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Maria Bouça

UMA DEFESA DO NECESSÁRIO A POSTERIORI

Dissertação de Mestrado em Filosofia da Linguagem e da Consciência apresentada à

Faculdade de Letras de Lisboa

1999
INTRODUÇÃO

O tema desta dissertação é, como o seu título indica, a tese, inicialmente defendida

por Kripke (1988; 1993: 162-191), segundo a qual há verdades necessárias que só

empiricamente podem ser conhecidas. O objectivo é argumentar a favor da plausibilidade

da tese kripkeana e exibir a consequente refutação da tese tradicional, explicitamente

defendida por Kant (1985; 1987), segundo a qual todas as verdades necessárias são

conhecidas a priori.

Dado que a inteligibilidade da tese kripkeana emerge de um determinado contexto

teórico, começarei por abordar certas teses e noções chave que constituem aquele

contexto, e que o aparato conceptual da teoria lógica da modalidade de Kripke permite

clarificar e discutir. As noções em questão são a noção de necessidade metafísica, as

noções metafísicas de identidade transmundial e de propriedade essencial (acidental) de

objectos, e a noção semântica e modalmente orientada de designação rígida.

Mostrarei, em seguida, a plausibilidade da argumentação que suporta a tese

kripkeana e que contraria a tese tradicional, distinguindo entre uma versão fraca e uma

versão forte daquela tese. Estas duas versões reflectem a distinção, nem sempre

claramente reconhecida, entre o valor de verdade, o estatuto modal geral e o estatuto modal

específico de uma proposição. A versão fraca defende que certas verdades necessárias, as

quais podemos não saber que são necessárias, só empiricamente podem ser conhecidas,

isto é, só empiricamente podemos conhecer o seu valor de verdade. A versão forte defende

que certas verdades necessárias, as quais sabemos a priori que são necessárias, só

empiricamente podem ser conhecidas como tal (como necessárias), isto é, só

empiricamente podemos conhecer o seu estatuto modal específico. A defesa do Necessário

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A Posteriori passará aqui pela análise e discussão das teses em questão (tese kripkeana e

tese tradicional) e respectivas versões. (Ver listagem de teses e versões na parte final da

dissertação)

Na medida em que a tese do Necessário A Posteriori, como tese existencial, é

inseparável dos casos que a verificam, torna-se imprescindível, tendo em vista o objectivo

desta dissertação, a discussão de diversos tipos de casos do Necessário A Posteriori. Uma

taxonomia simples de verdades necessárias a posteriori consiste em dividi-las em dois

tipos: triviais e não triviais. Os primeiros são sobretudo casos de identidades verdadeiras

formuladas à custa de nomes próprios; os segundos são casos que dizem respeito a

categorias naturais e ainda à origem e composição material de objectos físícos. Os

primeiros casos são triviais no sentido de resultarem da admissão da tese semântica da

designação rígida, de alguma lógica modal elementar, e ainda de proposições empíricas

incontroversas. Os casos não triviais exigem certas considerações essencialistas

suplementares que, embora plausivelmente argumentadas, estão longe de ter o estatuto

incontroverso que aquelas premissas de carácter lógico-semântico alegadamente têm.

Depois destas considerações genéricas, passo a descrever, com maior detalhe, o

conteúdo dos três capítulos que compõem esta dissertação.

No Capítulo I analisarei as três principais teses envolvidas na discussão do

Necessário A Posteriori: as teses da Identidade Transmundial, do Essencialismo e da

Designação Rígida.

A tese da Identidade Transmundial, a qual se opõe notoriamente à Teoria das

Contrapartes de David Lewis, sustenta que um e o mesmo particular (e não uma sua

contraparte) pode existir em mais do que um mundo possível. Kripke (1988) argumenta

contra a Teoria das Contrapartes, defendendo que ela deturpa a nossa compreensão

intuitiva de certas afirmações modais, e que é o resultado de uma concepção incorrecta

acerca de mundos possíveis e da identificação de particulares nesses mundos.

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Muitos dos casos kripkeanos de verdades necessárias a posteriori supõem que um

objecto particular ou substância pode existir em mais do que um mundo. Assim, por

exemplo, defender que (se sabe apenas empiricamente que) Cícero é necessariamente

idêntico a Túlio, que o ouro é necessariamente o metal com o peso atómico 79, ou que a

pessoa x é necessariamente oriunda dos gametas y e z, implica admitir, respectivamente,

que Cícero, o ouro, ou a pessoa x, são existentes transmundiais.

A tese da Identidade Transmundial, pressuposta em muitos casos de verdades

necessárias a posteriori, não é incontroversa. No entanto, como mostrarei, as principais

objecções à noção de identidade transmundial parecem poder ser coerentemente contra-

argumentadas.

O Essencialismo é também um pressuposto dos casos não triviais de verdades

necessárias a posteriori. Os casos não triviais distinguem-se dos triviais pelo facto de os

últimos não exigirem aquele pressuposto. Trata-se da doutrina segundo a qual certos

particulares e substâncias têm certas propriedades acidentalmente (estas são as que eles

podem deixar de ter noutros mundos possíveis em que existam) e outras essencialmente

(estas são as que eles não podem deixar de ter noutros mundos possíveis em que existam).

Esta doutrina corresponde à admissão da modalidade de re, isto é, da modalidade atribuída

a uma coisa (res). Assim, por exemplo, afirmar que (se sabe apenas por meios empíricos

que), em todos os mundos possíveis, a água, se existe, é H2O, implica atribuir à substância,

rigidamente designada por “água”, uma determinada propriedade essencial não trivial , a de

ter a composição química H2O; afirmar que (se sabe apenas por meios empíricos que), em

todos os mundos possíveis, Édipo, se existe, é filho de Jocasta, implica atribuir a uma

pessoa, Édipo, uma propriedade essencial não trivial, a de ser filho de Jocasta.

A teoria da modalidade de Kripke permite, não só clarificar a noção de identidade

transmundial, como também tornar inteligível a noção de propriedade essencial: uma

propriedade essencial de um particular ou de uma substância é uma propriedade que esse

particular ou substância possui em todos os mundos possíveis em que existe. No entanto, a

determinação de que propriedades são essenciais a um particular ou a uma substância

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exige a suplementação da teoria da modalidade com certos argumentos eminentemente

metafísicos.

O essencialismo pressuposto nos casos não triviais de necessidades a posteriori é

nomologicamente orientado, na medida em que se apoia na ciência e nas leis da natureza:

a necessidade natural é automaticamente elevada a necessidade metafísica. Assim, por

exemplo, H2O é uma propriedade essencial da água porque, nomologicamente, a água não

poderia deixar de ter a composição química que de facto tem; do mesmo modo, ser filho de

Jocasta é uma propriedade essencial de Édipo porque, nomologicamente, Édipo não

poderia ter um progenitor diferente do que de facto tem. Um mundo possível com leis físicas

diferentes, em que, por exemplo, as moléculas de hidrogénio nunca se misturam com as de

oxigénio, é um mundo possível onde a água não existe, mesmo que exista um líquido em

tudo o resto semelhante à água; do mesmo modo, um mundo possível em que em vez de

homens existem robots, é um mundo possível onde Édipo não existe, mesmo que exista um

robot em tudo o resto semelhante a Édipo.

A tese kripkeana da Designação Rígida é uma tese semântica modalmente orientada,

segundo a qual certos designadores - nomes próprios, termos para categorias naturais e

certas descrições definidas - são rígidos, designam o mesmo objecto em todos os mundos

em que o objecto existe. O teste intuitivo de rigidez funda-se em intuições acerca de

propriedades modais de particulares: pergunta-se se alguém ou alguma coisa diferente da

pessoa ou coisa que se está a designar poderia ter sido essa pessoa ou coisa; se a

resposta intuitiva é negativa, então o designador utilizado designa rigidamente essa pessoa

ou coisa.

Apesar do teste de rigidez se apoiar, segundo Kripke, em intuições essencialistas,

pode-se defender que é por estipulação que se estabelece a rigidez de nomes próprios e de

termos para categorias naturais. Assim, como mostrarei, embora a tese kripkeana da

Designação Rígida exija o Essencialismo, o Essencialismo não exige aquela tese semântica

modalmente orientada.

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No Capítulo II discuto as duas versões e o suporte argumentativo da tese kripkeana

de que há verdades necessárias que só empiricamente podem ser conhecidas, tese que

contraria a tese tradicional de que todas as verdades necessárias são a priori.

Começarei por mostrar que uma clarificação e demarcação das categorias de

modalidade alética (que diz respeito ao modo de uma proposição ser verdadeira) e

modalidade epistémica (que diz respeito ao modo de conhecer uma proposição) permite

fragilizar a tese tradicional, ao evidenciar um erro bastante comum: o da confusão de

domínios das modalidades envolvidas. Assumindo-se que da necessidade não se segue,

por análise conceptual, a aprioridade, a co-extensionalidade das duas noções exige

argumentos substantivos para se poder manter.

Tais argumentos não são detectáveis em Kant, cujas posições são representativas da

tese tradicional, de uma forma clara e inequívoca, uma vez que o filósofo parece por vezes

usar a noção de “necessidade” no sentido transcendental de condição de possibilidade da

experiência. Mesmo admitindo que os defensores da tese tradicional usam a noção de

necessidade no sentido tradicional, alético, a argumentação que a suporta parece não só

confundir os domínios alético e epistemológico de uma proposição, como parece também

confundir o conhecimento do valor de verdade de uma proposição necessária e o

conhecimento do seu estatuto modal geral. Ora, assim como devemos atender à distinção

entre o domínio alético e o epistemológico de uma proposição , o mesmo deve ser feito

relativamente ao valor de verdade e ao estatuto modal geral de uma proposição. O valor de

verdade de uma proposição é o seu ser verdadeira ou falsa, e o estatuto modal geral de

uma proposição é o seu ser necessária ou contingente, sem atender ao seu valor de

verdade. Logo, o conhecimento do valor de verdade de uma proposição não equivale ao

conhecimento do seu estatuto modal geral. Assim sendo, uma coisa é saber que uma

proposição necessária é verdadeira (conhecimento do valor de verdade), outra coisa é

saber que é necessária (conhecimento do seu estatuto modal geral), e só quando temos

ambos os conhecimentos é que sabemos que aquela proposição é necessariamente

verdadeira (conhecimento do estatuto modal específico).

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Centrando a discussão na tese kripkeana do Necessário A Posteriori, mostrarei que

esta tese é susceptível de duas versões que designarei por versão fraca e forte. A versão

fraca defende que há verdades necessárias que só empiricamente podem ser conhecidas,

isto é, só empiricamente podemos conhecer o seu valor de verdade. A versão forte

defende que há verdades necessárias que só empiricamente podem ser conhecidas como

tal (como necessárias), isto é, só empiricamente podemos conhecer o seu estatuto modal

específico.

A tese tradicional, contrariada pela tese kripkeana, é também susceptível de três

versões. Ao defender-se que tudo o que é necessário é a priori, pode-se querer dizer que é

a priori que conhecemos o estatuto modal geral, ou o estatuto modal específico, ou ainda o

valor de verdade, de uma proposição necessária. (Ver listagem de teses e versões na parte

final da dissertação).

A contra-argumentação de Kripke da tese tradicional, a qual está na base da versão

fraca da sua tese, é a de que o facto de uma proposição ser necessária não implica que

saibamos nem que é necessária nem que é verdadeira, e o conhecimento da necessidade

de uma proposição (o conhecimento do seu estatuto modal geral) não equivale ao

conhecimento do seu valor de verdade. Assim é que podemos conhecer a priori o estatuto

modal geral de uma proposição sem que conheçamos o seu valor de verdade (a conjectura

de Goldbach, por exemplo), e podemos conhecer só empiricamente o valor de verdade de

uma proposição necessária sem conhecermos o seu estatuto modal geral (versão fraca da

tese kripkeana)

A versão forte, contrariamente à versão fraca, exige que se conheça a priori o estatuto

modal geral de proposições necessárias cujo valor de verdade só empiricamente pode ser

conhecido.

Sucintamente, a versão forte é argumentada por Kripke deste modo:

(1) Sabemos a priori que certas proposições, se verdadeiras, são necessariamente

verdadeiras.

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(2) Sabemos apenas empiricamente que aquelas proposições são verdadeiras

(3) Sabemos apenas empiricamente que aquelas proposições são necessariamente

verdadeiras.

A versão forte da tese kripkeana pressupõe a distinção, assinalada acima e discutida

por Casulo (1987: 161-169), entre o estatuto modal geral e o estatuto modal específico de

proposições. Conhecemos o estatuto modal geral de uma proposição quando sabemos que

é necessária ou contingente sem atender ao seu valor de verdade; e conhecemos o seu

estatuto modal específico quando conhecemos quer o seu estatuto modal geral quer o seu

valor de verdade. Assim, em (3) conclui-se que só empiricamente podemos conhecer o

estatuto modal específico de certas verdades necessárias, dado que conhecemos a priori o

seu estatuto modal geral (1), e conhecemos apenas empiricamente o seu valor de verdade

(2).

Destaco três casos típicos de verdades necessárias a posteriori, que serão

constantemente exemplificados ao longo deste ensaio e, na sua parte final,

separadamente discutidos: casos do tipo (*) de identidades formuladas à custa de nomes

próprios; casos do tipo (**) que envolvem termos para categorias naturais; e casos do tipo

(***) que dizem respeito à origem e composição material de objectos físicos. Eis o

argumento supra aplicado a exemplos característicos de cada um dos três tipos de casos:

(1*) Sei a priori que se Véspero ( se existe) é Fósforo, então necessariamente

Véspero é Fósforo.

(2*) Sei só a posteriori que Véspero é Fósforo

(3*) Sei só a posteriori que necessariamente Véspero (se existe) é Fósforo.

(1**)Sei a priori que se a água é H2O, então necessáriamente a água é H2O

(2**) Sei só a posteriori que a água é H2O

(3**) Sei só a posteriori que necessariamente a água é H2O

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(1***) Sei a priori que se Édipo é filho de Jocasta, então necessariamente Édipo é filho

de Jocasta.

(2***)Sei só a posteriori que Édipo é filho de Jocasta

(3***) Sei só a posteriori que necessariamente Édipo é filho de Jocasta.

A versão fraca da tese kripkeana não exige que conheçamos (a priori) o estatuto

modal geral da proposição cujo valor de verdade só empiricamente pode ser conhecido. Na

medida em que o conhecimento do valor de verdade de uma proposição não implica o

conhecimento do seu estatuto modal geral, o facto de só empiricamente podermos

conhecer o valor de verdade de uma proposição necessária torna imediatamente plausível

aquela versão. Assim, e utilizando o exemplo do argumento (**), mesmo que não saibamos

que a proposição que a água é H20, se verdadeira, é necessariamente verdadeira, só

empiricamente podemos saber que a água tem a composição química H20. No entanto, a

versão fraca da tese exige que alguém estabeleça que a proposição cujo valor de verdade

só empiricamente pode ser conhecido, é uma verdade necessária, nomeadamente que

qualquer substância líquida é tal que não poderia deixar de ter a composição química que

de facto tem.

A versão forte exige que conheçamos a priori o estatuto modal geral da proposição

cujo valor de verdade só empiricamente pode ser conhecido. O facto de só empiricamente

podermos conhecer o valor de verdade de uma proposição que sabemos a priori ser

necessária, se verdadeira, torna imediatamente plausível essa versão. Assim, se

conhecemos a priori a proposição condicional de que se a água tem a composição

química H2O, então tem necessariamente aquela composição química, e se só

empiricamente podemos conhecer a antecedente da condicional, segue-se que só

empiricamente podemos conhecer a sua consequente.

A conclusão (3), a versão forte da tese kripkeana, depende da verdade da premissas

(1) e (2) . Embora a premissa (2) não pareça levantar grandes problemas, o mesmo não

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acontece com a premissa condicional (1) que diz podermos saber a priori que certas

proposições sendo verdadeiras são necessariamente verdadeiras, que certas proposições

relativas ao mundo físico, nas quais uma propriedade é atribuída a um indivíduo (como em

(1***)) ou a uma categoria natural (como em (1**)) se comportam como as proposições

matemáticas. Estas premissas pressupõem certas considerações essencialistas suportadas

por argumentos postos à prova em experiências de pensamento. Tais argumentos, mesmo

que plausíveis, estão longe de ser incontroversos, como mostro no último capítulo desta

dissertação.

No capítulo III discutirei os três casos de verdades necessárias a posteriori ilustrados

acima: (*), (**) e (***).

A plausibilidade da versão forte da tese kripkeana depende, em grande parte, da

plausibilidade da premissa condicional (1), a tese de que sabemos por mera análise

filosófica que certas proposições, apesar de não serem proposições matemáticas, se

comportam como estas, no sentido em que se são verdadeiras, são necessariamente

verdadeiras. Aquela premissa condicional é, nos casos do tipo (**) e (***), uma premissa

essencialista não trivial.

Os casos kripkeanos do tipo do da conclusão (3*) exigem apenas, para além de

alguma lógica modal elementar e de proposições empíricas incontroversas, a admissão da

tese semântica da Designação Rígida de nomes. Os casos kripkeanos do tipo das

conclusões (3**) e (3***) exigem a admissão do Essencialismo substantivo.

A discussão mais detalhada daqueles três casos visa mostrar que, exceptuando os

casos de identidades verdadeiras formuladas à custa de nomes próprios, exemplificados

acima com (*), a conclusão essencialista (3) só pode ser tirada se se admitir o

essencialismo substantivo subjacente à premissa condicional (1). Nos casos

exemplificados acima com (**) e (***) as premissas condicionais exigem argumentos

eminentemente metafísicos, não resultando apenas do aparato lógico-semântico da teoria

da modalidade. Aquelas premissas condicionais veiculam um discurso novo e polémico

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acerca de essências: certas propriedades de particulares e substâncias, descobertas pela

ciência, são propriedades essenciais desses objectos, propriedades que esses objectos não

poderiam deixar de possuir existindo. Este discurso essencialista, apesar de plausivelmente

argumentado, está longe de ser imune a contra-argumentações, pelo que algumas destas

são consideradas no capítulo.

CAPÍTULO I - TESES ENVOLVIDAS NA DISCUSSÃO DO NECESSÁRIO A

POSTERIORI

Introdução

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Ao estabelecer que certas proposições empíricas, proposições acerca do mundo

físico, à semelhança das proposições matemáticas, sendo verdadeiras, são

necessariamente verdadeiras, Kripke (1988: 159) dá a chave para a caracterização geral

do conhecimento a posteriori de verdades necessárias. Assim, se há proposições que,

sendo verdadeiras, são necessariamente verdadeiras; e se o seu valor de verdade só

empiricamente pode ser conhecido; então há verdades necessárias que só empiricamente

podem ser conhecidas. No capítulo II vou chamar a esta conclusão a versão fraca da tese

kripkeana. Kripke acrescenta que é por análise filosófica, isto é, através de meios a priori,

que se sabe que certas proposições são necessariamente verdadeiras, se verdadeiras;

logo, se o seu valor de verdade só empiricamente pode ser conhecido, então só

empiricamente podemos saber que são necessariamente verdadeiras. Vou chamar a esta

conclusão a versão forte da tese kripkeana.

Deixando a discussão destas duas versões da tese kripkeana para o próximo capítulo,

limito-me, neste, a discutir o contexto argumentativo da premissa condicional de que certas

proposições, sendo verdadeiras, são necessariamente verdadeiras. Esta premissa é,

segundo Kripke, fundamental para a admissão de verdades necessárias que só

empiricamente podem ser conhecidas.

Exemplificando relativamente a três tipos de casos kripkeanos do Necessário A

Posteriori, os quais irei discutir subsequentemente, temos as seguintes premissas

condicionais:

(i) Se Véspero é Fósforo, então necessariamente Véspero é Fósforo.

(ii) Se a água é H2O, então necessariamente a água é H2O.

(iii) Se uma determinada pessoa p é oriunda dos gametas G, então necessariamente

p é oriunda dos gametas G.

A verdade e inteligibilidade destas premissas e a argumentação em sua defesa faz

apelo a certas teses semânticas e metafísicas que o aparato conceptual da teoria lógica da

modalidade de Kripke permite clarificar e discutir.

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O núcleo intuitivo do aparato lógico-semântico da teoria da modalidade é a ideia

leibniziana de que uma proposição é uma verdade necessária quando ela é verdadeira em

todos os mundos possíveis (ou em todos os mundos possíveis acessíveis a partir do mundo

actual). Se uma proposição não é verdadeira em todos os mundos possíveis, mas apenas

em alguns, não é uma verdade necessária, mas uma verdade possível e, portanto,

contingente: uma proposição é uma verdade possível se, e só se, é verdadeira em alguns

mundos; uma proposição é uma verdade contingente se, e só se, é possível mas não é

necessária. Intuitivamente, um mundo possível é uma maneira completa como as coisas

poderiam ter sido, sendo o mundo actual - a maneira como as coisas de facto são - um

desses mundos, uma das maneiras como as coisas poderiam ter sido. O género de

possibilidade aludido na expressão “mundo possível” é definido por Kripke como sendo a

possibilidade metafísica.

As consequentes das condicionais (i), (ii) e (iii) devem ser entendidas como

proposições metafisicamente necessárias. A semântica dos mundos possíveis, introduzida

por Kripke, é, fundamentalmente, um instrumento heurístico de clarificação dos conceitos de

necessidade e de possibilidade metafísica, que se distinguem de outros géneros de

necessidade e possibilidade: necessidade e possibilidade epistémica, lógica e natural.

Como Kripke constantemente evidencia, aqueles conceitos não são do domínio epistémico,

já que a necessidade ou possibilidade metafísica de uma proposição nada tem a ver com o

modo como é conhecida. A necessidade epistémica não é mais do que a aprioridade. A

necessidade metafísica também se distingue da necessidade lógica, já que a primeira é

determinada pelo modo como as coisas são e a segunda por princípios lógicos (“leis” da

lógica): aproximadamente, uma proposição é logicamente necessária se, e só se, é uma

verdade lógica ou é uma consequência de uma verdade lógica. A noção de necessidade

metafísica é mais vasta que a de necessidade lógica (nem tudo o que é metafisicamente

necessário é logicamente necessário), e, consequentemente, a noção de possibilidade

metafísica é menos vasta que a de possibilidade lógica (nem tudo o que é logicamente

possível é metafisicamente possível). Assim, por exemplo, que eu seja oriunda dos meus

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actuais progenitores parece ser uma verdade metafisicamente necessária embora não seja

logicamente necessária, e, consequentemente, é logicamente possível mas não

metafisicamente possível que eu não seja oriunda dos meus actuais progenitores. Por

último, a necessidade metafísica poderá ser distinguida da necessidade nómica ou natural.

Esta é determinada pelas leis da natureza: uma proposição é nomologicamente necessária

se, e só se, é uma verdade natural (física, química ou biológica) ou uma consequência de

uma verdade natural. A necessidade metafísica, mesmo que nomologicamente orientada, é

determinada por considerações relativas ao modo como as coisas podem ou têm de ser,

não só no mundo actual com as suas leis, mas em outros mundos possíveis (regulados por

leis naturais possivelmente diferentes).

