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Como muitas outras pessoas, conheci os puritanos por meio dos escritos do Dr.

Packer, em
relação a quem, portanto, nutro uma dívida de gratidão. Neste volume, ele, mais uma vez,
se destaca: aqui estão apresentações cheias de reflexão de alguns dos principais
pensadores puritanos e de suas obras, além de um manifesto puritano voltado aos pastores
de hoje. Este é o Packer clássico. Em uma época de modernismos, aqui está um alimento
sólido para a igreja e para a alma.
Carl R. Trueman
Professor de Estudos Bíblicos e Religiosos no Grove City College, Grove City, Pensilvânia

Quando me pediram para recomendar um livro sobre os puritanos, Entre os gigantes de


Deus, de J. I. Packer, naturalmente me veio à mente. Com o lançamento deste livro — uma
pesquisa nova e espiritualmente revigorante de vários pastores e teólogos puritanos
importantes —, agora posso sugerir um segundo volume que deve ser lido. “O cristianismo
puritano”, diz Packer, “era algo sério”. Assim também deve ser nosso cristianismo, e
simplesmente não há melhor guia turístico para explorar a fé e a espiritualidade dos
puritanos que J. I. Packer. Altamente recomendado!
Sam Storms
Pastor líder da Bridgeway Church,
Oklahoma City, Oklahoma
Com suas típicas facilidade de estilo, clareza de pensamento e visão teológica, o Dr. Packer
nos apresenta a vida e o pensamento de sete dos grandes mestres de todos os tempos a
respeito do que um deles chamou de “a vida de Deus na alma do homem”. Este livro é um
deleite para qualquer pessoa com papilas gustativas espirituais saudáveis.
Sinclair B. Ferguson
Professor de Teologia Sistemática,
Reformed Theological Seminary
A melhor maneira de conhecer grandes homens é por meio de uma apresentação pessoal
feita por alguém que os conheça bem. É exatamente isso que J. I. Packer faz neste livro,
apresentando-nos a vários expoentes da mentalidade puritana dos séculos 16 a 18. Mas
isso é mais que uma biografia. Como Packer faz tão bem, neste livro os puritanos se tornam
espelhos nos quais podemos ver as verdades celestiais sobre evangelho, evangelismo,
crescimento espiritual e sofrimento. Agradeço a Deus pela reunião deste material —
anteriormente disperso — em um só volume, e prevejo que será uma bênção para muitas
pessoas.
Joel R. Beeke
Reitor, Puritan Reformed Theological Seminary,
Grand Rapids, Michigan
Ao longo dos anos, J. I. Packer convenceu muitos de nós de que, se quisermos ser mais
que pigmeus espirituais, teremos de passar algum tempo na companhia dos puritanos.
Agora, neste livro elegante e envolvente, ele nos mostra o caminho mais acessível e
inspirador para eles. Obrigado, Dr. Packer, obrigado!
Michael Reeves
Reitor e professor de Teologia, Union School of Theology, Oxford, Inglaterra
J. I. Packer tem uma habilidade ímpar na igreja de hoje: ele traz os puritanos de volta à
vida e os faz cantar, como bem atestam as exposições biográficas contidas neste livro. De
fato, Jim Packer é um puritano do tipo mais cativante, persuasivo e irênico. Quando jovens
ministros me perguntam o que devem estudar para fortalecer sua vida espiritual, costumo
responder: “Leiam os puritanos com Packer!”. Esse é um bom conselho a todos os cristãos.
Timothy George
Deão da Beeson Divinity School, Samford University, Birmingham, Alabama
Editor executivo, Christianity Today Magazine
Índice
Prólogo: O caminho devocional
PARTE 1: PASTORES PURITANOS EM PERSPECTIVA
PARTE 2: O PERFIL DOS PASTORES PURITANOS
Introdução: Sete retratos
1. Henry Scougal A vida de Deus na alma humana: O coração
da religião
2. Stephen Charnock Cristo crucificado: A essência do
Evangelho
3. John Bunyan A corrida da fé: Uma jornada em direção ao céu
4. Matthew Henry O deleite da vida cristã: O prazer de viver
para Deus
5. John Owen A mortificação do pecado: Guerreando contra a
velha natureza
6. John Flavel Um novo coração: Deleitando-se no amor de
Deus
7. Thomas Boston A - A arte de pescar homens: O ministério de
alcançar os perdidos
7. Thomas Boston B - Pedagogia do sofrimento: A soberania de
Deus nas aflições dos santos
Thomas Boston C - Teologia do arrependimento: O caminho
para deixar o pecado e voltar-se para Deus
PARTE 3: DOIS PARADIGMAS PURITANOS
Um pioneiro puritano: William Perkins
Um homem para todos os ministérios: Richard Baxter
Estrutura_Pastoiral_Puritana
Se, hoje, você adquire um livro que se anuncia como devocional,
ou que foi comercializado como tal, não espera encontrá-lo
composto de sermões expositivos ou ensaios — doutrinários ou
históricos. Livros com conteúdo dessa natureza não se
autodenominam devocionais, e os autoproclamados nessa categoria
são compostos, em geral, por meditações e orações sobre aspectos
da vida diária, e nada mais. Há algo estranho nisso? Sugiro que sim.
Ao que me parece, está refletida aqui a ideia de devoção a Deus
raquítica e centrada no homem, ideia que se tornou bem comum na
atualidade. Como ocorre com boa parte do vocabulário cristão
histórico, devoção é uma palavra banalizada e secularizada nos dias
de hoje. Falamos abertamente de devoção a uma causa, ao cônjuge,
aos filhos ou ao trabalho, mas é raro ouvir falar de devoção a Deus.
Por quê? Será que não somos devotados a Deus como nossos
antepassados, ou será que encobrimos essa devoção de uma forma
que nossos predecessores não faziam? Seja qual for o motivo, o fato
é o seguinte: nossa ideia de devoção parece bem estreita. No
passado, devoção significava crer em Deus Pai, Filho e Espírito, com
lealdade e amor, de todo o coração e com todo o entendimento,
toda a alma e toda a força; ter uma concentração obstinada em
louvar e agradar a Deus como as principais atividades de nossa vida.
E, incluído na compreensão da devoção, estava o desejo de
aprender a sabedoria do estudo didático e da exposição das
Escrituras. No passado, os termos pregação e devoção eram vistos
como correlatos — o ensino fiel da Bíblia alimentava os ouvintes com
a verdade, para que nela confiassem, assimilando-a e vivenciando-a,
e os cristãos fiéis buscavam e ansiavam por uma demonstração
didática de pensamento e ensino bíblico para moldar sua gestão
pessoal, tanto na convivência com Deus como no relacionamento
com a família, com os amigos, colegas e outras pessoas em geral.
Alguns exemplos do ministério expositivo no sentido devocional,
como já foi desejado e apreciado, incluem a pregação de C. H.
Spurgeon, que, durante seu empenho de quarenta anos em
apresentar a graça salvadora de Cristo, cobriu praticamente tudo em
relação à doutrina cristã, à ética e à vida espiritual; a exposição
comentada da Bíblia feita por Matthew Henry, guarnecida com
observações práticas e perspicazes de todos os tipos; e muitas
outras produções homiléticas dos puritanos, cuja seleção é
apresentada nas páginas que se seguem.
Poderíamos nos referir aos sermões de Spurgeon, aos volumes
extraordinários de Matthew Henry ou aos sermões gigantescos de
Stephen Charnock em The Existence and Attributes of God [A
existência e os atributos de Deus], ou ainda às extensas exposições
de qualquer outro escritor puritano, como devocionais? Duvido que
boa parte de nós falasse dessa maneira, mas acho que todos nós
devemos fazê-lo, pois, da forma como compreendo o conceito de
devoção, isso é o que eles realmente são. Peço aos meus leitores
que pensem desde o início nos puritanos como escritores
devocionais, e espero, até o final deste livro, convencê-los de que
realmente é assim. E se, de fato, este meu livro vier a ser
considerado um devocional que apresenta outros devocionais e seus
autores, ninguém ficará mais satisfeito que eu.
J. I. Packer
I
Este livro concentra-se no clero puritano e em sua mensagem. E
você pode indagar de imediato: Mas por que isso deveria nos
interessar nos dias de hoje? Os puritanos eram fanáticos arrogantes
e obstinados, não eram? E a era puritana (que durou cerca de um
século e meio, de 1560 a 1710) foi há muito tempo e está muito
distante, muitas luas antes da tecnologia industrial. Além disso,
mais recentemente, a tecnologia da informação assumiu a ordem
da vida civilizada; como, então, vozes de um passado tão remoto
podem ajudar-nos agora? Não é como se qualquer elemento do
puritanismo mudasse a sociedade ocidental de uma forma
permanentemente decisiva; pelo contrário, o puritanismo, da forma
como popularmente percebido — e como memória cultural
ocidental —, atualmente é um ponto de referência para um modo
de vida acanhado, restrito e inibido que, desde o final do século 17,
o Ocidente rejeitou de forma explícita — não é? Então, não é
verdade que o puritanismo — independentemente do que
significava em sua época — é um episódio histórico que merece ser
esquecido e que a espiritualidade puritana, por mais bem-
intencionada que tenha sido em seu tempo, deve ser considerada
irrelevante para a vida moderna?
A resposta é não. A sabedoria proverbial nos adverte contra
deixar o bebê ser lançado fora com a água do banho, mas é isso
que a maior parte do cristianismo evangélico fez com sua herança
puritana nos últimos três séculos, e os resultados são claramente
infelizes. Sem dúvida, havia uma grande quantidade de água do
“banho puritano” que tinha de ser lançada fora, mas a visão
puritana essencial da vida cristã como uma combinação de
obediência estruturada e esperança baseada na liberdade em — e
por meio de — Cristo e nas promessas de graça, sustentando uma
estreita comunhão com Deus, era uma síntese preciosa que os
cristãos deveriam valorizar, mas infelizmente não o fizeram.
O clero deveria ter ensinado isso, mas, lamentavelmente, não o fez.
Então, a esse respeito, hoje vivemos em uma espécie de vácuo — e
isso é bem visível. Muitos ministros não estão certos sobre o que
dizer às suas congregações sobre santidade e piedade, e muitas
pessoas da igreja estão completamente perdidas quando se trata
de compreender, recomendar e viver a vida cristã. Essas são
deficiências que uma compreensão do cerne do puritanismo é
capaz de curar.
As páginas a seguir incorporam a crença de que, assim como
Isaque cavou novamente os poços de seu pai, Abraão, que os
filisteus preencheram (Gn 26.18), hoje precisamos voltar a cavar os
poços da sabedoria puritana em relação à verdade, à graça e à vida
do evangelho. Meu plano é apresentar, em relação a esses tópicos,
alguns dos mestres mais ilustres. Mas, para fornecer uma moldura
para seus retratos convincentes, tenho de começar esboçando a
realidade dinâmica da qual eles faziam parte, ou seja, o movimento
puritano propriamente dito.
Em primeiro lugar, é necessário dizer que aqueles que se
identificavam com esse movimento não se autodenominavam
puritanos, nem recebiam bem esse rótulo quando outros o
aplicavam a eles, pois soava em seus ouvidos o que parece ter sido
originalmente um insulto, um termo abusivo, envolvendo farisaísmo
censório, como Sir Toby Belch, de Shakespeare, detectou em
Malvólio,1 junto com falta de lealdade à Igreja da Inglaterra e o
desejo oculto de se separar dela. Além de “os piedosos” e “os
irmãos”, essas almas zelosas não tinham nomes para o movimento
em si ou para si mesmas como parte dele. O que eles fizeram foi
formar redes informais de grupos cheios de vivacidade, unidos por
saberem que a promoção do reino de Deus na Inglaterra — e sua
glória por meio disso — era o que todos eles buscavam. Pregação,
oração, “conferência” entre si sobre alguns tópicos do reino, vida
familiar ordenada e a guarda do Dia do Senhor os marcaram. Todas
as esferas da vida eram representadas em suas fileiras lideradas
pelo clero, todas, de uma forma ou de outra, ativas na busca de
seus objetivos em comum. Seu ativismo chamava atenção e gerava
muita hostilidade entre aqueles que não compartilhavam os
mesmos objetivos. Mas não é demais dizer que, por cem anos, de
1560 a 1660, foi o movimento puritano que teve a maior
participação na vida religiosa da Inglaterra.
O movimento teve duas áreas de preocupação e ação. Uma delas
foi a configuração organizacional da Igreja da Inglaterra, desde seu
Livro de Oração Comum até sua hierarquia episcopal; todos os
puritanos queriam alinhar-se com o que outras igrejas reformadas
haviam feito — e Elizabeth, a líder titular da Igreja, não estava
preparada para mudar nada disso. A segunda e maior preocupação
era a conversão da Inglaterra a uma fé evangélica vital, o que eles
pensavam que poderia ser alcançado por um ministério eficaz nas
paróquias. Parece que a maioria dos irmãos se preocupava com as
duas agendas, mas atuava principalmente em uma delas. Neste
livro, a segunda é a nossa preocupação.
A Inglaterra elizabetana era principalmente rural, e muitos fiéis
em seus vários milhares de paróquias eram analfabetos. Um
conservadorismo religioso tenaz, que remonta aos dias da pré-
Reforma, era generalizado, e as atitudes em relação ao
assentamento religioso vigente eram, em geral, frias e distantes. No
entanto, de forma providencial, como podemos pensar, a cultura da
Inglaterra tinha um profundo senso da realidade do Deus Santo,
que impacta todas as vidas; da autoridade da Bíblia, há muito
encerrada em latim, mas agora disponível em inglês a qualquer
pessoa que se visse motivada a lê-la; e da autoridade do clérigo
como pregador e docente, caso ele escolhesse cumprir essas
funções (nem todo clero o fazia). Além disso, a frequência à igreja
era exigida por lei. Tudo isso deu aos pastores puritanos uma
grande plataforma de lançamento para decolar em seus esforços
pastorais.
Na virada do século 16, os ativistas da reforma da Igreja no
movimento haviam efetivamente disparado. Os enérgicos
propagandistas clericais haviam feito, com bastante vigor, uma
campanha por: revisão ou abolição do Lecionário; a ordenação da
igreja presbiteriana em todo o país; e a liberdade de não recorrer a
cerimônias, o que, em sua opinião, tendia a manter a descrença e o
financiamento público no caso de estagiários ministeriais nas
universidades. Eles tentaram estabelecer reuniões locais de ensino
da Bíblia (“profecias”) como parte regular da vida eclesiástica e,
com sabedoria ou imprudência, alguns se juntaram em uma
aventura para ver o que satirizar a hierarquia poderia causar (os
tratados de Marprelate). Contudo, perderam todas as batalhas
travadas. Eles não dispunham de recursos, energia ou moral para
lutar mais. Mas, à medida que o reformismo ia diminuindo, os
esforços de discipulado começaram a decolar. A tocha foi acesa em
1570, quando um jovem nobre chamado Richard Greenham decidiu
abandonar Cambridge e se tornar ministro na região interiorana de
Dry Drayton, numa paróquia nos arredores da cidade. Os elevados
padrões de ministério que Greenham mantinha como pregador,
pastor e conselheiro pessoal despertaram a imaginação e fizeram
de seu nome uma palavra familiar na Ânglia Oriental. Além disso,
ele havia desenvolvido um sistema de aprendizagem voltado a
alunos de ministério que viviam com ele e aprenderam seu ofício
através do envolvimento em seu trabalho, sob sua supervisão
direta; então, eles levaram sua sabedoria consigo para seus
próprios postos pastorais.
Greenham, portanto, como costumamos dizer, começou a fazer
barulho, e outros estavam começando a fazer o mesmo. Um de
seus alunos, Henry Smith, tornou-se um pregador devocional que,
por anos a fio, foi assunto em Londres. Enquanto isso, um
contemporâneo de Cambridge, William Perkins, um piedoso erudito
com talento para celeridade, clareza e acuidade na escrita, deu
início, na década de 1580, a uma longa série de livros devocionais
práticos para levar as pessoas comuns a viverem uma vida de fé
em Jesus Cristo. Esses livros preenchiam uma lacuna; nada
parecido existira antes disso, e as obras eram vendidas de forma
ampla, estabelecendo, assim, o princípio puritano de que um hábito
útil, desejável e realmente necessário para os crentes letrados era
ler “bons livros”, como eram chamados. A visão de uma literatura
cobrindo todos os aspectos da vida cristã se estabeleceu e, naquela
era “pré-sobrecapa”, as folhas de rosto individuais refletiam isso.
Assim, em 1603, Richard Rogers publicou uma página de abertura
no livro anunciando-se como Seven Treatises, Containing Such
Directions as is gathered out of the holie Scriptures, leading and
guiding to true happiness, both in this life and in the life to come;
and may be called the practice of Christianitie, pro table for all such
as heartily desire the same; in the which, more particularly true
Christians may learne how to leade a godly and comfortable life
every day (8.ª ed., 1630) [Sete tratados, contendo as orientações
reunidas nas Sagradas Escrituras, conduzindo e guiando para a
verdadeira alegria, tanto nesta vida como na vida futura; e podem
ser chamados de prática da cristandade, proveitosa a todos os que
desejam o mesmo de coração; deles especialmente os verdadeiros
cristãos podem aprender como ter uma vida piedosa e agradável
todos os dias].
Em um tempo surpreendentemente curto, o puritanismo criou
para si uma biblioteca inteira de livros de instrução menores,
geralmente séries de sermões impressos, cobrindo, de maneira
doutrinária e homilética, todos os muitos aspectos da carreira e
peregrinação da vida cristã, da forma como o puritanismo a
compreendia, e como Bunyan retratou, de modo clássico, em O
peregrino. Quando, em 1673, em seu volumoso Christian Directory
[Diretório cristão], Richard Baxter se propôs a recomendar “a
menor ou menos dispendiosa biblioteca tolerável” a um pregador,
nomeou cinquenta e oito “autores ingleses práticos e afetuosos” e
instou o aspirante a pregador a colecionar suas obras — “tantas
quantas você puder”. Aqui, o termo afetuoso significava despertar
sentimentos motivacionais pelo uso da imaginação e da retórica
dramática; o termo prático, por sua vez, significava, assim como é
hoje, deixar claro o que deve ser crido e feito. Era a literatura cristã
popular sobre doutrina, dever e devoção produzida pelo
puritanismo que Baxter recomendava, e é por meio dessa literatura
que hoje podemos apreciar a excelência especial do ministério
pastoral puritano.
II
O cristianismo puritano era algo sério. Veja a resposta de Richard
Rogers à reclamação do senhor feudal de que sua religião era
exageradamente correta: “Ó Senhor, eu sirvo a um Deus correto”.
Muitos puritanos, tanto leigos como clérigos, escreveram diários
para alcançar a honestidade interior, evitar o autoengano nas coisas
espirituais e manter-se perto de Deus.
Os pastores puritanos levavam sua vocação muito a sério: veja a
placa que estava na mesa de estudo de William Perkins: “Tu és um
Ministro da Palavra: Cuide de seus afazeres”; além do quê, os
pastores puritanos eram realistas, homens com “o pé no chão” ao
cumprir suas responsabilidades para com os membros de suas
congregações. A salvação em Cristo pela fé para cada um era seu
objetivo, e eles moldavam sua estratégia paroquial voltados a esse
propósito. Eles colocavam a pregação do evangelho em primeiro
lugar porque acreditavam que, na economia de Deus, esse era o
principal meio da graça pela qual Deus salva as almas; mas eles
reforçavam seu ministério de pregação com catequese, por um
lado, e aconselhamento, por outro, tornando-o, assim,
incomensuravelmente mais forte em seu impacto.
Para eles, a catequese era uma disciplina distinta do ensino das
crenças cristãs básicas, por meio de perguntas e respostas. Nos
séculos 16 e 17, todos os líderes da igreja protestante concordaram
que catequizar desde a infância até a idade adulta era um elemento
essencial na vida da igreja, sem o qual ela dificilmente teria
condições de sobreviver, ou mesmo de ter esperança nesse sentido.
O currículo de praticamente todos os catecismos daquela época
estava centrado nas doutrinas do Credo dos Apóstolos, nos deveres
assinalados pelos Dez Mandamentos e nos parâmetros de oração,
de acordo com o padrão estabelecido na Oração do Senhor,
conhecida como Pai-Nosso. O Livro de Orações da Igreja da
Inglaterra continha um catecismo infantil que o clero, junto com os
pais e padrinhos, era obrigados a ensinar, e as crianças deveriam
aprender antes de serem confirmadas e entrarem na vida de
comunhão da Igreja. Além disso, depois de 1570, como
ferramentas para instruir ainda mais os adolescentes e adultos nos
fundamentos da fé e da prática, a Igreja tinha à disposição versões
mais longas e mais curtas de um catecismo semioficial mais
completo, escrito por Alexander Nowell. Além desses recursos,
contudo, o clero puritano adotava uma abundância de catecismos
ortodoxos de sua própria concepção, o que mostra quão necessário
e importante eles consideravam uma catequese competente, pois a
fé para os puritanos tinha início com o conhecimento factual —
conhecimento de quem e o que é Deus, quem e o que é Jesus
Cristo, e o que é o evangelho — sendo o propósito da catequização
abrir a porta para uma vida de fé ao estabelecer os fundamentos
cognitivos do ato de crer.
O aconselhamento, para usar o termo moderno que abrange o
que eles estavam fazendo, era uma forma de ministério individual
que os puritanos descreviam como “consolar as consciências
aflitas”. Com isso, eles queriam dizer “dar ajuda às almas que
passavam por problemas, de forma análoga ao serviço de um
médico em relação a alguém que está debilitado ou doente, ou
seja, diagnosticar o que está errado e prescrever a maneira de
trazer a cura”. Para isso, o pastor precisava de algum conhecimento
de patologia espiritual, o mau funcionamento da alma sob pressão
externa ou interna à qual pode estar exposta; desse modo, ele
precisava saber, desde o início, em que consistia a saúde espiritual
interior. Os puritanos compreenderam a noção do Novo Testamento
de saúde espiritual — fé centrada em Cristo, esperança e amor,
tudo isso expresso em boas obras; segurança, paz e alegria; um
coração e uma mente constantemente engajados em louvor e ação
de graças; e zelo pelo reino e pela glória de Deus, o que conduz a
uma ação significativa e enérgica. O mal-estar espiritual, ao
contrário, surgia em forma de dúvida, desespero, medo, ódio,
apatia, tentações torturantes de se permitir ter maus hábitos; falta
de coragem, de firmeza e de zelo; orgulho, luxúria, ganância,
amargura, descontentamento, autopreservação, autopiedade,
hesitação, indisciplina e assim por diante. As várias formas do que
hoje chamamos de depressão — cujo equivalente aproximado nos
anos puritanos era a melancolia — também se erguem
separadamente ou em conjunto com as falhas listadas.
Os recursos puritanos para restaurar pessoas que assim sofriam
espiritualmente a uma condição de paz, esperança, alegria e
energia renovadas para servir a Deus eram, em primeiro lugar,
profunda empatia e percepção de suas angústias interiores, tanto
em sua dimensão física como em sua dimensão mental, bem como
em suas dimensões espirituais; segundo, a profunda compreensão
tanto da corrupção radical da natureza humana caída — a qual
torna a ação meritória impossível — como da livre graça de Deus
em Cristo, que, ao morrer, absorveu a culpa do pecado e agora, em
poder ressuscitado, resgata pecadores dos efeitos de perversão do
pecado em suas vidas; em terceiro lugar, a profunda percepção dos
caminhos de Deus, pelos quais, em e por meio de Cristo, ele
restaura sua imagem em nós, e dos caminhos de Satanás, que, por
todos os meios ao seu alcance, busca impedir-nos de desfrutar a
vida divina com Deus aqui e no porvir; e, em último lugar, uma
clareza perspicaz sobre os contornos da religião verdadeira e da
religião falsa, visto que ambas eram praticadas na Inglaterra
durante a era puritana. Os pastores se viam estabelecidos por Deus
para ajudar as almas necessitadas a se manterem distantes do
controle de Satanás, apesar de suas seduções, e a permanecerem
sob o controle de Deus, apesar das pressões e das aflições
temporárias que acompanham a caminhada cristã. O
reconhecimento da incredulidade e da desobediência, com a
respectiva renúncia a ambas; a prática constante de comunhão e
louvor, evitando o egoísmo e a solidão; e o retorno regular às
promessas de Deus nas Escrituras: tudo isso consistia na fórmula
básica para a recuperação da alma aflita — os pastores, como
sábios médicos espirituais, registrariam as mudanças conforme os
casos particulares de angústia assim exigissem. Em tudo isso,
Richard Greenham foi pioneiro e erudito, e seus exemplos, métodos
e nível de sucesso o levaram a ser tratado como modelo por toda
uma geração de pastores-conselheiros puritanos.
Sobre os terceiro e quarto dos recursos listados, algo mais precisa
ser dito.
O senso vívido dos pastores acerca do contínuo conflito entre
Satanás e o Deus Triúno dentro de cada crente os levava a imaginar
a vida cristã como uma espécie de campo de batalha constante, no
qual Deus estava sempre manejando para se certificar de que seus
filhos obedecessem aos seus mandamentos, promessas e
advertências, enquanto Satanás, incessantemente, contramanejava,
na esperança de conter o impacto das palavras de Deus por
distorção ou desorientação e, finalmente, resgatar o pecador que
Deus — por meio da regeneração — havia arrancado de suas
garras.
O problema das almas perturbadas girava regularmente em torno
da incerteza de serem ou não salvas; a prova de que eles estavam
entre os escolhidos e chamados de Deus, que seriam mantidos em
segurança até chegarem ao céu, era seu desejo pelo perdão de
Deus por meio de Cristo, em relação ao passado; quanto ao
presente e ao futuro, eles queriam viver uma vida de piedade.
Desse modo, a melhor ajuda que o pastor poderia lhes dar era
capacitá-los a discernir e abraçar a mudança que Deus já havia
operado neles, e intensificar sua determinação, independentemente
do que acontecesse, para vivê-la de forma consistente.
Por religião falsa os puritanos entendiam, em geral, toda e
qualquer combinação de observações externas e crenças
supersticiosas que não conduzissem à comunhão de fé com Deus
por meio de Cristo, ou à regeneração interna pela habitação do
Espírito Santo. Quando falavam de religião falsa, contudo, eles, em
geral, tinham em mente o catolicismo romano da forma como o
conheciam, ou pensavam conhecer, como grande exemplo. Uma
boa parte do papismo popular, fazendo uso de seu vocabulário,
ainda sobreviveu como uma mentalidade comum na Inglaterra
rural, e não nos deveria surpreender que o antipapismo fosse uma
nota que os pregadores puritanos — bem como outros pregadores
ingleses, de forma ainda mais estridente — frequentemente
atingiam. De maneira correta ou incorreta, os puritanos
costumavam ver a Igreja Católica Romana como uma manifestação
do princípio da justificação por obras meritórias, e a acusavam com
base nisso. Como Lutero, eles criam que a justificação pelas obras é
a religião natural da humanidade caída, da qual todos precisam ser
diretamente libertos se quiserem desfrutar da graça salvadora do
Senhor Jesus Cristo.
III
Já se disse que a essência da tragédia é o desperdício do bem,
tanto real como potencial, e por essa definição o declínio do
puritanismo foi a tragédia em sua forma mais pura. Realmente foi
um movimento, ou seja, uma associação de pessoas unidas e ativas
para trazer alguma forma de mudança para o que eles viam como
melhor. O puritanismo foi, durante um século, como já vimos, um
movimento de santidade que atingiu notoriedade em duas frentes:
sob o reinado de Elizabeth, principalmente buscando a adoração
pura por meio do expurgo da ordem da Igreja Anglicana; sob os
reinados de Jaime I e Carlos I, principalmente uma busca pelas
comunidades paroquiais piedosas; através da Guerra Civil e sob a
Commonwealth, uma busca pelos dois objetivos em conjunto. Mas,
quando a monarquia inglesa e a Igreja da Inglaterra retornaram na
Restauração, o movimento puritano foi, deliberada e
sistematicamente, eliminado por iniciativa governamental. A razão,
sem dúvida, era o medo compreensível de uma sedição entre os
civis; o efeito, no entanto, foi demolir, em vinte e cinco anos, o que
os puritanos passaram cem anos construindo. A opinião pública,
instigada a partir das camadas mais elevadas, voltou-se contra os
puritanos, vendo-os como excêntricos perturbadores e saudando,
com alegria e alívio, o retorno da velha ordem.
O Ato de Uniformidade de 1662 exigia que todo o clero servindo
no anglicanismo restabelecido renunciasse à rebelião contra o rei
em todas as suas formas (incluindo, obviamente, a condenação
retroativa da causa parlamentar na Guerra Civil, que muitos clérigos
haviam apoiado); com isso, declarasse que o Livro de Oração
Comum, agora ligeiramente revisado (embora não da forma como
os puritanos desejavam), não precisava de mais alterações; e
também recebesse a ordenação episcopal, se ainda não a tivesse (o
que não estava disponível desde que o anglicanismo fora abolido,
em 1645). Quase dois mil pastores puritanos não podiam, em sã
consciência, aceitar essa situação, razão pela qual abdicaram de
seus ministérios paroquiais. A legislação parlamentar posterior
restringiu seus movimentos, proibindo-os de formar congregações
próprias e impedindo os leigos de se juntar a tais congregações em
qualquer hipótese. Por um período de mais de vinte anos, cerca de
vinte mil puritanos, a maioria composta por leigos, visitava o
interior das prisões em busca de eventuais violações dessas leis.
Esse foi o último período de perseguição religiosa na Inglaterra, e o
tempo de duração o tornou o pior deles.
Quando, em 1689, Guilherme de Orange se tornou rei da
Inglaterra, o Ato de Tolerância foi aprovado, e o eleitorado puritano
perdeu a condição de ser um movimento de qualquer forma
relevante, tornando-se uma mistura de congregações não
conformistas independentes que se espalharam por todo o país, à
margem tanto da Igreja da Inglaterra como da vida nacional.
Um dos fatores marginalizadores foi a expulsão, de Oxford e
Cambridge — as duas universidades inglesas —, dos estudantes
que não professavam o mesmo consentimento indiscriminado à
restaurada Igreja da Inglaterra, conforme o clero exigia. Alguns dos
clérigos expulsos de 1662, no entanto, abriram escolas e, a partir
delas, surgiram instituições que atendiam aos padrões universitários
e eram capazes de oferecer formação acadêmica completa para o
ministério pastoral. Por meio dessa fonte de suprimento de
pastores, a vida da igreja não conformista tornou-se
autossustentável, paralelamente, embora separada por completo,
da rede paroquial anglicana que cobria o país. É um fato
indiscutivelmente infeliz que, quando a grande renovação da
experiência cristã piedosa sob Whitefield e os irmãos Wesley
ocorreu, na década de 1730, os não conformistas nutriram muitas
suspeitas, duvidaram de sua estabilidade e permaneceram distantes
dela. Contudo, eles foram capazes de se manter sem o amparo
avivalista.
IV
A contribuição mais significativa do puritanismo para a vida
contínua da igreja foi, e é, sem dúvida, seu legado literário. Como
já indicado, os puritanos apreciavam tanto o poder da imprensa
quanto a necessidade da Inglaterra de leitura devocional, e aqueles
entre eles com habilidades de escrita trabalharam arduamente após
a virada do século 16 para suprir essa necessidade. O pioneiro foi
William Perkins, mas não faltaram seguidores. Concluímos agora
nosso breve painel dos pastores puritanos com alguma discussão
sobre esse material.
A primeira coisa a dizer é que, desde meados do século 19, talvez
de forma irregular, mas com um entusiasmo recorrente aqui e ali, a
igreja tem recebido generosamente reimpressões puritanas. Richard
Baxter, John Owen, Thomas Goodwin, Richard Sibbes, Stephen
Charnock, John Bunyan, Thomas Manton, John Flavel, William
Gurnall, John Howe e Matthew Henry estão entre os autores cujas
obras foram colocadas à nossa disposição em edições modernas.
Os responsáveis por essas reimpressões têm visto regularmente
como parte de seu trabalho limpar o material ortográfica e
gramaticalmente, o que, embora leve a uma perda superficial da
autenticidade, torna esses puritanos muito mais fáceis de ler, razão
pela qual devemos ser gratos por tal providência.
Essas edições completas tornam possível algo que até então era
impossível, ou seja, a avaliação da produção total de cada autor,
dos temas-chave que a permeiam e das referências cruzadas
substantivas em seu interior — obviamente, matéria-prima
tentadora para muitas teses de doutorado escritas na atualidade.
Esse tipo de estudo é valioso, mas ofusca o fato de que a maior
parte da escrita é ocasional, trabalho de homens para quem foi, se
não exatamente uma atividade de tempo livre, pelo menos um item
incidental em uma vida na qual pregar o evangelho, cuidar de uma
congregação e responder às emergências pastorais eram atividades
que vinham em primeiro lugar. Os pastores puritanos não eram
autores profissionais, mas viam seus escritos como um respaldo e,
às vezes, até mesmo uma extensão de seu ministério contínuo
diante das almas.
A segunda coisa a dizer é que a maior parte da escrita devocional
puritana parecem ser, em uma visão mais aguçada, versões
ligeiramente editadas do material que foi produzido inicialmente
para o púlpito. Esperava-se que todos os pregadores na Igreja da
Inglaterra de Elizabeth (para começar por lá) escrevessem e
memorizassem cada sermão, de modo que proferi-lo seria, na
verdade, uma recitação, algo comparável a um ator recitando suas
falas. Qualquer paixão em sua entrega seria algo daquele
momento, mas o conteúdo entregue não era espontâneo; era, na
verdade, um discurso previamente composto e, então, lembrado.
Os pregadores puritanos nunca desafiavam essa convenção,
embora, em determinadas circunstâncias, eles, claramente, a
tenham contornado. Assim, Greenham, em Dry Drayton, segundo
nos dizem, pregava às seis horas em cada uma das cinco manhãs
por semana, levantando-se às quatro horas para se preparar, e
quando se sentia fortalecido no assunto, podia ficar confuso no
púlpito; evidentemente, então, ele pregava para seu público rural a
partir de notas incompletas. Richard Baxter, com cerca de sessenta
anos, exortava todos os pastores em potencial a se tornarem os
primeiros aprendizes de clérigos veteranos no campo, com quem
poderiam aprender seu ofício, no qual teriam a oportunidade de
ganhar praticando a clareza e a força na expressão homilética
espontânea. No caso de púlpitos urbanos, no entanto, parece que
os pastores e palestrantes (pregadores contratados para
complementar a pregação deficitária ou pobre do pregador local)
continuaram a escrever roteiros completos de seus sermões no
período puritano, e era um hábito trivial pregar séries de sermões
sobre um único texto, passagem ou tema — e, assim, de fato,
pregar tratados que, após essa etapa, estariam a caminho de se
tornar livros. Dessa forma, eles se mostravam capazes de imprimir
uma boa quantidade de material homilético em um tempo
relativamente curto.
Contudo, essa não é, com certeza, toda a história. Catecismos
puritanos e diálogos catequéticos como The Plain Man’s Pathway to
Heaven [O caminho para chegar ao céu], de Arthur Dent (1601;
40ª ed., 1704), foram escritos diretamente para publicação. Da
mesma forma, ocorreu com as produções de John Bunyan (mais
notavelmente, O progresso do peregrino, parte 1, 1678, Parte 2,
1684; Guerra santa, 1682; A vida e a morte do Sr. Maldoso, 1680),
e provavelmente com todo o resto de sua obra. E pastores eruditos
como John Owen e Richard Baxter escreveram livros em resposta
direta aos livros de outros autores. Comum a todas as publicações
puritanas, no entanto, era o consenso de que toda produção
literária, em qualquer formato e por quaisquer meios, deveria não
apenas basear-se formalmente na Bíblia, mas também ser
edificante para os leitores cristãos, um material voltado a expandir
e aprofundar seus conhecimentos do Pai, do Filho, do Espírito Santo
e do caminho divino da graça — e é esse foco que confere aos
escritos pastorais puritanos seu sabor distinto.
Os puritanos eram, em uma extensão notável, uma escola de
pensamento teologicamente homogênea, e o procedimento mais
simples para ficar a par das crenças que governavam suas mentes
e aqueciam seus corações consiste em dominar o ensino do Breve
Catecismo de Westminster, que a Assembleia-Geral de 1648 da
Igreja da Escócia descreveu como “um diretório para catequizar os
de capacidade mais debilitada”, ou seja, crianças e adultos que, por
qualquer motivo, deveriam ser tratados como cristãos iniciantes.
Nesse documento, que contém 107 perguntas e respostas claras,
além de passagens que se apoiam nas Escrituras, em um total de
menos de trinta páginas nas edições ordinárias, está a
quintessência da teologia puritana. A definição de Deus; criação;
providência; pecado; a aliança da graça; o Senhor Jesus Cristo,
nosso Redentor encarnado, como nosso profeta, sacerdote e rei,
primeiro humilhado e depois exaltado; o chamado eficaz para a
salvação, e a vida da graça daqueles assim salvos; o Decálogo,
base da ética; fé, arrependimento e os sacramentos; oração e,
especificamente, a Oração do Pai-Nosso — esse é o terreno que o
Catecismo cobriu, essa foi a forma estrutural da soteriologia
puritana e a área da verdade posta sob constante exploração pelos
autores da “prática afetuosa” do puritanismo. Segundo
acreditavam, ali estava a essência do ensino bíblico, para o qual
todas as partes do cânon contribuem; também estava a essência do
evangelho, para o qual ambos os Testamentos apontam
consistentemente; e é ali que qualquer pessoa que lê a Bíblia com a
mente e o coração abertos se verá sendo levada a uma
autoavaliação, a uma autocondenação e a uma verdadeira entrega
ao Cristo vivo e ressurreto. O terreno é, em certo sentido, familiar,
pois é o cristianismo dominante, aquele que todas as principais
versões da fé abraçam, com mais ou menos precisão, segundo os
padrões puritanos.
Os crentes que leram este parágrafo até agora podem sentir-se
tentados a concluir que já estão a par do que os puritanos têm a
oferecer e, portanto, a não ler. Porém, a maneira puritana de
ocupar esse terreno cristão central tem uma qualidade que
enriquecerá de forma única qualquer leitor, em qualquer estágio de
seu discipulado, de modo a reivindicar, apropriadamente, a total
atenção de todos.
A qualidade em questão é o rigor analítico. Isso teve origem na
compreensão puritana da natureza das Escrituras, por um lado, e
na condição dos membros de suas congregações, por outro. Ambos
os fatores exigem alguns comentários aqui.
Assim como Calvino e os teólogos da Reforma unidos à
semelhança de um corpo, os puritanos viam as Escrituras como
duas realidades inseparavelmente interligadas. Uma é o
testemunho humano, variado e diverso, da história do pecado e da
graça de Deus, desde o início até a vida, a morte, a ressurreição e
o reinado do Senhor Jesus Cristo. A outra é o próprio testemunho
de Deus, trazido nas próprias palavras do testemunho humano pelo
Espírito Santo, tanto sobre seus planos para este mundo quanto
para que nós, servos de Cristo, conheçamos sua administração
providencial. O procedimento puritano para desvendar esse
testemunho bíblico integrado de dois níveis foi explicado por
William Perkins em seu livro A arte de profetizar (1595), um manual
pioneiro sobre o ministério da pregação; posteriormente foi
prescrito no Westminster Directory for Public Worship (1645) e
posto em prática, tratado após tratado, ao longo de todo o período
puritano. O método consistia primeiro em “suscitar” — ou seja,
extrair —, a partir das doutrinas do texto, verdades sobre Deus e o
ser humano em suas relações mútuas e, em seguida, explicá-las e,
por fim, aplicá-las.
Aqui, surgia a típica paixão puritana por aprofundamento. Várias
doutrinas seriam levantadas a partir de um único texto. A
explicação de cada uma delas envolveria relacioná-la a outras
doutrinas, e isso poderia ocupar muito tempo e/ou espaço. Por fim,
a aplicação seria ramificada para cobrir diferentes categorias de
leitores (ou, a princípio, de ouvintes). Um texto, portanto, poderia
muito bem terminar com uma grande carga de teologia anexada a
ele.
A explicação de Perkins sobre a aplicação distinguiu sete tipos de
ouvintes de sermões. Primeiro, alguns serão ignorantes e não
ensináveis; eles devem ter suas consciências provocadas e agitadas
de uma forma que os desperte. Segundo, alguns serão ignorantes,
mas ensináveis; estes precisam de uma aplicação
“catequeticamente” estruturada, a fim de lhes mostrar como as
doutrinas relativas à sua salvação se encaixam no quadro geral da
fé. Terceiro, alguns serão instruídos, mas não comprometidos; sua
necessidade é a lei, com o fim de humilhá-los ao arrependimento.
Quarto, alguns estarão cientes de seus pecados e temerosos do
julgamento; nesse caso, a aplicação deve levá-los à cruz e à
misericórdia salvadora de Jesus Cristo, de acordo com o evangelho.
Quinto, alguns serão crentes que precisam de mais fundamentação
na forma como a graça de Deus justifica, santifica e preserva os
seus. Sexto, alguns serão cristãos que caíram moralmente e agora
estão nas garras de algum pecado específico; eles precisam ouvir
sobre a graça que restaura o penitente. Sétimo, alguns são
“mistos”; eles necessitam de aplicações que os separem, que lidem
particularmente com cada um deles. Todas as aplicações devem ser
inferências disciplinadas da doutrina que está sendo ensinada; e,
claro, não é possível seguir todas essas linhas de aplicação em um
único sermão. Ainda assim, algo como a metade de um sermão
puritano comum seria a aplicação, e toda a gama de aplicações
seria regularmente coberta no curso de um ministério puritano
comum. “Discriminar” foi o termo que acabou surgindo para
caracterizar esse método de aplicação.
No decorrer da aplicação das doutrinas bíblicas ao coração
humano, os pregadores puritanos demonstraram ainda mais a
eficácia analítica, que era, se assim podemos dizer, seu estilo
cultural, por meio do procedimento sistemático de sondagem do
coração. Eles buscavam expor o conjunto de motivações obscuras e
de desejos degenerados que as Escrituras e sua própria experiência
da vida cristã mostravam haver, incitando que pessoas sujeitas ao
engano do pecado enfrentassem as falhas morais e as
desonestidades encontradas em si mesmos e, sob a aparência de
virtude ou de sabedoria, as renunciassem. Usando a doutrina ou as
doutrinas em consideração como um holofote e um bisturi, os
pregadores detectavam as várias maneiras pelas quais o pecado
ronda nosso campo espiritual e, então, recorriam à graça e ao
senhorio de Jesus Cristo para induzir uma autoavaliação sensível,
um arrependimento radical e um enfrentamento comprometido
contra todas essas formas de mal. O puritanismo foi, entre outras
coisas, um movimento de santidade, como já observamos, e seus
pregadores nunca perderam de vista o fato de que Cristo chama à
santidade aqueles a quem salva. Essa ênfase no que Walter
Marshall, um deles, chamou de “o mistério da santificação do
evangelho” confere ao legado literário puritano um sabor e um
impulso distintos.
V
Sem dúvida, já está claro que era básico para a mentalidade
puritana ter um forte senso da presença ativa de Deus, tanto no
mundo ao redor, que é a criação ordenada por sua providência,
como na vida pessoal de cada indivíduo — a sua própria, para
começar, e depois de todos aqueles com quem se tem de lidar. Esse
senso penetrante da realidade iminente do Criador parece ter
emergido na Europa Ocidental do final do século 15 e foi
amplamente difundido na Inglaterra dos séculos 16 e 17. Os fatores
que o alimentaram foram a memória das revoltas, incluindo mais de
trezentos martírios de protestantes, durante os anos da Reforma de
Henrique VIII a Elizabeth; a disseminação do conhecimento factual
sobre Deus, por meio de traduções de alta qualidade da Bíblia, de
Tyndale, passando pela Bíblia de Genebra, até a versão King James
(1611); o biblicismo de qualidade igualmente elevada do Livro de
Oração de Thomas Cranmer, que era usado de domingo a domingo
em todas as igrejas inglesas; as dramáticas narrativas de vida e
morte, de vilões e heróis, na obra extremamente influente de John
Foxe, Acts and Monuments (que, mais tarde, seria resumido em seu
Book of Martyrs [Livro dos mártires]); e o impacto de viver sob
ameaça constante das forças armadas do catolicismo romano, que
então lutavam por sua fé no continente europeu. A tensão coletiva
decorrente desses fatores foi uma marca da vida inglesa durante
toda a era puritana, e os próprios puritanos parecem ter sentido
isso de forma mais aguda do que os demais. Além disso, por
qualquer motivo, seja em conexão com os itens anteriores ou não
(ninguém parece ter certeza), o poder dramático e expressivo da
língua inglesa estava sendo diligentemente explorado por poetas
renomados (Shakespeare, Marlowe, Spenser, Donne, Milton), e essa
coloração linguística, se assim podemos descrevê-la, sem dúvida
contribuiu para maior sensibilidade relacional e intensidade na vida
nacional de todo o território; e isso, no devido tempo, se espalhou
para o mundo da pregação e do aconselhamento pastoral puritano.
Toda comunicação puritana foi projetada para confrontar as
pessoas tão clara e inevitavelmente quanto possível com a
proximidade de Deus — o Deus que nos examina e nos expõe a nós
mesmos; que tanto julga como ama, que tanto condena como
justifica por meio de seu Filho, Jesus Cristo; que nos reivindica e
ordena, enquanto promete proteção, preservação e recompensa
final; e que não pode, em hipótese alguma, ser ignorado.
O vocabulário do púlpito puritano desenvolvido, que muitas vezes
é rotulado como estilo “simples”, reflete o que estava acontecendo
com a linguagem. Formas fantasiosas de expressão e ornamento
literário para se dirigir aos supostamente cultos entraram em voga
no final do reinado de Elizabeth, na crença de que, com esses
adornos, a Palavra teria maior peso, e os próprios pregadores
glorificariam mais a Deus. Os mestres desse esplendor estilístico
foram o bispo Lancelot Andrewes e John Donne, decano de São
Paulo, da Catedral de Londres. Para os puritanos, no entanto, tais
demonstrações de inteligência dos pregadores apenas banalizavam
o que eles estavam dizendo. Os próprios pregadores puritanos
almejavam uma expressão enérgica, algo como a força de alguém
batendo à sua porta e gritando para você que sua casa está
pegando fogo. A expressão clássica dessa urgência, ainda mais
potente por ser tão pessoal, veio de Richard Baxter, que, no
prefácio de seu Treatise of Conversion (1657) [Um tratado sobre a
conversão], escreveu o seguinte:
As palavras mais claras são a oratória mais proveitosa nas questões mais importantes
[...] É difícil para o leitor necessitado observar a questão do ornamento e da delicadeza,
e não se desviar da questão da necessidade; e ouvir ou ler um discurso claro, conciso e
sentencioso, e não se sentir magoado por ele; pois, em geral, tais floreios impedem a
devida função do assunto, afastam-no do coração, impedem-no na imaginação e fazem
com que pareça tão leve quanto o estilo [...] Se vemos um homem cair no fogo ou na
água, não resistimos a arrancá-lo, mas, sim, estendemos as mãos a ele da forma que
nos é possível, sem demora [...] Nunca esquecerei o sabor da minha alma, quando
Deus aqueceu meu coração pela primeira vez com essas questões, e quando,
recentemente, entrei de forma séria na religião; quando li um livro tal como os sermões
do bispo Andrews (sic), ou ouvi esse tipo de pregação, não senti vida nisso, pensei que
eles brincavam com as coisas sagradas [...] Mas era o pregador simples e direto, aquele
que me parecia estar em útil tristeza [genuína e sincera] [...] e que apregoava
vividamente, com clareza e gravidade: esse tipo de escrita que era maravilhosamente
agradável e saboroso à minha alma. E estou apto a pensar que é assim agora com
meus ouvintes [...] Devo confessar que, embora possa digerir melhor a exatidão e a
brevidade, mais do que fazia há muito tempo, ainda assim valorizo a seriedade e a
clareza; e sinto em mim mesmo, ao ler ou ouvir, certo desprezo por aquela
espiritualidade, como se fosse uma loucura orgulhosa [...] Como um ator de palco, ou
um dançarino, diferente de um soldado ou de um rei, assim o fazem aqueles
pregadores dos verdadeiros e fiéis ministros de Cristo; e, como eles tratam melhor os
atores do que os pregadores no púlpito, geralmente seus ouvintes preferem vir para se
entreter com um sermão a receber uma mensagem do Deus do céu sobre a vida ou a
morte de suas almas.

