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Packer, em
relação a quem, portanto, nutro uma dívida de gratidão. Neste volume, ele, mais uma vez,
se destaca: aqui estão apresentações cheias de reflexão de alguns dos principais
pensadores puritanos e de suas obras, além de um manifesto puritano voltado aos pastores
de hoje. Este é o Packer clássico. Em uma época de modernismos, aqui está um alimento
sólido para a igreja e para a alma.
Carl R. Trueman
Professor de Estudos Bíblicos e Religiosos no Grove City College, Grove City, Pensilvânia
Seja o que for que o autor desse refrão quis dizer, eu cantava de
todo o coração, no sentido explicado acima.
O restante do segredo estava atrelado às palavras consagração e
fé. Consagração significa entrega total de si mesmo, colocando tudo
sobre o altar e entregando cada parte de sua vida ao senhorio de
Jesus. Por meio da consagração, a pessoa seria esvaziada de si
mesma e o vaso vazio seria, então, automaticamente cheio do
Espírito para que o poder de Cristo dentro dela estivesse pronto para
uso. Com a consagração, vinha a fé, o que foi explicado como olhar
para o Cristo que habita em cada momento, não apenas para fazer
alguém pensar e escolher, mas também para lutar e resistir à
tentação. Em vez de enfrentar a tentação diretamente (o que
significaria lutar com as próprias forças), deve-se entregá-la a Cristo
para lidar com ela e esperar que ele a elimine. Essa era a técnica de
consagração e fé da forma como eu a entendia — uma espécie de
poção mágica poderosa, como eu pensava que fosse, o precioso
segredo do que era chamado de vida vitoriosa.
Mas o que houve? Eu raspei meu interior, figurativamente falando,
para garantir que minha consagração fosse completa, e me esforcei
para “deixar o mundo para trás e Deus não me deixará” quando a
tentação fizesse sua presença ser sentida. Naquela época, eu não
sabia que Harry Ironside, ex-pastor da Moody Memorial Church, em
Chicago, certa vez teve um colapso mental ao tentar entrar na vida
superior como eu tentei entrar; e eu não teria ousado concluir, como
o fiz desde então, que tal vida superior, da forma descrita, é um
fogo-fátuo, uma irrealidade que ninguém jamais alcançou, e que
aqueles que testemunham sua experiência nesses termos realmente
— senão inconscientemente — distorcem o que aconteceu com eles.
Tudo que eu sabia era que a experiência esperada não viria. A
técnica não estava funcionando. Por que não? Bem, uma vez que o
ensino declarava que tudo depende de a consagração ser plena, a
culpa tinha de estar em mim. Portanto, devo raspar meu interior
novamente para encontrar quaisquer resquícios da individualidade
não consagrada que ainda se escondem lá. Fiquei bastante frenético.
E, então (graças a Deus), o grupo recebeu uma biblioteca de um
velho clérigo, e nela havia uma coleção fechada de obras de Owen,
e eu abri as páginas do volume VI mais ou menos ao acaso, e li o
que Owen falava sobre mortificação — e Deus usou o que o velho
puritano havia escrito três séculos antes para me esclarecer. Aqui
estava a quimioterapia de Deus para minha alma com câncer.
Atravessando esses três séculos, Owen me mostrou meu interior
— meu coração — como ninguém havia feito antes. O pecado,
segundo ele, é uma energia cega, contrária a Deus e egocêntrica no
sistema espiritual humano caído, sempre fomentando desejos,
ambições, propósitos, planos, atitudes e comportamentos
egocêntricos e enganadores. Agora que eu era um crente
regenerado, nascido de novo, uma nova criatura em Cristo, o pecado
que antes me dominava fora destronado, mas ainda não fora
destruído. Ele estava saqueando meu interior o tempo todo,
trazendo de volta desejos pecaminosos dos quais eu esperava ter
me livrado definitivamente, e distorcendo meus novos desejos por
Deus e pela piedade, de forma que se transformavam em orgulho
pervertido. Um conflito por toda a vida contra pecados persistentes,
os quais, por sua vez, proporcionariam mais pecados persistentes
era o que eu deveria esperar.
O que fazer? Aqui estava a resposta de Owen, em essência:
mantenha a santidade de Deus clara em sua mente. Lembre-se de
que o pecado lhe erradica a sensibilidade. Observe, ou seja,
prepare-se para reconhecê-lo e investigá-lo dentro de si mesmo, por
meio de um autoexame disciplinado, baseado na Bíblia e conduzido
pelo Espírito. Concentre-se no Cristo vivo e em seu amor por você
na cruz. Ore, pedindo força para dizer “não” às sugestões do pecado
e para se fortalecer contra os maus hábitos, formando bons hábitos
contrários a eles. E peça a Cristo para matar o desejo pecaminoso
contra o qual você está lutando, como o anjo teofânico no livro O
grande abismo, de C. S. Lewis, diz ao personagem na obra.
Funciona? Sim. Quase setenta anos depois, eu posso testemunhar
isso.
O livro de Owen ministra a outros como ministrou a mim? Sim. Eis
o testemunho recente de um presidiário:
Eu encontrei este livro [...] no chão, perto de um banheiro [...] Imediatamente depois de
terminar de ler A mortificação do pecado, de Owen, ajoelhei-me no chão da minha cela e
implorei a Jesus para entrar em minha vida miserável e me redimir [...] e pela primeira
vez em toda a minha vida atribuí significado a cada palavra que eu professava [...]
Obrigado, Jesus!
Owen é um dos mortos que ainda fala.