A verdade e inteligibilidade das premissas condicionais (i), (ii) e (iii) pressupõe a

verdade e a inteligibilidade de determinadas teses metafísicas e semânticas,

nomeadamente as teses da Identidade Transmundial, do Essencialismo e da Designação

rígida. O aparato conceptual da teoria da modalidade permite tornar mais precisas as teses

da Identidade Transmundial e da Designação Rígida. Permite ainda uma caracterização e

clarificação da noção clássica de essência individual em termos do conceito de propriedade

essencial: uma propriedade P é essencial a um objecto particular x quando,

necessariamente, se x existe, x tem P. A noção de propriedade essencial distingue-se da de

propriedade necessária: uma propriedade P é uma propriedade necessária de x quando,

necessariamente, x tem P; uma propriedade P é uma propriedade essencial de x quando,

necessariamente, se x existe, x tem P. Os meios conceptuais da teoria da modalidade são

suficientes para mostrar que, por exemplo, o atributo da existência é uma propriedade

essencial de qualquer objecto, embora não seja uma propriedade necessária de qualquer

objecto. O atributo da existência é uma propriedade essencial de qualquer objecto porque,

para qualquer objecto x e para qualquer mundo possível m, se x existe em m, então x

exemplifica em m o atributo da existência. No entanto, se o objecto em questão for um

existente contingente, isto é, um objecto particular que não existe em todos os mundos

possíveis, o atributo da existência não é uma propriedade necessária desse objecto.

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Uma questão que se põe é a de saber se o Essencialismo envolvido nos casos de

necessidades a posteriori resulta directamente do aparato lógico-semântico da teoria da

modalidade. Esta questão é analisada por Salmon (1982) que defende que a teoria lógico-

semântica da modalidade exige ser suplementada por certos argumentos de carácter

eminentemente metafísico para poder defender o Essencialismo substantivo patente nos

casos tipo (ii) e (iii). Estes são casos exemplificativos de propriedades essenciais não triviais

de objectos, isto é, de propriedades que não podem ser estabelecidas como exemplificadas

pelos objectos apenas com base em princípios lógico-semânticos, exigindo pressupostos

eminentemente metafísicos relativos ao modo de ser dos objectos em questão. Neste

sentido, a contribuição essencial da teoria da modalidade para a metafísica deve ser vista,

como refere Branquinho (1993; 1995), como consistindo na tarefa preliminar de tornar

precisas certas teses, cuja confirmação ou refutação pertence à metafísica.

Dada a sua importância na discussão do Necessário A Posteriori, deter-me-ei, neste

capítulo, nas três teses referidas acima: Identidade Transmundial, Essencialismo e

Designação Rígida.

A tese da Identidade Transmundial é a tese segundo a qual um e o mesmo indivíduo

ou particular pode existir em mais do que um mundo possível e ter propriedades

possivelmente diferentes em diferentes mundos. Essa tese é uma consequência da tese da

Designação Rígida para nomes próprios, segundo a qual o referente de um nome próprio é

constante de mundo para mundo. Por exemplo, se “Saul Kripke” é um designador rígido de

Kripke, isto é, se designa Kripke em todos os mundos em que Kripke existe, então Kripke é

um existente transmundial, isto é, pode existir em mais do que um mundo. Esta transição é

natural desde que a noção de designação rígida seja, como em Kripke, uma noção

modalmente orientada - uma noção formulada à custa do idioma dos mundos possíveis e

existência em mundos possíveis.

O Essencialismo, na sua aplicação a casos de modalidades de re1, defende que há

particulares que têm propriedades essenciais, propriedades que não poderiam deixar de
1
A modalidade de re, a qual é a modalidade atribuída a uma coisa (res), é rejeitada por alguns filósofos.
Analisarei na secção 2 deste capítulo algumas objecções à modalidade de re.

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possuir sem deixar de ser o que são. O Essencialismo pressupõe assim a Identidade

Transmundial. Dito de outro modo, a especificação das condições de verdade de uma

atribuição modal de re compromete-nos com a tese da Identidade Transmundial. Por

exemplo, para avaliar, com respeito ao mundo actual, uma atribuição modal de re como a

de que David Lewis é necessariamente humano, temos de avaliar a frase necessitada

“David Lewis é humano” em todos os mundos possíveis, o que implica, dada a designação

rígida, que identifiquemos David Lewis em cada um dos mundos. Por outro lado, a tese da

Identidade Transmundial não implica logicamente o Essencialismo: admitindo que David

Lewis é um existente transmundial, o máximo que parece que temos de admitir é a verdade

da atribuição de re de que David Lewis possivelmente existe.

A tese semântica da Designação Rígida, tal como é exposta por Kripke, apoia-se em

considerações metafísicas essencialistas. O teste de rigidez, ao introduzir, como condição

necessária para um designador “d” designar rigidamente um objecto x, o facto de x não

poder não ter sido d, é equivalente ao essencialismo, isto é, à atribuição de uma

propriedade essencial ao objecto referido. Por exemplo, a descrição “a pessoa oriunda dos

gametas G” é um designador rígido de Kripke se, e só se, a propriedade de ser oriundo dos

gametas G é uma propriedade essencial de Kripke. Assim, dado que a noção kripkeana de

rigidez é modalmente orientada, a tese da Designação Rígida implica o Essencialismo. No

entanto, o Essencialismo não exige a tese da Designação Rígida (embora esta possa ter

um papel auxiliar).

1. Identidade Transmundial

A tese da Identidade Transmundial é a doutrina segundo a qual um e o mesmo

indivíduo ou particular pode existir em mais do que um mundo possível e, portanto, pode

ter, em mundos possíveis não actuais, propriedades diferentes das que tem no mundo

actual. Esta tese é rejeitada por muitos filósofos que a consideram incoerente. Em sua

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substituição alguns propõem a tese de que os indivíduos estão limitados a um só mundo;

esta tese constitui um dos postulados da Teoria das Contrapartes de David Lewis.

1.1- Objecções e contra-objecções à Identidade Transmundial

Destaco aqui três dos principais argumentos que visam mostrar que a noção de

identidade transmundial é problemática, o mesmo não acontecendo com a tese de que cada

indivíduo existe apenas num só mundo; e discuto algumas das alegadas refutações de que

esses argumentos são alvo.

O primeiro argumento vai no sentido de mostrar que a noção de identidade

transmundial viola o princípio da Indiscernibilidade de Idênticos (também conhecido como

Lei de Leibniz); o segundo mostra que aquela noção é problemática pois conduz a

situações que admitem a não transitividade da identidade; o terceiro argumento toma uma

direcção diferente, apontando para a ininteligibilidade da noção de identidade transmundial

dada a ausência de um critério preciso para formar concepções de identidade e diferença

entre objectos ao longo de mundos.

O princípio da Indiscernibilidade de Idênticos é um princípio da Lógica da Identidade

segundo o qual objectos idênticos (no sentido de estrita ou numericamente idênticos) têm

exactamente as mesmas propriedades: se x=y então toda a propriedade de x é uma

propriedade de y e vice-versa; mais precisamente, para qualquer objecto x e para qualquer

objecto y, se x=y então, para qualquer propriedade P, x tem P sss y tem P. Ora, se

admitimos que um e o mesmo indivíduo pode existir em mais do que um mundo possível,

então esse indivíduo pode (numa dada ocasião) não ter em outros mundos possíveis certas

propriedades que tem no mundo actual, bem como ter em outros mundos possíveis

propriedades que não tem no mundo actual. Daqui resulta, violando o princípio da

Indiscernibilidade de Idênticos, que objectos numericamente idênticos não têm as mesmas

propriedades (supondo que a identidade transmundial é estrita ou numérica).

Usando o exemplo de Chisholm (1979:80-87), consideremos Adão no nosso mundo,

m1, e alteremos ligeiramente a sua descrição de modo a permitir-lhe viver 931 anos em vez

17
de 930; chegamos assim à descrição de um outro mundo possível m2 onde Adão (ele

próprio) vive 931 anos. A questão é a seguinte: como pode Adão no nosso mundo, m1, ser

a mesma pessoa que Adão em m2 sem violar o princípio da Indiscernibilidade de Idênticos?

Adão em m1 e Adão em m2 não têm as mesmas propriedades, pois Adão em m1 tem a

propriedade de viver 930 anos e Adão em m2 não tem essa propriedade pois tem a

propriedade de viver 931 anos. Assim, parece que Adão em m1 e Adão em m2 são pessoas

diferentes, contrariando a tese da Identidade Transmundial

Este argumento contra a noção de identidade transmundial poderia também ser usado

para estabelecer a impossibilidade da identidade através do tempo: como pode Adão com

930 anos ser a mesma pessoa do que a pessoa que comeu o fruto proibido se o primeiro é

velho e o segundo novo?.

O argumento poderá ser contrariado se as propriedades dos objectos em questão

forem temporalmente indexadas ou relativizadas a tempos (no caso da identidade

transtemporal) ou modalmente indexadas ou relativizadas a mundos (no caso da identidade

transmundial) Assim, retomando o exemplo acima, podemos dizer que Adão com a idade

de 930 anos pode ser a mesma pessoa que o homem que comeu o fruto proibido, pois

Adão-em-t (altura em que come o fruto proibido) tem a propriedade de ser novo em t, e

Adão-em-t´(com 930 anos) tem a propriedade de ser velho em t´. Logo, não há aqui

qualquer propriedade - e.g. ser novo - que Adão-em-t tenha e Adão-em-t´não tenha. Adão-

em-t tem a propriedade de ser novo em t, mas não é o caso que Adão-em-t´ não tenha essa

propriedade (a propriedade que ele não tem é a de ser novo em t´). Do mesmo modo para

os diferentes mundos possíveis: não há qualquer propriedade - e.g. viver 930 anos - que

Adão-em-m1 tenha e Adão-em-m2 não tenha. Adão-em-m1 tem a propriedade de viver 930

anos em m1, e do facto de Adão-em-m2 ter a propriedade de viver 931 anos em m2, não se

segue que ele não tenha a propriedade de viver 930 anos em m1.

A refutação deste primeiro argumento contra a tese da Identidade Transmundial

consiste assim em mostrar, através da indexação de propriedades a mundos, que esta tese

18
é compatível com o princípio da Indiscernibilidade de Idênticos; e que um mesmo indivíduo

pode ter, em diferentes mundos, diferentes propriedades acidentais.

O segundo argumento contra a noção de identidade transmundial procura mostrar

que, mesmo admitindo que esta noção não viola a Lei de Leibniz, ela é incompatível com a

transitividade da identidade, isto é, conduz a situações que violam a transitividade da

identidade. A transitividade da identidade poder-se-á formular deste modo: para quaisquer

objectos x,y,z, se x é idêntico a y e y é idêntico a z, então x é idêntico a z.

Suponhamos que existem dois indivíduos, x e y, em m1, no mundo actual;

suponhamos que, em m2, x e y alteram ligeiramente algumas das suas propriedades, e esta

alteração gradual vai-se processando de m2 até mn, de tal modo que em mn todas as

propriedades de x são propriedades de y em m1 e todas as propriedades de y são

propriedades de x em m1. Suponhamos que x-em-m1 é Jorge Sampaio e y-em-m1 é

Guterres. Ora, nesta situação teríamos que:

- Jorge Sampaio-em-m1 = Jorge Sampaio-em-m4, pois Jorge Sampaio-em-m4,

apesar das alterações sofridas, tem ainda muitas propriedades de Jorge Sampaio-em-m1.

-Jorge Sampaio-em-m4 = Jorge Sampaio-em-mn, pois Jorge Sampaio-em-mn apesar

das alterações sofridas tem ainda muitas propriedades de Jorge Sampaio-em-m4.

- Jorge Sampaio-em-m1 ¹ Jorge Sampaio-em-mn, pois Jorge Sampaio-em-mn não

tem nenhuma propriedade de Jorge Sampaio-em-m1 (pois tem todas as propriedades de

Guterres-em-m1).

Esta situação contraria a transitividade da identidade.

A refutação deste argumento vai no sentido de negar a premissa usada de que x-em-

m1 seja afinal diferente de x-em-mn e que y-em-m1 seja afinal diferente de y-em-mn. Dadas

as essências individuais ou ecceidades de x e y, x-em-mn não pode ser um objecto

diferente de x-em-m1 pois x em todos os mundos em que existe tem, por exemplo, a

propriedade de ser idêntico a x; o mesmo acontecendo com y. Deste modo, a suposição de

que x-em-mn não preserva nenhuma das propriedades de x-em-m1 é falsa.

19
O terceiro argumento contra a noção de identidade transmundial faz apelo à alegada

ausência de um critério preciso para formar concepções de identidade e diferença através

dos mundos, o que militaria contra a coerência daquela noção.

A questão que se põe é a de determinar que indivíduo, num mundo possível dado, m,

é o indivíduo x. Parte-se de um existente actual e pergunta-se pelo critério que nos permite

identificá-lo, ou re-identificá-lo, num mundo não actual. Não nos podemos basear nas

propriedades que usamos normalmente para descrever x, pois não há garantia de que

alguém em m tenha essas propriedades, e se alguém as tem, não há garantia de que seja

x. Ora, se não podemos identificar x em m, então não compreendemos a asserção de que x

existe em m; isto é, se não o podemos identificar, não sabemos do que estamos a falar ao

dizer que x existe nesse mundo, ou que tem nesse mundo esta ou aquela propriedade.

Assim, porque não há um critério que nos permita identificar um indivíduo de mundo para

mundo, a noção de identidade transmundial é ininteligível.

O argumento em questão é de carácter epistemológico, já que exige um critério

efectivo para formar concepções acerca da identidade de indivíduos através dos mundos.

Na ausência desse critério não há, segundo Chisholm, nenhuma boa razão para supôr que

particulares têm propriedades essenciais.

Segundo Plantinga, o argumento em questão exige um critério que nos permita

identificar um particular de mundo para mundo; e exige que esse critério deve mencionar

algumas propriedades que o particular tem em cada mundo no qual existe, propriedades

que devem ser, utilizando a expressão de Plantinga (1979), “empiricamente manifestas”.

Ora, o critério epistemológico tem, segundo Plantinga e Kripke, origem numa imagem

errónea acerca dos mundos possíveis e acerca da identificação de particulares nesses

mundos. Imaginamo-nos espreitando (como se fosse através de um telescópio) para um

outro mundo e, observando o comportamento dos seus habitantes, perguntamos se um

indivíduo, digamos Saul Kripke, existe aí. Ora, mundos possíveis não são descobertos mas

estipulados; e, para admitir que há um mundo possível no qual Saul Kripke não escreveu

20
Naming and Necessity, não preciso de identificar nenhuma propriedade “empíricamente

manifesta” que ele tem nesse mundo (tal como a sua aparência física ou a sua morada).

A réplica de Plantinga (1979) ao argumento baseia-se na possibilidade de encontrar

certas propriedades essenciais de um dado particular, propriedades que não são

“empiricamente manifestas”. Tomemos qualquer propriedade P e mundo m tal que x tem P

em m, então a propriedade de ter P- em-m é uma propriedade essencial de x. Por exemplo,

embora a propriedade de ter escrito Naming and Necessity seja uma propriedade

contingente de Kripke - Kripke poderia não ter escrito Naming and Necessity- , a

propriedade de ter realmente (no mundo actual) escrito Naming and Necessity é uma

propriedade essencial de Kripke - em todo o mundo possível em que Kripke existe, ele

escreveu Naming an Necessity no mundo actual.

A réplica de Kripke (1988: 46-47) vai noutra direcção, evidenciando a confusão entre a

questão epistemológica e a questão metafísica patente no argumento que exige um critério

qualitativo para formar concepções de identidade e diferença através dos mundos. A

questão da identidade transmundial é aí vista como uma questão epistemológica, relativa

aos meios de conhecimento e de re-identificação de um particular em diferentes mundos

possíveis. Ora, a questão da identidade transmundial não é epistemológica mas metafísica,

e, mesmo que houvesse um conjunto de condições necessárias e suficientes para alguém

ser Saul Kripke, não procuramos essas condições antes de perguntar, por exemplo, se

podia ter acontecido Saul Kripke não ter escrito Naming and Necessity. Isto é, começamos

com os objectos que temos no mundo actual, e, depois, perguntamos se certas coisas

podiam ter sido verdadeiras desses objectos.

Refutados os argumentos contra a Tese da Identidade Transmundial, os argumentos a

favor da Teoria dos Indivíduos Limitados a um Mundo perdem a sua força, já que ela

provinha do carácter supostamente incoerente da noção de identidade transmundial. A ideia

base daquela teoria é a de que nenhum objecto existe em mais do que um mundo, o que

implica algo que vai contra as nossas intuições modais pré-filosóficas, em particular a ideia

21
de que nenhum objecto poderia deixar de ter qualquer uma das propriedades que de facto

tem, que todas as propriedades são essenciais.

1.2- Teoria das Contrapartes e algumas objecções

A Teoria das Contrapartes de David Lewis parte da ideia de que cada indivíduo existe

num só mundo. Aquilo que é admitido é que cada indivíduo pode ter contrapartes noutros

mundos possíveis, mas a relação do indivíduo com as suas contrapartes não é a identidade.

Poder-se-á dizer que se situa a meio caminho entre a Tese da Identidade Transmundial e o

essencialismo extremo da Teoria dos Indivíduos Limitados a um Mundo: nega que

indivíduos existam em mais do que um mundo, mas acomoda as intuições pré-filosóficas

que motivam a tese da Identidade Transmundial. A estratégia é defender que, embora

cada indivíduo esteja limitado a um só mundo, um indivíduo num mundo possível pode ter

uma contraparte noutro mundo, contraparte essa que pode possuir nesse mundo

propriedades que o original não tem no seu mundo.

A disparidade entre as teorias, a da Identidade Transmundial e a da das Contrapartes,

poderá ser evidenciada pelo modo contrastante como analisam a modalidade de re. Estas

modalidades são tipicamente expressas em frases como éx é necessariamente,

possivelmente, contingentemente Fù. Nestas frases, as modalidades expressas pelos

respectivos advérbios de modo são atribuídas a uma coisa ou a cada uma das coisas

pertencentes a um universo de coisas. Enquanto que na semântica proposta por Kripke a

análise da modalidade de re está comprometida com a tese da Identidade Transmundial, na

Teoria das Contrapartes a tese da Identidade Transmundial é rejeitada e a modalidade de re

é analisada em termos de uma certa relação transmundial entre indivíduos, a relação de ser

uma contraparte de.

Na semântica proposta por Kripke, a determinação de condições de verdade para

frases de re, como por exemplo “Possivelmente David Lewis é português”, implica

logicamente a tese da Identidade Transmundial. Aquela frase é verdadeira se, e só se, há

22
pelo menos um mundo possível no qual David Lewis (ele mesmo) existe e é português. Na

semântica da Teoria das Contrapartes, a tese da Identidade Transmundial é substituída pela

tese de que nenhum indivíduo ou particular pode existir em mais do que um mundo, e a

análise da modalidade de re é feita em termos de uma relação transmundial entre um

indivíduo y num mundo m´ e um indivíduo x num mundo m quando y em m´ é uma

contraparte de x em m. Assim, a frase acima é verdadeira se, e só se, pelo menos uma

contraparte de David Lewis em pelo menos um mundo possível é português.

A relação Contraparte de é, na Teoria das Contrapartes, o substituto da relação de

identidade entre coisas em diferentes mundos. Embora seja uma relação transmundial entre

particulares, não é uma relação de identidade. Embora seja uma relação reflexiva não é

uma relação de equivalência, pois não é transitiva nem simétrica (Ver Lewis 1979: 182-189).

A disparidade lógica e metafísica entre a Teoria das Contrapartes e a Teoria da

modalidade de Kripke reflecte-se assim nas respectivas análises das condições de verdade

para frases que exprimem necessidades de re. A frase “Kripke é necessariamente uma

pessoa” é verdadeira, na Teoria das Contrapartes, se, e somente se, todas as contrapartes

de Kripke em todos os mundos possíveis exemplificam a propriedade de ser uma pessoa; a

mesma frase é verdadeira, na Teoria da modalidade de Kripke, se, e só se, Kripke (ele

mesmo) exemplifica aquela propriedade em todos os mundos em que existe.

Mostrei que a Teoria das Contrapartes rejeita a tese da Identidade Transmundial e

substitui-a pela doutrina segundo a qual nenhum indivíduo ou particular pode existir em

mais do que um mundo, embora possa ter contrapartes noutros mundos possíveis. O mais

importante argumento a favor daquela doutrina é o célebre problema da identidade

transmundial: na medida em que a noção de identidade transmundial traz problemas, o

melhor a fazer é substituí-la pela tese segundo a qual os indivíduos estão limitados a um

mundo. Ora, as objecções à noção de identidade transmundial parecem não ser suficientes

para destruir a sua plausibilidade.

Vejamos agora a justeza de algumas das objecções à Teoria das Contrapartes.

23
Kripke, em “Naming and Necessity”, argumenta contra a Teoria das Contrapartes no

sentido em que ela deturpa a nossa compreensão intuitiva de frases modais. Assim, por

exemplo, intuitivamente, quando dizemos que Lewis poderia não se ter dedicado ao

problema da modalidade, queremos dizer algo acerca de Lewis e não algo acerca de uma

pessoa diferente, mesmo que muito semelhante a Lewis, mais semelhante do que a

qualquer outra pessoa nesse mundo. O alvo da crítica de Kripke não é apenas a Teoria das

Contrapartes, mas a concepção de que mundos possíveis são como países estranhos que

apenas podem ser dados por descrições qualitativas, e que, portanto, quer a relação de

identidade quer a relação contraparte de, devem ser estabelecidas em termos qualitativos.

Outra objecção à Teoria das Contrapartes é a de que esta teoria estaria comprometida

com a seguinte doutrina aparentemente implausível: a de que qualquer propriedade

exemplificada por um existente actual seria uma propriedade essencial desse existente, já

que seria uma propriedade que esse existente teria em qualquer mundo possível em que

existe. Como cada existente só existe num mundo, a condição para a referida propriedade

ser essencial ao referido existente seria vacuamente verificada relativamente a qualquer

mundo; consequentemente, nenhum objecto pode deixar de ter as propriedades que de

facto tem e, portanto, proposições nas quais se atribui a um existente actual uma

propriedade que ele não tem, são necessariamente falsas.

Esta objecção não parece justa já que a Teoria das Contrapartes preserva a divisão

intuitiva entre propriedades essenciais e acidentais de um particular, embora essas

propriedades sejam explicadas em termos da relação Contraparte de. Assim, de um modo

simplificado, uma determinada propriedade é essencial a um existente actual se fôr

exemplificada por todas as suas contrapartes; e uma determinada propriedade é acidental a

um existente actual se não fôr exemplificada por alguma das suas contrapartes. Deste

modo, a Teoria das Contrapartes não é obrigada a defender que cada propriedade de um

existente actual lhe é essencial. Do mesmo modo, proposições nas quais se atribui a um

existente actual uma propriedade que ele de facto não tem já não são necessariamente

falsas, pois esse existente pode ter contrapartes que exemplificam essa propriedade em

24
outros mundos; assim a proposição “ David Lewis é um filósofo português” já não é

necessariamente falsa mas contingentemente falsa, pois a sua verdade num dado mundo

não requer a existência, nesse mundo, daquilo que é denotado por “David Lewis” neste, já

que “David Lewis” denota diferentes pessoas em diferentes mundos, denota as pessoas

que, nesses mundos, são suas contrapartes .