Aqui, contemplamos o ideal puritano de falar por Deus como


mestre, pastor, embaixador de Cristo, médico espiritual, guia para a
vida, arauto de Deus, aquele que busca os corações e convence
pela verdade. Não deve haver mal-entendido a esse respeito.
A retórica puritana, embora sempre didática, estava longe de ser
desprovida de imaginação, monótona ou enfadonha. Era viva e
enérgica, ilustrativa e dramática, dentro de sua ordem
frequentemente explosiva, sempre cativante e urgente; nunca
sonolenta, fria, casual ou descuidada. Os sermões puritanos
deveriam ser lembrados, meditados, discutidos e aplicados; por isso
todo o material foi cuidadosamente organizado sob títulos e os
ouvintes foram encorajados a fazer anotações. A crença puritana,
como vimos, consistia nisto: é principalmente por meio da pregação
que Deus se aproxima, para tratar e ser tratado com relação à fé,
ao arrependimento, à conversão e à vida de santidade. O estilo
expositivo e de aplicação do pregador deveria corresponder à
importância, ao peso, à gravidade, à extraordinariedade e, também,
ao objetivo e uso final do sermão; e, com esse propósito, precisava
ser o mais pontual, convincente e memorável possível. Os
pregadores que se mostravam à altura da ocasião e que sentiam
trazer Deus consigo ao púlpito foram chamados de “poderosos”, e
devemos ser gratos por boa parte de seu poder ainda ser sentida
quando, séculos depois, lemos suas obras publicadas.
Tudo isso nos conduz, neste momento, à segunda parte do
presente estudo.

1 Malvólio é o nome de um personagem fictício da peça de teatro “Noite de Reis”, cujo


título original em inglês é “Twelfth Night, Or What You Will”, de William Shakespeare.
(N.R.)
Há alguns anos, a editora Christian Focus lançou uma série
intitulada Christian Heritage [Herança cristã], e cada obra continha
uma joia devocional de um membro da escola de pensamento
puritana. Pediram-me para escrever uma introdução para cada um,
apresentando o autor e sua obra, e indicando seu valor para o leitor
cristão de hoje. Aceitei o encargo como uma espécie de desafio; as
seleções não eram minhas, mas eu as aplaudi e considerei
enriquecedor compor ensaios que celebrassem o autor, o livro e o
respectivo benefício em cada caso, sintonizando os leitores com o
que estava diante deles e ajudando-os a extrair o melhor da leitura.
Essas introduções são reimpressas separadamente, a seguir, pois,
segundo entendo, seu conteúdo amplia e ilustra, de forma
admirável, o que o ensaio geral anterior sobre os pastores puritanos
buscou cobrir em termos gerais. Essas introduções, certamente, são
um tanto desamparadas quando separadas das publicações que
prefaciaram; sua força total, tal como é, só será apreciada, penso,
se continuarmos a ler o que introduziram e, em seguida, relermos o
que tento explicar; contudo, aparentemente, são peças que podem
ser autônomas, se necessário, e que de fato adicionam substância
ao que eu disse até agora. A série é composta pelas seguintes
obras:
Henry Scougal
A vida de Deus na alma humana:
o coração da religião
Stephen Charnock
Cristo crucificado:
a essência do Evangelho
John Bunyan
A corrida da fé:
uma jornada em direção ao céu
Matthew Henry
O deleite da vida cristã:
o prazer de viver para Deus
John Owen
A mortificação do pecado:
guerreando contra a velha natureza
John Flavel
Um novo coração:
deleitando-se no amor de Deus
Thomas Boston
A arte de pescar homens:
o ministério de alcançar os perdidos
Pedagogia do sofrimento:
a soberania de Deus nas aflições dos santos
Teologia do arrependimento:
o caminho para deixar o pecado e voltar-se para Deus
“Eu nunca soube o que era a verdadeira religião até que Deus me
enviou esse excelente tratado”, escreveu George Whitefield.
Quando um homem da estatura de Whitefield aplaude um livro
nesses termos, é sábio de nossa parte parar e observar. Quem foi
Whitefield? O “Grande Itinerante”, como seus contemporâneos o
chamavam, foi, mais do que qualquer outra pessoa, um pioneiro
inovador e a personificação do avivamento do cristianismo, vital no
Ocidente do século 18, o avivamento que moldou a sociedade
anglófona em ambos os lados do Atlântico há mais de cem anos e
que deu origem ao movimento missionário evangélico que, nos
últimos dois séculos, levou o evangelho literalmente ao mundo
inteiro.
Tal avivamento extraordinário e divisor de águas suscitou muitos
líderes proeminentes, mas bem acima dos demais estavam quatro
gigantes, figuras marcantes não apenas para seu próprio tempo,
mas também para todas as eras posteriores: John Wesley, supremo
como organizador, educador, líder pastoral, evangelista e apologista;
Charles Wesley, seu irmão mais novo, o poeta mais sublime da
experiência cristã; Jonathan Edwards, o maior teólogo da América;
e, com eles, na verdade, em algum sentido, à frente de todos eles,
Whitefield, que, por uma geração até sua morte, em 1770, foi
reconhecido como a figura central de todo o movimento — vez que
foi o primeiro a pregar a mensagem transformadora do novo
nascimento, o primeiro a propagá-la publicamente e declarar o
mundo como sua paróquia, o primeiro a publicar periódicos
celebrando a obra de Deus nele e por meio dele, e o primeiro a
estabelecer sociedades para a nutrição daqueles que vinham à fé
sob seu ministério. Whitefield proclamou, de forma incansável, Cristo
em toda a Grã-Bretanha e na América colonial, atraindo grandes
multidões, ganhando milhares de almas, impactando outros milhares
e ganhando a posição de celebridade de forma equivalente apenas a
Billy Graham e João Paulo II em nosso tempo. A influência de
Wesley como um renovador da religião popular às vezes lhe é
creditada por haver salvado a Inglaterra de uma convulsão como a
Revolução Francesa; se há alguma substância nesse raciocínio,
Whitefield deveria receber maior crédito, pois seu ministério era
mais amplo, e seu poder de púlpito, bem maior. Vivemos numa
época em que a incerteza quanto ao que constitui a verdadeira
religião é mais difundida, talvez, do que em qualquer outra época
desde o nascimento do cristianismo; faremos bem em reconhecer
que o velho livreto que clareou a mente de Whitefield sobre esse
assunto básico pode ter algo a nos dizer também.
A exposição de Henry Scougal da “religião verdadeira” (uma
expressão sua, ecoada por Whitefield, significando “cristianismo
genuíno”) foi, de alguma forma, a semente da qual o lado inglês do
avivamento brotou pela primeira vez, pois o livro era a leitura
favorita no Oxford’s Holy Club [Clube Santo de Oxford], onde os
irmãos Wesley e Whitefield se encontraram pela primeira vez. Por
meio século, as sociedades religiosas, como eram chamadas, foram
estabelecidas em vários lugares para complementar o ministério
dominical da igreja local com reuniões no meio da semana voltadas
a oração, discussão e leitura de obras devocionais (“bons livros”). A
sociedade satirizava a forma como o Clube Santo era dirigido por
John Wesley em sua condição de ministro ordenado e membro do
Lincoln College. O clube era distinto apenas por estar em Oxford,
onde algo assim, ao que parece, nunca tinha sido visto, e pela
intensidade ascética com que seus cerca de doze membros
perseguiam o objetivo da verdadeira religião. Whitefield, um calouro
alto, de boa aparência e articulado de Gloucester, um criado do
Pembroke Colle-
ge — ou seja, alguém que desempenhava funções subalternas para
financiar a própria educação —, admirava o Clube Santo de longe e
queria ingressar nele. Charles Wesley, ele próprio um membro,
gostou de Whitefield e deu-lhe um exemplar do livro de Scougal, o
qual devorou avidamente. Uma busca agonizante, evidentemente
desencadeada por Scougal, pela vida de Deus em sua própria alma,
levou-o ao amanhecer de uma certeza garantida de que, pela graça
de Jesus Cristo, ele fora “resgatado, curado, restaurado, perdoado”,
e verdadeiramente nascido de novo.
Certa vez, ouvi um cristão testemunhar: “Eu percebi que havia
sido convertido quando a religião deixou de ser um dever e se
tornou um deleite”, e isso é algo que Whitefield poderia ter dito, pois
foi exatamente o que ele sentiu. Uma vez ordenado, ele pregou o
novo nascimento como a porta de entrada para a verdadeira religião,
da forma como Scougal a descreveu, e o avivamento inglês teve
início. Sem Scougal, nada disso poderia ter acontecido.
O que exatamente Whitefield aprendeu com Scougal? Em resumo,
a essência, a espiritualidade e a realidade sobrenatural da piedade
bíblica. Não que o testemunho de Scougal aqui seja único. Durante o
século que se seguiu aos conflitos da Reforma, puritanos ingleses
como Perkins, Owen e Baxter, anglicanos da escola da “vida santa”
como Jeremy Taylor, pietistas luteranos como Johannes Arndt e
mestres católicos romanos como Inácio de Loyola, Francisco de
Sales, Teresa de Ávila e João da Cruz, todos centraram a atenção na
realidade da vida interior do cristão, a tal ponto que, hoje, os
estudiosos podem falar do avivamento devocional do século 17.
Nesse estudo, os debates da Reforma sobre a igreja, os
sacramentos, a justificação e a autoridade ficaram em segundo
plano; a comunhão com o Pai e o Filho por meio do Espírito,
vivenciada na prática disciplinada do amor paciente e da obediência
humilde, era o tema comum, e Scougal, ele mesmo uma alma
devota, foi capaz de extrair um rico legado de pensamento bastante
homogêneo sobre “a vida de Deus na alma humana”.
Isso ajuda a explicar as extraordinárias autoridade, maturidade e
certeza com que, aos 26 anos de idade, ele era capaz de analisar a
realidade da vida espiritual. É verdade que ele foi brilhante e
precoce (serviu como professor de Filosofia na Universidade de
Aberdeen por quatro anos, desde os 19 anos de idade); ele era filho
de um ministro piedoso, e teve todas as vantagens espirituais em
sua educação além de — ao que parece — um coração responsivo a
Deus desde os seus primeiros dias; mas, mesmo assim, ele
dificilmente poderia ter produzido esse pequeno clássico, como de
fato é, sem a sabedoria destilada do século 17 por trás dele.
A vida de Scougal foi breve. Nascido em 1650, ele foi ordenado em
1673 e serviu por um ano em uma paróquia do interior, um homem
santo que se destacou como pregador, catequista e condutor ou
regente do culto a Deus. Em 1674, foi nomeado professor de
Teologia em Aberdeen, onde, diligentemente, orientou estudantes de
ministério, ensinando-lhes a gravidade da tarefa pastoral,
emprestando-lhes livros e ajudando-os de várias maneiras. Uma
reedição dos sermões de Whitefield no século 19 foi intitulada The
Revived Puritan [O puritano avivado]; Scougal era outro anglicano
qualificado para essa descrição. Ele morreu de tuberculose, em
1678.
Scougal declara: “Os cristãos sabem, por experiência própria, que
a verdadeira religião é uma união da alma com Deus, uma
participação real da natureza divina, a própria imagem de Deus que
se manifesta sobre a alma, ou, segundo a frase do apóstolo, ‘Cristo
formado em nós’”. É “a vida”, a vida de Deus no interior, no sentido
de ser uma energia espontânea que responde ativamente à graça de
Deus exposta no evangelho. Scougal chama isso de “um princípio
interior, livre e comovente [...] uma nova natureza instruindo e
estimulando”. Amor, pureza e humildade são as três virtudes
fundamentais com que essa vida toma forma, e todas florescem da
fé. “A fé (é) [...] uma espécie de sentido, ou sentimento de
persuasão das coisas espirituais; estende-se a todas as verdades
divinas; mas, em nosso estado decaído, tem uma relação peculiar
com as declarações de misericórdia e reconciliação de Deus aos
pecadores por meio de um mediador; e, portanto [...] é
normalmente denominada fé em Jesus Cristo.” As próprias virtudes
devem ser concebidas de maneira que vejam os atos como a
manifestação de atitudes, e as atitudes como a expressão de
motivações; portanto, Scougal os define da forma que segue.
Amor, basicamente, é amor de Deus: “Um senso encantador e
afetuoso das perfeições divinas, algo que faz a alma se resignar e se
sacrificar totalmente, desejando, acima de todas as coisas, agradar a
ele, e em nada se deleitando tanto quanto na harmonia e na
comunhão com ele, pronta para fazer ou sofrer qualquer coisa por
ele, ou por sua vontade [...] Uma alma assim, possuída pelo amor
divino, deve ser estendida a toda a humanidade [...] Isso é [...]
caridade [...] segundo a qual todas as partes da justiça, todos os
deveres que temos para com nosso próximo, são eminentemente
compreendidos; pois aquele que verdadeiramente ama o mundo
inteiro [...] longe de prejudicar ou ferir qualquer pessoa [...] se
ressentirá de qualquer mal que se abata sobre os outros, como se
tivesse acontecido com ele mesmo”.
Pureza é “uma abstração devida do corpo e o domínio sobre os
apetites inferiores [...] tal temperamento e tal disposição da mente
que fazem um homem desprezar e se abster de todos os prazeres e
deleites dos sentidos que são pecaminosos em si mesmos, ou
tendem a [...] diminuir nosso gosto por prazeres mais divinos ou
intelectuais (ele quer dizer, centrados em Deus e racionais), o que
também conduz à resolução de passar por todas aquelas
dificuldades que ele possa encontrar no cumprimento de seu dever,
para que não apenas a castidade e a temperança, mas também a
coragem e a magnanimidade cristãs, possam vir sob essa
mentalidade”.
E humildade significa “um profundo senso de nossa própria
mesquinhez, com o reconhecimento sincero e afetuoso de que
devemos tudo o que somos à generosidade divina, a qual sempre é
acompanhada por uma profunda submissão à vontade de Deus, e
por grande morte para a glória do mundo e o aplauso dos homens”.
“Essas qualidades”, diz Scougal, “são o próprio fundamento do céu
colocado na alma”, assim como representam os elementos básicos
da genuína semelhança de Cristo aqui e agora. O resto de seu livro é
uma celebração dessas qualidades, com o incentivo para se
desenvolverem hábitos de arrependimento e disciplina no uso dos
meios da graça (meditação, oração e Ceia do Senhor), de modo a
abraçar os três cada vez mais radical e vigorosamente na vida
pessoal.
Scougal nunca perde de vista a interioridade da verdadeira
religião, como uma condição que tem início em nossos corações,
nem o fato de ser um produto sobrenatural, “tendo Deus como seu
autor e sendo trabalhado nas almas dos homens pelo poder do
Espírito Santo”; portanto, não encontramos essa condição se nos
desviarmos para o tipo de instrução autossuficiente, orientado ao
desempenho, de nível superficial, focado no ego e que vive de
acordo com os números, o que é muito comum entre os cristãos de
hoje. Ele sabe que a transformação pessoal, independentemente do
meio empregado, não ocorrerá sem a bênção de Deus, e traça o
caminho da mudança com um equilíbrio admirável.
Poderíamos desejar, entretanto, que sua exposição fosse mais
explícita e enfaticamente centrada em Cristo. Como tantos escritores
do século 17, ele se permite concluir que seus leitores sabem tudo
sobre Jesus e precisam apenas ser informados sobre a religião real,
a vida de fé e a plena fé voltando-se para Deus em oposição ao
ortodoxismo, ao formalismo, ao emocionalismo e ao legalismo que
se disfarçam de cristianismo, embora, na verdade, consistam em
uma negação dele. Se Scougal tivesse discorrido sobre a união do
cristão com Cristo, que o Novo Testamento vê como regeneração
pelo Espírito Santo; se tivesse explicado a incorporação à vida
ressuscitada do Salvador, por meio da qual a paixão motivadora de
Jesus de conhecer, amar, servir, agradar, honrar e glorificar o Pai é
implantada nos pecadores, de modo que, a partir de então, esse
seja também seu desejo mais profundo; se tivesse demonstrado,
diretamente, que imitar os objetivos e as atitudes de Jesus em servir
a Deus e à humanidade é, para os nascidos de novo, o modo de vida
mais natural — na verdade, o único modo natural —, enquanto para
os não regenerados é difícil a ponto de ser impossível; se tivesse
feito tudo isso, seu pequeno tratado teria sido incomensuravelmente
mais consistente. Da forma como foi descrito, o perfil que Scougal
traça da vida divina na alma humana é muito mais completo do que
sua resposta à pergunta “Como faço para assumir essa realidade?”
— ou, “Como ela há de tornar-se uma realidade em meu íntimo?”.
Trata-se, pois, de uma limitação.
Certamente, existem alguns pontos fortes na descrição de Scougal
dos meios de graça para a mudança do coração, em especial quando
ele nos remete à meditação — ou seja, um pensamento sustentado
— sobre “a vaidade e o vazio dos prazeres mundanos”, a verdade do
cristianismo e o amor redentor de Deus como mostrado no
ministério salvador de nosso Senhor Jesus Cristo. Ele também é
incisivo quando nos exorta a formar hábitos de comportamento
como se nosso coração tivesse sido transformado, embora isso ainda
não tenha acontecido. Isso é mais do que “fingir até conseguir”;
Scougal está nos dizendo para dar a Deus a prova de que somos
sérios e sinceros na busca por renovação interior, pois ele sabe que
a evidência da sinceridade é algo que Deus exige regularmente
como condição para atender às nossas orações. Essas ênfases,
contudo, devem ser orientações vinculadas e específicas sobre como
olhar e vir ao próprio Cristo vivo, crer, confiar e esperar por ele até
que saibamos que somos seus e que ele é nosso — o tipo de
orientação que o próprio Whitefield daria mais tarde, durante a
última meia hora de muitos milhares de mensagens evangelísticas.
Aqui, a omissão de Scougal, que deixa a impressão de que a
piedade floresce em nós como uma espécie de crescimento natural,
é certamente
uma lacuna.
Será apropriado, ao encerrarmos, citar de forma mais completa o
testemunho de Whitefield sobre o que Scougal lhe proporcionou.
Isso vem de um sermão pregado no último ano de sua vida, anotado
(sem correção) enquanto ele falava:
Quando eu tinha dezesseis anos, comecei a jejuar duas vezes por semana, contabilizando
trinta e seis horas; orava muitas vezes ao dia, participava da Ceia todos os dias do
Senhor, jejuando quase até a morte todos os quarenta dias da Quaresma, período no
qual eu fazia questão de ir pelo menos três vezes ao dia ao culto público, além de
realizar, sete vezes ao dia, minhas orações privadas; mas eu ainda não sabia que deveria
nascer de novo em Deus, como uma nova criatura em Cristo Jesus, como se nunca
tivesse nascido.
Devo prestar testemunho a meu velho amigo, Charles Wesley; ele colocou um livro
intitulado A vida de Deus na alma humana em minhas mãos. Por meio desse livro, Deus
me mostrou que eu deveria nascer de novo, ou ser amaldiçoado.
Eu conheço o lugar: pode ser superstição, talvez, mas, sempre que vou para Oxford, não
deixo de correr para aquele lugar onde Jesus Cristo se revelou a mim pela primeira vez, e
me deu o novo nascimento [...] Como meu coração se elevou, como ele se estremecia,
como se fosse um pobre homem com medo de olhar para os livros de contabilidade, para
não se ver em falência; no entanto, devo queimar esse livro, atirá-lo ao chão, deixá-lo ali
ou examiná-lo? Eu o fiz e, segurando o livro em minhas mãos, assim me dirigi ao Deus
do céu e da terra: Senhor, se eu não sou um cristão verdadeiro, Deus, pelo amor de
Jesus Cristo, mostra-me o que é o cristianismo, para que eu não seja, por fim,
condenado. Li um pouco mais [...] Oh, diz o autor, os que sabem alguma coisa de religião
sabem que é uma união vital com o Filho de Deus, Cristo formado no coração; oh, que
raio de vida divina irrompeu, naquele momento, sobre minha pobre alma [...] desde
então, Deus tem levado a cabo sua bendita obra em minha alma: e como agora tenho
cinquenta e cinco anos de idade [...] eu vos digo, meus irmãos [...] Estou cada vez mais
convencido de que essa é a verdade de Deus e de que, sem ela, vocês nunca poderão
ser salvos por Jesus Cristo.
Assim, Deus usou Scougal para despertar o homem e, mais tarde,
ele próprio veio a ser conhecido como o Despertador. E tudo o que
resta a ser dito é que alguns, hoje, que se chamariam de cristãos, se
questionados, claramente precisam de despertamento semelhante: o
que Scougal, sob Deus, pode trazer-lhes se eles apenas lerem sua
sofisticada retórica do final do século 17 e deixá-la falar aos seus
corações. Os verdadeiros cristãos receberão, de Scougal, um
lembrete saudável de que a transformação do coração e do caráter é
a essência de sua fé, e os que se enganam serão forçados a encarar
o fato de que aqueles que ainda não foram tão transformados não
são, portanto, absolutamente cristãos. A palavra de Scougal a eles
terá sido uma preparação para, humildemente, ouvirem o convite do
evangelho, que muitos hoje deixariam de ouvir porque não sabem
que precisam ouvi-lo, e que Whitefield, perto do momento em que
proferiu o testemunho citado, verbalizou da seguinte forma:
Pecadores em Sião, pagãos batizados, professos, mas não possuidores, formalistas,
crentes incrédulos, falando de Cristo, falando da graça, ortodoxos em seus credos, mas
heterodoxos em suas vidas: convertam-se, convertam-se! Senhor, ajude-os a se voltarem
para ele, voltem-se para Jesus Cristo, e que Deus os vire do avesso [...] que aquele Pai
glorioso que ressuscitou Cristo dos mortos ressuscite suas almas mortas! [...] Bendito
seja o Senhor, pois Jesus está com olhos compassivos e braços estendidos para recebê-
los agora. Você vai com o homem? Você vai aceitar Cristo? Você vai começar a viver
agora? Que Deus diga amém; que Deus passe, não com raiva, mas com amor [...] e diga
a vocês, pecadores mortos, venham e vivam uma vida de fé na terra, vivam uma vida de
visão no céu; ainda assim, Senhor Jesus, amém.
O fato central no cristianismo é a realidade histórica, eterna e
inescapável de Jesus Cristo, que é o Filho de Deus no sentido
trinitário de ser Deus, o futuro Juiz de toda a humanidade, em
todas as eras, e a quem o evangelho proclama como Salvador,
Redentor e Amigo de todos os que se tornam seus seguidores.
Sejamos claros que, onde Jesus não é reconhecido como Deus
encarnado, crucificado, ressuscitado, que reina e há de voltar, não
há cristianismo, independentemente do que os liberais dentro e fora
das igrejas possam dizer.
Novamente, o foco central no cristianismo é o conhecimento —
conceitual e relacional, objetivo e pessoal — de Cristo crucificado.
Esse é um conhecimento que envolve a cabeça e o coração, e que
gera uma nova lealdade, um novo amor e uma nova vida. É o tema
com o qual o puritano Stephen Charnock lida na obra que aqui
apresento. Sejamos claros que, à parte desse conhecimento, não
há cristãos, e é mera confusão não reconhecer isso.
Charnock, ao ministrar na Grã-Bretanha nominalmente cristã três
séculos atrás, podia contar com a aprovação geral das posições que
acabei de declarar. Mas isso é algo que nenhum comunicador
cristão ousa fazer nos dias de hoje. O homem nas ruas, como
gostamos de dizer (e a mulher nas ruas, como as feministas
gostariam que disséssemos), vê o cristianismo como um código
moral, e não como uma boa-nova de salvação; e Jesus como um
mestre morto, e não como um Salvador vivo; e a vida espiritual
como uma meditação do tipo da Nova Era para o
autoaperfeiçoamento; e o compromisso religioso como um hobby
para aqueles que se preocupam com esse tipo de coisa. Que todos
vivemos na presença de Deus e sob seus olhos, e que um dia
devemos responder a ele pela vida que vivemos, e que nossa
humanidade está desajustada por causa do pecado, que nós
precisamos de um Salvador com a mesma urgência que uma
pessoa com um tumor no cérebro precisa de um cirurgião, são
verdades que nunca passam pela cabeça da maioria das pessoas.
Em meio a tanta controvérsia, não causa admiração que os próprios
cristãos se sintam confusos e inseguros acerca dos elementos
centrais de sua fé. Se isso acontecer conosco, no entanto, esse é
mais um motivo para ouvirmos Charnock — que, de todos os
puritanos, é o mais ativo e metódico quando se trata de dizer as
coisas com franqueza.
Charnock presume que aqueles a quem se dirige estão
interessados em seus temas e, portanto, dispostos a se concentrar
em seu desdobramento. Em sua época, muitos eram “ministros
capazes” (assim nos dizem os primeiros editores) que “adoravam
sentar-se a seus pés, pois recebiam por um sermão dele instruções
que não podiam receber por meio de muitos livros ou sermões de
outras pessoas”.2 O que é comumente dito hoje, entretanto,
raramente nos confronta com algo tão concentrado quanto um
parágrafo de Charnock; e, a menos que seus leitores estejam
seriamente preocupados, eles irão vacilar. Talvez eu possa fazer
algo para gerar ou reforçar a preocupação no coração de vocês que
lerem isto, garantindo que não esmoreçam quando chegarem a
Charnock — vamos ver. Posso falhar, eu sei, mas não será por falta
de tentativa! Antes, porém, mais uma palavra sobre o próprio
Charnock.
Stephen Charnock (1628–1680)
Nascido em Londres e nascido de novo na Universidade de
Cambridge, na década de 1640, Charnock foi visto como um
homem em ascensão, sendo enviado a Dublin como capelão do
filho de Oliver Cromwell, Henry, governante da Irlanda, em 1655.
Lá, ele conquistou grande reputação como pregador.
A Restauração, no entanto, encerrou seu ministério irlandês, e ele
não teve nenhum encargo depois disso, até ser chamado para
compartilhar com Thomas Watson o pastorado de uma
congregação constituída por uma elite não conformada que se
reunia em Londres, em Crosby Hall. Isso durou cinco anos, de 1675
até a sua morte, em 1680. Um homem com paixão pelos estudos,
aparentemente celibatário, Charnock costumava dedicar doze horas
por dia, cinco vezes por semana, em seu escritório, colocando no
papel tudo o que pretendia dizer em público. Parece que ele
concebeu a ideia de pregar uma teologia sistemático-prática
completa (como devemos chamá-la) em Crosby Hall, e que seus
complexos discursos inacabados sobre a existência e os atributos
de Deus (mais de 600 mil palavras e mil páginas de textos
pequenos na edição de 1864 de suas obras compiladas) foram o
início disso. (Somos informados de que ele morreu enquanto
“procurava o que dizer sobre a misericórdia, a graça e a bondade
de Deus”.)3 Esses discursos são extensos sermões puritanos, cada
qual construído sobre um texto e apresentado com doutrina,
argumentação (exposição e defesa) e uso (aplicação) da maneira
puritana padrão, e cada um deles, entregue por extenso, teria
ocupado várias pregações de uma hora cada. É possível que
Charnock realmente os tenha despachado dessa maneira; além
disso, como, em Crosby Hall, sua memória e sua visão já eram
deficientes, isso o obrigava a ler seus roteiros de sermão com o
auxílio de uma lupa, palavra por palavra, em vez de falar de
improviso, sem anotações, como em Dublin. Talvez isso ajude a
explicar por que muitos, mesmo naquela era teológica, o achavam
pesado e desconexo, apesar da fácil articulação das ideias, o que é
um de seus principais pontos fortes. Seu tratamento em menor
escala da morte de Cristo, no entanto, flui com muita simplicidade e
não confundirá, em absoluto, o leitor atento de hoje.
A Cruz de Cristo
No início, eu disse que, onde o Senhor Jesus não é confessado
como Deus encarnado, crucificado, ressuscitado, que reina e há de
voltar, e onde não há foco no conhecimento pessoal de Cristo
crucificado, não há cristianismo. Quando eu disse isso, por mais
ousado que pareça, estava definindo o cristianismo em termos do
Novo Testamento. Pois, no Novo Testamento, a cruz de Cristo
destaca-se como, por assim dizer, o ponto principal e crucial do
evangelho, o evento que abriu para nós, pecadores, o caminho para
a paz com Deus, seu poder e uma perspectiva de sua glória que
excede todo pensamento humano. Os evangelhos, como muitas
vezes é notado, são precisamente narrativas da paixão e do
sofrimento de Cristo, com introduções detalhadas, contando-nos a
causa da crucificação, para que, desse modo, possamos entendê-la.
Os detalhes vívidos e a pungência calculada com que Mateus,
Marcos, Lucas e João, quatro hábeis autores, contam a história da
cruz excedem em intensidade tudo o que precede, e os relatos da
ressurreição que se seguem identificam a paixão de Jesus como o
verdadeiro clímax de cada evangelho. O tema do livro de
Apocalipse é o triunfo duplo do Senhor crucificado, o Cordeiro
imolado, ou seja, aquele que, em sua primeira vinda, derramou seu
sangue por nós, e aquele por meio de quem, em sua segunda
vinda, tudo será renovado. E nas epístolas, que são sermões sobre
discipulado em forma de carta, a cruz é central e básica para todo o
ensino formativo que é dado em relação à fé (ou seja, fé e
confiança) e conduta (ou seja, motivação e ação).
Sejamos específicos. A cruz é o fardo do evangelho apostólico
(“pregamos o Cristo crucificado”, 1Co 1.23; cf. 1.18; 2.2). É a peça
central do plano eterno da graça de Deus (“vocês foram redimidos
[...] com o precioso sangue de Cristo, um cordeiro [...] escolhido
antes da criação [...] revelado nestes últimos tempos por sua
causa”, 1Pe 1.18-20; cf. Jo 3.16 e seguintes;
10.14-18; Gl 4.4 e seguintes). É um sacrifício pelos pecados (“Cristo
morreu pelos nossos pecados, de acordo com as Escrituras”, 1Co
15.3), extinguindo a ira divina contra os pecadores (“fazendo paz
pelo seu sangue derramado na cruz”, Cl 1.20; cf. Ef 2.18-20),
assegurando nossa presente justificação e nossa adoção, além de
garantir nossa esperança futura como herdeiros de Deus (“Visto
que agora fomos justificados por seu sangue, quanto mais seremos
salvos da ira de Deus por meio dele!”, Rm 5.9; “Aquele que não
poupou seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós — como
também não nos dará graciosamente todas as coisas junto com
ele?”, Rm 8.32). É a iniciativa mediadora (pois a paixão de Cristo foi
verdadeiramente sua ação) que o estabeleceu em seu papel
salvador, como o autor da salvação e, portanto, como o próprio
objeto da fé salvadora
(“A vida que vivo [...] vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e
se entregou por mim”, Gl 2.20; “pela fé no seu sangue”, Rm 3.25).
É a realidade significada pelas duas ordenanças sacramentais que
Jesus impôs (“batizado na sua morte [...] sepultado com ele pelo
batismo na morte”, Rm 6.3, 4; “Este é o meu corpo, que é dado a
vós” [...] “Este cálice é a nova aliança em meu sangue; faça isto
sempre que o beber, em memória de mim”,
1Co 11.24-25). A cruz ainda estabelece padrões de amor e
humildade abnegados (“viver uma vida de amor, assim como Cristo
nos amou e se entregou por nós”, Ef 5.2; “Jesus Cristo deu sua vida
por nós. E devemos dar a nossa vida pelos nossos irmãos”, 1Jo
3.16; “ele se humilhou e tornou-se obediente até a morte —
mesmo a morte de cruz”, Fp 2.8). Exige e requer serviço
consagrado e devoção (“Você não é seu; você foi comprado por um
preço. Portanto, honre a Deus com o seu corpo” 1Co 6.19, 20; “O
amor de Cristo nos impele [...] um morreu por todos [...] para que
os que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que por eles
morreu”, 2Co 5.14, 15). É um modelo de resistência diante da
hostilidade e da dor (“Cristo sofreu por ti, deixando-te um exemplo,
que deves seguir os seus passos”, 1Pe 2.21; cf. Hb 12.2).
Portanto, podemos prosseguir, mas certamente o ponto está bem
claro agora. Para confiar, amar e seguir Jesus, é necessário manter
a cruz em vista o tempo todo. Nosso Senhor vivo nos chama para o
que podemos chamar de discipulado cruciforme, lúcido, de olhos
abertos e de todo o coração. “Que eu nunca me glorie, exceto na
cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, por meio da qual o mundo foi
crucificado para mim e eu para o mundo” (Gl 6.14). A cruz deve
moldar nossa fé e, assim, remodelar toda a nossa vida.
Celebrando Cristo Crucificado
As exposições de Charnock, embora claras e profundas, às vezes
parecem frias e áridas. Isso ocorre porque seu estilo é
intensamente analítico e sua mente se move rapidamente,
expressando-se verbalmente de uma forma econômica, como se ele
estivesse construindo o esboço para uma exposição, em vez de
redigir a exposição em si. Seu poder de condensar, resumir e
comprimir desperta admiração, mas pode deixar a sabedoria e a
verdade que ele apresenta ainda distantes de nosso ser interior.
Enquanto seu retrato o mostra com feições ósseas,4 sua escrita o
revela como um homem de pensamentos descarnados, que vê
como nosso encargo, e não seu, colocar carne nos ossos e aquecer
os pensamentos para que ganhem o poder de constranger e
estilhaçar o coração. O ideal puritano consistia em ser um “teólogo
afetuoso e prático”, ou seja, alguém capaz de clarear as mentes,
fortalecer os corações e acalmar as consciências com igual
habilidade. Charnock é tão capaz quanto qualquer outro de clarear
mentes, mas é menos capaz do que alguns de despertar a
imaginação e tocar os corações. Deve ter sido esse distanciamento
de si mesmo como comunicador do lado afetivo da vida que levou
alguns a reclamar que seus sermões continham apenas “moralidade
ou metafísica”5 — pois, de fato, contêm não muito pouca doutrina
evangélica, mas, sim, um conteúdo bastante condensado.
Evidentemente, ele acreditava que a dramatização e a interiorização
da verdade do evangelho cabiam a seus ouvintes, que deveriam
emprega-las por meditação pessoal, em vez de tentar recebê-las
por meio da retórica do púlpito.
Aqui, ele aborda o tema de Cristo crucificado ao se deter
sucessivamente na soberania, no amor e na justiça do Pai, o qual
ordenou a cruz, a dignidade, a disposição e a agonia do Filho em
suportá-la, na relação transformada com Deus que dela flui, e a
gratidão, o deleite e a ampliação do arrependimento, a fé e a
ousadia em se aproximar de Deus, a santidade como meta de vida
e o “conforto” (encorajamento) como suporte de vida —
sentimentos que o conhecimento de Cristo crucificado deve gerar
em nós. O entendimento reformado e puritano da substituição
penal no Calvário é expresso com uma precisão clara e simples.
Mas é um tratamento frio e superficial, cabendo a nós aquecê-lo
para nós mesmos. Como podemos fazer isso? Eu ofereço a seguinte
sugestão. Antes de começar a ler Charnock, passe um tempo lendo
os três hinos a seguir, cada qual incorporando algum conhecimento
de Cristo crucificado em meditações que tocam as profundezas do
coração cristão. Deixe que eles o examinem e movam, como foram
feitos para fazer.6 O primeiro é do puritano dos últimos dias do
movimento, Isaac Watts — e é bem conhecido.
Quando contemplo a gloriosa cruz,
Em que morreu o Príncipe da Glória,
Meu lucro conto como perda,
E meu orgulho desprezo feito loucura.
Proíbe, Senhor, que eu venha me gabar,
Salvo na morte de Cristo, meu Deus:
Todas as coisas vãs que mais me encantam,
Eu as sacrifico ao seu sangue.
Vejo, em sua cabeça, em suas mãos, em seus pés,
A tristeza e o amor se misturarem;
Acaso tanto amor e tristeza se encontraram,
Ou espinhos compõem uma coroa tão rica?
Mesmo que toda natureza fosse minha,
Ainda seria uma oferta mui pequena;
Um amor assim tão fascinante, tão divino,
Exige minha alma, minha vida, meu tudo.
O segundo também é de Isaac Watts. É menos familiar e mais
comovente.
Ai de mim! Meu Salvador sangrou,
Meu Soberano morreu?
Ele abaixaria sua santa cabeça
Por um verme como eu?
Foi por crimes que eu cometi
Que ele gemeu no calvário?
Lástima assombrosa! Graça incomparável!
E amor além da medida!
E pôde o sol na escuridão se esconder,
E cerrar suas glórias,
Quando Deus, o poderoso Criador, morreu
Pelo homem, criatura do pecado.
Eu poderia esconder meu rosto corado
Enquanto sua querida cruz surge;
Dissolva meu coração em gratidão,
E derreta meus olhos em lágrimas.
Mas gotas de tristeza não podem retribuir
A dívida de amor que tenho:
Aqui, Senhor, eu me entrego;
É tudo que posso fazer.