Um gigante puritano
Owen foi, segundo o senso comum, o teólogo puritano mais
importante, e muitos o colocariam entre João Calvino e Jonathan
Edwards como um dos três maiores teólogos reformados de todos os
tempos. Nascido em 1616, ele ingressou no Queen’s College, em
Oxford, aos 12 anos, e obteve seu mestrado em 1635, quando tinha
19 anos. Com vinte e poucos anos, a convicção do pecado o lançou
em tamanha turbulência que, por três meses, ele mal conseguia
pronunciar uma palavra coerente sobre qualquer coisa; mas, aos
poucos, ele foi aprendendo a confiar em Cristo e, assim, encontrou a
paz. Em 1637, ele se tornou pastor; na década de 1640, foi capelão
de Oliver Cromwell e, em 1651, foi nomeado decano da Christ
Church, a maior faculdade de Oxford. Em 1652, ele recebeu o cargo
adicional de vice-reitor da Universidade, o qual reorganizou com
notável sucesso. Depois de 1660, ele liderou os independentes
durante os amargos anos de perseguição, até sua morte, em 1683.
Ele foi um teólogo reformado conservador de grande erudição e
força expositiva. Seus pensamentos são como os pilares de uma
catedral normanda; eles deixam uma impressão de grandeza
massiva justamente por causa de sua simplicidade consistente. Ele
escreveu para leitores que, uma vez que começam a investigar
determinado assunto, não conseguem descansar até verem o fundo
dele, e que consideram a exaustividade da cobertura e a
apresentação das mesmas verdades sob muitos ângulos distintos
não exaustiva, mas revigorante. Seus livros foram verdadeiramente
descritos como uma série de sistemas teológicos, cada qual
organizado em torno de um centro diferente. A verdade da Trindade
— a história do Criador Triúno tornando-se o Redentor Triúno —
sempre foi seu ponto-final de referência, e viver a vida cristã, sua
preocupação constante.
Owen incorporou tudo o que havia de mais nobre na devoção
puritana. “A santidade atribuiu um brilho divino às suas outras
realizações”, disse seu antigo colega, David Clarkson, ao pregar no
funeral de Owen. Como pregador, Owen curvou-se diante de sua
própria máxima, de que “um homem prega seu sermão bem a
outros apenas quando o prega também à sua própria alma”, e
declarou: “Eu me considero limitado pela consciência e pela honra.
Não consigo nem mesmo imaginar que alcancei o conhecimento
adequado de qualquer artigo da verdade, muito menos para publicá-
lo, a menos que, através do Espírito Santo, eu tenha experimentado
tanto isso, em seu sentido espiritual, que possa ser capaz, de todo o
coração, de dizer com o salmista: Eu cri e por isso falei”. Isso explica
a autoridade e a habilidade com que Owen investiga as profundezas
sombrias do coração humano. “Passagens inteiras passam pela
mente do leitor com uma influência que o faz sentir como se
tivessem sido escritas apenas para ele” (Andrew Thomson). O
tratado sobre a mortificação é um exemplo notável disso.
Sabedoria na mortificação
O “discurso” de Owen, como ele o chamava, é um conjunto escrito
de sermões pastorais sobre Romanos 8.13: “Se, pelo Espírito,
mortificardes os feitos do corpo, certamente vivereis”. O sermões
foram pregados em Oxford e o trabalho foi publicado em 1656 (com
a segunda edição ampliada em 1658). Já foi dito que os romances
de Jane Austen deveriam ser lidos pela quarta vez, o que significa
que, apenas na quarta leitura, sua excelência especial de estrutura
equilibrada, sátira gentil e humor sutil entrará em foco na mente do
leitor. O mesmo poderia ser dito desses sermões, pois somente
através de leituras reiteradas seu poder de busca e unção é
adequadamente percebido. Seu tema é o lado negativo da obra de
santificação de Deus (ou seja, a renovação do caráter à imagem de
Cristo). Os mestres reformados, de Calvino em diante, têm explicado
regularmente a obra santificadora do Espírito Santo em termos de
positividade, vivificação (desenvolvimento de virtudes) e, de modo
negativo, mortificação (matar os pecados). Como afirma a Confissão
de Westminster (13.1):
Os que são eficazmente chamados e regenerados, tendo criado em si um novo coração e
um novo espírito, são, além disso, santificados real e pessoalmente, pela virtude da
morte e da ressurreição de Cristo, pela sua palavra e pelo seu Espírito — Espírito que
neles habita; o domínio do corpo em relação ao pecado é todo destruído neles, suas
várias concupiscências são cada vez mais enfraquecidas e mortificadas, e eles são mais e
mais vivificados e fortalecidos em todas as graças salvadoras, para a prática da
verdadeira santidade, sem a qual ninguém verá Deus.
A mortificação é o assunto de Owen, e ele está decidido a explicar,
a partir das Escrituras, sua teolo-
gia — ou seja, vontade, sabedoria, obra e os meios de Deus em
relação a isso — tão completamente quanto puder. Mas, para tornar
seu tratamento o mais prático e útil possível, ele aborda dentro da
moldura de seu texto a seguinte questão:
Suponha que um homem seja um cristão verdadeiro e, ainda assim, encontre em si
mesmo um poderoso pecado interior, levando-o cativo à sua lei, consumindo seu coração
com problemas, confundindo seus pensamentos, enfraquecendo sua alma quanto aos
deveres de comunhão com Deus, inquietando-o quanto à paz e talvez até mesmo
desafiando sua consciência e expondo-o ao endurecimento pelo engano do pecado — o
que ele deve fazer? Qual curso deve tomar e em que deve insistir para a mortificação
desse pecado, dessa luxúria, dessa enfermidade ou dessa corrupção?