A Teoria das Contrapartes visa ultrapassar os supostos problemas da Identidade

Transmundial recusando a tese de que um indivíduo pode existir em mais do que um

mundo. Por outro lado, explicando a modalidade de re através da relação Contraparte de,

procura evitar que qualquer propriedade de um existente actual seja uma propriedade que

lhe é essencial. Plantinga (1979: 146-165) contra-argumenta defendendo que há casos de

modalidades de re que resistem ao tratamento em termos da Teoria das Contrapartes: uma

propriedade que David Lewis exemplifica essencialmente ou necessariamente é a de ser

idêntico a David Lewis; ora, na interpretação da modalidade de re pela Teoria das

Contrapartes, esta propriedade não pode ser exemplificada essencialmente, isto é,

nenhuma das contrapartes de David Lewis exemplifica a propriedade de ser idêntico a

David Lewis, já que as contrapartes de David Lewis não são David Lewis (ele mesmo) mas

suas contrapartes. Todavia, esta contra-argumentação parece cometer a falácia de

pressupôr aquilo que se quer provar, isto é, que uma propriedade essencial de um objecto é

uma propriedade que esse objecto (e não a sua contraparte) possui necessariamente.

A última e mais forte objecção que se coloca à Teoria das Contrapartes é a de que ela

é inconsistente com o teorema da habitual lógica modal quantificada, conhecido como Tese

da Necessidade da Identidade. Esta é, informalmente, a tese segundo a qual aquilo que é

na realidade um objecto não poderia ser dois objectos. A fórmula:

(NI) ("x) ("y) [ x=y ® ÿ x=y ]

é a tese da Necessidade da Identidade, cuja dedução, na lógica modal quantificada, é

executável utilizando princípios lógicos relativamente incontroversos (a reflexividade

necessária da identidade e a indiscernibilidade de idênticos). A fórmula:

25
(NI*) a=b ® ÿ a=b

em que a e b são constantes individuais, é uma consequência lógica de (NI).

(NI*) é uma fórmula válida na habitual semântica para a Lógica Modal Quantificada e

é, informalmente, a tese segundo a qual qualquer frase de identidade verdadeira na qual

ocorrem apenas designadores rígidos, é necessariamente verdadeira. Assim, se “a = b” é

verdadeira no mundo actual, em ma, e se a e b são designadores rígidos, então “a” e “b”

co-referem não só em ma como em todos os mundos em que o objecto referido existe; logo,

se “a = b” é verdadeira, é necessariamente verdadeira.

Mas (NI*) não é uma fórmula válida na Teoria das Contrapartes, pois a sua

consequente é falsa em pelo menos uma interpretação. Suponha-se que em ma a frase

antecedente de (NI*) é verdadeira, que a e b referem o mesmo objecto. A frase

consequente de (NI*) pode ser falsa se, como é admitido pela Teoria das Contrapartes, o

objecto referido por a (e por b) em ma tem, em m1, duas contrapartes. Assim, como um e

um só objecto pode ter objectos distintos como contrapartes num certo mundo, a

consequente de (NI*) é falsa (numa interpretação deste género).

A Teoria das Contrapartes é assim inconsistente com a Necessidade da Identidade, o

que, segundo algumas pessoas, milita contra a referida teoria.

2. Essencialismo e modalidade de re

Começarei por mostrar, nesta secção, que o Essencialismo aplicado a casos de

modalidade de re, o qual defende que alguns objectos têm certas propriedades ou atributos

que são essenciais e outras propriedades ou atributos que são acidentais, é um

pressuposto do Necessário A Posteriori. Discutirei, em seguida, algumas objecções à

modalidade de re, isto é, à atribuição de propriedades modais a particulares. Concluirei esta

secção evidenciando a especificidade do Essencialismo contemporâneo (kripkeano)

relativamente ao tradicional (aristotélico).

26
2.1- O suporte essencialista do Necessário A Posteriori

Já referi atrás que quer a versão forte quer a fraca da tese kripkeana exigem que seja

estabelecida a premissa condicional de que certas proposições acerca de objectos do

mundo físico, sendo verdadeiras, são necessariamente verdadeiras. Trata-se de uma

premissa essencialista, segundo a qual um certo objecto tem certas propriedades

essenciais, isto é, certas propriedades que esse objecto não poderia deixar de possuir.

Exemplifiquei aquela premissa com três tipos de casos Kripkeanos de necessidades a

posteriori, que volto a enumerar:

(i) Se Véspero é Fósforo, então necessariamente Véspero é Fósforo.

(ii) Se a água é H2O, então necessariamente a água é H2O.

(iii) Se uma determinada pessoa p é oriunda dos gametas G, então necessariamente

p é oriunda dos gametas G.

Admitindo a distinção entre essencialismo trivial e não trivial (Salmon 1982), poder-se-

á distinguir a premissa condicional (i) das premissas condicionais (ii) e (iii): enquanto que a

premissa condicional (i) é uma premissa essencialista trivial, as premissas condicionais (ii) e

(iii) são premissas essencialistas não triviais.

Embora a definição de propriedades essenciais não triviais seja problemática, poder-

se-á caracterizá-las, seguindo Salmon (1982), por oposição às propriedades essenciais

triviais. Estas são propriedades essenciais que podem ser estabelecidas apenas com base

em considerações de natureza lógico-semântica, isto é, nos casos em questão, por meio da

tese da designação rígida de nomes, de princípios lógicos relativamente incontroversos e

alguma semântica elementar. Assim, os casos triviais de verdades necessárias a posteriori

são casos que resultam de uma premissa essencialista trivial, isto é, de uma premissa que

pode ser derivada de teses lógico-semânticas, como é o caso de (i). Se a frase “Véspero é

Fósforo” é verdadeira, e se “Véspero” e “Fósforo” são designadores rígidos, segue-se que

“Véspero” e “Fósforo” designam o mesmo objecto em todos os mundos possíveis em que o

referido objecto existe; logo, a frase “Véspero (se existe) é Fósforo” é necessariamente

verdadeira. Acrescente-se que a frase de identidade “Véspero é Fósforo” é

27
necessariamente verdadeira se, e só se, Véspero, se existe, é tal que não podia deixar de

ter a propriedade de ser idêntico a Fósforo.

A admissão do essencialismo é a admissão da legitimidade da divisão das

propriedades ou atributos de alguns objectos em propriedades acidentais (propriedades que

um objecto de facto possui mas que poderia não possuir) e essenciais (propriedades sem

as quais o objecto não poderia existir). O aparato lógico-semântico dos mundos possíveis

permite clarificar as noções de propriedade essencial e acidental: uma propriedade P é uma

propriedade essencial de um objecto x se, e só se, em qualquer mundo possível, se x

existe nesse mundo possível, x possui nesse mundo possível a propriedade P. Embora os

meios conceptuais da teoria lógica da modalidade sejam suficientes para demonstrar a

verdade de atribuições de certas propriedades essenciais a objectos, o que torna triviais

essas propriedades essenciais, não são suficientes para demonstrar a existência de outras

propriedades essenciais, o que torna estas em não triviais. Assim, daquele aparato

conceptual (com a tese da designação rígida de nomes incluída) resulta (i), que a

propriedade de ser idêntico a Fósforo é uma propriedade essencial trivial de Véspero. Mas

não resulta (ii), que H2O é uma propriedade essencial da água, nem (iii) que a propriedade

de ser oriundo dos gametas G é uma propriedade essencial do oriundo dos gametas G. A

defesa do essencialismo substantivo exige uma suplementação da teoria lógica da

modalidade com certos argumentos de carácter eminentemente metafísico.

Assim, a admissão de certas propriedades essenciais triviais de objectos deduz-se da

tese semântica da designação rígida de nomes e consequente admissão de existentes

transmundiais, coadjuvada por princípios lógicos relativamente incontroversos e por alguma

semântica modal. Tal não acontece com o essencialismo não trivial, isto é, com a atribuição

de propriedades essenciais não triviais a objectos. Admitindo que “água” é um designador

rígido de água, não se segue disso ( tomado em conjunto com outros princípios de carácter

lógico-semântico) que a composição química actual da água seja uma propriedade

essencial da água. Para que esta conclusão se siga, para estabelecer (ii), temos de supôr a

premissa essencialista independente segundo a qual a água, existindo, não poderia ter uma

28
composição química diferente da que tem actualmente. Do mesmo modo, dada a origem

biológica actual de Kripke, não se segue disso através de princípios lógico-semânticos que

a origem actual de Kripke seja uma propriedade essencial de Kripke. Para que esta

conclusão se siga, para estabelecer (iii), temos de supôr a premissa essencialista segundo

a qual um indivíduo não poderia ter outra origem biológica senão a que tem actualmente.

2.2- Modalidade de re e algumas objecções.

Os casos exemplificados acima do Necessário A Posteriori exigem a admissão da

modalidade de re, isto é, da modalidade (necessidade, possibilidade, contingência)

atribuída a uma coisa (res).

A rejeição da modalidade de re é por vezes argumentada com base na ideia de que a

modalidade de re se não distingue da de dicto, sendo redutível a esta. Ora, a modalidade

de re distingue-se sintáctica e semanticamente da modalidade de dicto. A modalidade de re

distingue-se da de dicto pelo facto dos conceitos modais se aplicarem a coisas extra-

linguísticas, e não a frases ou proposições. Assim é que parece clara a distinção entre:

(1) Necessariamente, alguma coisa existe

(2) Alguma coisa necessariamente existe

(1) é de dicto pois diz que a proposição que alguma coisa existe é uma verdade

necessária, isto é, verdadeira em todos os mundos possíveis. (2) é de re pois diz que

algumas coisas têm a propriedade de existir necessariamente, de existir em todos os

mundos possíveis. (1) pode ser verdadeira e (2) falsa. A verdade de (1) requer apenas que

cada mundo possível contenha pelo menos um objecto. A verdade de (2) requer que pelo

menos uma coisa actualmente existente também exista em todos os mundos possíveis.

Na linguagem da lógica modal quantificada, a distinção de dicto/de re é representável

como sendo uma distinção quanto ao âmbito relativo do operador modal e do quantificador.

Assim, enquanto que em (1) o operador modal da necessidade tem âmbito longo em

relação ao quantificador, em (2) tem âmbito curto. Seguindo Forbes (1986: 48), uma fórmula

com operadores modais exprime uma modalidade de re se, e só se, dentro do âmbito de

29
um desses operadores está (a) uma constante individual; ou (b) uma variável livre; ou (c)

uma variável ligada por um quantificador situado fora do âmbito do operador. De outro

modo, a fórmula exprime uma modalidade de dicto.

Só as fórmulas de re são sensíveis à identidade transmundial de objectos. Assim, por

exemplo, avaliando “ÿ (esta mesa é feita de madeira)” no mundo actual, temos de avaliar

“esta mesa é feita de madeira”, em todos os mundos, o que requer que sejamos capazes de

identificar aquela mesa em cada mundo.

Para os filósofos que não aceitam a lógica modal quantificada, nomeadamente Quine,

a distinção de re / de dicto é ininteligível. As dificuldades erguidas contra a modalidade de

re originam-se na suposição de que devemos tratar “ÿ” como um predicado metalinguístico

disfarçado. Tal suposição poderia ser contra-argumentada invocando o facto de que

operadores formalmente análogos, nomeadamente os operadores temporais, não são

assim tratados. Veja-se, por exemplo, as seguintes frases, nas quais o operador temporal

tem, como o operador modal nos casos (1) e (2), âmbitos diferentes:

(1*) “Futuramente há homens imortais”.

(2*) “Há homens futuramente imortais”.

A rejeição da distinção de dicto / de re referida anteriormente é argumentada com

base na ideia de que a verdade ou falsidade de uma atribuição de re depende da maneira

de identificar linguisticamente os indivíduos. Assim, se se pressupõe, seguindo Quine, que a

necessidade reside no modo como falamos das coisas, e não nas próprias coisas de que

falamos, não faz sentido atribuir propriedades modais a coisas independentemente do seu

modo de descrição (ou modo de referência). A ideia é a de que a atribuição de propriedades

modais a coisas varia em função do modo como elas são descritas: sob a descrição D, e.g.,

“o marido de Maria José Ritta”, x (Jorge Sampaio) tem necessariamente a propriedade P

(ser casado); mas sob a descrição D´, e.g., “o Presidente da República Portuguesa”, x não

tem necessariamente a propriedade P. Esta ideia de que não faz sentido atribuir

propriedades modais a coisas independentemente da sua descrição parece ser defendida a

30
partir da pressuposição de que a atribuição de propriedades a coisas depende de factores

linguísticos: x tem a propriedade P sob a descrição D e x não tem a propriedade P sob a

descrição D´. Ora, aquela pressuposição é intuitivamente falsa -Jorge Sampaio exemplifica

a propriedade de ser casado independentemente do modo como é descrito. É plausível

defender-se que considerações linguísticas são factores irrelevantes para a atribuição de

propriedades a coisas, isto é, as coisas exemplificam ou não certas propriedades

independentemente do modo como são descritas.

A resistência inicial aos exemplos específicos de propriedades essenciais não triviais

baseia-se, segundo Kripke, na confusão entre necessidade e analiticidade. Uma frase

verdadeira é analítica se a sua verdade depende só do significado das palavras que contem

e do modo como estas estão combinadas na frase ( e não de factos não linguísticos do

mundo externo). A frase “o marido de Maria José Ritta é casado” é analítica. Defende-se

tradicionalmente que uma frase exprime uma proposição necessária só se é analítica, e que

uma entidade tem uma propriedade essencial só se a frase, expressando a proposição que

a coisa tem a propriedade, é analítica. Assim, a analiticidade é vista como uma condição

necessária da necessidade. Ora, argumenta Kripke, estes conceitos não são sinónimos: a

necessidade é uma modalidade alética e a analiticidade uma modalidade semântica.

Contrariamente à analiticidade, que caracteriza proposições em função do significado das

palavras contidas nas frases que a expressam, a necessidade caracteriza proposições em

função do modo como são verdadeiras, se são verdadeiras em todos os mundos possíveis.

Os casos típicos de necessidades a posteriori são também casos típicos de verdades

necessárias que não são analíticas.

Outra reacção, menos niilista, à modalidade de re é dada por David Lewis, cuja

perspectiva foi discutida acima. O problema é dito originar-se na suposta ininteligibilidade do

conceito de identidade transmundial pelo que podemos salvar a modalidade de re se a

avaliação de frases de re não envolver a relação de identidade transmundial, mas a relação

contraparte de.

31
2.3- Essencialismo contemporâneo

O essencialismo contemporâneo, nomeadamente o defendido por Kripke, embora

tenha sido apelidado de “essencialismo aristotélico”, distingue-se do essencialismo de

Aristóteles. Charlotte Witt (1989:180-198) evidencia essa diferença. O Essencialismo de

Kripke diz respeito a propriedades essenciais de um objecto, as quais são determinadas em

função da identidade transmundial. O essencialismo aristotélico diz respeito a essências

que constituem a causa do ser das substâncias, sendo determinado por uma teoria acerca

do ser, da substância. Esta diferença básica conduz a que nem todas as propriedades

consideradas essenciais por Kripke seriam admitidas na teoria da essência de Aristóteles, e

nem tudo o que constitui a essência aristotélica é considerado essencial por Kripke.

Vejamos, sucintamente, de que modo a teoria aristotélica das essências de

substâncias individuais materiais se distingue da teoria kripkeana das propriedades

essenciais de indivíduos.

Kripke discute em “Naming and Necessity” as propriedades essenciais de pelo menos

duas espécies de objectos: indivíduos (e.g. um ser humano, um tigre, uma mesa, etc) e

substâncias naturais (e.g. a água, o ouro, etc). Relativamente a indivíduos, menciona três

géneros de propriedades essenciais (1988: 114-115): 1ª- propriedades de origem: o pedaço

de madeira do qual uma mesa é originariamente feita é uma propriedade essencial desta

mesa; o espermatozóide e o óvulo do qual se originou uma determinada pessoa é uma

propriedade essencial da pessoa; 2ª- propriedades categoriais: ser uma mesa é uma

propriedade essencial de uma mesa; ser uma pessoa é uma propriedade essencial de uma

pessoa; 3ª- propriedades de constituição material: a constituição material originária de

alguns objectos é uma propriedade essencial desses objectos. Estes três géneros de

propriedades essenciais correspondem a três dos quatro tipos de causas aristotélicas-

respectivamente, causa eficiente, formal e material. Ora, apenas a causa formal

(identificada com a final) é essencial, para Aristóteles; a causa eficiente e a causa material

não estão incluídas na definição aristotélica de substâncias materiais.

32
Kripke chega a esta listagem de propriedades essenciais de indivíduos referindo um

objecto individual por meio da designação rígida e perguntando que propriedades esse

objecto tem de possuir para ser o que é. Assim, em Kripke, as propriedades essenciais de

um indivíduo são determinadas em função da identidade transmundial: uma propriedade

essencial de x é uma propriedade que x não poderia deixar de possuir sem deixar de ser x .

A ideia de Kripke, em oposição a Aristóteles para quem a teoria da essência decorre de

uma teoria acerca de indivíduos (substâncias), é a de que podemos determinar as

propriedades essenciais de indivíduos independentemente de se ter uma teoria metafísica

acerca do indivíduo. Kripke rejeita duas análises metafísicas acerca do que são objectos

individuais, não oferecendo nenhuma análise em alternativa. Rejeita a concepção segundo

a qual um indivíduo é um feixe de propriedades, bem como a concepção oposta segundo a

qual um indivíduo é um “particular absoluto”, isto é, um “substracto sem propriedades”. A

primeira concepção é rejeitada porque é uma consequência de um erro no modo de

conceber os mundos possíveis e a identidade transmundial de indivíduos, o qual conduz à

ideia de identificar um particular em outros mundos possíveis em termos puramente

qualitativos. Este procedimento é inadequado, incorrecto e desnecessário. É inadequado e

incorrecto porque particulares não são feixes de propriedades. É desnecessário porque

começamos com os objectos que temos e identificamos no mundo actual, e perguntamos

em seguida se certas coisas poderiam ser verdadeiras desses objectos.

Ora, o essencialismo de Aristóteles, contrariamente ao de Kripke, não se baseia na

ideia da identidade transmundial de um indivíduo, mas emerge da definição de substância

individual: as essências são especificadas dentro de uma teoria da substância. Esta

divergência de perspectiva traduz-se numa divergência na determinação do que está ou

não incluído na essência de um indivíduo. Assim, as propriedades da origem não seriam

admitidas por Aristóteles, já que a essência em Aristóteles não se baseia na identidade do

indivíduo, mas repousa na sua noção de definição, que nada tem a ver com a origem do

objecto. Poder-se-á acrescentar que, se se admite que a propriedade essencial da origem é

uma propriedade essencial que é peculiar a um indivíduo - cada ser humano tem uma

33
diferente propriedade da origem2-, então esta propriedade não pode estar incluída numa

essência aristotélica. Não pode porque, em Aristóteles, as essências individuais de dois

seres humanos, por exemplo, podem ser especificadas numa única definição: a definição de

um ser humano. As propriedades da constituição material também não seriam admitidas por

Aristóteles, dado que a definição de uma substância material (composto de matéria e forma)

é a definição da sua forma e não da sua matéria, pois é a forma que é a causa do ser e da

actualidade da substância e é ela que determina o que a matéria é

Com esta breve contraposição ao essencialismo aristotélico pretendi apenas

evidenciar alguns aspectos específicos do essencialismo de Kripke, nomeadamente que ele

se funda numa teoria metafísica da modalidade, isto é, nas propriedades que um objecto,

indivíduo ou substância, existindo, não poderia deixar de possuir. A questão é: poderia a

água deixar de ter a composição química que tem no mundo actual? Poderia uma

determinada pessoa x ter uma origem (biológica) diferente da que tem no mundo actual?. A

maioria das propriedades exemplificadas são propriedades descobertas cientificamente,

pelo que a questão deverá ser reformulada. Dada a descoberta científica de que a água

tem a composição química H2O, poderia a água ter uma composição química diferente?

Dado o nosso conhecimento acerca da origem de uma determinada pessoa x, que x tem

origem nos gametas G, poderia x ter uma origem diferente?. As propriedades

exemplificadas, sendo descobertas pela ciência, são determinadas pelas leis da natureza.

Ora, afirmá-las como propriedades essenciais dos respectivos objectos é negar a

possibilidade de mundos possíveis nos quais a água, existindo, não tenha a composição

química H20 e nos quais aquela pessoa, existindo, tenha uma origem diferente da que tem.

Esta negação veicula uma orientação metafísica de base naturalista.

Do Essencialismo contemporâneo e da sua orientação naturalista resulta assim ser

correcta a afirmação de que a ciência faz mais do que descobrir simples correlações já que

descobre o que as coisas podem ou têm de ser, descobre verdades necessárias, descobre
2
Mostrarei, no capítulo III desta dissertação, que o fenómeno dos gémeos idênticos levanta dificuldades a esta
perspectiva segundo a qual a propriedade da origem é uma propriedade essencial individualizadora. O
fenómeno dos gémeos idênticos exemplifica uma situação em que a propriedade essencial da origem de x é
uma propriedade essencial de um objecto y, distinto de x.

34
a essência das coisas: uma vez descoberta a composição química da água no mundo

actual como sendo H2O, qualquer outra substância real ou possível só é água se tiver a

mesma composição química.

Assim, admitir a premissa essencialista de que a composição química actual da

substância que designamos por água é uma propriedade essencial da água é admitir a

premissa condicional (ii), a premissa de que se a água é H2O, então necessáriamente a

água é H2O. Ora, se é apenas empiricamente que se descobre ser H2O a composição

química actual da água, então só empiricamente se conhece aquela propriedade essencial

da água ( embora possamos não saber tratar-se de uma propriedade essencial - essa é a

versão fraca da tese Kripkeana do Necessário A Posteriori). Se, para além disso, sabemos,

por análise filosófica, que a composição química actual da água é uma propriedade

essencial da água, então só empiricamente podemos saber que ser H2O é uma

propriedade essencial da água (versão forte).

3- Designação Rígida

Vimos que a tese do Necessário A Posteriori é suportada pelo Essencialismo. Vou

agora mostrar que, embora a tese kripkeana da Designação Rígida exija o Essencialismo, a

conversa não se verifica, isto é, o Essencialismo não exige a Designação Rígida.

Consequentemente, a tese do Necessário A Posteriori não depende da tese semântica da

Designação Rígida.

A tese da Designação Rígida é proposta por Kripke em “Naming and Necessity” e a

sua orientação metafísica traduz-se numa aliança entre os tópicos presentes no título

daquelas Lectures: a designação rígida é uma teoria da nomeação modalmente orientada e

definida no quadro semântico dos mundos possíveis.

A noção de rigidez não responde à questão semântica acerca dos mecanismos de

nomeação atendendo aos designadores e suas propriedades linguísticas, mas sim

atendendo aos objectos designados e às suas propriedades modais. A designação rígida é

35
determinada por considerações acerca de propriedades essenciais/acidentais de

particulares.

O teste intuitivo de rigidez reflecte a orientação modal desta noção. Parte-se de um

objecto, digamos Jorge Sampaio, e constata-se que esse indivíduo não poderia deixar de

ser Jorge Sampaio, que a propriedade de ser Jorge Sampaio se lhe aplica essencialmente.