O terceiro é de Augustus Toplady, um evangélico do século 18,


autor do hino Rock of Ages. Não é muito conhecido no mundo
cristão moderno, e lida com a dúvida e o pavor interior que todas
as pessoas regeneradas enfrentam, mais cedo ou mais tarde.
De onde vêm esse medo e essa incredulidade?
Não fez o Pai sofrer
Seu filho imaculado por mim?
O justo Juiz dos homens
Me condenaria por essa dívida de pecado
Que, Senhor, foi cobrada de ti?
Expiação completa fizeste,
E pagaste em absoluto
O que o teu povo devia;
Como então pode a ira sobre mim cair,
Se estou protegido em tua justiça,
E aspergido com o teu sangue?
Se tiveres minha dispensa obtido
E livremente no meu lugar suportado
Toda a ira divina,
Deus não pode cobrar duas vezes,
Primeiro da minha mão perfurada do Fiador
E, depois, de mim.
Volta, então, minh’alma, ao teu descanso!
As dores do teu Sumo Sacerdote
Compraram tua liberdade;
Confia em seu sangue eficaz,
E não temas ser abandonada por Deus,
Já que Jesus por ti morreu.

Agora, com a preciosidade da cruz firmemente fixada em sua


mente e em seu coração por meio da meditação nesses hinos, leia
Charnock, procurando a teologia completa que fundamenta e
justifica os pensamentos mais baixos sobre si mesmo e os mais
elevados de Deus Pai e Deus Filho. Acho que você vai descobrir que
frase após frase na marcha ordenada de Charnock se acende e
brilha em seu coração, iluminando e reforçando as coisas que está
sentindo. Termine trabalhando nas palavras desses hinos
novamente, elaborando para si mesmo na presença de Deus o que
elas dizem sobre o que o impressionou, em especial na
apresentação de Charnock. Esta é apenas uma sugestão, e você
está livre para ignorá-la. Mas, por favor, não acuse Charnock de
estar seco até que você tenha tentado! Isso é tudo que eu peço.

2 Works of Stephen Charnock (Edinburgh: James Nichol, 1864), I.xxiv.


3 Ibid., I.xxv.
4 Ibid., I.xxiv.
5 Ibid., I.xxiii.
6 Citado em Christian Hymns (Bridgend: Evangelical Movement of Wales, segunda edição,
1985), n. 203, 197, 540.
No mundo da pré-fotográfico do século 17, as pessoas que
nasciam em famílias abastadas e aquelas que se destacavam por
suas realizações eram regularmente pintadas, desenhadas ou
gravadas por artistas profissionais. Os artistas, contudo, como
pessoas criativas que são, interpretam seus temas de maneira
diferente, retratando o que pensam que veem, de modo que os
retratos da mesma pessoa podem variar de uma forma
surpreendente. O mesmo ocorre com as duas ilustrações que
sobreviveram de Bunyan. A de Thomas Sadler, que está exposta na
National Portrait Gallery de Londres, o mostra como ele era em
1685, aos 56 anos de idade. Ele está vestido para o púlpito, tem
uma Bíblia nas mãos e parece muito sério, resoluto e sob tensão;
na verdade, ele está quase carrancudo. Você sente que esse é
Bunyan, o mensageiro do Senhor, olhando para você em
preparação para pregar de uma forma aplicada e admoestadora.
Mas também há um esboço a lápis de Bunyan do mesmo período,
feito por Robert White, que, segundo sabemos, tinha o dom de
retratar as pessoas de uma forma mais simpática. O Bunyan de
White, como o de Sadler, olha para nós, mas de uma forma bem
diferente: ele parece relaxado, cordial, sorri ligeiramente, embora
um tanto retraído, um homem (você diria) com muita vida interior,
em paz consigo mesmo e pronto para compartilhar o que vê e
sabe.
Ambos datam da época em que O peregrino catapultou seu autor
para o estrelato. Talvez White tenha tornado Bunyan bonito demais,
enquanto Sadler o retratou de um modo bem rude; no entanto, há
verdade em ambas as maneiras de vê-lo. Seus escritos homiléticos
são realmente tensos e ferozes, e sem dúvida sua pregação
também era assim; a obra O peregrino e outros escritos na mesma
veia alegórica e parabólica, por sua vez, revelam capricho e humor,
e às vezes são completamente cômicos. Essas são as duas faces de
John Bunyan, um ministro fiel e um homem fascinante.
Por nascimento, não era uma pessoa de posses; justamente o
contrário. Ele era filho de um caldeireiro [ou funileiro], cuja família
havia caído no mundo e que agora dirigia uma oficina de metalurgia
em Elstow, um vilarejo composto por sessenta e nove chalés,
situado fora da cidade de Bedford. Ele foi mandado para a escola
para aprender a ler e escrever, mas logo foi retirado para aprender
o ofício de seu pai. Sem dúvida, o plano era que ele trabalhasse na
oficina permanentemente. Em 1644, porém, quando ele tinha 16
anos, sua mãe e sua irmã morreram, seu pai se casou novamente e
ele mesmo foi convocado para um período de dois anos e meio no
exército parlamentar. Talvez não surpreenda o fato de que, em seu
retorno para Elstow, já um “veterano” (como os americanos de hoje
diriam) na adolescência, em vez de se estabelecer na oficina de seu
pai, tenha tomado o rumo da independência; tornou-se um funileiro
(ou seja, um metalúrgico itinerante), lançou-se na pobreza pelo
casamento e assim continuou até ser preso, em 1660. Os funileiros,
por serem itinerantes e, portanto, artistas de fuga em potencial,
eram considerados vagabundos, como os pastores nos dias de
Jesus e os pedintes nos nossos, e o comércio de consertos não era
algo capaz de tornar um homem rico. Não foi um começo
auspicioso para a carreira de Bunyan.
Mas, no final de sua vida, ele era uma celebridade. Ele era um
escritor cristão estabelecido, e seu livro O peregrino, um best-seller
sem precedentes. Bunyan foi um pregador popular, atraindo
multidões de milhares em Londres e centenas quando pregou em
Bedford, onde, então, passou a pastorear uma igreja, e nas aldeias
vizinhas; era amigo do grande John Owen, que dissera a Carlos II
que daria de bom grado todo o seu aprendizado para poder pregar
com o poder de Bunyan; era chamado de “Bispo Bunyan” pelas
costas; e foi modelo para dois dos maiores retratistas de sua época.
Ele havia, como diríamos, chegado ao topo.
A história do progresso desse peregrino se divide nitidamente em
três períodos:
(1) Os anos 1648–60 foram a época da descoberta de Bunyan.
Primeiro, após um período de cinco anos de altos e baixos
comoventes, que mais tarde narrou para encorajar seus próprios
convertidos em Graça abundante ao principal dos pecadores, ele
encontrou paz com Deus. Sua busca espiritual teve início quando
ele se casou com a filha de um homem piedoso, cujo dote consistia
em duas obras puritanas, Plain Man’s Pathway to Heaven [O
caminho para chegar ao céu], de Arthur Dent, e A prática da
piedade, de Lewis Bayley. Ele começou a frequentar a igreja; parou
de praguejar e retrucar; leu a Bíblia; conheceu algumas mulheres
pobres nascidas de novo de uma nova igreja em Bedford e veio a
conhecer John Gifford, seu pastor; tornou-se centrado em Cristo e
na cruz através da leitura do comentário de Lutero em Gálatas;
passou dois anos temendo haver cometido o pecado imperdoável
de abandonar Cristo; e finalmente, em 1653, foi batizado por
Gifford no rio Ouse como um convertido confiável.
Em segundo lugar, ele descobriu que tinha um dom para o
ministério do púlpito. Após ter feito estágio com alguns membros
da igreja de Bedford que pregavam nas aldeias, e após haver
testemunhado e exortado em pequenos grupos, Bunyan foi
formalmente instituído como pregador leigo em 1656 e, a partir de
então, cumpriu seu próprio ministério na aldeia com excelente
aceitação. Sua ênfase era constantemente evangelística: “Descobri
que meu espírito se inclinou mais ao trabalho de despertar e
converter”.
Em terceiro lugar, ele compreendeu que tinha o dom de escrever
literatura cristã popular. Ele começou com algumas obras
polêmicas: Some Gospel Truths Opened (1656) [Algumas verdades
do Evangelho desveladas] e A Vindication of… Some Gospel-Truths
Opened (1657) [Em defesa de algumas verdades do Evangelho],
ambas contra o movimento quaker. A Few Sighs from Hell (1658)
[Uma breve descrição do inferno] e The Doctrine of the Law and
Grace Unfolded (1659) [A doutrina da lei e da graça desvelada]
vieram logo em seguida. Homem bem-articulado e escritor rápido,
com notáveis poderes naturais de análise e argumentação, Bunyan
nunca olhava para trás; ele escreveu e escreveu, e no final de sua
vida havia produzido sessenta tratados de tamanhos distintos,
totalizando algo em torno de dois milhões de palavras.
(2) Os anos de 1660 a 1672 foram a época da desonra de
Bunyan, quando, por inconformidade, ele foi confinado na prisão de
Bedford. Os magistrados locais, ansiosos por estabelecer sua
identidade como servos da monarquia recém-restaurada e da Igreja
da Inglaterra, a qual estava prestes a ser revitalizada, acharam bom
dar o exemplo do pregador mais popular de Bedfordshire,
acusando-o e prendendo-o como um subversivo que não prometia
não pregar em assembleias não anglicanas. Na prisão, Bunyan não
tinha aquecimento e dormia em cima de palha, mas gozava de boa
saúde, mantinha-se alegre e escrevia livros. Além disso, para
sustentar sua esposa e seus filhos, ele produziu “centenas de
cadarços de fios longos” que foram vendidos. Amplamente
reconhecido como um homem de autoridade espiritual, ele
aconselhava os visitantes, pregava aos presos regularmente e,
algumas vezes, também era autorizado a pregar. A Declaração de
Indulgência de Carlos II trouxe sua libertação em 1672. A igreja o
havia nomeado formalmente pastor pouco antes disso, e o
ministério pastoral foi o papel que desempenhou pelo resto de sua
vida.
(3) Os anos de 1672 a 1688 foram a época de distinção de
Bunyan, como pregador e como autor. O peregrino, iniciado, ao que
parece, em mais um período de seis meses que passou na prisão,
em 1675, foi publicado em 1678 e um sucesso de vendas. A vida e
a morte do Sr. Maldoso (1680), Guerra santa (1682) e a parte dois
de O peregrino (1684) confirmaram a posição de Bunyan como um
escritor não apenas de tratados devocionais na conhecida forma
homilética de cem puritanos antes dele, mas também de histórias
maravilhosamente vívidas, ousadas, didático-parabólicas-alegóricas
que, de uma forma ou de outra, ancoraram a fé evangélica na vida
do homem comum. Ao todo, sessenta livros de diferentes tipos
saíram da pena de Bunyan durante os trinta anos de sua carreira
como escritor, e ainda vale a pena ler todos eles.
Algo mais deve ser dito aqui sobre O peregrino, que é o melhor
livro de Bunyan e um índice ilustrado perfeito para a compreensão
puritana da vida cristã. O estudo secular o vê como o início do
romance inglês, por causa de sua trama de busca e sua interação
dos personagens, mas o próprio Bunyan o via como uma
ferramenta de ensino — uma parábola didática que explica o
caminho da piedade para as pessoas comuns; uma série de
semelhanças esclarecedoras (nas palavras de Bunyan) sobre a
piedade e seu oposto; um conto de sonho bíblico com personagens
extraídos de uma vida despertada para ilustrar realidades
espirituais; uma história que, pela graça de Deus, pode tornar-se a
própria história do leitor. Na versificada apologia que introduz a
primeira parte, Bunyan nos conta como tudo começou:
Quando, no início, peguei da pena
A escrever, mal imaginava a cena,
Que fora compor assim um livrete.
Não, pensava em outro motete,
Mas, já quase concluído — por quê, não sei,
Sem me dar conta, a este me atirei.
E assim foi: eu, escrevendo sobre o anelo
E a corrida dos santos nesta era do evangelho,
Súbito vi-me enredado numa alegoria
Sobre sua viagem e o caminho à eterna alegria
Em mais de vinte coisas que pus no papel;
Isso feito, já mais vinte na cabeça, ao léu,
A se multiplicar se atiraram novamente,
Como centelha que voa de brasa ardente [...]
Assim, pena ao papel, com prazer tanto,
Logo vazei as ideias em preto e branco.
Pois sabendo já o método, todo aceso,
Arranquei e tudo me veio; e, teso,
Escrevi até afinal vir a obra ao lume,
Essa grandeza de doce, fino perfume [...]
Este livro perante teus olhos traceja
O homem que ao prêmio perene almeja;
Mostra-te para onde ele vai, de onde vem,
O que deixa por fazer e o que faz também.
Ainda te mostra como corre, vivaz.
Pra chegar ao portão da glória e da paz [...]
Este livro de ti fará verdadeiro viajante.
E se por ele te deixares guiar adiante,
Até a Terra Santa te levará, nas monções,
Desde que compreendas as suas orientações [...]
Queres tu mesmo ler, sem sequer saber o quê,
Sabendo, porém por essas linhas mesmas que lês,
Se estás ou não abençoado? Ah, vem, então,
E abre meu livro, uma só mente, um só coração.7
“O homem que ao prêmio perene almeja [...] corre, vivaz”, diz
Bunyan. Embora o peregrino em sua história caminhe pela maior
parte do trajeto, ele começa correndo, uma vez que o evangelista
lhe deu as primeiras instruções, e Bunyan faz questão disso: “Então
eu vi em meu sonho que o homem começou a correr [...] O homem
tapou os ouvidos com os dedos e correu a clamar: Vida! Vida! Vida
Eterna!”. Correr, para Bunyan, é a imagem de um esforço sincero
para fugir de algo terrível e chegar a algo maravilhoso; nesse
sentido, o peregrino corre constantemente, mesmo quando a
história o mostra caminhando e falando, como na maioria das
vezes. Isso nos leva à corrida celestial, cujo participante é aquele
que corre a boa carreira, o “corredor” que, mediante a fé em Jesus
Cristo, tem por alvo chegar ao céu; e a peça em si é um sermão
escrito sobre 1Coríntios 9.24, cujo encargo é simplesmente...
correr!
O momento em que Bunyan escreveu essa obra não é certo, pois
não foi publicada durante sua vida: seu amigo Charles Doe a
publicou em 1692, quatro anos após sua morte. Mas os
pensamentos que esse corredor desenvolve são tanto um eco de O
peregrino que é difícil duvidar que o sermão tenha sido escrito logo
após Bunyan terminar a alegoria. George Offer, editor de Bunyan
em meados do século 19, extrai o seguinte:
Existe um Pântano de Desânimo a ser superado e uma dificuldade de colina a ser
superada? Aqui o corredor é lembrado de “muitos degraus sujos, muitas colinas altas,
uma longa e tediosa jornada ao longo de um vasto deserto uivante”; mas ele é
encorajado, “a terra da promessa está no fim do caminho”. O homem que deseja obter
a glória eterna desembainha sua espada, coloca seu capacete e luta para entrar no
templo — o corredor celestial deve pressionar, empurrar e avançar por tudo o que está
entre o céu e sua alma. A Ignorância, que pereceu no caminho, disse aos peregrinos:
“Vocês vão rápido, devo ficar um pouco para trás”? O que corre para o céu diz que
aquele de passo pesado, preguiçoso, devasso e tolo não alcançará o prêmio.
A portinhola no início do caminho é muito importante; ninguém pode chegar ao céu a
menos que entre por Cristo, a porta e o caminho, então o corredor é lembrado de que
não importa quão rápido ele corra, nunca poderá alcançar o prêmio se estiver no
caminho errado. Os peregrinos sofreram muito ao entrar no prado pelo atalho e, mesmo
depois dessa experiência amarga, foram novamente induzidos a um atalho, então por
um homem negro vestido com vestes brancas. O nosso corredor é avisado — Cuidado
então com o atalho e os caminhos tortuosos que conduzem à morte e à danação [...]
Os pobres peregrinos foram grunhindo, bufando e suspirando; um tropeça em um
arbusto, outro atola na terra. Um grita: “Estou caído”, e outro: “Oh, onde você está?”.
Assim, o corredor é informado de que “enfrentará a cruz, a dor e o cansaço da carne,
com sarças e atoleiros e outros obstáculos”, e em todos eles deve perseverar. O
Formalista e o Hipócrita se desviaram ao pé do desfiladeiro da Dificuldade e
miseravelmente pereceram? A Descrença e a Covardia voltaram correndo, com medo
dos perseguidores dos leões, da Igreja e do Estado? Assim, o homem que corre para o
céu é advertido — “Alguns, quando vêm à cruz, não podem ir mais longe, mas voltam
aos seus pecados; eles vão, tropeçam e quebram o pescoço, ou se voltam para a
esquerda ou para a direita, e perecem. Não esteja pronto para parar, nem correr
mancando [...]”. Ou, como Paulo observa no texto que este sermão abre: “Correi de tal
maneira que o alcanceis”.
A corrida da fé, da primeira à última página, é uma exortação
única para correr, correr muito e continuar correndo ao longo do
caminho da vida. Bunyan assume que seus leitores já conhecem as
verdades objetivas do evangelho que O peregrino retrata para eles,
e agora se concentra em aumentar a consciência e gerar
compromisso em relação a ganhar o céu e escapar do inferno. Aqui,
como em outras de suas obras homiléticas, a intensidade de
Bunyan quase o oprime. Seu senso dos horrores do inferno e da
veracidade das ameaças de Deus aos descuidados e insinceros que
correspondem às suas promessas aos fiéis é muito forte, e ele
comanda um fluxo de palavras que o torna mais capaz do que a
maioria de nos fazer sentir o que ele mesmo sente. Ele está
verdadeiramente engajado em um “trabalho de despertamento e
conversão” aqui. Tendo formulado o ensino de seu texto como
aqueles que terão o céu devem correr atrás dele, ele aborda as
mudanças da motivação para correr — e como fazê-lo —, e
desenvolve pensamentos motivadores que deveriam defini-lo e
mantê-lo correndo, sacudindo-o de qualquer apatia complacente,
de qualquer indolência ou, como ele chama, de preguiça, que possa
ter-se estabelecido em seu espírito. Talvez a mais penetrante de
todas as suas observações a esse respeito esteja contida em “Uma
epístola a todas as pessoas preguiçosas e descuidadas”, que ele
publicou como um prefácio, mas que, sem dúvida, escreveu depois
de terminar o livro, enquanto os pensamentos que ele havia
desenvolvido ainda estavam fervilhando em sua mente. Sinta a
força destes excertos dele:
Ouso dizer isto: nenhuma vergonha maior pode sobrevir a um homem do que ver que
ele enganou sua alma e pecou para a vida eterna. E tenho certeza de que esta é a
próxima maneira (mais direta) de fazer isso; a saber, ser preguiçoso; preguiçoso, eu
digo, na obra da salvação [...].
Se você deseja conhecer um preguiçoso nas coisas do céu, compare-o a alguém que é
preguiçoso nas coisas deste mundo. Como: 1. Aquele que é preguiçoso reluta em se
dedicar à obra que deve seguir; assim é aquele que é preguiçoso para o céu. 2. O
preguiçoso é aquele que está disposto a se atrasar; assim é o preguiçoso para o céu. 3.
Para aquele que é preguiçoso, qualquer coisa pequena que surgir no meio do caminho,
ele dará desculpa suficiente para impedi-lo de exercer sua obra; assim também é com
aquele que é preguiçoso para o céu. 4. O preguiçoso faz sua obra pela metade; e assim
é aquele que é preguiçoso para o céu [...] 5. Aqueles que são preguiçosos geralmente
perdem seu tempo em coisas que devem ser feitas; assim acontece também com
aqueles que são preguiçosos para o céu: eles perdem o tempo da graça. E, portanto, 6.
Aqueles que são preguiçosos raramente ou nunca têm bons frutos; assim também será
com o preguiçoso de alma. 7. Os preguiçosos são corrigidos (repreendidos) pelo
mesmo: assim também Cristo tratará aqueles que não são ativos por ele [...]
Levante-se, homem, abandone a preguiça; coloque os pés, o coração e tudo o mais no
caminho de Deus, e corra, pois a coroa está no final da corrida; lá está também o
precursor amoroso, sim, Jesus, aquele que preparou a provisão celestial para dar as
boas-vindas à tua alma, e ele vai dar-te um coração mais disposto do que podes desejar
[...]
Desejo que nossas almas possam encontrar consolo no fim da jornada.
Esse é o verdadeiro perscrutador e comovente John Bunyan, a
todo vapor, como de fato é exposto ao longo deste livro. Não me
deixe afastar você dele, ou ele de você, por mais tempo. Como ele
dizia, “O céu acena — que possamos ser encontrados correndo
para ele!”.

7 John Bunyan, O peregrino (São Paulo: Mundo Cristão, 2006).


I
Esse artigo de um conjunto de seis sermões foi o trabalho literário
final de Matthew Henry. Foi publicado quando ele morreu, aos 52
anos, em 1714, e foi novamente publicado pouco tempo depois, sob
o título The Pleasantness of a Religious Life opened, and proved,
and recommended to the consideration of all, particularly of Young
People [O deleite da vida religiosa desvelado, comprovado, e
recomendado à consideração de todos, especialmente dos jovens].
J. B. Williams, biógrafo de Henry, chamou isso de um “título
atraente”, mas eu duvido que muitos hoje achariam mesma coisa.
Isso, entretanto, não é culpa de Henry. A razão pela qual esse
título nos impacta como chumbo é que, durante os quase três
séculos que o separaram de nós, e pensando no título original
(citado poucas linhas acima), “agradabilidade” se tornou uma
palavra fraca, afirmando apenas que algo não é tão ruim; o termo
“religioso” tornou-se vago, cobrindo todas as crenças e atitudes que
envolvem “Deus” ou “deuses” (ou, hoje em dia, “deusas”) em algum
ponto; “consideração” tornou-se uma expressão legal, sugerindo um
pensamento que é conscientemente separado, em vez de
comprometido; e “jovens” tornou-se uma palavra condescendente
que cria expectativas de rebaixamento e, assim, afasta-os da
verdade. Se, no entanto, as associações dos últimos dias com o
título de Henry nos desencorajarem de cavar as preciosidades de
seu livro, isso será lamentável; pois o que ele está realmente
escrevendo — em seu estilo suave, extravagante e que remonta à
virada do século 17 — é sobre a alegria da vida cristã e, enquanto
conduzo seu livro de volta da obscuridade para um mundo que
abraça obras sobre a alegria de cozinhar, a alegria do sexo e
felicidades semelhantes, não posso deixar de desejar que ele, de
fato, lhe tivesse dado esse tipo de título.
Henry é bem direto sobre o que está fazendo. Trabalhando a partir
de Provérbios 3.17, “os seus caminhos são caminhos deliciosos, e
todas as suas veredas, paz”, ele primeiro observa que “nada atrai
mais fortemente do que o prazer” e, em seguida, declara que “a
verdadeira piedade tem verdadeiro prazer nela”.
De forma mais completa:
O prazer é algo tentador. O que dá prazer não pode deixar de atrair o desejo [...] a
religião tem o prazer ao seu lado [...] Aqui está uma isca que não tem anzol [...] um
prazer ao qual o próprio Deus o convida, e que o alegrará, tornando-o verdadeira e
eternamente feliz [...] é certo que há verdadeiro prazer na verdadeira religião (p. 49 do
original).

O objetivo de Henry é nos fazer ver que o verdadeiro cristianismo


é uma jornada para a alegria, sempre nos levando de uma alegria a
outra, e que essa é uma das excelentes e fortes razões para nos
sentirmos entusiasmados e envolvidos de todo o coração em nosso
discipulado. Ele expõe bem seu ponto de vista.
Primeiro, ele lista doze prazeres que os cristãos desfrutam: (1)
conhecer Deus e o Senhor Jesus Cristo;
(2) descansar em Deus; (3) ser filho de Deus; (4) saborear a
bondade graciosa de Deus em todos os confortos da criatura; (5)
confiar no cuidado de Deus; (6) deleitar-se em Deus; (7) louvar a
Deus; (8) escapar da escravidão aos nossos apetites e (9) paixões;
(10) amar e fazer o bem aos outros; (11) ter comunhão constante
com Deus;
(12) ansiar pela glória do céu.
Em seguida, ele revê o que Deus fez para trazer alegria aos
pecadores: fez as pazes no lugar deles por meio da cruz; prometeu-
lhes paz e deleite; e deu a eles o Espírito Santo, as Escrituras, as
ordenanças de adoração com oração e louvores, além do ministério
do evangelho, a fim de trazer para casa as bênçãos preparadas para
eles. Ele relaciona essas bênçãos a perdão, segurança, acesso a
Deus, contentamento, calma, a confiança de uma boa consciência e
os verdadeiros presságios de glória.
Em seguida, ele confirma o que disse até agora, apelando para a
experiência cristã, o que confirma plenamente seu argumento, e
retrata a vida cristã como uma jornada tornada agradável por seu
valor, pelo dom do vigor concedido para trilhá-la, pela presença do
Espírito Santo para guardar e guiar, pela boa companhia, terreno
agradável, bom tempo e amplas provisões no caminho, e por saber
que experimentaremos o fim da jornada no lar.
Finalmente, após rejeitar o ceticismo dos irreligiosos e a
deturpação dos taciturnos a respeito das delícias da devoção, e
depois de contestar a ideia de que as dores do arrependimento, as
exigências da autodisciplina e da abnegação e a constante
experiência de oposição destroem a alegria do discipulado, ele
exorta seus leitores diretamente, começando do ponto em que se
encontram, a entrarem na plenitude da vida espiritual que ele
descreve.
Algumas coisas não mudam. O que Henry escreveu há quase três
séculos, tudo envolto em uma linguagem que deve parecer-nos
antiquada, é tão verdadeiro e sábio nos dias de hoje quanto sempre
foi. Nós também ouvimos, às vezes por intermédio de nossos amigos
seculares, às vezes por nossos próprios pensamentos mórbidos, que
ser cristão é algo sombrio e pesado, e que não ser cristão seria mais
divertido; nós também, como os primeiros leitores e ouvintes de
Henry, precisamos ser lembrados de que definitivamente não é
assim. O lembrete de Henry vem de seu coração: “Eu confesso”,
escreve ele, “que atendo a uma inclinação própria; pois essa
doutrina do prazer da religião é o que tenho há muito tempo em
particular, e aproveitei todas as ocasiões para mencioná-la” (p. 20 do
original). A vida cristã, embora não seja uma jornada de prazeres, é
uma estrada de alegria! Como conhecedor e veterano dos prazeres
espirituais, Henry nos ajudará a verificar isso hoje em dia.
II
Quem foi Matthew Henry, que escreveu esse precioso livrinho? Ele
foi parte da era de prata do puritanismo. Deixe-me explicar.
No mundo do estudo literário e da história das ideias, costuma-se
fazer distinção entre as eras de ouro e de prata dos movimentos
criativos. A era de ouro é o período no qual os pioneiros fazem o
trabalho criativo, consagrando-se como mestres por aquilo que é
clássico, marco de qualidade de suas realizações. Segue-se a era de
prata: o período no qual aqueles que lideram procuram, antes de
mais nada, seguir os passos dos precursores, delineando, polindo e
transmitindo fielmente a tradição de sabedoria que herdaram. Eles
pontuam e cruzam informações, aprofundando-se nos detalhes à
medida que vão avançando e, apoiando-se nos ombros de seus
predecessores, às vezes os superam em clareza e precisão de
afirmação; ainda assim, eles se mantêm conservadores em vez de
criadores, e colonizadores em vez de exploradores. Seu objetivo é
manter uma herança, e é para esse fim que dedicam suas
capacidades e seus esforços.
No cristianismo, a distinção entre ouro e prata se aplica de
maneiras distintas, de acordo com a perspectiva de cada um. Assim,
de um ponto de vista, você pode rotular a carreira explosivamente
criativa de Lutero como a idade de ouro da Reforma e ver a
habilidade de sistematização de Calvino e Melâncton como sua
contraparte prateada. De outro ponto de vista, a era de Lutero,
Calvino, Bucer, Martyr, Cranmer, Knox e seus colegas é a era de ouro
da teologia reformacional, e o século teológico puritano de Perkins a
Owen, com sua contraparte continental de Beza a Turretin, é a era
de prata que o sucedeu. De um terceiro ponto de vista, alguns
mestres da vida cristã, como John Newton, Robert Murray
McCheyne, C. H. Spurgeon, J. C. Ryle e Arthur W. Pink, são a era de
prata em relação à era de ouro dos pioneiros puritanos, como
Perkins, Sibbes, Baxter, Bunyan, Owen, Gurnall, Thomas Goodwin e
Thomas Hooker, por haverem mapeado a realidade interna da vida
cristã de fé, esperança e amor. E, de um quarto ponto de vista, três
homens cujas melhores obras adornam o início do século 18
deveriam ser vistos como figuras da era de prata em relação a toda
a produção teológica e prática da era de ouro puritana que os
precedeu: Cotton Mather, Isaac Watts e Matthew Henry. Os três,
contudo, são subestimados e precisam ser reavaliados, mas aqui
nosso foco está apenas em Henry.
Ele nasceu em 1662, o ano em que seu piedoso pai puritano, Philip
Henry, foi um dos dois mil expulsos do ministério pastoral na igreja
restaurada da Inglaterra. Seus pais o criaram segundo as crenças e
os padrões de comportamento puritanos (oração diária, leitura da
Bíblia, autovigilância e autoexame; manutenção de diários e busca
prática da presença de Deus; moralidade escrupulosa e filantropia
generosa; guarda estrita do Shabat; e trabalho árduo nos outros seis
dias da semana). Precoce, brilhante, vivaz e amante da Bíblia, Henry
nunca quis fazer outra coisa em sua vida a não ser servir a seu
Senhor no ministério pastoral; e, em 1687, após ter passado por
uma academia não conformista e começado a estudar Direito em
Gray’s Inn, foi ordenado como ministro presbiteriano e começou a
pastorear uma congregação em Chester. Essa igreja teve mais de
trezentos e cinquenta membros durante os vinte e cinco anos em
que ele ali serviu. Em 1712, dois anos antes de sua morte, ele se
mudou para Hackney, nos arredores de Londres.
Como um bom pregador puritano, ele era muito procurado. Por
uma questão de consciência, nunca recusou um convite para pregar,
se pudesse aceitá-lo, e durante todo o seu ministério
frequentemente se encontrava em algum púlpito, às vezes três vezes
por dia em lugares diferentes.
Ambos os cultos de domingo em sua própria igreja duravam até
três horas, já que ele não apenas pregava por uma hora a partir de
um texto, como também passava uma hora expondo um capítulo da
Bíblia. Dessa prática, nasceu seu famoso comentário bíblico, cuja
publicação teve início em 1704, com um total de cinco volumes,
levando-o até o final de Atos, antes de sua morte. (Posteriormente,
alguns amigos compuseram o volume seis com base em suas
anotações remanescentes.)
Simples e prático em estilo, embora completamente erudito e
bem-informado quanto ao conteúdo, o comentário ainda é
considerado um clássico, situando-se bem acima de qualquer outra
exposição popular produzida antes ou depois.
III
Como os leitores modernos devem entrar em sintonia com O
deleite da vida cristã, a fim de extrair o melhor proveito da obra?
Essa é uma pergunta necessária, pois Henry presume boa parte do
que não pode ser dado como certo hoje e, a menos que nos
ajustemos a isso logo no início, podemos muito bem sentir que seu
material é brando e fácil, e não fala realmente de nossa condição —
ou, para ser mais direto, que você precisa ser uma pessoa bem
antiquada para apreciar coisas tão antiquadas! Os pontos a seguir
são apresentados na esperança de prevenir qualquer reação desse
tipo.
Em primeiro lugar, devemos esclarecer a compreensão puritana do
cristianismo: uma visão conectada de Deus, da Bíblia, do mundo, de
nós mesmos, da salvação, da igreja, da história e do futuro. Poucos,
ao que parece, mesmo nas igrejas que creem na Bíblia,
compreendem todo esse quadro e, nas igrejas liberais, em que a
atenção aos modismos e fantasias dos estudiosos substitui o ensino
da Bíblia, não há praticamente nenhuma compreensão a esse
respeito. Antigamente, as igrejas ensinavam esse conteúdo a todos
os seus filhos, usando catecismos, mas isso não acontece mais.
Declaro aqui, portanto, de forma sucinta.
Deus, que, dentro da unidade de seu ser, é intrinsecamente uma
sociedade com o Pai, o Filho e o Espírito Santo, e que é infinito,
imutável e onipotente em sua sabedoria, bondade e justiça, criou o
universo e a nós mesmos para que ele possa nos amar e abençoar
— e nós possamos amá-lo e louvá-lo. Mas as coisas deram errado.
O pecado original é a distorção radical da natureza moral de cada
ser humano, tornando impossíveis o amor e a honra a Deus em
nossos corações, e o egocentrismo, em seu nível mais profundo,
algo inevitável. Pecamos porque somos pecadores, e a história
humana, em algum sentido, é o pecado original em larga escala.
Jesus Cristo, o Salvador, o judeu que morreu e ressuscitou, aquele
que reina e voltará para retribuir a todos, no passado, presente e
futuro, é Deus, o Filho encarnado, cuja morte expiou nossos
pecados, em quem confiamos para o perdão e a aceitação, e a quem
servimos como nosso Senhor vivo, unindo-nos a si mesmo para a
renovação de sua imagem em nós, destronando o pecado original e
nos dando recursos contra sua capacidade de nos desviar no
processo. Essa é a salvação presente.
O Espírito Santo, a terceira pessoa da Trindade, atua para o Pai e o
Filho, convencendo-nos de nosso pecado e da necessidade da
realidade de Cristo como Salvador; atraindo-nos a ele em fé
penitente por meio da regeneração; testemunhando nosso perdão, a
adoção e a esperança de glória; e operando progressivamente em
nós a semelhança de caráter com Cristo, na medida em que
buscamos o que, na verdade, é nossa jornada de volta ao lar. Essa é
a aplicação da redenção.
A igreja é a sociedade sobrenatural de todas as pessoas
regeneradas e unidas pelo Espírito Santo a Jesus Cristo, chamadas
para adorar, testemunhar e trabalhar em conjunto para a glória de
Cristo; também é enriquecida com pastores estabelecidos,
ordenanças sacramentais e abundantes habilidades de serviço para
esse propósito. Todo cristão pertence à igreja da forma como Deus a
conhece, precisa dela como sua família de apoio e deve dedicar-se e
ter comunhão nela em uma de suas expressões locais particulares. A
vida cristã é uma vida corporativa.
A Bíblia, a Palavra escrita de Deus, é a fonte divina de
conhecimento de todas essas coisas.
Essa é, em poucas palavras, a compreensão puritana do
cristianismo, que Henry incute em seus leitores.
Em segundo lugar, devemos esclarecer a antítese entre o
cristianismo puritano e o secularismo ocidental, tanto em sua forma
modernista como em sua forma pós-modernista. Onde o puritanismo
olha para a Palavra de Deus em busca de autoconhecimento e
orientação para a vida, a modernidade olha com otimismo para a
razão humana expressa nas ciências e filosofias, enquanto o pós-
modernismo, do qual as universidades de hoje estão cheias, diz aos
modernistas, com pessimismo, que seu empreendimento é
desesperador, visto que o que filósofos e cientistas, como os cristãos
antes deles, oferecem como verdade universal não passa de um
empreendimento impróprio de controle da mente.
O que quer que se pense sobre essa afirmação (por exemplo, ela
se aplica ao próprio pós-modernismo?), é claramente uma expressão
do secularismo tanto quanto a modernidade que busca minar, e do
campo de batalha no qual modernistas e pós-modernistas se
debatem. Com esforço, os vapores do relativismo, do ceticismo e do
desespero se espalham por toda parte, produzindo uma espécie de
mentalidade em que nada parece certo e nada parece valer a pena,
agarrando os prazeres que cada momento oferece, o que parece ser
a única coisa a se fazer. Assim, a natureza humana é desvalorizada,
a vida humana é aviltada, o pensamento humano é bloqueado e nós
vivemos sem rumo, movidos apenas por instinto, apetite e várias
formas de ganância, da mesma forma que costumávamos atribuir
aos animais inferiores. Nossa ideia de vida é estar à deriva, e nossa
ideia de prazer repousa na satisfação momentânea de desejos,
comichões e impulsos instintivos, sensuais, baseados no corpo e
autocentradas. (Eu os classifico de acordo com sua força: um desejo
é um forte comichão, enquanto um anseio é um forte desejo.) Foi
até aqui que nosso secularismo nos trouxe, e essa é uma história
triste.
Em uma antítese direta a todos os aspectos dessa tendência
secular, está a forte convocação de Henry para a verdade eterna —
“verdade verdadeira”, como Francis Schaeffer diria — sobre a
natureza humana.
A alma é o homem [“alma” aqui significa o ser pessoal, consciente, pensante, contínuo].
Espero que me seja prontamente reconhecido que o homem deve ser considerado
principalmente um ser intelectual, imortal, dotado de poderes e capacidades espirituais,
aliado ao mundo dos espíritos; que há um espírito no homem, que tem sensações e
disposições próprias, faculdades ativas e receptivas, distintas das do corpo; e que essa é
a parte que somos e com a qual devemos nos preocupar mais; porque as coisas vão bem
ou mal conosco na medida em que vão bem ou mal com nossas almas. Acredite que, em
nosso estado atual, a alma e o corpo têm interesses separados e conflitantes; o corpo
pensa que é do seu interesse ter seus apetites e prazeres satisfeitos; conquanto a alma
saiba que é de seu interesse ter os apetites do corpo subjugados e mortificados, para
que os prazeres espirituais sejam mais apreciados [...] Sejam sábios, portanto; sejam
resolutos e mostrem-se como homens movidos e governados pela razão, homens que
são afetados por coisas como a razão as representa: não a razão como é no mero
homem natural, obscurecido, mergulhado e perdido nos sentidos; mas a razão elevada e
guiada pela revelação divina para nós e pela graça divina em nós. Ande pela fé, e não
pelos sentidos (p. 50 do original).

