França e de todas as suas categorias, quer de muitos quer de poucos,
dos ricos e dos pobres, dos grandes distritos e dos pequenos. Todos
estes distritos deveriam estar eles mesmos subordinados a uma au-
toridade permanente, que existisse independentemente deles, uma
autoridade em que teria origem a sua representação e tudo o que
lhe dissesse respeito e para a qual esta apontaria. A existência deste
governo permanente, inalterável e fundamental faria - e é a única
coisa que o poderia fazer - que o vosso território fosse verdadeira
e propriamente um todo. Entre nós, quando se elegem represen-
tantes populares, enviamo-los para um conselho onde cada indiví-
duo é um súbdito subordinado a um governo completo em todas as
suas funções comuns. Convosco a Assembleia electiva é soberana,
e a única soberana, todos os membros são assim parte integrante
desta soberania única. Mas connosco é totalmente diferente. Con-
nosco o representante, separado das outras partes, não pode agir
nem ter existência. O governo é o ponto de referência dos diversos
membros e distritos da nossa representação. Este é o centro da nos-
sa unidade. Este governo de referência é um curador para o todo e
não para as partes. O mesmo se passa com o outro ramo do nosso
Parlamento: a Câmara dos Lordes. Connosco, o Rei e a Câmara
dos Lordes são uma segurança conjunta que garante a igualdade de
cada distrito, cada província e cada cidade. ~ando é que se ouviu
falar na Grã-Bretanha que uma província sofresse de desigualdade
na sua representação? Ou de um distrito não representado? Não só
a nossa monarquia e os nossos Pares asseguram a igualdade da qual
depende a nossa unidade, mas é também esse o espírito da própria
Câmara dos Comuns. A verdadeira desigualdade de representação,
269

alvo de tantas queixas insensatas, é talvez exactamente o que nos


impede de pensar e actuar como membros de distritos. A Cornua-
lha elege tantos membros como toda a Escócia. Mas será a Cornua-
lha mais bem cuidada que a Escócia? 219 Poucos de nós, salvo alguns
clubes extravagantes, se preocupam com qualquer uma das vossas
bases de representação. Muitos dos que querem alguma mudança,
por razões plausíveis, desejam-na baseados em ideias diferentes.
A vossa nova Constituição é, no seu princípio, o oposto da
nossa, e estou espantado como há quem sonhe arvorar o que quer
que seja feito nela como exemplo para a Grã-Bretanha. Convosco
há pouca, ou mesmo nenhuma, relação entre o último representante
e o primeiro constituinte. O membro que vai para a Assembleia Na-
cional não é escolhido pelo povo, nem responde perante ele. Há três
eleições antes que ele seja nomeado: dois grupos de magistratura se
interpõem entre ele e a assembleia primária de modo a torná-lo, tal
como antes disse, embaixador de um Estado e não o representante
de um povo de um Estado. Através disto, todo o espírito da eleição
se muda e nem os correctivos imaginados pelos vossos fazedores-
-de-constituições conseguem torná-lo em algo diferente do que
ele é. A própria tentativa de o fazer ocasionaria inevitavelmente
uma confusão que seria ainda mais prejudicial que a que existe
actualmente, se é que isso é possível. Não há maneira de estabelecer
uma conexão entre o constituinte original e o representante, senão .
pelo caminho sinuoso que pode levar o candidato a apelar em pri-
meiro lugar para os eleitores primários, de modo que pela autori-
dade das suas instruções (e talvez algo mais) estes eleitores primá-
rios possam forçar os dois corpos eleitorais que se sucedem a fazer
uma escolha de acordo com os seus desejos. Mas isto subverteria

219
N.T. A represe ntação política nessa altura. baseia-se na propo rção entre po-
pulação e tributação sobre a terra. Algun s estudos mostram as grandes incongruências
que isso gera,·a na distribuição da represe ntação. Para mais info rmação sobre o assun to
consu ltar: Pau l Langfo rd (1988 ), "Prope rtY and 'Vi rtual Represe ntario n' in Eighreenth
Centurv England ", The H istoricalj ouma/, 3 1, I, pp. 85-6.
270

completamente rodo o esquema. Isso seria mergulhá-los de novo


naquele tumulto e confusão da eleição popular, que pela interposta
gradação de eleições os vossos legisladores tentaram evitar e, por
fim , arriscar completamente a so rte do Estado com os que menos
têm conhecimento acerca dele e menos interesse por ele. É este o
perpétuo dilema para o qual vós fostes empurrados pelos princípios
viciosos, fracos e contraditórios que escolhestes. A menos que o
povo se subleve e destrua rodas estas gradações, é óbvio que eles de
modo algum elegem verdadeiramente para a Assembleia. De facto,
elegem tão pouco na aparência quanto o fazem na realidade.
O que é que rodos nós procuramos com uma eleição? Para que
ela responda ao seu real propósito, os senhores precisam primei-
ro de ter os meios de conhecer se o vosso homem é apto e depois
precisam de manter algum controlo sobre ele através de obrigação
pessoal ou de dependência. Para que fim são estes eleitores primá-
rios honrados, ou antes troçados, com uma escolha? Nunca podem
saber coisa alguma acerca das qualidades daquele que os deve servir,
nem este tem qualquer obrigação para com eles. De todos os po-
deres impróprios para serem delegados por aqueles que têm alguns
meios para julgar, o mais impróprio de rodos é o que se relaciona
com uma escolha pessoal. Em caso de abuso, o corpo dos eleitores
primários nunca pode chamar o representante a prestar contas pela
sua conduta. Está demasiado afastado deles na cadeia da represen-
tação. Se ele actuar de modo impróprio no final do seu mandato
de dois anos, isso não o preocupará por mais dois anos ainda. Pela
nova Constituição Francesa os representantes melhores e os mais
sábios vão juntamente com os piores para este Limbus Patrum. São
como barcos cujo fundo está podre e que devem recolher à doca
para serem reparados. Todos os homens que serviram numa dada
Assembleia são inelegíveis para os dois anos seguintes. Logo quan-
do estes magistrados começavam a aprender o seu ofício, como os
limpa-chaminés, são desqualificados para o exercer. Serem superfi-
ciais, arrivistas, petulantes e intermitentes, vagabundos, falidos, de
271

má memória, é este o carácter a que estão destinados todos os vossos


futuros governantes. A Vossa Constituição tem demasiado ressen-
timento para haver nela bom senso. Vós considerais com tal rele-
vância a quebra de confiança no representante que não dais atenção
nenhuma ao facto de ele estar preparado para o cargo.
Este intervalo purgatório não é, contudo, desfavorável a um
representante desleal, que pode ser tão bom angariador de votos
quanto era mau governante. Neste período pode conspirar para
conseguir sobrepor-se a outros mais sensatos e honestos, e como,
ao fim e ao cabo, todos os membros desta Constituição electiva são
igualmente efémeros e existem apenas para a eleição, podem não ser
as mesmas pessoas que o escolheram aquelas a quem tem de respon-
der quando solicita um novo mandato. Chamar todos os eleitores
secundários da comuna a prestar contas é ridículo, impraticável e
injusto: eles próprios podem ter sido enganados na sua escolha, do
mesmo modo que o terceiro grupo de eleitores - os do departamen-
to - o podem ter sido na deles. Nas vossas eleições não pode existir
responsabilidade.
Não encontrando nenhum tipo de princípio de coerência,
quer quanto à sua natureza quer quanto à sua constituição, entre as
várias novas repúblicas de França, pensei sobre o material estranho
a que recorreram os legisladores para as cimentar. Não posso ter em
conta nem as suas confederações, nem os seus espectáculos, nem as
suas festas cívicas, nem o seu entusiasmo. Não passam de meros tru-
ques. Mas traçando a sua política a partir das suas acções, penso que
consigo distinguir os esquemas pelos quais eles se propõem manter
unidas estas repúblicas. O primeiro é a confiscação, com o papel-
-moeda compulsório a ela agregado, o segundo é o poder supremo
da cidade de Paris, o terceiro é o exército do Estado. Acerca deste
último reservarei o que tenho para dizer para quando considerar o
exército como um tópico em si mesmo.
~amo à actuação do primeiro esquema (a confiscação e o
papel-moeda) meramente como cimento, não posso negar que, um
272

dependendo da outra, pode provisoriamente constituir uma espécie


de cimento, se a sua loucura e desvario na administração e na com-
binação das várias partes num conjunto não produzir uma rejeição
logo à partida. Admitindo para este esquema alguma coerência e
duração, parece-me que se após algum tempo a expropriação não
for considerada suficiente para sustentar a emissão de papel-moeda,
(como estou moralmente convicto que não será), então, em vez de
cimentar, fará aumentar muitíssimo a dissociação, perturbação e
confusão destas repúblicas confederadas, quer umas em relação às
outras, quer relativamente às várias partes no interior de cada uma
delas. Mas, se o arresto tivesse um tal êxito que afundasse o papel-
-moeda, o cimento desapareceria com o fim da sua circulação. Por
enquanto, a sua força de ligação é muito irregular, aperta ou afrouxa
com as variações no crédito do papel-moeda.
Neste esquema apenas uma coisa é certa, que é um efeito apa-
rentemente colateral, mas directo, não tenho dúvidas disso, nas
mentes daqueles que conduzem este assunto: a produção de uma
Oligarquia em cada uma das repúblicas. Uma circulação de papel-
-moeda, que não se funda em nenhum dinheiro real depositado,
ou endossado para ser pago, que ascende já a 44 milhões da moeda
inglesa, tendo substituído à força a moeda do reino de França, tor-
nando-se desse modo a substância da renda pública e o meio pelo
qual se realizam as suas transacções comerciais e civis tem, forço-
samente, de pôr todo o poder, autoridade e influência que restam,
seja qual for a forma que estes assumam, nas mãos dos que gerem e
conduzem a sua circulação.
Em Inglaterra sentimos a influência do Banco, embora ele seja
apenas o centro de transacções voluntárias. É conhecer pouco a in-
fluência que tem o dinheiro sobre a natureza humana, se não se vir
a força que tem a gestão de um interesse económico muito maior
e, por natureza, muito mais dependente de quem o manipula, que
o nosso. Mas isto não é apenas um interesse económico. Há ou-
tro elemento no sistema inseparavelmente ligado a esta circulação
273

de moeda. O qual consiste na subtracção, à descrição, de porções de


terra confiscada para venda acarretando um processo contínuo
de transmutação de papel em terras e de terras em papel. ~an­
do seguimos os efeitos deste processo, podemos perceber em parte
a intensidade e a força com que este sistema deve actuar. Por este
meio, a agiotagem e a especulação penetraram a própria massa da
propriedade e incorporaram-se nela. Através deste tipo de operação
esta espécie de propriedade torna-se, por assim dizer, volátil contra
a sua própria natureza, assume uma monstruosa actividade e assim
lança nas mãos dos vários negociantes, os principais e os subordina-
dos, os parisienses e os de província, tudo o que representa dinhei-
ro, e talvez bem uma décima parte de todas as terras de França, a
qual adquiriu agora a pior faceta da circulação de papel-moeda: a
maior incerteza possível no seu valor. Reverteram a mercê de Lato-
na à ilha de Delos 220 , os vossos legisladores entregaram as suas terras
para serem dispersadas pelo vento como os destroços de um naufrá-
gio: oras et littora circum 221 •
Os novos negociantes, sendo todos eles habitualmente aven-
tureiros e sem nenhuns hábitos fixos ou predilecção especial por
qualquer local, compram para voltarem a vender, consoante o mer-
cado de papel, ou de dinheiro, ou de terras, se mostre vantajoso.
Porque, embora um santo Bispo 222 pense que a agricultura retirará
grande benefício dos usurários "iluminados" que hão-de comprar as
terras confiscadas à Igreja, eu, que sou não um bom mas um antigo
220
N.T . Alusão a Verg. A.3.75. Diz a lenda que Delas era um a ilha Auru anre que
tinha sido fixada por Júpiter, ou por Neptuno, ou ainda por Apolo - tradição que Virgíli o
adopta. Apolo tê- la-ia fix ado em memória do asilo que Delas teria concedido a Latona,
sua mãe, qu ando esta o deu à luz. A propósito destas referências cf. Virgíle, L 'Énéide,
Mauri ce Rat, Ed. Paris, Garnier Freres, vol. I, 1960, pp. I 06-7 e 352. n. 555.
221
N.T . "Em volta das costas e das margens", Verg. A. 3.75.
222
N .T. Refere-se a C harles-Maurice de T alleyrand-Périgord ( 1754- 1838 ), Bispo
de Aurun. A propósito destas referências Cf. Edmund Burke, R éflexions sur la. Révolu -
tion de France et sur les Procédés de Certaines Sociétés a L ondres R ela.tifi a Cet Événement ,
Pierre Duponr, T rad. ( 1790), révisée, annotée et présenrée par Derouard, Michel, Paris,
Authenrica, 1988, p. 21 3.
274

lavrador, com grande humildade peço permissão para dizer ao ex-


-dignitário que a usura é um mau mestre para a agricultura e, se o
termo "iluminado" for entendido de acordo com o novo dicionário
como ele o é sempre nas vossas novas escolas, não consigo imagi-
nar como é que um homem que não acredita em Deus pode ensi-
nar a trabalhar a terra com mais competência ou entusia'smo, por
pouco que seja. "Diis immortalibus sero" 223 dizia um velho romano
agarrado a uma rabiça do seu arado enquanto a morte segurava a
outra. Por muito que junteis em Comissão os directores das duas
Academias com os directores da Caísse d'Escompt, um lavrador ve-
lho e experiente vale mais que todos eles juntos. No que me di·z
respeito, recolhi mais informação sobre um interessante e curioso
ramo da agricultura em conversa com um velho monge Cartuxo,
do que recolhi em todas as conversas que já tive com directores de
banco. Contudo, não há que temer que estes agiotas se imiscuam
demais na economia rural. Esta geração de cavalheiros é demasiado
calculista. No início, talvez a sua imaginação terna e susceptível se
possa sentir cativada pelas delícias de uma vida pastoril, inocente e
pouco rentável, mas em pouco tempo descobrirão que a agricultura
é um negócio muitíssimo mais trabalhoso e muito menos lucrativo
do que aquele que deixaram. Depois de fazerem o seu panegírico,
virar-lhe-ão as costas como o fez o seu grande precursor e protóti-
po. Poderão, tal como ele, começar por cantar, "Beatus ille" 224 - mas
qual será o fim?
Haec ubi locutus foenerator Alphius
Jam jam futurus rusticus,
Omnem relegit Idibus pecuniam,
~aerit Calendis ponere 225

223
N.T. "Semeio para os deuses imortais" Cic. Sen. 25.3·5.
22
' N.T. O verso completo é "Bearus ille qui procul negotiis", H or. Ep. 2. 1, feli z
aquele que está longe dos negócios.
221
N.T.: "Ass im que o usurário Ál fio disse isto, prestes a ser um camponês, reco·
lheu o seu dinheiro nos idos e nas calendas procura investi-lo." H o r. Ep. 2.65-70. O s idos
275

Cultivarão a Caisse d'Église, sobre os sagrados auspícios deste


prelado, com muito mais proveito do que as suas vinhas e milharais.
Empregarão os seus talemos de acordo com os seus hábitos e os seus
interesses. Não andarão atrás do arado quando podem controlar te-
sourarias e governar províncias.
Os vossos legisladores, inovadores em tudo, são os primeiros
que fundaram um Estado sobre o jogo e lhe infundiram este espí-
rito como o seu sopro vital. O grande objectivo nestas políticas é
transformar a França de um grande reino numa grande mesa de
jogo, transformar os seus habitantes numa nação de jogadores, es-
tender a especulação a rodos os aspectos da vida, misturá-la com
rodas as suas preocupações e desviar rodas as esperanças e temores
do povo do seu habitual curso para os impulsos, as paixões, e as
superstições daqueles que vivem da sorte. Proclamam em alta voz a
opinião de que o sistema actual da sua república possivelmente não
poderia existir sem estes fundos do jogo e que o próprio fio das suas
vidas está entretecido com a matéria-prima destas especulações.
O velho jogo a dinheiro era bastante pernicioso, mas era-o apenas
para os indivíduos. Mesmo na sua maior expressão, no Mississípi
e nos Mares do Sul, afectava poucos, comparativamente; nas lota-
rias, onde alastra mais, o espírito ocupa-se apenas de um objecto.
Mas onde a lei, que em muitas circunstâncias proíbe e em nenhuma
apoia o jogo, está ela mesma debochada de tal modo que inverte a
sua natureza e a sua política e força expressamente os seus súbditos
à mesa da ruína, trazendo o espírito e os símbolos do jogo às mais
pequenas coisas e comprometendo rodos, em tudo, no jogo, espa-
lha-se a mais horrível e destemperada epidemia deste tipo que já
apareceu no mundo. Entre vós, um homem não pode ganhar nem
pode comprar o seu jantar sem especulação. O que ele recebe de
manhã não terá o mesmo valor à noite. O que ele é forçado a aceitar
como pagamento de uma dívida antiga, não será recebido com o
são no dia 13 de cada mês, exceptO nos meses de Março, Maio, Julho e Ourubro em que
são no dia IS. As calendas são no dia I de cada mês.
276

mesmo valor quando se trata de pagar uma dívida contraída por ele
próprio, nem terá um valor idêntico quando quiser pagar a pronto
evitando de todo contrair uma dívida. A indústria extinguir-se-á,
a economia desaparecerá, a poupança cautelosa deixará de existir.
~em irá trabalhar sem conhecer qual vai ser o seu salário? ~em
estudará para incrementar o que ninguém pode calcular? ~em irá
juntar quando não sabe o valor do que poupa? Se abstrairmos do
uso que ele pode ter na especulação, acumular o vosso papel-moeda
não será actuar como homem previdente, mas antes actuar segundo
o instinto desequilibrado da gralha.
O que é verdadeiramente triste nesta política de criar siste-
maticamente uma nação de jogadores é que - embora todos sejam
forçados a jogar - poucos percebem o jogo, e menos ainda estão
em condições de adquirir tal conhecimento. A maioria será um
joguete dos poucos que conduzem a máquina destas especulações.
O efeito que isto deve ter nas pessoas do campo é visível. O homem
da cidade pode calcular dia a dia, isso não acontece com o homem
do campo. ~ando o camponês trás pela primeira vez o seu milho
ao mercado, o magistrado na cidade obriga-o a receber os assignat
equivalentes, quando ele vai à loja com este dinheiro, acha-o des-
valorizado em 7% só por ter atravessado a rua. A este mercado ele
não voltará de boa vontade. As pessoas das cidades ficarão irritadas,
forçarão os do campo a trazerem o seu milho. Começará a resistên-
cia e as matanças de Paris e de St. Denis podem reaparecer por toda
a França.
~e significado tem a lisonja feita ao campo dando-lhes pos-
sivelmente mais do que o que seria a sua parte na teoria da vossa
representação? Onde é que os senhores colocaram o poder real so-
bre a circulação do dinheiro e das terras? Onde é que os senhores
colocaram os meios de fazer subir e fazer cair o valor dos bens de
cada um? Aqueles cujas operações podem subtrair ou acrescentar
10% aos bens seja de quem for em França, devem ser os amos de
277