Desta constatação metafísica trivial segue-se a tese linguística: “Jorge Sampaio” é um

designador rígido de Jorge Sampaio. Pelo contrário, basta consultar as nossas intuições

para constatar que “O Presidente da República Portuguesa em 1998” não é um designador

rígido de Jorge Sampaio, pois o mesmo indivíduo poderia não ter sido Presidente da

República. Assim, a resposta à questão acerca de se um designador é ou não rígido

depende de intuições acerca de propriedades modais, necessárias (essenciais) ou

contingentes (acidentais), de um particular. É “Jorge Sampaio” um designador rígido de

Jorge Sampaio? A resposta a esta questão depende da resposta à questão acerca de se

Jorge Sampaio poderia deixar de ser Jorge Sampaio, e o “poderia” é, como vimos, o da

possibilidade metafísica.

Os critérios que determinam os instrumentos de nomeação são, em Kripke, critérios

modais, dado envolverem as noções de possibilidade e necessidade metafísica. Esses

critérios poderiam ser epistémicos se envolvessem, como em Russell, contacto com o

referente. A orientação modal da noção de rigidez explica porque é que, segundo Kripke,

não só nomes (expressões simples) como também algumas descrições (expressões

complexas) são modalmente rígidas. Também explica o porquê da distinção entre

designadores rígidos fortes e fracos: é a essencialidade e não a necessidade da

propriedade que é atribuída aos objectos designados que é a fonte da rigidez.

Seja i um indivíduo e “d” uma expressão que designa i no mundo actual. O critério de

rigidez para “d” pode ser assim formulado: “d” designa rigidamente i sss i não poderia não

ter sido d. O critério de rigidez pode ter duas interpretações: (a) como introduzindo uma

condição suficiente pode ser assim formulado: “d” designa rigidamente i sss,

necessariamente para qualquer objecto x, se x é d então x é idêntico a i; (b) como

36
introduzindo uma condição necessária pode ser assim formulado: “d” designa rigidamente i

sss, necessariamente para qualquer objecto x, se x é i então x é idêntico a d. A divergência

entre estas duas interpretações surge quando há descrições. Assim, por exemplo, designa“

o pai de João Soares” rigidamente Mário Soares? A resposta intuitiva é positiva se o critério

de rigidez for lido como introduzindo uma condição suficiente, que a propriedade de ser

necessáriamente o pai de João Soares é uma condição suficiente para uma pessoa ser

Mário Soares: não é possível que alguém diferente de Mário Soares seja o pai de João

Soares. Mas a resposta é negativa se o critério de rigidez for lido como introduzindo uma

condição necessária, que a propriedade de ser necessáriamente o pai de João Soares é

uma condição necessária para uma pessoa ser Mário Soares: Mário Soares poderia não ser

o pai de João Soares pois Mário Soares poderia não ter tido filhos.

Ora, é o critério de rigidez interpretado como introduzindo uma condição necessária

que é equivalente ao essencialismo, a atribuição ao objecto designado de uma propriedade

essencial a esse objecto: necessariamente se i existe então i tem a propriedade essencial

de ser idêntico a d. A noção de rigidez assim definida é a rigidez genérica: “d” designa

rigidamente i sss “d” designa i em todos os mundos possíveis no qual i exista.

A tese kripkeana da designação rígida é, como vimos, modalmente orientada, pelo

que pressupõe a tese da identidade transmundial. Pressupõe também a verdade da

atribuição a indivíduos de propriedades essenciais: a resposta à questão acerca de se um

designador é ou não rígido depende de intuições acerca de propriedades essenciais ou

acidentais de um particular. No entanto, dado que podemos estabelecer por estipulação que

nomes próprios são rígidos, o estabelecimento da rigidez de nomes próprios não exige

pressupostos essencialistas substantivos. Tal não acontece com algumas descrições, cuja

rigidez depende da atribuição de propriedades essenciais não triviais aos particulares

designados.

Apesar da noção kripkeana de designação rígida depender da noção de uma

propriedade essencial, o essencialismo não implica logicamente a designação rígida:

podemos ter essencialismo sem que tenhamos qualquer linguagem e, consequentemente,

37
podemos ter essencialismo independentemente da tese semântica modalmente orientada

da designação rígida.

Por outro lado, podemos adoptar uma teoria da nomeação que, contrariamente à tese

da designação rígida de Kripke, não esteja modalmente orientada, não se apoie em

considerações metafísicas acerca da teoria da necessidade. Uma teoria da nomeação que,

contrariamente à de Kripke, não suponha o essencialismo nem esteja ligada à teoria da

necessidade, proposta por Almog (1986: 210-242), considera que nomes são directamente

referenciais, que aquilo que um nome contribui para uma proposição expressa por uma

frase onde o nome ocorre é apenas o particular designado: o constituinte proposicional que

é sujeito na proposição que Kripke é filósofo é o próprio Kripke.

38
CAPÍTULO II - COMO SÃO POSSÍVEIS NECESSIDADES A POSTERIORI?

Introdução

A tese, argumentada por Kripke (1988; 1993: 162-191), de que certas proposições

necessárias só podem ser conhecidas empiricamente, contraria a tese tradicional que

defende que uma proposição necessária é a priori.

A tradição filosófica estabeleceu uma conexão muito estreita entre os termos

“necessário” e “a priori “ aplicados a proposições verdadeiras, defendendo a conjunção de

duas teses: a de que todas as verdades necessárias são a priori, e a de que todas as

verdades a priori são necessárias. Apesar da distinção de domínios (alético e epistémico)

das modalidades envolvidas ser já evidente a partir do uso das noções, a filosofia tradicional

admitia a co-extensionalidade das noções de necessidade e aprioridade.

A tese kripkeana do Necessário A Posteriori contraria parte da conexão tradicional

acima representada: a que defende existir uma relação de implicação da necessidade para

a aprioridade, isto é, que todas as proposições necessárias são a priori.

O aspecto preliminar da refutação Kripkeana daquela implicação consiste em salientar

a diferença de domínios das modalidades envolvidas, o domínio alético e o epistémico, e

em mostrar que não é o caso que por definição aquela implicação se verifique: o facto de

uma proposição ser necessária nada tem conceptualmente a ver com o facto de ser ou não

conhecida ou com o modo como é conhecida e, portanto, conceptualmente daí não se

segue que seja a priori. Deste modo, a tese segundo a qual todas as verdades necessárias

são conhecidas a priori, não é uma tese verdadeira por definição, e exigiria argumentos

substantivos para poder ser mantida; por outro lado, aquela tese é aparentemente

contrariada pelos casos Kripkeanos de verdades necessárias que só podem ser conhecidas

empiricamente.

39
Na medida em que a confusão entre o domínio alético e o epistémico parece estar na

base da suposta implicação da necessidade para a aprioridade, iniciarei este capítulo com

uma clarificação daqueles domínios e sua demarcação.

Continuarei com uma análise da conexão tradicional necessidade-aprioridade, tal

como ela é argumentada por Kant, no sentido de esclarecer a disputa entre Kripke, que

defende não só a tese do Necessário A Posteriori como a do Contingente A Priori, e Kant ,

que defende que todas as verdades necessárias são conhecidas a priori e todas as

verdades conhecidas a priori são necessárias3. Restringindo a análise à tese tradicional

kantiana segundo a qual se uma verdade é necessária então é conhecida a priori, esboçarei

as linhas gerais da argumentação de Kant em defesa daquela tese. Concluirei que aquela

argumentação parece confundir o domínio das modalidades envolvidas, não se

descortinando as premissas que permitiriam estabelecer aquela tese como conclusão.

Avançarei ainda uma possível interpretação da tese kantiana que teria o efeito de a

trivializar: a de que Kant não usaria a noção de necessidade no sentido tradicional, alético,

mas no sentido epistémico, transcendental.

Centrando a discussão na refutação kripkeana da tese tradicional kantiana, analisarei,

na secção 3 deste capítulo, as versões das teses em conflito, que passo a enumerar (“p”

toma valores sobre proposições):

Tese tradicional: Se p é necessária então p é a priori.

Tese kripkeana: Para alguns valores de p, p é necessária e p é a posteriori. A tese

tradicional é susceptível de três versões que devem ser distinguidas:

Versão (I): Se p é necessária então sabemos a priori que p.

Versão (II): Se p é necessária então sabemos a priori que p é necessariamente

verdadeira.

3
A teoria filosófica de Kant assenta fundamentalmente na existência de verdades sintéticas a priori, as quais, em
virtude de serem a priori, são necessárias. Kripke, pelo contrário, nada tem a dizer acerca de verdades sintéticas
a priori. Estipulando simplesmente que qualquer frase que é necessária e a priori é analítica, Kripke defende que
nem todas as verdades necessárias são a priori e que nem todas as verdades a priori são necessárias. Neste
contexto, a questão de se as verdades necessárias são analíticas ou sintéticas não se levanta (ver Grayling
1990: 43-95)

40
Versão (III): Se p é necessária então sabemos a priori que p é necessária. A tese

kripkeana é também susceptível de duas versões:

Versão fraca (I´): Para aguns valores de p, p é necessária e sabemos só a posteriori

que p

Versão forte (II´): Para alguns valores de p, p é necessária e sabemos só a posteriori

que p é necessariamente verdadeira.

As versões da tese Kripkeana contrariam as respectivas versões da tese tradicional.

Distinguindo a versão forte e fraca da tese kripkeana, mostrarei, na secção 4 deste

capítulo, que a tese tradicional pode ser refutada e imediatamente contrariada pela versão

fraca, isto é, mesmo antes da demonstração da existência de casos de verdades

necessárias que apenas podem ser conhecidas empiricamente como tal (versão forte).

Assim, a correcção da versão fraca é suficiente para exibir a incorrecção da tese tradicional.

Finalizarei este capítulo, esboçando as linhas gerais da argumentação central de

Kripke em defesa da versão forte da sua tese, e orientando a discussão para um princípio

adicional, também apresentado por Kripke, em apoio daquela argumentação central. O

argumento central é composto por duas premissas e uma conclusão: se sabemos por

“análise filosófica” que certas proposições, sendo verdadeiras, são necessariamente

verdadeiras; e se só podemos saber por meios empíricos que aquelas proposições são

verdadeiras; então só empiricamente podemos saber que aquelas proposições são

necessariamente verdadeiras. A premissa condicional afirma que conhecemos a priori o

estatuto modal geral4 de certas proposições necessárias, e a segunda premissa que só

empiricamente podemos conhecer o valor de verdade de tais proposições. O princípio

adicional subjacente ao argumento de Kripke, o qual é indispensável para justificar que

aquela conclusão se segue daquelas premissas, é o seguinte: se uma proposição é uma

consequência lógica de duas proposições como premissas, e se uma destas é verdadeira a

posteriori, então aquela proposição é também verdadeira a posteriori. Defenderei que este
4
A distinção entre o estatuto modal geral e o estatuto modal específico de uma proposição, já evidenciada na
Introdução, será explicitada neste capítulo, nomeadamente na secção 3 onde distingo as três versões da tese
tradicional, e nas secções 4 e 5 onde mostro, respectivamente, a plausibilidade da versão fraca e forte da tese
kripkeana e consequente refutação da tese tradicional.

41
princípio adicional parece só ser imune a determinados contra-exemplos e dificuldades se

sofrer uma reformulação.

1. Modalidade alética e modalidade epistémica

A crítica inicial kripkeana da tese tradicional de que a necessidade implica a

aprioridade vai no sentido de mostrar que ela parece resultar da confusão dos domínios

daquelas categorias. Torna-se assim necessário ultrapassar essa confusão, clarificando

aquilo que está implícito no uso tradicional das duas noções envolvidas: que elas não são

sinónimas por definição, referem dois domínios distintos, epistémico e metafísico, não

podendo significar a mesma coisa.

A necessidade é uma modalidade alética, que diz respeito a um modo de uma

proposição ser verdadeira (falsa). Uma proposição pode ser verdadeira (falsa) de diversos

modos: necessariamente verdadeira (falsa), contingentemente verdadeira (falsa),

possivelmente verdadeira (falsa), impossivelmente verdadeira (falsa), etc. A aprioridade é

uma modalidade epistémica, que diz respeito a um modo de uma proposição ser conhecida.

Uma proposição verdadeira pode ser objecto de conhecimento de diferentes modos: pode

ser justificada apenas com base na experiência (a posteriori) ou pode ser justificada sem

envolver qualquer apelo à experiência (a priori).

Ora, se as duas noções, a de necessidade e a de aprioridade, não são sinónimas,

afirmar que são coextensivas exige argumentos suplementares que necessitam de

explicitação, pois podem bem ser o resultado da confusão dos domínios e conceitos

envolvidos.

Quanto à modalidade epistémica, é tradicionalmente aceite a distinção, apontada

atrás, entre conhecimento a priori e conhecimento a posteriori, feita através da referência à

tese kantiana de que o conhecimento a priori é um conhecimento absolutamente

independente da experiência. Esta distinção tradicional conota duas espécies de justificação

epistémica: um conhecimento é a priori se e só se a sua justificação é a priori, no sentido

42
em que não depende da experiência; um conhecimento é a posteriori se e só se a sua

justificação é a posteriori, no sentido em que depende da experiência.

De salientar, nesta caracterização do conhecimento a priori versus a posteriori, que o

que se entende tradicionalmente por experiência inclui a percepção (informação obtida do

mundo exterior através dos orgãos dos sentidos), o testemunho e a memória. Na medida

em que, para muitos filósofos, incluindo Kant, os seres humanos não têm qualquer tipo de

conhecimento antes de terem alguma experiência do mundo, as experiências exigidas para

a aquisição dos conceitos intervenientes não deverão ser incluídas naquilo que se entende

tradicionalmente por experiência (caso contrário virtualmente nenhuma verdade poderia ser

conhecida a não ser empiricamente).

Kripke evidencia o erro de alguns filósofos ao transformarem a modalidade nesta

caracterização do a priori, isto é, ao trocarem o “pode” pelo “ter de” (Kripke 1988: 34-39,

158-160): um conhecimento a priori é aquele que “pode” ser conhecido independentemente

de qualquer experiência, e não aquele que “tem de” ser conhecido independente de

qualquer experiência. A primeira caracterização significa que uma verdade a priori pode ser

conhecida independentemente de qualquer experiência, seja ela “de facto” conhecida

independentemente de qualquer experiência ou não. Assim, uma verdade que pertence ao

domínio do a priori “pode” ser conhecida na base da experiência, por exemplo, por

testemunho; ilustrando, alguém pode conhecer o resultado de um problema matemático

sem ter feito as respectivas deduções e cálculos, confiando na autoridade do especialista.

Dito de outro modo, as verdades que pertencem ao domínio do a priori podem ser

conhecidas empiricamente, já que o que caracteriza uma verdade a priori é o ser uma

verdade que “pode” ser conhecida, e não que “tem de” ser conhecida, independentemente

da experiência: as verdades a priori não são assim verdades necessariamente conhecidas

independentemente da experiência, mas possivelmente conhecidas independentemente da

experiência. Elas opõem-se às verdades a posteriori que só podem ser conhecidas através

da experiência.

43
Assim, uma caracterização básica e consensual das noções de a priori e a posteriori

poderá ser expressa da seguinte maneira:

(a) p é a priori se e só se p pode ser conhecida como sendo verdadeira (por um

agente apropriado de conhecimento, em especial uma pessoa) independentemente de

qualquer experiência.

(b) p é a posteriori se e só se p não pode ser conhecida como verdadeira (por um

agente apropriado de conhecimento, em especial uma pessoa) independentemente de

qualquer experiência.

Das definições (a) e (b) segue-se que uma proposição a priori pode ser identificada

como verdadeira através de meios empíricos, enquanto que uma proposição a posteriori só

o pode ser através de meios empíricos.

Com esta delimitação do conceito tradicional mínimo de conhecimento a priori versus

a posteriori, verificamos que muitas características geralmente atribuídas ao conhecimento

a priori não se lhe aplicam de uma forma imediata e líquida, necessitando de alguma

argumentação adicional para serem estabelecidas. Assim, por exemplo, um conhecimento

a priori não envolve, por definição, o estatuto de verdade necessária. A implicação da

aprioridade para a necessidade é, no entanto, uma tese tradicionalmente aceite, e

explicitamente defendida por Kant, ao declarar que todo o conhecimento que possui um

fundamento a priori se anuncia pela exigência de ser absolutamente necessário (1985:7).

Quanto à modalidade alética, a distinção entre verdades necessárias e verdades

contingentes nada tem a ver com o modo de conhecimento de proposições, seja ele a priori

seja a posteriori, mas com o modo de uma proposição ser verdadeira ou falsa.

A caracterização tradicional das noções de verdade necessária e de verdade

contingente é formulada através de uma resposta à seguinte questão. Uma proposição

dada, sendo de facto verdadeira (falsa), poderia no entanto ser antes falsa (verdadeira)?

Poderia, nesse aspecto, o mundo ser diferente do que é? Se a resposta for afirmativa

estamos perante uma verdade contingente (respectivamente uma falsidade contingente), se

for negativa estamos perante uma verdade necessária (respectivamente uma falsidade

44
necessária). Assim, por exemplo, perguntamos se Mário Soares poderia não ter sido eleito

para deputado do Parlamento Europeu nas eleições europeias portuguesas de 1999. Dado

que Mário Soares foi, de facto, eleito, e dado que a resposta à pergunta é evidentemente

afirmativa - numa situação contrafactual Mário Soares poderia não ter sido eleito, poderia

mesmo não ter concorrido às eleições ou não ter havido eleições de todo-, estamos

perante a verdade contingente de que Mário Soares foi eleito para deputado do Parlamento

Europeu em 1999. Se Mário Soares não tivesse, de facto, sido eleito, estaríamos perante

uma falsidade contingente. Vejamos ainda um exemplo de uma verdade (falsidade)

necessária. Perguntamos se João Soares, filho de Mário Soares, poderia não ser oriundo

do seu actual progenitor. A resposta intuitiva é negativa - João Soares, numa situação

contrafactual, não poderia ter um progenitor diferente do que tem actualmente-, logo,

estamos perante a verdade necessária de que João Soares é filho de Mário Soares.

Suponhamos agora que se vem a descobrir que afinal João Soares não é, de facto, filho de

Mário Soares, mas de uma outra pessoa. Nesta situação, estaríamos perante uma falsidade

necessária.

Uma proposição necessária é, de acordo com uma ideia tradicional influente, uma

proposição verdadeira em todos os mundos possíveis. Esta intuição está, em traços gerais,

na base das teorias lógicas e semânticas da modalidade, construídas por diversos lógicos e

filósofos contemporâneos, nomeadamente por Kripke . De acordo com a concepção

actualista de mundos possíveis (concepção de Kripke, Plantinga e outros), mundos

possíveis são maneiras como as coisas poderiam ter sido e o mundo actual é um deles,

uma vez que é a maneira como as coisas são. Uma das razões da importância do aparato

logico-semântico dos “mundos possíveis” é a de permitir uma formalização e clarificação

das perspectivas filosóficas defendidas acerca de matérias modais, de modo a evitar

equívocos e ambiguidades presentes em algumas formulações correntes dessas

perspectivas.

Nesta linha, a caracterização de verdades necessárias versus contingentes pode ser

assim expressa:

45
( c) p é necessariamente verdadeira se e só se p é verdadeira (é verdadeira no mundo

actual) e não pode não ser verdadeira; por outras palavras, p é verdadeira em todos os

mundos possíveis.

(d) p é contingentemente verdadeira se e só se p é verdadeira mas poderia não ser

verdadeira; por outras palavras, p é verdadeira no mundo actual e falsa em pelo menos um

mundo possível.

(e) p é necessariamente falsa se e só se p é falsa e não pode ser verdadeira; por

outras palavras, p é falsa em todos os mundos possíveis.

(f) p é contingentemente falsa se e só se p é falsa mas poderia ser verdadeira; por

outras palavras, p é falsa no mundo actual e verdadeira em pelo menos um mundo possível.

A caracterização tradicional das modalidades aléticas mostra que do facto de uma

proposição ser necessária não se segue, pelo menos conceptualmente, que seja a priori. A

implicação da necessidade para a aprioridade é, no entanto, uma tese tradicionalmente

aceite, e explicitamente defendida por Kant ao declarar que se encontrarmos uma

proposição que apenas se possa pensar como necessária estamos em presença de um

juízo a priori (1985: 38). Kant usa aqui a necessidade como um critério da aprioridade.

As modalidades aléticas não podem ser plausivelmente reduzidas às modalidades

epistemológicas: que uma proposição seja não só verdadeira mas também necessária, não

depende de qualquer perspectiva acerca das fontes do nosso conhecimento, do modo como

a proposição é justificada. Kripke diria ainda que também não depende de convenções

linguísticas. Depende fundamentalmente do modo como o mundo é.

2. A argumentação kantiana da tese tradicional

A tese do Necessário A Posteriori é manifestamente contraditória da tese,

tradicionalmente defendida, de que qualquer proposição necessária é a priori. A conexão

tradicional necessidade-aprioridade introduz ainda a tese conversa de que qualquer

proposição a priori é necessária. Assim sendo, a perspectiva tradicional estabelece uma

46
relação de equivalência entre estas duas modalidades. Esta relação de equivalência pode

ser expressa na conjunção das seguintes teses, explícitas em Kant:

(A*) Se p é uma proposição necessária então p pode ser conhecida a priori.

(B*) Se p é uma proposição que pode ser conhecida a priori então p é necessária.

As teses (A*) e (B*) encontram-se ainda expressas de um modo vago. Note-se que

seria trivial admitir que verdades necessárias, e só verdades necessárias, pudessem ser

conhecidas a priori se os agentes de tal conhecimento fossem ser racionais meramente

concebíveis, pois podemos certamente conceber seres racionais que conhecem a priori

todas as verdades. O que se visa, nomeadamente o que é visado por Kant, é uma noção de

a priori determinada de algum modo pelas possibilidades e capacidades cognitivas do

homem (ou de um ser racional que lhe seja cognitivamente semelhante). Assim,

simplificando, as teses (A*) e (B*) poderão ser reescritas deste modo:

(A) Se p é uma proposição necessária então p pode ser conhecida a priori por algum

ser humano.

(B) Se p é uma proposição que pode ser conhecida a priori por algum ser humano

então p é necessária.

O significado das teses (A) e (B) é o de que, para os seres humanos no mundo actual,

com as capacidades cognitivas que de facto têm, todas as verdades necessárias podem ser

conhecidas a priori e todas as verdades conhecidas a priori são necessárias.

Kant defende a conjunção das duas teses e parece, à partida, não tratar as noções

de “necessidade” e “aprioridade” como sinónimas, pois usa a primeira para referir um modo

de uma proposição ser verdadeira (falsa) (modalidade alética) e a segunda para referir um

modo de uma proposição ser conhecida (modalidade epistémica). Assim é que, ao

argumentar que uma verdade conhecida por meios empíricos não pode ser uma verdade

necessária (1985: 37-38)5, Kant parece distinguir o modo de uma proposição ser conhecida

5
A razão pela qual Kant, neste aspecto de acordo com os empiristas, defende que a necessidade implica a
aprioridade, é a de que a necessidade não pode ser conhecida empiricamente, porque “a experiência ensina-
nos que algo é constituído de uma determinada maneira, mas não que não possa ser de outra maneira”. Ora,
desta premissa não se segue, como mostrarei na secção 4 deste capítulo, a conclusão pretendida, a de que
uma verdade conhecida por meios empíricos não pode ser uma verdade necessária.