Somente quando compreendermos a antítese entre o cristão


histórico e as abordagens seculares modernas para as áreas da vida,
e nos programarmos para nos livrar do preconceito cultural e levar a
sério a visão cristã, bíblica e puritana da natureza e do bem-estar
humanos, seremos capazes de lucrar com a torrente de sabedoria
que Henry derrama quando começa sua caminhada.
A ideia popular de um puritano sempre foi a de um rabugento
farisaico que espalha tristeza por onde passa. Na verdade, porém,
como o puritano da vida real praticava as disciplinas do cristianismo
sério, orando, jejuando, sustentando seu coração, guerreando contra
o mundo, a carne e o diabo, mantendo uma vida regrada e fazendo
todo o bem possível, encontrava prazer mental e alegria em cada
curva da estrada — no silêncio e na agitação, na paz e na
prosperidade, na tristeza e na tensão — e essa é a experiência que
Henry deseja compartilhar e aprofundar. O controle do pensamento,
ao perceber a realidade de Deus presente a cada momento para
abençoar, é o segredo, e o discurso de Henry, lido e relido, pode
levar-nos diretamente a ele. Espero que muitos provem que é assim.
Creio que devo mais a John Owen do que a qualquer outro
teólogo, antigo ou moderno, e tenho certeza de que devo mais a seu
livrinho sobre mortificação do que a qualquer outra coisa que ele
escreveu. Deixe-me explicar.
No meu primeiro semestre na universidade, pouco mais de meio
século atrás, fui convertido, ou seja, cheguei ao Senhor Jesus Cristo
em um comprometimento decisivo, buscando o perdão e a aceitação
de Deus — dos quais tinha necessidade —, consciente do amor
redentor de Cristo por mim e de seu chamado pessoal. O grupo que
me acompanhava tinha um estilo fortemente pietista e não deixava
dúvida de que o mais importante para mim como cristão era a
qualidade da minha caminhada com Deus: no que, é claro, eles
estavam totalmente certos. Contudo, eles também tinham um
espírito um tanto elitista, sustentando que apenas algumas alas
fundamentalistas de evangélicos seriam capazes de dizer algo que
valesse a pena ouvir sobre a vida cristã, e os líderes encorajavam o
resto de nós a assumir que qualquer pessoa considerada
ortodoxamente sólida o suficiente para falar ao grupo desse tema
com certeza seria boa. Eu ouvia, com grandes expectativa e
entusiasmo, os pregadores e mestres que o grupo trazia semana
após semana, sem duvidar de que eles eram os melhores instrutores
devocionais na Grã-Bretanha — talvez até no mundo. Então eu
testemunhei o fracasso.
Se o que pensei ter ouvido era o que realmente estava sendo dito,
essa talvez seja uma questão em aberto, mas me pareceu que o que
estava sendo dito era isso. Existem dois tipos de cristãos: de
primeira e de segunda classe, “espirituais” e “carnais” (uma distinção
extraída da tradução King James de 1Coríntios 3.13). Os primeiros
conhecem paz e alegria perenes, têm uma confiança interior
constante e contam com vitória certa sobre a tentação e o pecado,
de uma forma que os últimos não conhecem. Aqueles que esperam
ser úteis a Deus devem tornar-se “espirituais” no sentido
consagrado. Como um adolescente introvertido, solitário e nervoso,
cuja segurança recém-descoberta não muda seu temperamento da
noite para o dia, tive de concluir que ainda não era “espiritual”. Mas
eu queria ser útil a Deus. Então, o que eu devia fazer?
“Deixe o mundo para trás e Deus não o abandonará”
Há um segredo, disseram-me, para passar da carnalidade à
espiritualidade, um segredo espelhado na máxima “Deixe o mundo
para trás e Deus não o abandonará”. Lembro-me vividamente de um
clérigo radiante, em um púlpito de Oxford, reforçando isso.
O segredo tinha a ver com ser cheio do Espírito. A pessoa cheia do
Espírito, diziam, é tirada da segunda metade de Romanos 7 —
compreendida (compreendida mal, eu sustentaria agora) como uma
análise da constante derrota moral devido à autoconfiança — e
levada a Romanos 8, passagem em que ela caminha com confiança
no Espírito e, assim, não é derrotada. Então, eu concluí que a
maneira de ser cheio do Espírito era a seguinte:
Antes de tudo, é preciso negar a si mesmo. Jesus não exigiu
abnegação de seus discípulos (Lc 9.23)? Sim, mas claramente o que
ele quis dizer foi a negação do eu carnal — ou seja, obstinação,
autoafirmação, egocentrismo e autoadoração, a síndrome adâmica
na natureza humana, o padrão de comportamento egocêntrico,
enraizado em aspirações e atitudes contrárias a Deus, para as quais
o nome comum é pecado original. O que, aparentemente, eu estava
ouvindo, no entanto, era um chamado para negar o eu pessoal, para
que pudesse ser assumido por Jesus Cristo de tal forma que minha
experiência presente de pensar e querer se tornasse algo diferente,
uma experiência do próprio Cristo vivendo em mim, animando-me,
governando o que penso e o que quero. Dito assim, soa mais como
a fórmula da possessão demoníaca do que como o ministério do
Cristo que habita em nós, de acordo com o Novo Testamento. Mas,
naquela época, eu não sabia nada sobre possessão demoníaca, e o
que acabei de expressar em palavras parecia ser o significado claro
de “vivo não eu, mas Cristo vive em mim” (Gl 2.20), como exposto
pelos preletores aprovados. Costumávamos cantar o seguinte refrão:
Oh, ser salvo de mim mesmo, querido Senhor,
Oh, estar perdido em ti;
Oh, que não seja mais eu
Mas Cristo que viva em mim!

Seja o que for que o autor desse refrão quis dizer, eu cantava de
todo o coração, no sentido explicado acima.
O restante do segredo estava atrelado às palavras consagração e
fé. Consagração significa entrega total de si mesmo, colocando tudo
sobre o altar e entregando cada parte de sua vida ao senhorio de
Jesus. Por meio da consagração, a pessoa seria esvaziada de si
mesma e o vaso vazio seria, então, automaticamente cheio do
Espírito para que o poder de Cristo dentro dela estivesse pronto para
uso. Com a consagração, vinha a fé, o que foi explicado como olhar
para o Cristo que habita em cada momento, não apenas para fazer
alguém pensar e escolher, mas também para lutar e resistir à
tentação. Em vez de enfrentar a tentação diretamente (o que
significaria lutar com as próprias forças), deve-se entregá-la a Cristo
para lidar com ela e esperar que ele a elimine. Essa era a técnica de
consagração e fé da forma como eu a entendia — uma espécie de
poção mágica poderosa, como eu pensava que fosse, o precioso
segredo do que era chamado de vida vitoriosa.
Mas o que houve? Eu raspei meu interior, figurativamente falando,
para garantir que minha consagração fosse completa, e me esforcei
para “deixar o mundo para trás e Deus não me deixará” quando a
tentação fizesse sua presença ser sentida. Naquela época, eu não
sabia que Harry Ironside, ex-pastor da Moody Memorial Church, em
Chicago, certa vez teve um colapso mental ao tentar entrar na vida
superior como eu tentei entrar; e eu não teria ousado concluir, como
o fiz desde então, que tal vida superior, da forma descrita, é um
fogo-fátuo, uma irrealidade que ninguém jamais alcançou, e que
aqueles que testemunham sua experiência nesses termos realmente
— senão inconscientemente — distorcem o que aconteceu com eles.
Tudo que eu sabia era que a experiência esperada não viria. A
técnica não estava funcionando. Por que não? Bem, uma vez que o
ensino declarava que tudo depende de a consagração ser plena, a
culpa tinha de estar em mim. Portanto, devo raspar meu interior
novamente para encontrar quaisquer resquícios da individualidade
não consagrada que ainda se escondem lá. Fiquei bastante frenético.
E, então (graças a Deus), o grupo recebeu uma biblioteca de um
velho clérigo, e nela havia uma coleção fechada de obras de Owen,
e eu abri as páginas do volume VI mais ou menos ao acaso, e li o
que Owen falava sobre mortificação — e Deus usou o que o velho
puritano havia escrito três séculos antes para me esclarecer. Aqui
estava a quimioterapia de Deus para minha alma com câncer.
Atravessando esses três séculos, Owen me mostrou meu interior
— meu coração — como ninguém havia feito antes. O pecado,
segundo ele, é uma energia cega, contrária a Deus e egocêntrica no
sistema espiritual humano caído, sempre fomentando desejos,
ambições, propósitos, planos, atitudes e comportamentos
egocêntricos e enganadores. Agora que eu era um crente
regenerado, nascido de novo, uma nova criatura em Cristo, o pecado
que antes me dominava fora destronado, mas ainda não fora
destruído. Ele estava saqueando meu interior o tempo todo,
trazendo de volta desejos pecaminosos dos quais eu esperava ter
me livrado definitivamente, e distorcendo meus novos desejos por
Deus e pela piedade, de forma que se transformavam em orgulho
pervertido. Um conflito por toda a vida contra pecados persistentes,
os quais, por sua vez, proporcionariam mais pecados persistentes
era o que eu deveria esperar.
O que fazer? Aqui estava a resposta de Owen, em essência:
mantenha a santidade de Deus clara em sua mente. Lembre-se de
que o pecado lhe erradica a sensibilidade. Observe, ou seja,
prepare-se para reconhecê-lo e investigá-lo dentro de si mesmo, por
meio de um autoexame disciplinado, baseado na Bíblia e conduzido
pelo Espírito. Concentre-se no Cristo vivo e em seu amor por você
na cruz. Ore, pedindo força para dizer “não” às sugestões do pecado
e para se fortalecer contra os maus hábitos, formando bons hábitos
contrários a eles. E peça a Cristo para matar o desejo pecaminoso
contra o qual você está lutando, como o anjo teofânico no livro O
grande abismo, de C. S. Lewis, diz ao personagem na obra.
Funciona? Sim. Quase setenta anos depois, eu posso testemunhar
isso.
O livro de Owen ministra a outros como ministrou a mim? Sim. Eis
o testemunho recente de um presidiário:
Eu encontrei este livro [...] no chão, perto de um banheiro [...] Imediatamente depois de
terminar de ler A mortificação do pecado, de Owen, ajoelhei-me no chão da minha cela e
implorei a Jesus para entrar em minha vida miserável e me redimir [...] e pela primeira
vez em toda a minha vida atribuí significado a cada palavra que eu professava [...]
Obrigado, Jesus!
Owen é um dos mortos que ainda fala.

Um gigante puritano
Owen foi, segundo o senso comum, o teólogo puritano mais
importante, e muitos o colocariam entre João Calvino e Jonathan
Edwards como um dos três maiores teólogos reformados de todos os
tempos. Nascido em 1616, ele ingressou no Queen’s College, em
Oxford, aos 12 anos, e obteve seu mestrado em 1635, quando tinha
19 anos. Com vinte e poucos anos, a convicção do pecado o lançou
em tamanha turbulência que, por três meses, ele mal conseguia
pronunciar uma palavra coerente sobre qualquer coisa; mas, aos
poucos, ele foi aprendendo a confiar em Cristo e, assim, encontrou a
paz. Em 1637, ele se tornou pastor; na década de 1640, foi capelão
de Oliver Cromwell e, em 1651, foi nomeado decano da Christ
Church, a maior faculdade de Oxford. Em 1652, ele recebeu o cargo
adicional de vice-reitor da Universidade, o qual reorganizou com
notável sucesso. Depois de 1660, ele liderou os independentes
durante os amargos anos de perseguição, até sua morte, em 1683.
Ele foi um teólogo reformado conservador de grande erudição e
força expositiva. Seus pensamentos são como os pilares de uma
catedral normanda; eles deixam uma impressão de grandeza
massiva justamente por causa de sua simplicidade consistente. Ele
escreveu para leitores que, uma vez que começam a investigar
determinado assunto, não conseguem descansar até verem o fundo
dele, e que consideram a exaustividade da cobertura e a
apresentação das mesmas verdades sob muitos ângulos distintos
não exaustiva, mas revigorante. Seus livros foram verdadeiramente
descritos como uma série de sistemas teológicos, cada qual
organizado em torno de um centro diferente. A verdade da Trindade
— a história do Criador Triúno tornando-se o Redentor Triúno —
sempre foi seu ponto-final de referência, e viver a vida cristã, sua
preocupação constante.
Owen incorporou tudo o que havia de mais nobre na devoção
puritana. “A santidade atribuiu um brilho divino às suas outras
realizações”, disse seu antigo colega, David Clarkson, ao pregar no
funeral de Owen. Como pregador, Owen curvou-se diante de sua
própria máxima, de que “um homem prega seu sermão bem a
outros apenas quando o prega também à sua própria alma”, e
declarou: “Eu me considero limitado pela consciência e pela honra.
Não consigo nem mesmo imaginar que alcancei o conhecimento
adequado de qualquer artigo da verdade, muito menos para publicá-
lo, a menos que, através do Espírito Santo, eu tenha experimentado
tanto isso, em seu sentido espiritual, que possa ser capaz, de todo o
coração, de dizer com o salmista: Eu cri e por isso falei”. Isso explica
a autoridade e a habilidade com que Owen investiga as profundezas
sombrias do coração humano. “Passagens inteiras passam pela
mente do leitor com uma influência que o faz sentir como se
tivessem sido escritas apenas para ele” (Andrew Thomson). O
tratado sobre a mortificação é um exemplo notável disso.
Sabedoria na mortificação
O “discurso” de Owen, como ele o chamava, é um conjunto escrito
de sermões pastorais sobre Romanos 8.13: “Se, pelo Espírito,
mortificardes os feitos do corpo, certamente vivereis”. O sermões
foram pregados em Oxford e o trabalho foi publicado em 1656 (com
a segunda edição ampliada em 1658). Já foi dito que os romances
de Jane Austen deveriam ser lidos pela quarta vez, o que significa
que, apenas na quarta leitura, sua excelência especial de estrutura
equilibrada, sátira gentil e humor sutil entrará em foco na mente do
leitor. O mesmo poderia ser dito desses sermões, pois somente
através de leituras reiteradas seu poder de busca e unção é
adequadamente percebido. Seu tema é o lado negativo da obra de
santificação de Deus (ou seja, a renovação do caráter à imagem de
Cristo). Os mestres reformados, de Calvino em diante, têm explicado
regularmente a obra santificadora do Espírito Santo em termos de
positividade, vivificação (desenvolvimento de virtudes) e, de modo
negativo, mortificação (matar os pecados). Como afirma a Confissão
de Westminster (13.1):
Os que são eficazmente chamados e regenerados, tendo criado em si um novo coração e
um novo espírito, são, além disso, santificados real e pessoalmente, pela virtude da
morte e da ressurreição de Cristo, pela sua palavra e pelo seu Espírito — Espírito que
neles habita; o domínio do corpo em relação ao pecado é todo destruído neles, suas
várias concupiscências são cada vez mais enfraquecidas e mortificadas, e eles são mais e
mais vivificados e fortalecidos em todas as graças salvadoras, para a prática da
verdadeira santidade, sem a qual ninguém verá Deus.
A mortificação é o assunto de Owen, e ele está decidido a explicar,
a partir das Escrituras, sua teolo-
gia — ou seja, vontade, sabedoria, obra e os meios de Deus em
relação a isso — tão completamente quanto puder. Mas, para tornar
seu tratamento o mais prático e útil possível, ele aborda dentro da
moldura de seu texto a seguinte questão:
Suponha que um homem seja um cristão verdadeiro e, ainda assim, encontre em si
mesmo um poderoso pecado interior, levando-o cativo à sua lei, consumindo seu coração
com problemas, confundindo seus pensamentos, enfraquecendo sua alma quanto aos
deveres de comunhão com Deus, inquietando-o quanto à paz e talvez até mesmo
desafiando sua consciência e expondo-o ao endurecimento pelo engano do pecado — o
que ele deve fazer? Qual curso deve tomar e em que deve insistir para a mortificação
desse pecado, dessa luxúria, dessa enfermidade ou dessa corrupção?

Ele, então, organiza seu material como uma série de coisas a


saber e fazer, coisas que respondem à questão da forma como é
proposta.
Falei anteriormente de como Owen salvou minha sanidade
espiritual. Na verdade, penso, depois de mais de sessenta anos, que
Owen contribuiu mais do que qualquer outra pessoa para me tornar
esse realista moral, espiritual e teológico que me tornei até então.
Ele me esquadrinhou até a raiz do meu ser. Ele me ensinou a
natureza do pecado, a necessidade de combatê-lo e o método
adequado para fazê-lo. Ele me fez ver a importância dos
pensamentos do coração na vida espiritual de uma pessoa. Ele
deixou claro para mim a verdadeira natureza do ministério do
Espírito Santo para o cristão, do crescimento e do progresso
espiritual, bem como da vitória da fé. Ele me mostrou a forma como
devo me entender como cristão e viver diante de Deus com
humildade e honestidade, sem fingir ser o que não sou ou não ser o
que sou. E ele apresentou todos esses pontos por meio de uma
exegese bíblica direta, trazendo as implicações experimentais de
textos didáticos e narrativos com uma precisão e uma profundidade
que eu não conhecia antes, e raramente tinha visto algum
equivalente. O amanhecer decisivo de todas as percepções que já
recebi de Owen veio, contudo, no momento em que li pela primeira
vez sobre a mortificação. Esse opúsculo é uma mina de ouro
espiritual. Nunca serei capaz de recomendar suficientemente essa
obra.
Sintonizando
Percebo, no entanto, enquanto escrevo isto, que alguns leitores
considerarão difícil sintonizar, por assim dizer, na frequência de
Owen, não apenas porque seu majestoso inglês latinizado, com sua
retórica exuberante e palavras estranhas ocasionais, os atrapalha,
mas também porque eles sofrem com as deficiências de grande
parte da educação cristã atual. Quatro delas, em particular, devem
ser mencionadas aqui.
Em primeiro lugar, a santidade de Deus é insuficientemente
enfatizada. Na Escritura, e em Owen, a santidade do “Santo” é
constantemente sublinhada.
A santidade, que tem sido chamada de o Atributo dos atributos de
Deus, é a qualidade que separa o Criador de suas criaturas,
tornando-o diferente de nós em nossa fraqueza, impressionante e
adorável para nós em sua força e um visitante de nossas
consciências cuja presença expõe e condena o pecado dentro de
nós. Muitas vezes hoje, no entanto, a santidade de Deus é
minimizada, com o pensamento de que seu amor e sua misericórdia
são sentimentais, de modo que acabamos pensando nele da mesma
forma que pensaríamos em um tio bondoso. Um efeito desse
irrealismo é tornar difícil para nós crer que o Deus Santo dos autores
da Bíblia — profetas, salmistas, historiadores, apóstolos e, muito
claramente, o próprio Senhor Jesus Cristo — é o Deus verdadeiro
com quem realmente temos de lidar. Mas os puritanos criam nisso, e
um ajuste aqui deve ser feito em nossas mentes se quisermos
apreciar a teologia de Owen.
Em segundo lugar, a importância do desejo motivador é
insuficientemente enfatizada. Nas Escrituras e em Owen, o desejo é
o indicador do coração, e a motivação é o teste decisivo para saber
se as ações são boas ou más. Se o coração está em erro, sem
reverência ou amor, ou pureza, ou humildade, ou um espírito de
perdão — e, em vez disso, está contaminado com orgulho, ambição
egoísta, inveja, ganância, ódio, luxúria ou algo semelhante —, nada
do que se faz pode estar certo aos olhos de Deus, como Jesus disse
aos fariseus reiteradas vezes. Muitas vezes hoje, no entanto, como
entre os fariseus, a vida moral é reduzida a uma encenação em que
o desempenho prescrito e esperado é tudo, enquanto nenhuma
atenção é dispensada aos desejos, às cóleras e às hostilidades do
coração, desde que as pessoas façam o que se espera que façam.
Esse externalismo, no entanto, por meio do qual avaliamos a nós
mesmos, não é a maneira de Deus nos avaliar e, quando a Escritura
diz aos cristãos para mortificar o pecado, o significado não é apenas
que os maus hábitos devem ser arruinados, mas também que os
desejos e as paixões pecaminosas devem ter sua “vida” drenada —
e é com isso que Owen está preocupado em nos ajudar ao longo de
seu livro. Um ajuste de perspectiva também deve ser feito aqui, se
quisermos apreciar o impulso de Owen.
Em terceiro lugar, a necessidade de autoexame é
insuficientemente enfatizada. Nas Escrituras, e em Owen, muita
ênfase é depositada no engano do coração humano caído e no risco
da ignorância acerca de si, resultando em pessoas que pensam bem
sobre seu coração e sua vida, enquanto Deus, aquele que sonda
corações, está descontente com ambos. É extremamente irônico
que, numa época em que os médicos da mente dão tanta
importância às motivações ocultas e não concretizadas, os cristãos
devam tão regular e resolutamente recusar-se a suspeitar de si
mesmos ou uns dos outros acerca de qualquer forma de autoengano
em suas concepções de si mesmos. Owen, um realista puritano,
sabe que estamos constantemente nos enganando, ou sendo
enganados, no que diz respeito às nossas atitudes e aos nossos
propósitos reais e, portanto, insiste que devemos observar e
examinar a nós mesmos segundo as Escrituras, a fim de até mesmo
saber quais hábitos do nosso coração precisam ser mortificados. Um
ajuste em nossa mentalidade também deve ser feito aqui, se
quisermos apreciar as sondagens de Owen.
Em quarto lugar, o poder transformador de Deus é
insuficientemente enfatizado. Na Escritura, e em Owen, a salvação
subjetiva significa, em seu sentido mais literal, uma mudança de
coração: uma mudança moral que está enraizada em um exercício
sustentado de fé, esperança e amor, por meio do qual o poder da
morte de Cristo para libertar da dominação pelo desejo pecaminoso
e o poder do Espírito Santo para induzir condutas semelhantes às de
Cristo estão sendo constantemente provados. Por mais equivocada
que tenha sido a fórmula para uma vida sobrenatural da qual Owen
me libertou, a expectativa de que os cristãos, por meio da oração a
Jesus, conhecessem a libertação de suas paixões pecaminosas
estava totalmente correta, e é triste — na verdade, escandaloso —
que hoje tão pouco se ouça a esse respeito, quando tanto se diz
sobre o poder de Cristo e de seu Espírito em várias formas de
ministração. Mas a verdadeira libertação das paixões pecaminosas é
a bênção à qual Owen nos conduziria, e ele não duvida da existência
dessa bênção. “Coloque em ação a fé em Cristo para matar seu
pecado”, escreve ele. “O sangue do Salvador é o grande remédio
soberano para as almas enfermas pelo pecado. Viva dessa forma e
você morrerá como um vencedor; sim, viva desse forma, você que
deseja, através da boa providência de Deus, viver para ver sua
luxúria morta aos seus pés.” Aqui, mais uma vez, um ajuste de
nosso interesse e expectativa deve ser feito se quisermos nos
beneficiar da orientação de Owen.
Continue lendo, então, com prontidão para aprender sobre o poder
do Salvador e do Espírito Santo para libertá-lo da escravidão ao
desejo desordenado. Deus nos deu um coração para que possamos
compreender e aplicar as verdades que Owen apresenta aqui.
I
“Obra do coração e obra do céu”, essa foi a forma como Richard
Baxter caracterizou, com bastante clareza, o verdadeiro cristianismo.
John Flavel, ao lado de quase todos os outros mestres puritanos,
concordaria totalmente com isso. No passado, o verdadeiro
cristianismo havia sido concebido em termos de ortodoxia,
ortopraxia, igreja, sacramentalidade, sincretismo e várias outras
coisas, mas os puritanos, como um corpo, definiram-no
precisamente em termos de comunhão com Deus — mais
precisamente ainda, uma comunhão com o Deus Triúno, por meio de
Jesus Cristo, o Mediador. É para isso que as duas expressões na
definição de Baxter estão apontando. “Obra do céu” consistia numa
disciplina da qual o próprio Baxter era o promotor supremo, ou seja,
a prática de meditação motivacional diária sob a perspectiva de estar
finalmente com Cristo no céu. O objetivo dessa disciplina era manter
o nível de energia do discipulado o mais alto possível, dando
continuidade a uma vida inclinada para a frente (assim podemos
descrevê-la com justiça), com os olhos do coração fixos no destino
final. “Obra do coração” era uma expressão usada para designar o
pensamento admoestador e o autoexame constantemente
necessários para sustentar o amor e a devoção mais ardentes a
Cristo, e a mais firme resistência aos muitos tipos de hostilidade e
desânimo que, na providência de Deus, os puritanos tiveram de
enfrentar. Um novo coração, de John Flavel (publicado pela primeira
vez como A Saint Indeed [O verdadeiro santo de Deus]), mostra isso
muito bem, como veremos em seguida.
De que coração Flavel — assim como Baxter — está falando? A
compreensão puritana do coração está enraizada não na fisiologia
medicinal, que reconhece o coração como um órgão que bombeia
sangue para todo o corpo, mas na teologia e na antropologia
bíblicas, que veem o coração como o núcleo central e dinâmico da
vida pessoal. A Bíblia se vale desse termo cerca de mil vezes,
destacando, ilustrando e reforçando as seguintes verdades:
(1) O coração humano é a fonte controladora de tudo o que
fazemos na expressão do que somos: todos os nossos pensamentos,
desejos, discernimentos e decisões, todos os nossos planos e
propósitos, nossos afetos, atitudes e ambições, toda a sabedoria e
toda a insensatez que marcam nossas vidas, tudo isso surge e é
alimentado, atendido e dirigido por nossos corações, para melhor ou
para pior. Nosso Senhor Jesus mostrou-se vividamente ciente disso.
“Como podeis falar coisas boas, sendo maus? Porque a boca fala do
que está cheio o coração” (Mt 12.34). “Porque de dentro do coração
dos homens é que procedem os maus desígnios, a prostituição, os
furtos, os homicídios, os adultérios, a avareza, as malícias, o dolo, a
lascívia, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura. Ora, todos estes
males vêm de dentro e contaminam o homem” (Mc 7.21-23).
(2) A salvação que Deus nos dá em Cristo está enraizada em uma
mudança de coração criada e criativa, conforme descrita por
Ezequiel em um oráculo sobre a restauração de Israel após o
cativeiro: “Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espírito
novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de
carne. Porei dentro de vós o meu Espírito e farei que andeis nos
meus estatutos, guardeis os meus juízos e os observeis” (Ez
36.26,27). O coração renovado se torna, por um lado, a fonte da fé
em Cristo e nas promessas do evangelho, por meio das quais
entramos em uma nova relação de aceitação com Deus; e, por outro
lado, a fonte de amor a Deus e ao homem — o propósito grato,
responsivo e resoluto de honrar e agradar a Deus em todas as
coisas, e buscar o melhor para os nossos mais próximos e queridos e
para qualquer pessoa que cruze nosso caminho. O novo coração,
com essa atitude, é, de fato, o sinal de nossa salvação, e a disciplina
interna de sustentar tal ação é a realidade da “obra do coração”:
que, diga-se de forma sensata, é obra de fato.
Dizer isso nos leva a John Flavel e ao livro que estou
apresentando. Mas, antes de nos voltarmos para o livro, algo deve
ser dito sobre o autor.
II
Natural de Bromsgrove, em Worcestershire, Flavel era filho de um
pregador, e não parece que tenha desejado ser outra coisa além de
um pregador pastoral. Nascido em 1628, ele se formou em Oxford e
se tornou pastor em 1650. O ministério pelo qual é lembrado estava
localizado em Dartmouth, Devon, a cidade portuária para a qual se
mudou em 1656. Ele ganhou destaque como pregador do clássico
estilo puritano, expositivo, analítico, didático, aplicativo, pesquisador,
persuasivo e edificante, com a unção divina capacitando
regularmente seu trabalho de púlpito. Seus escritos o revelam como
um homem lúcido e eloquente ao estilo puritano simples, ortodoxo,
centrado em Cristo e no interesse pela pessoa do Salvador, com sua
mente sempre voltada a promover a verdadeira piedade, com paz e
alegria no Senhor. Está registrado que ele passou muito tempo em
meditação, autoexame e oração, e que pelo menos em uma ocasião
teve uma experiência extraordinária com Deus. Meditando enquanto
cavalgava, “seus pensamentos começaram a se elevar e subir cada
vez mais alto, como as águas na visão de Ezequiel, até que
finalmente se tornaram uma inundação transbordante. Tal era a
intenção de sua mente, com os sabores arrebatadores das alegrias
celestiais, e com a plena certeza de seu interesse nisso, que ele
perdeu totalmente a visão e o sentido deste mundo e se alienou de
todas as preocupações correspondentes, e por algumas horas não
soube mais onde se encontrava, como se tivesse dormido
profundamente em sua cama”. Ao parar, exausto, em um lago à
beira da estrada, “sentou-se e se lavou, desejando sinceramente, se
fosse da vontade de Deus, que aquele fosse seu lugar de partida
deste mundo. A morte tinha a face mais amável que seus olhos já
tinham visto, exceto a face de Jesus Cristo que a tornara assim, e
ele não conseguia se lembrar, embora acreditasse estar morrendo,
de ter um pensamento sequer em sua querida esposa e em seus
filhos ou ainda em qualquer outra preocupação terrena”. Quando,
finalmente, alcançou a estalagem à qual estava se dirigindo, o
estalajadeiro indagou-lhe: “Senhor, o que lhe ocorre? Parece um
homem morto”, ao que Flavel respondeu: “Nunca estive melhor na
minha vida”. Na pousada, “aquela influência ainda permanecia,
banindo o sono. Mesmo assim, a alegria do Senhor ainda
transbordava dele, e ele parecia ser um habitante de outro mundo.
Muitos anos depois, ele chamou aquele dia de um dos dias do céu”.
Pensamos em Paulo, alcançando o que ele chamou de terceiro céu,
e em Jonathan Edwards chorando enquanto caminhava pela floresta
por causa da vivacidade com que percebera a glória e a beleza de
Deus. Bem, podemos fazer uma pausa temerosa por um instante,
antes de prosseguirmos.
Flavel foi expulso de seu púlpito em 1662, como um não
conformista, após o restabelecimento da Igreja da Inglaterra pelo
Ato de Uniformidade que se seguiu à restauração da monarquia, em
1660. Sua congregação o pressionou a permanecer em seu
ministério (agora ilegal) prestado a eles, e foi isso que fez por duas
décadas, pregando em casas, em bosques, em uma ilha rochosa no
estuário do rio Salcombe, que ficava submersa na maré alta, e em
outros lugares nos quais o longo braço da lei poderia ser evitado.
Então, de 1682 a 1685, ele se juntou a uma igreja congregacional
em Londres, auxiliando seu amigo William Jenkyn, estudioso de
Judas e seu ministro. Fugir à prisão pelas autoridades (pelotões de
soldados enviados pelos magistrados) também fazia parte de sua
rotina. Quando, em 1687, Tiago II suspendeu as restrições ao
ministério não conformista, Flavel já estava de volta a Dartmouth, e
sua congregação, ainda leal, ergueu imediatamente um grande
edifício em que seu ministério pudesse continuar. Ele morreu em
1691, deixando um legado escrito de exposição bíblica e devocional
que foi publicado pela primeira vez como duas grandes
encadernações e que resultou em 3.600 páginas divididas em seis
volumes, em sua reimpressão de 1968.
III
Em Um novo coração, Flavel nos conduz ao que, para ele, é a mais
básica de todas as disciplinas da vida interior do cristão — o básico
para a adoração e a oração; o básico para a fé, a esperança e o
amor; o básico para a humildade, a paz e a alegria; o básico para o
coração puro e a obediência constante. Que disciplina é essa? É a
disciplina que podemos chamar de meditação admoestadora, ou
seja, o desdobramento dentro da própria mente de linhas-chave de
pensamento que irão confirmar e reforçar os vários aspectos da
comunhão fiel com Deus, e nos trazer de volta a ele em lealdade
renovada quando tais práticas nos escaparem ou formos desviados
do caminho da fidelidade. Esses deslizes têm início na mente, com a
contemplação da desordem real ou potencial, moral ou
circunstancial, sem entregar a questão a Deus; e a prática da
meditação admoestadora consiste, de fato, em falar consigo mesmo
diante do Senhor, lembrando-se de verdades sobre os caminhos de
Deus e a graça de Cristo que irão estimular e estabilizar alguém para
um retorno e a permanência no caminho da fidelidade, não importa
o que aconteça. Essas verdades, reavivadas no coração por meio de
uma meditação aplicada, animarão os crentes a renovar suas
orações por força para seguir em frente nos bons e maus
momentos. Flavel está vividamente ciente de que o pecado e
Satanás estão constantemente nos seduzindo para seguir o brilho do
desejo cego irrefletido, e sabe como é vitalmente importante
combater os “pensamentos e ânimos distantes de Deus”, os quais
nos dominam de uma forma que, caso não estejamos vigilantes, nos
levarão à ruína. A maior parte de Um novo coração se dedica a
estabelecer as melhores linhas de pensamento com que podemos
nos sustentar, quando formos tentados nos vários altos e baixos da
vida.
Eu estaria errado, pergunto a mim mesmo, em pressupor que a
maioria de nós, hoje em dia, faz pouco caso dessa discussão interna
ou interior em tempos de provação? Esperamos que, quando as
circunstâncias internas ou externas nos expõem à tentação,
possamos reconhecê-las imediatamente e ser capazes de bani-las
com um simples “não”. Mas, na verdade, manter o coração firme,
zeloso pela glória de Deus e conscientemente próximo de Cristo nem
sempre é tão fácil, haja vista que nossa expectativa de que seremos
capazes de dizer “não” nos momentos necessários, sem esforço ou
luta interior, só mostra quão irrealistas somos, e quão facilmente
somos traídos ao fazer coisas erradas e tolas, acreditando que sejam
sábias e corretas; com que facilidade caímos no que T. S. Eliot
chamou de “a derradeira traição: fazer a coisa certa pelo motivo
errado”. Flavel deixa claro que, para ele, não há atalhos aqui, e que
a autoconfiança deliberada em tempos de provação é o caminho
para o suicídio espiritual. Que possamos absorver sua sabedoria
enquanto nos sentamos a seus pés!
I
Em janeiro de 1699, Thomas Boston, então com 22 anos, já
pregador licenciado na Igreja da Escócia, embora ainda não fosse
pastor em uma congregação, “escreveu um solilóquio sobre a arte
de pescar homens”. O solilóquio tem a forma de um sermão
meditativo dirigido a si mesmo sobre Cristo como modelo para seu
ministério da Palavra. Nas memórias que Boston editou para seus
filhos, em 1730, quando sua vida já se aproximava do fim, ele
lembra como isso aconteceu.
6 de janeiro de 1699, lendo de maneira privada, meu coração foi tocado por Mateus
4.19: “Vinde após mim, e eu vos farei pescadores de homens”. Minha alma clamou por
isso para mim, e eu estava muito desejoso de saber como poderia seguir Cristo, para
me tornar um pescador de homens; e, para minha própria instrução a esse respeito,
dediquei-me à consideração disso dessa maneira [...] Este esboço dá uma ideia do
temperamento do meu espírito.8
O “esboço”, assim nos diz Boston, nunca foi concluído (não que
deixe qualquer sensação de incompletude quando lido hoje), e
ninguém além da própria família o viu até sua publicação, em 1773.
Desde então, contudo, tem sido constantemente saudado pelos
evangélicos como uma obra-prima sobre ministério, algo digno de
estar na mesma prateleira que O pastor reformado, de Baxter — e
é nesses termos que o recomendo agora.
A ideia de um pregador iniciante de 22 anos produzindo uma
obra-prima espiritual é, sem dúvida, surpreendente. Mas Boston era
um homem incomum. Ele foi criado por pais presbiterianos
piedosos e diligentes (em uma ocasião, ainda na infância, ele
acompanhou seu pai à prisão, detido por inconformidade). Ele se
converteu, de todo o coração, aos 11 anos, por meio do ministério
de Henry Erskine, um santo veterano na casa dos sessenta que
havia sido um dos dois mil clérigos puritanos expulsos em 1662 e
que, durante o inverno de 1687, foi ministro de uma igreja a seis
quilômetros da casa de Boston. Quando o pai de Boston o levou
para ouvir Erskine, houve um impacto espiritual imediato e, então,
“no inverno, às vezes era meu destino ir sozinho, sem a ajuda de
um cavalo para me transportar através das águas de Blackadder.
Lembro-me muito bem de andar no frio rigoroso. Mas, na ocasião,
essas coisas se tornavam fáceis, para o benefício da palavra, que
vinha com poder”.9 “Tenho certeza de que estava seriamente
preocupado com um interesse salvador em Jesus Cristo; minha
alma saiu atrás dele, e o lugar de seus pés era glorioso aos meus
olhos.”10
Ele e dois outros meninos cristãos de sua escola “se encontravam
frequentemente em um aposento na casa de meu pai, para oração,
leitura das Escrituras e conferência espiritual; desse modo,
tínhamos algum proveito, tanto no aspecto do conhecimento como
da ternura”.11 Os hábitos de Boston de autoescrutínio, oração e
leitura da Bíblia, com uma meditação sistemática ao longo da vida,
foram formados naquela época.
Há mais a ser dito. Como Boston tinha um espírito sensível, ele
apresentava uma mente refinada, uma excelente memória e jeito
com as palavras. Ele sempre foi um homem que pensava melhor
com uma caneta nas mãos, anotando suas ideias e seus
argumentos à medida que lhe vinham à mente. Ele amadureceu
cedo; suas convicções teológicas eram claras, seu senso de
chamado para um ministério pastoral e de pregação era forte e sua
visão das perspectivas que se abriam pelos textos bíblicos já era
profunda. As qualidades que, mais tarde, levaram Jonathan
Edwards a descrevê-lo como “um teólogo verdadeiramente gigante”
já estavam em evidência, e o poder de falar ao coração, que é
sustentado ao longo de seu tratado posterior e maior, The Fourfold
State (1720) [Os quatro estados da natureza humana], estava ali
também.
Junte tudo isso, e a qualidade brilhante de A arte de pescar
homens, embora capaz de tirar o fôlego, torna-se plenamente
inteligível, mesmo aos mais simples.
II
Boston era um puritano escocês tradicional (para usar a palavra
que se encaixa; “puritano” não era usado na Escócia como um
rótulo como na Inglaterra). O tipo puritano de fé e piedade recebeu
sua formulação clássica na Confissão e Catecismos de Westminster,
que eram os padrões autorizados da Igreja da Escócia nos dias de
Boston. Nos será de grande ajuda na apreciação da teologia
pastoral de A arte de pescar homens se nos lembrarmos das
principais características da perspectiva puritana, como mostram os
documentos de Westminster.
Os padrões de Westminster foram elaborados pela verdadeira
nata do clero inglês e escocês. Trabalhando em meados da década
de 1640, eles tinham como recursos e modelos, estabelecendo
áreas de atuação, parâmetros e trajetórias para seu pensamento,
as confissões reformadas do século 16, incluindo os 39 artigos
anglicanos que foram encarregados de substituir; o legado da
exposição teológica que teve início com Calvino e Knox; mais de um
século de intenso debate internacional, mantido por meio de
publicações, a respeito dos desvios católico romano, luterano e
arminiano das visões reformadas; dezenas de catecismos
produzidos por pastores puritanos e uma ampla experiência em
catequese; muitas obras exegéticas e expositivas publicadas sobre
o texto bíblico, de estudiosos católicos e protestantes; e, por
último, mas não menos importante, um grande volume de tratados
puritanos ingleses “afetuosos” sobre a conversão e a realidade
devocional interna da vida cristã. A crença na verdade divinamente
inspirada e na coerência da Bíblia era algo basilar para o método
teológico de Westminster; alia-se a isso a resolução de afirmar
apenas o que pudesse ser verificado e vindicado na própria
Escritura, como um eco fiel do próprio ensino de Deus. Com base
nesses recursos listados e seguindo diligentemente, em cada ponto,
a linha das Escrituras, a teologia de Westminster era magistral em
estilo, bem como em substância, e não é de se admirar que tenha
moldado, de forma decisiva, a teologia presbiteriana e reformada
em ambos os lados do Atlântico.
A teologia de Westminster é trinitária e se concentra na maneira
como o Criador e Juiz da humanidade se tornou o seu Redentor e
Salvador por meio da realização de um plano que envia Jesus
Cristo, o Deus-homem, no papel de Mediador, e o Espírito Santo, o
Parácleto, no papel de doador da vida, ao mundo.
O plano é como uma elipse com dois focos: o foco 1 é a aliança da
graça, por meio da qual — com base na justiça e no derramamento
de sangue de Cris-
to — as relações entre o Criador e suas criaturas humanas são
restauradas; o foco 2 é a união com Cristo pelo Espírito na
regeneração, por meio da qual a natureza humana caída é refeita.
Em tudo isso o próprio Senhor Jesus Cristo, o Deus encarnado que
redimiu, ressuscitou, reina e um dia voltará para julgar o mundo,
torna-se objeto direto de fé, esperança, amor e alegria.
A igreja universal, da qual todas as congregações cristãs são
membros, é o objeto da salvação, pois mantém o ministério da
Palavra e dos sacramentos, adorando a Deus de acordo com seus
mandamentos. Cristo é o cabeça da igreja e, por meio do Espírito, a
fonte de toda a vida espiritual da igreja, e esta deve ser o lar do
cristão enquanto ele estiver neste mundo. Resumindo, essa é a
teologia de Westminster.
Implícito, e às vezes explícito, na Confissão e nos Catecismos,
está o conceito puritano de conversão como um processo que tem
início com o despertar da complacência espiritual para a
inquietação espiritual, quando se enfrenta a realidade de seu
pecado e se segue em busca de fé, arrependimento e uma nova
vida com Deus, para uma confiança dada por Deus de que alguém
foi divinamente habilitado a deixar o pecado em prol de uma
confiança abnegada em Cristo, aquele que carregou sobre seu
corpo nossos pecados, como seu Amado, Senhor e Vida, e seu
coração foi renovado nesse processo. A ideia de Boston em relação
ao ministro como um “pescador de homens” é que, por meio de
seu ministério público no púlpito e de seu ministério privado de
admoestação individual, Deus trabalhará no coração das pessoas
para deixá-las numa posição de firmeza, na qual elas podem
confirmar sua certeza de estarem vivas para Deus, observando a
mudança contínua em seu ser interior.
Acreditando que o coração humano caído está desesperadamente
sujeito ao autoengano otimista, os puritanos de Westminster
enfatizavam a necessidade de constante autossuspeita e
autoexame. Não havia nada de introspecção mórbida nisso; pelo
contrário, essa experiência era como um exercício revigorante e
tranquilizador, pois os regenerados discerniam dentro de si os sinais
de vida do Espírito Santo. Boston, diante do fato de que apenas
aqueles que vivem em Cristo estão aptos a segui-lo, reserva um
tempo nas primeiras páginas de A arte de pescar homens para
examinar a si mesmo dessa maneira.
Penso que tenho Espírito; ou seja, que tenho vida [...] a partir dos seguintes
fundamentos [...] tenho luz que antes não tinha [...] é a luz que me deixa ver os
pecados do meu coração [...] e ainda está descobrindo a baixeza do meu coração para
mim [...] Faz-me ver Cristo como precioso [...] faz-me confiar nele [...] nele me sustento
pelo amparo de sua própria obra [...] nas tentações e provações, procuro elevar minha
alma para ele. Sinto o socorro [...] do Espírito [...] Muitas vezes fui para a oração
mortificado, e voltei com vida [...] Encontro um amor tríplice, embora fraco, em meu
coração. (a) Uma chama de amor a Cristo [...] Amo as suas verdades [...] Amo as suas
promessas [...] Amo suas ameaças como as mais justas [...] Amo aqueles em quem
aparece a imagem de Deus [...] Amo sua obra [...] Amo seu ordenanças [...] Eu amo a
sua glória, que ele seja glorificado, venha de mim o que quiser. (b) Eu encontro em meu
coração uma chama de desejos em direção à justiça de Cristo [...] Minha alma [...]
consciente na justificação por uma justiça imputada [...] Às vezes minha alma anseia
[...] ser dissolvida e estar com Cristo [...] (c) Encontro em meu coração um ardor de
zelo por Deus [...] Sigo em direção ao céu [...] Estou mais familiarizado com Cristo e
seus caminhos do que antes [...] Há um crescimento do amor em mim [...] Creio que
posso confiar em Deus mais agora do que antes [...] Minha alma está habitualmente
mais vigilante do que antes. Nem ouso dar ao meu coração a liberdade que às vezes dei
[...] Vejo o crescimento do desprezo pelo mundo. E isso — bendito seja Deus — está
aumentando em mim (p. 50).