Perkins, o Teólogo
Educador, professor, apregoador, leitor veloz, escritor rápido e
mestre na arte da simplicidade sem superficialidade, pai tanto do
pietismo — como ethos europeu — como do puritanismo — como
ideologia inglesa —, Perkins produziu tratados didáticos brilhantes
sobre muitos assuntos que ainda não mencionei — entre eles, os
chamados do povo cristão: vida familiar cristã; “a virtude da
equidade, ou moderação da mente”;27 o papel do ministério
profissional; os princípios da homilética; o funcionamento da
consciência; a adoração a Deus; o controle da língua; os erros de
Roma; e a doutrina da predestinação. Claramente, no entanto, as
realidades da religião no regenerado — em outras palavras,
conversão, segurança, devoção e comportamento biblicamente
ordenado — sempre foram cruciais no âmbito de seu interesse. A
declaração de Kendall, de que Perkins “dedicou-se principalmente a
mostrar aos homens que eles devem — e podem — garantir seu
chamado e eleição para si mesmos” é muito limitada.28 A primeira
preocupação de Perkins era que as pessoas fossem cristãs, e seu
objetivo de ajudá-las a saber que eram cristãs veio em segundo
lugar. A passagem citada reúne as principais coisas que ele tinha a
dizer sobre a vida interior do crente, que é o critério da realidade
cristã, e esse perfil do santo em crescimento nos oferece um ponto
de vista para rever a teologia de Perkins como um todo, indagando,
à medida que avançamos, como cada aspecto dela se relaciona
com o que agora vemos ser o foco principal de seu autor.
A forma e a substância da escrita devocional didática dependem
sempre de três elementos: a compreensão dos autores do que a
Bíblia ensina sobre a união com Cristo e o discipulado, sua visão
das necessidades espirituais de seu público e sua própria
experiência de caminhada com Deus. Se eles passaram pela
conversão na vida adulta, o que escreverem provavelmente
destacará o contraste entre a vida com e sem Deus, como Paulo,
Agostinho, Bunyan, G. K. Chesterton e C. S. Lewis bem ilustram.
Perkins também é um bom exemplo disso, como mostra a
passagem acima.
A verdadeira vida cristã, como Perkins a concebe, é tanto
aspiracional como transformacional. É uma aspiração, na medida
em que se concentra no esforço sincero de exercer a fé em oração
— ou seja, uma confiança assegurada no Salvador e Senhor Jesus
Cristo, uma vez crucificado e agora ressurreto — e, com isso,
praticar o arrependimento — ou seja, uma busca pessoal por
comportamento pecaminoso e hábitos pecaminosos do coração,
passados e presentes —, para, com a ajuda de Deus, deixá-los para
trás, de modo a limpar o terreno para a santidade (observação da
lei no amor) daqui em diante. A informação na qual se fundamenta
o apelo da fé ao Pai e ao Filho, e sobre a qual repousam
diretamente a esperança e a certeza da fé, diz respeito à
justificação e à adoção na família de Deus por meio da cruz
reconciliadora de Cristo. E a vida cristã é transformadora, na
medida em que a mudança aspira-
da — e pela qual oramos — agora começa a ocorrer de forma
visível. Cada vez mais, aqueles que assim oram e que buscam
reordenação para suas vidas de dentro para fora encontram sua
identidade, seu contentamento e sua paz em continuar com sua
busca, enquanto cresce a consciência de que agora são pessoas
diferentes do que eram; porque eles passaram a estar em Cristo, o
Espírito Santo agora habita neles e eles podem ter certeza de que
Deus Pai os ama de maneira salvífica e continuará a amá-los para
sempre. Os puritanos que vieram depois organizariam esse senso
de nova realidade sob o selo da regeneração; esse, entretanto, não
é um dos termos técnicos de Perkins, assim como não é na
Confissão e Catecismos de Westminster, ou nos escritos de William
Tyndale, o tradutor da Bíblia, e de John Bradford, o mártir da
Reforma, por quem a forma dessa vida graciosa aspiracional-
transformacional foi inicialmente explicada.
Ao delinear as necessidades espirituais da Inglaterra, Perkins
menciona muitas formas de imoralidade e irreligião, mas
claramente o que mais o incomodava era o formalismo protestante
e a complacência espiritual típica de sua própria época, que havia
substituído seu equivalente católico romano anterior. Assim, suas
tarefas ministeriais, da forma como ele as via, resumiam-se
precisamente em afligir o consolado e consolar o aflito.
Básico para todo o trabalho de Perkins é o desejo de manter a
continuidade com a herança da Reforma, tanto local como
externamente, e discipular as pessoas nela. Como Kendall afirma:
“Ele via a si mesmo como parte da corrente principal da Igreja da
Inglaterra — frequentemente defendida por ele”.29 Ele não nutria
simpatia pelos defensores da separação em questões de ordem
eclesiástica; enquanto a Igreja estivesse comprometida com a
ortodoxia da Reforma e ele próprio estivesse livre para ensinar,
pregar e pôr em prática essa ortodoxia, sua lealdade anglicana não
estaria em dúvida, mesmo quando ele tivesse de suportar o assédio
de dentro do sistema. (Um exemplo disso foi que, em 1587, ele
teve de responder ao vice-reitor da universidade por ter afirmado,
em um sermão, que os requisitos do Livro de Oração de se ajoelhar
na comunhão e fazer com que o celebrante administrasse os
elementos a si mesmo não eram as melhores opções.) Não
obstante, a lealdade ao sistema estabelecido era parte integrante
do cristianismo que ele ensinava.
Quanto à herança protestante mais ampla, é importante ver que
Perkins, que se identificava como calvinista, absorveu os
ensinamentos não apenas de Calvino, mas também de outros
escritores reformados, como, aparentemente, Bucer, Bullinger,
Musculus e Peter Martyr, e particularmente Beza, de Genebra, e
Zanchi, de Heidelberg. Um longo apêndice de Beza completa A
Golden Chain [A corrente de ouro] (cujo material básico havia sido
emprestado de Beza em primeiro lugar), e um resumo dos
pensamentos de Zanchi sobre segurança preenche mais da metade
de A Case of Conscience [Caso de consciência]; e o próprio relato
de fé e segurança de Perkins reflete claramente a influência desses
dois gigantes. Genericamente, a teologia da Reforma concebia a fé
como a confiança de toda a alma do cristão no Cristo das
promessas bíblicas para um relacionamento correto com Deus.