47
( empiricamente ou independentemente da experiência) do modo de uma proposição ser

verdadeira (necessaria ou contingentemente verdadeira).

Não havendo sinonímia, a co-extensionalidade expressa nas teses (A) e (B) exige

argumentos suplementares que justifiquem porque é que uma verdade necessária não pode

ser conhecida a posteriori e porque é que se uma verdade é conhecida a priori não pode

ser contingente.

Apesar da inicial distinção de domínios das categorias envolvidas, ela não é

estabelecida por Kant de uma forma rigorosa e permanente. O filósofo parece usar, por

vezes, a categoria alética da necessidade num sentido epistemológico (transcendental).

Assim é que a argumentação central de Kant para justificar que todas as proposições

necessárias são a priori, a qual será discutida em seguida, é a de que aquelas proposições

são condições de possibilidade da experiência (transcendentais) pelo que não podem ser

conhecidas por meios empíricos. Ora, se Kant usa a noção de necessidade no sentido

transcendental, as teses defendidas por Kant resultam triviais, e a disputa entre Kant e

Kripke é meramente terminológica, não havendo na realidade conflito entre as teses

defendidas por um e por outro.

Mostrei acima que Kant defende explicitamente a tese (A) ao afirmar que uma

proposição pensada como necessária é a priori (1985: 38); e defende explicitamente a tese

(B) ao afirmar que todo o conhecimento a priori é absolutamente necessário. As teses (A) e

(B) visam providenciar, respectivamente, uma condição suficiente e necessária da

aprioridade.

Centrando a discussão na tese (A), já que é essa que a tese kripkeana do Necessário

A Posteriori contraria, qual a argumentação de Kant em sua defesa?

Kant parece simplesmente tomar como garantido e evidente que as proposições da

Matemática e as proposições gerais da Física são necessariamente verdadeiras, usando o

conceito de necessidade para construir o critério da aprioridade. A argumentação Kantiana

para justificar o carácter a priori das proposições e princípios da Matemática e da Física é a

de que temos de usar estes princípios e proposições para ter experiência, pelo que não os

48
podemos adquirir a partir da experiência. Ora, se este é o único modo de Kant argumentar a

favor da sua tese segundo a qual todas as proposições necessárias são a priori, então

poder-se-á afirmar que o filósofo adopta um sentido peculiar de “necessidade” enquanto

condição necessária da experiência, isto é, enquanto condição transcendental. Assim

sendo, a tese (A) é trivializada dada a definição de transcendental: o conhecimento daquilo

que é condição de possibilidade da experiência não pode ser obtido por meio da

experiência, um conhecimento transcendental é a priori.

No entanto, na Introdução à “Crítica da Razão Pura”, Kant parece perspectivar as

proposições da Matemática e da Física como sendo necessariamente verdadeiras noutro

sentido, no sentido em que o que elas descrevem tem necessariamente de ser assim e não

pode ser de outro modo. Mas, assim sendo, aquela argumentação central não basta para

fundar a tese segundo a qual só por meios a priori conhecemos proposições

necessariamente verdadeiras: admitindo que certas proposições gerais são conhecidas a

priori dado serem imprescindíveis para adquirir experiência, segue-se que essas

proposições são epistemicamente necessárias mas não se segue que sejam

metafisicamente necessárias, que aquilo que descrevem não possa ser de outro modo. A

argumentação central apenas suporta a ideia de que certas proposições não podem ser

obtidas por meios empíricos já que são as condições que permitem o conhecimento dos

objectos da experiência possível. Não suporta a ideia de que uma proposição necessária é

a priori. Afirmar que uma proposição é transcendental é afirmar que sem ela nada poderia

ser conhecido, o que é completamente diferente de dizer que o estado de coisas que

descreve não poderia ser de outro modo ou que tem necessariamente de ser como é.

Kant apresenta outro tipo de justificação do conhecimento a priori de proposições

necessariamente verdadeiras. Assim, relativamente às proposições matemáticas, Kant

argumenta, logo na Introdução, que são verdades necessárias conhecidas a priori. Este

estatuto é adequado dado o método de construção em Matemática: a demonstração do

carácter necessário das proposições matemáticas é realizada sem apelo à experiência

sensível, na intuição pura (espaço e tempo). Assim, argumenta Kant, demonstramos que

49
uma proposição matemática é necessariamente verdadeira construindo uma

exemplificação não empírica do estado de coisas que descreve.

Relativamente às verdades matemáticas, Kant e Kripke concordam em que são

necessárias e a priori. O que Kripke refuta é a ideia kantiana segundo a qual é em virtude

de serem necessárias que são a priori : o facto de uma proposição matemática ser

necessária não implica que seja a priori, pois pode simplesmente acontecer não ser

conhecida de todo. A argumentação de Kant não parece justificar aquela implicação da

necessidade para a aprioridade. O objectivo de Kant é o de fornecer uma teoria que permita

compreender como são possíveis juízos sintéticos a priori na Matemática: as verdades

matemáticas, não sendo analíticas mas sintéticas, são conhecidas a priori. Assim, o facto

das verdades matemáticas serem conhecidas a priori não depende do facto de serem

necessárias, mas do modo como as conhecemos: segundo Kant, as verdades matemáticas,

sendo sintéticas, são construídas a priori na intuição pura.

Relativamente às proposições gerais da Física, Kant visa também demonstrar que é a

priori que as conhecemos como necessariamente verdadeiras. Apesar do método de

demonstração na Física não ser o da Matemática, o método de construção, a convicção de

Kant é a de que não só as proposições matemáticas mas também as proposições gerais da

Física contém verdades necessárias. Ora, se não podemos proceder por construção, então

como podemos proceder para provar a priori que as proposições gerais da Física

(nomeadamente o princípio da causalidade) são necessariamente verdadeiras? Na

segunda parte da “Crítica da Razão Pura”, Kant parece querer dar uma resposta a esta

pergunta. As proposições em questão são instrumentos para sintetizar intuições empíricas e

a sua necessidade é determinada pelo conceito mais geral dos objectos a que se aplicam:

“o conceito de uma coisa em geral” (Kant 1985: 589). A representação de um objecto em

geral é uma representação única de um objecto liberto de factos contingentes. Quando a

experiência de algo como objecto em geral é pressuposta, aqueles princípios são

necessariamente verdadeiros, não já porque são condições sem as quais não teríamos

experiência, mas porque são condições sem as quais nenhum objecto poderia ser

50
concebido ou poderia ser concebido como existindo. Assim, a exploração da nossa

concepção de “um objecto em geral” pode fazer o mesmo trabalho, para as verdades

necessárias acerca de objectos da experiência, que as construções na intuição pura fazem

para a geometria e a aritmética. A demonstração a priori da necessidade de uma proposição

como o princípio da causalidade, embora baseada em conceitos, nomeadamente o conceito

de um objecto em geral, e não em intuições (como acontece no método de construção em

Matemática), não é uma demonstração silogística mas, como refere Kant, “ostensiva”: “A

demonstração directa ou ostensiva é(…) aquela que junta à convicção da verdade a visão

das fontes dessa verdade” (Kant 1985: 628). O problema está em saber que entende Kant

por demonstração ostensiva. Se não é uma análise conceptual nem empírica, que tipo de

exercício é o da exploração do conceito de um objecto em geral? Será um exercício da

imaginação produtora? A referência a esse objecto em geral será uma ostensão na

imaginação produtora? Assim sendo, tal exploração na imaginação seria o meio a priori

para reconhecer a necessidade de proposições sintéticas acerca de objectos da

experiência, admitindo que demonstrações na imaginação ou experiências de pensamento

podem estabelecer o estatuto modal de proposições. Apesar de atractiva, esta interpretação

entra em conflito com o sistema Kantiano: Kant restringe a intuição pura às representações

do espaço e do tempo, pelo que a exploração do conceito de um objecto em geral - as suas

qualidades e relações - não é realizada na intuição pura, nem é um exercício da imaginação

produtora.

A argumentação de Kant, relativamente às proposições da Física, não parece justificar

nem porque é que só a priori conhecemos proposições necessariamente verdadeiras, nem

porque é que é em virtude de serem necessariamente verdadeiras que podem ser

conhecidas a priori como tal. Justifica apenas porque é que é a priori que conhecemos

proposições que são condições de possibilidade da experiência e porque é que é em virtude

de certas proposições serem condições necessárias da experiência que elas são a priori:

aquilo que é imprescindível para se ter experiência não pode provir da experiência.

51
A presente discussão da argumentação kantiana da sua tese, a de que todas as

verdades necessárias são a priori, conduz-nos a um dilema:

- ou Kant entende a necessidade no seu sentido tradicional, alético, e, nesta situação,

a transição da necessidade para a aprioridade é inconclusiva, dado não se descortinar as

premissas que permitiriam aquela transição.

- ou Kant entende a necessidade no sentido epistemológico de condição

transcendental, e, nesta situação, a tese kantiana de que todas as verdades necessárias

são a priori é trivializada.

3. As teses em conflito e suas versões

Na medida em que é a tese (A) que a tese Kripkeana do Necessário A Posteriori

contraria, passarei a designar a tese (A) por tese tradicional. Temos assim duas teses em

conflito:

Tese tradicional (TT): Se p é uma proposição necessária então p é conhecida a priori.

Tese Kripkeana (TK): Para alguns valores de p, p é uma proposição necessária e p só

pode ser conhecida empiricamente.

A tese tradicional pode ser interpretada em sentido amplo e em sentido restrito. Em

sentido amplo (se p é necessária então é a priori) afirma que é em virtude de uma

proposição ser necessária que ela é conhecida a priori, que todas as proposições

necessárias são a priori. Interpretada em sentido restrito, isto é, restringida a proposições

conhecidas (se p é uma proposição necessária e se p é conhecida, então p é conhecida a

priori), afirma que todas as verdades necessárias conhecidas são conhecidas a priori, que

é por meios a priori que conhecemos proposições necessárias. A tese Kripkeana contraria

a ideia de que todas as verdades necessárias conhecidas são conhecidas a priori (a tese

tradicional restrita). A ideia de que é em virtude de uma verdade ser necessária que ela é

52
conhecida a priori (a tese tradicional ampla), é imediatamente refutada através de casos de

proposições necessárias que não são conhecidas de todo.

A tese tradicional é susceptível de três versões que poderão ser distinguidas (ver

Casulo 1997: 1-8), embora Kant, como se verá mais adiante, as pareça confundir:

Versão ( I ): Se p é necessária então sabemos a priori que p

Versão (II): Se p é necessária então sabemos a priori que p é necessariamente

verdadeira.

Versão (III): Se p é necessária então sabemos a priori que p é necessária.

A versão (I) afirma que se uma proposição é necessária então conhecemos a priori o

valor de verdade dessa proposição, isto é, sabemos a priori que é verdadeira. A versão (II)

afirma que se uma proposição é necessária então conhecemos a priori o seu estatuto

modal específico, isto é, sabemos a priori que é necessariamente verdadeira. A versão (III)

afirma que se uma proposição é necessária então conhecemos a priori o seu estatuto modal

geral, isto é, sabemos a priori que é necessária sem atender ao facto de ser ou não

verdadeira.

A versão (II) que é a conjugação da versão (I) e (III) é a versão defendida por Kant

que parece não distinguir o conhecimento do estatuto modal geral de uma proposição

necessária do conhecimento do seu valor de verdade.

Estas versões da tese tradicional poderão ter as suas correspondentes restritas. A

versão (III) restrita equivale à versão (II) restrita, porque se p é necessária e se p é

conhecida, então, se sabemos que p é necessária, sabemos que p é necessáriamente

verdadeira. A versão (II) restrita é a versão defendida por Kant para quem o conhecimento

de uma proposição necessária p, é o conhecimento de p não só como verdadeira mas

como necessariamente verdadeira. Assim, se p é necessária e se p é conhecida, então

sabemos a priori que p é necessariamente verdadeira.

53
(TK) é também susceptível de duas versões, ambas defendidas por Kripke:

Versão fraca (I´): Para alguns valores de p, p é necessária e sabemos só a posteriori

que p

Versão forte (II´): Para alguns valores de p, p é necessária e sabemos só a posteriori

que p é necessariamente verdadeira.

A versão fraca (I´) afirma que podemos conhecer apenas empiricamente o valor de

verdade de certas proposições necessárias contrariando a versão (I) da tese tradicional

restrita. A argumentação que está na base da versão fraca (I´), que contraria a versão (I) da

tese tradicional restrita, permite refutar a versão (I) da tese tradicional ampla. Aquela

argumentação, que discutirei mais adiante, defende que o facto de uma proposição ser

necessária nada tem a ver com o facto de ser conhecida ou com o modo como é conhecida,

e que o conhecimento do valor de verdade de uma proposição não é equivalente ao

conhecimento do seu estatuto modal geral. Assim, refutando a versão (I) da tese tradicional

ampla, mostra que certas proposições necessárias, que se sabe serem necessárias, podem

não ser conhecidas de facto (os casos de proposições matemáticas indecidíveis);

contrariando a versão restrita respectiva, mostra que certas proposições necessárias, que

não se sabe serem necessárias, apenas empiricamente podem ser conhecidas (casos

exemplificativos da versão fraca da tese kripkeana).

A versão forte (II´) afirma que podemos conhecer apenas empiricamente o estatuto

modal específico de proposições necessárias, contrariando a versão (II) restringida da tese

tradicional. A argumentação que está na base na versão forte (II´) que contraria a versão (II)

da tese tradicional restrita, permite refutar a versão (II) da tese tradicional ampla.

Sucintamente, aquela argumentação parte da premissa de que só empiricamente podemos

conhecer o valor de verdade de certas proposições necessárias (versão fraca), e da

premissa de que conhecemos a priori o seu estatuto modal geral, concluindo que só

54
empiricamente podemos conhecer o seu estatuto modal específico. Assim, refutando a

versão (II) da tese tradicional ampla, mostra que certas proposições necessárias não são

conhecidas como verdades necessárias pois não são conhecidas de todo (nos casos atrás

referidos de proposições matemáticas indecidíveis); contrariando a versão restrita

respectiva, mostra que certas proposições necessárias apenas empiricamente podem ser

conhecidas como tal (nos casos exemplificativos da versão forte).

A tese kripkeana não tem uma versão (III´) pois esta equivale à versão forte: se

conhecemos apenas empiricamente o valor de verdade de uma proposição necessária e se

sabemos a priori que é necessária então sabemos apenas empiricamente que é

necessariamente verdadeira. Kripke não contraria a ideia de que o estatuto modal geral de

proposições necessárias conhecidas é conhecido a priori, mas refuta a ideia de que é em

virtude de uma proposição ser necessária que conhecemos a priori o seu estatuto modal

geral, refuta a versão (III) da tese tradicional ampla. Na medida em que o facto de uma

proposição ser necessária nada tem a ver com o facto de ser conhecida (como

necessariamente verdadeira), e na medida em que o conhecimento do valor de verdade de

uma proposição necessária não se confunde com o conhecimento do seu estatuto modal

geral, podemos conhecer o valor de verdade de proposições necessárias sem conhecer o

seu estatuto modal geral ( casos que exemplificam a versão fraca da tese kripkeana)

4. A versão fraca da tese kripkeana

A ideia chave de Kant, a qual é comum aos empiristas e que parece constituir a razão

pela qual (TT) é tradicionalmente defendida, é a de que o conhecimento da necessidade

não pode provir da experiência. Daqui conclui não só que o conhecimento de proposições

necessárias é a priori (tese tradicional restrita), como parece ainda concluir que se uma

proposição é necessária então é a priori, que é em virtude de uma proposição ser

necessária que ela é a priori (tese tradicional ampla).

55
Ora, a conclusão de que é em virtude de uma proposição ser necessária que ela é a

priori não pode ser retirada da premissa de que o conhecimento da necessidade não pode

provir da experiência. Não pode ser retirada porque o facto de uma proposição ser

necessária não implica que saibamos nem que é necessária nem que é verdadeira. Por

outro lado, a conclusão de que o conhecimento de proposições necessárias é a priori,

também não pode ser retirada da premissa de que o conhecimento da necessidade não

pode provir da experiência. Não pode ser retirada porque, admitindo que o estatuto modal

geral de proposições necessárias não pode ser conhecido por meios empíricos, não se

segue que o seu valor de verdade e, consequentemente, o seu estatuto modal específico

não possa ser conhecido empiricamente.

Kant parece não só confundir o estatuto modal e o epistémico de uma proposição ( ao

fazer depender o conhecimento e o modo de conhecimento de uma proposição necessária

do facto de ela ser necessária), como confunde também o conhecimento do valor de

verdade com o conhecimento do estatuto modal geral de uma proposição necessária ( ao

identificar o conhecimento de uma verdade necessária com o conhecimento da sua

necessidade).

Partindo da delimitação do conhecimento genuíno como conhecimento dos princípios

e proposições gerais da Matemática e da Física, Kant parece concluir que só temos

conhecimento genuíno quando sabemos não só que uma proposição necessária é

verdadeira mas que é necessária, isto é, quando conhecemos o estatuto modal específico

de uma proposição necessária. Assim sendo, o filósofo reduz a tese tradicional à sua versão

(II). Esta redução traduz-se na indistinção da versão (I) e (III) de (TT) e tem como

consequências quer a impossibilidade de se conhecer o valor de verdade de proposições

necessárias sem se saber que são necessárias, quer a de se saber que são necessárias

sem se conhecer o seu valor de verdade. Ora, a tese kripkeana mostra que aquelas

situações são possíveis, e, consequentemente, que o conhecimento do valor de verdade de

uma proposição necessária se não deve confundir com o conhecimento do seu estatuto

modal geral.

56
As confusões acima assinaladas estão patentes no seguinte argumento natural a

favor da tese tradicional:

Uma verdade necessária é verdadeira em todos os mundos possíveis e não só no

mundo actual; ora, se essa verdade fosse conhecida apenas por meios empíricos então

dependeria de aspectos do mundo actual, pois empiricamente só podemos conhecer factos

acerca do mundo actual, e, portanto, não seria uma verdade necessária; logo, o

conhecimento de uma verdade necessária não pode depender da contingência do

conhecimento limitado ao mundo actual, isto é, uma verdade necessária é a priori.

No argumento acima conclui-se que se uma verdade é necessária então é a priori,

através de um raciocínio por redução ao absurdo: se uma verdade necessária fosse

conhecida por meios empíricos, aquela verdade dependeria da contingência do mundo

actual; ora, uma verdade que depende de aspectos do mundo actual não é uma verdade

necessária; logo, uma verdade necessária não pode ser conhecida empiricamente.

Este raciocínio, ao concluir que uma verdade conhecida por meios empíricos não

pode ser uma verdade necessária, confunde o estatuto modal de uma proposição

necessária com o modo como o seu valor de verdade é conhecido. Ora, o facto do

conhecimento do valor de verdade de uma proposição necessária depender de aspectos do

mundo actual, ser conhecido empiricamente, não implica que essa verdade não seja

necessária : uma coisa é o estatuto modal de uma proposição, neste caso o ser necessária,

outra é o seu estatuto epistémico, isto é, o modo como é conhecida.

Ao concluir que o conhecimento de uma verdade necessária não pode depender da

contingência do conhecimento limitado ao mundo actual, o argumento confunde ainda o

conhecimento do valor de verdade de uma proposição necessária com o conhecimento do

seu estatuto modal geral. Ora, não só podemos conhecer o valor de verdade de

proposições necessárias sem sabermos que são necessárias, como podemos saber que

são necessárias e não conhecermos o seu valor de verdade. Posso não ter a noção de

necessidade e, portanto, não saber que todas as proposições matemáticas são

necessárias, e, no entanto, saber o resultado de um problema aritmético elementar

57
(exemplificação da 1ª situação). Posso não saber o resultado de um problema aritmético

mais complicado e saber que se trata de uma proposição necessária, dado saber que todas

as proposições matemáticas são necessárias (exemplificação da 2ª situação). Uma coisa é

sabermos que uma proposição é verdadeira e outra é sabermos que é necessária, e só

quando temos ambos os conhecimentos é que sabemos que a proposição é

necessariamente verdadeira.

Assim, a conclusão de que se uma proposição é necessária então é conhecida a

priori, ou que é em virtude de ser necessária que é a priori (tese tradicional ampla), não só

resulta da confusão assinalada entre o estatuto modal e o epistémico de uma proposição,

como tem a consequência, imediatamente refutável, de que todas as proposições

necessárias são conhecidas. Digo imediatamente refutável porque certas proposições

matemáticas, como é o caso da Conjectura de Goldbach, embora sejam necessárias e

saibamos a priori que o são, não são conhecidas de todo, isto é, sendo indecidíveis, não se

sabe (e não se virá em princípio a saber) se são verdadeiras ou falsas. Por outro lado, a

conclusão de que se uma proposição necessária é conhecida então é conhecida a priori

(tese tradicional restrita), também não só resulta da indistinção entre o conhecimento do

valor de verdade de uma proposição necessária e o conhecimento do seu estatuto modal

geral, como pode ser imediatamente contrariada. Pode ser contrariada, supondo que os

casos kripkeanos são convincentes, porque o valor de verdade de certas proposições

necessárias só empiricamente pode ser conhecido (versão fraca de (TK)) e o estatuto

modal específico de certas proposições necessárias só empiricamente pode ser conhecido

(versão forte de (TK)).

Ao contestar o argumento que parece estar na base da tese tradicional, Kripke mostra

que o facto de o valor de verdade de uma proposição necessária p só poder ser conhecido

empiricamente e, portanto, depender de aspectos do mundo actual, não se segue a

impossibilidade de p ser necessária. Não se segue porque a necessidade de uma

proposição nada tem a ver com o modo como o seu valor de verdade é conhecido, ou se é

ou não conhecido, sendo possíveis casos de proposições necessárias cujo valor de verdade

58
só empiricamente pode ser conhecido (versão (I´) de (TK) que contraria a versão

correspondente de (TT) restrita), e de proposições necessárias cujo valor de verdade não é

conhecido de todo (como a conjectura de Goldbach referida acima, que refuta a versão (I)

ampla de (TT)).

Basta a versão fraca da tese Kripkeana para refutar o argumento que está na base da

tese tradicional: o conhecimento do valor de verdade de proposições necessárias não

depende do facto de serem necessárias, nem do facto de se saber que são necessárias,

pelo que é perfeitamente plausível que só empiricamente possamos saber que certas

proposições necessárias são verdadeiras, estando este conhecimento limitado a aspectos

do mundo actual, sem sabermos que são necessárias. É claro que os exemplos aduzidos

para estabelecer a versão fraca da tese kripkeana, embora não exijam que se conheça o

estatuto modal geral de proposições necessárias, exigem que se estabeleça que essas

proposições são de facto necessárias.

Mostrei já que a versão (II) da tese tradicional, de que é a priori que conhecemos

proposições necessariamente verdadeiras, parece ser a versão adoptada por Kant ao não

distinguir a versão (I) e (III): dada uma proposição necessária p, saber que p é saber que p

é necessariamente verdadeira. Ora, a versão kantiana é imediatamente refutada pela

versão fraca da tese kripkeana, a qual mostra que podemos saber que p e não saber que p

é necessariamente verdadeira, dado que o conhecimento do valor de verdade de uma

proposição necessária se distingue do conhecimento do seu estatuto modal geral.