todos os franceses. A totalidade do poder obtido por esta Revolu-


ção fixar-se-á nas cidades entre os burgueses e os banqueiros que a
conduzem. O senhor de terras, o pequeno proprietário, os campo-
neses, nenhum deles tem hábitos, ou inclinações, ou experiência,
que possa levá-los a partilhar da única fome de poder e influência
que a França agora tem. A própria natureza da vida no campo, a
própria natureza da propriedade fundiária, em todas as ocupações
e em todos os prazeres que proporciona, torna a associação e a or-
ganização (que são o único modo de obter e exercer influência) de
certo modo impossível entre as gemes do campo. Combinai-os
com toda a arte e com todo o empenho que tiverdes que hão-de
dissociar-se de novo em indivíduos. Tudo o que se pareça com uma
incorporação é praticamente irrealizável entre eles. A esperança, o
medo, o alarme, a inveja, todas as histórias efémeras que cumprem
a sua função e duram apenas um dia, todas estas coisas, que são as
rédeas e as esporas através das quais os líderes controlam ou impul-
sionam a mente dos seus seguidores, não se empregam facilmente,
ou são mesmo impossíveis de aplicar, em pessoas dispersas. Uni-los,
armá-los e fazê-los actuar é muito difícil e dispendioso. Os seus es-
forços, ainda que possam ter começado, não se conseguirão manter.
Não conseguem actuar sistematicamente. Se um grande proprietá-
rio rural tentar ser influente meramente por causa do rendimento
das suas terras, o que é isso para aqueles que têm dez vezes o seu
rendimento para vender e que podem arruiná-lo lançando no mer-
cado, para competir com ele, o produto dos próprios roubos? Se o
proprietário rural quiser fazer uma hipoteca, faz cair o valor da ter-
ra e aumenta o valor dos assignats. Aumenta o poder dos seus inimi-
gos com os mesmos meios que precisa empregar para combatê-los.
Desse modo, o fidalgo rural, o oficial de mar e terra, o homem de
hábitos liberais que não está ligado a nenhuma profissão, estará tão
completamente excluído do governo do seu país como se estivesse
proscrito por lei. É óbvio que, nas cidades, todas as coisas que cons-
piram contra o fidalgo rural se combinam a favor dos que dirigem
278

e gerem o dinheiro. Na cidade a associação é normal. Os habitantes


dos burgos, as suas ocupações, as suas diversões, os seus negócios e
a sua ociosidade, continuamente os obrigam a estar em contacto
uns com os outros. ~er as suas virtudes quer os seus vícios são
sociáveis, estão sempre em brigada, vêm rodos em conjunto e semi-
disciplinados para as mãos dos que querem formá-los, quer para a
actividade civil, quer militar.
Todas estas considerações não deixam dúvidas no meu espíri-
to de que, se esta Constituição monstruosa se conseguir manter, a
França será totalmente governada pelos agitadores em corporações,
por sociedades nas cidades, formados por directores dos assignats,
e provedores para a venda das terras da Igreja, advogados, agentes,
especuladores, agiotas e aventureiros, compondo uma ignóbil oli-
garquia, fundada na destruição da coroa, da Igreja, da nobreza e
do povo. Acabam aqui todos os sonhos enganosos de igualdade e
dos direitos do homem. No pântano Serboniano 226 desta oligarquia
ignóbil, são rodos absorvidos, afundados e perdidos para sempre.
Embora os olhos humanos não consigam perscrutá-los, somos
tentados a pensar que grandes injúrias em França bradaram aos
céus, que resolveu puni-las com a sua sujeição a um domínio vil e
inglório, onde não se pode encontrar conforto nem compensação
nem sequer em nenhum dos falsos esplendores que fazem parte do
jogo de outras tiranias e que impedem os homens de se sentirem
desonrados mesmo quando estão oprimidos. Devo confessar que
me sinto tocado por uma espécie de tristeza misturada com alguma
indignação, ao ver a conduta de alguns homens, em tempos em po-
sições elevadas e ainda de grande carácter que, enganados pelas pa-
lavras, se envolveram numa empresa cuja profundidade o seu enten-
dimento não poderia calcular, que emprestaram a sua reputação e a

226
N .T. Alusão aos versos de Milron no Paradise Lost, II, 592-4: "Um golfo pro·
fundo como aquele pântano Serboniano I entre Damiata e o velho Monte Casius I onde
exércitos inteiros se afund aram ."
279

autoridade dos seus nomes bem-sonantes aos desígnios de homens


que não podiam conhecer e, através disso, fizeram as suas virtudes
cooperarem na ruína do seu país.
E é tudo, no que diz respeito ao primeiro princípio de união.
O segundo material utilizado como cimento da sua nova re-
pública é a superioridade da cidade de Paris. Admito que este está
fortemente ligado com o outro princípio aglutinador da confisca-
ção e da circulação do papel-moeda. É nesta parte do projecto que
precisamos procurar a causa da destruição de todas as fronteiras de
províncias e jurisdições, eclesiásticas ou seculares, e a dissolução
de toda a antiga organização e a formação de tantas pequenas repú-
blicas dispersas. O poder da cidade de Paris é evidentemente uma
grande fome de toda a sua política. É através do poder de Paris, que
agora se tornou o centro e o foco da agiotagem, que os líderes desta
facção dirigem, ou melhor, comandam todo o governo legislativo e
executivo. Portanto, tudo deve ser feito para confirmar a autoridade
dessa cidade sobre todas as outras repúblicas. Paris é compacto, cem
uma enorme força, completamente desproporcionada em relação à
força de qualquer das outras repúblicas quadriculares, e esta força
está concentrada num estreito círculo. Paris cem uma relação fácil e
natural entre as suas partes, que não será afectada por nenhum siste-
ma de constituição geométrica, nem para ela cem muito significado
se a proporção de representação é maior ou menor, uma vez que
pescou no arrasto todos os peixes. As outras divisões do reino, reta-
lhadas e feitas em bocados, afastadas de todos os meios habituais e
mesmo de todos os princípios de união, não podem, pelo menos de
momento, confederar-se contra ela. Aos outros membros que lhe
estão subordinados, não se deixou nada senão fraqueza, desconexão
e confusão. Para confirmar esta parte do plano a Assembleia ultima-
mente resolveu que, em nenhum caso, duas repúblicas poderão ter
o mesmo comandante-em-chefe.
280

Para uma pessoa que tenha uma visão do todo, a força de Pa-
ris, conseguida deste modo, produzirá um estado de fraqueza geral.
Alardeia-se que a política da divisão geométrica foi adoptada e que
doravante todos os regionalismos desaparecerão, que o povo não
deverá jamais ser gascão, picardo, bretão ou normando, mas fran-
cês, com um país, um coração e uma Assembleia227 • Mas êm vez de
serem todos franceses o que é mais presumível é que os habitantes
desta região em breve não terão país. Nunca nenhum homem se
ligou com orgulho, com regionalismo ou com afeição verdadeira
a uma quadrícula. Nunca se orgulhará de pertencer à quadrícula
n. 0 7 1, ou a qualquer outro rótulo. Começamos os nossos afectos
públicos dentro da nossa família. Nenhum parente frio é um cida-
dão zeloso. Da nossa família passamos aos nossos vizinhos e às rela-
ções habituais na nossa província. São pousadas e lugares de descan-
so. As divisões do nosso país que foram feitas pelo hábito, e não por
um súbito arranco de autoridade, são outras tantas imagens onde se
reflecte toda a nação e em cada uma delas o coração encontra algo
com que se possa preencher. O amor ao todo não se extingue nesta
parcialidade que se lhe subordina. Talvez seja uma espécie de trei-
no elementar para uma perspectiva mais elevada e mais ampla que,
apenas ela, fará que os homens se sintam envolvidos com a prospe-
ridade de um reino tão extenso quanto a França, como com a sua
própria prosperidade. Os cidadãos interessam-se por este território
vasto, como acontecia com as províncias, a partir de velhos precon-
ceitos e de hábitos inconscientes e não em virtude das proprieda-
des geométricas do seu traçado. O poder e a proeminência de Paris,
certamente que exercem pressão e manterão unidas estas repúblicas
enquanto durarem mas, pelas razões que já lhe dei, penso que não
poderão durar muito.

,- .T. Mesmo em Paris as pessoas que vinham de outras regiões mantinham-se


unidas aos da sua rerra e podiam idenrificar·se comunidades de brerões, gascões e nor·
mandos. Cf. Rejleaions on the Revolution in France, The Writings and Speeches ofEdmund
Burke, p. 244, nora 2.
281

Se passarmos dos princípios civis que criam e dos princípios


civis que cimentam esta Constituição para a Assembleia Nacional,
que deve aparecer e actuar como soberana, vimos um corpo que,
na sua constituição, tem rodo o poder possível e nenhum controlo
externo. Vimos um corpo sem as leis fundamentais, sem máximas
estabelecidas, sem regras de procedimento respeitáveis, o que não
pode manter firme seja que sistema for. A ideia que fazem da sua au-
toridade é sempre retirada do máximo da sua capacidade legislativa
e os seus exemplos para os casos comuns são retirados das excepções
da mais premente necessidade. A futura Assembleia é para ser, em
muitos aspectos, igual à actual mas, pelo estilo das novas eleições
e pela tendência dos novos movimentos, será expurgada do redu-
zido grau de controlo interno que existia numa minoria escolhida
originalmente dentre vários interesses, preservando algum do seu
espírito. Se possível, a futura Assembleia será pior que a presente.
A actual, destruindo e alterando tudo, não deixará para os seus su-
cessores nada de popular a fazer, estes serão levados, pelo exemplo e
por rivalidade, a levar a cabo os empreendimentos mais arrojados e
absurdos. Supor que uma Assembleia destas se reunirá em perfeito
sossego é ridículo.
Os vossos legisladores auto-suficientes, na sua pressa de fazer
tudo de uma vez, esqueceram-se de uma coisa que parece essencial,
e que, eu creio, nunca foi omitida antes, nem em teoria nem na prá-
tica, por ninguém que projetasse criar uma república. Esqueceram-
-se de constituir um senado, ou algo com esta natureza e este carác-
ter. Nunca, até hoje, se ouviu falar de um órgão político composto
de uma assembleia legislativa e activa, e do seu executivo, sem um
conselho deste tipo: sem algo com quem os Estados estrangeiros
pudessem relacionar-se, algo a quem, nos pormenores comuns da
governação, o povo pudesse apelar, algo que poderia dar uma direc-
ção, dar estabilidade e manter algo parecido com a consistência nos
procedimentos do Estado. Os reis mantêm um tal corpo geralmente
como um Conselho. A monarquia pode existir sem ele, mas parece
282

fazer parte da própria essência de um governo republicano. Ocupa


uma espécie de lugar intermédio entre o poder supremo exercido
pelo povo, ou imediatamente delegado por ele, e o mero poder exe-
cutivo. Não há qualquer traço de um organismo deste tipo na vossa
Constituição e, não tendo previsto nada deste tipo, os vossos Sólon
e os vossos Numa 228 demonstraram aqui, como em tudo o resto,
uma incompetência soberana.
Olhemos agora para o que fizeram com vista à formação
de um poder executivo. Para isto escolheram um rei degradado.
O primeiro dos seus oficiais executivos é para ser uma máquina, sem
nenhuma espécie de poder de deliberar em nenhum dos actos res-
peitante às suas funções. No melhor dos casos, será apenas um canal
que conduz à Assembleia Nacional os assuntos que a ela lhe pode
interessar conhecer. Se ele tivesse sido constituído como o único
canal, o seu poder seria importante, embora infinitamente perigoso
para quem escolhesse exercê-lo. Mas a informação sobre o povo e
o testemunho dos factos pode passar para a Assembleia, com igual
autenticidade, por qualquer outro canal. No que diz respeito a dar
uma mesma direcção às medidas pelo testemunho de um canal au-
torizado, neste caso, este trabalho de informação não tem qualquer
valor.
Consideremos o esquema francês de um representante exe-
cutivo, nas suas duas divisões naturais : a civil e a política. Na pri-
meira deve observar-se que, de acordo com a nova Constituição, as
partes mais elevadas da magistratura não estão nas mãos do rei em
nenhum dos seus ramos. O rei de França não é a origem da justiça.
Os juízes - nem os de primeira instância nem os de apelação - são
nomeados por ele. Também não propõe os candidatos, nem tem di-
reito de veto. Nem sequer é o acusador público. Serve apenas como
notário para autenticar a escolha dos juízes feita nos vários distritos.

218
.T. Sólon (c. 630·c.560 a. C.), homem de Esrado e legislador aten iense;
uma Pompilius (7 53-673 a. C.) considerado o segu ndo rei de Roma.
283

Executa as sentenças deles por intermédio dos seus oficiais. ~ando


olhamos para a verdadeira natureza da sua autoridade, aparece-nos
como nada mais que o chefe dos oficiais de justiça, dos sargentos,
dos esbirros, dos carcereiros, e dos carrascos. É impossível colocar
a realeza sob uma perspectiva mais degradante. Para a dignidade
deste infeliz príncipe teria sido mil vezes melhor que ele não tivesse
nada a ver com a administração da justiça, privado como está de
tudo o que é venerável e consolador nesta função: sem o poder
de originar um processo, sem poder suspendê-lo, aplicar atenuan-
tes, ou perdoar. Tudo quanto na justiça é vil e odioso foi posto sobre
os seus ombros. Não foi em vão que a Assembleia se deu a tanto
trabalho para afastar o estigma de certas funções , quando estavam
resolvidos a colocar aquele que antes tinha sido o seu rei numa si-
tuação que está apenas ligeiramente acima do carrasco, e num ofício
que tem aproximadamente o mesmo estatuto. Não está na Nature-
za que, na situação em que o rei dos franceses está agora, ele possa
respeitar-se a si próprio ou possa ser respeitado pelos outros.
Veja-se este novo funcionário do lado da sua capacidade polí-
tica, actuando sob as ordens da Assembleia Nacional. Executar leis
é um ofício real, executar ordens não é função para um rei. Contu-
do, um executivo político da magistratura, embora seja apenas isso,
é um cargo de grande confiança. Um cargo que, de facto, depen-
de muitíssimo de um desempenho fiel e diligente, quer na pessoa
que preside a ele, quer em todos os seus subordinados. Meios para
cumprir este dever têm que ser dados por lei e disposições para tal
devem ser infundidas pelas circunstâncias decorrentes do encargo.
Deve ser rodeado de dignidade, autoridade e consideração e deve
conduzir à glória. O ofício de executar é um ofício que requer esfor-
ço. Não é da impotência que devemos esperar as funções do poder.
~e espécie de pessoa é um rei que manda executar sem qualquer
possibilidade de recompensar - nem através de um posto perma-
nente, nem através de uma recompensa em terras, nem sequer de
uma pensão de cinquenta libras por ano, nem sequer através da
284

lisonja do título mais banal? Em França o rei já não é fonte de honra


do mesmo modo que não é fome de justiça. Todas as recompensas
e todas as distinções estão em outras mãos. Aqueles que servem o
rei não podem ser naturalmente motivados senão pelo medo, por
medo de tudo, excepto do seu senhor. As suas funções de coacção
interna são tão odiosas quanto aquelas que ele exerce no· departa-
mento da justiça. Se alguma ajuda deve ser dada a algum município,
a Assembleia dá-a. Se as tropas devem ser enviadas para garantir a
obediência à Assembleia, o rei deve executar a ordem e, em todas
as ocasiões, ser respingado com o sangue do seu povo. Ele não tem
direito de veto - e contudo o seu nome e autoridade é usado para
reforçar todo o decreto cruel. Pior ainda, ele tem de colaborar na
chacina dos que tentarem libertá-lo da sua prisão, ou mostrarem o
mais leve apego à sua pessoa ou à sua amiga autoridade.
O executivo da magistratura deve ser constituído de tal modo
que aqueles que o compõem devem estar dispostos a amar e a ve-
nerar aqueles a quem estão obrigados a obedecer. Uma negligência
intencional ou, o que é pior, uma literal mas perversa e mal-inten-
cionada obediência, deve ser a ruína dos conselhos mais sábios. Em
vão, tentará a lei prever ou perseguir estas negligências premedi-
tadas ou atenções fraudulentas. Fazê-los actuar com zelo não é da
competência da lei. O s reis, mesmo aqueles que são verdadeiros
reis, podem e devem suportar a liberdade dos súbditos, mesmo dos
que lhe são incómodos. Podem também, sem nada retirar ao seu
próprio mérito, chegar a tolerar a autoridade de tais pessoas se isso
melhorar o seu desempenho. Luís Treze odiava de morte o cardeal
Richelieu, mas o seu apoio àquele ministro contra os seus rivais era
a fonte de toda a glória do seu reinado e o alicerce sólido do seu
próprio trono. Luís Catorze, quando chegou ao trono, não gostava
do cardeal Mazarino 229 mas, atendendo aos seus interesses, preser-

229
N.T. Giulio Raimondo Mazzarino ( 1602-166 1), cardeal iraliano que se ins-
ralou em França, que ficou conhecido por Jules Mazari n, e que sucedeu ao seu memor,
cardeal Richelieu. Foi minisuo de Luís XIII e de Luís XIV.
285

vou-o no poder. ~ando velho detestava Louvois 230 mas, durante


anos, enquanto este serviu fielmente a sua grandeza, Luís Catorze
suportou a sua pessoa. ~ando Jorge Segundo convidou o Senhor
Pitt 231 , que certamente não lhe agradava, para o seu Conselho, não
fez nada que pudesse humilhar um soberano sábio. Mas estes mi-
nistros, que eram escolhidos pelos negócios não pela afeição, actua-
vam em nome e como mandatários dos seus reis, e não como seus
senhores, ostensiva e constitucionalmente admitidos como tal. Jul-
go impossível que qualquer rei, logo que tenha recobrado do medo
inicial, possa cordialmente infundir vivacidade e vigor a medidas
que sabe serem ditadas por aqueles que ele deve estar convencido
que o odeiam no mais alto grau. Será que qualquer ministro, que
servisse um tal rei (ou o que quer que se lhe queira chamar), apenas
com uma aparência decente de respeito, obedeceria cordialmente
às ordens daqueles a quem havia pouco tempo, em seu nome, tinha
enviado para a Bastilha? Será que estes ministros obedecerão às or-
dens daqueles que, quando estavam a exercer justiça despótica sobre
eles, acharam estar a tratá-los com clemência, e com a prisão acha-
ram ter-lhes dado um asilo? Se esperais uma tal obediência, entre
as vossas outras inovações e regenerações, tereis de contar com uma
revolução na Natureza e conceder uma nova constituição à men-
te humana: de outro modo o vosso governo supremo não se pode
harmonizar com o seu sistema executivo. Há casos em que não po-
demos ocupar-nos com conceitos e abstracções. Podeis chamar a
meia dúzia de líderes, que temos razão para temer e odiar, a Nação.
Isso só fará que nós os temamos e odiemos mais. Se se considerasse
justificável e conveniente fazer uma tal revolução e através destes
meios e de tais pessoas, tal como fizestes a vossa, teria sido mais sen-
sato completar o serviço do 5 e 6 de Outubro. O novo funcionário
executivo deveria então a sua situação àqueles que tinham criado