Evangelismo não era uma palavra que Boston conhecia, mas


evangelismo no sentido de despertar os não convertidos para sua
necessidade de Cristo, conduzindo-os à fé e ao arrependimento e
estabelecendo-os na nova vida da qual sua própria autoanálise
testifica, é o que “pescar homens” significava para ele, e foi essa
habilidade que ele buscou aprender com o exemplo do serviço de
Jesus para ganhar almas.
III
O evangelismo puritano, conduzido pela pregação e a
admoestação pastoral, demandava tempo, e esperava-se que fosse
realmente assim. Fortes impressões repentinas de Deus sobre
questões espirituais específicas ocorriam com frequência quando a
Palavra de Deus era pregada, mas os ministros na tradição de
Westminster eram realistas sobre a probabilidade de que o
processo de conversão, desde o início até o fim, levasse meses,
assim como ocorre na gestação e no parto de um bebê. Nisso,
homens como Boston têm uma lição importante a nos ensinar hoje.
Desde que o evangelismo em massa em terreno neutro, liderado
por um pregador itinerante e especializado nessa atividade em
particular, tornou-se uma característica regular do cenário cristão, o
conceito de conversão como um caso tipicamente rápido e
evidente, algo que pode ser narrado e datado com precisão,
tornou-se normativo para as mentes evangélicas. Claramente, sua
fonte é o culto evangelístico, no qual, após preâmbulos doces e
afetuosos, o evangelista fala do pecado humano e da graça divina,
apela para o compromisso com Cristo e encaminha os persuadidos
pela mensagem aos conselheiros, os quais, então, ajudam-nos a
assumir seu compromisso. Nossa imaginação romântica está certa
em reconhecer a aceitação de Jesus Cristo como Salvador da culpa
e do poder do pecado, além de Senhor da vida, como a essência da
conversão, mas é errado imaginar que todo esse processo
normalmente começa e termina no intervalo de uma ou duas horas;
da mesma forma, estamos errados em imaginar, como às vezes
fazemos, que qualquer resultado satisfatório de um culto depende
decisivamente dos dons especiais do evangelista e da qualidade de
seu desempenho.
O realismo exige que enfrentemos o fato de que, embora Deus
possa estimular esforços evangelísticos especiais e usá-los de forma
extraordinária para avançar ou completar o processo de conversão,
esse processo, em geral, passa por muitos outros está-
gios — e em todos eles o fator decisivo é a soberania da graça de
Deus. A principal maneira pela qual Deus promove a conversão,
tanto em nossos dias como nos dias de Boston, é por meio da
fidelidade sustentada de pais, amigos e mestres da igreja
testemunhando, instruindo e encorajando informalmente, e dos
pregadores expondo pelas Escrituras o evangelho no contexto de
culto. O primeiro requisito, portanto, no trabalho interminável de
“pesca de homens” na igreja é que essas atividades se
desenvolvam incessantemente, moldadas por um propósito claro e
sério, e apoiadas por uma fervorosa insistência na oração.
IV
Boston produziu essa obra quando era um pregador auxiliar,
ansioso pela vida do ministério pastoral. Naturalmente, portanto,
eram as exigências, os problemas e as armadilhas de seu papel
presente e futuro que mais o preocupavam, e a segunda metade do
livro se ocupa de explorar o que envolve seguir a Cristo em um
ministério fiel. Sob esse ponto de vista, A arte de pescar homens é
um texto clássico que qualquer ministro da palavra, em qualquer
época, bem poderia usar para fazer um check-up anual.
Certamente, nós que pregamos nunca iremos além de sua
sabedoria perspicaz, desafiadora e esclarecedora. A seguir, um
breve resumo disso.
O chamado de Deus para pastorear seu rebanho (segundo
Boston) exige que nos moldemos segundo Jesus Cristo, nosso
Senhor e Mestre, pelo menos nas seguintes particularidades:
1. Fidelidade, mesmo quando corremos o risco de magoar as
pessoas e de voltá-las contra nós. Devemos renunciar à “política
carnal” de pessoas que se moldam aos padrões deste século ou
que não se esforçam devidamente, suavizando, como
consequência, a mensagem de Deus, e apresentar a realidade
do pecado e da graça diretamente, repreendendo sempre que
necessário e, sem rodeios, deixando o resultado nas mãos de
Deus.
2. Propósito evangelístico. “Cristo tinha o bem das almas em seus
olhos [...] Quando você prega, deixe esse ser seu desígnio, a fim
de recuperar as ovelhas perdidas [...] ganhando alguns
convertidos e trazendo-os para seu Mestre.”
3. Devoção. Cristo dedicava tempo e energia à oração, antes e
depois de pregar a palavra, e nós precisamos fazer o mesmo.
4. Tenacidade isenta de qualquer forma de motivação pessoal
para o lucro.
5. Empenhar-se no que é útil. Jesus aproveitava todas as
oportunidades “para instruir, repreender etc., de acordo com o
que a situação oferecesse”, tanto individualmente como em
esforços mais amplos. Nós também devemos “aprender a
química celestial de extrair algumas coisas espirituais das coisas
terrenas” e “não recusar ocasião de pregar quando Deus nos
chamar para isso”. “Se Cristo vier e encontrar você ocioso
quando o está chamando para trabalhar, como vai conseguir
olhar para ele? Estão bem os que morrem na obra de Cristo.”
Estas são as últimas palavras do livro.
Um século e meio depois da época de Boston, outro escocês,
Horatius Bonar, compôs um poderoso hino de exortação sobre o
ministério cristão que, quer ele percebesse ou não, contém
exatamente as admoestações da obra de Boston. Meu palpite (que,
claro, não posso provar) é que ele conhecia Boston tão bem que
não conseguia pensar em ministério exceto nos mesmos termos de
Boston. Sem dúvida, seu hino é mais um texto admirável para a
autoavaliação periódica do ministro, e a melhor forma de encerrar
esta introdução é citando-o por extenso. Desse modo, para nós, a
mensagem de Boston se resume no que segue.
Vai, trabalha; gasta-te e deixa-te ser gasto;
Alegra-te em fazer a vontade do Pai;
É assim que foi com o Mestre:
Acaso o servo seria maior que seu Senhor?
Vai, trabalha enquanto é dia;
A noite escura do mundo se aproxima;
Acelera, acelera teu trabalho; livra-te da preguiça;
Almas não são ganhas sem esforço.
Trabalha, não desmaies, mantém a vigilância e ora;
Que seja sábia a alma errante para vencer;
Que siga em frente na jornada por este mundo,
Obrigando o andarilho a entrar.
Trabalha e, em tua labuta, regozija-te;
Para a labuta, vem o descanso; para o exílio, o lar;
Logo deverás ouvir a voz do Noivo,
O bradar da meia-noite: “Eis que venho!”.

8 Memoirs of Thomas Boston (Banner of Truth, 1988), p. 48.


9 p. 10.
10 Ibid.
11 p. 11.
I
Como um inglês que viveu na América do Norte por trinta e dois
anos, em uma era de rápidas mudanças culturais, sei mais sobre
como os americanos de hoje usam as palavras do que sobre seus
colegas britânicos, então talvez o que eu diga a seguir não se
aplique de uma forma tão direta ao lado leste do Atlântico. É
provável, entretanto, que, se um norte-americano no ambiente
urbano — por exemplo, alguém em um transporte coletivo em
Vancouver — ouvisse uma referência ao título do livro, pensaria em
várias possibilidades de significado. Contudo, no uso que Thomas
Boston faz dos termos, sofrimento são os aspectos desconfortáveis
e infelizes, os infortúnios da vida de uma pessoa, aquilo que os
puritanos chamavam de perdas e cruzes [no original, losses and
crosses], a que nos referimos como pedras no sapato, espinhos no
caminho, dores com que temos de conviver; e pedagogia é a
forma, o modo, o meio providencialmente preparado que Deus
estabelece para ensinar cada um dos seus servos. Boston, ministro
de Ettrick, no sul da Escócia, que, ao lado de Jonathan Edwards,
representa mais brilhantemente o prolongamento do puritanismo
puro no século 18, como um movimento da vida espiritual pessoal
baseado na Bíblia, centrado na igreja, orientado pela fé e repleto de
orações, após a morte (ele morreu em 1732, aos 56 anos de idade
e ainda em plena atividade) deixou um pequeno tratado sobre o
tema, que já começara a preparar com vistas à publicação. Seus
amigos concluíram a obra, e o livro foi publicado em 1737, sob o
título The Crook in the Lot: The Sovereignty and Wisdom of God in
the Afflictions of Men Displayed.12 É esta obra que está diante de
você agora.
O filme Terra das sombras representava C. S. Lewis como um
teórico inexperiente que ensinava em público a respeito da dor e do
luto sem nada saber sobre isso até perder sua esposa. Aquilo, sem
dúvida, era uma boa narrativa de Hollywood, mas a história do
verdadeiro C. S. Lewis foi bem diferente, assim como a história de
Thomas Boston. A obra Pedagogia do sofrimento emergiu daquilo
que, em sua autobiografia, Boston chamou de “a parte dolorosa da
minha vida”, os seus oito anos finais — um período no qual, além
das contínuas batalhas pelo evangelho contra a liderança não
evangélica da Igreja da Escócia e a contínua depressão paralisante
de sua esposa, ele sofreu com cálculos renais (cascalhos, como ele
chamava) e viu-se fisicamente debilitado. Quando ele escreveu e
falou sobre os problemas da vida, sabia do que estava falando, e a
sensação de que isso era assim transparece de forma nítida,
embora não haja nada expressamente autobiográfico na análise
que o tratado oferece.
O tratado começa, como o leitor pode ver, com sete sermões: três
sobre Eclesiastes 7.13, “Atenta para as obras de Deus, pois quem
poderá endireitar o que ele torceu?”; um em Provérbios 16.19,
“Melhor é ser humilde de espírito com os humildes do que repartir o
despojo com os soberbos”; e três em 1Pedro 5.6: “Humilhai-vos,
portanto, sob a poderosa mão de Deus, para que ele, em tempo
oportuno, vos exalte”. Boston tinha uma mente arquitetônica
(Jonathan Edwards o aclamava como “um teólogo gigante”), e
gostava de pregar uma série de sermões que ilustravam tópicos-
chave de uma série de porções e textos; ele redigiu os sermões, em
seu inglês fluente e simples, como parte de sua preparação para
pregá-los; e aqui, como em seu texto mais conhecido, Human
Nature in its Fourfold State, a combinação de clareza perfeita com
iluminação e consistência bíblica perscruta o coração do leitor e,
mais uma vez, nos leva a enfrentar a nós mesmos em alguns temas
específicos, impactando-nos com a força repentina de uma carga
profunda que explode bem abaixo da superfície de nosso ser. Essa
é uma maneira de dizer que, como aconteceu com Edwards e
muitos dos puritanos do século anterior, a o fervor divino
encontrava-se na escrita homilética de Boston, assim como antes se
apoiava em sua pregação; e essa é uma maneira de dizer que a
realidade do poder de Deus em seu próprio coração transbordava
em sua comunicação verbal. Esteja preparado, então, para
descobrir que Deus está pregando para você por intermédio de
Boston enquanto lê a Pedagogia do sofrimento.
II
Dois anos antes de sua morte, Boston escreveu: “Bendigo o meu
Deus em Jesus Cristo, que sempre fez de mim cristão, tratou cedo
minha alma [Boston veio à fé aos 11 anos, sob a pregação de
Henry Erskine, um ministro expulso da Igreja da Inglaterra em
1662], fazendo de mim, desde então, um ministro do evangelho e
concedendo-me a verdadeira percepção da doutrina de sua graça”.
Essa “percepção verdadeira” que Pedagogia do sofrimento
pressupõe pode ser apreendida em detalhes na produção
volumosa, embora internamente muito consistente, de Boston, se
estudada como um todo; ou na Confissão e Catecismos de
Westminster, na qual está enraizada; mas os leitores modernos
podem não ter tempo ou inclinação para essa pesquisa, e suas
mentes podem já estar ocupadas por diferentes noções. Portanto,
antes de prosseguir, esboçarei a estrutura da doutrina na qual este
pequeno tratado se encaixa. É uma doutrina com uma estrutura
catequética mais do que acadêmica. Em outras palavras, é a
verdade da forma como alguém a apresenta a pessoas que não
conhecem o cristianismo, a fim de levá-las a conhecer, amar, adorar
e servir a Deus, de modo a torná-las verdadeiras discípulas de
Jesus Cristo.
1. O Deus Triúno, por meio de quem existimos, em cujas mãos
sempre estamos e que, no devido tempo, nos julgará e nos
concederá nosso destino final, é totalmente soberano acerca de
tudo em seu mundo, controlando até mesmo as escolhas livres
dos seres humanos.
2. O coração humano é naturalmente egocêntrico, ególatra,
egoísta, indiferente e hostil às reivindicações de Deus, de modo
que leva todos a viverem de uma maneira que, se não for
mudada, trará condenação final, rejeição, justa retribuição e a
eterna separação da comunhão e do amor de Deus.
3. Jesus Cristo, o Senhor e Mediador encarnado, profeta,
sacerdote e rei, crucificado, ressuscitado e que reina sobre tudo
e todos, se oferece a todos no evangelho, convidando e
ordenando a todos que o ouvem que o recebam e confiem nele
como Salvador, Senhor e Amigo, em e por meio de quem eles
podem ser perdoados, restaurados e adotados na família do Pai,
para que sejam transformados à imagem do Filho.
4. Por meio da regeneração do coração operada pelo Espírito
Santo, as pessoas que buscam Cristo o encontram, e pela fé
vivem novas vidas — doravante, como seus discípulos,
capacitados pelo Espírito que agora habita neles.
5. Na vida de cada discípulo, existem santas aflições, ocorrências
desagradáveis e indesejáveis, que Deus usa para nos testar, nos
fortalecer, nos humilhar, nos corrigir, nos ensinar, promover o
autoconhecimento, o arrependimento e a santidade, e proteger-
nos de males maiores, de modo que, assim, nos tragam
bênçãos, ainda que dolorosas (a princípio, santas aflições
aparentam promover somente dor).
6. O conhecimento de que, em todos os casos, a “pedagogia do
sofrimento” pertence apenas a este mundo e de que, repetidas
vezes, Deus livra o seu povo quando este ora para ser liberto de
aflições específicas que o sobrecarrega aqui e agora deve
sustentar os cristãos enquanto eles passam por essas divinas
correções, ajudando-os a manter a certeza de que “todas as
coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus,
daqueles que são chamados segundo o seu propósito” (Rm
8.28).
Essas são as verdades básicas das quais, pelo menos em resumo,
Boston espera que seus leitores tenham alguma consciência. Seu
tratado vai nos lembrar de muitas dessas verdades e detalhar
outras, mas nenhuma delas é apresentada como uma ideia nova.
Evidentemente, Boston vê seu papel como o de ajudador das
pessoas, levando-as a conhecer melhor, e aplicar a si mesmas de
forma mais completa, coisas que, de alguma forma, já conhecem.
Alguns dos pensamentos de Boston podem ser novos para nós, mas
isso não significa que fossem novos para seus primeiros ouvintes. É
claro que, no nível catequético, as congregações recebiam melhor
ensinamento nos dias de Boston do que nos nossos — o que, ao
pensar na forma como a catequese abandonou a igreja e a vida
familiar, dificilmente o surpreenderia.
Com essas verdades esclarecidas em nossas mentes, portanto,
estamos equipados para sintonizar Pedagogia do sofrimento e, se
assim posso dizer, sorver sua doçura.
III
Com esse propósito em mente, apresento duas questões.
Primeiro: o que Boston pretendia originalmente com esta obra
para seus ouvintes em Ettrick e, em seguida, para demais leitores,
pessoas como nós? Com que finalidade ele selecionou e organizou
esse material? Qual era, pastoralmente, seu objetivo? Há muito
tempo, aprendi que, se você não almejar nada em particular,
certamente alcançará isso. O que Boston esperava alcançar?
Uma resposta parcial seria esta: ensinar as pessoas. Já foi dito
que as três prioridades no ministério pastoral são: primeiro,
ensinar; segundo, ensinar; e terceiro, ensinar. E Boston teria
concordado com isso. Pregar, como entendiam pessoas como ele na
tradição puritana, consiste em ensino com aplicação — e a própria
aplicação é um engajamento didático da mente, antes de qualquer
outra coisa. O fundamento lógico dessa posição é que toda verdade
entra no coração por meio do entendimento, e que o cristianismo
autêntico é essencialmente fé e obediência à verdade revelada de
Deus, e que a própria Bíblia é essa verdade, apresentada em vários
estilos escritos — narrativa, parábola, argumentação, profecia e
assim por diante —, mas todos eles, como diz Paulo, úteis “para o
ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na
justiça” (2Tm 3.16). O processo de ensino de Boston amplia a
compreensão bíblica de mais de um estilo; as passagens que ele
reúne iluminam a verdade para apoiá-la, e essa verdade, por sua
vez, ilumina o significado dessas passagens em seu próprio
contexto. A maneira moderna de ressaltar esse fato é aplaudir
Boston por sua habilidade na interpretação canônica, ou seja, sua
visão de toda a Bíblia, de todos os sessenta e seis livros nas duas
coleções testamentárias, como uma unidade teológica estabelecida
de uma forma maravilhosamente consistente e coerente com a
vontade, a obra e os caminhos do Deus Criador que se tornou
Redentor, unindo-a ao conhecimento de Deus e desta vida que os
santos são chamados a ter. Como Calvino e os puritanos antes dele,
Boston oferece uma interpretação canônica da Bíblia que — em
qualidade tanto espiritual como intelectual — supera em muito a
maior parte dos esforços nesse campo hoje. Supõe-se que a
profundidade da dependência do Espírito Santo, que, como
inspirador da Bíblia, deve ser sempre seu intérprete final, tem algo
a ver com esse fato.
A alegação básica de Boston — que todo o seu ensino se volta a
edificar — é a seguinte: “Uma visão justa dos incidentes aflitivos é
totalmente necessária para um comportamento cristão subjacente;
e essa visão deve ser obtida apenas pela fé, e não pelos sentidos;
pois é somente a Palavra que os representa com justiça,
descobrindo neles a obra de Deus, e, consequentemente,
descortina as perfeições do plano divino”. Pressupondo o
conhecimento geral do plano de salvação conforme aqui exposto,
ele primeiro nos mostra, com grande precisão, em que consiste a
pedagogia do sofrimento (circunstâncias que causam repulsa e
reclamação, gerando todas as tentações do descontentamento), e
analisa para nós quais são os tipos de sofrimentos ou aflições
(defeitos em nossa constituição; desonra, às vezes observada, às
vezes não; falta de sucesso adequado em nossos
empreendimentos; e relacionamentos ruins em todos os níveis). Em
seguida, ele nos diz como devemos buscar a ajuda de Deus para
“nivelar” (endireitar) essa pedagogia, enquanto nos humilhamos e
reconhecemos que algumas aflições estão aqui para permanecer
enquanto durar esta vida. E, finalmente, ele explica como devemos
concentrar nossas esperanças na prometida “ascensão”, a qual, no
presente ou no futuro, será nossa experiência. Os pontos se
repetem em diferentes conexões à medida que ele vai se movendo,
de uma forma que nos faz pensar nos túneis em espiral através dos
quais os trens na Suíça e no oeste do Canadá ganham altura. Os
trens emergem quase diretamente acima de onde entraram, porém
muito mais acima; e, da mesma forma, o reaparecimento dos
pontos de Boston, ligeiramente redefinidos e ilustrados de uma
forma renovada, como costumam ser, aumentam nossa
compreensão sempre que os encontramos. Da primeira à última
página, Boston nos oferece um ensino magistral.
Mas não é só isso que Boston pretende fazer.
O ensino é o meio para seu fim, e não o fim em si mesmo. Seu
objetivo, como o de qualquer outro pregador verdadeiro, é mudar
aqueles a quem se dirige, ou pelo menos vê-los transformados pelo
poder de Deus. Aqui, junto com seu propósito permanente de
conduzir os não convertidos à fé e ao novo nascimento, seu
objetivo claro é disciplinar os discípulos de Cristo em humildade
reverente, realista e cheia de esperança, enquanto eles enfrentam
as imperfeições inevitáveis de suas próprias vidas e da vida
daqueles que os cercam. Ele quer que estejamos totalmente certos
da sabedoria e da bondade da providência de Deus ao
compreendermos as decepções, privações e limitações da vida, e
que glorifiquemos a Deus pela forma como lidamos com elas. Ele
está ministrando, de forma consciente, a muitos que sabem que
não são fortes nesse aspecto, buscando estabelecê-los em humilde
firmeza e na oração. Seu livro está pregando no papel e, se
deixasse seus leitores impassíveis e inalterados, Boston certamente
o consideraria um fracasso — uma “aflição”, por assim dizer.
IV
Isso nos leva à minha segunda pergunta. O livro de Boston tem
uma mensagem para os dias de hoje? Creio que a resposta é sim,
com certeza; mas é uma mensagem que os modernos
provavelmente acharão difícil de ouvir. Por quê? Deixe-me explicar.
Psicólogos e filósofos notaram que é comum as pessoas terem em
suas mentes linhas de pensamento, desejo, avaliação, expectativa e
propósito incompatíveis, sem a ciência dessa incompatibilidade.
Eles chamam essa condição de dissonância cognitiva.
Pastoralmente, a percepção é importante, pois a mistura de fé e
incredulidade, sabedoria e tolice, discernimento espiritual e miopia
espiritual, que encontramos em todos os crentes neste mundo,
praticamente garante que haverá dissonância cognitiva nas mentes
cristãs — ou seja, contradição e incoerência — repetidamente a
respeito das coisas de Deus. Assim funcionam as coisas, e os
pastores estão constantemente tendo de detectar e corrigir erros
desse tipo.
Uma forma especial de dissonância cognitiva difundida, nos dias
de hoje, entre os protestantes evangélicos (curiosamente, você não
a encontra entre os católicos romanos e ortodoxos) é a seguinte:
ninguém questiona que Cristo diz a seus seguidores e discípulos
que neguem a si mesmos, ou seja, que atribuam a Deus todas as
esperanças e todos os sonhos pessoais acalentados, e aceitem que
a não realização desses sonhos pode fazer parte de seu plano —
além de tomar sua cruz —, ou seja, que eles devem estar
dispostos, se preciso for, a se tornarem até mesmo pessoas sem
reputação social nenhuma, desrespeitadas pelo mundo, tidos por
loucos ou inferiores, como aqueles homens condenados, na época
de Jesus, que foram forçados a ajudá-lo a carregar a cruz até o
local designado. Esse é um aviso claro e sóbrio de nosso Senhor de
que o discipulado terá seus altos e baixos, suas angústias e seus
prazeres, e nenhum cristão o desafia. Mas, ao mesmo tempo, o
materialismo orientado ao conforto de nossa época insiste que uma
vida sem dor e sem problemas é praticamente um direito humano;
e, contra esse pano de fundo, muitos que acreditam ser cristãos se
permitem pensar que, por serem filhos de Deus, sempre serão
protegidos de grandes problemas (como nunca ferir outras
pessoas) e conduzidos pela vida em um caminho sem dor, com tudo
de agradável providenciado, como aconteceria em um cruzeiro. A
expressão impetuosa e simplista dessa síndrome é encontrada no
evangelho da prosperidade de alguns televangelistas; a expressão
mais reflexiva e sofisticada disso aparece na pergunta dolorosa, que
se expressa quando o trauma vem — luto, traição, doença
incurável, colapso de negócios ou qualquer outra coisa —, “Como
Deus pôde deixar isso acontecer comigo?”, e ainda aparece nas
teorias teológicas que dizem que Deus teria evitado isso ou aquilo
se pudesse, mas não pôde, porque sua soberania é limitada. Aqui
encontramos a dissonância cognitiva, ancorada profundamente no
coração humano. A ilusão de que coisas desagradáveis sempre se
manterão à distância, pois nosso destino é receber só coisas boas
aqui e agora, não é aniquilada com facilidade; e o coração que
ainda não tiver sido liberto desse sonho não aceitará o realismo de
Boston — revigorante, esclarecedor e sólido.
Mas, seja como for, a autêntica sabedoria bíblica de Pedagogia do
sofrimento é extremamente necessária para muitos de nós, e por
isso estou muito feliz ao vê-lo publicado mais uma vez. Ademais,
espero que o que escrevi aqui ajude uma nova geração a ler essa
obra com compreensão e gratidão a Deus, pois, como os
americanos gostam tanto de dizer: por ora, é tudo.
12 Packer explica que, no original, o significado mais literal dos termos usados por Boston é
apresentado da seguinte maneira: Crook refere-se ao que é “torto”, indesejado, aqueles
infortúnios que atingem a vida; e Lot é o caminho que os santos têm de percorrer, ao lado
dessas dores. Trata-se, portanto, de “santas aflições”, aqueles espinhos que são colocados
em nossa vida para que nos desapeguemos deste mundo e amemos mais a Deus. [N.E.]
I
A Reforma trouxe à luz muitas realidades bíblicas que há muito
estavam encobertas por ideias equivocadas e, portanto, ocultas de
nosso campo de visão. A verdadeira natureza da autoridade da
Bíblia, por exemplo, e da justificação pela fé, da salvação pela graça,
da igreja e dos sacramentos vem à mente. O arrependimento
também é um caso em questão.
Na Idade Média, o arrependimento era equiparado à “penitência”
— ou seja, a confissão dos pecados a um sacerdote seguida de
absolvição e imposição de uma penalidade disciplinar para o
pecador, com o fim de sinalizar uma tristeza genuína. Nem foi esse o
fim do assunto; pois uma distinção foi traçada entre culpa eterna e
punição temporal, e a teoria consistia em que, embora a absolvição
implicasse remissão da primeira, salvando, assim, os pecadores do
inferno, eles ainda deveriam passar algum tempo no purgatório após
a morte, de modo a suportar a segunda. As indulgências, porém,
emitidas a critério do papa e subscritas pelo tesouro dos méritos
superabundantes dos santos, asseguravam a redução do período no
purgatório, nos termos em que fossem redigidas.
Foi o desafio que partiu da indignação de Lutero diante da venda
de uma indulgência que manteria aquele que a comprasse fora do
purgatório — não importando quais fossem seus pecados —, e que
poderia ser comprada por pessoas que já estivessem no purgatório
como seu cartão de saída da prisão, tornado imediatamente efetivo,
o que desencadeou o movimento da Reforma em toda a Europa
Ocidental. As duas primeiras das noventa e cinco teses que Lutero —
em seu duplo papel como professor universitário de Bíblia e pastor-
pregador da congregação da Igreja do Castelo de Wittenberg —
afixou na porta da igreja, em 31 de outubro de 1517, foram as
seguintes:
1. Ao dizer: “Arrependei-vos”, nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo
quis que toda a vida dos fiéis fosse de penitência.
2. Essa penitência não pode ser compreendida como penitência
sacramental (ou seja, de confissão e satisfação [penalidade
disciplinar] como administradas pelo ministério dos sacerdotes).
O ponto positivo de Lutero — de que o arrependimento significava
voltar-se ou retornar de todo o coração a Deus, e de que a vida
cristã é e deve ser tão verdadeiramente uma vida de
arrependimento quanto uma vida de fé — foi encontrar sua plena
expressão nas Institutas de Calvino (III.I, p. ii-iv), nos cultos
semanais do Anglican Prayer Book; em um sermão clássico de John
Bradford, o mártir; em um pequeno livro amplamente lido pelo
teólogo reformado e devocional elizabetano William Perkins; e em
muitas preleções puritanas depois dele —coroadas talvez pela
declaração de Philip Henry, pai de Matthew, que esperava levar seu
arrependimento até os portões do próprio céu. Como, no entanto, a
atenção puritana se concentrava cada vez mais na conversão e na
regeneração, sua ênfase foi cada vez mais depositada no
arrependimento inicial que leva a uma vida penitente, e isso se
reflete no capítulo quinze da Confissão de Westminster, “Do
arrependimento para a vida”.
1. O arrependimento para a vida é uma graça evangélica cuja
doutrina deve ser tão pregada por todo o ministro do Evangelho
quanto a da fé em Cristo.
2. Movido por reconhecimento e sentimento, não só do perigo,
mas também da impureza e da odiosidade do pecado como
contrários à natureza santa e à justa lei de Deus; apreendendo a
misericórdia divina manifestada em Cristo aos que são penitentes, o
pecador, por meio do arrependimento, sente e aborrece os seus
pecados de tal maneira que, deixando-os, volta-se para Deus,
tencionando e buscando andar com ele em todos os seus caminhos
e obedecendo aos seus mandamentos.
5. Os homens não devem contentar-se com um arrependimento
geral, mas é dever de todos buscar arrepender-se particularmente
de cada um de seus pecados.
No livro que agora temos diante de nós, Thomas Boston (1676–
1732), ministro de Ettrick no sul da Escócia, herdeiro e defensor da
teologia puritana e do repensar reformador que a precedeu, reúne
exposições escritas pela primeira vez para seu púlpito sobre a
necessidade, a natureza e a urgência do arrependimento, e a
loucura de ignorar ou adiar essa questão de vida ou morte. Os
sermões reúnem todas as qualidades que associamos a Boston: um
domínio deslumbrante do texto e do ensino da Bíblia; um profundo
conhecimento do coração humano; rigor e clareza intensos na
exposição; grande habilidade no escrutínio da consciência; e um
senso penetrante da maravilha e da glória da graça de Deus em
Cristo em relação a pecadores perversos como nós. A apreciação
adequada do que temos aqui requer, no entanto, alguma preparação
da cabeça e do coração, a fim de nos conduzir ao mundo da
sabedoria de Boston, e proponho agora dizer algo a esse respeito.
II
Flanqueando um portão principal para o que você pode chamar de
a meca de Oxford, uma área que abriga o Clarendon Building, o
centro administrativo da Universidade; o Teatro Sheldonian, onde
são conferidos os diplomas; a medieval Divinity School e a
mundialmente famosa Bodleian Library; pilares sustentam cabeças
esculpidas de alguns dos grandes cérebros da humanidade. No
presente, eles se encontram restaurados, mas, quando eu era
estudante de graduação, estavam desgastados e inexpressivos — e
tudo o que você podia concluir ao olhar para eles era que deveriam
ser cabeças humanas e nada mais. É assim com as convicções
baseadas na Bíblia e amadurecidas pelos puritanos sobre Deus e
sobre nós mesmos, acerca das quais Boston expõe e aplica em seus
textos. O pensamento moderno resistiu tanto a essa fé que, a
princípio, parece-nos uma estranheza histórica distante e um tanto
confusa, sem qualquer relevância para nós.
Assim, Boston acredita que o Deus Triúno, por meio de quem
existimos, em cujas mãos estamos e que um dia cumprirá nosso
destino, é santo no sentido de induzir um sentimento de culpa e
vergonha, injustiça e impureza, perversidade e poluição, demérito e
contaminação, em todos os que percebem sua realidade; além disso,
é soberano acerca de tudo em seu mundo, até mesmo sobre as
escolhas livres dos seres humanos. Mas a maioria hoje, embora
ainda reconheça “o cara lá de cima”, assume que a natureza de
Deus é simplesmente de bondade sem padrões ou expectativas, e
de auxílio, protegendo todos do mal o tempo todo; ou então eles o
veem como uma força cósmica impessoal, não fazendo diferença
entre ele ou isso, de modo que significa apenas ter bom senso viver
como se Deus não existisse.
Mais uma vez, Boston crê que Jesus Cristo, Senhor e Mediador
Deus-Homem, nosso profeta, sacerdote e rei, crucificado,
ressuscitado, aquele que reina e retornará, oferece a si mesmo no
evangelho a todos, convidando e ordenando a todos que ouvem que
o recebam e confiem nele como seu Salvador, Mestre e Amigo, por
meio de quem podem encontrar perdão, aceitação e adoção na
família de Deus, a fim de serem transformados à imagem do Filho de
Deus. Além disso, Boston crê que, um dia, Jesus será o juiz de todos
e que o destino de alguns é o céu eterno com Jesus, enquanto de
outros é o inferno eterno sem ele. Mas, hoje, a maioria pensa em
Jesus como mais um homem bom que ensinou e modelou um
comportamento decente, descartando tudo o que a maioria dos
cristãos acredita a seu respeito como mera fantasia supersticiosa.
Quanto à morte, essa maioria a concebe como condutora da
felicidade imediata ou da extinção imediata, sem que, no entanto,
de alguma maneira, Jesus esteja envolvido.
Novamente, Boston crê que a Bíblia é como um grande círculo
iluminado, em cujo centro estamos com a luz brilhando sobre nós a
partir de ensinamentos bíblicos, narrativas, biografias e
circunstâncias para nos mostrar como realmente somos e como
Deus nos vê, aqui e agora; e ele ainda acredita que o Espírito Santo
de Deus nos leva a passar sobre nós mesmos o julgamento que
Deus faz e, ao mesmo tempo, a trabalhar para mudar nossos
caminhos — que é precisamente o que significa arrependimento nas
Escrituras. Assim, e somente assim, de acordo com Boston,
aprendemos o que Paulo quis dizer quando afirmou que toda a
Escritura, por ser inspirada por Deus, é “útil para o ensino, para a
repreensão, para a correção, para a educação na justiça” (2Tm
3.16). Mas a maioria hoje pensa na Bíblia como, na melhor das
hipóteses, uma coleção de ideias antigas sobre religião — e que
algumas dessas ideias ainda se mostram capazes de inspirar, embora
acreditem que a maioria delas seja esquisita e esteja desatualizada,
e que todas precisam ser relativizadas em nosso mundo de múltiplas
culturas — tanto religiosas como seculares —, seja qual for o
consenso de cultura que atualmente nos cerca. Pois a razão está no
comando, moldando a religião, que eles veem como sendo
essencialmente uma construção humana, e, portanto, enquanto a
razão assim dirige a religião e a conduz, a revelação bíblica é
deixada para trás.
E, finalmente, Boston crê que a regeneração do coração pelo
Espírito Santo de Deus confere uma vida verdadeiramente recém-
criada, da qual o exercício da fé em Cristo, a prática do
arrependimento para com Deus, a humilhação do coração, o
surgimento da alegria no Senhor e o transbordar do amor ativo em
comunhão com Deus, em adoração ao Senhor e em serviço
abnegado ao próximo, juntamente com a paixão por progredir em
tudo isso, são suas expressões diretas. Mas a maioria hoje vê a
religião simplesmente como uma muleta e um consolo para suas
lutas pessoais, algo sem a qual podemos viver bem, de modo que a
realidade evangélica que acabamos de descrever é descartada como
uma autoilusão e uma hipocrisia.
O mundo da realidade espiritual — no qual o ensinamento de
Boston sobre o arrependimento está ancorado — está agora diante
de nós, pelo menos em esboço, e deve ser dito imediatamente que,
a menos que nós mesmos sejamos habitantes desse mundo, ou pelo
menos que estejamos preparados para descobrir que deveríamos
ser, não o apreciaremos como o médico da alma perceptivo,
profundo, habilidoso e instruído pelo Espírito que de fato ele é. Em
sua própria época, ele era admirado não apenas como um estudioso
comprometido da Bíblia, embora o fosse, mas principalmente como
pastor e mestre, cujo livro Fourfold State circulava por toda a
Escócia como o vade mecum da pessoa comum no caminho para o
céu. Hoje, três séculos depois, esse homem de Deus ainda fala
conosco por escrito, iluminando nossas vidas desordenadas com o
holofote das Escrituras e suplicando que encaremos e ouçamos Deus
enquanto ele nos fala por meio de seu servo sobre os vários
assuntos que ele aborda aqui, seja essa a realidade ou não de nosso
“arrependimento para a vida”. Muito eficaz ao almejar elegância em
sua escrita, Boston, contudo, alcança a eloquência por meio da
clareza de estilo realista, da ordem expositiva e da habilidade em
abordar cada tópico com palavras apropriadas a partir da Bíblia. E,
como acontece com alguns alimentos, você descobrirá que, quanto
mais mastigar o que ele nos dá, mais forte será o sabor obtido.
III
Que tipo de pessoas esses sermões sobre arrependimento
abordam? Em um sentido amplo e básico, é claro, como todos os
sermões reformadores, puritanos e evangélicos autênticos, são
declarações da verdade sobre Deus que atuam, de forma autêntica,
como mensagens para todos. Todos precisam ser lembrados — e os
cristãos gostam muito de ser lembrados, vez após vez — da
realidade da santidade, da maravilha da graça, da fidelidade, da
justiça, da grandeza e da glória de Deus, e esses temas devem
sempre ser primários e fundamentais na pregação, como
invariavelmente são em Boston. Em todos os seus sermões, Deus —
o Senhor onipotente, onisciente e onipresente; Deus em Cristo
exercendo misericórdia e julgamento; Deus, aquele que sonda os
corações e cujas rodas trituram lentamente em partículas
extremamente peque-
nas — é, por assim dizer, o sujeito; os seres humanos são o
predicado; Boston é centrado em Deus, e, até mesmo, como é dito a
respeito de Jonathan Edwards, fascinado por Deus, e sua primeira
preocupação como pregador é que todos nós, na extremidade
receptora, sejamos iguais. Hoje estamos tão acostumados a sermões
centrados no homem — nos quais Deus aparece apenas como o
personagem Jeeves nos romances farsescos de P. G. Wodehouse,
livrando as pessoas de problemas — que, para alguns de nós,
ajustar-se à perspectiva de Boston é um grande esforço. Mas os
sermões, como tais, são declarações em nome de Deus para impedir
que as pessoas pequem e para aproximá-las de Deus. Desse modo,
ainda é apropriado perguntar: quem em particular são as pessoas a
quem Boston está se dirigindo?
Não há dúvida de como responder à nossa questão. Boston está
alcançando pessoas religiosas impenitentes, velhas e jovens, ricas e
pobres, de dois tipos: os convencidos e presunçosos, e os
procrastinadores, que Boston descreve como preguiçosos e retrata
como dorminhocos espirituais. Ele procura erradicar o orgulho do
primeiro e a apatia do último, e levar ambos ao arrependimento de
que ambos precisam — “a obra da salvação”, como ele chama.
Então, ele primeiro explica que o arrependimento é uma questão do
coração, uma tarefa de uma vida inteira, um dom do Espírito de
Deus através da Palavra de Deus, uma mudança que envolve
convicção, angústia, fé em Cristo, humilhação do coração, “vergonha
santa” e autoaversão impetuosa, confissão, renúncia e conversão de
todos os pecados da forma como os conhecemos, além de um
retorno sincero e de todo o coração a Deus, em total compromisso
com a obediência de agora em diante e para sempre. Em seguida,
ele emprega como motivos para o arrependimento: o mandamento e
o chamado de Deus, o efeito aniquilador do pecado, a perspectiva
de morte e julgamento, a agonia de Cristo e a desonra que o pecado
causa a Deus. Então, ele mostra detalhadamente como o atraso no
arrependimento, por qualquer motivo, deve arruinar a alma. Depois,
ele se debruça sobre o estado condenado dos impenitentes, por
mais amistosas que possam parecer as providências que os cercam,
e implora mais uma vez por um sério arrependimento pessoal por
parte deles. Seguindo esse enredo, como podemos chamá-lo, ele
distribui, incidentalmente, uma grande quantidade de sabedoria
sobre os caminhos de Deus, como faz regularmente em todos os
seus escritos práticos. Para leitores já mais preparados para seus
ensinos, ele tem muito a oferecer; mas reconheço que essa questão
de preparo ainda é real. Hoje, há muitos crentes professos cuja
sinceridade e zelo são grandes, mas cuja leitura teológica até agora
parou na superfície. Se Boston cair em suas mãos, eles podem muito
bem sentir-se tentados a desistir após as primeiras páginas,
avaliando tratar-se de uma leitura difícil, antiquada e árida, algo que
não lhes acrescenta em nada. Com isso em mente, Boston, como
outros da escola puritana de publicação de sermões, é uma espécie
de gosto adquirido; mas, para qualquer um que esteja frustrado
assim, de forma que, com alguma perplexidade, volte a esta
introdução sobre por que o livro de Boston deve ser classificado
como um clássico, eu digo: continue, por favor; e tenha uma caneta
à mão, para anotar as orientações de Boston à medida que for lendo
sua obra; e registre tudo o que ele lhe diz sobre Deus; e, quando
você tiver lutado até o fim, volte e leia o livro novamente; assim,
garanto que você perceberá que não está desperdiçando seu tempo.
Diante de mim, enquanto escrevo, está um folheto anunciando
uma conferência sob o título: “Arrependimento como o caminho para
uma vida abençoada no século 21”. O título declara uma verdade, e
Boston pode nos levar a essa vida abençoada com tanta segurança
quanto qualquer um. Então, leia bem, pense e ore sobre o que lê, e
Deus o abençoará através da sabedoria perene que seu servo revela.
Termino este conjunto de perfis puritanos com dois retratos mais
detalhados de uma dupla que, a meu ver, são as figuras marcantes
do puritanismo inicial e intermediário, respectivamente. Anos atrás,
escrevi um livro sobre o puritanismo, intitulado Among God’s Giants
[Entre os gigantes de Deus]. Nos EUA, foi renomeado como A Quest
for Godliness [A busca por piedade], o que alterou um pouco sua
ênfase. O título refletia minha percepção da estatura dos líderes do
puritanismo como uma companhia de sábios e dedicados pioneiros
pastorais. William Perkins e Richard Baxter, juntamente com John
Owen e John Bunyan, parecem-me destacar-se como gigantes entre
os gigantes, Perkins como um puritano inicial, Baxter como um
puritano intermediário e Owen e Bunyan como puritanos posteriores.
Espero que o que ofereço agora sobre os dois primeiros leve meus
leitores a apreciar suas excelentes qualidades e, ao meu lado,
agradecer a Deus por estes homens, extraindo deles sabedoria.
O nome de William Perkins é pouco conhecido hoje fora de um
pequeno círculo de historiadores e teólogos acadêmicos. Portanto,
pode causar surpresa saber que, durante o meio século decorrido
entre 1585 a 1635, Perkins foi, de longe, o mais conhecido e mais
vendido escritor inglês de livros cristãos para pessoas comuns. Mais
do que isso, foi o mais conhecido teólogo internacional inglês,
sendo classificado, ao lado de Calvino e Beza, como terceiro no que
alguém chamou de “a tríade dos ortodoxos” — e ele realmente foi
esse teólogo. É fato que quase noventa edições de obras dele
foram publicadas e traduzidas na Holanda, mais de cinquenta na
Suíça e na Alemanha, além de tiragens menores em meia dúzia de
outras línguas. Nenhum autor puritano, salvo Richard Baxter,
vendeu mais que Perkins, e nenhum pensador puritano fez mais
para moldar e solidificar o próprio puritanismo histórico.
Hoje, muitos sabem que o verdadeiro puritanismo não era o
farisaísmo protestante excêntrico e combativo que os romances e
os livros de história do século 19 imaginavam. Muitos sabem que o
verdadeiro puritanismo foi um movimento evangélico de santidade
que buscava implementar sua visão de renovação espiritual,
nacional e pessoal, na igreja, na nação e no lar; na educação, no
evangelismo e na economia; no discipulado e na devoção
individual, e no cuidado e na competência pastoral. Muitos sabem
que a verdadeira piedade puritana é centrada em regeneração e
arrependimento, autossuspeita e autoexame, biblicismo racional e
comportamento justo, meditação discursiva e oração retórica, fé e
amor a Jesus Cristo como Salvador e Senhor, reconhecimento da
soberania de Deus na providência, graça e julgamento, o conforto e
a alegria de uma certeza bem fundamentada, a necessidade de
educar e nutrir a própria consciência, a guerra espiritual contra o
mundo, a carne e o diabo, a ética da disciplina e do dever, além da
esperança da glória dos santos. Poucos, porém, sabem ainda que
foi Perkins, muito especificamente, quem estabeleceu o puritanismo
segundo esses moldes.
Quem foi William Perkins? Pouco se sabe do seu passado, mas os
principais fatos de sua vida não são desconhecidos. Perkins era,
num sentido bastante preciso, um elizabetano, pois nasceu em
1558, ano em que Elizabeth tornou-se rainha, e morreu de cálculos
biliares não aliviados aos 44 anos, em 1602, pouco antes da morte
de Elizabeth, em 1603. Ele era um homem de Warwickshire que,
em 1577, aos 19 anos — tardiamente, portanto, segundo os
padrões elisabetanos —, foi para o Christ’s College, Cambridge, a
casa mais puritana da universidade na época, onde Laurence
Chaderton, um conhecido pregador do evangelho, homem que mais
tarde seria o mestre de Emmanuel e amigo por toda a vida de
Perkins, tornou-se seu tutor. No início, Perkins fugiu ferozmente,
mas depois foi convertido (os detalhes não são conhecidos); a
paixão pela teologia passou a substituir a dedicação aos estudos
astrológicos que o haviam marcado até então, e ele impressionou
seus companheiros pela meticulosidade e a rapidez com que
dominava as coisas de Deus. Em 1584, após concluir um mestrado,
foi eleito para uma fraternidade no Christ’s College, onde começou
a se destacar como tutor dos alunos de graduação. Antes que o
ano terminasse, após alguns meses de evangelismo
surpreendentemente eficaz em uma base voluntária na prisão de
Cambridge, ele também passou a atuar como professor e pregador
em Great St. Andrews, uma congregação pobre e necessitada que
pagava ao seu pastor um salário inferior a 10 libras por ano.
O Perkins conferencista não era o pastor, e o que quer que ele
recebesse por sua pregação teria vindo de fontes privadas.
Aprendemos que, em 1595, quando deixou o Christ’s College, uma
comunidade celibatária, para casar-se com uma jovem chamada
Timothye Cradock, de Grantchester, alguns paroquianos e
mantenedores ricos aumentaram sua renda para garantir que seu
ministério em St. Andrews continuasse ativo, o que aconteceu até a
morte de Perkins, sete anos e sete filhos depois. Quando Thomas
Goodwin tinha 12 anos e ainda não era cristão, matriculou-se ali,
em 1613, e assim ele nos conta: “A cidade foi preenchida pelo
discurso poderoso de Perkins, e seu ministério ainda está vivo na
memória dos homens” — nessa época, porém, Perkins já se
encontrava há mais de dez anos em seu túmulo.
Nem era essa a história toda, nem mesmo a parte principal dela.
Durante os anos em que Perkins pregou, sua pena esteve ocupada
e deixou para trás quase cinquenta tratados individuais de vários
tipos, cobrindo toda a gama de teologia, espiritualidade e ética, e
incluindo várias porções importantes de exposição bíblica. A
habilidade especial de Perkins, tanto na pregação como na escrita,
era ser sistemática, erudita, sólida e simples ao mesmo tempo. Até
então, ninguém mais no protestantismo mundial havia produzido
material do tipo e do alcance de Perkins, nem mesmo com
semelhante nível de lucidez, e logo seus livros estavam sendo
publicados em francês, holandês, italiano, espanhol, tcheco,
alemão, húngaro, latim e galês. Ian Breward, autor do melhor
levantamento da obra de Perkins que apareceu até agora, explica a
popularidade e a influência internacional de Perkins como
“devedora a uma piedade atraente e prática, uma capacidade de
popularização e uma gama ampla de atividade teológica
extraordinária”, e observa que “traduzir e publicar Perkins
representavam uma atividade menor”, listando 29 tradutores e 28
editores fora da Inglaterra para provar seu ponto de vista.13
“Após a sua morte”, escreve William Haller, “seus discípulos [...]
reuniram para publicação ou republicação três grandes volumes de
suas argumentações, tratados e sermões [...] Nenhum livro, é justo
dizer, foi encontrado com mais frequência nas prateleiras de
sucessivas gerações de pregadores, e o nome de nenhum pregador
se repete com mais frequência na literatura puritana posterior.
‘Quanto aos seus livros’, observou Fuller, meio século depois, ‘é
quase um milagre conceber quão densos são’”.14
Foram esses livros que determinaram o perfil e as prioridades do
puritanismo do século 17 e que levaram o teólogo holandês
Voetius, em seu tratado Concerning Practical Theology [Acerca da
teologia prática], no qual muitos pietistas puritanos são elogiados, a
chamar Perkins de “Homero [ou seja, o clássico magistral] dos
teólogos ingleses práticos”.15
Falamos de George Stephenson como o Pai das Ferrovias porque,
ao projetar o Rocket e inaugurar as linhas Stockton e Darlington, e
depois as linhas Liverpool e Manchester, ele acertou basicamente
em tudo, embora em um nível rudimentar, de modo que o
desenvolvimento da tração a vapor em todo o mundo poderia ter —
e, de fato, teve — mais sucesso seguindo as diretrizes que ele havia
estabelecido. Da mesma forma, devemos chamar William Perkins
de o “Pai do Puritanismo”, pois foi ele, mais que qualquer outro,
quem cristalizou e delimitou a essência do cristianismo puritano
dominante pelos cem anos que se seguiram. Isso torna irônico, em
primeiro lugar, o fato de Perkins detestar e recusar o termo
“puritano” como um rótulo para si mesmo e para aqueles como ele;
e, em segundo lugar, o fato de, entre os cerca de quarenta
escritores puritanos que foram reimpressos para o leitor cristão
comum nos últimos quarenta anos, o nome de Perkins quase não
ter aparecido. A editora Banner of Truth republicou The Art of
Prophesying
[A arte de profetizar] (ou seja, de pregar) em 1996, e Ian Breward
extraiu uma seleção para estudiosos dos livros de Perkins (The
Work of William Perkins; Sutton Courtenay Press, 1970), e isso é
tudo. Com certeza, a ironia diminui quando examinada mais de
perto, pois a palavra “puritano” nos dias de Perkins carregava
implicações tanto de um espírito revolucionário como de um
propósito separatista, e a abordagem de Perkins em relação a
temas básicos foi substituída por apresentações puritanas
posteriores, as quais se mostraram mais completas e apresentavam
mais intensidade. Porém, o fato-chave permanece: Perkins foi o
pioneiro que moldou o puritanismo de maneira decisiva, conferindo-
lhe as qualidades que o caracterizariam pelos próximos cem anos.
Antes de Perkins, os anglicanos calvinistas que buscavam
mudanças na igreja nacional não eram unânimes em seus objetivos
e prioridades, e certa impetuosidade estridente marcava seu estilo
público. Alguns buscaram a revisão do Livro de Oração para se
afastar da liturgia romanista, e ostentaram sua inconformidade com
a ordem litúrgica estabelecida. Alguns buscaram um padrão viável
de disciplina da igreja paroquial e se lançaram no movimento
classista criptopresbiteriano, que tinha isso como um de seus
objetivos. Poucos ainda haviam focado seu objetivo em termos
evangelísticos, como a conversão da Inglaterra à verdadeira
piedade através do ensino, da pregação e do cuidado pastoral. O
exemplo e a influência de Perkins, no entanto, juntamente com o
exemplo e a influência de clérigos paroquiais como Richard
Greenham, Richard Rogers, Arthur Hildersam e John Dod,
estabeleceram o puritanismo dominante como um movimento
especializado em evangelismo e vida espiritual, suportando
inconveniências eclesiásticas do momento, a fim de cumprir na
Igreja da Inglaterra um ministério de salvação de almas em larga
escala. O puritanismo, com seu complexo de preocupações bíblicas,
devocionais, eclesiásticas, reformadoras, polêmicas e culturais,
atingiu a maioridade, poderíamos dizer, com Perkins, e começou a
exibir, de forma típica, a plenitude da visão espiritual e uma
maturidade de paciência cristã até então não vistas nele.
O Ministério de Perkins
Podemos perguntar: como Perkins abordou seu próprio trabalho
ministerial? Dizem-nos que, na vida cotidiana, ele era um homem
de paz, moderação deliberada e santidade pessoal que
impressionava a todos. Ele foi fiel no cumprimento de seu papel
como acadêmico profissional e tutor universitário, mas está claro
que seu ministério mais abrangente em Great St. Andrews e a
escrita popular que o acompanhava eram suas principais
preocupações. Dizem-nos que, no cabeçalho da página de rosto de
cada um de seus manuscritos, ele escrevia esta mensagem para si
mesmo: “Tu és um ministro da palavra: Cuida de teus afazeres”.
Isso, certamente, foi o que ele fez.
Aqui está o relato de Benjamin Brook sobre Perkins como
pregador. Isso remonta a Thomas Fuller, que, embora fosse um
monarquista na política, era puritano em seu cristianismo, e se viu
fascinado por Perkins, que morreu seis anos antes de ele nascer;
Fuller pesquisou Perkins, redigiu uma breve biografia dele e o
apresentou como um modelo de fidelidade no ministério em vários
de seus próprios escritos. Com base em Fuller, Brook aponta os
pontos fortes do púlpito de Perkins da seguinte forma:
Seus ouvintes consistiam em colegiados, citadinos e pessoas do campo. Isso exigia
aquelas peculiares dotações ministeriais que a providência ricamente havia concedido a
ele. Em todos os seus discursos, seu estilo e seu assunto eram adaptados às
capacidades das pessoas comuns, enquanto, ao mesmo tempo, os estudiosos piedosos
o ouviam com admiração [...] Os sermões de Perkins eram totalmente lei e totalmente
evangelho. Ele foi um raro exemplo desses dons opostos reunidos em um grau tão
eminente no mesmo pregador, até mesmo com a veemência e o estrondo de um
Boanerges, a fim de despertar os pecadores para o senso de seu pecado e perigo, e
afastá-los da destruição; e a persuasão e o consolo de Barnabé, para derramar o vinho
e o óleo da consolação do evangelho em seus espíritos feridos. Ele costumava aplicar os
terrores da lei tão diretamente às consciências de seus ouvintes que seus corações
muitas vezes afundavam sob tais convicções; e costumava pronunciar a palavra
maldição com uma ênfase tão peculiar que deixava um eco triste em seus ouvidos
muito tempo depois.16
Sua pregação era tão erudita e edificante quanto autoritativa e
clara. “Em uma palavra”, declara Fuller, “o acadêmico não poderia
ter mais erudição, e os citadinos não poderiam ter sermões mais
simples”. E novamente: “Nosso Perkins trouxe as escolas para o
púlpito e, tirando das controvérsias seus difíceis termos
acadêmicos, fez disso um alimento simples e saudável para sua
congregação”.17
Majestosa e magistral, expositiva e evangélica, informal e
pragmática, a pregação de Perkins estabeleceu padrões para todo o
movimento puritano depois disso, assim como trouxe grandes e
numerosos benefícios para a Cambridge de sua época.
Mas seu ministério não se resumia a isso. Como seu
contemporâneo mais velho, Richard Greenham, de Dry Drayton,
nos arredores de Cambridge, Perkins tornou-se conhecido como um
especialista em patologia espiritual e cumpriu um notável ministério
de aconselhamento para almas confusas e atormentadas que, por
uma ou outra razão, temiam estar espiritualmente arruinadas e
perdidas. Aqui está um exemplo do ministério de evangelização de
presidiários de Perkins, em 1584, narrado por Samuel Clarke em um
livro datado de 1654. Um jovem criminoso, subindo no cadafalso,
parecia em pânico e desfalecido. Perkins, assistia à execução como
capelão,
esforçando-se para animar seu espírito, e encontrando-o ainda em agonia e angústia de
espírito, perguntou-lhe: O que foi homem? Qual é o problema com você? Você tem
medo da morte?
Ah, não (disse o prisioneiro, balançando a cabeça), mas de algo pior. Então o mestre
Perkins disse: “Desça novamente, homem, e veja o que a graça de Deus fará para
fortalecê-lo”. Ao descer o prisioneiro, Perkins o pegou pela mão e o fez ajoelhar-se
consigo mesmo ao pé da escada [...] quando aquele abençoado homem de Deus fez
uma oração tão eficaz na confissão de pecados [...] que fez o prisioneiro explodir em
lágrimas; e Perkins, descobrindo que o havia humilhado suficientemente, até os portões
do inferno, prosseguiu para a segunda parte de sua oração, e nela mostrou-lhe o
Senhor Jesus [...] estendendo sua bendita mão de misericórdia [...] o que ele fez tão
docemente com tal arte celestial [...] que o fez romper em novas chuvas de lágrimas de
alegria do consolo interior que encontrou [...] O homem (com a oração terminada)
levantou-se alegremente de joelhos e subiu a escada novamente tão confortado, e
aceitou sua morte com tanta paciência e entusiasmo, como se ele realmente se visse
liberto do inferno que antes temia, e o céu se abrisse para receber sua alma.18