Refutada a indistinção entre o conhecimento do valor de verdade de uma proposição

necessária e o conhecimento do seu estatuto modal geral, poder-se-á perguntar o que terá

levado Kant àquela indistinção. Poder-se-á perguntar se não será o conhecimento de

proposições epistemicamente necessárias (transcendentais) que Kant tem em mente ao

considerar que saber que p é saber que p é necessariamente verdadeira. Usando um

exemplo de Kant teríamos que, dado a proposição “todo o acontecimento tem uma causa”

ser uma verdade transcendental, saber que aquela proposição é verdadeira é saber que ela

é transcendentalmente verdadeira.

59
Seguindo esta interpretação, o raciocínio que está por detrás da tese tradicional e que

foi já analisado, poderia ser assim reformulado: se o conhecimento do valor de verdade de

uma proposição transcendental fosse empírico, essa verdade não poderia ser

transcendental, porque aquilo que é condição de possibilidade da experiência não pode

provir da experiência; logo, o conhecimento de uma verdade transcendental é o

conhecimento de uma verdade como condição necessária da experiência, e esse

conhecimento é a priori. É claro que esta interpretação da tese kantiana a trivializa e anula o

conflito entre a tese tradicional e a tese kripkeana.

Admitindo que Kant usa o termo “necessário” no sentido tradicional, alético, e que,

portanto, a tese tradicional não pode ser legitimamente trivializada, então ela é refutada,

como mostrei, evidenciando as confusões que a suportam: a confusão dos domínios das

modalidades envolvidas e a confusão entre o conhecimento do valor de verdade de uma

proposição necessária e o conhecimento do seu estatuto modal geral.

Assim, se não se confundir a modalidade alética com a epistémica, e se se distinguir

claramente o conhecimento do valor de verdade de uma proposição necessária do

conhecimento do seu estatuto modal geral, nada impede que o valor de verdade de uma

proposição necessária p só empiricamente possa ser conhecido, isto é, que o nosso

conhecimento de p esteja limitado a aspectos do mundo actual: neste caso apenas

sabemos por meios empíricos que p (versão fraca de (TK)); por outro lado, se só

empiricamente podemos saber que p é verdadeira e se sabemos a priori o estatuto modal

geral de p então sabemos empiricamente que p é necessariamente verdadeira (versão forte

de (TK)).

Outro tipo, bastante diferente, de argumentação contra a tese tradicional em sentido

restrito, é proposta por Kitcher (1987: 190-207). A argumentação de Kitcher processa-se por

reductio: se admitimos como verdadeira a tese tradicional segundo a qual a necessidade é

uma condição suficiente da aprioridade, isto é, que tudo o que é necessário e conhecido é a

priori ( se se sabe que p e p é necessária então sabe-se a priori que p), a consequência

60
que daí se pode tirar é a de que todas as verdades são a priori; ora, esta consequência

entra em conflito com a tese admitida; logo, aquela tese é falsa.

A ideia fundamental da argumentação de Kitcher é a de que apropriadas inserções de

adjectivos como “actual” ou advérbios como “actualmente”, usados como operadores

modais e não temporais, numa frase verdadeira tornam-na numa frase necessariamente

verdadeira. Considere-se uma frase portuguesa da forma éO F é Gù, podemos “rigidificar”

esta frase se distribuirmos aí, de uma maneira apropriada, exemplares de “actual” ou

“actualmente”, obtendo assim, por exemplo, éO actual F é Gù, ou éActualmente, o F é Gù.

A ideia é a de que obtemos assim uma frase que é necessária se a frase original for

verdadeira. Ora, se tudo o que é necessário é a priori, então qualquer frase verdadeira

rigidificada é a priori. Esta premissa, coadjuvada pela premissa razoável de que sei a priori

que qualquer frase rigidificada é equivalente à frase original 6, permite a conclusão de que

qualquer frase pode ser conhecida a priori.

5. A versão forte da tese Kripkeana

A versão forte da tese kripkeana contraria a versão (II) da tese tradicional que é a

versão adoptada por Kant dada a indistinção das versões (I) e (II).

A defesa da versão forte da tese Kripkeana exige o conhecimento a priori do estatuto

modal geral de proposições necessárias. Assim, a premissa central da argumentação de

Kripke é a de que certas proposições, não sendo proposições matemáticas, têm uma

característica que é própria das proposições matemáticas, a de que sabemos a priori que,

se são verdadeiras, são necessariamente verdadeiras: “a análise filosófica diz-nos que não

podem ser contingentemente verdadeiras, pelo que qualquer conhecimento empírico da sua

6
Esta premissa pressupõe que “actual” é um indexical que, contrariamente a outros indexicais, não varia com o
contexto: uma frase indexada com “actual” expressa, noutros mundos possíveis, a mesma crença que a frase
original.

61
verdade é automaticamente um conhecimento empírico de que são necessárias” (1980:

159).

O argumento de Kripke em defesa da versão forte da sua tese pode ser assim

expresso:

(1) Sabe-se a priori que (se p então necessariamente p).

(2) Sabe-se só a posteriori que (p).

(3) \Sabe-se só a posteriori que (necessariamente p).

A premissa (1) afirma que conhecemos a priori o estatuto modal geral de certas

proposições, que sabemos a priori que certas proposições são necessárias nada dizendo

acerca do seu real valor de verdade.

A premissa (2) afirma que só empiricamente podemos conhecer o seu valor de

verdade , que só empiricamente sabemos que são verdadeiras.

Em (3) conclui-se que só empiricamente podemos conhecer aquelas proposições

como necessariamente verdadeiras.

A conclusão (3), a versão forte de (TK), exige aquilo cuja possibilidade já tinha sido

demonstrada na versão fraca: que o valor de verdade de certas proposições necessárias só

pode ser conhecido por meios empíricos(premissa (2)). Exige ainda que saibamos a priori

que essas proposições são necessárias (premissa (1)).

Na maior parte dos casos de necessidades a posteriori, a premissa (1) não pode ser

demonstrada fazendo apelo apenas a princípios lógico semânticos ( a tese semântica da

Designação Rígida de nomes, alguma lógica modal elementar, e certos princípios lógicos

de certo modo incontroversos). É exigido, para a sua demonstração, a admissão do

Essencialismo substantivo, isto é, de certos princípios essencialistas. Os princípios

essencialistas correspondem à admissão de pressupostos eminentemente metafísicos que

dizem respeito ao modo como as coisas são ou têm de ser. Tais pressupostos decorrem de

62
intuições acerca daquilo que pode e não pode ser o caso e da eliminação de intuições de

contingência.

Analiso, em seguida, o esquema de aplicação do argumento a favor de TK-forte a três

casos principais de necessidades a posteriori, tornando manifesta a distinção entre casos

triviais e não triviais. O 1º caso, assinalado com (*), é um caso trivial do Necessário A

Posteriori, no sentido em que a sua demonstração não exige a admissão do essencialismo

substantivo. O 2º e o 3º casos, assinalados com (**) e (***), são casos não triviais, casos

que não resultam apenas de teses da filosofia da linguagem, de princípios lógicos quase

incontroversos e de alguma lógica modal elementar.

Aplicação do argumento a favor de TK-forte aos casos assinalados com (*), (**) e

(***):

(1*) Sabemos a priori (por meio da tese semântica da Designação Rígida de nomes,

do princípio lógico da Necessidade da Identidade, etc) que se Véspero (se existe) é idêntico

a Fósforo então necessariamente Véspero é idêntico a Fósforo.

(2*) Ora, só por meios empíricos podemos saber que Véspero é idêntico a Fósforo.

(3*) Então só empiricamente podemos saber que necessáriamente Véspero (se

existe) é idêntico a Fósforo.

(1**) Sabemos a priori (admitindo a premissa essencialista de que a actual

composição química da substância que designamos rigidamente por “água” é uma

propriedade essencial da água) que se a água tem a composição química H2O então

necessariamente a água tem a composição química H2O.

(2**) Ora, só empiricamente sabemos que a água tem a composição química H2O.

(3***) Então só empiricamente sabemos que necessariamente a água tem a

composição química H2O.

63
(1***) Sabemos a priori (admitindo a premissa essencialista de que uma pessoa ter os

progenitores que de facto tem é uma propriedade essencial da pessoa em questão) que se

Édipo é filho de Jocasta, então necessariamente Édipo é filho de Jocasta.

(2***) É apenas empiricamente que sabemos que Édipo é filho de Jocasta.

(3***) Então só empiricamente sabemos que necessáriamente Édipo é filho de

Jocasta.

Casulo (1987:161-169 ) discute os casos kripkeanos de verdades necessárias a

posteriori que envolvem a admissão de propriedades essenciais não triviais (2º e 3º casos).

Ele considera que a reivindicação de que, admitindo a existência de propriedades

essenciais, existem proposições necessárias que são conhecidas apenas a posteriori, é

ambigua. A tese-conclusão dos argumentos, segundo a qual sabemos só a posteriori que p

é necessária (sendo p uma proposição acerca de uma propriedade essencial de um

objecto), pode ser interpretada como significando duas coisas diferentes:

(a) sabe-se a posteriori que p é necessária

(b) sabe-se a posteriori que p é necessariamente verdadeira.

Ora, argumenta Casulo, admitindo a existência de propriedades essenciais, segue-se

que o valor de verdade de uma proposição que atribua uma propriedade essencial a um

objecto pode ser apenas conhecido a posteriori, mas não se segue que que o seu estatuto

modal geral possa apenas ser conhecido a posteriori.

O argumento de Casulo não contraria o de Kripke. A interpretação Kripkeana da tese-

conclusão não é (a), a de que conhecemos só a posteriori o estatuto modal geral de p, mas

sim (b), a de que só a posteriori conhecemos o seu estatuto modal específico. (b) é a

versão forte da tese do Necessário A Posteriori. A reivindicação de Kripke de que

necessariamente p é conhecível apenas a posteriori, é uma reivindicação acerca do

estatuto modal específico de uma proposição, baseada no facto de p ser uma proposição

acerca de um objecto possuindo uma propriedade essencial, e de o valor de verdade de p

ser conhecido apenas a posteriori. Kripke não defende que o estatuto modal geral de

64
proposições acerca de propriedades essenciais de um objecto é a posteriori. Pelo contrário,

argumenta por exemplo que sabemos por análise filosófica, a priori, que se uma frase de

identidade é verdadeira é necessariamente verdadeira.

A tese kripkeana defende ser possível conhecer a posteriori o valor de verdade de

proposições necessárias (versão fraca), bem como o seu estatuto modal específico, isto é,

conhecer a posteriori verdades necessárias como tal (versão forte). No entanto não nega

que o conhecimento do estatuto modal geral de proposições, nomeadamente se são

necessárias independentemente do facto de se saber se são verdadeiras ou falsas, seja a

priori.

De facto, todos casos do Necessário A Posteriori envolvem uma premissa a priori

acerca do estatuto modal geral de uma frase de identidade ou de atribuição de essência, a

qual é uma condicional da forma éP®ÿPù : sabemos só a posteriori que necessariamente

Véspero é Fósforo, a partir do nosso conhecimento a priori da premissa “Se Véspero é

Fósforo então necessariamente Véspero é Fósforo” (e do conhecimento a posteriori da

premissa “Véspero é Fósforo”); sabemos só a posteriori que necessariamente a água é

H2O, a partir do nosso conhecimento a priori da premissa “se a água é H2O então

necessariamente a água é H2O” (e do conhecimento da premissa a posteriori “Água é

H2O”); sabemos só a posteriori que necessariamente esta mesa é feita de madeira, a partir

do nosso conhecimento a priori da premissa “se esta mesa é feita de madeira então

necessariamente é feita de madeira (e do conhecimento da premissa a posteriori “Esta

mesa é feita de madeira”).

Em reforço da legitimidade da conclusão (3) do argumento (1)-(3), que corresponde à

versão forte, Kripke parece propor um princípio adicional que pode ser assim formulado: se

uma verdade é uma consequência lógica de duas verdades e se uma delas é a posteriori,

então aquela é a posteriori.

Exemplificando com o 2º caso do Necessário A Posteriori:

(4) Se a água é H20 então necessariamente a água é H20

65
(5) A água é H20

(6)\Necessariamente a água é H20

Das premissas (4) e (5) segue-se logicamente, por modus ponens, a conclusão (6).

A justificação para (6) ser conhecida a posteriori está no facto de uma das premissas

nas quais se baseia ser a posteriori. Kripke argumenta que (4) é a priori: sabemos por

“análise filosófica” que se a constituição química actual da água é H20 então a água é H20

em todos os mundos possíveis; (6) é a posteriori pois é uma consequência lógica de (4) e

(5), sendo que (5) é a posteriori dado ser uma descoberta científica.

É possível encontrar contra-exemplos ao princípio segundo o qual se uma verdade é

uma consequência lógica de duas premissas em que uma delas é a posteriori, essa

verdade é a posteriori . Nesses contra-exemplos, no entanto, as premissas condicionais são

epistemicamente irrelevantes. Vejamos um contra-exemplo cuja condicional tem como

consequente o caso típico do contingente a priori de Kripke:

(7) Se a água é H2O então um metro é o comprimento de S em t0

(8) A água é H2O

(9) \Um metro é o comprimento de S em t0

A premissa condicional (7) é a priori pois a sua consequente é a priori (trata-se do

contingente a priori defendido por Kripke). Embora seja epistemicamente não relevante,

contrariamente aos casos exemplificativos do Necessário A Posteriori dados por Kripke, a

conclusão não deixa de ser uma consequência lógica das premissas. A conclusão (9) é a

priori embora seja uma consequência lógica de (7) e (8), sendo (8) a posteriori.

O contra-exemplo (e semelhantes) parece-me só poder ser refutado se ao princípio

de Kripke se acrescentar a exigência de relevância epistémica.

66
Na medida em que estamos a lidar com contextos epistémicos o carácter

epistemicamente irrelevante da premissa condicional tem uma importância capital. Numa

condicional epistemicamente irrelevante o conhecimento do valor de verdade da

consequente não deriva do conhecimento do valor de verdade da antecedente e, portanto,

o modo de conhecer a consequente não deriva do modo de conhecer a antecedente. É a

ausência dessa relevância que produz o contra-exemplo: a conclusão (9) constitui a

consequente não relevante da premissa condicional (7), pelo que mesmo que só a

posteriori se possa conhecer a antecedente, a premissa (8), não se segue que só a

posteriori se possa conhecer a consequente, a conclusão (9).

Ora, é porque a premissa condicional, nos casos do Necessário A Posteriori, não é

epistemicamente irrelevante, que o modo de conhecer a antecedente determina o modo de

conhecer a consequente: dado que a premissa condicional (4) estabelece uma relevância

epistémica da sua antecedente para a sua consequente, (6) só pode ser conhecida a

posteriori porque (5) só pode ser conhecida a posteriori.

Do que ficou dito parece-me poder concluir que o princípio adicional do argumento de

Kripke, para poder ser mantido, exige a seguinte reformulação: se uma verdade é uma

consequência lógica e epistemicamente relevante de duas premissas, uma delas a

posteriori, essa verdade é a posteriori.

67
CAPÍTULO III - TAXONOMIA DO NECESSÁRIO A POSTERIORI

Introdução

Neste último capítulo apresentarei uma taxonomia do Necessário A Posteriori que

comtempla três tipos de casos, e delinearei os argumentos e objecções para cada caso.

Os casos de verdades necessárias a posteriori, defendidos por Kripke, Putnam e

outros, podem ser separados em três distintos grupos, dadas as suas características

específicas e as diversas contra-argumentações a que dão origem.

O primeiro grupo a ser discutido engloba os casos de identidades formuladas à custa

de nomes próprios, como por exemplo a identidade de Véspero e Fósforo, ou a de Cícero e

Túlio. A premissa condicional do argumento de Kripke que permite estabelecer estes casos

é directamente posta de pé com base na tese semântica da designação rígida de nomes,

sem pressupôr nenhuma teoria metafísica especial (para além da que possa estar envolvida

na tese da designação rígida e que foi atrás referida). Aquela premissa pode ser formulada

desta maneira: se uma frase de identidade na qual ocorrem apenas designadores rígidos é

68
verdadeira, então é necessariamente verdadeira. Por exemplo, se “Véspero” e “Fósforo” são

designadores rígidos de Vénus, então em qualquer mundo em que Vénus exista “Fósforo”

e “Véspero” designam Vénus. Segue-se que em qualquer mundo em que Vénus exista a

frase “Véspero = Fósforo” é verdadeira, e, portanto, necessariamente, Véspero, se existe, é

idêntico a Fósforo.

Poder-se-á acrescentar que se aquela identidade é necessária então Véspero tem a

propriedade essencial de ser idêntico a Fósforo. Não se trata aqui propriamente de uma

propriedade essencial no sentido substantivo; trata-se de uma propriedade essencial trivial,

no sentido de uma propriedade cuja verificação resulta directamente da teoria semântica e

de alguma lógica modal elementar.

Assim, e exemplificando o argumento de Kripke, se sabemos por análise filosófica -

por meio da tese da designação rígida e de alguma lógica modal elementar - que se

Véspero é Fósforo, então necessariamente Véspero é Fósforo; e se só por meios empíricos

podemos saber que Véspero é Fósforo; então só empiricamente podemos saber que

necessariamente Véspero é Fósforo.

Os outros dois grupos de casos de necessidades a posteriori ( os que dizem respeito

a categorias naturais e à origem e composição material de objectos físicos) são exemplos

de formas de essencialismo não trivial. Na demonstração de tais casos são imprescindíveis

certas suposições e intuições essencialistas não triviais, as quais estão naturalmente

sujeitas a controvérsia.

Os casos que dizem respeito a categorias naturais (por exemplo, que a água é H2O

ou que os tigres são mamíferos) não derivam directamente da teoria semântica,

nomeadamente da tese de Putnam acerca de como a extensão de um termo para uma

categoria natural é fixada. São premissas não já semânticas, mas metafísicas que os

possibilitam. Com o argumento da Terra Gémea Putnam visa defender uma teoria

semântica, nomeadamente a de que termos para categorias naturais são designadores

rígidos. Visa ainda defender teses metafísicas, nomeadamente a de que categorias naturais

têm propriedades essenciais, que a estrutura física actual de uma substância natural é uma

69
propriedade essencial dessa substância, e que a pertença à classe taxonómica na qual está

incluída uma determinada espécie animal é uma propriedade essencial dos membros dessa

espécie. Estas teses essencialistas, motivadas por intuições acerca da inteligibilidade ou

não de determinadas situações contrafactuais, são portadoras de um novo e polémico

discurso acerca de essências: as propriedades essenciais de uma categoria natural são

propriedades naturais de cuja descoberta se ocupa a ciência. Assim, se sabemos, por

análise filosófica, que a estrutura química de uma substância natural, a água por exemplo, é

uma propriedade essencial dessa substância, e se a ciência descobriu que a estrutura

química da água é H2O, então a ciência descobriu uma propriedade essencial da água.

Os últimos casos de verdades necessárias a posteriori a serem discutidos, os casos

que dizem respeito à origem e composição material de objectos físicos (como, por exemplo,

o caso de Édipo ser necessariamente filho de Jocasta, ou o caso de esta mesa de madeira

ser necessariamente de madeira), também exigem premissas essencialistas fortes: que a

origem e a composição material são propriedades essenciais de particulares dados,

propriedades que esses particulares, existindo, não podem deixar de possuir. Assim, se

sabemos, por análise filosófica, que a origem biológica de um indivíduo i é uma propriedade

essencial de i, e se a ciência descobriu a origem biológica de i, então a ciência descobriu

uma propriedade essencial de i.

1- Identidades e o Necessário A Posteriori

De entre os casos de verdades necessárias que só empiricamente podem ser

conhecidas, discutirei primeiramente os de identidades verdadeiras formuladas à custa de

nomes próprios. Como exemplos paradigmáticos temos os da identidade de Fósforo e

Véspero ou de Cícero e Túlio. Trata-se de casos de verdades necessárias a posteriori,

dadas as seguintes premissas: 1ª- todas as identidades verdadeiras formuladas à custa de

nomes próprios são necessariamente verdadeiras; 2ª - aquelas identidades só

empiricamente podem ser conhecidas.

70
1.1- A necessidade das identidades verdadeiras formuladas à custa de nomes

próprios: o argumento de Kripke.

Mostrei que o argumento geral de Kripke que suporta a versão forte da sua tese partia

da premissa de que conhecemos a priori o estatuto modal geral de certas proposições

necessárias. Esta premissa a priori é uma condicional da forma geral éP ® ÿPù. Nos

casos agora em questão, essa premissa resulta directamente quer da tese semântica da

Designação Rígida quer da Tese da Necessidade da Identidade (conforme adoptemos o

ângulo de visão linguístico ou não).

A Tese da Necessidade da Identidade é um teorema da habitual lógica modal

quantificada e é, informalmente, a tese metafísica segundo a qual aquilo que é na realidade

um objecto não poderia ser dois objectos ("x "y ( x=y ® ðx=y)). A contraparte linguística

desta tese, que diz que qualquer frase de identidade verdadeira na qual ocorram apenas

designadores rígidos é necessariamente verdadeira, é um corolário lógico da tese

metafísica substituindo variáveis por designadores rígidos (constantes individuais): (a=b ®

ða=b).

Exemplificando, a premissa condicional a priori é a seguinte (tomando um caso

clássico):

(1) Se Véspero é Fósforo, então necessariamente Véspero é Fósforo.

(1) resulta directamente da tese da Designação Rígida de nomes. Se “Véspero” e

“Fósforo” são designadores rígidos de Vénus, então designam Vénus não só no mundo

actual, mas em qualquer mundo possível em que Vénus exista. Assim, se a frase “Véspero

= Fósforo” é verdadeira no mundo actual, então é verdadeira em todos os mundos possíveis

em que Vénus exista.

(1) resulta também directamente da tese da Necessidade da Identidade. Quando se

pergunta : poderia Véspero não ter sido Fósforo?, a pergunta é acerca de coisas, e não de

71
nomes, e a resposta é negativa, se a tese da Necessidade da Identidade for verdadeira (se

um objecto não pode ser dois objectos).

A contingência das identidades verdadeiras constituídas só com nomes poderia ser

defendida se se adoptasse a teoria descritivista dos nomes. Para esta teoria, nomes são

abreviaturas de descrições e referem via propriedades, pelo que a frase “Véspero=Fósforo”

é contingentemente verdadeira porque ela é vista como dizendo o mesmo que “O corpo

celeste visto à tarde em tal e tal posição = O corpo celeste visto de manhã em tal e tal

posição”, e esta última frase é contingentemente verdadeira. Kripke argumenta contra a

teoria descritivista dos nomes, defendendo que as descrições associadas aos nomes não

são sinónimas dos nomes; na melhor das hipóteses, e em alguns casos, apenas fixam a

referência por meio de características contingentes do referente. Assim, é uma verdade

necessária que Véspero é Fósforo mas é contingente que o corpo celeste visto à tarde em

tal e tal posição seja o corpo celeste visto de manhã em tal e tal posição.