230
N.T. François- Michellle Tellier, M arquis de Louvois ( 164 1-91 ), minisrro de
Luís XIV.
231
N.T. William Pin ( 1708 -78).
286

o seu posto e eram agora seus senhores, e poderia estar ligado por
interesse, à sociedade do crime, e (se nos crimes pudesse haver virtu-
de) por reconhecimento, ao serviço daqueles que o promoveram a
um posto de grande lucro e gratificação sensual - e de mais alguma
coisa: porque mais teriam de ter recebido daqueles que certamente
não humilhariam urna criatura promovida, corno o fizeram a um
adversário dominado.
Um rei nas circunstâncias do actual, se ficar completamente
estupefacto com todas as desgraças que lhe sucedem a ponto de jul-
gar que não é urna necessidade, mas um prémio ou um privilégio
da vida, comer e dormir, sem nenhuma preocupação com a glória,
nunca poderá servir para o cargo. Se ele sentir, corno os homens
habitualmente sentem, deve ter consciência de que num cargo tão
limitado ele não pode obter fama ou reputação. Não terá nenhum
interesse benevolente que o possa levar a agir. Na melhor hipótese,
a sua conduta será passiva e defensiva. Para urna pessoa de condição
inferior um tal cargo pode ser urna honra. Mas ser elevado a essa
condição e cair nela são coisas muito diferentes e suscitam senti-
mentos diversos. Nomeia ele efectivamente os ministros? Têm estes
simpatia por ele? São-lhe impostos? O único trato entre eles e o rei
nominal é a oposição mútua. Em todos os outros países o cargo de
ministros de Estado é da mais elevada dignidade. Em França está
cheio de perigos e não há nele glória alguma. Rivais, todavia, na sua
insignificância eles os terão, enquanto existirem ambições mesqui-
nhas neste mundo, ou o desejo de um mísero salário for um incenti-
vo para urna avareza míope. Estes concorrentes dos ministros estão
habilitados pela vossa Constituição para os atacarem nos pontos
vitais, enquanto eles não têm os meios para repelir as suas investidas
de outro modo a não ser pela condição degradante de acusados e
culpados. Os ministros de Estado em França são as únicas pessoas
deste país que estão impedidos de participar nos Conselhos Na-
cionais. ~e Ministros! ~e Conselhos! ~e Nação!- Mas eles
são responsáveis. ~e serviço miserável o que se há-de obter da res-
287

ponsabilidade. A elevação de espírito que se retira do medo nunca


fará uma nação gloriosa. A responsabilidade previne crimes. Torna
todos os atentados contra a lei perigosos. Mas, para princípio de
um serviço zeloso e activo, apenas os idiotas o escolheriam. ~ereis
vós confiar a condução de uma guerra a um homem que abomina
o seu princípio- e que, em cada passo que dá para a fazer triunfar
confirma o poder daqueles por quem é oprimido?
Negociarão os Estados estrangeiros seriamente com ele que
não tem a prerrogativa da paz ou da guerra - nem sequer com um
único voto, dele ou dos seus ministros, ou de alguém a quem ele
pudesse influenciar? Uma situação desprezível não é a situação para
um príncipe: é melhor que se livrem dele de uma vez.
Sei que se dirá que estes humores na corte e no governo execu-
tivo durarão apenas o que durar esta geração e que o rei foi levado
a declarar que o delfim será educado em conformidade com a sua
situação. Se ele se deve adaptar à sua situação não será educado de
todo. O seu treino deverá ser ainda pior que o de um monarca arbi-
trário. Se estudar - quer ele estude ou não, qualquer bom ou mau
génio lhe vai dizer que os seus antepassados eram reis. Daí em dian-
te o seu objectivo deverá ser afirmar-se e vingar os seus pais. Isso di-
reis vós que não é o seu dever. Talvez não seja, mas é a sua Natureza
e, quando irritais contra vós a Natureza, procedeis insensatamente
se confiais no dever. Neste sistema político fútil, o Estado alimenta
no seu seio, no presente, uma fonte de fraqueza, perplexidade, opo-
sição, ineficiência e decadência e prepara assim o caminho para a
sua ruína final. Em resumo, não vejo nada na vossa força executiva
(não lhe posso chamar autoridade) que tenha sequer a aparência de
vigor, ou que tenha o mais pequeno grau de correspondência justa,
ou simetria, ou relação amistosa com o poder supremo, quer como
existe agora, quer como está planeado para o futuro governo.
288

Estabelecestes, através de uma economia tão pervertida quan-


to a política, duas 232 instituições de governação, uma real e uma
fictícia: ambas mantidas com grande dispêndio de recursos, mas a
fictícia julgo que com mais. Uma máquina como esta última não
vale o óleo que se gasta nas suas rodas. A despesa é exorbitante e
nem o espectáculo nem o uso valem a décima parte do encargo.
- Oh! Mas não estou a fazer jus ao talento dos legisladores. Não
estou a levar em conta, como devia, a necessidade. O seu esquema de
força executiva não foi escolha deles. Este espetáculo deve continuar.
O povo não consentiria separar-se dele. - Certo: eu compreendo-
-vos. Os senhores sabem, apesar das vossas grandes teorias às quais
gostavam de submeter o céu e a terra, de facto, sabem conformar-se
à natureza das coisas e às circunstâncias. Mas já que foram obriga-
dos a ir tão longe para atender às circunstâncias, deveriam ter leva-
do a vossa submissão ainda mais longe e ter feito o que eram obriga-
dos a fazer: tomar um instrumento adequado e útil a esse fim. Isso
estava na vossa mão. Por exemplo entre muitos outros, estava na
vossa mão ter deixado com o vosso rei o direito de paz e de guerra.
- O quê? Deixar com o magistrado executivo a mais perigosa de
todas as prerrogativas? - Não conheço nada mais perigoso, nem
ninguém em quem fosse mais necessário confiar. Não digo que esta
prerrogativa devesse ser confiada ao vosso rei, a menos que ele go-
zasse da vossa confiança em outros encargos auxiliares juntamente
com este, o que não acontece neste momento. Mas se ele os possuís-
se - arriscados como são indubitavelmente - adviriam vantagens
mais do que compensadoras do risco de uma tal Constituição. Não
há outro modo de impedir as várias potências europeias de urdi-
rem intrigas, particular e pessoalmente, com os membros da vos-
sa Assembleia, de se intrometerem em todos os vossos assuntos, e
de fomentarem no seio do vosso país a mais perniciosa de todas as
facções , facções no interesse e sob a direcção de poderes estrangei-

232
N ora do autor: Na realidade três, co ntando com as instituições republicanas
da província.
289

ros. Desse mal maior, graças a Deus, continuamos livres. A vossa


habilidade, se têm alguma, seria bem empregue em descobrir cor-
rectivos e controles desta dependência perigosa. Se os senhores não
gostam daqueles que escolhemos em Inglaterra, os vossos líderes
poderiam ter exercitado a sua habilidade arranjando algo melhor.
Se fosse necessário exemplificar as consequências de um governo
executivo, tal como é o vosso no manejo de assuntos importantes,
remeto-vos para os últimos relatórios do Senhor de Montmorin 233
à Assembleia Nacional, e todos os outros trabalhos sobre as dife-
renças entre a Grã-Bretanha e Espanha. Seria um insulto ao vosso
intelecto indicar-vo-los.
Ouvi que as pessoas que são chamadas ministros manifesta-
ram intenção de resignarem. Estou deveras admirado que não te-
nham resignado ainda. Nem pelo universo inteiro eu aguentaria a
situação na qual eles estiveram nos últimos doze meses. Eles que-
rem o melhor- tenho a certeza- para a Revolução. Seja como for,
não poderiam - estando como estão em lugar eminente, embora
seja uma eminência humilhante - deixar de ser os primeiros e ver
o interesse público e a sentir, cada um no seu sector, os males que
foram produzidos por esta Revolução. Em cada passo que deram,
ou evitaram dar, têm por obrigação de ter sentido a situação degra-
dante do seu país e a sua absoluta incapacidade para o servir. Estão
numa espécie de servidão subordinada em que nunca antes deles
se tinha visto alguém. Sem a confiança do seu soberano, a quem
foram impingidos, ou da Assembleia, que os impingiu a ele, to-
das as funções nobres do seu ofício são executadas por comités da
Assembleia, sem qualquer tipo de consideração pela sua autoridade
pessoal ou oficial. Têm de executar sem terem poder, têm de ser
responsáveis sem saberem avaliar, têm de deliberar, sem qualquer
escolha. Na sua intrincada situação, sob a autoridade de dois so-
beranos, sem terem qualquer influência em nenhum deles, têm de
233
N.T. Armand-Marc, Com te de Mommorin de Saim H érem ( 1745-92),
diplomata e ministro dos egócios Estrangeiros.
290

actuar de tal modo que (de facto, seja qual for a sua intenção) por
vezes traiam um, outras vezes traiam o outro, e se traiam sempre a si
próprios. Esta tem sido a sua situação e esta deverá ser a situação dos
que lhes sucederem. Eu tenho muito respeito pelo Senhor Necker
e desejo-lhe o melhor. Devo-lhe atenções. Pensei, quando os seus
inimigos o afastaram de Versalhes, que o seu exílio era ocasião para
nos congratularmos vivamente. Sed multae urbes et publica vota vi-
cerunf-34. Tem agora assento sobre as ruínas das finanças e da mo-
narquia de França.
Muito mais pode observar-se acerca da constituição estranha
da parte executiva do novo governo, mas a fadiga põe limites à dis-
cussão de assuntos que, em si mesmos, dificilmente têm limites.
Sou capaz de perceber igual tacanhez e falta de talento no pla-
no judicial formado pela Assembleia Nacional. De acordo com o
rumo invariável que têm tomado, os arquitectos da vossa Consti-
tuição começaram com a total abolição dos Parlamentos235 • Estes
órgãos veneráveis, tal como o resto do antigo governo, tinham ne-
cessidade de reforma, ainda que não houvesse qualquer mudança na
monarquia. Requeriam várias alterações mais, que os adaptassem
ao sistema de uma Constituição livre. Mas tinham particularidades
na sua constituição, e bastantes, que mereciam a aprovação das pes-
soas prudentes. Possuíam uma característica sobremaneira excelen-
te: eram independentes. A circunstância mais duvidosa que afecta-
va os seus postos, a de serem vendáveis, contribuiu, contudo, para
234
N.T. "Mas muitas cidades e os votos públicos venceram. " Juv. IO. 284-5.
235
N.T. Não são parlamentos no sentido em que os conhecemos hoje. No séc.
XVIII tratavam-se de tribunais provinciais de justiça com alguma independência em re·
lação ao poder real, mas nomeados pelo rei e detentores de um cargo hereditário. Inicial-
mente, existia apenas o Parlamento de Paris e consistia numa divisão do poder da Corte
Real. Após a Guerra dos Cem Anos, começaram a se r criados outros Parlamentos em
outras províncias que continuavam a ser nomeados pelo rei mas que, sendo hereditários,
detinham auronomia bastante para contrabalançarem o poder real. Para mais informação
sobre o assunto, cf. François Saint-Bonnet Ouillet, 20 10), "Le contrôle a posteriori: les
parlements de l'Ancien Régime et la neucralisation de la loi", Cahiers du Comei! Consti·
tutionnel, n' 28.
291

esta independência de carácter. Detinham o cargo vitaliciamente.


De facto, pode dizer-se que o herdavam. Nomeados pelo monar-
ca, eram considerados quase imunes ao seu poder. Os ataques mais
determinados à sua autoridade apenas demonstraram a sua inde-
pendência radicaF 36 • Compunham órgãos políticos permanentes,
constituídos para resistirem à inovação arbitrária. A partir desta
constituição corporativa e da maior parte da sua estrutura, estavam
calculados para garantirem certeza e estabilidade às leis. Foram um
bom refúgio de segurança para essas leis, em todas as revoluções
de humor e de opinião. Salvaguardaram esse depósito sagrado da
nação durante o reinado de príncipes arbitrários e durante lutas
de facções arbitrárias. Mantiveram vivas a memória e o registo da
Constituição. Foram a melhor segurança para a propriedade priva-
da, da qual se poderia dizer (quando não existia liberdade pessoal)
estar, de facto , tão bem guardada em França como em qualquer ou-
tro país. O que quer que seja supremo num Estado deve ter, tanto
quanto possível, a sua autoridade judicial constituída de tal modo
que não só não dependa dele, mas que de algum modo o contra-
balance. Deve dar segurança à sua justiça contra o seu poder. Deve
fazer com que a sua magistratura seja- como era- algo exterior ao
Estado.
Estes parlamentos forneceram , certamente não o melhor, mas
um considerável correctivo aos excessos e vícios da monarquia.
Um poder judicial assim independente é dez vezes mais necessá-
rio quando a democracia se torna o poder absoluto de uma nação.
Nessa Constituição, electiva e temporária, juízes locais, tais os que
vós concebestes, a exercerem as suas funções dependentes numa so-
ciedade tacanha, devem ser o pior dos tribunais. Será em vão que se
procura neles uma manifestação de justiça para com os estrangeiros,
para com os ricos detestados, para com as minorias dos partidos

236
N . T . Estes Parlamentos manipulavam em exclusivo o direito de registo das
novas leis, que várias vezes protelaram opo ndo-se à vontade do rei . Lu ís XV consentiu que
fosse m abolidos e Lu ís XVI voltou a instaurá-los.
292

derrotados, para com todos aqueles que, na eleição, apoiaram candi-


datos que não foram bem-sucedidos. Será impossível manter os no-
vos tribunais libertos do pior facciosismo. Sabemos experimental-
mente que são vãos e infantis todos os subterfúgios que tentam ocul-
tar as tendências do voto de cada um através de voto secreto. ~an­
do conseguem responder melhor a esse propósito, prod~zem des-
confiança e essa é uma causa ainda mais perniciosa de facciosismo.
Se os parlamentos tivessem sido preservados, em vez de terem
sido dissolvidos com uma mudança tão desastrosa para a Nação, po-
deriam ter servido, nesta nova sociedade política, talvez não exac-
tamente (não pretendo um paralelismo exacto) mas aproximada-
mente, os mesmos propósitos que a corte e o senado de Areópagos
serviram em Atenas, isto é, serem um dos correctivos e contrapesos
aos males de uma democracia injusta e iluminada. Todos sabemos
que este tribunal era o grande sustentáculo do Estado, todos sabe-
mos com que cuidado foi mantido e com que religioso respeito foi
consagrado. Os Parlamentos não estavam completamente livres de
facciosismo, admito, mas este mal era exterior e acidental e não pro-
priamente o vício da sua constituição, como forçosamente será na
vossa nova criação de um poder judicial eleito de seis em seis anos.
Alguns ingleses elogiam a abolição dos velhos tribunais na suposi-
ção de que estes decidiam tudo com base no suborno e na corrup-
ção. Mas estes tribunais aguentaram o teste do escrutínio monár-
quico e republicano. O tribunal estava pronto a provar a corrupção
destes órgãos quando eles foram dissolvidos em 1771. Aqueles que
de novo os dissolveram teriam feito o mesmo se tivessem podido,
mas ambos os inquéritos falharam e eu concluo que deve ter sido
bastante rara entre eles a corrupção pecuniária significativa.
Teria sido prudente preservar, juntamente com os Parlamen-
tos, o seu antigo poder de registar, ou pelo menos discutir, todos os
decretos da Assembleia Nacional, como fizeram com os que foram
aprovados nos tempos da monarquia. Seria um meio de enquadrar
293

os decretos esporádicos da democracia em alguns princípios gerais


da jurisprudência. O vício das antigas democracias, e uma causa da
sua ruína, era o de que governavam, como os senhores fazem, por
decretos esporádicos psephismata. Esta prática depressa quebran-
tou o teor e a consistência das leis, diminuiu o respeito do povo por
elas, e acabou por destruí-las totalmente.
O s senhores investiram do poder de discussão que, no tempo
da monarquia, pertencia ao Parlamento de Paris, o vosso oficial exe-
cutivo principal a quem, contra o comum bom senso, continuais a
chamar rei. É o cúmulo do absurdo. Os senhores nunca deveriam
sofrer admoestações daquele a quem cabe executar. Isto é não en-
tender nem o conselho, nem a execução, nem a autoridade, nem
a obediência. A pessoa a quem chamais rei ou não devia ter este
poder ou devia ter mais do que este.
O vosso presente acordo é estritamente judicial. Em vez de
imitarem a vossa monarquia e sentarem os vossos juízes numa ban-
cada independente, o vosso objectivo é reduzi-los à mais cega obe-
diência. Como mudaram tudo, inventaram novos princípios para
a ordem. Primeiro nomeiam juízes que, suponho, devem agir de
acordo com a lei, e depois fazem-nos saber que, numa ou noutra
ocasião, tencionam dar-lhes alguns decretos pelos quais eles se de-
vem guiar. ~aisquer estudos que tenham feito (se é que fizeram
alguns) ser-lhes-ão completamente inúteis. Mas, em substituição
destes estudos, eles devem jurar obedecer a todas as regras, ordens
e instruções que, de tempos em tempos, hão-de receber da Assem-
bleia Nacional. Se se submeterem a elas, não haverá lugar para a
lei. Tornar-se-ão os instrumentos acabados e perigosos nas mãos do
poder que governa, o qual, no meio de uma causa, ou na sua pers-
pectiva, pode mudar completamente as regras da decisão. Se acon-
tecer que essas ordens da Assembleia Nacional sejam contrárias à
vontade do povo que localmente escolheu estes juízes, deve ocorrer
uma tal confusão que dá medo pensar nela. Porque os juízes devem
294

o seu lugar às autoridades locais, e as ordens a que juraram obede-


cer vêm daqueles que não tiveram nada a ver com a sua nomeação.
Entretanto, têm o exemplo do tribunal de Châtelef- 37 para os en-
corajar e guiar no exercício das suas funções. Este tribunal é para
julgar criminosos que lhe são enviados pela Assembleia Nacional
ou trazidos a tribunal por via da denúncia. Reúnem-se com guarda
para salvaguardarem as suas próprias vidas. Não sabem a lei pela
qual julgam, nem em nome de que autoridade actuam, nem qual o
estatuto que têm. Pensa-se que eles são por vezes obrigados a conde-
nar com o risco das próprias vidas. Talvez isto não seja verdade, nem
possa ser confirmado mas, quando absolvem, sabemos que viram as
pessoas que consideraram inocentes enforcadas à porta do tribunal,
com a total impunidade dos autores.
A Assembleia, de facto, promete que há-de constituir um cor-
po de leis, que será curto, simples, claro e assim por diante. Isto é,
com as suas leis breves, deixarão muito à descrição do juiz, enquan-
to destruíram a autoridade de todo o saber que podia constituir
critério judicial (uma coisa, no mínimo, perigosa), eis o que pode
denominar-se um bom critério.

É curioso observar, que os corpos administrativos foram cui-


dadosamente isentados da jurisdição destes novos tribunais. ~er
dizer, estas pessoas estão libertas do poder das leis quando deviam
estar inteiramente submetidas a ele. Aqueles que têm à sua respon-
sabilidade os dinheiros públicos deveriam ser, dentre todos, os mais
rigorosamente submetidos ao dever. Poderia pensar-se que deveria
estar entre as vossas preocupações prioritárias, se vós não tivésseis
querido fazer destes corpos administrativos verdadeiros Estados so-
beranos e independentes, formar um tribunal terrível, como os vos-
sos antigos Parlamentos, ou como a nossa Tribuna Real, onde todos
os funcionários da corporação pudessem obter protecção no exercí-
cio legal das suas funções e enfrentassem punição se ultrapassassem

zr N .T. O principal tribu nal de Paris.


295

os seus deveres legítimos. Mas o motivo da isenção é simples. Estes


corpos administrativos são os grandes instrumentos dos presentes
líderes na sua transição da democracia para a oligarquia. Devem por
isso ser postos acima da lei. Dir-se-á que os tribunais legais que vós
fizestes são inapropriados para os reprimir. E são, sem dúvida. São
inapropriados para qualquer fim racional. Será dito também que
os corpos administrativos prestarão contas à Assembleia Nacional.
Temo que isso seja dito sem grande consideração pela natureza des-
sa Assembleia ou dessas corporações. Contudo, estar à mercê dessa
Assembleia não é estar sujeito à lei, quer no que diz respeito à pro-
tecção quer ao castigo.