Calvino havia definido a fé como uma persuasão ensinada pelo
Espírito sobre o favor de Deus por amor a Cristo; em outras
palavras, como uma confiança segura da mente e do coração, e ele
havia explicado a convocação de Pedro em 2Pedro 1.10 para
“certificar sua vocação e eleição” como um simples pedido de
comportamento coerente com a profissão cristã.30 Perkins, no
entanto, estendeu a definição de fé para incluir tanto a vontade (ou
seja, o desejo e o anseio) de acreditar que precede a confiança
ativa como o ato da alma aplicando o Cristo das promessas ao
próprio coração perturbado e à consciência culpada; e ele segue
Beza e Zanchi na compreensão de 2Pedro 1.10, pedindo aos
cristãos que se posicionem “na vida”, como dizem os galeses,
seguros e certos em relação a si mesmos, observando como a
graça já os mudou.
Perkins vinculava essa visão do versículo ao seu próprio conceito
tomista de consciência, claramente focado na forma como a mente
trabalha através do que ele chamava de “silogismos práticos”, com
vistas à desaprovação e à condenação ou à aprovação e ao
conforto. Em um silogismo prático, a premissa maior seria uma
regra moral ou espiritual, idealmente uma declaração bíblica; a
premissa menor seria uma observação factual; e a conclusão, um
julgamento moral. Um exemplo simples, que Perkins realmente usa,
como muitos de nós também fazemos hoje, é:
Todo aquele que crê é filho de Deus;
Eu creio;
Portanto, sou filho de Deus.
Kendall avalia o relato de fé de Perkins como confuso e seu
caminho para a segurança, ilusório, mas suas críticas parecem
depender de separar a mente e a vontade de uma forma que
Perkins nunca fez, de igualar o autoexame bíblico com a
introspecção e de esquecer o axioma de Perkins de que a graça real
é suscitada e, assim, prova sua realidade.31 Em minha opinião,
Perkins estava certo, primeiro ao analisar a consciência como
operando — por mais compactada que seja — por meio de
silogismos práticos; e, segundo, ao afirmar que o autoexame das
Escrituras normalmente dará ao cristão bases sólidas para a
confiança em sua regeneração diante de Deus.
Algo também básico para todo o trabalho de Perkins foi sua
insistência de que a Sagrada Escritura deve ser recebida como o
ensinamento e o testemunho de Deus, e que a interpretação deve
tomar a forma de aplicação dos princípios bíblicos ao próprio tempo
e às necessidades do intérprete. Breward afirma isso bem,
destacando o foco cristocêntrico da hermenêutica de Perkins. Ele
começa citando a afirmação de Perkins de que as Sagradas
Escrituras “concordam entre si com exatidão e que as passagens
que parecem discordar podem ser facilmente reconciliadas”, pela
simples razão de que “o escopo de toda a Bíblia é Cristo com seus
benefícios”. Se existiam diversas opiniões sobre o significado das
escrituras:
Nessa diversidade de opiniões [...] devemos ainda [sempre] recorrer a Cristo, e isso
somente na Escritura; pois, embora houvesse mil exposições variadas de uma
passagem, ainda pelas circunstâncias, conferindo [comparando] com outros trechos
semelhantes das Escrituras, um homem poderá descobrir o verdadeiro sentido, pois
Cristo na Escritura expõe a si mesmo.32
13 Introdução e organização, Ian Breward, The Work of William Perkins (Abingdon: Sutton
Courtenay Press, 1969), xi, p. 130.
14 William Haller, The Rise of Puritanism (New York: Columbia University Press, 1938), p.
65; citando Thomas Fuller, Abel Redevivus, 1651, p. 434.
15 Tradução e organização. J.W. Beardslee, Reformed Dogmatics (New York: Oxford
University Press, 1966), p. 274, 275.
16 Benjamin Brook, The Lives of the Puritans (1813, reimp. Pittsburgh: Soli Deo Gloria,
1994), II, p. 130.
17 Thomas Fuller, The Holy State (1642), p. 89.
18 Samuel Clarke, The Marrow of Ecclesiastical History (1654), p. 416-17; citado em
Breward, op cit., p. 9-10, com a grafia modernizada.
19 Thomas Fuller, The Holy State, p. 90.
20 The Workes of that Famous and Worthy Minister of Christ in the Universitie of Cambridge
Mr. William Perkins (1616), I, p. 32-69.
21 Breward, p. 147.
22 Breward, p. 355.
23 Workes, I.454; ortografia modernizada, como em todas as citações do texto de Perkins.
O tratado abrange as páginas 453-74. O sermão de Bradford está em Works of John
Bradford: Sermons and Treatises (Cambridge: Parker Society, 1848, reimp. Edimbugo:
Banner of Truth, 1988), p. 20-81. O sermão de Arthur Dent, autor de The Plain Man’s
Pathway to Heaven (1601), um dos dois livros que formaram o dote da esposa de John
Bunyan, não foi reimpresso.
24 Workes, III. 1f. (1613). O tratado ocupa as páginas 1-152.
25 A. Lang, Puritanismus und Pietismus (Neukirchen Kreis Moers, 1941), p. 126-31;
referência extraída de Breward, p. 131.
26 Breward, p. 405-10; Workes, I, p. 642-44. Victor Strigelius foi um teólogo luterano que
ensinava em Heidelberg. Perkins, depois de dizer que citaria seis “regras de meditação”
[diretrizes para reflexão devocional] de Strigelius, acrescenta uma sétima: “Todas as obras
de Deus são feitas por meios contrários”, o que, aparentemente, é uma maneira de dizer
que, como Deus executa seu propósito, as coisas são regularmente o oposto do que
parecem ser, pois a cruz de Cristo foi a vitória sobre Satanás, na forma de uma aparente
derrota.