A identificação de aprioridade (modalidade epistémica) e necessidade (modalidade

metafísica) está, segundo Kripke, na raíz da confusão relativamente ao problema da

necessidade da identidade: porque é empiricamente que sabemos que Fósforo é Véspero,

então pensa-se, é contingentemente verdadeiro que Fósforo é Véspero. Acontece que a

maior parte dos argumentos contra este tipo de exemplos de necessidades a posteriori

confunde o “poderia” epistémico com o metafísico: podemos ter situações idênticas - quer

do ponto de vista epistémico (daquilo que sabemos) quer qualitativo ( da fenomenologia) -

em que determinamos a referência dos nomes “Fósforo” e “Véspero” através daquelas

descrições identificadoras, e em que numa, chamamos “Fósforo” e “Véspero” a um mesmo

corpo celeste e, noutra, a corpos celestes diferentes. Mas esta última situação não é uma

situação em que Fósforo não seja Véspero, pois o termo “Fósforo” é aqui usado para

designar outro planeta, não é usado tal como nós o usamos. Assim, uma situação

contrafactual em que “Fósforo” não é usado para designar Fósforo (=Véspero) é ainda uma

situação na qual Fósforo é Véspero (ver Kripke 1988: 102-105).

72
Mostrei que estes casos de verdades necessárias a posteriori resultam directamente

quer da tese semântica da Designação Rígida de nomes quer da tese da Necessidade da

Identidade, pelo que a maneira mais óbvia de os rejeitar consiste em rejeitar aquelas teses.

1.2- Identidades contingentes: o contra-argumento de Allain Gibbard

Alain Gibbard (1975: 187-221) rejeita ambas aquelas teses, defendendo que nem

todas as identidades verdadeiras formadas com nomes próprios são necessárias. O

exemplo apresentado por Gibbard diz respeito a estátuas de barro e peças de barro, e

pressupõe que estátuas de barro e peças de barro são objectos específicos, podendo

portanto ser designados através de nomes próprios. O objectivo é mostrar que, debaixo de

certas circunstâncias, uma estátua de barro é idêntica à peça de barro da qual é feita, mas

esta identidade é apenas contingente.

Para uma estátua de barro ser idêntica à peça de barro da qual é feita, têm de ter

todas as propriedades em comum, nomeadamente têm de começar a existir ao mesmo

tempo e deixar de existir ao mesmo tempo. Ora, os critérios de persistência para estátuas

de barro e para peças de barro são diferentes. Uma peça de barro P persiste enquanto

todas as partes de P estiverem ligadas umas às outras; e deixa de existir quando as partes

de P deixam de estar ligadas umas às outras ou se ligam a porções de barro que não estão

em P. Uma estátua de barro E persiste enquanto a peça de barro de que é feita perdura e

mantém a sua forma específica; e deixa de existir quando a peça de barro deixa de existir

ou deixa de ter essa forma.

Dados os critérios de persistência para estátuas de barro e peças de barro, uma

estátua de barro é idêntica à peça de barro da qual é feita na seguinte situação. A estátua

de Golias é feita em duas etapas: primeiro a parte de cima da cintura e depois a parte de

baixo, sendo em seguida as duas partes ligadas. Neste momento começa a existir

simultaneamente uma nova peça de barro e uma nova estátua; se, um pouco mais tarde, se

destruir a estátua quebrando-a em pedaços, esta deixa de existir juntamente com a peça

de barro. Nesta situação a estátua, que designamos por “Golias”, e a peça de barro, que

73
designamos por “Pebar”, começam a existir ao mesmo tempo e perduram durante o mesmo

período de tempo, pelo que Golias=Pebar. No entanto, argumenta Gibbard, esta identidade

é contingente: suponhamos uma outra situação contrafactual, digamos o mundo possível

m1, onde Pebar começou a existir ao mesmo tempo que Golias, tal como foi descrito na

situação acima, no mundo actual ma, mas, antes do barro secar, foi moldada uma bola.

Neste momento Golias deixou de existir; mas Pebar continuou a existir com uma nova

forma. Logo, em m1, Golias ¹Pebar.

A situação exemplificada, isto é, Golias=Pebar no mundo actual, ma, e Golias

¹Pebar naquela situação contrafactual, m1, é incompatível com a tese de Kripke da

designação rígida de nomes. É incompatível porque “Golias” e “Pebar” não referem o

mesmo objecto em todos os mundos possíveis em que o objecto existe. Gibbard propôe

uma outra teoria acerca de nomes próprios, segundo a qual nomes próprios são

designadores rígidos não dos objectos em si mesmos, mas dos objectos sob uma categoria

ou tipo a que estão associados. “Golias” refere uma coisa x enquanto estátua e “Pebar”

refere uma coisa x enquanto peça de barro. Assim, porque “Golias” e “Pebar” referem uma

coisa que pertence a duas diferentes categorias, com critérios de persistência diferentes, a

identidade é contingente. É verdadeira porque, à luz dos dois conjuntos de critérios, os dois

nomes designam a mesma coisa (que começa a existir e deixa de existir ao mesmo

tempo); mas é contingente porque há uma situação contrafactual na qual, depois da coisa

ter vindo à existência, e à luz dos dois conjuntos de critérios, Golias, contrariamente a

Pebar, poderia ter deixado de existir.

Assim, segundo Gibbard, a referência de um nome num mundo possível m1,

ramificado a partir do mundo actual ma, depende de duas coisas: da sua referência no

mundo actual (que determina como é que se origina a coisa que denota em m1) e dos

critérios de persistência que invoca (que determina qual das coisas que se originaram dessa

maneira o nome denota em m1).

74
Deste modo, no mundo actual, Golias=Pebar, pois os dois nomes referem a mesma

coisa enquanto estátua e enquanto peça de barro: Golias e Pebar começaram a existir ao

mesmo tempo e deixaram de existir ao mesmo tempo. Em m1, Golias ¹Pebar pois, tendo

em conta os critérios de persistência para estátuas e peças de barro, Golias (a estátua que

teve aquela origem) deixou de existir, e Pebar (a peça de barro que teve aquela origem)

permanece.

O argumento de Gibbard pressupõe que nomes não são designadores rígidos de

particulares simpliciter mas de particulares sob categorias a que pertencem. Segundo

Gibbard, não tem sentido falar de um particular em diferentes mundos independentemente

do modo como é designado. Da teoria da referência de nomes proposta por Gibbard segue-

se a rejeição da identidade transmundial de particulares e a sua substituição pela identidade

transmundial sob um género. A rejeição da identidade transmundial de particulares significa

que não tem sentido falar da mesma coisa particular em diferentes mundos possíveis

independentemente do modo como é designada, não faz sentido perguntar se dois

indivíduos são o mesmo, tem que se responder primeiro à questão: ”o mesmo quê?”.

Segue-se ainda a rejeição da modalidade de re , isto é, não tem sentido falar de um

particular como possuindo em si uma propriedade essencial, uma propriedade que possui

necessariamente, uma propriedade que essa coisa possui em todos os mundos em que

existe, independentemente de qualquer descrição.

2.3- Réplicas ao argumento de Allain Gibbard

De que modo o argumento de Gibbard pode ser contrariado?

A réplica pode tomar duas direcções. A primeira vai no sentido de mostrar que

Gibbard assume (disfarçadamente) o descritivismo. A segunda vai no sentido de mostrar

que o argumento de Gibbard viola a lei de Leibniz.

Gibbard defende a ideia de que nomes não designam rigidamente objectos, mas

objectos descritos de certo modo, sob categorias a que estão associados. Ora, se nomes

são descrições, se “Golias” designa um determinado objecto enquanto estátua com uma

75
determinada forma e “Pebar” designa um determinado objecto enquanto peça de barro,

segue-se que o facto da frase “Golias = Pebar” ser verdadeira, não implica que seja

necessariamente verdadeira. A frase de identidade “Golias = Pebar” comporta-se como

qualquer frase de identidade onde ocorrem designadores não rígidos, isto é, do facto de ser

verdadeira não se segue que seja necessariamente verdadeira.

Esta réplica ao argumento de Gibbard não serve os propósitos de Kripke porque

assume o descritivismo.

A outra maneira de refutar o argumento de Gibbard é pressupôr a designação rígida

de nomes e mostrar que não é o caso que “Golias=Pebar” pois, a ser o caso, violar-se-ia a

Indiscernibilidade de Idênticos. Suponhamos que Pebar = Golias num determinado tempo t.

Logo Pebar e Golias têm todas as propriedades em comum. Assim, se Pebar, em t, tem

uma determinada propriedade modal M, então Golias tem, em t, essa propriedade.

Acontece que, em m1, Pebar teria a propriedade de continuar a existir em t se a forma (e

só ela) mudasse, mas Golias não teria essa propriedade. Logo, afirmar que Golias=Pebar é

violar a Indiscernibilidade de Idênticos.

2.4- Refutação de alegadas objecções ao conhecimento a posteriori das identidades

verdadeiras envolvidas nestes casos.

Regressando então a (1), e admitindo a tese da designação rígida de nomes, temos

por modus ponens :

(1) Se Fósforo é Véspero necessariamente Fósforo é Véspero.

(2) Fósforo é Véspero

(3) \Necessariamente Fósforo é Véspero.

O argumento de Kripke em defesa do carácter a posteriori de (3), isto é, de que (3) só

pode ser conhecida empiricamente, já foi discutido anteriormente: porque (3) é uma

consequência lógica ( e epistemicamente relevante) de (1) e (2), e dado (2) só poder ser

conhecida por meios a posteriori, (3) só pode ser conhecida por meios a posteriori.

Admitindo a plausibilidade deste argumento, o único modo de refutar que (3) seja a

76
posteriori ou só possa ser conhecida a posteriori, é defender que (2) não é a posteriori ou

que (2) pode ser conhecida independentemente da experiência.

Pavel Tichý (1983: 225-241), na sua crítica a Kripke e na sua defesa da conexão

tradicional necessidade-aprioridade, pretende refutar precisamente a ideia de que a

premissa (2) seja a posteriori. Tický argumenta que, dado “Fósforo” e “Véspero” serem

designadores rígidos, (2) é uma particularização do princípio lógico de que qualquer objecto

é idêntico a si mesmo, e logo que é conhecida a priori. Esta alegada refutação pressupõe

que nomes co-referenciais satisfazem o princípio da substituibilidade em todos os

contextos, inclusivamente em contextos epistémicos.

Eis o argumento de Ticky:

(4) A proposição que Fósforo é Véspero é idêntica à proposição que Fósforo é

Fósforo.

(5) Posso saber a priori que a proposição que Fósforo é Fósforo é verdadeira.

(6) \Posso saber a priori que a proposição que Fósoforo é Véspero é verdadeira.

A ideia de Ticky é a de que, admitindo, de acordo com Kripke, que a única função

semântica do termo “Fósforo” é referir Vénus e a do termo “Véspero” é exactamente a

mesma de “Fósforo”, e logo que ambos os termos são designadores rígidos de Vénus,

então ao afirmar (2) estamos a imputar auto-identidade a Vénus. (2) é um caso particular

do princípio lógico da reflexividade da identidade, logo é conhecida a priori e é necessária.

Admitida a conclusão (6), refuta-se que a premissa (2) do argumento de Kripke seja a

posteriori, ou, pelo menos, que só possa ser conhecida por meios empíricos.

Parece incompreensível, argumenta Tický, que, segundo Kripke, tenhamos que

recorrer à observação empírica do movimento de vários corpos celestes e da sua

visibilidade em diferentes momentos do dia para saber que (2), pois (2) nada afirma acerca

dessas matérias: o que (2) afirma é que Vénus é idêntico a si mesmo. O único modo de dar

sentido à argumentação de Kripke de que (2) é a posteriori é, segundo Tický, admitir que

aquele confundiu uso e menção de uma proposição, e que o que de facto Kripke quer dizer

quando diz (2) é que:

77
(2*) A frase “Fósforo é Véspero” é verdadeira.

Ora, (2) e (2*) são diferentes proposições. (2) é a priori e necessária: é a priori que

conhecemos a verdade necessária que Vénus é idêntico a si mesmo. (2*) é a posteriori e

contingente: é a posteriori que conhecemos o facto contingente de “Fósforo” e “Véspero”

serem expressões da Língua Portuguesa que designam o mesmo objecto.

Assim sendo, continua Ticky, o argumento de Kripke não pôe em causa a tese da co-

extensionalidade necessidade-aprioridade, pois (2*) exemplifica o contingente-a posteriori,

e (2) o necessário- a priori.

A argumentação de Tický não pode, no entanto, ser usada contra Kripke pois este não

aceita o que está pressuposto no argumento de (4) e (5) para (6). O que está aí

pressuposto é que frases que expressam a mesma proposição são permutáveis em

contextos epistémicos: se eu sei a priori que P, e P é a mesma proposição que Q, então sei

a priori que Q. O que está aí pressuposto é que nomes co-referenciais são permutáveis

em contextos epistémicos, pelo que mudando uma frase pela substituição de um nome

próprio por outro com a mesma referência produzir-se-á sempre uma nova frase que

expressa a mesma proposição que a anterior. Ora, segundo Kripke, que não se cansa de

distinguir a necessidade metafísica da epistémica, nomes são modalmente rígidos mas não

epistemicamente rígidos, isto é, satisfazem o princípio da substituibilidade em contextos

modais mas não em contextos epistémicos. Embora a proposição expressa pela frase

“Fósforo é Fósforo” e a expressa pela frase “Fósforo é Véspero” sejam ambas necessárias

e equivalentes em contextos modais, não são ambas a priori e equivalentes em contextos

epistémicos: (2) é a posteriori pois só empiricamente podemos descobrir este caso

particular da identidade de um objecto consigo mesmo, que aquilo que designamos

rigidamente por “Fósforo” e aquilo que designamos rigidamente por “Véspero” é um e o

mesmo objecto, Vénus. Assim, na medida em que Kripke não aceita a pressuposição do

argumento de Tický, a crítica deste à suposta confusão Kripkeana entre uso e menção de

uma proposição deixa de ter sentido. Por outro lado, aquela interpretação de Kripke é

78
implausível dado que este revela ser sensível à distinção uso-menção em “Naming and

Necessity” (1988: 62; n.25).

Curtis Brown (1984: 379-397) admite também, contrariamente a Kripke, que nomes

co-referenciais são permutáveis em contextos epistémicos. Deste modo, aceita a conclusão

(6) do argumento de Tický, de que podemos saber a priori que Véspero é Fósforo. Assim,

admitindo (6), defende que o argumento de Kripke (de que sei a priori que (1) e a posteriori

que (2) pelo que sei a posteriori que (3)), não mostrou (pelo menos para aqueles que

aceitam a permutabilidade de nomes coreferenciais em contextos epistémicos) que há

proposições necessárias que não podem ser conhecidas a priori. Apenas mostrou que há

proposições necessárias que podem ser conhecidas a posteriori (não mostrou que (3) não é

a priori, mas apenas que pode ser conhecida empiricamente). Deste modo seria refutada a

tese segundo a qual existem verdades necessárias a posteriori, isto é, existem verdades

necessárias que só podem ser conhecidas empiricamente.

A doutrina da substituibilidade universal de nomes está na base das argumentações

acima delineadas, as quais constituem objecções ao conhecimento a posteriori de

identidades verdadeiras formuladas à custa de nomes próprios. Tal doutrina envolve

questões relativas ao modo como nomes co-referenciais se comportam em contextos

epistémicos, questões que são, segundo Kripke, muito problemáticas, pelo que não tem

nenhuma “doutrina oficial” (1988: 21) acerca delas. Contra a doutrina da substituibilidade

universal de nomes, argumenta que o facto da frase portuguesa “Véspero é Fósforo” poder

ser usada para levantar uma questão empírica e a frase “Fósforo é Fósforo” não poder ser

usada para tal, mostra que as frases não são completamente permutáveis. A questão está

então em saber se podemos, sem contradição, aceitar a permutabilidade de nomes co-

referenciais em contextos modais e recusá-la em contextos epistémicos. A argumentação

de Kripke em “Naming and Necessity” acerca da distinção entre necessidade metafísica e

epistémica e acerca das descrições não serem sinónimas dos nomes, fixando em alguns

casos apenas a sua referência, mostrou que a doutrina da substituibilidade para contextos

modais pode ser mantida mesmo que ela seja omitida para contextos epistémicos.

79
1.5- Esquema do argumento para estes casos do Necessário A Posteriori: (EI)

Os casos do Necessário A Posteriori que tenho estado a discutir são, apesar de tudo,

os menos problemáticos. De facto, a defesa de tais casos não exige premissas

essencialistas não triviais e o essencialismo aí envolvido é trivial.

A admissão de verdades necessárias a posteriori expressas por identidades

construídas a partir de dois termos singulares distintos que designam rigidamente o mesmo

item, resulta directamente da tese da designação rígida, do carácter empírico das

identidades verdadeiras, e de alguma lógica e semântica modal elementar. De facto, Kripke

conclui que só empiricamente podemos saber que frases de identidade verdadeiras onde

ocorrem apenas designadores rígidos são necessariamente verdadeiras, com base na tese

semântica da designação rígida de nomes e na descoberta empírica das identidades em

questão. Por meio da tese da designação rígida sabe-se que se uma frase de identidade

onde ocorrem apenas designadores rígidos é verdadeira então é necessariamente

verdadeira (sabe-se a priori que (1)); por meios empíricos sabe-se que aquelas identidades

são verdadeiras (sabe-se a posteriori que (2)).

Helen Steward (1990: 385-398) sugere que estes casos podem ser plausivelmente

argumentados por meio do seguinte esquema, a que chama esquema da identidade (EI):

(EI) (i) (a=b)®Nec (a=b)

(ii) a=b

(iii) “a” e “b” são designadores rígidos

(iv) Nec (a=b)

A premissa a priori (i ) é a formulação linguística da tese da necessidade da

identidade. A premissa a posteriori (ii) é o resultado de descobertas científicas. A premissa

(iii) é de natureza semântica. A conclusão (iv) é a posteriori dado o input empírico em (ii).

O objectivo de Steward é mostrar que este esquema se não aplica aos casos de

necessidades a posteriori que envolvem termos para categorias naturais e que passo a

discutir.

80
2- Categorias naturais e o Necessário A Posteriori

Os casos de verdades necessárias que só empiricamente podem ser conhecidas que

discutirei nesta secção envolvem termos para categorias naturais, termos para substâncias

como “água” ou “ouro”, termos para espécies animais como “tigre”, para fenómenos

naturais como “calor”, etc. Assim, por exemplo, “A água é H2O”, “Tigres são mamíferos”, “O

calor é o movimento molecular”, são alegadas verdades necessárias conhecidas apenas a

posteriori.

A situação com estes casos será semelhante à situação das identidades verdadeiras

com designadores rígidos? Mostrei que, nesta última situação, a conclusão essencialista

trivial deriva de premissas lógicas mais ou menos incontroversas coadjuvadas por

premissas de natureza empírica e semântica. Respondendo negativamente à questão

acima colocada, mostrarei agora que os casos em questão exigem premissas essencialistas

suportadas por intuições eminentemente metafísicas.

2.1- Inadequação de (EI) aos casos que envolvem categorias naturais.

A consideração kripkeana de que as identificações teóricas como “Água=H2O” ou

“Ouro= o metal com o peso atómico 79”, são exemplos de identidades verdadeiras

descobertas empiricamente cujos termos são ambos designadores rígidos (1980: 140),

poderá levar-nos a considerar que (EI) também se aplica a estes casos. Teríamos assim a

seguinte exemplificação de (EI):

(v)Para quaisquer designadores rígidos “a”, “b”, Tem-se “a=b®Nec (a=b)”

(vi) Água=H2O

(vii) “Água” e “H2O” são designadores rígidos

(viii) Logo, Nec (Água=H2O)

Deste modo, uma verdade essencialista substancial seria derivada da filosofia da

linguagem que fornece as premissas (v) e (vii), e da descoberta empírica expressa na

81
premissa (vi). O essencialismo expresso na conclusão (viii), de que ser H2O é uma

propriedade essencial da água, seria assim directamente derivado da tese semântica da

rigidez de termos para categorias naturais.

Assumindo que o argumento acima enunciado é válido, a conclusão não poderá ser

falsa e as premissas todas verdadeiras. Steward (1990:385-398) pretende mostrar que (vii)

é falsa, nomeadamente que “H2O” não é um designador rígido, imaginando uma situação

contrafactual na qual não é o caso que a Água=H2O. A situação contrafactual imaginada

por Steward é a seguinte : suponhamos que o núcleo dos átomos que compõem as

moléculas de H2O contêm protões-B que, sendo similares aos protões correntes, produzem

diferentes macropropriedades, pelo que H2O é um sólido opaco e cor de rosa. Steward

conclui que, nesta situação, Água¹H2O, pelo que “H2O” não é um designador rígido.

A premissa de que Steward parte para concluir que, naquela situação, Água¹H2O é a

de que a “água” tem um conteúdo descritivo: “o líquido incolor, transparente, etc”. Assim,

um sólido opaco e cor de rosa não se enquadra naquela descrição. Esta premissa é

duvidosa e a plausibilidade da sua refutação depende da plausibilidade da refutação da

teoria descritivista. Os críticos da teoria descritivista, nomeadamente Kripke e Putnam,

argumentam que as propriedades normalmente associadas a um termo para uma categoria

natural não fornecem uma condição necessária e suficiente de pertença à extensão do

termo; que termos para categorias naturais não referem via propriedades nem são

sinónimas das descrições identificadoras.

Outro modo, mais convincente, de refutar o argumento (v)-(viii) é mostrar a petitio que

comete. O estabelecimento da verdade da premissa (vii), em especial a de que “H2O” é

rígido, exigiria que a conclusão do argumento, isto é, que necessariamente Água=H2O,

fosse tomada como garantida, pelo que não pode ser usada como prova para essa

conclusão. Isto porque a rigidez de “H2O” não seria de jure mas de facto, isto é, a rigidez de

“H2O” não resulta de uma estipulação, mas exige o apelo a factos modais extra-linguísticos.

Assim, porque a rigidez de um termo como “H2O”, dada a sua complexidade conceptual, só

82
pode ser de facto, o estabelecimento da premissa (vii) exige mais do que uma reflexão

acerca do comportamento de expressões referenciais.

Mesmo admitindo que a situação contrafactual imaginada é uma situação onde H2O

não seria água, o que, como mostrei, é questionável, não se trata de uma situação na qual

a água não tem a composição química H2O, mas uma situação onde a água não existe.

Aquela situação apenas contraria a pressuposição de que se x é H2O, então x é água; mas

não contraria a pressuposição conversa, a de que se x é água, então x é H2O. Permanece

ainda plausível que a água deva essencialmente ter a composição química H2O, pelo que a

conclusão “Necessariamente a água é H2O”, onde o “é” é um “é” predicativo, não é posta

em causa.