Esta instituição judicial falta-lhe qualquer coisa para estar


acabada. Falta-lhe ser galardoada por um novo tribunal. É para ser
uma grande magistratura do Estado e é para julgar crimes come-
tidos contra a Nação, quer dizer, contra o poder da Assembleia.
Parece que têm qualquer coisa em vista da mesma natureza do su-
premo tribunal de justiça instituído em Inglaterra durante o tempo
da grande usurpação 238 • Como ainda não terminaram esta parte do
plano é impossível formar um juízo recto sobre ele. Contudo, se
não tiverem mais cuidado em formá-lo, num espírito totalmente
diferente daquele que os guiou em relação ao seu procedimento no
que se refere aos crimes de Estado, este tribunal, subserviente à sua
inquisição, o Comité de Investigação, extinguirá as últimas centelhas
de liberdade em França e estabelecerá a tirania mais horrível e mais
arbitrária que alguma vez foi vista em qualquer nação. Se querem
dar a este tribunal uma aparência de liberdade e de justiça, preci-
sam de não lhe lembrar, nem lhe enviar, as causas dos seus próprios
membros, como lhes agrade. Precisam também de remover a sede
deste tribunal da república de Paris 239 •

238
N.T. Burke poderá estar a referir-se ao tribunal instituído sob o domínio de
Cro mwell.
239
Nora do autor: Para ulteriores esclarecimentos acerca dos assuntos de rodas
estas magistraturas e do Comité de Investigação, ler o trabalho do Senhor de Calonne.
296

Terá sido empregue mais sabedoria na constituição do vosso


exército do que a que descobrimos nos projectos dos vossos tribu-
nais? Uma organização competente deste sector é a mais difícil e
requer a máxima capacidade e atenção, não apenas como uma gran-
de empresa em si mesma, mas também porque é o terceiro princípio
que cimenta o novo corpo de repúblicas a que chamais a nação fran-
cesa. De facto, não é fácil de adivinhar o que é que esse exército se
pode acabar por tornar. O s senhores votaram por um grande exér-
cito, bem equipado, no mínimo à altura dos vossos meios fictícios
de pagamento. Mas qual é o seu princípio de disciplina? Ou a quem
deve ele obedecer? Pegaram o lobo pelas orelhas e desejo que os
senhores gozem bem da feliz posição em que escolheram colocar-se
e na qual estão bem posicionados para uma deliberação livre relati-
vamente a esse exército, ou a qualquer outra coisa.
O ministro e Secretário de Estado do ministério da guerra é o
Senhor de La Tour du Pin. Este cavalheiro, como os seus colegas na
administração, é um defensor muito zeloso da Revolução e um aca-
lorado admirador da nova Constituição, que surtiu desse evento.
O seu depoimento sobre a militarização da França é importante,
não apenas por causa da sua autoridade oficial e pessoal, mas por-
que expõe muito claramente a condição efectiva do exército francês
e porque lança luz sobre os princípios segundo os quais a Assem-
bleia actua na administração deste assunto crítico. Pode habilitar-
-nos a formarmos um juízo sobre até onde nos pode convir imitar-
mos neste país a política marcial da França.
O Senhor de La Tour du Pin 240 , no passado 4 de Junho, veio
prestar contas da situação do seu departamento, tal como existe,
sob os auspícios da Assembleia Nacional. Nenhum homem o co-
nhece tão bem, nenhum homem o exprime melhor. Dirigindo-se à
Assembleia Nacional, diz:

240
N.T. Jean-Frédéric de La Tour du Pin Gouvernet (1727- 1794), ministro da
Guerra emre Agosto de 1789 e 1ovembro de 1790.
297

"Sua Majestade mandou-me hoje explicar-vos os múltiplos


desacatos de que recebe diariamente informações preocupantes.
O exército (!e corps militaire) ameaça cair na anarquia mais turbu-
lenta. Regimentos inteiros atreveram-se a violar ao mesmo tempo
o respeito devido às leis, ao rei, e à ordem estabelecida pelos seus
decretos, e aos juramentos que fizeram com a maior solenidade. Im-
pelido pelo dever a dar-vos conta destes excessos, o meu coração
sangra, quando considero quem são os que os praticaram. Aque-
les contra quem não está na minha mão impedir as mais ofensivas
queixas são parte desses soldados que até hoje se têm coberto de
honra e lealdade, e com quem vivi como camarada e amigo durante
cinquenta anos. ~e espírito incompreensível de delírio e ilusão os
desencaminhou a todos ao mesmo tempo? Enquanto os senhores
são infatigáveis a estabelecer a uniformidade no império e a mol-
dar o todo num corpo coerente e consistente, enquanto os fran-
ceses aprendem de vós o respeito que as leis devem aos direitos do
homem e, ao mesmo tempo, o respeito que os cidadãos devem às
leis, a administração do exército apenas dá mostras de distúrbios
e confusão. Vejo em mais do que uma unidade os elos da discipli-
na frouxos ou quebrados; as pretensões mais inauditas confessadas
francamente e sem nenhum disfarce; as ordens sem força; os chefes
sem autoridade; o cofre militar e os estandartes roubados; a autori-
dade do próprio rei [risum teneatis )2 4 1 arrogantemente desafiada; os
oficiais desprezados, degradados, ameaçados, expulsos, alguns deles ·
feitos prisioneiros pelas suas unidades, arrastando a vida insegura,
no meio do seu desgosto e humilhação.
Para cúmulo de todos estes horrores, aos comandantes de pos-
to foi-lhes cortada a garganta sob os olhos - e quase nos braços -
dos seus próprios soldados.
"Estes males são grandes, mas não são as piores consequências
que podem ser produzidas por estas insurreições militares. Mais

241
N.T. "Contereis o riso". H o r. Ars. 5.
298

cedo ou mais tarde podem ameaçar a própria nação. A natureza das


coisas requer que o exército não actue nunca senão como um ins-
trumento. No momento em que se erguer como órgão deliberativo,
agirá de acordo com as suas próprias resoluções, o governo, seja ele
qual for, degenerará imediatamente numa democracia militar, uma
espécie de monstro político que acabou sempre por devora·r aqueles
que o produziram.
"No fim de tudo isto, quem não se alarmará com as assembleias
clandestinas e os comités turbulentos formados em alguns regimen-
tos pelos soldados rasos e oficiais subalternos, sem o conhecimento,
ou mesmo à revelia da autoridade dos seus superiores? - embora
a presença e o conluio dos superiores não pudesse dar autoridade a
estas monstruosas assembleias democráticas (comices)."
Não é necessário acrescentar mais nada a este retrato perfeito,
perfeito tanto quanto o admite a tela, mas que, a meu ver, não expõe
completamente a natureza e a complexidade dos desacatos desta de-
mocracia militar que, como o ministro da guerra refere com verda-
de e prudência, onde quer que exista, deverá ser a verdadeira consti-
tuição do Estado, independentemente da denominação formal pela
qual ela possa fazer-se passar. Pois embora ele informe a Assembleia
que a maior parte do exército não abandonou a obediência mas per-
manece ligada ao seu dever, os que reportam ter visto unidades cuja
conduta é melhor, mais depressa referem a ausência de motim que
a existência de disciplina.
Não posso deixar de fazer aqui uma pausa para reflectir so-
bre as expressões de surpresa que este ministro deixou cair relativa-
mente aos excessos que ele relata. Para ele, o afastamento das tropas
relativamente aos seus princípios primitivos de lealdade e honra
parecem-lhe bastante inconcebíveis. Seguramente, aqueles a quem
ele se dirige conhecem as causas desse afastamento bastante bem.
Sabem as doutrinas que pregaram, os decretos que emitiram, as prá-
ticas que instituíram. Os soldados lembram-se do 6 de Outubro.
299

Recordam-se dos guardas franceses . Não se esqueceram da tomada


dos castelos do rei em Paris e Marseille, e que os governadores de
ambos os castelos foram mortos impunemente, esse é um facto que
não lhes saiu da mente. Não abandonaram os princípios de igualda-
de entre os homens, estabelecidos tão ostensiva e laboriosamente.
Não podem fechar os olhos à degradação de toda a nobreza fran-
cesa e à supressão da própria ideia do gentleman . A completa abo-
lição dos títulos e distinções, neles não foi em vão. Mas o Senhor
du Pin está espantado com a sua deslealdade, já que os doutores da
Assembleia lhes ensinaram ao mesmo tempo o respeito que se deve
às leis. É fácil avaliar qual dos dois tipos de lição os homens de ar-
mas na mão estão mais inclinados a aprender. ~anto à autoridade
do rei, podemos citar o próprio ministro (se qualquer argumento a
esse propósito não fosse bastante espúrio), não é mais considerada
pelas tropas do que a de qualquer outra pessoa, "o rei" diz ele, "re-
petiu e tornou a repetir as suas ordens para pôr fim a estes exces-
sos, mas numa crise tão grande, a vossa (da Assembleia) cooperação
tornou-se indispensavelmente necessária para impedir os males que
ameaçam o Estado. l/Os unis à força do poder legislativo a força da
opinião, ainda mais importante". De certo que o exército não pode
ter opinião sobre o poder ou sobre a autoridade do rei. Talvez o
soldado por esta altura já saiba que a própria Assembleia não goza
de muito mais liberdade que a pessoa do rei.
Resta ver o que foi proposto nesta exigência, uma das maiores
que pode acontecer num Estado. O ministro exige da Assembleia
que se arme de todos os seus terrores e que invoque toda a sua ma-
jestade. ~er que os princípios graves e severos anunciados por ela
possam dar vigor às declarações régias. Depois disto deveríamos es-
perar por tribunais, civis e marciais, o desmantelamento de algumas
unidades, que se dizimassem outras, e todos os meios terríveis que
a necessidade emprega nestes casos para impedir a marcha do pior
de todos os males, especificamente, deveríamos esperar que fosse
feito um inquérito sério ao assassínio de comandantes em frente aos
300

seus soldados. Sobre isto, ou algo de semelhante, nem uma palavra.


Depois de terem sido informados que a soldadesca desobedeceu aos
decretos da Assembleia promulgados pelo rei, a Assembleia emitiu
novos decretos, e eles autorizaram o rei a fazer novas declarações.
Depois do Secretário de Estado da guerra ter afirmado que os regi-
mentos não davam atenção a juramentos "prestados com à mais im-
ponente solenidade" 242, propõem o quê? Mais juramentos. Renovam
decretos e juramentos à medida que experimentam a sua ineficácia,
e multiplicam os juramentos à medida que enfraquecem na mente
dos homens as sanções da religião. Espero que os manuais concisos
de excelentes sermões de Voltaire, D'Alembert, Diderot e Helvé-
tius, sobre a Imortalidade da Alma, sobre uma Especial Providência
Protectora, e sobre o Futuro Estado de Recompensas e Castigos,
estejam a ser enviados para os soldados juntamente com os seus ju-
ramentos civis. Disto eu tenho a certeza. Tanto quanto sei que uma
certa quantidade de leituras constitui uma parte considerável dos
seus exercícios militares e que eles estão tão munidos de panfletos
quanto de cartuchos.
Para impedir os danos causados por: conspirações, conselhos
irregulares, comités de revoltosos e monstruosas assembleias demo-
cráticas (comitia, comices ), comícios dos soldados, e toda a desordem
que tem origem na preguiça, luxúria, dissipação e insubordinação,
acredito que tenham sido usados os mais extraordinários meios que
já ocorreram a alguém, mesmo dentre todas as invenções desta era
prolífica. Nada menos do que isto: o Rei promulgou sob a forma de
cartas circulares enviadas a todos os regimentos, com a sua autori-
dade directa e encorajamento, a indicação de que as várias unidades
se deveriam juntar com os clubes e confederações nos vários mu-
nicípios e que se associassem a eles nas suas festas e divertimentos!
Parece que esta disciplina folgazã tem por objectivo abrandar a sua
mente feroz e reconciliá-los com os seus companheiros de bebida

242
N .T . Em francês no o riginal.
301

de outras divisões e também fazer confluir pequenas conspirações


em associações mais gerais* 243 . ~e este remédio agrade aos solda-
dos, tal como são descritos pelo Senhor La Tour du Pin, eu estou
pronto a acreditar, e que, embora revoltosos em outras circunstân-
cias, eles se submeterão ao cumprimento do dever prescrito por estes
éditos reais. Mas devo questionar se todos estes juramentos, estes
clubismos e estes festins, os disporão - mais do que estão agora - à
obediência aos seus oficiais, ou os ensinarão melhor a submeterem-
-se às regras austeras da disciplina militar. Isto fará deles cidadãos
admiráveis, segundo o modelo francês, mas não fará deles grandes
soldados, segundo qualquer outro modelo. Pode bem surgir a dúvi-
da, se as conversações à volta destas mesas excelentes os prepararão
grande coisa para o papel de meros instrumentos, que, tal como este
oficial veterano justamente observa, a natureza das coisas sempre
requer de um exército.
Com respeito à probabilidade da melhoria na disciplina pela
livre conversação dos soldados com as sociedades recreativas dos
municípios, que é deste modo encorajada e aprovada pela auto-
ridade régia, pode avaliar-se pelo estado em que estão as próprias
municipalidades, que nos é fornecido pelo ministro da guerra neste
próprio discurso. Ele tem grandes esperanças acerca do sucesso dos
seus esforços para restaurar a ordem no momento, dada a boa atitu-
de de alguns regimentos, mas vê o futuro algo nublado. ~anto a
acautelar o regresso da confusão, "quanto a isso a administração-
diz ele - não pode ser responsável perante vós, enquanto ela vir os
municípios arrogando-se eles próprios autoridade sobre as tropas,
coisa que as suas instituições reservam apenas para o monarca. Vós

2' 3 •Nota do Autor: "Como Sua Majestade reconheceu nelas, não um sistema de

associações particulares, mas um encont-ro de vontades de todos os franceses para a liber·


dade e prosperidade comuns, assim, para manter a orde m pública, pensou que era apro·
priado que cada regimento tomasse parte nas festas cívicas para multiplicar as relações e
fortalecer os laços de união entre os cidadãos e as tropas." [em francês no original)- Para
o caso de não me acreditarem , insiro aqui o texto que autoriza as tropas a festejarem com
as confederações populares.
302

fixastes os limites da autoridade militar e da autoridade municipal.


Vós limitastes a acção permitida à última sobre a primeira, ao di-
reito de requisição, mas nunca, nem na letra nem no espírito dos
vossos decretos, se autorizou a plebe destes municípios a demitir os
oficiais, a julgá-los, a dar ordens aos soldados, a afastá-los dos postos
que estavam entregues à sua guarda, a pará-los nas suas incursões
ordenadas pelo Rei, numa palavra, a escravizarem as tropas ao ca-
pricho de cada uma das cidades ou mesmo cidades comerciais pelos
quais eles devem passar".
Este é o carácter e a disposição da sociedade municipal, que
deve recuperar a soldadesca, trazê-los de volra aos verdadeiros prin-
cípios de hierarquia militar, e torná-los máquinas nas mãos do po-
der supremo da nação! Tais são os males das tropas francesas! E ral
é a sua cura! O que acontece no exército, acontece na marinha! Os
municípios passam por cima das ordens da Assembleia, e os mari-
nheiros, por seu turno, passam por cima das ordens dos municípios.
Lamento, de rodo o coração, a situação de um respeitável servidor
público, como este ministro da guerra, obrigado a brindar à Assem-
bleia nas raças dos seus municípios, e a entrar, com os seus cabelos
brancos, nas fantasias excêntricas destes políticos juvenis. Estes es-
quemas não são propostas que possam vir de um homem com cin-
quenta anos passados e sofridos no meio do mundo. Parecem mais
aqueles que se podem esperar dos artífices da política que tratam de
encurtar os caminhos para os lugares que hão-de ocupar no Estado
e que têm uma cerra segurança interior, fanática e iluminada, acerca
de rodos os assuntos, por cujo crédito, um dos seus doutores, achou
apropriado, com grande aplauso e muito sucesso, avisar a Assem-
bleia para não atender a homens de idade, ou àquelas pessoas que
se fazem valer da sua experiência. Suponho que rodos os ministros
de Estado para se qualificarem devem fazer o reste de totalmente
abjurarem os erros e heresias da experiência e da observação. Todos
os homens têm os seus próprios gostos, mas eu penso que, se não
posso atingir a sabedoria, poderei ao menos preservar algo da firme
303

e peremptória dignidade da idade. O negócio destes cavalheiros é a


regeneração: mas a nenhum preço submeterei as minhas fibras rí-
gidas a serem regeneradas por eles, nem começarei agora, que estou
no meu climatério, a gritar com o seu novo sotaque, ou a titubear
na minha segunda infância, os sons elementares da sua metafísica
bárbara •244 • Si isti mihi largiantur ut repuerascam, et in eorum cunis
vagiam, valde recusem 24 ;!

A imbecilidade de qualquer das partes do sistema pedante e


ingénuo, a que chamam Constituição, não pode ser revelada sem
se descobrir a enorme insuficiência e desconcerto de todas as ou-
tras partes que com ela contactam, ou que mantêm a mais remota
relação com ela. Não se pode propor um remédio para a incom-
petência da coroa, sem tornar patente a debilidade da Assembleia.
Não se pode deliberar sobre a confusão que vai no exército do Esta-
do, sem desmascarar as piores desordens dos municípios armados.
A anarquia militar, torna patente a civil, e a civil denuncia a anar-
quia militar. Gostaria que todos lessem cuidadosamente o eloquen-
te discurso (que o é) do Senhor de la Tour du Pin. Ele atribui a
salvação dos municípios ao bom comportamento de algumas das
tropas. Estas tropas é suposto que preservem a parte ordenada dos
municípios, a qual admite ser a mais fraca, da pilhagem que lhe fará
a parte desordenada, que é a mais forte. Mas os municípios assu-
mem ser soberanos e hão de comandar estas tropas que são necessá-
rias à sua protecção. De facto precisam ou de as comandar ou de as
cortejar. Os municípios, pela necessidade imposta pela sua situação,
e pelos poderes republicanos que obtiveram, têm de, em relação ao
exército, ou serem os senhores ou os servos dos confederados, ou
uns e outros alternadamente, ou devem fazer uma mistura de ambas
as condições, de acordo com as circunstâncias. De que governo dis-

244
• No ra do Auror: Este minisrro da Gue rra entretanto já deixou a escola e de-

m itiu-se do seu ofíci o.


HS N.T. "E se esses me concederem que eu volre à menini ce e cho re no seu berço,

recusarei vivamente." C ic. Sen. 83. [Burke altera substancial mente o texto.]
304

põem ali para coagir o exército senão o município, ou para coagir


o município senão o exército? Para preservar a concórdia quando
a autoridade está extinta, com o risco de todas as consequências,
a Assembleia tenta curar os desequilíbrios com os próprios dese-
quilíbrios, e esperam preservar-se a si próprios de uma democracia
puramente militar dando ao exército uma vantagem perversa na
administração municipal.
Se os soldados um dia vierem a misturar-se por algum tempo
aos clubes municipais, associações secretas e confederações, sentir-
-se-ão livremente atraídos para a camada mais baixa e mais deses-
perada. Estarão com eles nos hábitos, nas afeições e simpatias. As
conspirações militares, que são para ser remediadas pelas confe-
derações cívicas, os municípios rebeldes, que são para se tornarem
obedientes facultando-lhes meios de seduzir os próprios exérci-
tos do Estado, que existem para os manter na ordem, todas estas
quimeras de uma política monstruosa e arrogante devem agravar
a confusão que está na sua origem. Tem de haver sangue. A falta
de bom senso, manifestada na construção de todos os seus tipos de
forças e em todos os seus tipos de autoridades civis e judiciais, fá-
-lo-á correr. Os desacatos poderão ser controlados num determina-
do momento e local, mas rebentarão noutros, porque o mal é radical
e intrínseco. Todos estes procedimentos, que misturam soldados re-
beldes com populares sediciosos, enfraquecem ainda mais e mais as
ligações militares dos soldados aos seus oficiais, e acrescentam auda-
cidade militar e rebelde a camponeses e artesãos tumultuosos. Para
obter um verdadeiro exército os soldados precisam olhar antes de
tudo para o oficial - ser este o primeiro e o último na sua atenção,
observação e estima. Oficiais, ao que parece, são para serem aqueles
cuja principal qualificação deve ser o carácter e a paciência. Devem
conduzir as suas tropas por artes eleitorais. Precisam comportar-
-se como candidatos não como comandantes. Mas, como por estes
meios o poder pode estar ocasionalmente nas suas mãos, a autori-
dade através da qual são nomeados torna-se de grande importância.
305

O que os senhores, em última instância, podem fazer, não pa-


rece, nem é, de grande importância, enquanto se mantiver a rela-
ção estranha e contraditória entre o vosso exército e todas as partes
da vossa república, bem como a intrincada relação que estas partes
mantêm entre si e com o rodo. Parece que os senhores concederam,
em primeira instância, a nomeação interina dos oficiais ao rei, com
a reserva da aprovação pela Assembleia Nacional. Os homens que
têm um interesse a perseguir são muito sagazes a descobrir onde re-
side verdadeiramente o poder. Cedo vão perceber que aqueles que
podem vetar indefinidamente, de facto, nomeiam. Assim, os ofi-
ciais precisam estar atentos às intrigas no seio da Assembleia como
o único caminho certo para a promoção. Contudo, segundo a vossa
nova Constituição, mantém-se o dever de a solicitar inicialmente
na corte.