Não era apenas para criminosos que Perkins ministrava dessa


maneira. Sabe-se que, no final do século 16, muitas almas sérias
estavam perturbadas e muitas vezes desesperadas com a própria
condição e as próprias perspectivas diante de Deus, e isso,
finalmente, era visto como fruto imprudente de uma pregação
puritana imprudente e excessiva sobre predestinação e a
condenação do inferno. Que os puritanos nunca foram ingênuos
sobre esses dois tópicos, isso certamente é verdade, mas todas as
evidências mostram que eles os apresentaram de maneira
pastoralmente responsável, e uma explicação mais adequada das
angústias que as pessoas sentiam se baseia em quatro outros
fatores.
Primeiro, incertezas e ansiedades sobre o futuro permearam a
vida da comunidade elizabetana tardia, em parte como uma reação
ao que parecia ser a hostilidade permanente contra a Inglaterra de
todo o mundo católico romano; e, em parte, pelo menos como um
desdobramento do incipiente mas, muitas vezes, calamitoso
individualismo anárquico que se desenvolveu durante o reinado de
Elizabeth na frente econômica e na política; e esses ares de
ansiedade naturalmente contaminaram a religião inglesa.
Segundo, visto que no Ocidente moderno um quarto da
população precisa de tratamento para depressão em algum
momento de sua vida, assim também nos tempos puritanos
tendências depressivas ligadas — como, com frequência, hoje
também acontece — a neuroses obsessivo-compulsivas eram
generalizadas; de fato, tratava-se de uma época em que uma
medida de “melancolia”, a então depressão da época, era esperada
e até mesmo abordada nos cultos.
Terceiro, naquela época de frequência compulsória à igreja,
puritanos como Perkins enfatizavam corretamente a necessidade de
autossuspeita e autoexame, com o fim de despertar os
complacentes entre seus ouvintes para a possibilidade de ainda
serem não convertidos e destinados ao inferno; assim, tal ensino
surtia um efeito naturalmente traumático e gerador de ansiedade —
algo que, claramente, pretendia ser.
Quarto e mais importante, o Espírito Santo trabalhou com poder
na Inglaterra em todo o período puritano, de modo que o impacto
da pregação do evangelho, a convicção do pecado, as exigências de
arrependimento e medo da rejeição divina foram profundos.
Arrisco-me a afirmar que, do ponto de vista espiritual, não havia
nada intrinsecamente doentio nisso; muito mais mórbido foi, e é, a
falta de preocupação daqueles que se recusam a se envolver com
as questões da eternidade da forma como o evangelho as
apresenta e que ridicularizam os pregadores e as pessoas que
assim procedem. Que as pessoas convencidas do pecado, e aquelas
que rotulamos como clinicamente deprimidas, sintam-se sem
esperança e desamparadas, não nos deve causar surpresa. E, de
qualquer forma, há registros de que muitas almas perturbadas
foram a Perkins, uma a uma, e ele foi capaz de ajudá-las a ter fé,
esperança, confiança e um discipulado dedicado. Como Fuller
estabelece curiosamente: “Um excelente cirurgião estava
restaurando uma alma arruinada e expondo uma consciência
duvidosa”.19 No aconselhamento pastoral de Perkins, não menos do
que em suas exposições no púlpito, a sabedoria sobre os caminhos
que Deus abre à conversão e a paz que Deus dá aos corações
perturbados fluíam abundantemente e, como resultado, houve
alegria em Cambridge.
Os muitos livros destinados aos leigos sobre princípios e
problemas da vida cristã que saíram da pena de Perkins faziam
parte desse mesmo ministério. Foram escritos não para promover a
reputação e a carreira do autor, mas para edificar os ingleses na fé
cristã. Quando o ministério de Perkins teve início, a Inglaterra
protestante não tinha literatura devocional própria em nível popular.
O clero alfabetizado — uma minoria naquela fase da história
anglicana, diga-se de passagem — poderia ampliar sua
compreensão cristã geral lendo Calvino, seu sucessor em Genebra,
Beza, Decades, de Bullinger, e os dois livros anglicanos oficiais de
homilias. Se as questões da ordem da igreja despertassem seu
interesse, eles poderiam buscá-las por meio dos escritos aguçados,
embora áridos, de Cartwright, Whitgift e Travers. Se eles quisessem
reforço antirromano, Apology, de Jewel, e Acts and Monuments, de
Foxe, estavam disponíveis. Mas ainda não havia nada para seus
paroquianos alfabetizados lerem, a fim de edificá-los na fé. Perkins,
então, se propôs a preencher essa lacuna. Se pensar nele como um
precursor de J.C. Ryle, C. S. Lewis e John Stott, você não estará
muito errado. Perkins dedicou seu refinado intelecto e seu talento
em fazer declarações simples e vigorosas à produção de uma
literatura popular voltada à educação de leigos. Agora, vamos
examinar suas realizações.
O Credo Apostólico, a Oração do Pai-Nosso e os Dez
Mandamentos foram, e são, as três formulações clássicas sobre as
quais o cristianismo dominante se baseia e em torno das quais o
Catecismo do Livro de Oração e inúmeros outros catecismos dos
séculos 16 e 17 foram construídos. Perkins compôs exposições de
todos eles: An Exposition of the Symbol, or Creed of the Apostles
[Uma exposição do símbolo, ou Credo dos Apóstolos] (1595); An
Exposition of the Lord’s Prayer [Uma exposição da oração do Pai-
Nosso) (1592) e os capítulos 19 a 29 de A Golden Chain: or, The
Description of Theology (1590 em latim; 1591 em inglês), em que o
Decálogo é sistematicamente exposto. Começando com a sentença
“Teologia é a ciência de viver de forma abençoada para sempre”,
este último trabalho analisa todos os propósitos e procedimentos de
Deus em relação ao destino humano. Teve uma ótima saída,
contando com nove edições em trinta anos. Além disso, Perkins
compôs The Foundation of Christian Religion, Gathered into Six
Principles: And it is to be Learned of Ignorant People, that they may
be fit to Hear Sermons with Profit, and to Receive the Lord’s Supper
with Comfort
[O fundamento da religião cristã reunido em seis princípios: para
ser aprendido por pessoas ignorantes, a fim de que sejam aptas a
ouvir sermões com proveito e receber a Ceia do Senhor com
consolo] (1590). Esse foi um catecismo evangelístico composto por
perguntas e respostas sobre o conteúdo do evangelho. Começando
com um discurso voltado aos ignorantes, que listava trinta e duas
“opiniões comuns” nas quais sua ignorância encontrava expressão,
ele lhes mostrava, de forma bem simples: (1) a triunidade de Deus;
(2) o pecado e a perdição do homem; (3) a obra salvadora de
Cristo; (4) a salvação do indivíduo “somente pela fé, apreendendo e
aplicando Cristo com todos os seus méritos a si mesmo”;20 (5) os
meios para a fé, ou seja, a Palavra pregada, apoiada pelos
sacramentos e pela oração; e (6) a perspectiva do céu para os
piedosos e do inferno para os incrédulos. Ao escrever este trabalho,
Perkins tornou-se o ancestral espiritual de autores modernos como
Michael Green e Nicky Gumbel, e nos alerta hoje, quatro séculos
depois, para a necessidade de conhecimento do abecedário cristão
se quisermos tirar o melhor proveito possível da pregação
expositiva. Essas obras de Perkins foram os primeiros recursos
significativos para o discipulado puritano da Inglaterra, e o
catecismo em particular foi amplamente utilizado por meio século
após a sua morte.21
Produzir esses itens básicos era, no entanto, apenas uma
pequena parte do trabalho de Perkins como formulador e
divulgador da fé e da prática puritana. Considere a seguinte série
de livros (todos bem pequenos, apesar do tamanho de seus
títulos), que Perkins produziu tendo em vista leitores leigos.
1. A Treatise Tending unto a Declaration whether a Man be in the
Estate of Damnation, or in the Estate of Grace; and if he be in the
first, how he may in time come out of it; if in the second, how he
may discern it, and persevere in the same to the end [Um tratado
que intenta descobrir se alguém está no estado da condenação, ou
no estado da graça; e, se estiver no primeiro, como pode sair dele
com o tempo; se no segundo, como pode discerni-lo e perseverar
até o fim] (1588). Descrito pelo próprio Perkins como “um diálogo
da condição de um cristão compilado a partir dos maravilhosos
escritos do mestre Tyndale e do mestre Bradford” [William Tyndale,
o tradutor da Bíblia, e John Bradford, o mártir mariano], esse
ponto, nas palavras de Ian Breward, “resumiu de forma breve o que
resultaria nas preocupações clássicas da piedade puritana”22 — ou
seja, em poucas palavras, graça salvadora, fé salvadora e vida
santa.
2. A Case of Conscience, the Greatest that Ever Was: How a Man
may Know whether he be a child of God, or no: Resolved by the
Word of God [O caso de consciência, o maior que já existiu: como
alguém pode saber se é filho de Deus ou não: Resolvido pela
Palavra de Deus] (1592). Esse é um diálogo engenhoso entre o
apóstolo João e seu interlocutor, a “Igreja”, em que cada versículo
de 1João é apresentado como resposta a algum erro, incerteza ou
confusão sobre a garantia da salvação que estava espalhada entre
os clérigos ingleses no final século 16.
3. A Grain of Mustard Seed: Or, The Least Measure of Grace that
is or can be Effectual to Salvation [Um grão de semente de
mostarda: ou a menor medida de graça que é ou pode ser eficaz
para a salvação] (1597). Ao ver a conversão como um processo de
vida que o Espírito Santo opera nos pecadores por etapas, uma vez
que ele os uniu a Cristo, Perkins argumenta que o desejo de
conversão completa, ou seja, de uma fé sólida em Cristo e
arrependimento completo, é, em si, um sinal de que essa pessoa já
é aceita por Deus, ainda que a fé e o arrependimento mal tenham
começado a aparecer em seu desempenho real.
4. Two Treatises: 1. Of the nature and practice of Repentance. 2.
Of the combat of the flesh and spirit [Dois tratados: 1. Da natureza
e da prática do arrependimento. 2. Do combate entre a carne e o
espírito] (1593). Para os puritanos, assim como para os
reformadores, o arrependimento era fruto da fé e uma disciplina
vitalícia da vida cristã. A obra de Perkins é uma análise minuciosa
do que o arrependimento envolve. No prefácio, ele afirma sua
solidariedade com os protestantes que o precederam da seguinte
forma:
E, considerando que até agora foram publicados em inglês dois
sermões de arrependimento, um de Bradford Martyr, o outro de
Arthur Dent; sermões de fato que fizeram muito bem, minha
intenção não é lhes acrescentar algo, ou ensinar outra doutrina,
mas apenas renovar e reviver a memória daquilo que eles
ensinaram.
Nem se incomode que os principais teólogos dessa época, a quem
sigo neste tratado, possam parecer diferentes no tratamento do
arrependimento. Pois alguns fazem disso um fruto da fé, contendo
duas partes — mortificação e vivificação; alguns fazem da fé uma
parte dela, dividindo contrição, fé e nova obediência [referência a
Melâncton]; outros fazem com que tudo seja um com a
regeneração [referência a Calvino, que também propôs a análise da
mortificação-vivificação]. A diferença não está na substância da
doutrina, mas na maneira lógica de tratá-la [...] O arrependimento
[...] é considerado de duas maneiras [...] geralmente para toda
conversão do pecador e, assim, pode conter contrição, fé, nova
obediência [...] e ser confundido com regeneração. É considerado
particularmente para a renovação da vida e do comportamento, e
por isso é fruto da fé. E é esse único sentido que sigo neste
tratado.23
O tratado sobre arrependimento inclui um elaborado esquema de
autoexame à luz do Decálogo e do evangelho, e ambos os tratados
atingem duramente o ensino relativo ao Concílio de Trento sobre
atos humanos meritórios.
5. How to Live, and that Well, in all Estates and Times, Specially,
When Helps and Comforts fail [Como viver bem em todos os
estados e tempos, especialmente quando os auxílios e consolos
falham] (1601). Esse é um sermão estendido sobre Habacuque 2.4,
mostrando como a fé baseada na Bíblia traz paz, alegria, piedade e
boa esperança.
6. A Salve for a Sick Man: or a Treatise containing the Nature,
Differences, and Kinds of Death: As also the Right Manner of Dying
Well. And it may serve for Spiritual Instruction to 1. Mariners when
they go to sea; 2. Soldiers when they go to battle; 3. Women when
they travail with child [Um bálsamo para os doentes: ou um tratado
contendo a natureza, as diferenças e os tipos de morte, bem como
a maneira correta de morrer bem. E pode servir de instrução
espiritual para: 1. Marinheiros quando vão para o mar; 2. Soldados
quando vão para a batalha; 3. Mulheres em trabalho de parto]
(1595). Que a preparação para morrer é um dever e uma disciplina
da vida cristã pode soar estranho aos ouvidos dos cristãos
modernos, mas os reformadores, puritanos e evangélicos
anteriores, como os medievais, eram claros a esse respeito, e
Perkins lida com o tema de forma franca, realista e centrada no
evangelho, o que — uma vez que a morte é o único fato inevitável
da vida — parece inteiramente apropriado.
7. The Whole Treatise of the Cases of Conscience... Taught and
Delivered by Mr. W. Perkins in his Holyday Lectures [= Sunday
Sermons], examined by his own briefs [manuscripts], and published
for the common good by
T. Pickering [O tratado completo dos casos de consciência...
Pregado por W. Perkins em suas pregações no dia santo (sermões
de domingo)], examinado por seus próprios resumos [manuscritos]
e publicado em prol do bem comum por T. Pickering] (1606). Essa
publicação póstuma foi a tentativa pioneira de se elaborar uma
casuística protestante em larga escala para a orientação moral de
todo o povo de Deus. Partindo da afirmação de que há “uma
doutrina certa e infalível, proposta e ensinada nas Escrituras, por
meio da qual as consciências dos homens angustiados podem ser
aquietadas e aliviadas”,24 o tratado aborda três conjuntos de
questões: primeiro, aquelas relacionadas à salvação pessoal, à
segurança e às várias formas de angústia espiritual; segundo,
aquelas relacionadas ao conhecimento e à adoração de Deus; e,
terceiro, aquelas relativas à prática das virtudes cristãs (prudência,
clemência, temperança, liberalidade, jus-
tiça — essa é a lista de Perkins) na família, na igreja e na
comunidade.
Esses sete itens, em conjunto, apontam-nos para as
preocupações que eram centrais no ministério de Perkins. Como
teólogo acadêmico da Igreja da Inglaterra, ele usou seus dons de
análise lúcida e exposição direta para preencher algumas lacunas
nos recursos pastorais da Igreja da forma como ele os via, de modo
a fornecer aos ingleses, tanto do púlpito como de sua obra escrita,
orientações sobre a piedade desde o berço da conversão até a
sepultura. A orientação que ele deu baseava-se na Bíblia, de acordo
com os princípios de interpretação literal e contextual estabelecidos
pelos reformadores; era calvinista, à maneira aristotélica da
segunda geração de Beza, sucessor de Calvino em Genebra por
quarenta anos, e de Zanchi, o tomista italiano convertido, com seus
colegas Ursino e Oleviano, que ensinaram e escreveram teologia
reformada em Heidelberg; era prática, sintonizada, em todos os
aspectos, com a tarefa de encontrar e seguir o caminho da vida
eterna; e era experiencial, no sentido de que se concentrava
constantemente em motivos, desejos, angústias, graças e
desgraças no coração e na vida interior, como fonte tanto da
obediência a Deus como de seu oposto.
Perkins dispensou atenção primordial, ao longo de seu ministério,
às preocupações religiosas já apontadas — a necessidade de
regeneração de cada pessoa; a busca da paz e da alegria da
certeza; o dever e a disciplina do autoexame para se revelarem os
pecados de alguém, e de invocar Cristo constantemente pela fé
para cobri-los com seu sangue; a experiência do conflito entre a
carne e o espírito; a realidade das quedas e recuperações ao longo
do caminho da obediência; as batalhas contra dúvidas, desânimos e
depressão; a prática do arrependimento ao longo da vida e a
anulação consciente das transgressões. Ao se concentrar nessas
coisas, Perkins ganhou do escritor alemão August Lang a descrição
de “pai do pietismo”, na medida em que a leitura das obras práticas
de Perkins despertava e alimentava o movimento continental,
particularmente na Holanda e na Alemanha. O pietismo, assim
chamado, foi um desenvolvimento dos séculos 17 e 18 nas igrejas
estatais protestantes e no catolicismo romano em toda a Europa.
Foi uma renovação da devoção pessoal, marcada pelos princípios,
práticas e prioridades, bem como pelas atitudes e aspirações, acima
referidos. Devemos notar imediatamente aqui que as atitudes anti-
intelectuais, anticulturais e antinacionais da igreja, aliadas às
inclinações de natureza emocional, legalista e individualista, que
marcaram e mancharam alguns pietistas posteriores, representam
desvios e, de fato, contradições do humanismo puritano de Perkins.
Com essa qualificação (reconhecidamente bastante pesada!), no
entanto, devemos aceitar “pai do pietismo”25 como um rótulo
verdadeiro para Perkins e tratar a expressão como um título de
honra. A primeira nota em qualquer definição de pietismo, afinal, é
priorizar a piedade. Perkins fez isso, com constância e robustez; e
assim — arrisco-me a dizer — devemos todos fazer.
Preceitos para O Progresso Espiritual
Em A Grain of Mustard Seed, Perkins descreveu a conversão do
pecador através do Espírito Santo como tipicamente um processo
unitário complexo envolvendo a pessoa inteira por um período de
tempo, e insistiu que a única prova definitiva de que ela começou é
o avanço — em outras palavras, o fato de que a mudança pessoal
da pecaminosidade natural para a piedade sobrenatural continua.
No final do livro ele fala sobre o caminho para assegurar o
crescimento na graça em uma passagem tão marcante que eu a
cito longamente e reivindico sua posição de clássico na literatura da
espiritualidade ocidental. Aqui, então, está Perkins explicando sua
afirmação de que “os princípios da graça são falsificados, a menos
que aumentem”, e nos mostrando o que, para ele, constitui saúde
na vida interior do cristão.
A maldade da natureza humana e a profundidade de sua hipocrisia são tais que um
homem pode facilmente transformar-se na falsificação e na semelhança de qualquer
graça de Deus. Portanto, coloco nesta última conclusão uma nota por meio da qual os
dons de Deus podem ser discernidos, a saber, que eles crescem e aumentam como um
grão de mostarda para uma grande árvore e dão frutos de forma responsiva. A graça no
coração é como o grão de mostarda em dois aspectos: primeiro, é pequeno para ser
visto no início; segundo, depois de lançado no solo do coração, ele cresce rapidamente
e se espalha. Portanto, se um homem no início tiver apenas um pequeno sentimento de
suas necessidades, um desejo fraco e débil, alguma pequena obediência, ele não deve
deixar essa centelha de graça se apagar; ao contrário, esses movimentos do Espírito
devem ser aumentados pelo uso da palavra, dos sacramentos e da oração; e eles
devem diariamente ser estimulados a meditar, esforçar-se, empenhar-se, pedir, buscar,
bater à porta (Mt 25.26; 2Tm 3.16). Quanto aos movimentos do coração que duram
uma semana ou um mês e depois desaparecem, não devem ser considerados. E o
Senhor, por meio do profeta Oseias, queixa-se deles, dizendo: Ó Efraim, a tua justiça é
como o orvalho da manhã (Os 6.4).
Portanto, considerando que a graça, a menos que seja confirmada e exercida, de fato
não é graça, acrescentarei aqui algumas regras para que, mais facilmente, possamos
pôr em prática os exercícios espirituais de clamar a Deus, fé e arrependimento, e assim
também vivificar as sementes e os princípios da graça.
1. Onde quer que você esteja, sozinho ou fora de seu país, de dia ou de noite, em tudo
o que fizer, coloque-se na presença de Deus. Que essa persuasão sempre ocorra em
seu coração, para que você esteja diante do Deus vivo; esse conselho o Senhor deu a
Abraão
(Gn 17.1). Isso também foi praticado por Enoque, e por isso é registrado que ele andou
com Deus.
2. Considere cada dia presente como o dia de sua morte; portanto, viva como se
estivesse prestes a morrer e faça, diariamente, os bons deveres que faria se estivesse à
beira da morte. Essa é a vigilância cristã; lembre-se disso.
3. Faça catálogos e contas de seus próprios pecados, especialmente daqueles pecados
que mais desonraram a Deus e feriram sua própria consciência. Coloque-os diante de si
mesmo com frequência, especialmente quando você tiver alguma ocasião particular de
renovar seu arrependimento, para que seu coração, por meio dessa visão dolorosa,
possa ser ainda mais humilhado. Essa era a prática de Davi quando ele considerava
seus caminhos e voltava seus pés para os mandamentos de Deus, e quando confessava
os pecados de sua juventude (Sl 119.59; Sl 25). Essa foi a prática de Jó quando disse
que não era capaz de responder a Deus um de seus mil pecados (Jó 9.3).
4. Quando você abrir os olhos pela primeira vez pela manhã, ore a Deus e agradeça de
coração. Deus, então, será honrado e seu coração será aprimorado por isso durante
todo o dia. Pois observamos pela experiência que os vasos mantêm por muito tempo o
sabor do licor com que foram temperados pela primeira vez. E, quando se deitar, que
seja seu último pensamento também, porque você não sabe se, ao adormecer, acordará
vivo. Bom, portanto, é que você se entregue nas mãos de Deus enquanto estiver
acordado.
5. Trabalhe para ver e sentir sua pobreza espiritual, ou seja, para ver a falta de graça
em si mesmo, especialmente aquelas corrupções internas de incredulidade, orgulho,
amor-próprio, entre outras. Por causa delas, você necessita de cada gota do sangue de
Cristo, a fim de se curar e purificar-se dessas debilidades. E que essa prática ocupe tal
lugar que, se lhe indagarem qual, em sua opinião, é a mais vil das criaturas na face da
terra, seu coração e sua consciência possam responder em alta voz: eu, eu mesmo, por
causa dos meus próprios pecados: e, novamente, se lhe perguntarem qual é a melhor
coisa do mundo para você, que seu coração e sua consciência possam responder com
um clamor alto e forte: uma gota do sangue de Cristo para lavar meus pecados.
6. Mostre-se membro de Cristo e servo de Deus, não apenas na vocação geral de um
cristão, mas também na vocação particular em que você foi colocado. Não basta que
um magistrado seja uma pessoa cristã; ele deve ser, de fato, um magistrado cristão.
Não é suficiente para um chefe de família ser um homem cristão; ele deve também ser
cristão em sua família e no trabalho que exerce diariamente. Nem todo aquele que ouve
a Palavra e participa da mesa do Senhor é, portanto, um bom cristão, a menos que sua
conduta no lar e nos negócios e atividades particulares seja adequada. O homem deve
ser visto por aquilo que ele é em privado.
7. Examine as Escrituras para ver o que é pecado e o que não é pecado em cada ação.
Feito isso, carregue em seu coração um propósito constante e resoluto de não pecar em
nada, pois a fé e o propósito de pecar nunca podem caminhar juntos.
8. Que seu esforço seja adequado ao seu propósito; portanto, não faça nada em
nenhum momento contra sua consciência, a qual deve ser corretamente instruída pela
Palavra. Exercite-se para evitar todo pecado e obedecer a Deus em cada um de seus
mandamentos pertencentes ao chamado geral de um cristão ou ao seu chamado
pessoal. Assim fez o bom Josias, que se voltou para Deus de todo o coração, segundo
toda a lei de Moisés, e assim fizeram Zacarias e Isabel, que andaram em todos os
mandamentos de Deus sem repreensão (2Rs 23.25; Lc 1.6).
9. Se, a qualquer momento, contra seu propósito e contra sua resolução, você for
surpreendido por algum pecado pequeno ou grande, não repouse nele; ao contrário,
recupere-se rapidamente, confessando sua ofensa e, por meio da oração, suplique ao
Senhor, sinceramente, que o perdoe, até que você encontre sua consciência
verdadeiramente pacificada e aumente seu cuidado em evitar o mesmo pecado.
10. Considere frequentemente o propósito correto e apropriado de sua vida neste
mundo, que não é buscar lucro, honra ou prazer, mas que, servindo aos homens,
possamos servir a Deus em nossas vocações. Deus poderia, se assim lhe agradasse,
preservar o ser humano sem ministérios nem ministros, mas seu prazer é cumprir sua
obra e vontade, na preservação de nossos corpos e na salvação de nossas almas
empregando homens a seu serviço, cada qual segundo sua vocação. Tampouco existe
um escravo, mas ele deve, em fidelidade e por meio de seu fiel serviço ao mestre, servir
ao Senhor. Os homens, portanto, costumam profanar seus trabalhos e suas vidas
visando a um propósito equivocado, quando todo o seu cuidado consiste apenas em
obter sustento suficiente para si mesmos e para a obtenção de crédito, riquezas e bens
terrenos e carnais. Pois assim os homens servem a si mesmos, e não a Deus ou ao
próximo, e muito menos servem a Deus servindo ao próximo.
11. Dedique toda a sua diligência a fim de garantir sua eleição e reunir vários sinais
dela. Para isso, observe as obras da providência, do amor e da misericórdia de Deus,
tanto em você como sobre você, de tempos em tempos; pois a séria consideração
delas, quando são muitas e várias, ministram direção, certeza de favor e consolo de
Deus. Essa era a prática de Davi (1Sm 17.34, 36; Sl 23).
12. Pense sempre que seu estado atual, qualquer que seja, é o melhor para você,
porque tudo o que acontece com você, seja doença, seja qualquer outra aflição ou
morte, acontece pela boa providência de Deus. Para que isso tenha melhor proveito,
trabalhe para ver e reconhecer a providência de Deus tanto na pobreza como na
abundância, tanto na desgraça como na boa fama, tanto na doença como na saúde,
tanto na vida como na morte.
13. Ore continuamente. E por oração contínua não quero dizer oração solene e de
horário fixo, mas pulsões secretas e internas do coração; ou seja, uma contínua
elevação da mente a Cristo, que está assentado à destra de Deus Pai, mediante a
oração ou ações de graças, em qualquer ocasião, sempre.
14. Pense com frequência nas piores e mais dolorosas coisas que podem acontecer a
você, nesta vida ou na morte, pelo nome de Cristo. Faça uma estimativa delas e
prepare-se para suportá-las, para que, quando vierem, não lhe pareçam estranhas, mas
sejam suportadas com mais facilidade.
15. Tome consciência dos pensamentos ociosos, vãos, desonestos e ímpios, pois essas
são as sementes e os princípios da raiz do pecado, em palavras e ações. Essa falta de
cuidado em ordenar e compor nossos pensamentos é muitas vezes punida com uma
terrível tentação no próprio pensamento, denominada pelos teólogos como tentatio
blasphemiarum, uma tentação a blasfêmias.
16. Quando qualquer bom movimento ou afeição surgir no coração, não permita que
passe, mas alimente-o — lendo, meditando ou orando.
17. Qualquer coisa boa que você fizer, seja em palavras ou ações, não faça por vaidade
ou orgulho de coração, mas com humildade, atribuindo a Deus o poder com que você
faz sua obra e louvando-o por isso. Caso contrário, descobrirá, por experiência própria,
que Deus amaldiçoará suas melhores ações.
18. Não despreze a honestidade civil: boa consciência e boas maneiras caminham
juntas. Portanto, lembre-se de tomar consciência da mentira e de palavras torpes nas
conversações comuns. Não discuta com nenhum homem nem por atos nem por
palavras; seja cortês e gentil com todos, bons ou maus. Suporte os desejos e as
fragilidades dos homens — pressa, ousadia, egoísmo, curiosidade, entre outros —,
tolerando-os como não percebidos. Não retribua o mal com o mal, mas o mal com o
bem. Use comida, bebida e vestuário dessa maneira e nessa medida, para que possam
promover a piedade e ser, por assim dizer, sinais pelos quais você expressa a graça que
reside em seu coração. Esforce-se para não ir além do que deve, a menos que seja nas
coisas boas. Esforce-se por dar honra antes de recebê-la, mantendo firme sua palavra,
e não confesse mais exteriormente do que há de fato em seu coração; não oprima nem
defraude ninguém em negociações; em todas as atividades, faça o bem ou receba o
bem.
19. Não se apegue com afeição desordenada a qualquer criatura, mas, acima de tudo,
aquiete e descanse sua mente em Cristo; acima de toda dignidade e de toda honra,
acima de toda astúcia e de toda política, acima de toda glória e posição, acima de toda
saúde e de toda beleza, acima de toda alegria e de todo deleite, acima de toda fama e
de todo louvor, acima de todo prazer e de toda consolação, que o coração do homem
possa se sentir ou se imaginar ao lado de Cristo.
A essas regras relacionadas à prática junte as regras de meditação — eu lhe proponho
seis delas, conforme as encontro estabelecidas por um teólogo erudito chamado Victor
Strigelius:
i. Não devemos nos afastar de Deus por criatura alguma.
ii. A eternidade infinita é, de longe, preferível à curta corrida desta vida mortal.
iii. Devemos manter firme a promessa da graça, embora percamos as bênçãos
temporais; e, também na morte, elas devem ser deixadas.
iv. Que o amor de Deus em Cristo e o amor da igreja por Cristo sejam fortes em você e
prevaleçam contra todas as outras afeições!
v. É a principal capacidade de um cristão crer em coisas invisíveis, esperar coisas
futuras, amar a Deus mesmo quando ele parece estar contra você e assim perseverar
até o fim.
vi. É um remédio bastante eficaz para qualquer dor aquietar-se na confiança da
presença e da ajuda de Deus, clamar a ele e ainda esperar por algum alívio ou
libertação.26