27 Breward, p. 481. O título do tratado é Epieikeia. Baseado em Filipenses 4.5.
28 R.T. Kendall, Calvin and English Calvinism to 1649 (Oxford: Oxford University Press,
1979), p. 54. Publicado no Brasil sob o título João Calvino e o calvinismo inglês até 1649,
pela Editora Carisma.
29 Idem.
30 “Ora, teremos uma definição correta de fé se a chamarmos de um conhecimento firme e
certo da benevolência de Deus para conosco, fundamentada na verdade da promessa
dada gratuitamente em Cristo, tanto revelada em nossas mentes como selada em nossos
corações por meio do Espírito Santo”, Institutas, III.ii.7.
31 Kendall, p. 74f.
32 Breward, p. 47, com base em Perkins, Workes, II.55f., I.484, III.220; meus itálicos. A
revisão de Breward sobre os procedimentos interpretativos de Perkins, conforme
estabelecidos em seu pioneiro manual homilético, The Art of Prophesying (1607; em latim,
Prophetica, 1592), e ilustrados por suas exposições impressas, deve ser consultada por
todos os meios.
33 A declaração mais nítida desse defeito é a de B. B. Warfield, The Plan of Salvation (ed.
revisada, Grand Rapids: Eerdmans, 1966), p. 88: “Que (Deus) tenha quaisquer criaturas
que eles (os supralapsarianos) supõem ser do interesse da discriminação, e tudo o que ele
decreta a respeito de suas criaturas eles supõem que ele decreta apenas para que possa
discriminar entre elas”.
34 Breward, p. 279.
I
Os setenta e seis anos da vida de Richard Baxter abrangeram
uma era na história inglesa que foi trágica, heroica e patética em
um grau extraordinário. Foi uma época de revolução e
contrarrevolução na Igreja e no Estado; de perseguição religiosa
brutal, de feroz controvérsia imposta sobre quase tudo; de
mudanças socioeconômicas disruptivas que ninguém na época
entendia; de problemas de saúde generalizados, cidades sem
higiene em crescimento e de uma medicina assustadoramente
primitiva; em suma, foi uma época de dificuldades para quase todo
mundo. E, no topo da lista de fatores que levaram a tragédias,
heroísmos e misérias, estavam as compreensões rivais do
cristianismo. É algo triste de ser dito, mas é a verdade.
Se você fosse um cristão de princípios consistentes, quaisquer
que fossem, vivendo durante aqueles setenta e seis anos, também
teria percorrido um caminho difícil. Se você fosse um católico
romano, teria sido objeto de desgosto geral na comunidade o
tempo todo, alguém constantemente suspeito de ser um subversivo
político. Se você fosse adepto do alto anglicanismo, alguém
devotado ao livro de orações, ao ministério dos bispos e à
supremacia real na igreja e no Estado, teria visto seu lado perder a
Guerra Civil na década de 1640, teria chorado pelo ato traiçoeiro de
executar o rei por traição contra seu povo, teria visto o Livro de
Oração e o episcopado, de uma só feita, proibidos pelo Parlamento,
e se fosse um clérigo, teria perdido a vida por quase vinte anos
antes da Restauração (1660). E se, como Baxter, você fosse um
puritano, praticando e propagando a religião de Agostinho com
base na teologia de João Calvino, teria de suportar a
“arminianização” da liderança anglicana por duas décadas antes da
Guerra Civil, a expulsão de quase dois mil clérigos puritanos das
paróquias inglesas na Restauração, o consequente afastamento
anglicano do evangelho e a intensa perseguição de protestantes
não conformistas, que colocaram dezenas de milhares na prisão por
não usarem o Livro de Oração em sua adoração a Deus durante o
quarto de século que precedeu a tolerância, em 1689. Quaisquer
que sejam seus princípios, você teria experimentado muita
infelicidade ao longo desses anos.
Há pouco chamei Richard Baxter de puritano; e, como essa
palavra ainda carrega conotação prejudicial para muitos, como
aconteceu durante toda a vida de Baxter, devo me apressar em
dizer que minha razão para usá-la é simplesmente porque era assim
que Baxter via a si mesmo. Observando, em 1680, que dois de seus
oponentes na imprensa o chamaram (em latim) de um puritano
inveterado que transpirava puritanismo por todos os poros, ele
respondeu: “Ora, eu não sou tão bom e bem-aventurado assim”.
Embora ele fosse, como diríamos, inclinado ao ecumenismo,
simpaticamente atento a todas as principais tradições cristãs e feliz
em aprender com todas elas, constantemente equiparava o ideal
puritano ao cristianismo — “mero cristianismo” para usar sua
própria expressão, que
C. S. Lewis, mais tarde, tomou por empréstimo de-
le —, e todos os seus escritos o mostram como o puritano clássico
que ele sempre procurou ser.