Esta dupla negociação para as patentes militares parece-me ser


um esquema tão bem adaptado que parece ter sido estudado com
o fim de promover o facciosismo dentro da própria Assembleia
em relação a este vasto nepotismo militar e, em seguida, envene-
nar o corpo dos oficiais com facções de uma natureza ainda mais
perigosa para a segurança do governo, onde quer que este se situe
e, finalmente, destrutivo da eficácia do próprio exército. Aqueles
oficiais que percam as promoções que a coroa tencionava dar-lhes
tornar-se-ão forçosamente de uma facção oposta àquela facção da
Assembleia que rejeitou as suas pretensões, o que alimenta no seio
do exército descontentamento em relação às autoridades que gover-
nam. Aqueles oficiais que, por outro lado, fizerem valer as suas po-
sições através do interesse da Assembleia, sentem que, no máximo,
são a segunda escolha da coroa, embora sejam a primeira escolha da
Assembleia e, forçosamente, desconsiderarão uma autoridade que
não favorece, nem pode retardar, a sua promoção. Se, para evitar
estes males, os senhores não tiverem outra regra para o comando ou
a promoção senão a antiguidade, terão um exército de formalidades
e, ao mesmo tempo, ele rornar-se-á mais independente e mais uma
306

república militar. A máquina não serão eles, mas o rei. Um rei não é
para ser deposto a meio termo. Se ele não for tudo no comando de
um exército, então não é nada. ~e efeito terá um poder colocado
nominalmente à cabeça de um exército e que para ele não é objec-
to nem de gratidão nem de medo? Uma tal entidade sem qualquer
importância não serve para a administração do objectei mais deli-
cado de todos: o comando supremo de militares, que precisam ser
controlados (e as suas inclinações conduzem-nos para o que as suas
necessidades requerem) por uma autoridade pessoal, real, vigorosa,
efectiva e decidida. A própria autoridade da Assembleia é afectada,
por passar através de um canal tão debilitante como este que eles
escolheram. O exército não terá, por muito tempo, em conta uma
Assembleia que actua através de um órgão que é uma aparência falsa
e um fardo evidente. Não prestará verdadeira obediência a um pri-
sioneiro. O exército ou desprezará o espectáculo ou lamentará um
rei cativo. Esta relação do vosso exército com a própria coroa, se não
me engano, irá tornar-se um sério dilema na vossa política.
É, de resto, um assunto a ponderar se uma Assembleia como a
vossa, mesmo supondo que ela estivesse na posse de um outro tipo
de órgão através do qual devessem passar as suas ordens, está apta a
promover a obediência e a disciplina de um exército. É conhecido
que, até agora, os exércitos prestaram uma obediência muito pre-
cária e incerta a qualquer senado ou autoridade popular, e ainda
menos obedecerão a uma Assembleia que durará apenas dois anos.
É preciso que os oficiais percam totalmente a disposição caracte-
rística dos militares para verem com perfeita submissão e a devida
admiração o domínio dos litigantes, especialmente quando desco-
brirem que têm uma nova corte a quem agradar na sucessão sem fim
destes litigantes, cuja política militar e o génio de quem comanda
(se escolherem ter quem comande) deve ser tão incerto quanto a
sua duração é transitória. Na debilidade de um certo tipo de autori-
dade, e na total flutuação de qualquer autoridade, os oficiais de um
exército permanecerão por algum tempo conflituosos e facciosos,
307

até que algum general popular, que sabe da arte de conciliar a solda-
desca, e que possui um verdadeiro espírito de comando, atraia sobre
si os olhos de todos os homens. Os exércitos obedecer-lhe-ão a tí-
tulo pessoal. Não há outra maneira de assegurar a obediência neste
estado de coisas. Mas, no momento em que este evento acontecer, a
pessoa que realmente comandar o exército será o vosso senhor, será
o senhor (o que é pouco) do vosso rei, o senhor da vossa Assem-
bleia, o senhor de toda a vossa república 246 •
Como é que a Assembleia chegou ao seu poder actual sobre o
exército? Principalmente, sem dúvida, pela perversão moral da re-
lação dos soldados com os seus oficiais. Começaram pelo acto mais
terrível. Tocaram no ponto nevrálgico que mantém as partículas
que compõem os exércitos em repouso. Destruíram o princípio da
obediência no grande elo essencial e crítico que liga o oficial ao sol-
dado, exactamente onde a cadeia da subordinação militar começa,
e do qual a totalidade daquele sistema depende.
Dizem ao soldado que é um cidadão e que tem os direitos do
homem e do cidadão. O direito de um homem, dizem-lhe, é gover-
nar-se a si próprio, e ser dirigido apenas por aqueles em quem ele
delegar o seu autogoverno. É muito natural que pense que deve ter
escolha, principalmente onde está sujeito a um maior grau de obe-
diência. Fará então, com toda a probabilidade, sistematicamente,
o que agora só faz ocasionalmente, isto é, exercerá pelo menos o
direito de veto na escolha dos seus oficiais. Presentemente, os ofi-
ciais são conhecidos, quando muito, apenas por serem permissivos
e pelo seu bom comportamento. Com efeito, existem vários exem-
plos onde oficiais foram demitidos pelos seus regimentos. Aqui está
um segundo veto à escolha do rei: um veto tão eficaz pelo menos
quanto o outro da Assembleia.
246
N .T. Um dos primeiros militares a adquirir destacada popularidade foi Marie·
·Joseph Paul Yves Roch Gilbert du Motier de Lafayette, Marquis de Lafayette ( 1757-
· 1834); outro foi Charles-François du Périer Dumouriez (1739-1823), mas quem viria
a desempenhar o papel preconizado por Burke seria Napoléon Bonaparte (1769-1821 ).
308

Os soldados já sabem que foi uma questão que não foi mal
recebida pela Assembleia Nacional, se eles não deverão ter o direito
à escolha directa dos seus oficiais, ou de uma certa proporção den-
tre eles. ~ando estas matérias estão em discussão, não é nenhuma
suposição extravagante pensar que eles se inclinarão para a opinião
mais favorável às suas pretensões. Os soldados não suportarão se-
rem considerados o exército de um rei prisioneiro, enquanto ou-
tro exército do mesmo país, com quem também devem festejar e
confraternizar, deve ser considerado como o exército livre de uma
Constituição livre. Deitarão os olhos para o outro exército mais
permanente: isto é, o exército municipal. Sabem bem que aguela
corporação, efectivamente, elege os seus oficiais. Podem não conse-
guir discernir os fundamentos da diferença, porque não hão-de eles
eleger um Marquês de La Fayette (ou qual é o seu novo nome?) para
eles próprios? Se a eleição de um comandante-em-chefe fizer par-
te dos direitos do homem, porque não dos seus próprios direitos?
Vêem juízes de paz eleitos, juízes eleitos, curas eleitos, bispos elei-
tos, vereadores eleitos e comandantes do exército de Paris eleitos.
Porque é que apenas eles haveriam de ser excluídos? São as tropas
valentes da França os únicos homens dessa nação que não são bons
juízes do mérito militar e das qualificações necessárias a um coman-
dante-em-chefe? São pagos pelo Estado e portanto perderam os
direitos do homem? Eles próprios são uma parte da nação e contri-
buem para esse pagamento. E não é o Rei, e não é a Assembleia Na-
cional, e não são todos os que elegem a Assembleia Nacional, pagos
também? Em vez de se verem todos estes como tendo abdicado dos
seus direitos por receberem um salário, entende-se nestes casos que
um salário lhes foi dado para o exercício destes direitos. Todas as
vossas resoluções, todas as vossas minutas, todos os vossos debates,
todos os trabalhos dos vossos doutores em religião e em política,
foram diligentemente colocados nas suas mãos, e agora os senhores
esperam que, destas vossas doutrinas e exemplos, eles apliquem ao
seu caso apenas tanto quanto vos agrade.
309

Num governo como o vosso, tudo depende do exército, pois


vós destruístes zelosamente rodas as convicções e preconceitos e,
tanto quanto de vós dependia, destruístes todos os instintos que
são sustentáculos da governação. Assim, no momento em que surge
qualquer diferendo entre a vossa Assembleia Nacional e qualquer
outra parte da nação precisais de recorrer à força. Nada mais vos
resta, ou antes, os senhores não deixaram que restasse mais nada.
Os senhores vêem, pelo relatório do vosso ministro da guerra, que
a distribuição do exército é, em grande medida, feita tendo em vista
a coerção interna 247 • Precisam de governar por meio do exército e
infundiram neste exército por meio do qual governam, bem como
em rodo o resto da nação, princípios que, ao fim de algum tem-
po, devem incapacitá-los no uso que pretendem fazer dele. O rei
deve convocar as tropas para actuarem contra o seu povo, quan-
do foi dito ao mundo inteiro, e essa afirmação ainda nos soa aos
ouvidos, que as tropas não devem disparar sobre os cidadãos. As
colónias reivindicam para si uma constituição independente e co-
mércio livre. Precisam de ser reprimidas pelas tropas. Em que ca-
pítulo do vosso código dos direitos do homem podem eles ler que
faz parte dos direitos do homem ter o seu comércio monopoliza-
do e restringido para o benefício de outros? Do mesmo modo que
os colonos se insurgem contra vós, insurgem-se os negros contra os
colonos. Nova intervenção de tropas - massacre, tortura, enforca-
mentos! Estes são os vossos direitos do homem! Estes são os frutos
das declarações metafísicas levianamente feitas e vergonhosamente
desmentidas! Ainda outro dia os agricultores das terras de uma das
vossas províncias se recusaram a pagar um tipo de rendas ao dono
das terras. Em consequência disto, os senhores decretaram que os
camponeses devem pagar rodas as rendas e direitos excepto aquelas
que aboliram porque injustas e se se recusarem então mandarão o
rei enviar tropas contra eles. Vós estabeleceis proposições metafí-

24
- ·Nora do Autor: Courrier François, 30 July. 1790. Assemblée arionale, Nu-
mero 210.
310

sicas de que se inferem consequências universais e depois tentais


limitar a lógica pelo despotismo. Os líderes do sistema actual falam-
-lhes dos direitos que eles têm, enquanto homens, a tomar forta-
lezas, a matar guardas, a capturar reis sem o mínimo vislumbre de
autoridade, mesmo vinda da Assembleia, enquanto, como corpo
de legisladores, esta Assembleia estava em funções em nome da na-
ção- e, todavia, estes líderes presumem enviar as tropas que prati-
caram estas desordens, para coagir aqueles que julgarem segundo
os princípios e seguirem os exemplos que foram garantidos pela sua
própria aprovação!
Os líderes ensinam o povo a abominar e rejeitar todo o feu-
dalismo como a barbárie da tirania e, mais tarde, dizem-lhes que
quantidade desta tirania bárbara eles hão-de suportar com paciên-
cia. Assim como são prodigamente iluminados no que respeita
às ofensas também o povo os encontra extremamente parcos em
rectificar. As pessoas sabem que certas isenções de rendas e outras
obrigações pessoais, que os senhores lhes permitiram resgatar (mas
para o que não forneceram o dinheiro para o resgate), nada são
comparadas com aqueles encargos para os quais os senhores não
fizeram qualquer tipo de provisão. Sabem que a quase totalidade do
sistema de propriedade das terras é, na sua origem, feudal - que ele
é a distribuição dos domínios dos originais proprietários, feita por
um conquistador bárbaro com os seus instrumentos cruéis - e que
os efeitos mais opressivos da conquista são todo o tipo de arrenda-
mento das terras, como inquestionavelmente são.
Os camponeses, com toda a probabilidade, são os descenden-
tes destes antigos proprietários, romanos ou gauleses. Mas se fa-
lham, seja em que medida for, nos títulos baseados em princípios
jurídicos e de ancestralidade, recuam para a cidadela dos direitos
do homem. Aí acham que os homens são iguais, e que a terra, a
mãe gentil de todos por igual, não deveria ser monopolizada para
alimentar o orgulho e o luxo de homem nenhum, que por natureza
311

não é melhor do que eles, e que, se não trabalha pelo seu pão, é pior.
Eles acham que, pelas leis da natureza, o que ocupa e domina o solo
é o verdadeiro proprietário - que não há prescrição aquisitiva con-
tra a Natureza- e que os acordos (onde há alguns) que foram feitos
com os donos da terra durante o tempo da escravatura são apenas
o efeito da coação e da força, e que, quando o povo reentrou nos
direitos do homem, esses acordos tornaram-se nulos corno tudo o
resto que foi estabelecido sob a vigência da velha tirania feudal e
aristocrática. Dir-vos-ão que não vêem diferença entre um ocioso
de chapéu e cocar nacional e um ocioso de hábito ou com sobrepe-
liz de rendas.
Se vós fundardes o direito às rendas na sucessão e na prescri-
ção aquisitiva, eles dir-vos-ão, a partir do discurso do Sr. Camus148 ,
publicado pela Assembleia Nacional para sua informação, que as
coisas com um mau começo não se podem valer da prescrição aqui-
sitiva - que o direito destes senhores era inválido na sua origem - e
que a força é pelo menos tão má quanto a fraude. ~anto ao direito
por sucessão, dir-vos-ão que a sucessão daqueles que cultivaram os
solos é a verdadeira linhagem da propriedade e não velhos perga-
minhos e ridículas substituições - que os senhores gozaram tempo
demais da usurpação - e que, se eles permitirem a estes monges lai-
cos alguma pensão caridosa, estes devem estar agradecidos ao ver-
dadeiro proprietário que é tão generoso para com quem reclama
sem legitimidade os seus bens.
~ando os camponeses vos pagam na mesma moeda de razão
sofística, em que os senhores gravaram a vossa imagem e inscrição,
os senhores reclamam que é dinheiro falso e dizem-lhes que futura-
mente lhes hão-de pagar com guardas franceses, cavalaria e hussar-
dos. Para os castigar, arvoram a autoridade em segunda-mão de um
248
N .T. Armand-Gaston Camus foi um dos primeiros presidentes da Assembleia
N acional entre 28 de Ou rubro e li de N ovembro de 1789- recorde-se que a presidência
mudava cada duas semanas. C amus ficou célebre pelos seus discursos sobre a igualdade
social.
312

rei, que é apenas instrumento de destruição sem nenhum poder de


proteger quer o povo quer a sua pessoa. Através dele, tudo indica, se
farão obedecer. Eles responderão- "os senhores ensinaram-nos que
não há cavalheiros, e quais dos vossos princípios nos ensinam a re-
verenciar os reis que nós não elegemos? Nós sabemos, sem os vossos
ensinamentos, que as terras foram concedidas para sustentáculo das
dignidades feudais, dos títulos feudais e dos cargos feudais. ~ando
os senhores derrubam a causa, porque é uma injustiça, porque é que
se há-de manter o seu efeito mais injusto? Como agora não há hon-
ras hereditárias, nem famílias distintas, porque é que nós pagamos
impostos para manter o que nos ensinaram que não deveria existir?
Enviaram-nos a nossa velha aristocracia de senhores das terras, sem
qualquer carácter ou título senão o de cobradores de impostos sob
a vossa autoridade. Conseguiram ao menos tornar estes cobradores
de rendas respeitáveis aos nossos olhos? Não. Mandaram-nos ter
connosco com as armas apontadas para si próprios, os escudos par-
tidos, desfigurados - e tão sem plumas, degradados e transforma-
dos, umas tais coisas depenadas com duas pernas, que nós já não os
reconhecemos. São estranhos para nós. Nem sequer dão pelo nome
dos nossos antigos senhores. Fisicamente podem ser os mesmos ho-
mens, embora não estejamos seguros disso, segundo as vossas novas
doutrinas da identidade pessoal. Em todos os outros aspectos estão
totalmente mudados. Não vemos porque é que não temos o direito
de lhes recusar as rendas quando os senhores tiveram o direito de
lhes abolir as honras, os títulos e as distinções. Nós nunca vos encar-
regámos de fazer isso. É, de facto, um dos exemplos entre muitos,
da vossa assunção de poder não delegado. Vemos os burgueses de
Paris através dos seus clubes, das suas multidões, dos seus guardas
nacionais, conduzir-vos a seu bel-prazer, dão-vos isso como lei e,
sob a vossa autoridade, é transmitido como lei para nós. Através
de vós, estes burgueses dispõem das vidas e das fortunas de todos
nós. Porque é que os senhores não hão-de atender igualmente aos
desejos dos agricultores que trabalham em relação às suas rendas,
313

pelas quais são seriamente afectados, do mesmo modo que atendem


às reivindicações destes burgueses insolentes, relativamente às dis-
tinções e títulos honoríficos, pelos quais nem eles nem nós somos
em nada afectados? Mas nós verificamos que os senhores dão mais
atenção aos seus caprichos que às nossas necessidades. Consta entre
os direitos do homem pagar imposto aos seus iguais? Antes desta
vossa medida nós poderíamos ter pensado que não éramos perfeita-
mente iguais, poderíamos ter alimentado algo do antigo preconcei-
to, usual e absurdo, a favor destes proprietários das terras, mas não
pode conceber-se com que outro objectivo senão o de destruir todo
o respeito para com eles, os senhores criaram a lei que os rebaixa.
Proibiram-nos de os tratar com as antigas formalidades de respeito,
e agora enviam-nos tropas com sabre e baionetas para nos obrigar
à submissão pelo medo e pela força, àquilo a que os senhores não
toleraram que cedêssemos pela autoridade branda das convicções".

O fundamento de alguns destes argumentos é horrível e ridícu-


lo para qualquer ouvido racional mas, para políticos da metafísica,
que abriram escolas de sofística e criaram sistemas para a anarquia, é
sólido e conclusivo. É óbvio que, numa mera consideração do direi-
to, os líderes na Assembleia não teriam tido qualquer escrúpulo em
abolir as rendas juntamente com os títulos e as insígnias de família.
Teria bastado seguir o princípio dos seus raciocínios e completar
a analogia da sua conduta. Mas eles próprios tinham adquirido
recentemente uma grande extensão de terras por arresto. Tinham
este bem no mercado e o mercado teria sido completamente des-
truído se eles permitissem aos agricultores amotinarem-se com base
nas especulações com que eles, tão livremente, se embriagaram.
A única segurança de que a propriedade goza em qualquer dos seus
domínios provém do seu interesse e rapacidade em relação a outra
propriedade. Apenas o seu próprio prazer arbitrário determina qual
a propriedade que deve ser protegida e qual deve ser desrespeitada.
314

Também não deixaram qualquer principiO pelo qual cada


um dos seus municípios possa ser obrigado a obedecer, ou mesmo
conscienciosamente obrigado a não se separar do todo, a não se tor-
nar independente ou a não se ligar a um outro Estado. O povo de
Lyon, ultimamente, parece, recusou-se a pagar impostos. Porque
não haveria de fazê-lo? ~e autoridade legal subsiste que o possa
obrigar? O rei instituiu alguns deles. Os antigos Estados, regulados
por ordens, estabeleceram os mais antigos. O povo pode dizer à As-
sembleia: "~em são os senhores, que não são nossos reis, nem os
Estados que nós elegemos, nem se reúnem com base nos princípios
em que nós vos elegemos? E quem somos nós que quando vimos as
gabelles 249 que os senhores ordenaram que fossem pagas totalmente
rejeitadas, e quando depois vimos o acto de desobediência ratifica-
do por vós, quem somos nós para não ajuizarmos que impostos de-
vemos ou não devemos pagar, e não nos darmos os mesmos poderes
de veto que os senhores aprovaram a outros?" A isto a resposta será,
"mandaremos as tropas". O último argumento dos reis é sempre o
primeiro para a vossa Assembleia. Esta ajuda dos militares pode ser-
vir por algum tempo, enquanto subsistir a impressão do aumento
dos pagamentos e a vaidade de se ser árbitro em todas as disputas
for gratificada. Mas esta arma quebrar-se-á depressa, infiel à mão
que a maneja. A Assembleia mantém urna escola, onde sistemati-
camente e com perseverança contínua se ensinam princípios e se
fazem normas destrutivas de todo o espírito de subordinação, quer
civil quer militar, e depois espera manter em obediência um povo
anárquico por intermédio de um exército anárquico.
O exército municipal que, de acordo com a sua nova política,
serve para equilibrar este exército nacional, quando considerado
apenas em si mesmo, tem urna constituição mais simples e em to-
dos os aspectos menos criticável. É apenas um corpo democrático,
desligado quer da coroa quer do reino, armado, treinado e cornan-
249
N .T. Antigo imposto sobre o sal, considerado injusto. Ver na nota 253 o seu
modo de distribuição.
315

dado às ordens dos distritos aos quais estes corpos respectivamente


pertencem, e o serviço pessoal dos indivíduos que o compõem, ou a
multa no lugar do serviço pessoal, é dirigido pela mesma autorida-
de250. Nada é mais regular. Se, todavia, for considerado em relação à
coroa, à Assembleia Nacional, aos tribunais públicos, em relação ao
outro exército, ou considerado tendo em vista qualquer coerência
ou conexão entre as partes, parece um monstro e dificilmente os
seus movimentos confusos deixarão de acabar numa grande catás-
trofe nacional. É um modo de preservar uma constituição geral ain-
da pior do que a systasil 51 de Creta ou a confederação da Polónia,
ou qualquer outro correctivo mal concebido que ainda não tenha
sido imaginado, para as necessidades produzidas por um sistema de
governo mal arquitectado.