Perkins, o Teólogo
Educador, professor, apregoador, leitor veloz, escritor rápido e
mestre na arte da simplicidade sem superficialidade, pai tanto do
pietismo — como ethos europeu — como do puritanismo — como
ideologia inglesa —, Perkins produziu tratados didáticos brilhantes
sobre muitos assuntos que ainda não mencionei — entre eles, os
chamados do povo cristão: vida familiar cristã; “a virtude da
equidade, ou moderação da mente”;27 o papel do ministério
profissional; os princípios da homilética; o funcionamento da
consciência; a adoração a Deus; o controle da língua; os erros de
Roma; e a doutrina da predestinação. Claramente, no entanto, as
realidades da religião no regenerado — em outras palavras,
conversão, segurança, devoção e comportamento biblicamente
ordenado — sempre foram cruciais no âmbito de seu interesse. A
declaração de Kendall, de que Perkins “dedicou-se principalmente a
mostrar aos homens que eles devem — e podem — garantir seu
chamado e eleição para si mesmos” é muito limitada.28 A primeira
preocupação de Perkins era que as pessoas fossem cristãs, e seu
objetivo de ajudá-las a saber que eram cristãs veio em segundo
lugar. A passagem citada reúne as principais coisas que ele tinha a
dizer sobre a vida interior do crente, que é o critério da realidade
cristã, e esse perfil do santo em crescimento nos oferece um ponto
de vista para rever a teologia de Perkins como um todo, indagando,
à medida que avançamos, como cada aspecto dela se relaciona
com o que agora vemos ser o foco principal de seu autor.
A forma e a substância da escrita devocional didática dependem
sempre de três elementos: a compreensão dos autores do que a
Bíblia ensina sobre a união com Cristo e o discipulado, sua visão
das necessidades espirituais de seu público e sua própria
experiência de caminhada com Deus. Se eles passaram pela
conversão na vida adulta, o que escreverem provavelmente
destacará o contraste entre a vida com e sem Deus, como Paulo,
Agostinho, Bunyan, G. K. Chesterton e C. S. Lewis bem ilustram.
Perkins também é um bom exemplo disso, como mostra a
passagem acima.
A verdadeira vida cristã, como Perkins a concebe, é tanto
aspiracional como transformacional. É uma aspiração, na medida
em que se concentra no esforço sincero de exercer a fé em oração
— ou seja, uma confiança assegurada no Salvador e Senhor Jesus
Cristo, uma vez crucificado e agora ressurreto — e, com isso,
praticar o arrependimento — ou seja, uma busca pessoal por
comportamento pecaminoso e hábitos pecaminosos do coração,
passados e presentes —, para, com a ajuda de Deus, deixá-los para
trás, de modo a limpar o terreno para a santidade (observação da
lei no amor) daqui em diante. A informação na qual se fundamenta
o apelo da fé ao Pai e ao Filho, e sobre a qual repousam
diretamente a esperança e a certeza da fé, diz respeito à
justificação e à adoção na família de Deus por meio da cruz
reconciliadora de Cristo. E a vida cristã é transformadora, na
medida em que a mudança aspira-
da — e pela qual oramos — agora começa a ocorrer de forma
visível. Cada vez mais, aqueles que assim oram e que buscam
reordenação para suas vidas de dentro para fora encontram sua
identidade, seu contentamento e sua paz em continuar com sua
busca, enquanto cresce a consciência de que agora são pessoas
diferentes do que eram; porque eles passaram a estar em Cristo, o
Espírito Santo agora habita neles e eles podem ter certeza de que
Deus Pai os ama de maneira salvífica e continuará a amá-los para
sempre. Os puritanos que vieram depois organizariam esse senso
de nova realidade sob o selo da regeneração; esse, entretanto, não
é um dos termos técnicos de Perkins, assim como não é na
Confissão e Catecismos de Westminster, ou nos escritos de William
Tyndale, o tradutor da Bíblia, e de John Bradford, o mártir da
Reforma, por quem a forma dessa vida graciosa aspiracional-
transformacional foi inicialmente explicada.
Ao delinear as necessidades espirituais da Inglaterra, Perkins
menciona muitas formas de imoralidade e irreligião, mas
claramente o que mais o incomodava era o formalismo protestante
e a complacência espiritual típica de sua própria época, que havia
substituído seu equivalente católico romano anterior. Assim, suas
tarefas ministeriais, da forma como ele as via, resumiam-se
precisamente em afligir o consolado e consolar o aflito.
Básico para todo o trabalho de Perkins é o desejo de manter a
continuidade com a herança da Reforma, tanto local como
externamente, e discipular as pessoas nela. Como Kendall afirma:
“Ele via a si mesmo como parte da corrente principal da Igreja da
Inglaterra — frequentemente defendida por ele”.29 Ele não nutria
simpatia pelos defensores da separação em questões de ordem
eclesiástica; enquanto a Igreja estivesse comprometida com a
ortodoxia da Reforma e ele próprio estivesse livre para ensinar,
pregar e pôr em prática essa ortodoxia, sua lealdade anglicana não
estaria em dúvida, mesmo quando ele tivesse de suportar o assédio
de dentro do sistema. (Um exemplo disso foi que, em 1587, ele
teve de responder ao vice-reitor da universidade por ter afirmado,
em um sermão, que os requisitos do Livro de Oração de se ajoelhar
na comunhão e fazer com que o celebrante administrasse os
elementos a si mesmo não eram as melhores opções.) Não
obstante, a lealdade ao sistema estabelecido era parte integrante
do cristianismo que ele ensinava.
Quanto à herança protestante mais ampla, é importante ver que
Perkins, que se identificava como calvinista, absorveu os
ensinamentos não apenas de Calvino, mas também de outros
escritores reformados, como, aparentemente, Bucer, Bullinger,
Musculus e Peter Martyr, e particularmente Beza, de Genebra, e
Zanchi, de Heidelberg. Um longo apêndice de Beza completa A
Golden Chain [A corrente de ouro] (cujo material básico havia sido
emprestado de Beza em primeiro lugar), e um resumo dos
pensamentos de Zanchi sobre segurança preenche mais da metade
de A Case of Conscience [Caso de consciência]; e o próprio relato
de fé e segurança de Perkins reflete claramente a influência desses
dois gigantes. Genericamente, a teologia da Reforma concebia a fé
como a confiança de toda a alma do cristão no Cristo das
promessas bíblicas para um relacionamento correto com Deus.
Calvino havia definido a fé como uma persuasão ensinada pelo
Espírito sobre o favor de Deus por amor a Cristo; em outras
palavras, como uma confiança segura da mente e do coração, e ele
havia explicado a convocação de Pedro em 2Pedro 1.10 para
“certificar sua vocação e eleição” como um simples pedido de
comportamento coerente com a profissão cristã.30 Perkins, no
entanto, estendeu a definição de fé para incluir tanto a vontade (ou
seja, o desejo e o anseio) de acreditar que precede a confiança
ativa como o ato da alma aplicando o Cristo das promessas ao
próprio coração perturbado e à consciência culpada; e ele segue
Beza e Zanchi na compreensão de 2Pedro 1.10, pedindo aos
cristãos que se posicionem “na vida”, como dizem os galeses,
seguros e certos em relação a si mesmos, observando como a
graça já os mudou.
Perkins vinculava essa visão do versículo ao seu próprio conceito
tomista de consciência, claramente focado na forma como a mente
trabalha através do que ele chamava de “silogismos práticos”, com
vistas à desaprovação e à condenação ou à aprovação e ao
conforto. Em um silogismo prático, a premissa maior seria uma
regra moral ou espiritual, idealmente uma declaração bíblica; a
premissa menor seria uma observação factual; e a conclusão, um
julgamento moral. Um exemplo simples, que Perkins realmente usa,
como muitos de nós também fazemos hoje, é:
Todo aquele que crê é filho de Deus;
Eu creio;
Portanto, sou filho de Deus.
Kendall avalia o relato de fé de Perkins como confuso e seu
caminho para a segurança, ilusório, mas suas críticas parecem
depender de separar a mente e a vontade de uma forma que
Perkins nunca fez, de igualar o autoexame bíblico com a
introspecção e de esquecer o axioma de Perkins de que a graça real
é suscitada e, assim, prova sua realidade.31 Em minha opinião,
Perkins estava certo, primeiro ao analisar a consciência como
operando — por mais compactada que seja — por meio de
silogismos práticos; e, segundo, ao afirmar que o autoexame das
Escrituras normalmente dará ao cristão bases sólidas para a
confiança em sua regeneração diante de Deus.
Algo também básico para todo o trabalho de Perkins foi sua
insistência de que a Sagrada Escritura deve ser recebida como o
ensinamento e o testemunho de Deus, e que a interpretação deve
tomar a forma de aplicação dos princípios bíblicos ao próprio tempo
e às necessidades do intérprete. Breward afirma isso bem,
destacando o foco cristocêntrico da hermenêutica de Perkins. Ele
começa citando a afirmação de Perkins de que as Sagradas
Escrituras “concordam entre si com exatidão e que as passagens
que parecem discordar podem ser facilmente reconciliadas”, pela
simples razão de que “o escopo de toda a Bíblia é Cristo com seus
benefícios”. Se existiam diversas opiniões sobre o significado das
escrituras:
Nessa diversidade de opiniões [...] devemos ainda [sempre] recorrer a Cristo, e isso
somente na Escritura; pois, embora houvesse mil exposições variadas de uma
passagem, ainda pelas circunstâncias, conferindo [comparando] com outros trechos
semelhantes das Escrituras, um homem poderá descobrir o verdadeiro sentido, pois
Cristo na Escritura expõe a si mesmo.32

Da versão supralapsariana do calvinismo que Perkins aprendeu


com Beza e Zanchi, exposta em A Golden Chain e defendida em
latim em De Praedestinatione (1598) e em inglês em God’s Free
Grace and Man’s Free-will (1602) [A livre graça de Deus e o livre-
arbítrio humano], pouco resta a ser dito aqui. O supralapsarianismo
é a visão de que, nas decisões de Deus em relação à humanidade
antes mesmo da fundação do mundo, seu propósito de eleger
alguns e reprovar outros previa seres humanos ainda não criados,
diferentemente da visão infralapsariana, de que, ao decretar essa
dupla predestinação, Deus previa o ser humano como criado e
caído. Perkins abraçou o supralapsarianismo pelo desejo de manter
a soberania absoluta de Deus em nossa salvação contra os
luteranos, os católicos romanos semipelagianos, como Belarmino, e
os antipredestinacionistas na Inglaterra, como Peter Baro, Samuel
Harsnet e William Barrett. Ao adotá-la, no entanto, ele cercou as
boas-novas do amor redentor de Deus pelos pecadores perdidos
com uma estrutura racionalista proibitiva, que, como todas as
versões da fórmula supralapsariana, parecia sugerir que Deus é um
tomador de decisões arbitrário com o interesse abstrato de obter
dois tipos de pessoas — uma justamente salva e outra justamente
condenada —, e que ele havia desejado a queda no Éden como um
meio para esse fim.33 A maioria dos puritanos do século 17, como a
maioria dos teólogos reformados desde seu tempo, eram
infralapsarianos, e eu acredito que fosse para expressar um
arrependimento silencioso que Perkins, o pioneiro puritano
elizabetano, adotou uma linha diferente. A soberania de Deus na
salvação certamente deve ser mantida, mas o supralapsarianismo
dogmático não é a maneira mais bíblica — nem a melhor — de
fazê-lo.
Mas, na mente de Perkins, o supralapsarianismo não inibiu de
forma alguma a expressão de seu coração evangelístico e pastoral,
e é isso que eu retomo ao encerrar. A partir de uma exposição de
Sofonias 2.1,2, “pregado em Stourbridge Fair, no campo; tirado de
sua boca”34 — ou seja, registrado, presumivelmente em taquigrafia,
enquanto ele falava, aparentemente em 1593, e publicado
postumamente em 1605 —, eu extraio dois excertos, ambos
tipicamente puritanos (qualquer pregador puritano nos próximos
cem anos poderia dizer o mesmo; de fato, sabemos que muitos o
fizeram). O primeiro trecho nos mostra Perkins, o evangelista,
proclamando o convite do evangelho a quem quiser. Falando da
promessa do evangelho como uma “joia preciosa”, Perkins diz:
[...] nunca alegue que está acima de suas condições ter uma joia tão custosa, pois eu a
ofereço gratuitamente a cada um de vocês. Eu lhes declaro a partir do Senhor que aqui
essa bendita doutrina é oferecida a todos em seu nome gratuitamente, e que vocês
podem comprá-la sem dinheiro (Is 55.1). Feliz é aquele dia em que vocês, vindos de tão
longe para comprar coisas para seus corpos e pagando tão caro por elas, encontram
uma joia tão preciosa, cuja virtude salvará suas almas, e não pagam nada por ela.

O segundo excerto é pastoral, profético e, no melhor sentido,


patriótico. Tem a ver com a Inglaterra, a Igreja da Inglaterra e a
ameaça de julgamento nacional.
Os pecados comuns da Inglaterra [...] são: primeiro, a ignorância da vontade e a
adoração de Deus [...]
O segundo pecado principal da Inglaterra é o desprezo pela religião cristã [...] Nossa
igreja, sem dúvida, é o milharal de Deus, e nós somos o monte de milho de Deus, e
aqueles seguidores de Robert Browne — que queriam a separação — estão tão cegos e
obcecados que não podem ver que a Igreja da Inglaterra é um bom monte de milho de
Deus. Mas, além disso, devemos confessar que estamos cheios de palha [...] portanto,
Deus vai nos peneirar para descobrir o milho [...] a maneira de escapar da provação de
Deus é provar a si mesmo [...] e, assim, a maneira de escapar da temível lâmina de
Deus é cortar seu próprio coração pela lei de Deus [...] Uma vez por dia, coloque a si
mesmo e sua vida sob a lâmina da lei de Deus. Uma vez por dia, mantenha um tribunal
em sua consciência, chame seus pensamentos, suas palavras e suas ações para
julgamento. Que os dez mandamentos passem sobre eles, e seus pecados e corrupções
— que você acha serem como palha — sejam expulsos pelo arrependimento [...]. Nossa
longa paz, a fartura e a facilidade geraram grandes pecados [...]. Quando tivermos
renovado o próprio arrependimento, que, então, cada um de nós lide com o Senhor pela
oração fervorosa por esta igreja e por esta nação, para que ele mostre sua misericórdia
sobre ela e continuem com ela essa paz e o evangelho.
No título original deste estudo, classifiquei William Perkins —
teólogo, pregador e pastor há quatro séculos — como um anglicano
a ser lembrado; e acredito que o que aprendemos justifica essa
estimativa. Agora pergunto: não há uma estranha relevância para
nós nos pensamentos sobre a Inglaterra e a Igreja da Inglaterra
que acabamos de encontrar Perkins expressando? Podemos
acrescentar as igrejas da Escócia, Irlanda e País de Gales. Essa é
uma questão sobre a qual espero que todos nós venhamos a
ponderar.

13 Introdução e organização, Ian Breward, The Work of William Perkins (Abingdon: Sutton
Courtenay Press, 1969), xi, p. 130.
14 William Haller, The Rise of Puritanism (New York: Columbia University Press, 1938), p.
65; citando Thomas Fuller, Abel Redevivus, 1651, p. 434.
15 Tradução e organização. J.W. Beardslee, Reformed Dogmatics (New York: Oxford
University Press, 1966), p. 274, 275.
16 Benjamin Brook, The Lives of the Puritans (1813, reimp. Pittsburgh: Soli Deo Gloria,
1994), II, p. 130.
17 Thomas Fuller, The Holy State (1642), p. 89.
18 Samuel Clarke, The Marrow of Ecclesiastical History (1654), p. 416-17; citado em
Breward, op cit., p. 9-10, com a grafia modernizada.
19 Thomas Fuller, The Holy State, p. 90.
20 The Workes of that Famous and Worthy Minister of Christ in the Universitie of Cambridge
Mr. William Perkins (1616), I, p. 32-69.
21 Breward, p. 147.
22 Breward, p. 355.
23 Workes, I.454; ortografia modernizada, como em todas as citações do texto de Perkins.
O tratado abrange as páginas 453-74. O sermão de Bradford está em Works of John
Bradford: Sermons and Treatises (Cambridge: Parker Society, 1848, reimp. Edimbugo:
Banner of Truth, 1988), p. 20-81. O sermão de Arthur Dent, autor de The Plain Man’s
Pathway to Heaven (1601), um dos dois livros que formaram o dote da esposa de John
Bunyan, não foi reimpresso.
24 Workes, III. 1f. (1613). O tratado ocupa as páginas 1-152.
25 A. Lang, Puritanismus und Pietismus (Neukirchen Kreis Moers, 1941), p. 126-31;
referência extraída de Breward, p. 131.
26 Breward, p. 405-10; Workes, I, p. 642-44. Victor Strigelius foi um teólogo luterano que
ensinava em Heidelberg. Perkins, depois de dizer que citaria seis “regras de meditação”
[diretrizes para reflexão devocional] de Strigelius, acrescenta uma sétima: “Todas as obras
de Deus são feitas por meios contrários”, o que, aparentemente, é uma maneira de dizer
que, como Deus executa seu propósito, as coisas são regularmente o oposto do que
parecem ser, pois a cruz de Cristo foi a vitória sobre Satanás, na forma de uma aparente
derrota.
27 Breward, p. 481. O título do tratado é Epieikeia. Baseado em Filipenses 4.5.
28 R.T. Kendall, Calvin and English Calvinism to 1649 (Oxford: Oxford University Press,
1979), p. 54. Publicado no Brasil sob o título João Calvino e o calvinismo inglês até 1649,
pela Editora Carisma.
29 Idem.
30 “Ora, teremos uma definição correta de fé se a chamarmos de um conhecimento firme e
certo da benevolência de Deus para conosco, fundamentada na verdade da promessa
dada gratuitamente em Cristo, tanto revelada em nossas mentes como selada em nossos
corações por meio do Espírito Santo”, Institutas, III.ii.7.
31 Kendall, p. 74f.
32 Breward, p. 47, com base em Perkins, Workes, II.55f., I.484, III.220; meus itálicos. A
revisão de Breward sobre os procedimentos interpretativos de Perkins, conforme
estabelecidos em seu pioneiro manual homilético, The Art of Prophesying (1607; em latim,
Prophetica, 1592), e ilustrados por suas exposições impressas, deve ser consultada por
todos os meios.
33 A declaração mais nítida desse defeito é a de B. B. Warfield, The Plan of Salvation (ed.
revisada, Grand Rapids: Eerdmans, 1966), p. 88: “Que (Deus) tenha quaisquer criaturas
que eles (os supralapsarianos) supõem ser do interesse da discriminação, e tudo o que ele
decreta a respeito de suas criaturas eles supõem que ele decreta apenas para que possa
discriminar entre elas”.
34 Breward, p. 279.
I
Os setenta e seis anos da vida de Richard Baxter abrangeram
uma era na história inglesa que foi trágica, heroica e patética em
um grau extraordinário. Foi uma época de revolução e
contrarrevolução na Igreja e no Estado; de perseguição religiosa
brutal, de feroz controvérsia imposta sobre quase tudo; de
mudanças socioeconômicas disruptivas que ninguém na época
entendia; de problemas de saúde generalizados, cidades sem
higiene em crescimento e de uma medicina assustadoramente
primitiva; em suma, foi uma época de dificuldades para quase todo
mundo. E, no topo da lista de fatores que levaram a tragédias,
heroísmos e misérias, estavam as compreensões rivais do
cristianismo. É algo triste de ser dito, mas é a verdade.
Se você fosse um cristão de princípios consistentes, quaisquer
que fossem, vivendo durante aqueles setenta e seis anos, também
teria percorrido um caminho difícil. Se você fosse um católico
romano, teria sido objeto de desgosto geral na comunidade o
tempo todo, alguém constantemente suspeito de ser um subversivo
político. Se você fosse adepto do alto anglicanismo, alguém
devotado ao livro de orações, ao ministério dos bispos e à
supremacia real na igreja e no Estado, teria visto seu lado perder a
Guerra Civil na década de 1640, teria chorado pelo ato traiçoeiro de
executar o rei por traição contra seu povo, teria visto o Livro de
Oração e o episcopado, de uma só feita, proibidos pelo Parlamento,
e se fosse um clérigo, teria perdido a vida por quase vinte anos
antes da Restauração (1660). E se, como Baxter, você fosse um
puritano, praticando e propagando a religião de Agostinho com
base na teologia de João Calvino, teria de suportar a
“arminianização” da liderança anglicana por duas décadas antes da
Guerra Civil, a expulsão de quase dois mil clérigos puritanos das
paróquias inglesas na Restauração, o consequente afastamento
anglicano do evangelho e a intensa perseguição de protestantes
não conformistas, que colocaram dezenas de milhares na prisão por
não usarem o Livro de Oração em sua adoração a Deus durante o
quarto de século que precedeu a tolerância, em 1689. Quaisquer
que sejam seus princípios, você teria experimentado muita
infelicidade ao longo desses anos.
Há pouco chamei Richard Baxter de puritano; e, como essa
palavra ainda carrega conotação prejudicial para muitos, como
aconteceu durante toda a vida de Baxter, devo me apressar em
dizer que minha razão para usá-la é simplesmente porque era assim
que Baxter via a si mesmo. Observando, em 1680, que dois de seus
oponentes na imprensa o chamaram (em latim) de um puritano
inveterado que transpirava puritanismo por todos os poros, ele
respondeu: “Ora, eu não sou tão bom e bem-aventurado assim”.
Embora ele fosse, como diríamos, inclinado ao ecumenismo,
simpaticamente atento a todas as principais tradições cristãs e feliz
em aprender com todas elas, constantemente equiparava o ideal
puritano ao cristianismo — “mero cristianismo” para usar sua
própria expressão, que
C. S. Lewis, mais tarde, tomou por empréstimo de-
le —, e todos os seus escritos o mostram como o puritano clássico
que ele sempre procurou ser.
O que, então, era o puritanismo? Matthew Sylvester, o não tão
competente editor da narrativa póstuma de Baxter sobre sua vida e
sua época (publicada como Reliquiae Baxterianae, 800 páginas,
1696), observa, logo no prefácio, que, em questões históricas,
como em tudo o mais, Baxter tinha “olhos de águia, um coração
honesto, uma alma pensante, um espírito penetrante e atencioso
(ou seja, reflexivo) e um estado de espírito preocupado em
conduzir as gerações presentes e as vindouras a conhecer
devidamente o estado verdadeiro” da seguinte questão:35 Qual
descrição do puritanismo, então, Baxter teria reconhecido como
justa e verdadeira? Não é tão difícil de responder a essa questão. O
puritanismo, como Baxter o compreendia e como a erudição
moderna, corrigindo séculos de caricatura, agora o descreve, era
uma visão plena do cristianismo, baseada na Bíblia, centrada na
igreja, uma visão que honrava a Deus, culta, ortodoxa, pastoral e
reformada, que via a existência pessoal, doméstica, profissional,
política, eclesiástica e econômica como aspectos de um todo único,
e que chamava todos a ordenar cada área e cada relacionamento
de sua vida de acordo com a Palavra de Deus, para que todos
fossem santificados e se tornassem “santidade ao Senhor”. A
atividade de ponta de lança do puritanismo era o evangelismo
pastoral e a nutrição através da pregação, da catequese e do
aconselhamento (que os próprios puritanos chamavam de
casuística), e o ensino puritano insistia constantemente nos temas
de autoconhecimento, auto-humilhação e arrependimento; fé e
amor por Jesus Cristo, o Salvador; necessidade de regeneração e
santificação (vida santa, pelo poder de Deus) como prova disso; a
necessidade de conformidade consciente com toda a lei de Deus e
de um uso disciplinado dos meios da graça; e a bem-aventurança
da certeza e da alegria do Espírito Santo que todos os crentes fiéis
em circunstâncias normais podem conhecer. Os puritanos viam a si
mesmos como peregrinos de Deus viajando para casa, como
guerreiros de Deus lutando contra o mundo, a carne e o diabo, e
como servos do Senhor sob a ordem de compartilhar Cristo,
transmitir piedade e fazer todo o bem possível ao longo do
caminho. Esse era o cristianismo com que Baxter se identificava e
do qual ele foi um exemplo brilhante no curso das vicissitudes de
sua longa vida.
II
Vamos conhecer um pouco mais de Baxter. Aqui estão os
principais fatos pessoais, resumidos em termos biográficos. Com
algumas intrusões à medida que vamos passando por eles, os fatos
são os seguintes:
“Baxter, Richard, cavalheiro” (pois seu pai era dono de uma
pequena propriedade); “nascido em 12 de novembro de 1615, em
Rowton, Salop; educado na Donnington Free School, Wroxeter e
em seu lar” (Baxter nunca foi para uma universidade); “ordenado
diácono pelo Bispo de Worcester, 1638; auxiliar de Bridgnorth, 1639
e 1640; conferencista [ou seja, pregador assalariado] de
Kidderminster, 1641–42; junto ao exército parlamentar, 1642–47;
vigário de Kidderminster, 1647–1661” — um ministério durante o
qual ele quase converteu toda a cidade — “na conferência de
Savoy, 1661” (essa foi a consulta infrutífera entre os líderes
puritanos e anglicanos para melhorar o Livro de Oração para a
Igreja Restaurada da Inglaterra); “viveu privadamente em ou perto
de Londres, 1662–91; casou-se com Margaret Charlton (1636–81),
1662; preso por uma semana na prisão de Clerkenwell, 1669, e por
vinte e um meses na prisão de Southwark, 1685–86; morreu em 8
de dezembro de 1691; autor de O descanso eterno dos santos
(1650)” — um clássico devocional de todos os tempos sobre como
os pensamentos de Deus e do céu podem renovar o coração para o
serviço aqui na terra, um volume de oitocentas páginas que vendeu
uma edição por ano na primeira década de sua vida; O pastor
reformado (1656) — outro clássico de todos os tempos,
admoestando, motivando e instruindo o clero; Um chamado aos
não convertidos (1658) — o primeiro livro evangelístico de bolso em
inglês, que, no ano de sua publicação, vendeu vinte mil cópias e
trouxe um fluxo interminável de leitores à fé durante a vida de
Baxter; A Christian Directory (1673) [Diretório cristão] — um
compêndio único de mais de um milhão de palavras do ensino
puritano sobre a vida e a conduta cristãs; “e mais de 130 outros
livros sobre interesses especiais, cuidado pastoral, unidade cristã;
hobbies, medicina, ciência, história”. Esse foi o homem que agora
celebramos.
É importante que as gerações posteriores se lembrem de Baxter?
Em 1875, em Kidderminster, eles pensavam que sim, e uma bela
estátua dele pregando foi erguida no centro da cidade, com a
seguinte inscrição:
ENTRE OS ANOS DE 1641 E 1660
ESTA CIDADE FOI CENÁRIO DOS TRABALHOS DE RICHARD
BAXTER,
RECONHECIDO IGUALMENTE POR SEU APRENDIZADO
CRISTÃO E POR SUA FIDELIDADE PASTORAL.
EM UMA ERA TEMPESTUOSA E DIVIDIDA, DEFENDEU A
UNIDADE E A COMPREENSÃO, APONTANDO
O CAMINHO PARA
O DESCANSO ETERNO.
É
OS CLÉRIGOS E NÃO CONFORMISTAS,
UNIDOS, ERGUEM ESTE
MEMORIAL, 1875.
As expressões usadas mostram o que havia em Baxter que era
considerado digno de ser lembrado em 1875. “Aprendizado cristão”,
por exemplo, aponta para o fato de que ele verdadeiramente foi um
erudito incansável, sempre estudando, lendo de forma célere e
lembrando bem o que havia lido; era também consistentemente
ponderado e perspicaz nas opiniões que expressava sobre o que os
livros apresentavam. Certa vez, ele reclamou que a perda de tempo
para estudar devido às suas muitas doenças (vez que foi um
homem enfermo durante toda a sua vida) era o maior fardo que
tinha de suportar; no entanto, qualquer um que observe seu
domínio do material bíblico, de toda a tradição cristã e das dezenas
de posições que ele contesta ficará maravilhado com sua vida de
estudos. Baxter foi o teólogo inglês mais prolífico de todos os
tempos e, além dos aproximadamente quatro milhões de palavras
de escrita pastoral, apologética, devocional e homilética
reimpressas em sua coleção Practical Works, ele produziu cerca de
seis milhões a mais sobre aspectos da doutrina da graça e da
salvação, sobre a unidade e o inconformismo da igreja, os
sacramentos, o catolicismo romano, o antinomianismo, o
milenarismo, o movimento quaker, política e história, para não
mencionar uma teologia sistemática em latim; e, em todos esses
escritos, quer alguém concorde ou não com as posições de Baxter,
encontra-se confrontado com o julgamento maduro de uma mente
sábia, aguçada, bem abastecida e perspicaz, tão distinta pela
integridade intelectual quanto pela vigilância espiritual. Eu não
considero que Baxter estivesse sempre certo, mas o vejo — assim
como os responsáveis pelo memorial de 1875 — como um dos mais
impressionantes pensadores cristãos, e insisto que há tantas razões
para honrá-lo como tal hoje quanto havia no passado.
Então, novamente, a inscrição de 1875 celebra os apelos
constantes de Baxter, tanto proferidos em viva voz como impressos
ao longo de mais de quarenta anos, por “unidade e compreensão”.
Em sua própria época, a súplica de Baxter sobre esses tópicos foi
parcialmente ignorada por causa da pungente retórica em que
grande parte foi redigida e, principalmente, porque era uma época
em que o espírito de partidarismo e as disputas atrozes eram
considerados sinais adequados de seriedade cristã. Em 1875, no
entanto, a mentalidade correta básica do que Baxter estava dizendo
tornou-se aparente — e deveria ser ainda mais nos dias de hoje. O
chamado de Baxter à unidade dependia de distinguir as diferenças
toleráveis das intoleráveis entre os cristãos professos e as igrejas;
seu apelo era, em primeiro lugar, que o amor, a paz e a comunhão
deveriam ser maximizados, pois, na realidade, todos os
fundamentos cristãos já são mantidos por aqueles que aceitam o
Credo Apostólico, os Dez Mandamentos e a Oração do Pai-Nosso,
como o que estabelece a forma do seu cristianismo; e, em segundo
lugar, que todos observariam, dali em diante, a máxima que se
segue: unidade nas coisas necessárias, liberdade nas coisas
desnecessárias e caridade em todas as coisas. O apelo de Baxter
por compreensão dependia de sua visão da Igreja da Inglaterra
como sendo o que seus primeiros reformadores a viam — uma
reunião de congregações que representavam o “cristianismo puro e
simples”, ou seja, um cristianismo definido em termos do essencial
e nada mais, todas comprometidas com a tarefa de evangelizar e
discipular os ingleses. Aqui, seu apelo era por um relaxamento da
uniformidade anglicana restaurada de 1662, o que permitiria aos
grupos presbiterianos, independentes e batistas um lugar dentro da
federação, em prol da promoção do chamado comum. Seu
argumento era nobre e convincente em si mesmo, e mais do que
oportuno naqueles anos em que todos os não conformistas (cerca
de 120 mil, de acordo com uma estimativa) enfrentavam multas e
prisão se fossem pegos cultuando coletivamente de acordo com sua
profissão de fé. O tom de Baxter foi questionado pelo ódio e pela
suspeita dos anglicanos contra os não conformistas como
revolucionários de coração, pela prevalência entre os anglicanos da
teologia da Alta Igreja — que não considerava as igrejas não
episcopais nem seus ministros como tais —, pela amargura e o
desprezo que os não conformistas nutriam em relação à
perseguidora Igreja da Inglaterra e pela relutância em se associar a
ela novamente, de modo que, no caso, sua argumentação foi
ignorada por todas as partes durante toda a sua vida. Mas nós
podemos ver por que, em 1875, antes de os furacões da
incredulidade destruírem grandes setores tanto da Igreja Livre
como do mundo anglicano e mudarem permanentemente a forma
de compreensão, os memorialistas desejavam celebrar o
testemunho que Baxter dera.
E quanto a nós mesmos nos dias de hoje? As realizações
teológicas de Baxter, os esforços pastorais, os argumentos em prol
da unidade e da compreensão, bem como os testemunhos da
suprema importância de se estabelecer a esperança no descanso
eterno dos santos, valem nossa lembrança hoje? Eu afirmo que não
apenas vale a pena nos lembrarmos deles como exemplos
inspiradores de visão, vitalidade e sabedoria em Cristo, mas
também que Baxter tem mais a dizer e dar àqueles que se lembram
dele nos dias de hoje do que aos homens e às mulheres de 1875,
simplesmente porque nos afastamos mais dessa visão, dessa
vitalidade e dessa sabedoria do que eles. O título deste tópico é
“Um homem para todos os ministérios”. Proponho gastar algumas
páginas que restam olhando mais de perto para Baxter e para o
serviço que ele desempenhou, e minha sugestão em cada ponto
será que hoje precisamos realmente aprender com ele, tendo em
vista que pessoas pequenas e superficiais sempre precisam
aprender com os gigantes. A essa agenda volto-me agora.
III
Muitas vezes descrito como angelical, por causa da maneira como
sua retórica se eleva quando está discorrendo sobre a graça de
Deus e as bênçãos do evangelho, Baxter aparece em todo o seu
ministério como epítome do ardor incansável em buscar a glória de
Deus por meio da salvação das almas e da santificação da igreja.
Contemplar a independência, a integridade e o zelo com que o
Baxter público cumpriu seu ministério é algo fascinante e
inspirador; porém, ainda mais fascinante e inspiradora, a meu ver, é
a contemplação do Baxter privado, o homem por trás do ministério,
que, em uma elaborada autoanálise — escrita, aparentemente, por
volta de 1665, quando ele tinha cinquenta anos de idade, e
publicada postumamente como parte de suas Reliquiae —, abre seu
coração sobre as mudanças que vê em si mesmo desde a sua
juventude no serviço cristão. Em geral, o que ele delineia é um
progresso do zelo imaturo para a simplicidade madura, e de uma
limitação apaixonada que era um tanto egocêntrica e focada em
pequenas questões para uma serena concentração em Deus e nas
grandes questões, além de uma profunda capacidade de ver tais
questões de forma constante e plena. Apresento alguns excertos
dessa joia de testemunho humilde e honesto da obra
transformadora de Deus na vida humana, para que você possa
conhecer um pouco de Baxter diretamente e julgar por si mesmo se
estou exagerando no que acabei de dizer.36
Percebi que nada impede tanto a recepção da verdade quanto instigá-la aos homens
com muita insistência e cair pesadamente em seus erros.
Na minha juventude eu rapidamente superei meus fundamentos e estava entrando em
uma infinidade de controvérsias [...] Mas, quanto mais amadurecia, menos ênfase eu
dava a essas controvérsias e curiosidades (embora meu intelecto ainda abomine a
confusão).
E agora são as doutrinas fundamentais do Catecismo que eu mais valorizo e nas quais
penso diariamente, e considero mais úteis para mim e para os outros.
O Credo, a Oração do Pai-Nosso e os Dez Mandamentos são agora o assunto mais
aceitável e abundante em todas as minhas meditações. Eles são para mim como o pão
e a bebida de cada dia [...] Valorizo todas as coisas de acordo com seu uso e com sua
finalidade, e vejo, na prática diária e na experiência de minha alma, que o
conhecimento de Deus e Cristo, e do Espírito Santo, e da verdade das Escrituras, e da
vida futura, e de uma vida santa, tudo isso é mais útil para mim do que todas as
especulações mais curiosas [...] Essa é a melhor doutrina e o estudo que torna os
homens melhores e tende a torná-los felizes.
Até agora coloquei boa parte da religião na ternura de coração e no luto pelo pecado, e
lágrimas de penitência [...] mas minha consciência agora olha para o amor e o deleite
em Deus, e o louva, como o mais importante de todos os meus deveres religiosos.
Meu julgamento se volta muito mais agora para a meditação frequente e séria sobre a
bem-aventurança celestial do que em meus dias de juventude [...] agora eu prefiro ler,
ouvir ou meditar sobre Deus e o céu [...] meditar em meu próprio coração [...]
debruçando sobre meus pecados ou desejos, ou examinando minha sinceridade; mas
agora, embora eu esteja grandemente convencido da necessidade de conhecer o
coração, enxergo a necessidade de uma obra mais elevada, e que devo olhar com mais
frequência para Cristo, para Deus e para o céu do que para meu próprio coração.
Agora vejo mais o bem e o mal em todos os homens do que antes. Admiro menos os
dons de expressão e a simples profissão de religião do que antes. No passado, eu
pensava que quase todos os que podiam orar com emoção e fluência, e falar bem de
religião, eram santos. Mas a experiência me revelou que crimes odiosos podem consistir
em uma elevada profissão de religião.
Eu costumava olhar pouco para além da Inglaterra em minhas orações, pois não
considerava o restante do mundo. Mas agora, como entendo melhor a condição do
mundo e o método da Oração do Pai-Nosso, nenhuma parte de minhas orações é mais
séria que a conversão do mundo infiel e ímpio.
(Ele passa a expressar admiração pelo pioneiro missionário John
Eliot, “o apóstolo dos indígenas na Nova Inglaterra”, cujo trabalho
ele ajudou a sustentar financeiramente, e expressa o desejo de que
todos os dois mil clérigos puritanos expulsos em 1662 se tornassem
missionários no além-mar.)
Estou mais aflito pelas divergências dos cristãos do que quando era um cristão mais
jovem. Exceto a condição do mundo infiel, nada é tão triste e doloroso para meus
pensamentos quanto a condição das igrejas divididas. Portanto, sou mais
profundamente sensível à pecaminosidade desses prelados e pastores das igrejas, que
são a principal causa dessas divisões. As contendas entre a Igreja grega e a romana,
entre os papistas e os protestantes, entre os luteranos e os calvinistas, têm impedido
lamentavelmente o reino de Cristo.
Embora minhas obras nunca tenham sido capazes de despertar em mim qualquer
tentação de sonhar em agradar a Deus por mérito próprio em justiça comutativa, ainda
assim uma das evidências mais prontas, constantes e indubitáveis do meu [...] interesse
em sua aliança é a consciência de minha vida devotada a ele. E mais facilmente
acredito no perdão de minhas falhas por meio do meu Redentor enquanto sei que não
sirvo a nenhum outro mestre, e que não conheço outro propósito, outra atividade ou
outro negócio, mas que estou empregado [sic] em sua obra e faço disso a ocupação da
minha vida, vivendo para ele no mundo, apesar das minhas enfermidades. Essa
tendência e ocupação da minha vida, com meus anseios e desejos de perfeição no
conhecimento, crença e amor de Deus, e em uma mente e uma vida santas e celestiais,
são as duas evidências permanentes, constantes e discerníveis que mais me fazem ter
certeza da minha sinceridade. (Ele quer dizer “ser verdadeiramente regenerado e
nascido de novo”.)
E, embora eu tenha falado antes da mudança do meu julgamento contra escritos
provocadores, tive mais vontade do que habilidade, desde então, para evitá-los. Devo
mencionar, como uma confissão penitente, que estou muito inclinado a tais palavras em
escritos controversos que são bastante perspicazes e aptos a provocar a pessoa contra
quem escrevo. E, portanto, eu me arrependo disso, e desejo que todas as passagens
excessivamente afiadas sejam eliminadas de meus escritos, e desejo o perdão de Deus
e do homem.