O que, então, era o puritanismo? Matthew Sylvester, o não tão
competente editor da narrativa póstuma de Baxter sobre sua vida e
sua época (publicada como Reliquiae Baxterianae, 800 páginas,
1696), observa, logo no prefácio, que, em questões históricas,
como em tudo o mais, Baxter tinha “olhos de águia, um coração
honesto, uma alma pensante, um espírito penetrante e atencioso
(ou seja, reflexivo) e um estado de espírito preocupado em
conduzir as gerações presentes e as vindouras a conhecer
devidamente o estado verdadeiro” da seguinte questão:35 Qual
descrição do puritanismo, então, Baxter teria reconhecido como
justa e verdadeira? Não é tão difícil de responder a essa questão. O
puritanismo, como Baxter o compreendia e como a erudição
moderna, corrigindo séculos de caricatura, agora o descreve, era
uma visão plena do cristianismo, baseada na Bíblia, centrada na
igreja, uma visão que honrava a Deus, culta, ortodoxa, pastoral e
reformada, que via a existência pessoal, doméstica, profissional,
política, eclesiástica e econômica como aspectos de um todo único,
e que chamava todos a ordenar cada área e cada relacionamento
de sua vida de acordo com a Palavra de Deus, para que todos
fossem santificados e se tornassem “santidade ao Senhor”. A
atividade de ponta de lança do puritanismo era o evangelismo
pastoral e a nutrição através da pregação, da catequese e do
aconselhamento (que os próprios puritanos chamavam de
casuística), e o ensino puritano insistia constantemente nos temas
de autoconhecimento, auto-humilhação e arrependimento; fé e
amor por Jesus Cristo, o Salvador; necessidade de regeneração e
santificação (vida santa, pelo poder de Deus) como prova disso; a
necessidade de conformidade consciente com toda a lei de Deus e
de um uso disciplinado dos meios da graça; e a bem-aventurança
da certeza e da alegria do Espírito Santo que todos os crentes fiéis
em circunstâncias normais podem conhecer. Os puritanos viam a si
mesmos como peregrinos de Deus viajando para casa, como
guerreiros de Deus lutando contra o mundo, a carne e o diabo, e
como servos do Senhor sob a ordem de compartilhar Cristo,
transmitir piedade e fazer todo o bem possível ao longo do
caminho. Esse era o cristianismo com que Baxter se identificava e
do qual ele foi um exemplo brilhante no curso das vicissitudes de
sua longa vida.
II
Vamos conhecer um pouco mais de Baxter. Aqui estão os
principais fatos pessoais, resumidos em termos biográficos. Com
algumas intrusões à medida que vamos passando por eles, os fatos
são os seguintes:
“Baxter, Richard, cavalheiro” (pois seu pai era dono de uma
pequena propriedade); “nascido em 12 de novembro de 1615, em
Rowton, Salop; educado na Donnington Free School, Wroxeter e
em seu lar” (Baxter nunca foi para uma universidade); “ordenado
diácono pelo Bispo de Worcester, 1638; auxiliar de Bridgnorth, 1639
e 1640; conferencista [ou seja, pregador assalariado] de
Kidderminster, 1641–42; junto ao exército parlamentar, 1642–47;
vigário de Kidderminster, 1647–1661” — um ministério durante o
qual ele quase converteu toda a cidade — “na conferência de
Savoy, 1661” (essa foi a consulta infrutífera entre os líderes
puritanos e anglicanos para melhorar o Livro de Oração para a
Igreja Restaurada da Inglaterra); “viveu privadamente em ou perto
de Londres, 1662–91; casou-se com Margaret Charlton (1636–81),
1662; preso por uma semana na prisão de Clerkenwell, 1669, e por
vinte e um meses na prisão de Southwark, 1685–86; morreu em 8
de dezembro de 1691; autor de O descanso eterno dos santos
(1650)” — um clássico devocional de todos os tempos sobre como
os pensamentos de Deus e do céu podem renovar o coração para o
serviço aqui na terra, um volume de oitocentas páginas que vendeu
uma edição por ano na primeira década de sua vida; O pastor
reformado (1656) — outro clássico de todos os tempos,
admoestando, motivando e instruindo o clero; Um chamado aos
não convertidos (1658) — o primeiro livro evangelístico de bolso em
inglês, que, no ano de sua publicação, vendeu vinte mil cópias e
trouxe um fluxo interminável de leitores à fé durante a vida de
Baxter; A Christian Directory (1673) [Diretório cristão] — um
compêndio único de mais de um milhão de palavras do ensino
puritano sobre a vida e a conduta cristãs; “e mais de 130 outros
livros sobre interesses especiais, cuidado pastoral, unidade cristã;
hobbies, medicina, ciência, história”. Esse foi o homem que agora
celebramos.
É importante que as gerações posteriores se lembrem de Baxter?
Em 1875, em Kidderminster, eles pensavam que sim, e uma bela
estátua dele pregando foi erguida no centro da cidade, com a
seguinte inscrição:
ENTRE OS ANOS DE 1641 E 1660
ESTA CIDADE FOI CENÁRIO DOS TRABALHOS DE RICHARD
BAXTER,
RECONHECIDO IGUALMENTE POR SEU APRENDIZADO
CRISTÃO E POR SUA FIDELIDADE PASTORAL.
EM UMA ERA TEMPESTUOSA E DIVIDIDA, DEFENDEU A
UNIDADE E A COMPREENSÃO, APONTANDO
O CAMINHO PARA
O DESCANSO ETERNO.
É
OS CLÉRIGOS E NÃO CONFORMISTAS,
UNIDOS, ERGUEM ESTE
MEMORIAL, 1875.
As expressões usadas mostram o que havia em Baxter que era
considerado digno de ser lembrado em 1875. “Aprendizado cristão”,
por exemplo, aponta para o fato de que ele verdadeiramente foi um
erudito incansável, sempre estudando, lendo de forma célere e
lembrando bem o que havia lido; era também consistentemente
ponderado e perspicaz nas opiniões que expressava sobre o que os
livros apresentavam. Certa vez, ele reclamou que a perda de tempo
para estudar devido às suas muitas doenças (vez que foi um
homem enfermo durante toda a sua vida) era o maior fardo que
tinha de suportar; no entanto, qualquer um que observe seu
domínio do material bíblico, de toda a tradição cristã e das dezenas
de posições que ele contesta ficará maravilhado com sua vida de
estudos. Baxter foi o teólogo inglês mais prolífico de todos os
tempos e, além dos aproximadamente quatro milhões de palavras
de escrita pastoral, apologética, devocional e homilética
reimpressas em sua coleção Practical Works, ele produziu cerca de
seis milhões a mais sobre aspectos da doutrina da graça e da
salvação, sobre a unidade e o inconformismo da igreja, os
sacramentos, o catolicismo romano, o antinomianismo, o
milenarismo, o movimento quaker, política e história, para não
mencionar uma teologia sistemática em latim; e, em todos esses
escritos, quer alguém concorde ou não com as posições de Baxter,
encontra-se confrontado com o julgamento maduro de uma mente
sábia, aguçada, bem abastecida e perspicaz, tão distinta pela
integridade intelectual quanto pela vigilância espiritual. Eu não
considero que Baxter estivesse sempre certo, mas o vejo — assim
como os responsáveis pelo memorial de 1875 — como um dos mais
impressionantes pensadores cristãos, e insisto que há tantas razões
para honrá-lo como tal hoje quanto havia no passado.