Tendo concluído as minhas parcas observações sobre a cons-


tituição do poder supremo, do executivo, do judicial, do militar e
da relação recíproca de todas estas instituições, direi alguma coisa
sobre a habilidade mostrada pelos vossos legisladores no que respei-
ta à receita pública.

Os seus procedimentos em relação a este objecto ainda de-


monstram, se é que é possível, menos rasgo de discernimento polí-
tico ou de expediente financeiro. ~ando os Estados se reuniram, o
objectivo principal parecia ser melhorar o sistema da receita públi-
ca : alargar a colecta, limpá-lo da crueldade e da opressão e estabe-
lecê-lo em bases mais sólidas. Eram grandes as expectativas que se
mantinham a esse respeito por toda a Europa. Era por intermédio
desta grande reforma que a França se havia de sustentar ou se afim-
daria. E, na minha opinião, começou muito bem o teste pelo qual

2
so • Nota do autor: Vejo pelo relato do Senhor Necker, que a guarda nacional de
Paris recebeu além do dinheiro cobrado na sua própria cidade, cerca de 145 OOOL esterli-
nas do erário público. Não percebo claramente se isto é um pagamento anual para os nove
meses da sua existência, ou uma estimativa dos seus encargos anuais. O que não importa
muito, porque certamente podem retirar tanto quanto quiserem.
25
' N.T. União política, confederação ou üga.
316

deveriam ser julgados a competência e o patriotismo daqueles que


governam aquela Assembleia.
A receita do Estado é o Estado. Com efeito, tudo depende da
receita, quer para o apoio quer para a reforma. A dignidade de qual-
quer ocupação depende completamente da quantidade e do tipo
de virtude que se pode exercer nela. Como as grandes qualidades
da mente que operam na esfera pública, e que não são meramente
sofredoras e passivas, requerem força para se mostrarem e, quase
me atrevo a dizer, para a sua existência inequívoca, a administração
da receita pública, que é donde provém todo o poder, torna-se a
esfera de toda a virtude activa. A virtude pública, sendo de nature-
za magnificente e esplêndida, instituída para grandes coisas e ver-
sada em grandes interesses, requer vasto âmbito e campo de acção
e não pode difundir-se nem crescer confinada, em circunstâncias
acanhadas, em aperto e sordidez. Apenas através da receita pública
o corpo político pode agir com o seu verdadeiro talento e carácter,
e portanto, na medida em que está na posse de uma receita pública
justa, manifestar igualmente a sua virtude colectiva e quanto dessa
virtude pode caracterizar os que a põem em marcha, e são, por as-
sim dizer, a sua vida e princípio tutelar. Daí derivam o seu alimento
e o crescimento dos seus órgãos, não apenas a magnanimidade, a
liberalidade, a beneficência, a fortaleza, a providência e a protecção
tutelar de todas as boas artes, mas também a continência, a negação
de si mesmo, o trabalho, a vigilância, a frugalidade, e em tudo o
resto em que a alma se mostra acima do apetite, em nenhum lugar
estão tão no seu próprio elemento quanto na provisão e distribui-
ção da riqueza pública. Não é, portanto, sem razão, que a ciência
especulativa e prática das finanças, que tem de trazer para sua ajuda
tantos ramos auxiliares do saber, é tida em grande estima, não ape-
nas pelos homens comuns mas também pelos homens mais sábios
e melhores. E, tal como esta ciência cresceu com o progresso do
seu objecto, a prosperidade e avanço das nações aumentou com o
acréscimo da sua receita pública e continuarão ambas a crescer e a
317

florescer enquanto o equilíbrio entre o que é deixado para fortale-


cer as realizações individuais e o que é colectado para as realizações
comuns do Estado, sustentar entre si uma proporção recíproca e for
mantido numa correspondência e comunicação estreitas. E talvez
possa dever-se à magnitude das receitas públicas e à urgência das
necessidades do Estado, que a descoberta dos antigos abusos na
constituição das finanças, a sua verdadeira natureza e os seus princí-
pios racionais passaram a entender-se mais perfeitamente, a tal pon-
to que um imposto menor pode ter sido mais perturbador num de-
terminado período do que um outro muito maior mostrou ser em
outro período, mesmo tendo -se mantido a riqueza proporcional.
Neste estado de coisas a Assembleia francesa encontrou na sua re-
ceita pública algo a preservar, a garantir e a administrar sabiamente,
bem como algo a revogar e alterar. Embora as suas pretensões pre-
sunçosas pudessem merecer uma avaliação mais severa, contudo, na
verificação das suas competências em matéria de comportamento
financeiro, terei em conta apenas o que é o dever óbvio e básico de
um ministro das finanças comum e julgá-los-ei nessa base, e não na
base de modelos de perfeição ideais.
Os objectivos de um homem de finanças são, então, assegu-
rar uma ampla receita pública, impondo esse objectivo com dis-
cernimento e equidade, empregá-la economicamente e, quando
a necessidade obriga, fazer uso do crédito, para assegurar os seus
fundamentos nessa instância, sempre pela clareza e franqueza dos
seus procedimentos, a exactidão dós seus cálculos, e a solidez dos
seus fundos . Com estes indicadores podemos apreciar sucinta e
distintamente os méritos e capacidades dos elementos da Assem-
bleia Nacional que tomaram a seu cargo o tratamento deste assun-
to difícil. Longe de qualquer aumento da receita pública nas suas
mãos, eu verifico, por um relatório do Senhor Vernier, do Comité
das Finanças, do passado dois de Agosto, que o montante da recei-
ta pública nacional, quando comparado com aquele gerado antes
da Revolução, decresceu em duzentos milhões, ou oito milhões de
318

libras esterlinas, do rendimento anual, consideravelmente mais de


um terço do total!
Se este é o resultado de uma grande capacidade, nunca segu-
ramente se demonstrou a capacidade de uma forma mais distinta
ou com tão poderoso efeito. Nem a loucura comum, nem a vulgar
incapacidade, nem a comum negligência do funcionalismo, nem
mesmo o crime público, nem a corrupção, nem o peculato e difi-
cilmente a hostilidade directa que se têm visto no mundo moderno
poderia, em tão pouco tempo, ter concretizado uma tal reviravolta
nas finanças e, com ela, uma reviravolta na força de um grande país.
-Cedo qui vestram rempublicam tantam amisistis tam cito? 252
Os sofistas e polemistas, assim que a Assembleia reuniu, come-
çaram por desacreditar a amiga constituição da receita pública em
muitos dos seus ramos essenciais, tal como o monopólio público
do sal. Acusaram-no, com tanta verdade quanta a insensatez, de ser
mal concebido, despótico e parcial. Não ficaram satisfeitos em fa-
zer uso desta classificação em discursos preliminares a algum plano
de reforma, declararam-na ainda como resolução solene e senten-
ça pública, como fosse uma sentença judicial, que difundiram por
toda a nação. Na altura em que publicaram o decreto, com a mesma
gravidade ordenaram que o mesmo imposto, absurdo, tirânico e
parcial, fosse pago, até que encontrassem uma receita pública que o
substituísse. A consequência era inevitável. As províncias que sem-
pre tinham estado isentas deste monopólio do sal, algumas delas
sobrecarregadas com outras contribuições, porventura equivalen-
tes, foram totalmente contrárias a suportar fosse que parte fosse do
fardo, que por uma idêntica distribuição haveria de compensar os
outros impostos. ~amo à Assembleia, ocupada como estava com
a declaração e violação dos direitos humanos, e com os preparativos
da confusão geral, não teve nem disponibilidade nem capacidade

212
N.T. "Dizei porque abandonastes tão rapidamente a vossa grande república?",
Cic. Sen. 20.
319

de conceber, nem autoridade para fazer cumprir, um plano de qual-


quer tipo para a substituição do imposto, ou que o tornasse equita-
tivo, ou compensando as províncias, ou para conduzir as opiniões
para um esquema qualquer de compromisso com os outros distritos
que deveriam ser aliviados. O povo das províncias do saF 53, impa-
ciente com os impostos, condenados pela autoridade que ordenou
o seu pagamento, depressa esgotou a sua paciência. Acharam-se tão
capazes de demolir quanto a Assembleia o pode ser. Aliviaram-se
deitando fora toda a carga. Animados por este exemplo, cada distri-
to ou parte de distrito avaliando o seu prejuízo pelos seus próprios
sentimentos, e o seu remédio pelas suas opiniões, procedeu como
lhe agradou em relação aos outros impostos.
Iremos ver agora como a Assembleia se comportou para con-
seguir idênticas contribuições, proporcionais aos meios dos cida-
dãos, e que menos probabilidade tivessem de sobrecarregar o capi-
tal activo empregue em gerar riqueza privada da qual deve derivar
a prosperidade pública. Por ter tolerado que os vários distritos, e
vários indivíduos em cada distrito, ajuizassem que parte dos amigos
impostos se poderiam abolir, em vez de princípios de equidade me-
lhores, introduziu uma nova forma de desigualdade de carácter mais
tirânico. Os pagamentos regularam-se pelas disposições. As par-

253 N.T. As gabelles sobre o sal distribuíam-se de modo desigual pelas diversas
províncias: havia seis divisões principais do imposto: /e pays des grandes gabelles (Nor-
mandie, Champagne, Picardie, ile-de-France, Maine, Anjou, Touraine, Orléanais, Berry,
Bourgogne, Bourbonnais), que por cada quintal de sal (50 kg) pagava 63 livres; le pays
des petites gabelles (Dauphiné, Vivarais, Gévaudan, Rouergue, Provence e Languedoc),
pela mesma quantidade pagava 33 livres e I O sous; /e pays des salines (Lorraine, Alsace,
Franche-Comté, Lyonnais, Dombes e RoussiUon ), que pagava 2 llivres e lO sous; /e pays
du quart de bouillon (Avranchin e Cotentin ) que pagava 16 livres; havia ai nda /e pays
redimé - que tinha comprado um a isenção parcial do imposto - (Poitou, Limousin,
Auvergne, Saintonge, Angoumois, Périgo rd, Q::ercy, Bordelais e Guyenne), que pagava
por cada quintal 6 a 12 livres e, por último, as províncias francas, /e paysJran c (Bretagne,
Boulonnais, Calaisis, 1' Arrois, Flandre, Hainaut, Cambrésis, o principado de Sedan e de
Raucourr, Gex, Arles, Nébouzan, Béarn, Soule, Basse-Navarre, Labourd, a ilha de Ré, a
ilha de Oléron, uma parre de Aun is e uma parre de Poitou), que pagavam 2 a 9 livres por
quintal de sal.
320

tes do reino que eram mais submissas, mais ordeiras, ou as mais afei-
çoadas à nação, suportaram a totalidade dos encargos do Estado.
Nada acaba por ser tão tirânico e injusto como um governo fraco.
Para preencher todas as deficiências nas amigas contribuições e as
novas deficiências de todo o tipo que se poderiam esperar, o que
é que restava a um Estado sem autoridade? A Assembleia Nacio-
nal apelou à benevolência voluntária: Um quarto dos proveitos de
todos os cidadãos, calculado com base na palavra daqueles que ha-
veriam de pagar. Obtiveram um pouco mais do que racionalmente
se poderia esperar, mas o que ficou deveras longe de corresponder
às suas necessidades reais, e ainda mais longe das suas expectativas
otimistas. Geme razoável teria esperado pouco destes seus impos-
tos disfarçados de benevolência, um imposto fraco, ineficaz e com
desigualdades, um imposto em que o luxo, a avareza e o egoísmo
estavam resguardados e a carga recaía sobre o capital produtivo, a
integridade, a generosidade e o espírito público, um imposto de re-
gulação sobre a virtude. Por fim a máscara caiu, e estão agora (sem
grande sucesso) a tentar meios de cobrar a benevolência à força.
Esta benevolência, filha raquítica da fraqueza, era para ser
mantida por outro recurso, irmão gémeo da mesma imbecilidade
fértil. As dádivas patrióticas deveriam compensar o falhanço da
contribuição patriótica. John Doe era o fiador de Richard Roe 254•
Através deste esquema retiraram coisas de grande valor para o
doador e de valor comparativamente pequeno para quem recebe,
arruinaram vários negócios, pilharam a coroa dos seus ornamen-
tos, as igrejas da sua prata e o povo do seu embelezamento pessoal.
A invenção destes jovens com pretensões à liberdade na verdade não
era mais que uma imitação servil de um dos mais medíocres recur-
sos do despotismo senil. Tiraram uma velha, enorme, cabeleira do
fundo do guarda-roupa de amigas velharias de Luís Catorze, para
cobrir a calvície precoce da Assembleia Nacional. Representaram
254
N.T. N ome ficcício dado a figuras em licígio. O presente sentido seria como
afirmar Fulano é fi ado r de Sicrano e de nenhum ter boas referências.
321

esta loucura obsoleta com formalismo, embora ela estivesse exposta


nas memórias do Duque de Saint-Simon 255 , como se para pessoas
sensatas faltassem argumentos que expusessem a sua perversidade
e incapacidade. Um esquema idêntico foi tentado, que me lembre,
por Luís ~inze, mas nunca resultou. No entanto, as necessidades
geradas por guerras ruinosas desculpavam em parte os planos de-
sesperados. Nas calamidades as decisões raramente são acertadas.
Mas aqui estava uma altura própria para disposição e providência.
Foi em tempo de profunda paz, de que gozavam há cinco anos, e
que prometia continuar por mais tempo, que eles recorreram a esta
mesquinhez desesperada. Era seguro que perderiam mais reputação
se, na sua grave situação, brincassem com estes brinquedos e jogos
de finanças - que encheram a metade dos seus jornais - do que
provavelmente poderia ser compensado pelos recursos medíocres
e temporários que estes proporcionavam. Ao adoptarem tais esque-
mas pareciam estar na completa ignorância das suas circunstâncias
e nada à altura do que era requerido. Seja qual for a virtude que
exista nestes expedientes, é óbvio que não se pode voltar a recor-
rer nem às dádivas nem às contribuições patrióticas. Os recursos da
loucura pública cedo se esgotam. De facto, rodo o seu plano para
a receita pública é produzir, através de um artifício, uma aparência
de reservatório cheio no momento, ao mesmo tempo que cortam
as nascentes e as fontes vivas de abastecimento perene. O relató-
rio que pouco depois foi fornecido pelo Senhor Necker tenciona-
va, sem dúvida, ser benevolente. Dá uma visão lisonjeira dos meios
para chegar ao fim deste ano, mas expressa alguma apreensão sobre
o que virá a seguir, como é natural que exprima. Sobre este último
prognóstico, em vez de se entrar nos fundamentos desta preocupa-
ção, para que, por uma adequada antecipação, se impedisse o mal
previsto, o Senhor Necker recebe uma espécie de reprimenda ami-
gável do Presidente da Assembleia.

m N.T . Louis de Rouvroy, Duc de Saint-Simon (1675-1755), autor de memó-


rias que datam da mesma altura em que idêntico estratagem a tinha sido tentado.
322

~amo aos seus outros planos de impostos, com certeza é


impossível dizer deles seja o que for, porque ainda não entraram
em acção, mas ninguém é tão optimista ao ponto de imaginar que
preencherão uma parte significativa da grande brecha aberta que
a sua incapacidade abriu nas receitas. Presentemente, o estado do
tesouro afunda-se cada vez mais em numerário e empola cada vez
mais em representação fictícia. ~ando pouco se encontra, dentro
ou fora, que não seja papel, que representa não a opulência mas a
necessidade, que é criação não do crédito mas do poder, eles imagi-
nam que a prosperidade de Inglaterra se deve ao papel-moeda, e não
o papel-moeda à próspera condição do nosso comércio, à solidez do
nosso crédito e à total exclusão de qualquer ideia de poder em qual-
quer parte da transacção. Esquecem-se que em Inglaterra nem um
xelim de papel-moeda de qualquer tipo se recebe senão por esco-
lha, que todo teve origem em dinheiro efectivamente depositado,
e que é convertível às ordens, num instante e sem a menor perda,
em moeda outra vez. O nosso papel-moeda tem valor no comér-
cio porque na lei não tem valor nenhum. É forte nas trocas porque
em Westminster Hall é impotente. Num pagamento de uma dívida
de vinte xelins a um credor pode recusar-se todo o papel-moeda
do Banco de Inglaterra. Nem existe no meio de nós uma garantia
pública, de qualquer natureza ou qualidade, que seja imposta pela
autoridade. De facto, pode demonstrar-se facilmente que o nosso
papel-moeda, em vez de diminuir a verdadeira moeda tem tendên-
cia para aumentá-la, em vez de ser um substituto para o dinheiro
apenas facilita a sua entrada, a sua saída e a sua circulação, que ele é
o símbolo da prosperidade e não a divisa da miséria. Nunca a escas-
sez de dinheiro e uma exuberância do papel-moeda foi motivo de
queixa nesta nação.

Bem! Mas uma diminuição do esbanjamento e a economia que


foi introduzida pela virtuosa e sapiente Assembleia corrige as per-
das persistentes nas receitas dos impostos. Nisto, ao menos, cum-
priram o dever dos homens de finanças. Aqueles que dizem isto já
323

olharam para as despesas da própria Assembleia? Dos municípios?