É evidente que essas são as palavras de um grande e santo


homem, naturalmente dotado e sobretudo sobrenaturalmente
santificado, humilde, paciente, realista e franco em um grau
bastante incomum.
A paz silenciosa e a alegria que brilham através dessas observações
— quase cirúrgicas — sobre si mesmo são realmente
impressionantes; aqui está um homem infinitamente ativo cuja
alma repousa em Deus o tempo todo, enquanto trabalha em oração
a ele e em persuasão do homem. E o equilíbrio de seu espírito é
ainda mais impressionante quando lembramos que, de todos os
grandes sofredores puritanos — e os puritanos, num todo, eram
grandes sofredores —, nenhum teve uma carga mais pesada de dor
e provocações para suportar do que ele. Baxter sofreu durante toda
a sua vida adulta de uma infinidade de doenças físicas (tosse
tuberculosa; sangramentos nasais frequentes e sangramento nas
pontas dos dedos; enxaquecas; olhos inflamados; todos os tipos de
distúrbios digestivos; pedras nos rins e cálculos biliares; entre
outras), de modo que, dos vinte e um anos de idade em diante, ele
passava, como diz, “raramente uma hora livre de dor”, e esperou
pela morte ao longo dos cinquenta e cinco anos seguintes de
incapacidade parcial antes de sua libertação finalmente chegar.
Então, depois de 1662, ele sofreu muito ódio e perseguição por ser
um líder não conformista proeminente; isso o levou a vários
encarceramentos por pregação, alguns períodos na prisão,
apreensão (confisco) de seus bens para pagar multas — inclusive,
em uma ocasião, a própria cama em que ele se encontrava deitado,
ainda doente, foi confiscada — e, finalmente, um julgamento, se é
que se pode chamar assim, perante o terrível juiz Jeffreys,
presidente da Suprema Corte da Inglaterra (alguém, portanto, que
não respondia a mais ninguém), e o chicote humano de James II
para esfolar os rebeldes. Esse foi o ponto mais baixo de degradação
pública a que Baxter foi reduzido, e vale a pena fazer uma pausa
para vislumbrá-lo.37
A acusação era de sedição: uma acusação ridícula e forjada,
baseada em palavras expositivas de sua obra Paraphrase of the
New Testament [Paráfrase do Novo Testamento] — sobre os
fariseus e as autoridades judaicas —, que interpretaram como um
ataque aos governantes da Inglaterra na Igreja e no Estado. (Mais
tarde, Baxter comentaria que, segundo a mesma lógica, ele poderia
ter sido indiciado por proferir as palavras “Livra-nos do mal”, na
Oração do Pai-Nosso.) Jeffreys não permitiu que Baxter e seus seis
representantes legais dissessem nada coerente em nenhum
momento, e as passagens disputadas em Paraphrase nunca foram
discutidas; Jeffreys simplesmente vociferou contra o veterano
puritano de setenta anos como (essas são as palavras de uma
testemunha ocular) “um cão vaidoso, teimoso e fanático, que não
se conformava quando poderia ter sido favorecido (ou seja, ter sido
um bispo: fora oferecido a Baxter o episcopado em Hereford na
Restauração)! Esse velho sujeito lançou mais reprovação à
Constituição e excelente disciplina de nossa Igreja do que será
dissipado nestes cem anos... por Deus! Ele merece ser açoitado
pela cidade”. Quando o juiz terminou de discursar para o júri,
Baxter disse: “Vossa Senhoria acha que algum júri pretende dar um
veredicto sobre mim em tal julgamento?” “Sr. Baxter”, respondeu
Jeffreys, “não se preocupe com isso”. E o júri prontamente o
considerou culpado sem se retirar para deliberar. O resultado foram
dezoito meses de prisão para Baxter.
Deve-se acrescentar, no entanto, que, depois de Baxter morrer,
aos 76 anos, e de Jeffreys beber até a morte, aos 40 anos, quando
soube que Matthew Sylvester seria o biógrafo de Baxter, Tillotson, o
arcebispo de Canterbury, escreveu a Sylvester uma carta de
encorajamento contendo o seguinte sobre o julgamento:
Nada mais honroso do que quando o Rev. Baxter ficou sub judice, repreendido
(caluniado), abusado, desprezado; naquele momento foi um gigante mais do que em
qualquer outro tempo. Descreva isso bem [...]. Essa é a parte mais nobre de sua vida, e
não que ele pudesse ter sido um bispo. O apóstolo (2Co 11), quando se gloria,
menciona seus labores, contendas, cadeias e prisões; seus problemas, cansaço, perigos,
reprovações; não suas riquezas, viagens e vantagens. Deus nos conduz a esse espírito e
nos liberta do sistema mundano com que estamos aptos a nos deparar.38

Só se pode dizer amém a isso.


IV
Até aqui, vimos um pouco de Baxter, o homem; vejamos agora
alguns dos ofícios ministeriais que ele desempenhou. Primeiro,
concentro-me em Baxter como comunicador evangelístico e
pastoral — pregador, professor e escritor.
A melhor apresentação para esta seção é o próprio relato de
Baxter sobre a fecundidade de seu ministério em Kidderminster. Ele
encontrou nos dois mil adultos da cidade “um povo ignorante, rude
e festeiro, em sua maioria [...] eles raramente tinham pregações
sérias entre eles”. Logo, porém, as coisas começaram a acontecer.
Quando iniciei meus trabalhos no ministério, prestei atenção especial a todos os que
foram humilhados, reformados ou convertidos; mas, depois de muito trabalho, aprouve
a Deus que os convertidos fossem tantos que eu não tivesse tempo para fazer
observações tão particulares. Famílias em números consideráveis chegaram de uma só
vez e cresceram — e eu mal sabia como […]
A congregação costumava estar cheia, de modo que estávamos dispostos a construir
cinco galerias após a minha vinda para cá [...] A igreja abrigava cerca de mil pessoas
sem as galerias. Nossos encontros privados (pequenos grupos, como hoje os
chamaríamos) também estavam cheios. No Dia do Senhor (que era um dia destinado à
prática de esportes antes da chegada de Baxter), não havia desordem nas ruas, mas
era possível ouvir uma centena de famílias cantando salmos e repetindo sermões pelas
ruas. Em uma palavra, de início, quando cheguei lá, havia cerca de uma família por rua
adorando a Deus e invocando seu Nome. Quando voltei, em algumas ruas não havia
uma família sequer que não fizesse o mesmo; assim procediam por professar uma
piedade séria, realidade que nos deu esperanças de sua sinceridade [...] Quando
comecei a fazer conferência pessoal e a catequizá-los, havia pouquíssimas famílias em
toda a cidade que se recusaram a vir. (Baxter pediu-lhes que o chamassem em casa, já
que sua saúde debilitada constantemente o impedia de fazer visitas domiciliares.) E
poucas famílias saíram de minha residência sem algumas lágrimas, ou promessas
aparentemente sérias de uma vida piedosa.39

Qual foi o segredo do sucesso de Baxter (até agora, pelo menos,


como isso pode ser analisado em termos de meios voltados a fins)?
Ele observa, como fatores significativos nesse contexto, que seu
povo não havia sido endurecido pelo evangelho; que ele contava
com bons auxiliares, tanto clérigos assistentes como membros do
rebanho; que a vida santa de seus convertidos era cativante,
enquanto as ovelhas negras da cidade faziam o pecado parecer
mais repulsivo; que Kidderminster estava livre de congregações
rivais e de brigas sectárias; que a maioria das famílias estava em
casa durante a maior parte do tempo, trabalhando como tecelãs,
para que tivessem “tempo suficiente para ler ou falar das coisas
sagradas”.40 Além disso, foi útil (continua Baxter) que ele tivesse
cumprido um longo ministério; que praticasse a disciplina da igreja;
que, na condição de solteiro, tivesse condições de se concentrar em
servir ao seu povo; que tivesse distribuído bíblias e livros (ele
recebia uma parte dos próprios livros, em vez de royalties, para
distribuição gratuita); que desse dinheiro aos necessitados; e que
tivesse cumprido, por algum tempo, o papel de médico amador —
de forma eficaz, ao que parece, e sem cobrar nada — até
convencer um médico qualificado a se mudar para a cidade. Ele
argumentava que todos esses fatores haviam ajudado o evangelho
a avançar e, sem dúvida, ele estava certo. Mas o elemento-chave
em seu sucesso, humanamente falando, foi, sem dúvida, a clareza,
a força e a habilidade com que pregou o evangelho.
O conteúdo do evangelho de Baxter não era de forma alguma
distinto. Era a mensagem histórica puritana e evangélica do Novo
Testamento: queda, redenção e regeneração. Baxter clamava pela
conversão de uma vida de egocentrismo irrefletido e pecado para
Jesus Cristo, o Salvador crucificado e Senhor ressurreto, e explicava
em detalhes o que isso deveria significar em termos de
arrependimento, fé e obediência. Ele via os não convertidos como
se estivessem no caminho para o inferno, pessoas espiritualmente
adormecidas, no sentido de não reconhecer o perigo, e então se
colocava tanto no púlpito como em conversa privada anual
(“catecismo”, como ele chamava) com cada família da paróquia, a
fim de despertá-los e convencê-los a firmar um profundo
compromisso cristão antes que fosse tarde demais. O que ele dizia,
e como dizia, pode ser aprendido de seus escritos clássicos sobre
conversão, entre eles A Treatise of Conversion, Directions and
Persuasions to a Sound Conversion, and A Call to the Unconverted
[Um tratado acerca da conversão, além de direções e persuasões
para uma sã conversão; e Um Chamado aos não convertidos] (título
completo: A Call to the Unconverted to Turn and Live, and Accept
of Mercy while Mercy may be Had, as ever they would find Mercy in
the Day of their Extremity: from the Living God [Um chamado aos
não convertidos a vir e viver, e aceitar a misericórdia enquanto
pode ser obtida, como jamais encontrariam misericórdia em seus
últimos dias: do Deus Vivo]): todos esses eram sermões
originalmente pregados em série para a congregação de Baxter em
Kidderminster.
Baxter observa que a conversão pessoal não fora abordada por
nenhum de seus predecessores com os detalhes que ele mesmo
expunha. Ele a apresenta como um processo pleno, por meio do
qual, sob a luz da constante instrução sobre fé, arrependimento e
verdadeira vida em Cristo, a nova criação — regeneração, de
acordo com o uso posterior desse termo — ocorre secretamente no
coração humano, e mostra-se desejando e depois buscando Jesus
Cristo, e continuando a estender a mão para ele, abrindo-lhe sua
vida, invocando suas promessas e o adorando por sua misericórdia
até que se tenha certeza de havê-lo encontrado (ou, mais
precisamente, até que se saiba ter sido encontrado por ele). Depois
disso, o convertido continuará a caminhar com Cristo no
discipulado, aprendendo e obedecendo, amando e servindo,
adorando e trabalhando para ele em paz e alegria. Embora a
percepção da proximidade do Salvador e a consequente mudança
de pensamento e comportamento possam ser repentinas, como
ocorreu com Paulo na estrada de Damasco e como tem sido para
muitos desde então, o processo como um todo demanda algum
tempo, e é Deus, e não o evangelista, quem decide com que
rapidez ou com que lentidão avançará e quando se concretizará.
Baxter mantém tudo unido: a graça soberana de Deus, a renovação
do coração, a necessidade de ensinar e aprender a fé com
seriedade e urgência máximas por causa das questões eternas em
jogo, e a importância do esforço evangelístico constante em cada
congregação cristã. Boa parte da prática adequada do ministro
como evangelista pastoral, como Baxter enxergava, é explicada em
sua exposição clássica, O pastor reformado, de acordo com a qual
sua prática centrada na conversão se mostra ao máximo.
DIRETÓRIO CRISTÃO
Ou
Uma soma de teologia prática e questões de consciência
Orientando os cristãos
Acerca de como usar seu conhecimento e sua fé;
Como aprimorar todos os auxílios e meios, e como
desempenhar todos os deveres;
Como vencer as tentações e escapar
ou mortificar cada pecado;
Em Quatro Partes.
I. Ética cristã (ou Deveres privados)
II. Economia cristã (ou Deveres familiares)
III. Eclesiásticos cristãos (ou Deveres da igreja)
IV. Política cristã (ou Deveres para com nossos
governantes e com o próximo)
O primeiro capítulo de Baxter, no entanto, é intitulado
“Orientações para pecadores não convertidos e sem graça, para a
obtenção da graça salvadora”, e o segundo, “Orientações para
cristãos fracos para sua fundamentação e seu crescimento”. Assim
se revela a perspectiva essencial desse compêndio: A Christian
Directory é, precisamente, um gigantesco tratado sobre a vida
cristã.
Não devemos supor, contudo, que a conversão tenha sido o único
tema de Baxter em seu ministério em Kidderminster. Ele mesmo
nos diz que alcançou muito mais:
O que eu diariamente compartilhava, e com a maior insistência trabalhei para imprimir
em suas mentes, eram os grandes princípios fundamentais do cristianismo contidos em
sua aliança batismal, mesmo um conhecimento correto, e crença, e sujeição e amor a
Deus Pai, Filho e Espírito Santo; e amor a todos os homens, e concórdia com a igreja e
uns com os outros. Eu fazia isso diariamente, inculcando o conhecimento de Deus,
nosso Criador, Redentor e Santificador, e amor e obediência ao Senhor, e unidade com a
Igreja Católica, e amor aos homens, e esperança de vida eterna; essas eram as
ocupações de suas cogitações, discursos diários e, de fato, de sua religião.41

Mas Baxter era um evangelista e, constantemente, voltava seus


ouvidos à questão de vida ou morte: você vai ou não se converter e
viver? Agora, você vai levar a sério as coisas em que diz crer sobre
pecado, Cristo, céu e inferno?
Aqui está uma amostra da retórica evangelística de Baxter
quando ele aplica uma mensagem em Hebreus 11.1: “A fé é a
certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que não se
veem”. Ele afirmou que a fé trata como genuinamente reais as
realidades de que as Escrituras falam: Deus, Cristo, Satanás; o
julgamento final, céu e inferno. Ele traz a seguinte pergunta: “Você
está falando sério quando diz que crê em céu e inferno? E você
pensa, fala, ora e vive como aqueles que realmente creem nisso?
[...] Encare isso de frente [...] se soubesse onde deve viver para
sempre, saiba como e para quê, e sobre o que você vive aqui”. Ele
convidou seus ouvintes a pensar que diferença faria se eles
pudessem realmente ver, com os olhos físicos, Cristo, sua própria
morte futura, o dia do julgamento, com Satanás acusando, e a
condição daqueles que já experimentam o céu e o inferno. Agora
ele confronta a congregação.42
Responda às seguintes perguntas, com base nas suposições anteriores.
1. Se você visse apenas aquilo em que diz crer, não estaria convencido de que o pecado
mais agradável e proveitoso é pior que a loucura? E não cuspiria no próprio nome dele?
2. O que você pensaria de uma vida mais séria e santa se tivesse visto as coisas em que
diz crer? Você voltaria a recriminar isso como preciosista [um rótulo desdenhoso de
longa data para o estilo de vida puritano] ou considerar como mais alvoroço do que
necessidade, e pensar que seu tempo seria mais bem gasto divertindo-se do que
orando, entregue à bebida, aos esportes e às concupiscências imundas, do que nos
santos ofícios do Senhor?
3. Se você visse apenas aquilo em que diz crer, se ofenderia novamente com os
ministros de Cristo pelas reprovações mais claras, as exortações mais próximas, os
preceitos e a disciplina mais estritos? Então, você entenderia o que levou os ministros a
serem tão inoportunos com você para a conversão; e se a pregação trivial ou a séria era
a melhor.
4. Ouso, então, perguntar ao pior que me ouve: você ousa agora ser um bêbado, ou um
glutão ou um mundano? Você se atreve a ser mais libidinoso, orgulhoso ou fornicador?
Você se atreve a ir para casa e zombar da piedade, e negligenciar sua alma, como tem
feito?
8. Oh, como tal visão promoveria o Redentor, sua graça, promessas, palavra e
ordenanças em sua estima! Isso aceleraria seus desejos e faria você correr para Cristo
em vida, como um homem imergindo naquilo que é capaz de sustentá-lo. Quão
docemente você apreciaria o nome, a palavra e os caminhos de Cristo, que agora
parecem coisas áridas e comuns!
Esse é o Baxter clássico despertando o complacente. Resta
apenas acrescentar que ele estava pregando perante o rei Carlos II,
o alegre monarca da Inglaterra, e sua alegre corte, e que o sermão
foi de fato publicado por ordem real, embora, ao que parece, não
atendido pela consciência destes. A qualidade que a inscrição de
1875 chamava de “fidelidade pastoral” fez Baxter querer alertar até
mesmo um tolo, ainda que fosse um tolo real. Esse é o tipo de
pregador que ele era.
A segunda esfera do ministério de Baxter para a qual olhamos é o
campo do estadista eclesiástico, em que Baxter, defensor de uma
igreja nacional abrangente, como vimos, estava em constante ação
após 1662, negociando um acordo com os independentes e uma
reaproximação com a Igreja da Inglaterra, redigindo documentos e
publicando livros com esse propósito. Não é preciso dizer muito a
esse respeito, porque foi uma área na qual ele não brilhou e
finalmente não conseguiu nada. Sua maneira provocativa na
discussão e no debate frustrou totalmente seu propósito de
unidade, e suas críticas magistrais sobre as crenças acalentadas de
outros só fizeram inimigos. Como o sermão citado sugere, ele era
franco e “obscuro” demais em seu estilo para ser um construtor de
pontes. A posição a partir da qual ele se estendeu em todas essas
discussões, no entanto, foi agregadora e nobre, de modo que, ao
solicitar uma licença para pregar sob a égide da Indulgência Régia
de 1672, ele se manifestou da seguinte forma:43
Minha religião é meramente cristã; mas, ao rejeitar a Monarquia Papal e seus males
concomitantes, sou protestante.
A regra de minha fé e doutrina é a lei de Deus na natureza e nas Escrituras.
A Igreja da qual sou membro é a universalidade dos cristãos, em conjunto com todas as
igrejas particulares dos cristãos na Inglaterra ou em outras partes do mundo, cuja
comunhão de acordo com minha capacidade desejo.

Às vezes ele chamava essa posição de “catolicismo contra todas


as seitas”. Em sua época, ele foi considerado excêntrico; na nossa,
pode parecer profético, marcando o caminho pelo qual a
exclusividade do denominacionalismo vem a ser transcendida.
Nunca foi correto chamar Baxter de presbiteriano, como muitas
vezes era feito; nem depois de 1662 alguém poderia chamá-lo de
anglicano; ele era um “mero não conformista” em relação ao
assentamento anglicano, e isso, denominacionalmente falando, era
tudo. Em uma era ecumênica, vale a pena refletir sobre o
significado da postura não denominacional de Baxter.
Outra esfera de ministério em que Baxter se moveu foi o
delineamento da justiça social cristã — e aqui ele mostra grande
habilidade em reformar fórmulas medievais e atualizá-las para o
uso protestante do século 17. A parte IV de Christian Directory,
composta por cerca de duzentas mil palavras, aborda, em detalhes,
os governantes e súditos, advogados, médicos, professores,
soldados, assassinato e suicídio, escândalo, roubo, contratos,
empréstimo, compra e venda, cobrança de juros (ou seja, usura),
salários, proprietários e inquilinos, e ações judiciais, distribuindo
orientações práticas para servir e agradar a Deus em todos esses
relacionamentos, administrando-os como expressões de amor ao
próximo e serviço cooperativo, e evitando qualquer forma de
exploração insensível ou descuidada. Não se deve tentar, diz ele,
“obter bens ou trabalho de outrem por menos do que vale”, nem se
deve lucrar com a ignorância ou a necessidade de alguém: “É uma
regra falsa pensar que uma mercadoria vale tanto quanto qualquer
um daria por ela”. Como observou Agostinho: “Querer comprar
barato e vender caro não é só um hábito, mas também um vício
comum”.44 E os proprietários não devem forçar os aluguéis de modo
que os inquilinos não consigam viver decentemente, ou ter tempo
livre para cuidar de suas almas. Baxter retornou a esse argumento
novamente, mais tarde, em um tratado separado, The Poor
Husbandman’s Advocate to Rich Racking Landlords [A defesa do
pobre agricultor contra proprietários ricos e atrozes], que ele
concluiu apenas seis semanas antes de sua morte (esse foi seu
último escrito) e que, de fato, não viu a luz do dia até o século 20.45
Eu gostaria que este espaço me permitisse explorar o romântico
casamento de Baxter, uma parceria de dezenove anos com uma
mulher brilhante, vinte e um anos mais nova que ele, sobre quem
ele fez um relato escrito, “sob o poder de dissipar o luto”, algumas
semanas após a morte dela, em 1681. O relato foi editado de forma
bela e carinhosa por J. T. Wilkinson em 1928, sob o título Richard
Baxter and Margaret Charlton: A Puritan Love-Story [Richard Baxter
e Margaret Charlton: Uma história de amor puritana], e eu mesmo
editei uma versão dele, com ensaios sobre o casamento puritano e
a gestão do luto, sob o título A Grief Santified [Aflições
santificadas], em 2002. “Quando nos casamos”, escreve Baxter, “a
tristeza e a melancolia dela desapareceram: o aconselhamento
contribuiu, e o contentamento, também; e o fato de estarmos
ocupados com nossos assuntos domésticos teve seu papel. Além
disso, vivíamos em amor inviolável e complacência mútua,
conscientes do benefício da ajuda recíproca”. O relato de Baxter
sobre o ministério de sua esposa para com ele contém muitos
indícios de seu ministério como marido para ela, e é evidente que
ele fez isso muito bem, embora escreva sobre si mesmo com aquela
honestidade perfeccionista e devastadora que já vimos: “Minha
querida esposa procurou mais o bem em mim do que encontrou,
especialmente nos últimos tempos, em face de minha fraqueza e
decadência. Somos todos como imagens que não devem ser vistas
muito de perto. Aqueles que se aproximam de nós encontram mais
defeitos e maldades do que os outros a distância conhecem”.46
Bem, talvez sim, mas, se pegarmos todas as pistas da narrativa, o
ministério conjugal de Baxter parece algo a ser muito admirado, e
em dias como os nossos, visto como uma espécie de modelo. Sua
esposa, embora tenha sido uma cristã apaixonadamente devotada,
de iniciativa e inteligência grandiosas, era excessivamente tensa e
obsessiva por falhas, de modo que viver com ela não deve ter sido
fácil. Mas esse tema não pode ser abordado aqui.
V
Era comum concluir os sermões fúnebres puritanos com uma
referência às horas finais do morto; pois era uma época em que as
pessoas morriam em casa, em companhia, sem drogas analgésicas,
e muitas vezes em plena consciência até o fim, e era certo que seu
comportamento moribundo e suas últimas palavras, proferidas à
beira da eternidade, tinham um significado especial para aqueles
que eram deixados para trás. Esse não é um sermão fúnebre, mas
um ensaio comemorativo; no entanto, acho que é apropriado
terminá-lo de forma puritana. Portanto, diga-se que, no dia anterior
à sua morte, como, ao que parece, em todos os outros dias de sua
vida, ao longo dos quarenta anos anteriores, Baxter estava
meditando sobre o céu, concentrado na descrição da Jerusalém
celestial em Hebreus 12.22-24, uma passagem que, segundo ele
declarou a dois de seus visitantes, “merece milhares de
pensamentos”; e também disse a esses mesmos visitantes: “Estou
em paz; estou em paz”. Além disso, ele ignorava os elogios aos
seus livros com palavras de uma humildade quase insolente: “Eu
era uma caneta na mão de Deus; que louvor se deve a uma
caneta?”. Suas últimas palavras, ditas com dor, a Matthew Sylvester,
de quem ele havia sido assistente pastoral nos quatro anos
anteriores, foram: “Oh, agradeço a ele, agradeço a ele. Que o
Senhor o ensine a morrer!”. E diga-se ainda que o próprio Sylvester,
ao pregar o sermão memorial de Baxter sobre as palavras de
Eliseu, “Onde está o Senhor, Deus de Elias?”, foi forçado a terminar
olhando para o dia da ressurreição (que, é claro, para o povo de
Deus, também será o dia de todos os cristãos finalmente se
reunirem) e perguntar em voz alta:
O que devo fazer para encontrar nosso Elias e seu Deus em paz? Meu olhar não deve
estar voltado para dentro, para cima, para frente, para trás, ao redor? Não devo me
esforçar para conhecer minha missão, a garantia, as dificuldades, os deveres e os
incentivos? Não devo [...] dizer no que creio? […] praticar o que prego? E promover o
interesse cristão com toda sabedoria, diligência e fidelidade, como fez meu
predecessor?47
O tipo de franqueza espiritual de Baxter a serviço do Deus Triúno
afeta regularmente os cristãos como afetou Sylvester; faz uma
pessoa procurar ser enérgica e efetiva em seu discipulado e serviço,
assim como ele era, e nos dá consciência da falta de objetivo, da
casualidade e da deriva espiritual. Só por essa razão, é bom que
nos lembremos de Baxter, e eu considerei um privilégio poder
apresentá-lo dessa maneira tão delineada. De meu próprio
conhecimento dele, que agora remonta a quase setenta anos, digo
a todos vo-
cês — clérigos, leigos, jovens cristãos, cristãos idosos: conheçam
Baxter e fiquem com Baxter. Ele sempre fará bem a vocês.
35 Prefácio de Reliquiae Baxterianae (RB), 1696, sec. 2, p. 2.
36 As citações são de Autobiography of Richard Baxter, ed. J. M. Lloyd Thomas (London: J.
M. Dent, 1931), p. 106, 107f, 112, 115, 117, 118f, 125, 130f. Esse resumo de Baxter foi
reeditado por N. H. Keeble (London: J.M. Dent, Everyman’s Library, 1974).
37 Os detalhes são de um relato de testemunha ocular reproduzido em Autobiography, p.
258-64.
38 Citado em Autobiography, p. 298.
39 RB, parte 1, p. 21, 84f.
40 RB, parte 1, p. 89.
41 RB, parte 1, p.93f.
42 Practical Works (Ligonier PA: Soli Deo Gloria, 1991), III, p. 585f.
43 Autobiography, p. 293.
44 Puritanism and Richard Baxter, Hugh Martin (London: SCM Press, 1954), p. 173.
45 Publicado como The Reverend Richard Baxter’s Last Treatise, ed. F. J. Powicke
(Manchester: John Rylands Library, 1926).
46 Richard Baxter and Margaret Charlton, ed. J.T. Wilkinson (London: George Allen and
Unwin, 1928), p. 110, 152. A Grief Sanctified, ed. J. I. Packer (Wheaton, IL: Crossway,
2002), p. 90, 127.
47 Matthew Sylvester, Elisha’s Cry after Elijah’s God, anexado em RB, p. 18.
I
É uma verdade periodicamente expressa por alguns, embora
raramente atentada por muitos, que a igreja de Deus na terra —
sempre e em todos os lugares — está apenas a uma geração da
extinção. Por mais chocante que isso possa parecer, não é difícil
sustentar essa máxima. O clero não deveria mais gastar suas forças
ensinando a fé, pregando o evangelho e buscando a salvação das
almas; os pais crentes não devem mais trabalhar para compartilhar
sua fé com seus filhos, e os crentes, com seus vizinhos; a prática
do evangelismo deve ser abandonada; a Bíblia e os livros cristãos
devem ser deixados em casa sem serem lidos; e os membros da
igreja deveriam contentar-se em ser as pessoas mais bondosas do
mundo, de acordo com as diretrizes do século presente; por quanto
tempo você acha que a igreja permaneceria em atividade? Mais de
uma geração? Eu duvido. E você não notou que grande parte do
cristianismo ocidental está atualmente trilhando esse caminho para
a extinção? Parece-me claramente que sim. O que, então, é capaz
de deter esse apodrecimento e reverter a situação? Uma coisa só,
na minha opinião: um abraço renovado do ideal puritano de serviço
ministerial. Sem isso, nada pode parar a deriva ladeira abaixo.
Ao dizer isso, dirijo-me especificamente ao que chamo de Velho
Oeste: ou seja, os principais grupos protestantes dos dias da
Reforma, luteranos, anglicanos, presbiterianos e batistas, na Europa
Ocidental, América do Norte, Australásia e África do Sul. Na África
Central e na Ásia, parece que o ideal puritano já foi aprendido nas
Escrituras e está sendo implementado ativamente diante de muita
hostilidade e forte oposição cultural, particularmente do Islã. Mas
agora compare isso com o mundo ocidental pós-cristão,
secularizado, materialista, arrogante e à deriva. Aqui a mensagem
cristã é ridicularizada, a igreja é marginalizada e colocada no gueto,
e muitos clérigos veem seu papel em termos explicitamente
defensivos, como manter as estruturas institucionais funcionando,
se puderem, e manter suas congregações se sentindo bem —
novamente, se puderem. Alguns avaliam que essas tarefas vão
além de sua atribuição; então, as finanças falham, os prédios
fecham, as congregações se dispersam e eles próprios saem do
ministério pastoral para tentar outra coisa na vida. Outros encerram
sua carreira gratos pela aposentadoria e livres de preocupações.
Enquanto isso, no entanto, a situação geral permanece terrível, e a
sensação de que a igreja desliza ainda mais para o declínio final à
medida que as congregações vão envelhecendo e diminuindo torna-
se cada vez mais forte.
Parece que o clero — os líderes espirituais da igreja —, em
grande parte, perdeu o rumo, e quando a liderança perde o rumo
há pouca esperança para os cristãos em geral. Agora, o que eu
exorto aqui é que o ideal puritano para os pastores, que,
considerando as passagens do Novo Testamento em que se baseia,
tem um perfil clássico em si mesmo, é a realidade fundamental na
qual todos os esforços na renovação da igreja devem basear-se;
caso contrário, eles falharam continuamente até que finalmente
tudo esteja perdido. Deixe-me tentar justificar essa opinião ao
encerrar.
II
Como devemos conceber para nós mesmos o ideal pastoral
puritano? As páginas anteriores já fizeram isso em termos gerais,
mas, para chegarmos ao ápice da precisão, nesse como em tantos
outros assuntos, não podemos fazer melhor do que recorrer a John
Owen — segundo o senso comum, o maior teólogo puritano e,
talvez, o maior teólogo britânico de todos os tempos. Em um
capítulo intitulado “O dever especial dos pastores de igrejas”, em
seu último tratado, A verdadeira natureza da igreja evangélica
(1689), ele apresenta a descrição do trabalho pastoral ensinado por
Deus da seguinte forma:
1. O primeiro e principal dever de um pastor é alimentar o
rebanho por meio de uma pregação diligente da Palavra [...] Um
homem é um pastor para aqueles a quem ele alimenta pelo
ensino pastoral.
Diversas coisas são requeridas para essa obra e esse dever de
pregação pastoral, como, por exemplo: (1) sabedoria espiritual e
compreensão dos mistérios do evangelho; (2) experiência do poder
da verdade que eles pregam em e sobre suas próprias almas. Sem
isso, eles mesmos serão desprovidos de vida e coração [...] um
homem apenas prega um sermão bem aos outros quando o prega
a si mesmo, em sua própria alma [...] Se a Palavra não habitar com
poder em nós, não passará com poder a partir de nós; (3)
habilidade para compartilhar a Palavra corretamente (2Tm 2.15); e
isso consiste em sabedoria prática e em obedecer diligentemente à
Palavra da verdade, com o fim de descobrir o que é verdadeiro e
substancial, o alimento adequado às almas dos ouvintes — para dar
a todos os tipos de pessoas na igreja o que é sua porção adequada.
E isso requer (4) uma consideração prudente e diligente do estado
do rebanho [...] e deveres, suas decadências ou prosperidades
espirituais; e que não apenas de modo geral, porém, o mais
próximo possível, com respeito a cada membro da igreja [...] E (5)
todos esses [...] devem ser constantemente acompanhados por
uma evidência de zelo pela glória de Deus e compaixão pelas almas
dos homens. Onde estes não estão em vigoroso exercício na mente
e alma daqueles que pregam a Palavra, dando uma demonstração
de si mesmos às consciências dos que os ouvem, o poder
vivificador, a vida e a alma da pregação estarão perdidos.
2. O segundo dever de um pastor para com seu rebanho é a
oração fervorosa e contínua por eles (Tg 5.16; Jo 17.20; Êx
32.11; Dt 9.18; Lv 16.24; 1Sm 12.23; 2Co 13.7,9; Ef 1.15-19;
3.14; Fp 1.4; Cl 1.3; 2Ts 1.11) [...] Essa oração constante pela
igreja, incumbência tal de todos os pastores que tudo o que é
feito sem ela é de nenhuma estima aos olhos de Jesus Cristo,
deve consistir de petições: (1) Em relação ao sucesso da
Palavra, para todos os seus fins abençoados, entre os ouvintes.
Esses não são menos do que o aperfeiçoamento e o
fortalecimento de todas as suas bênçãos, a direção de todos os
seus deveres, sua edificação na fé e no amor, com toda a
conduta de suas almas na vida com Deus, para seu desfrute. (
2) Às tentações a que a igreja é geralmente exposta. (3) Ao
estado e à condição especial de todos os seus membros. (4) À
presença de Cristo nas assembleias da igreja [...] e a do Espírito,
acompanhando todas as ordenanças da adoração com uma
eficácia graciosa e divina, evidenciada por operações
abençoadas nas mentes e nos corações da congregação. (5)
Para sua preservação na fé, no amor e na eficácia.
3. A administração dos selos da aliança que lhes é confiada, como
despenseiros da casa de Cristo.
4. Cabe a eles a preservação da verdade ou da doutrina do
evangelho.
5. Pertence a seu encargo e ofício trabalhar diligentemente pela
conversão de almas a Deus.
6. Compete ao homem [...] estar pronto, disposto e capaz para
confortar, aliviar e avivar aqueles que se sentem tentados,
abalados, enfraquecidos por medos e por falta de consolo, em
tempos de provação e apostasia [...] Entre eles, há alguns que
são lançados em trevas e desolação de maneira peculiar: alguns
no início de sua conversão a Deus, pois sentem um profundo
senso do terror do Senhor, a nitidez da convicção e a incerteza
de sua condição; alguns ao cair em pecado ou na omissão de
seus deveres; alguns sob grandes, dolorosas e duradouras
aflições; outros ainda em ocasiões prementes, urgentes e
particulares; alguns ao sentir um abandono soberanamente
planejado por Deus; alguns através das bofetadas de Satanás e
da injeção de pensamentos blasfemos em suas mentes [...]
Pertence ao ofício e dever dos pastores:
(1) Ser capaz de entender corretamente os vários casos desse
tipo [...] Requerem-se a habilidade, a compreensão e a experiência,
em toda a natureza da obra do Espírito de Deus nas almas dos
homens, de reconhecer o conflito que está entre a carne e o
Espírito, os métodos e artimanhas de Satanás, os ardis dos
principados e potestades ou espíritos malignos, a natureza e os
efeitos e propósitos das deserções divinas — com sabedoria para
cuidar de todas as enfermidades e aflições.
(2) Estar pronto e disposto a atender aos casos especiais que lhes
sejam apresentados.
(3) Suportar com paciência e ternura a fraqueza, a ignorância, a
estupidez, a lentidão para crer e viver; sim, suportar até mesmo as
impertinências naqueles que são tão inclinados à tentação.
No desempenho de todo o ofício pastoral, não há nenhum dever
que seja de maior importância, nem com que o Senhor Jesus Cristo
esteja mais preocupado [...] do que isso.
7. Um sofrimento compassivo para com todos os membros da
igreja, em todas as suas provações e problemas.
8. Cuidar dos pobres e visitar os doentes fazem parte desse dever
comumente conhecido, embora geralmente negligenciado.
[...]
11. Isso [...] sem o qual todo o resto será inútil aos homens e
não será aceito pelo grande Pastor, Cristo Jesus [...] é uma
conduta humilde, santa e exemplar, em toda piedade e
honestidade.48
III
Acredito que foi James Moffatt quem falou da “poça cinza-chumbo
do raciocínio de Owen”; e, seja quem for, a expressão se encaixa
perfeitamente. A estrutura bem-elaborada das frases de Owen e
sua preferência por palavras objetivas e desprovidas de vivacidade
talvez o tornem o menos atraente dos escritores puritanos.
Qualquer pessoa sintonizada com a retórica viva de hoje sempre
considerará a leitura de Owen um exercício exigente. Mas, em
precisão analítica, rigor e relevância, mesmo ao custo de alguma
redundância, Owen é supremo. Minha reprodução simplificada
acima quanto ao seu relato do dever pastoral revela a qualidade
magistral de sua mente; e, embora seu estilo seja acadêmico e
impassível, o que ele diz se reveste de uma autenticidade que
reflete os anos de pastoreio (em Fordham e Coggeshall) nos quais
seu ministério público começou. Igualmente, ele não está fora das
principais correntes puritanas. Isso pode ser visto em uma
comparação de seu ensaio com o esboço do capítulo 2, “The
Oversight of the Flock” [A supervisão do rebanho], em O pastor
reformado, de Richard Baxter, conforme apresentado na edição da
obra de William Brown. Baxter escreveu em 1656, Owen cerca de
trinta anos depois, mas a correspondência de pensamento é
notável.
A Supervisão do Rebanho
Seção 1: A natureza dessa supervisão
ESSA SUPERVISÃO SE ESTENDE A TODO O REBANHO
1. Devemos trabalhar pela conversão dos não convertidos.
2. Devemos aconselhar os interessados que estão convictos do
pecado.
3. Devemos estudar para edificar aqueles que já são participantes
da graça divina.
4. Devemos exercer supervisão cuidadosa das famílias.
5. Devemos ser diligentes em visitar os enfermos.
6. Devemos ser fiéis em reprovar e admoestar os pecadores.
7. Devemos ser cuidadosos no exercício da disciplina na igreja.
Seção 2: A forma dessa supervisão
O TRABALHO MINISTERIAL DEVE SER REALIZADO
1. Puramente para Deus e para a salvação das almas.
2. De maneira diligente e laboriosa.
3. De maneira prudente e ordenada.
4. Insistindo principalmente nas coisas maiores e mais necessárias.
5. Com clareza e simplicidade.
6. Com humildade.
7. Com um misto de severidade e suavidade.
8. Com seriedade, cuidado e zelo.
9. Com terno amor por nosso povo.
10. Com paciência.
11. Com reverência.
12. Com espiritualidade.
13. Com desejos sinceros e expectativas de sucesso.
14. Sob um profundo senso de nossa própria insuficiência e de
nossa dependência de Cristo.
15. Em unidade com outros ministros.
Seção 3: Os motivos para essa supervisão
1. Procedem da relação que temos com o rebanho — somos
supervisores.
2. Procedem da causa eficiente dessa relação — o Espírito Santo.
3. Procedem da dignidade do objeto que nos é confiado — a Igreja
de Deus.
4. Procedem do preço pago pela Igreja — que ele comprou com seu
sangue.49
John Owen e Richard Baxter discordaram em alguns assuntos
secundários relacionados à organização das igrejas na Inglaterra de
seus dias e a afirmação exata da doutrina da graça de Deus, mas,
no ideal do ministério pastoral, como mostram os excertos acima,
ambos tiveram o mesmo ponto de vista. Para eles, a vocação
presbiteral consistia em viver de uma dedicação sustentada e
abrangente ao amor e ao serviço de um Deus santo, gracioso e
soberano, e das pessoas necessitadas, a quem o presbítero deve
alcançar como agente comissionado de Deus. O pastor deve ver a
si mesmo como um homem separado para pregar a verdade bíblica,
ensinar sobre Cristo e aconselhar os espiritualmente desorientados
à luz da Palavra; converter, nutrir, zelar e cuidar dos pecadores;
orar por eles, trazer-lhes sabedoria, ser modelo de piedade diante
deles e conduzi-los a doxologia, fidelidade, pureza, humildade,
maturidade e alegria em Cristo; e combater todas as formas que as
situações particulares exijam pela plenitude e a franqueza da fé.
Comecei este epílogo perguntando: a igreja pode sobreviver sem
pastores dessa qualidade hoje, cumprindo seu ministério de acordo
com as especificações puritanas? Deixo meus leitores refletindo
sobre essa questão neste momento em que encerro.50

48 John Owen, Works, ed. William H. Goold (London: Banner of Truth Trust, 1968), XVI: p.
74-89.
49 Richard Baxter, The Reformed Pastor, ed. William Brown (Edinburgh: Banner of Truth
Trust, 1974), p. 28-29.
50 O excerto que se segue, de Owen (p. 89), escrito na década de 1680, merece reflexão:
“A presente ruína da religião, quanto ao seu poder, beleza e glória, em todos os lugares,
surge principalmente desta causa, que multidões daqueles que assumem esse cargo [ou
seja, que se tornam pastores] não estão de forma alguma aptos para isso, nem atendem
conscientemente ou executam diligentemente os deveres que lhes cabem. Sempre foi e
sempre será verdade: “Tal é o sacerdote, tal é o povo”.

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