Então, novamente, a inscrição de 1875 celebra os apelos
constantes de Baxter, tanto proferidos em viva voz como impressos
ao longo de mais de quarenta anos, por “unidade e compreensão”.
Em sua própria época, a súplica de Baxter sobre esses tópicos foi
parcialmente ignorada por causa da pungente retórica em que
grande parte foi redigida e, principalmente, porque era uma época
em que o espírito de partidarismo e as disputas atrozes eram
considerados sinais adequados de seriedade cristã. Em 1875, no
entanto, a mentalidade correta básica do que Baxter estava dizendo
tornou-se aparente — e deveria ser ainda mais nos dias de hoje. O
chamado de Baxter à unidade dependia de distinguir as diferenças
toleráveis das intoleráveis entre os cristãos professos e as igrejas;
seu apelo era, em primeiro lugar, que o amor, a paz e a comunhão
deveriam ser maximizados, pois, na realidade, todos os
fundamentos cristãos já são mantidos por aqueles que aceitam o
Credo Apostólico, os Dez Mandamentos e a Oração do Pai-Nosso,
como o que estabelece a forma do seu cristianismo; e, em segundo
lugar, que todos observariam, dali em diante, a máxima que se
segue: unidade nas coisas necessárias, liberdade nas coisas
desnecessárias e caridade em todas as coisas. O apelo de Baxter
por compreensão dependia de sua visão da Igreja da Inglaterra
como sendo o que seus primeiros reformadores a viam — uma
reunião de congregações que representavam o “cristianismo puro e
simples”, ou seja, um cristianismo definido em termos do essencial
e nada mais, todas comprometidas com a tarefa de evangelizar e
discipular os ingleses. Aqui, seu apelo era por um relaxamento da
uniformidade anglicana restaurada de 1662, o que permitiria aos
grupos presbiterianos, independentes e batistas um lugar dentro da
federação, em prol da promoção do chamado comum. Seu
argumento era nobre e convincente em si mesmo, e mais do que
oportuno naqueles anos em que todos os não conformistas (cerca
de 120 mil, de acordo com uma estimativa) enfrentavam multas e
prisão se fossem pegos cultuando coletivamente de acordo com sua
profissão de fé. O tom de Baxter foi questionado pelo ódio e pela
suspeita dos anglicanos contra os não conformistas como
revolucionários de coração, pela prevalência entre os anglicanos da
teologia da Alta Igreja — que não considerava as igrejas não
episcopais nem seus ministros como tais —, pela amargura e o
desprezo que os não conformistas nutriam em relação à
perseguidora Igreja da Inglaterra e pela relutância em se associar a
ela novamente, de modo que, no caso, sua argumentação foi
ignorada por todas as partes durante toda a sua vida. Mas nós
podemos ver por que, em 1875, antes de os furacões da
incredulidade destruírem grandes setores tanto da Igreja Livre
como do mundo anglicano e mudarem permanentemente a forma
de compreensão, os memorialistas desejavam celebrar o
testemunho que Baxter dera.
E quanto a nós mesmos nos dias de hoje? As realizações
teológicas de Baxter, os esforços pastorais, os argumentos em prol
da unidade e da compreensão, bem como os testemunhos da
suprema importância de se estabelecer a esperança no descanso
eterno dos santos, valem nossa lembrança hoje? Eu afirmo que não
apenas vale a pena nos lembrarmos deles como exemplos
inspiradores de visão, vitalidade e sabedoria em Cristo, mas
também que Baxter tem mais a dizer e dar àqueles que se lembram
dele nos dias de hoje do que aos homens e às mulheres de 1875,
simplesmente porque nos afastamos mais dessa visão, dessa
vitalidade e dessa sabedoria do que eles. O título deste tópico é
“Um homem para todos os ministérios”. Proponho gastar algumas
páginas que restam olhando mais de perto para Baxter e para o
serviço que ele desempenhou, e minha sugestão em cada ponto
será que hoje precisamos realmente aprender com ele, tendo em
vista que pessoas pequenas e superficiais sempre precisam
aprender com os gigantes. A essa agenda volto-me agora.
III
Muitas vezes descrito como angelical, por causa da maneira como
sua retórica se eleva quando está discorrendo sobre a graça de
Deus e as bênçãos do evangelho, Baxter aparece em todo o seu
ministério como epítome do ardor incansável em buscar a glória de
Deus por meio da salvação das almas e da santificação da igreja.
Contemplar a independência, a integridade e o zelo com que o
Baxter público cumpriu seu ministério é algo fascinante e
inspirador; porém, ainda mais fascinante e inspiradora, a meu ver, é
a contemplação do Baxter privado, o homem por trás do ministério,
que, em uma elaborada autoanálise — escrita, aparentemente, por
volta de 1665, quando ele tinha cinquenta anos de idade, e
publicada postumamente como parte de suas Reliquiae —, abre seu
coração sobre as mudanças que vê em si mesmo desde a sua
juventude no serviço cristão. Em geral, o que ele delineia é um
progresso do zelo imaturo para a simplicidade madura, e de uma
limitação apaixonada que era um tanto egocêntrica e focada em
pequenas questões para uma serena concentração em Deus e nas
grandes questões, além de uma profunda capacidade de ver tais
questões de forma constante e plena. Apresento alguns excertos
dessa joia de testemunho humilde e honesto da obra
transformadora de Deus na vida humana, para que você possa
conhecer um pouco de Baxter diretamente e julgar por si mesmo se
estou exagerando no que acabei de dizer.36
Percebi que nada impede tanto a recepção da verdade quanto instigá-la aos homens
com muita insistência e cair pesadamente em seus erros.