Da cidade de Paris? Do aumento do pagamento dos dois exércitos?
Da nova polícia? Da nova magistratura? Ao menos já compararam
a lista actual de pensionistas com a anterior? Estes políticos têm
sido cruéis não económicos. Comparando as despesas do anterior
governo esbanjador e a sua relação com os proventos de então, com
as despesas deste novo sistema contrapondo-as ao estado recente do
seu tesouro, acredito que se verificará que as despesas presentes são
incomparavelmente mais pesadas 256 •
Falta apenas considerar as provas de habilidade financeira
fornecidas pelos actuais administradores franceses quando têm de
aumentar reforços no crédito. Aqui estou um pouco hesitante, por-
que crédito propriamente dito não têm nenhum. O crédito do an-
tigo governo não era, de facto, o melhor, mas podiam sempre, com
algumas condições, pedir dinheiro, não apenas em França, mas da
maioria dos países da Europa onde houvesse um excedente de capi-
tal acumulado e o crédito daquele governo estava a aumentar todos
os dias. Pensou-se que o estabelecimento de um sistema de liber-
dade lhe daria, certamente, nova força, e teria efectivamente dado,
se se tivesse estabelecido um sistema de liberdade. ~e ofertas de
transacção com o papel-moeda teve o seu governo pretensamente
livre por parte da Holanda, de Hamburgo, da Suíça, de Génova,
de Inglaterra? Porque haveriam estas nações de comércio e eco no-

256
· Nota do Auto r: O leito r verá que apenas toquei ao de leve (o meu objectivo
não exigi a mais) nas condi ções das fin anças francesas em relação às exigências a que estão
sujeitas. Se tencionasse faze r de outro modo, os materiais que tenho em mãos não se riam
pe rfe itos para tal tarefa. A este respeito remeto o leitor para os trabalhos do Senho r De
Calo nne, e a tremenda exposição que ele fez da destruição e devastação no Estado, e em
todos os negócios de França, causadas pelas boas intenções presunçosas da igno rância e
da incapacidade. T ais causas produ zem se mpre estes efeitos. Examinando esta exposição
com um olhar rigo roso, e talvez até com rigor excess ivo, deduzindo tudo o que possa ser
posto na conta de um fin ancei ro exilado, cujos inimigos podem achar desejoso de apro-
veita r ao máx imo a sua causa, eu acredito q ue se encontrará aqu i, à custa da França, a
lição mais sal utar que algu ma vez foi dada à humanidade de cautela co ntra inovado res de
espírito atrevido.
324

mia de entrar em transacções pecuniárias com um povo que tenta


subverter a própria natureza das coisas, onde vêem os devedores a
impor pela ponta da baioneta os meios da sua solvência ao credor,
desobrigando um dos seus deveres para com o outro, convertendo
a sua própria penúria no seu recurso e pagando o juro com os seus
andrajos?
A sua confiança fanática na omnipotência da expropriação
da Igreja induziu estes filósofos a não atenderem ao cuidado com a
propriedade pública, do mesmo modo que o sonho da pedra filoso-
fal induz ingénuos, sob a ilusão mais plausível das artes herméticas,
a negligenciar rodos os meios racionais de aumentarem a sua fortu-
na. Com estes financeiro s filó sofos, esta panaceia universal feita da
múmia da Igreja serve para curar rodos os males do Estado. Estes
senhores talvez não acreditem muito nos milagres devotos, mas é
inquestionável que têm uma fé inabalável nos prodígios profanos.
Há uma dívida que os sobrecarrega? Emitam-se assignats. Há com-
pensações que devem fazer-se ou uma subsistência decretada para
aqueles a quem eles, nas suas funções, roubaram as suas proprieda-
des ou expulsaram da sua profissão? Assignats. Há uma frota para
equipar? Assignats. Se dezasseis milhões de esterlinas destes assi-
gnats impostos ao povo tornarem as necessidades do Estado mais
prementes que nunca, emitam-se, dirá alguém, trinta milhões de
esterlinas de assignats -,dirá outro, emitam-se mais oitenta milhões
de assignats. A única diferença entre as suas facções financeiras re-
side na maior ou menor quantidade de assignats a serem impostos
ao consentimento público. São rodos mestres em assignats. Mesmo
aqueles a quem o natural bom senso e conhecimento do comér-
cio - não obliterado pela filosofia - fornecem argumentos decisi-
vos contra esta quimera, concluem esses argumentos propondo a
emissão de assignats. Suponho que falam em assignats, porque ne-
nhuma outra linguagem seria entendida. Toda a experiência da sua
ineficácia não os desencoraja. Os antigos assignats desvalorizaram-
-se no mercado? ~al é o remédio? Emitir novos assignats. -Mais
325

si maladia opiniatria non vult se garire, quid illi focere? Assignare,


postea assignare, ensuita assignare257 • Os termos estão ligeiramente
alterados. O latim dos vossos actuais doutores pode ser melhor do
que este da vossa antiga comédia, a sua sabedoria e a variedade dos
seus recursos são as mesmas. A sua cantiga não tem mais notas que a
do cuco, embora, em vez da suavidade da do anunciador do Verão e
da abundância, a sua voz seja áspera e agoirenta como a dos corvos.
~em, senão os mais desesperados aventureiros em filosofia
e finanças, poderia ter sequer pensado em destruir o rendimento
já estabelecido do Estado, única segurança para o crédito público,
com a expectativa de o reconstituir com os materiais da proprieda-
de confiscada? Se, contudo, um excessivo zelo pelo Estado tivesse
conduzido um prelado devoto e venerável (por antecipação um
padre da Igreja 258 ) a saquear a sua própria ordem e, para o bem da
Igreja e do povo, assumir ele próprio o lugar de grande financeiro
do arresto e inspector geral do sacrilégio, em minha opinião, ele e
os seus coadjutores estavam obrigados a demonstrar, pela sua sub-
sequente conduta, que sabiam alguma coisa do ofício que tinham
assumido. ~ando resolveram apropriar-se para o ftsco 259 de uma
grande quantidade de propriedades fundiárias do seu país conquis-
tado, era sua obrigação converter o seu banco num fundo real de
crédito - tanto quanto esse banco fosse capaz de se tornar tal.

w N.T. "Mas se a opinião doente não quer ser curada, o que fazer? Assinar, de-
pois assinar, e de seguida assinar". Na sátira de Molii:re, LeMa/ade lmaginaire, os médi-
cos estão a examinar, num latim de qualidade duvidosa, um estudante de medicina e a
qualquer questão ele responde que o remédio é: "administrar um clister, depois sangrar
e a seguir purgar". Usando a ironia, Burke compara este aprendiz de médico, que tem o
mesmo remédio para qualquer doença. aos aprendizes de governantes, que para todos
os problemas têm apenas a solução de emitir assignats, que eram tÍtulos emitidos sobre
os bens confiscados e que circulavam como papel moeda. Cf. Steven Blakemore ( 1990),
"Burke and the Fali ofLanguage", in Daniel Ritchie (1990) (Ed.),Edmund Burke Apprai-
sals and Applicatiom, New Jersey: T ransaction Publishers, p. 42.
218 ·Nota do autor: La Bruyi:re de Bossuet.
219
N.T. O termo utilizado é Fisc e significava: o Treasury ou também Depart-
ment ofInland Revenue.
326

Estabelecer a circulação de um crédito existente sobre qual- '


quer banco agrícola, seja em que circunstâncias for, até hoje, tem-se
mostrado difícil, no mínimo. Esta tentativa, habitualmente, tem
acabado na bancarrota. Mas, quando a Assembleia foi levada por
um desrespeito pela moral a desafiar os princípios económicos, po-
dia ao menos esperar-se que não omitisse nada que pudesse reduzir
esta dificuldade, para prevenir qualquer agravamento desta bancar-
rota. Podia esperar-se que, para tornar o vosso banco agrícola satis-
fatório, seriam adoptados todos os meios que mostrassem abertura
e franqueza na declaração da garantia, qualquer coisa que pudesse
ajudar à retoma da procura. Vendo as coisas pelo seu melhor lado,
a vossa condição era a de um grande proprietário de terras que que-
ria dispor delas para pagamento de uma dívida e fornecimento de
certos serviços. Não sendo capaz de vender imediatamente, quer
penhorar. Nestas circunstâncias, o que é que faria um homem de
boas intenções e claro discernimento em geral? Não deveria pri-
meiro indagar o valor bruto da propriedade, os encargos com a sua
administração e amanho, os encargos de qualquer tipo, perpétuos
ou temporários, que a afectam e, determinado então um excedente
de lucro, calcular o valor justo do penhor? ~ando esse lucro (a
única segurança do credor) tivesse sido claramente comprovado e
devidamente transferido para as mãos dos depositários, então in-
dicaria quais as parcelas de solo a vender, a altura e as condições
para a venda, depois disto admitiria ao credor público, se assim o
decidisse, subscrever os seus valores neste novo fundo, ou poderia
receber propostas para um assignat daqueles que quisessem adian-
tar dinheiro para adquirir este tipo de garantia. Isto seria proceder
como homens de negócios, metódica e racionalmente, e segundo
os únicos princípios existentes para o crédito, público ou privado.
O negociante saberia então exactamente o que tinha comprado
e a única dúvida que poderia toldar a sua mente seria o receio do
resgate do espólio, que um dia poderia ser feito (talvez com uma
penalização adicional ) pelo sacrüego domínio daqueles infames
327

execráveis que se poderiam tornar compradores em leilão dos seus


inocentes concidadãos.
As afirmações claras e rigorosas sobre o valor líquido da pro-
priedade, bem como do tempo, das circunstâncias e do lugar da
venda, eram todas necessárias, para fazer desaparecer, tanto quanto
possível, o estigma que até aqui tem sido a marca de todo o tipo
de banco agrícola. O que se tornava necessário ainda por um outro
motivo, isto é, em virtude de um penhor de confiança dado ante-
riormente a este propósito, que a sua futura fidelidade neste negó-
cio duvidoso pudesse reconhecer-se pela sua adesão ao seu compro-
misso prévio. ~ando eles finalmente se decidiram pela pilhagem
da Igreja como recurso do Estado, chegaram, em 14 de Abril de
1790, a uma solene resolução sobre o assumo e obrigaram-se peran-
te o país "que, em cada ano, na apresentação dos encargos públicos,
deveria ser tido em conta um montante suficiente para liquidar a
despesa dos R .C.A. da religião, a manutenção dos sacerdotes, a as-
sistência aos pobres, as pensões dos eclesiásticos, seculares e regula-
res, de ambos os sexos, em ordem a que as propriedades e os bens que
estão adisposição da nação possam ser libertados de todos os encargos e
empregues pelos seus representantes, ou pela legislatura, para as enor-
mes e urgentes necessidades do Estado." De seguida, nesse mesmo dia,
comprometeram-se a que a soma necessária para o ano 1791 fosse
imediatamente determinada.
Nesta resolução admitiram ser seu dever dar a conhecer cla-
ramente os gastos relativos aos objectos acima visados, a que, por
outras resoluções anteriores, eles já se haviam comprometido e que
deveriam ser os primeiros a serem satisfeitos. Admitiram que de-
viam proclamar as propriedades livres de todos os encargos e que o
deveriam fazer de imediato. Fizeram-no eles de imediato ou fosse
quando fosse? Forneceram alguma vez uma relação das proprieda-
des imobiliárias, ou um inventário dos bens móveis que confisca-
ram para os seus assignats? De que modo podem eles satisfazer os
328

seus compromissos de manterem para o serviço público "aproprie-


dade livre de quaisquer encargos", sem autenticarem o valor da pro-
priedade ou o quantum dos encargos, é algo que deixo para os seus
admiradores ingleses explicarem. Imediatamente após o compro-
misso, e antes de alguém dar um passo para o concretizar, emitiram,
ao abrigo de tão elegante declaração, dezasseis milhões de esterlinas
do seu papel-moeda. Isto foi viril. ~em é que depois deste golpe
de mestre pode duvidar das suas habilidades em finanças? Mas en-
tão, antes de qualquer outra emissão destas indulgências financeiras,
tomassem o cuidado de cumprir pelo menos a sua promessa origi-
nal. Se este cálculo, quer do valor da propriedade quer do montante
dos encargos, foi feito, escapou-me. Nunca ouvi falar dele.
Por fim falaram e descobriram totalmente a sua abominável
fraude, de manterem as propriedades da Igreja como garantia de
quaisquer dívidas ou serviços. Roubam apenas para se permitirem
intrujar, mas a breve trecho fazem malograr os fins quer do roubo
quer da fraude, apresentando contas com outros propósitos, que
destroem todo o seu aparato de força e de fraude. Devo ao Senhor
de Calonne esta referência ao documento que prova este facto ex-
traordinário que, de algum modo, me tinha escapado. De facto, não
era necessário expressar a minha convicção quanto à má-fé da decla-
ração de 14 de Abril de 1790. Num relatório do seu comité aparece
agora que a sobrecarga de manter as reduzidas instituições eclesiás-
ticas e outras despesas relativas à religião, e manter os religiosos de
ambos os sexos, ao serviço ou aposentados, e outras despesas conco-
mitantes de idêntica natureza que chamaram a si com esta convul-
são na propriedade, excede o rendimento das propriedades adqui-
ridas através dela, pela soma gigantesca de dois milhões esterlinas
anuais- para além da dívida de mais de sete milhões. Esta é a capa-
cidade de cálculo da charlatanice! Estas são as finanças da filosofia!
Este é o resultado de todas as ilusões mantidas para comprometer
um desgraçado com a rebelião, o homicídio, o sacrilégio, e fazer
dele um instrumento pronto e zeloso da ruína do seu país! Nunca
329

o Estado, em caso algum, enriqueceu com o confisco dos cidadãos.


Esta nova experiência teve o mesmo sucesso que rodas as outras.
Todas as almas honestas, rodos os verdadeiros amantes da liberda-
de e da humanidade, devem alegrar-se por descobrir que a injusti-
ça nem sempre é uma boa política, nem a rapina uma auto-estrada
para a fortuna. Tenho o prazer de anexar em nota, as observações
hábeis e espirituosas do Senhor de Calonne sobre este assunto 260•
Em ordem a persuadir o mundo do recurso inesgotável da
confiscação eclesiástica, a Assembleia procedeu a outros arrestos de
propriedades a repartições oficiais, que não podiam ser feitos sob
nenhum pretexto comum sem serem contrabalançados por esta
enorme confiscação de terras. Atribuíram a este fundo, que deveria
apresentar lucro depois de retirados rodos os encargos, um novo
encargo, isto é, a indemnização de todo o corpo da magistratura
dissolvido, e de todos os departamentos suprimidos e suas proprie-
dades, uma despesa que não posso precisar mas que, inquestiona-
velmente, deve ascender a muitos milhões franceses. Outro dos
novos encargos é uma anuidade de quatrocentos e oitenta mil libras

260
·Nora do autor: "Não é de modo algum a roda a assembleia que me dirijo aqui,
eu só falo para aqueles que se escondem, ocultando em gazas sedutoras o fim a que a con-
duzem. É a eles que eu digo: o vosso objectivo, convenhamos, é retirar roda a esperança
do clero, e consumar a sua ruína; é isso que, não suspeitando em vós de nenhuma conspi-
ração gananciosa, de nenhuma preocupação com o conjunto dos títulos públicos, é isso
que devemos acreditar que os senhores têm em vista na terrível operação que propõem,
é o que deve ser o seu fruto. Mas o povo que empenhais nisso, que vantagem pode retirar
daí ? Em vos servindo dele constantemente que fazeis por ele? Nada, absolutamente nada.
Ao contrário, fazeis o que leva a sobrecarregá-lo de novos encargos. Rejeitastes, com o
seu prejuízo, uma ofe rta de quatrocentos milhões, cuja aceitação poderia tornar-se um a
forma de aliviá-lo, e substituístes este recurso, tão vantajoso quanto legítimo, por uma
injustiça ruinosa, que, segundo vós mesmos, sobrecarrega o tesouro público e, por conse-
guinte, o povo, de um acréscimo de despesa anual de cinquenta milhões pelo menos e de
um reembolso de !50 milhões.
Infeliz povo! Eis o que vos rendeu o resultado final da expropriação da Igreja e a
dureza dos decretos tributários, do tratamento dos ministros de uma religião benfazeja.
Futuramente estão a vosso cargo: a sua caridade aliviava os pobres, e vós ireis ser obrigados
a prover à sua manutenção". [em francê s no original]- De l'État de la France, p. 81. Ver
também p. 92 e as páginas seguintes.
330

esterlinas, a serem pagas (se eles resolverem cumprir o prometido)


em p arcelas diárias, como rendimento dos primeiros assignats. Será
que alguma vez se deram ao trabalho de decl arar com honestidade
a desp esa da administração das terras d a Igreja nas mãos dos mu-
nicípios e de uma legião dos seus representantes anónimos, a cujo
cuidado, competência e diligência escolheram atribuir o encargo
destas prop ried ades, ac to cujas consequências foram apontadas, tão
habilmente, pelo Bispo de N ancy? 26 1

Mas nem é preciso determo-nos nestes encargos obviamente


maiores. Alguma vez eles fi zeram algum ponto de situação objec-
tivo do grande encargo que era tudo, isto é, da totalidade das insti-
tuições municipais e ge rais de todo o tipo e os compararam com as
receitas regul ares dos rendimentos ? ~alqu e r falha nestas torna-se
um encargo sobre as p ropriedades confiscadas, antes que o credor
possa plantar as suas couves em meio hectare das terras d a Igreja.
Não há outro esteio que impeça o Estado de cair por terra senão
esta confiscação. Nesta situação cobriram de espessa névoa, propo-
sitad amente, tudo o que deveri am ter clarificado com cuidado, de-
pois, de olhos vendados, como os bo is q ue cerram os olhos quando
investem, levam os seus escravos, de facto de olhos vendados, mas
não mais qu e os seus amos, à p onta de baioneta, a tomar p or moeda
as suas fi cções e a engolir pílulas de papel a trinta e quatro milhões
de esterlinas a dose. D epo is, mantém o rgulhosamente a pretensão
a um futuro créd ito, tendo fa lhado todos os seus compromissos
anteriores e, numa altu ra em que (se algo pode ser claro nestas ma-
téri as) é claro que as mais-vali as d as p ropriedades nunca chegarão
nem para pagar a sua p rimeira hipoteca, isto é, a dos quatrocen-
tos milhões (ou dezasseis milhões de esterlinas) em assignats. Em
todo este p roced imento não co nsigo disce rnir nem o sólido bom
senso do negócio h onesto, nem a destreza súbtil d a fraude enge-
nhosa. As obj ecções dentro da Assembleia para que se levantassem
as comportas para esta inundação de fraude não têm resposta, mas
61
' N .T. Anne- Lou is-H enri de la Fare ( 1752- 1829).
331

são meticulosamente refutados na rua por cem mil especialistas em


finanças. Estes são os números com os quais os metafísicos da arit-
mética fazem contas. Estes são os grandes cálculos em que se baseia
o filosófico crédito público em França. Não podem arranjar abaste-
cimentos, mas podem mobilizar a populaça. Deixem-nos rejubilar
com os aplausos do clube em Dundee 262 pela sua sabedoria e pa-
triotismo por terem saqueado os cidadãos para o serviço do Estado.
Não se ouviu nenhuma intervenção dos directores do Bank of En-
gland a este propósito - embora a sua aprovação tivesse um pouco
mais de peso na balança do crédito que aquele clube em Dundee.
Mas, para fazer justiça ao clube, eu acredito que os cavalheiros que
o compõem são mais sensatos do que aparentam, que serão menos
liberais com o seu dinheiro do que com as suas intervenções, e que
não dariam nenhuma das suas notas escocesas, mais gasta e amarro-
tada que fosse 263 , por vinte dos vossos mais belos assignats.

No início deste ano a Assembleia emitiu dezasseis milhões


de esterlinas em papel moeda. A que estado a Assembleia levou os
vossos negócios para que o alívio proporcionado pelo reforço de
um montante tão elevado tivesse passado despercebido? Este pa-
pel também sofreu uma quase imediata desvalorização de cinco por
cento, que em pouco tempo chegou a sete por cento. O efeito des-
tes assignats na receita dos impostos é notável: o Senhor Necker é
da opinião que os cobradores de impostos que recebem em moeda
pagam ao tesouro em assignats. Ao receberem em dinheiro e pa-
garem em papel-moeda desvalorizado, os cobradores de impostos
lucram sete por cento. Não era muito difícil prever que isto tinha de
ser inevitável. Todavia, nem por isso menos embaraçoso. O Senhor
Necker foi obrigado a comprar prata e ouro para a Casa da Moeda

61
' N.T. Refere-se ao clube escocês "Friends of Liberry".
163
N.T. A expressão usada é "a dog's ear", que se aplica às páginas de um livro que
foram dobradas ou que encaracolaram nos cantos por excessivo uso, qu e não tem tradu-
ção direta em português. Cf. D aphne Gulland and D avid Hinds-Howell , Dictionmy of
English ldioms, London: Penguin Books, 2002, p. 53.
332

(creio que a maior parte no mercado londrino), num montante


de cerca de doze mil libras acima do valor da mercadoria. Este mi-
nistro foi de opinião que, qualquer que seja a sua virtude nutritiva
secreta, o Estado não pode viver apenas de assignats, que alguma
prata verdadeira era necessária, particularmente para a satisfação
daqueles que, tendo ferro nas mãos, não se previa que se·distinguis-
sem pela paciência, quando percebessem que, quando um aumento
lhes fosse concedido em dinheiro real, lhes seria de novo retirado
pelo papel-moeda desvalorizado. O ministro, numa angústia muito
natural, apelou para a Assembleia, pedindo que ordenassem que os
cobradores de impostos pagassem em espécie o que tinha sido rece-
bido em espécie. Não podia deixar de ver que, se o Tesouro pagava
três por cento pelo uso de uma moeda corrente que deveria retornar
a valer sete por cento menos que o valor a que o ministro a tinha
emitido, um tal negócio não poderia contribuir muito para o enri-
quecimento público. A Assembleia não fez caso desta recomenda-
ção. Estavam neste dilema: se continuassem a receber os assignats, o
numerário desapareceria do Tesouro, se o Tesouro recusasse receber
estes amuletos de papel, ou de alguma maneira os descontinuasse,
destruiria obrigatoriamente o crédito do seu único recurso. Parece
que então fizeram a sua opção e deram algum crédito ao seu papel-
-moeda tendo-o aceitado eles mesmos. Ao mesmo tempo, nos seus
discursos, fizeram uma espécie de declaração presunçosa, algo que
julgo estar acima da competência legislativa, isto é, que não existia
diferença entre o valor do numerário e o dos seus assignats. Este foi
o testemunho de um excelente e resoluto artigo de fé, pronunciado
sob anátema pelos veneráveis padres deste sínodo filosófico. Credat
quem quiser- não será certamente}udaeus Apella 264•
Uma nobre indignação levanta-se na mente dos vossos líderes
populares, ao ouvir que se compara a lanterna-mágica do seu espec-

264
N.T. Burke serve-se da frase de Horácio para ironizar a situação alterando-a,
no original encontra-se a ideia contrária a esta: Creddt iudeus Apel/a, o judeu Apella que
acredite, dizendo que só um judeu poderia acredi tar. Hor. S. 1.5. 100-101.
333

táculo financeiro com as fraudulentas exibições do Sr. Law265 • Não


podem suportar ouvir as areias do Mississípi serem comparadas
com a rocha da Igreja, sobre a qual eles próprios erguem o seu siste-
ma. Por favor refreiem este glorioso espírito até demonstrarem ao
mundo que terreno sólido há para os seus assignats, que eles não te-
nham previamente comprometido com outros encargos. Cometem
uma injustiça contra a notável mãe fraude se a comparam com a sua
degenerada imitação! Não é verdade que Law construísse apenas
sobre a especulação em relação ao Mississípi. Aumentou o comércio
das Índias Ocidentais, aumentou o comércio de África, acrescentou
o montante de todas as receitas agrícolas francesas. Tudo isto em
conjunto, inquestionavelmente, não podia sustentar a estrutura
cujo entusiasmo público, não ele, decidiu construir sobre estas ba-
ses. Mas, contudo, em comparação, estas eram ilusões magnânimas.
Presumiam e aspiravam a um crescimento do comércio de França.
Abriram-lhe a totalidade dos dois hemisférios. Não pensaram em
alimentar a França da sua própria substância. Uma grande imagina-
ção encontrou neste voo do comércio qualquer coisa de cativante.
Era o bastante para encandear o olho da águia. Não era feito para
atrair o faro de uma toupeira, fossando e enterrando-se na terra-
-mãe, como o vosso é. Os homens de então não tinham sido ainda
apoucados em relação às suas dimensões normais por uma filosofia
degradante e sórdida, nem feitos à medida de decepções vulgares e
baixas. Acima de tudo, lembrem-se de que, com imaginação gran-
diosa, os então gestores do sistema homenagearam a liberdade do
homem. Na sua fraude não houve acanhamento. Estava reservado
para o nosso tempo, apagar os pálidos reflexos da razão que podem
atravessar as sólidas trevas desta idade das luzes.

26
; N .T. Refe re-se a John Law que fo i um dos primeiros investidores na Compa-
nh ia do M ississíp i e cujo negócio e tod a a especulação que se ge rou à volta, inclusive com a
abertura de um banco para emissão de papel-moeda, constituiu urna bolha fi nanceira que
rebentou com grande escândalo entre 17 18 e 17 20.
334

Recordo-me que não disse nada de um esquema financeiro,


que pode recomendar-se a favor das habilidades destes cavalheiros,
e que tem sido introduzido com grande pompa, embora ainda não
definitivamente adoptado na Assembleia Nacional. Vem com algo
sólido em ajuda da credibilidade da circulação do papel-moeda, e
muito tem sido dito acerca da sua utilidade e elegância.- Refiro-me
ao projecto de converter em moeda os sinos das igrejas fechadas.
Eis a alquimia da Assembleia. H á disparates que frustram qualquer
raciocínio, que vão para além do ridículo e que não suscitam em
nós outro sentimento senão repulsa. Posto isto, não direi mais nada
acerca deste assunto.
Também não merece grande atenção todo o seu desenhar
e redesenhar da moed a para afastar o dia fata l, num jogo entre o
Tesouro e a Caisse d'Escompte, e todas aquelas manobras velhas e
desacreditadas de fraude mercantil, ago ra elevadas a política de Es-
tado. Com a receita pública não se brinca. A conversa fiada acerca
dos direitos do hom em não se rá aceite como pagamento de uma
bolacha ou de um arrátel de pólvora. Aqui, os metafísicos descem
das suas especulações etéreas e seguem fielmente o exemplo. ~e
exemplo? O exe mplo das falências. Mas derrotados, frustrados, de-
sacreditados, qu ando o seu alento, a sua força, as suas invenções e
as suas fantasias os abandonam, a sua confiança ainda se mantém
no terreno. No manifesto fracasso das suas habilidades fazem valer
a sua benevolênci a. Enquanto a receita pública desaparece nas suas
mãos, em alguns dos seus últimos comportamentos, têm a presun-
ção de se considerarem a eles mesmos benfeitores do povo. Não ali-
viam o povo. Se tinham essas intenções porque é que o obrigaram a
pagar impostos ofensivos? O povo auxilia-se a si mesmo, apesar da
Assembleia.
Mas, pondo de lado a discussão sobre quem pode reclamar
o mérito desta falsa ajuda, terá efectivamente havido algum alívio
para o povo sob alguma forma? O Senhor Bailly, um dos grandes
335

agentes do papel moeda, ilustra-nos acerca da natureza deste au-


xílio. O seu discurso à Assembleia Nacional contém um solene
e elaborado louvor aos habitantes de Paris, acerca da constância e
inquebrantável determinação com que eles suportaram rodas as
suas afli ções e misérias. Um bom quad ro de felicid ade pública !
O quê ? Muita co ragem e invencível fir meza de espírito para supo r-
tar benefícios e aguentar compensações? Pelo discurso deste alcaide
erudi ro 266 poderia pensar-se que os parisienses nestes últimos doze
meses tinham sofrido as dific uldades de algum terrível bloqu eio
- que H enriqu e IV tinha co rtado as vias do se u abastec imento e que
a artilharia de Sully26- troava às porras de Paris - quando, de facto,
o único inimigo que os cerca é a sua própria loucura e tolice, a sua
próp ria credulidade e perve rsão. Mas o Senhor Bailly mais depressa
derreterá o gelo eterno das suas regiões atlânticas que devolverá a
Paris o seu calor vital, enquanto este permanecer "atingido pelo ca-
-cete frio, seco e perrificante" 268 de uma fil osofi a falsa e implacável.
Pouco tempo após este discurso, isto é, em treze de Agosto passado,
o mesmo magistrado, ao prestar contas do seu governo no tribunal
da mesma Assembleia, expressa-se nos seguintes termos: -- "no mês
de Julho de 1789" (período para comemorar eternamente), "as fi-
nanças da cidade de Paris ainda estavam em ordem, a despesa era
contrabalançada pela receita, e a cidade tinha naquela altura acu-
mulado um m ilhão no banco [quarenta mil libras esterlinas ]. As
despesas em qu e foi forçada a incorrer, na sequência da R evolução,
ascendem a dois milhões e quinhentas mil livres. Por causa destas
despesas, e da grande quebra nas doações livres, aconteceu não ape-
nas uma momentânea, mas uma total falta de dinheiro". Este é o
Paris para cuja alimentação tão grandes somas foram d ispendidas

!óó N .T. Trata·se de Jea n·Sylvai n Bailly, astró nomo e mem bro da Academ ia das
Ciê ncia . Fo i o M aire de Paris de 1789 a 179 1. Foi gui lh otinado durante o pe ríod o do
te rro r em 1793.
26
- N .T. M axi milien de Béthu ne, M arquês de Rosn,·, D uque de Su lly ( 1560·
-164 1). Foi um militar hugue note ao se rviço de H enrique IV.
N. T. f. Joh n Milton, Paradise L ost. X, 293--t.
336

ao longo do ano passado, retiradas de pontos vitais de toda a Fran-


ça. Enquanto Paris estiver no lugar da Roma antiga, será mantida
pelas províncias que lhe estão sujeitas. É um mal inevitavelmente
concomitante ao domínio soberano das repúblicas democráticas.
Tal corno aconteceu em Roma, pode acontecer que o mal sobreviva
ao domínio republicano que o originou. Neste caso, o próprio des-
potismo terá de submeter-se aos vícios da popularidade. Roma, sob
os seus imperadores, juntava os vícios de ambos os sistemas, e esta
combinação contranarura foi urna das grandes causas da sua ruína.
Dizer ao povo que a delapidação dos seus bens públicos é para ele
urna ajuda é um abuso cruel e insolente. Os homens de Estado antes
de se gabarem de terem aliviado o povo com a destruição da receita
pública, precisam primeiro ter em atenção a solução deste proble-
ma: se será mais vantajoso para o povo, pagar consideravelmente e
ganhar em proporção, ou ganhar pouco ou nada e estar desobriga-
do de toda a contribuição? Eu estou decidido a favor da primeira
proposição. A experiência está a meu favor e, quero crer, as melho-
res opiniões também. Manter um equilíbrio entre o poder de aqui-
sição da parte dos súbditos e as necessidades do Estado a que eles
devem atender é parte fundamental da competência de um verda-
deiro político. Os meios de aquisição têm prioridade no tempo e na
negociação. A boa ordem é o fundamento de todas as coisas boas.
Para que seja capaz de adquirir o povo deve, sem ser servil, ser dócil
e obediente. O magistrado deve ser respeitado e as leis devem ter
a sua autoridade. A massa do povo não deve ver desenraizados do
seu espírito, por habilidades, os princípios da subordinação natural.
Devem respeitar a propriedade de que não podem compartilhar.
Precisam de trabalhar para obter o que pode ser obtido pelo traba-
lho e quando descobrem, corno vulgarmente acontece, que o êxito
não é proporcional ao esforço, precisam ser ensinados a encontrar
consolação no quinhão final da justiça eterna. ~em os privar desta
consolação diminui a sua iniciativa e ataca a raiz de toda a aquisi-
ção bem corno de toda a conservação. ~em faz isto é um opressor
337

cruel, um inimigo implacável do pobre miserável, ao mesmo tempo


que expõe, pelas suas especulações maldosas, os frutos da iniciativa
bem sucedida e a acumulação de riqueza ao saque dos negligentes,
dos desiludidos e dos fracassados.

Um grande número de financeiros de profissão não vê na re-


ceita pública senão bancos, câmbios, pensões vitalícias, rendas per-
pétuas, tontinas 269 e todas as outras minudências da loja. Num Es-
tado bem ordenado estas coisas não são para serem menosprezadas,
nem a habilidade nelas é para ser subestimada. Elas são boas, mas
apenas enquanto participam dos efeitos da boa ordem estabelecida
e se baseiam nela. Mas, quando os homens pensam que estas pobres
invenções podem constituir um recurso para os males que resultam
da destruição dos fundamentos da ordem pública, e de causar ou
consentir que os princípios de propriedade sejam subvertidos, dei-
xarão na ruína do seu país um monumento triste e duradouro dos
efeitos de políticas absurdas e de um discernimento mesquinho,
presunçoso e de vistas curtas.

Os efeitos da incapacidade demonstrada pelos líderes popu-


lares em todos os grandes assuntos públicos são para serem apaga-
dos, pelo "termo que justifica tudo", Liberdade. Em algumas pes-
soas vejo de facto grande liberdade. Em muitas, senão mesmo na
maioria, vejo uma servidão degradante e opressiva. Mas o que é a
liberdade sem sabedoria e sem virtude? É o maior de todos os males
possíveis porque é o disparate, o vício, e a loucura, sem freio nem
tutela. Aqueles que sabem o que é a liberdade virtuosa não podem
suportar vê-la desvirtuada por cabeças incompetentes que apenas
têm na boca palavras sonantes. Eu não desprezo, estou certo disso,
sentimentos de liberdade, sublimes e exaltados Aquecem o coração,
engrandecem e elevam as almas e animam a nossa coragem em tem-
po de conflito. Velho como sou, leio com prazer os belos êxtases

269
N.T. Tomina, modalidade de associação mútua concebida pelo italiano Lou·
renço Tomi (séc. XVII ) .
338

de Lucano e Corneillé70 • Nem condeno totalmente os pequenos


artifícios e estratagemas da popularidade. Facilitam a conquista de
muitos pontos importantes: mantém o povo unido, vivificam o es-
pírito nos seus esforços e, de vez em quando, difundem a alegria so-
bre a testa severa da liberdade moral. Todo o político deve sacrificar
às Graças e juntar a amenidade e a razão. Mas num empreendimen-
to como esse da França todos estes artifícios e sentimentos subsi-
diários servem de muito pouco. Fazer um governo não requer gran-
de prudência. É estabelecer a sede do poder e ensinar a obediência
e o trabalho está feito. Dar a liberdade é ainda mais fácil. Não é ne-
cessário orientar, requer apenas soltar as rédeas. Mas formar um go-
verno livre, isto é, combinar os elementos opostos da liberdade e da
restrição numa obra consistente, requer mais inteligência, profunda
reflexão e uma mente sagaz e poderosa que os combine. Isto eu não
encontro naqueles que lideram a Assembleia Nacional. Talvez eles
não sejam tão desgraçadamente inaptos quanto aparentam. Prefiro
acreditar nisso. Porque de contrário seria colocá-los abaixo do nível
de inteligência comum. Mas quando os líderes escolhem compe-
tir uns com os outros pela popularidade, os seus talemos servirão
de pouco para a construção do Estado. Tornar-se-ão aduladores
em vez de legisladores, os instrumentos e não os guias do povo. Se
acontecer que alguém proponha um plano de liberdade limitado e
definido sobriamente com qualificações convenientes, será imedia-
tamente ultrapassado pelos seus adversários, que produzirão algo
mais esplendidamente popular. Serão levantadas suspeitas acerca da
sua fidelidade à causa. A moderação será censurada como a virtu-
de dos cobardes e o compromisso como a prudência dos traidores,
até que, na esperança de preservar o crédito que pode permitir-lhe
temperar e moderar em certas ocasiões, o líder popular é obrigado
a propagar activamente doutrinas e estabelecer poderes que hão-de

n 1 .T. Marcus Lucanus (65-39 a. C.), poera romano. Pierre Corneille ( 1606-
-1684 ), dramaturgo francês.
339

depois fazer malograr qualquer propósito sóbrio que ele próprio


pudesse querer atingir.

Mas serei eu tão insensato que não veja nada que mereça elo-
gio nos trabalhos incansáveis desta Assembleia? Eu não nego que,
no meio de uma infinidade de actos de violência e loucura, algum
bem possa ter sido feito. ~em destrói tudo há-de certamente ter
acabado com alguma injustiça. Aqueles que fazem tudo de novo
têm a probabilidade de poder estabelecer alguma coisa boa. Mas
reconhecer-lhes mérito pelo que fizeram em virtude da autorida-
de que usurparam, ou desculpá-los dos crimes por meio dos quais
adquiriram essa autoridade, pareceria que estas mesmas coisas não
se poderiam ter conseguido sem levar a cabo uma tal revolução. Se-
guramente que teriam podido, porque quase todas as regulamen-
tações que fizeram, e que não são muito erradas, dizem respeito
ou a pomos que lhes tinham sido volumaria e antecipadamente
entregues pelo rei aquando da reunião dos Estados Gerais, ou às
instruções dadas na mesma ocasião às ordens. Alguns costumes fo-
ram abolidos com um fundamento justo, mas eram tais que, se se
tivessem mantido tal qual estavam por toda a eternidade, em pouco
teriam diminuído a felicidade e prosperidade de qualquer Estado.
As melhorias da Assembleia Nacional são superficiais e os seus erros
fundamentais.

Preferia que os meus compatriotas recomendassem ames aos


nossos vizinhos, fossem eles quais fossem, o exemplo da Constitui-
ção Britânica do que tomassem o modelo das constituições estran-
geiras para melhorarem a nossa. Com a nossa Constituição rece-
beram um inestimável tesouro. Penso que têm alguns motivos de
preocupação e de queixa, mas não se devem à Constituição mas à
sua conduta. Julgo que a nossa feliz situação se deve à nossa Cons-
tituição - e deve-se a todo o seu conjunto e não a nenhuma das
suas partes isoladamente-, deve-se, em grande medida, àquilo que
fomos deixando ficar nas nossas várias revisões e reformas consti-
340

tucionais e também àquilo que fomos acrescentando ou alterando.


O nosso povo encontrará uma tarefa à altura de um espírito verda-
deiramente patriótico, livre e independente, protegendo da viola-
ção o que possui. Também não excluiria a alteração, mas, mesmo
quando mudasse, seria para preservar. Seria levado a mudar para
remediar uma grande injustiça. No que fizesse, seguiria o exemplo
dos nossos antepassados. Faria a reparação o mais aproximadamen-
te possível ao estilo do edifício. Uma moral - mais do que uma
complexa timidez- uma prudência política, e uma moderação cau-
telosa, estavam entre os princípios orientadores dos nossos antepas-
sados na sua conduta mais decisiva. Não sendo iluminados com as
luzes com que estes cavalheiros de França se dizem tão iluminados,
actuaram sob a convicção profunda da falibilidade e ignorância
humanas. E Aquele, que os criou assim falíveis, recompensou-os
por terem atendido à sua natureza na sua conduta. Imitemos a sua
prudência se queremos merecer a sua sorte ou manter o seu legado.
Acrescentemo-lo se quisermos, mas preservemos aquilo que nos
deixaram. E, mantendo-nos no chão firme da constituição britâni-
ca, contentemo-nos com admirar os aeronautas franceses em vez de
tentarmos segui-los nos seus voos desesperados.
Contei-lhe com ingenuidade os meus sentimentos. Julgo que
não é provável que eles alterem os seus. Nem sei se devem alterá-los.
O Senhor é novo, não pode guiar os destinos do seu país, deve an-
tes segui-los. Mas, doravante, os meus sentimentos podem ser-lhe
úteis, nalguma forma futura que o seu país adopte. Como ele está
não pode ficar. Mas, antes de se estabelecer definitivamente, pode
ser obrigado a passar - como um dos nossos poetas disse - "por
uma grande diversidade de novas formas de ser" 27 1 e em todas estas
transmigrações ser purificado pelo fogo e pelo sangue.
O que recomendo nas minhas opiniões é a muita observação
e imparcialidade. Vêm de alguém que não foi um joguete do poder,

n N.T. Addison, Cato, V, 1.


341

nem um bajulador da grandeza e que nos seus actos derradeiros não


quer desdizer o teor da sua vida. Vêm de alguém cuja vida pública
foi quase toda ela um combate pela liberdade dos outros, de um
homem que só alimentou um ódio durável e intenso pelo que con-
siderou ser tirania, e que se convenceu que pertencia a esse mesmo
combate as horas que empregou nos vossos assuntos, com o que
partilhou os esforços feitos pelos homens de bem para desacreditar
um grande despotismo. Vêm de alguém que tem em pouca con-
ta honras, distinções e recompensas, e que, de todo, não as espera
- que não tem desprezo pela fama , nem medo da calúnia -, que
evita a controvérsia, embora corra o risco de opinar, de alguém
que quer preservar a sua coerência, mas que preservará a coerên-
cia variando os meios para assegurar a unicidade do seu fim, e que,
quando o equilíbrio do barco em que navega pode estar em risco de,
pelo peso, sobrecarregar um dos lados, está desejoso de carregar o
pequeno peso dos seus argumentos para o lado que pode preservar
esse equilíbrio.
Esta edição de Reflexões sobre a Revolução em França,
de Edmund Burke, foi composta, impressa e brochada nas
oficinas das Artes Gráficas da APPACDM de Braga
para a Fundação Calouste Gulbenkian.

A tiragem é de 750 exemplares


Novembro de 2015
Depósito Legal n.o 401257/15
ISBN: 978-972-31-1575-8

Você também pode gostar