Na minha juventude eu rapidamente superei meus fundamentos e estava entrando em
uma infinidade de controvérsias [...] Mas, quanto mais amadurecia, menos ênfase eu
dava a essas controvérsias e curiosidades (embora meu intelecto ainda abomine a
confusão).
E agora são as doutrinas fundamentais do Catecismo que eu mais valorizo e nas quais
penso diariamente, e considero mais úteis para mim e para os outros.
O Credo, a Oração do Pai-Nosso e os Dez Mandamentos são agora o assunto mais
aceitável e abundante em todas as minhas meditações. Eles são para mim como o pão
e a bebida de cada dia [...] Valorizo todas as coisas de acordo com seu uso e com sua
finalidade, e vejo, na prática diária e na experiência de minha alma, que o
conhecimento de Deus e Cristo, e do Espírito Santo, e da verdade das Escrituras, e da
vida futura, e de uma vida santa, tudo isso é mais útil para mim do que todas as
especulações mais curiosas [...] Essa é a melhor doutrina e o estudo que torna os
homens melhores e tende a torná-los felizes.
Até agora coloquei boa parte da religião na ternura de coração e no luto pelo pecado, e
lágrimas de penitência [...] mas minha consciência agora olha para o amor e o deleite
em Deus, e o louva, como o mais importante de todos os meus deveres religiosos.
Meu julgamento se volta muito mais agora para a meditação frequente e séria sobre a
bem-aventurança celestial do que em meus dias de juventude [...] agora eu prefiro ler,
ouvir ou meditar sobre Deus e o céu [...] meditar em meu próprio coração [...]
debruçando sobre meus pecados ou desejos, ou examinando minha sinceridade; mas
agora, embora eu esteja grandemente convencido da necessidade de conhecer o
coração, enxergo a necessidade de uma obra mais elevada, e que devo olhar com mais
frequência para Cristo, para Deus e para o céu do que para meu próprio coração.
Agora vejo mais o bem e o mal em todos os homens do que antes. Admiro menos os
dons de expressão e a simples profissão de religião do que antes. No passado, eu
pensava que quase todos os que podiam orar com emoção e fluência, e falar bem de
religião, eram santos. Mas a experiência me revelou que crimes odiosos podem consistir
em uma elevada profissão de religião.
Eu costumava olhar pouco para além da Inglaterra em minhas orações, pois não
considerava o restante do mundo. Mas agora, como entendo melhor a condição do
mundo e o método da Oração do Pai-Nosso, nenhuma parte de minhas orações é mais
séria que a conversão do mundo infiel e ímpio.
(Ele passa a expressar admiração pelo pioneiro missionário John
Eliot, “o apóstolo dos indígenas na Nova Inglaterra”, cujo trabalho
ele ajudou a sustentar financeiramente, e expressa o desejo de que
todos os dois mil clérigos puritanos expulsos em 1662 se tornassem
missionários no além-mar.)
Estou mais aflito pelas divergências dos cristãos do que quando era um cristão mais
jovem. Exceto a condição do mundo infiel, nada é tão triste e doloroso para meus
pensamentos quanto a condição das igrejas divididas. Portanto, sou mais
profundamente sensível à pecaminosidade desses prelados e pastores das igrejas, que
são a principal causa dessas divisões. As contendas entre a Igreja grega e a romana,
entre os papistas e os protestantes, entre os luteranos e os calvinistas, têm impedido
lamentavelmente o reino de Cristo.
Embora minhas obras nunca tenham sido capazes de despertar em mim qualquer
tentação de sonhar em agradar a Deus por mérito próprio em justiça comutativa, ainda
assim uma das evidências mais prontas, constantes e indubitáveis do meu [...] interesse
em sua aliança é a consciência de minha vida devotada a ele. E mais facilmente
acredito no perdão de minhas falhas por meio do meu Redentor enquanto sei que não
sirvo a nenhum outro mestre, e que não conheço outro propósito, outra atividade ou
outro negócio, mas que estou empregado [sic] em sua obra e faço disso a ocupação da
minha vida, vivendo para ele no mundo, apesar das minhas enfermidades. Essa
tendência e ocupação da minha vida, com meus anseios e desejos de perfeição no
conhecimento, crença e amor de Deus, e em uma mente e uma vida santas e celestiais,
são as duas evidências permanentes, constantes e discerníveis que mais me fazem ter
certeza da minha sinceridade. (Ele quer dizer “ser verdadeiramente regenerado e
nascido de novo”.)
E, embora eu tenha falado antes da mudança do meu julgamento contra escritos
provocadores, tive mais vontade do que habilidade, desde então, para evitá-los. Devo
mencionar, como uma confissão penitente, que estou muito inclinado a tais palavras em
escritos controversos que são bastante perspicazes e aptos a provocar a pessoa contra
quem escrevo. E, portanto, eu me arrependo disso, e desejo que todas as passagens
excessivamente afiadas sejam eliminadas de meus escritos, e desejo o perdão de Deus
e do homem.
48 John Owen, Works, ed. William H. Goold (London: Banner of Truth Trust, 1968), XVI: p.
74-89.
49 Richard Baxter, The Reformed Pastor, ed. William Brown (Edinburgh: Banner of Truth
Trust, 1974), p. 28-29.
50 O excerto que se segue, de Owen (p. 89), escrito na década de 1680, merece reflexão:
“A presente ruína da religião, quanto ao seu poder, beleza e glória, em todos os lugares,
surge principalmente desta causa, que multidões daqueles que assumem esse cargo [ou
seja, que se tornam pastores] não estão de forma alguma aptos para isso, nem atendem
conscientemente ou executam diligentemente os deveres que lhes cabem. Sempre foi e
sempre será verdade: “Tal é o sacerdote, tal é o povo”.