2.2- O esquema kripkeano de argumentação

Assim sendo, o esquema do argumento para a defesa destes casos do Necessário A

Posteriori não seria o argumento da identidade acima descrito. O esquema adequado é o

sugerido por Kripke para todos os casos do Necessário A Posteriori, e que poderá ser,

nestes casos, assim representado:

(7) Dada uma substância natural x , se x tem uma composição química y então

necessariamente x tem a composição química y

(8) x tem a composição química y

(9) Necessáriamente x tem a composição química y

A premissa condicional a priori (7) exprime o princípio essencialista segundo o qual a

composição química de uma substância é uma propriedade essencial da substância, isto é,

dado que x tem de facto y, uma condição necessariamente necessária para uma substância

ser x é ter a composição química y: necessariamente, se x existe, x tem y. Esta premissa

essencialista faz apelo às nossas intuições modais através de exemplos da Terra Gémea ou

similares. A premissa (8) é a posteriori e expressa a descoberta científica da composição

83
química de uma determinada substância. Destas duas premissas se conclui que em todos

os mundos possíveis aquela substância tem aquela composição química: a conclusão (9) é

a posteriori dado o input (8). Aplicada ao caso da água, a conclusão é a de que

necessáriamente a água é ( no sentido predicativo) H2O, isto é, ser H2O é uma condição

necessariamente necessária para ser água7

A conclusão do argumento que usa (EI), a conclusão (viii), dado que a relação de

identidade é simétrica, junta à tese predicativa, a de que necessariamente a água é H2O, a

tese de que necessariamente H2O é água, isto é, que ser H2O é também uma condição

necessariamente suficiente para ser água. Ora, os exemplos da Terra Gémea e similares

não mostram que necessariamente ser H2O é uma condição suficiente para ser água, que

H2O em todos os mundos possíveis em que existe é água; mas talvez mostrem que

necessariamente ser H2O é uma condição necessária para ser água, que a água em todos

os mundos possíveis em que existe é H2O.

2.3- Discussão do suposto esquema de argumentação de Putnam.

Putnam, como Kripke, defende que as categorias naturais têm propriedades

essenciais e que estas são fornecidas pelas ciências naturais; e parece também derivar o

essencialismo directamente de uma teoria acerca de como a extensão de um termo para

uma categoria natural é fixada. A teoria de Putnam acerca da extensão de termos para

categorias naturais e a teoria de Kripke acerca da sua referência assemelham-se; ambas

negam que a extensão (ou referência) de termos para categorias naturais seja função das

descrições acreditadas pelos falantes como sendo verdadeiras das coisas pertencentes a

essas categorias.

No entanto, o argumento da Terra Gémea parece ser usado por Putnam não só para

defender teses semânticas acerca de termos para categorias naturais, mas também para

defender teses essencialistas, isto é, atribuir propriedades essenciais a categorias naturais

tais como espécies animais ou substâncias naturais.

7
q é uma condição necessariamente necessária de p sss ÿ(p®q) é verdadeira

84
Putnam (1996:3-52) visa demonstrar, por meio do argumento da Terra Gémea, que as

propriedades gerais normalmente associadas a um termo para uma categoria natural não

constituem uma condição logicamente suficiente de aplicação (coisas distintas na Terra e na

Terra Gémea satisfazem essas propriedades); assim sendo, defende que termos para

categorias naturais são designadores rígidos dessas categorias, e que a extensão de tais

termos não é determinada pelas crenças daqueles que os usam. Defende ainda teses não

já semânticas mas metafísicas, nomeadamente a tese de que é uma propriedade essencial

da água ser H2O ou a tese de que é uma propriedade essencial de cada tigre ser um

mamífero. As teses essencialistas são motivadas por intuições acerca da inteligibilidade ou

não de certas situações imaginadas. Por exemplo, se aquilo a que se chama “água” na

Terra Gémea é ou não é água, se a palavra “água” tem ou não extensões idênticas na Terra

e na Terra Gémea, apesar de todas as características fenomenológicas dos líquidos serem

iguais, etc. Estas intuições vão todas no sentido negativo. O argumento de suporte visa

determinar condições de identidade transmundial para categorias naturais: as condições de

identidade transmundial para substâncias são fixadas por considerações acerca da sua

natureza física fundamental, e as condições de identidade transmundial para espécies são

fixadas por considerações acerca da sua posição relativa na árvore taxonómica.

Assim sendo, não é apenas a teoria do significado de termos relativos a categorias

naturais, que tem, no dizer de Putnam, “consequências alarmantes para a teoria da verdade

necessária” (1996), no sentido em que, afinal, nem todas as verdades necessárias são

conhecidas a priori. É plausível pensar que esta consequência exige a admissão de uma

premissa essencialista substantiva - apoiada nas intuições modais acima aludidas-, e não

decorre directamente de uma teoria acerca do modo como termos para categorias naturais

referem. Assim, para podermos concluir que a frase “A água é H2O”, sendo conhecida

empiricamente, é metafisicamente necessária, temos de admitir uma premissa essencialista

fundada na intuição de que “não chamamos água a qualquer outra substância real ou

hipotética a menos que tenha uma composição química similar à da água” no mundo actual

(Putnam 1988).

85
Embora Putnam não apresente nenhum argumento formal para a conclusão de que

a frase “A água é H2O” exprime uma verdade necessária a posteriori, Salmon (1982)

identifica e analisa o suposto “mecanismo” de Putnam, elaborado por Donnellan (1973;

1974), para “gerar” verdades necessárias a posteriori. Esse mecanismo é composto por três

premissas e a respectiva conclusão:

(ix) Necessariamente algo é uma porção de água sss é uma porção do mesmo líquido

que isto (aponta-se para uma porção de água)

(x) Isto tem a composição química H2O

(xi) x e y são porções de uma mesma substância S sss x e y têm a mesma

composição química .

(xii) Necessariamente cada porção de água tem a composição química H2O.

A premissa (ix) é a definição ostensiva (operacional) proposta por Putnam para

explicar o significado de termos para categorias naturais, e que exige que se aponte para

um paradigma contextualmente presente da categoria natural em questão. Resulta da

teoria de Putnam do significado de termos para categorias naturais como “água”, segundo a

qual “água” é um designador rígido, designa a mesma substância em todos os mundos

possíveis, designa a substância da qual as porções actuais de água são porções. A

premissa (x) é o resultado da descoberta científica da estrutura escondida do paradigma

actual mencionado na definição ostensiva.

Putnam alude à premissa (xi) quando fala nas “propriedades físicas importantes”

(1996) que x e y têm em comum no caso em que x é o mesmo líquido que y. A ideia é a de

que se a água tem uma estrutura “oculta”, então essa estrutura determina o que é ser uma

porção de água, não apenas no mundo actual, mas em todos os mundos possíveis: ter a

mesma composição química é uma condição necessária da co-substancialidade

transmundial.

86
O problema com o argumento, segundo Salmon, diz respeito a (xi): trata-se de um

princípio científico ou de um princípio essencialista não trivial acerca de substâncias

líquidas? A argumentação de Salmon, que me parece convincente, vai no sentido da

segunda hipótese, mostrando assim que a conclusão essencialista (xii) não é derivável da

teoria do significado e da referência de termos para categorias naturais apenas coadjuvada

por premissas que não envolvem qualquer forma de essencialismo não trivial.

A premissa (xi) seria um princípio científico se expressasse uma condição necessária

e suficiente para duas porções de um líquido serem co-substanciais, serem porções da

mesma substância. Essa condição seria a seguinte:

(xi*) necessariamente, uma condição necessária e suficiente para dois itens x e y

serem co-substanciais é que qualquer que seja a estrutura química que um tem o outro

também tem.

Mas, se assim fosse, a conclusão (xii) não se seguiria. Para que a conclusão (xii) se

siga é exigido que a premissa (xi) exprima uma condição necessária para duas porções de

um líquido serem transmundialmente co-substanciais, isto é, serem porções de uma mesma

substância em diferentes mundos possíveis:

(xi**)se x existe em m1 e y em m2 e se x é uma porção em m1 da mesma substância

que y em m2, então qualquer que seja a estrutura química que x tem em m1, y tem essa

estrutura química em m2 e vice-versa.

A premissa (xi**) não é um princípio científico que possa ser testado por experiências

de laboratório, mas um princípio testado por experiências de pensamento, por análise

conceptual e métodos de reflexão próprios da metafísica. Aquela premissa é um princípio

essencialista não trivial, pois implica que qualquer substância líquida é tal que não poderia

ter uma estrutura química diferente da que tem actualmente. Este princípio não é um

princípio empírico, pois não se está apenas a dizer, como acontece em (xi*), que porções de

água no mundo actual não poderiam não ser H2O, mas que porções de água em todos os

mundos possíveis não poderiam não ser H2O; ou seja, está-se a dizer que ser H2O é uma

propriedade essencial da água. (xi**) veicula um princípio essencialista não trivial de

87
orientação naturalista: não são possíveis mundos onde a água não tem a composição

química que a ciência descobriu ter no mundo actual.

A premissa (xi**) não só é um princípio essencialista, como também é independente

da teoria do significado e das descobertas científicas: partindo da premissa de que o termo

“água” é um designador rígido de um líquido (premissa de natureza semântica), e da

premissa de que porções de água no mundo actual têm a estrutura química H2O (premissa

de natureza científica), não se segue que as porções possíveis de água tenham

necessariamente essa estrutura. Aquelas duas premissas (semântica e científica), são

compatíveis com a negação da premissa (xi**), isto é, com a ideia de que a actual estrutura

química da substância (descoberta empiricamente) é um factor acidental da substância, e

que a mesma substância pode ter uma estrutura química diferente em diferentes mundos

possíveis (nomeadamente, a água pode ter a estrutura XYZ).

A premissa (xi**) apoia-se na intuição metafísica básica do argumento da Terra

Gémea: a composição química de uma substância é uma propriedade essencial dessa

substância. A situação imaginada traduz esta intuição ao estabelecer que a palavra “água”

na Terra e na Terra Gémea tem extensões diferentes: na Terra designa rigidamente uma

substância com a composição química H2O, na Terra Gémea designa uma substância

distinta pois tem a composição química distinta XYZ. Assim, na Terra Gémea aquilo a que

se chama “água” não é água porque não tem a composição química das porções de água

na Terra . Do mesmo modo, se descrevemos, não um outro planeta no actual universo, mas

outro mundo possível no qual há um líquido em tudo idêntico à água excepto na sua

composição química, esse líquido não é água pois não tem a composição química H2O.

Assim sendo, para uma porção de líquido ser, num mundo possível, água, tem de ter a

estrutura química da água : (xi**).

A conclusão essencialista (xii) não se deduz directamente da teoria de Putnam acerca

de como a extensão de um termo para uma categoria natural é fixada: nenhuma razão é

dada, no âmbito daquela teoria semântica, para uma propriedade particular (ser H2O) ser

comum a todas as coisas (porções de líquido) que referem a mesma substância. Esta

88
conclusão essencialista não decorre directamente da teoria semântica, embora seja

defendida através da intuição básica do argumento da Terra Gémea: se o termo “água”

designa, na Terra e na Terra Gémea substâncias líquidas distintas, H20 e XYZ

respectivamente, apesar de terem as mesmas características aparentes, o que é que funda

esta não identidade senão a diferença na sua composição química?

3- A Origem e a Composição Material e o Necessário A Posteriori.

Passo agora à discussão de certos princípios essencialistas que dizem respeito quer

à origem quer à composição material de particulares espacio-temporais, e que constituem a

premissa condicional do argumento de Kripke para certos casos de necessidades a

posteriori. Mostrarei que aqueles princípios, apesar de serem alvo de controvérsia, são

plausíveis.

A tese essencialista acerca da origem afirma que, para objectos de certas categorias

(em especial, particulares concretos como animais e artefactos), a origem (biológica ou de

outro género) que cada um desses objectos de facto tem é uma propriedade essencial do

objecto em questão, uma propriedade tal que o objecto deixaria de existir se a não

possuísse; por exemplo, eu não poderia (existindo) deixar de ser oriunda (no sentido

biológico e não social do termo) dos meus actuais progenitores.

A tese essencialista acerca da composição material afirma que, para objectos de

certas categorias (em especial, artefactos), a matéria de que cada um desses objectos é

composto, é uma propriedade essencial do objecto em questão, uma propriedade tal que o

objecto deixaria de existir se a não possuísse; por exemplo, a estátua de pedra de

D.Sebastião em Lagos não poderia (existindo) ser constituída por um material

completamente diferente daquele de que é constituída no mundo actual.

Aqueles princípios essencialistas são expressos numa premissa condicional do

argumento de Kripke relativamente a estes casos do Necessário A Posteriori. No caso da

necessidade da origem, ter-se-ia o seguinte argumento:

89
(10) Sei a priori, por “análise filosófica”, que se um objecto material, digamos x, tem

uma determinada origem, digamos y, então necessariamente, se x existe, x tem origem em

y.

(11) Sei a posteriori que x tem origem em y.

(12) Sei a posteriori que necessariamente x tem origem em y.

No caso da composição material ter-se-ia o seguinte argumento:

(13) Sei a priori, por “análise filosófica”, que se um objecto material, digamos x, é feito

de uma determinada matéria, digamos y, então necessariamente se x existe, x não poderia

ter sido inteiramente feito de uma matéria z tal que z¹y..

(14) Sei a posteriori que x é feito de y.

(15) Sei a posteriori que necessariamente x é feito de y.

A principal controvérsia relativamente a estes argumentos está na admissão dos

princípios essencialistas (10) e (13) e, consequentemente, na ideia de Kripke de que estes

casos do Necessário A Posteriori (como todos os outros) têm a seguinte característica

própria das proposições matemáticas: se são verdadeiros são necessariamente

verdadeiros.

3.1- O argumento de Kripke em defesa do princípio essencialista da origem.

Numa nota de rodapé, Kripke (1988: 114) apresenta um argumento em defesa do

princípio essencialista da origem, expresso em (10), e que parece aplicar-se a qualquer

espécie de objecto, animado ou inanimado, do qual se possa dizer que tem uma origem

física. O argumento, sucintamente apresentado por Kripke, usa o princípio da necessidade

da não identidade ( x¹y ® ÿ x¹y ), e desenvolve-se da seguinte maneira:

90
Supôe-se que “B” é o nome (designador rígido) de uma mesa, “A” nomeia o pedaço

de madeira da qual B é originariamente feita, e “C” nomeia um outro pedaço de madeira.

Em seguida supõe-se que, numa situação contrafactual, digamos m1, B é feita a partir de A,

como no mundo actual, mas outra mesa D é simultaneamente feita a partir de C. Assume-se

que não há qualquer relação entre A e C que torne a possibilidade de fazer uma mesa a

partir de um dos pedaços dependente da possibilidade de fazer uma mesa a partir do outro.

Nesta situação B¹D e, pela tese da necessidade da não identidade, segue-se que B¹D em

todos os mundos possíveis .

3.2- Reformulação do argumento de Kripke (Salmon)

Segundo Salmon (1982) o argumento de Kripke não é conclusivo. A conclusão que

Kripke deriva do seu argumento é a de que, necessariamente, B é diferente de D, isto é,

não há mundo possível no qual D=B, nem mesmo num mundo possível em que D é feita a

partir de si mesma e nenhuma mesa é feita a partir de A. Ora, a conclusão desejada é a de

que a mesa B não poderia originar-se a partir de C, isto é, em qualquer mundo possível no

qual uma mesa (qualquer mesa) seja feita a partir de C, essa mesa não seria a mesa B. A

conclusão desejada é a de que B não poderia ter origem num pedaço de matéria diferente

de A, que ter origem em A é uma condição necessária de B; do mesmo modo, ter origem em

C é uma condição necessária de D. A conclusão desejada para validar (10) poderá ser

assim descrita:

(17) Se é possível que uma mesa x seja originariamente construída a partir de um

certo pedaço de matéria y, então é impossível que x seja originariamente construída a partir

de um pedaço de matéria completamente diferente.

Ora, para se poder concluir (17), temos de admitir que qualquer mesa originada em A

é a mesa B e não outra, que ter origem em A é uma condição suficiente para ser B; do

mesmo modo, ter origem em C é uma condição suficiente para ser D. A premissa a admitir

para concluir (17) poderá ser assim descrita:

91
(16) Se é possível uma mesa x ser originariamente construída a partir de um pedaço

de matéria y, então necessariamente, qualquer mesa originariamente construída a partir de

um pedaço de matéria y é a mesa x e não outra.

Admitindo (16), e supondo que num outro mundo possível uma certa mesa é

construída a partir de C, essa mesa é a mesa D; ora, B e D são entidades distintas em

qualquer mundo possível; logo, não há mundo possível no qual a mesa B seja

originariamente construída a partir de C. Assim (16), que estabelece que, necessariamente,

ter uma certa origem é uma condição suficiente para ser uma determinada mesa, permite a

conclusão (17), a tese de que, necessariamente, ter uma certa origem é também uma

condição necessária para ser uma determinada mesa.

Acontece que os princípios essencialistas (16) e (17), bem como princípios análogos,

entram em conflito com certas perspectivas plausíveis acerca da identidade e da

possibilidade de mudança na composição física de um objecto. Em particular, entram em

conflito com o argumento dado por Hugh Chandler (1975: 365-369) e o argumento similar, já

anteriormente discutido, dado por Allan Gibbard.

3.3- O contra-argumento de Chandler

O argumento de Chandler segue a descrição de Hobbes da história do Barco de

Teseu e descreve dois mundos possíveis m e m´. Em m, as pranchas que compõem um

certo barco a, o Barco de Teseu, são gradualmente removidas, uma a uma, começando em

t1, e cada prancha removida de a é guardada para uso posterior. Cada prancha removida

de a é imediatamente substituída por uma prancha nova e diferente, de modo que no fim

desse processo de substituição, em t2, encontramos, no lugar onde a se encontrava, um

barco c , inteiramente composto por diferentes materiais. Algum tempo mais tarde, em t3,

com a madeira removida prancha a prancha do barco original a , é construído, segundo o

plano original, um barco b, distinto de c. Chandler supõe que t2=t3 mas, segundo Salmon

(1982: 219-229), o seu argumento é mais plausível se se permitir que o barco b seja

construído algum tempo depois do barco c . Temos assim o seguinte esquema da situação:

92
t1 t2 t3

Segundo Chandler, tanto b como c, tomados individualmente, podem ser

considerados o mesmo barco que a, mas por razões diferentes: b porque é feito, em t3, a

partir da mesma madeira que a em t1; c porque está ligado a a por uma continuidade

espacio-temporal. No entanto, a pretensão “dominante” para ser o mesmo barco que a é,

segundo Chandler, a continuidade espacio-temporal, ao passo que o ser feito, em t3, a

partir da mesma matéria que a em t1, é uma pretensão “recessiva”, no sentido em que é

preterida na presença de uma pretensão de identidade dominante. Logo a=c, e b é um

barco novo e diferente formado a partir das pranchas originais de a.

O argumento continua estipulando que, num outro mundo possível m´, as pranchas

originais de a são removidas uma a uma e são usadas posteriormente para a construção do

barco b. Aqui não temos uma reivindicação de identidade rival dominante, pelo que a=b:

t1 t2 t3

93
Da situação descrita em m e m´ retiram-se as seguintes conclusões do argumento:

(I) Se “b” é um nome próprio, é um nome próprio não rígido, pois em m´ designa a

mas em m designa um objecto diferente de a: em m, a=c e c¹b; este resultado parece

inconsistente com a tese da designação rígida de nomes.

(II) Se em m´ a=b , mas em m a¹b , segue-se que a tese da necessidade da

identidade se não verifica, que algumas identidades são contingentes.

(III) Se em m´ a existe em t3 pois é idêntico a b (que é construído a partir das

pranchas originais), e se em m a existe em t3 pois é idêntico a c (que não é construído a

partir das pranchas originais) e distinto de b , segue-se que os princípios essencialistas de

identidade através dos mundos (16) e (17) se não verificam. A origem não é uma condição

nem suficiente nem necessária para a identidade transmundial: não é o caso que se um

barco a é originariamente construído a partir das suas pranchas originais, necessariamente

qualquer barco construído a partir dessas pranchas seja o barco a (condição suficiente);

não é o caso que, se a tem a sua origem num certo pedaço de matéria não poderia ter tido

origem num pedaço de matéria distinto (condição necessária).

3.4- Refutação e reformulação do argumento de Chandler (Salmon)

O argumento de Chandler pode, segundo Salmon (1982), ser contrariado

evidenciando a falácia que comete ao utilizar o mesmo designador, o nome “b”, para referir,

com respeito a m, o barco aí existente em t3, e para referir, com respeito a m´, o barco aí

existente em t3. Isto é, o erro do argumento está em usar a letra “b” para nomear dois

objectos em diferentes mundos possíveis, sem primeiro resolver a questão de se são

realmente o mesmo objecto. Ora, uma vez que o barco construído em m em t3 foi

“baptizado” “b”, é ilegítimo referir o barco construído em m´em t3 com o mesmo nome, pois

isso pressuporia tratar-se de um mesmo barco. Assim, ao barco construído em t3 em m

´deve ser dado um nome neutro, digamos “d”. Com esta correcção, e dadas as assunções

94
de Chandler acerca da identidade através do tempo implícitas no seu exemplo, podemos

demonstrar que d em m´e b em m são de facto barcos distintos: se a=d e a¹b, então d¹b

(de notar que esta demonstração pressupõe que faz sentido identificar numericamente

indivíduos em diferentes mundos possíveis) . Deste modo, a conclusão (I) do argumento é

refutada .

Da refutação de (I), segue-se a refutação de (II). A teoria das pretensões rivais de

identidade, dominante e recessiva, não descreve correctamente a relação entre m e m´: não

se trata de haver uma coisa particular, b, composta em ambos os mundos, em t3, a partir

das pranchas originais de a, e tendo uma pretensão recessiva para ser o mesmo barco que

a. Ora, se esta teoria se não aplica à situação descrita, a conclusão (II) é refutada.

Das refutações anteriores segue-se a refutação da conclusão (III) do argumento.

Até aqui o argumento foi refutado mostrando que a teoria das pretensões rivais de

identidade, dominante e recessiva, não descrevia correctamente a situação entre m e m´

mas a própria teoria não foi posta em causa. Na verdade, é esta teoria que é incompatível

com o princípio da necessidade da identidade e da não identidade: se uma coisa x pode ter

uma “pretensão recessiva” para ser a mesma coisa que y, então em todos os mundos onde

não há pretensão rival dominante, tem-se x=y, mas naqueles mundos onde uma pretensão

rival está presente, tem-se x¹y. Aquela teoria é também incompatível com a concepção de

que a identidade intramundial é uma identidade genuína, pois a=b em m´ sss a e b são o

mesmo, pelo que dizer que b , em m´, tem uma pretensão recessiva para ser a mesma

coisa que a é incompatível com a identidade genuína de a e b. Ora, o argumento pode

também ser refutado rejeitando a teoria das pretensões rivais de identidade, através da

rejeição da premissa de que a=c no mundo m, premissa que depende de um conjunto de

intuições que não são universalmente partilháveis. A rejeição dessa premissa deverá

envolver uma refutação da perspectiva segundo a qual 1º -um determinado objecto pode

manter a sua identidade através do tempo através de uma espécie apropriada de

continuidade espácio-temporal, apesar da sua matéria ser frequentemente renovada, e 2º-

95
esta continuidade espacio-temporal fornece uma pretensão dominante de identidade, ao

passo que o ser feito da mesma matéria fornece apenas uma pretensão recessiva.

Rejeitada tal premissa ficamos com uma de duas coisas:

-ou há três barcos em m, o que é implausível porque o mundo m´é possível

relativamente a m, e aí (em m´) não hesitamos em contar a e b como idênticos.

-ou a=b em m, que, além de intuitivamente correcto, pode ser argumentado com base

em considerações relativas à importância, para a individuação de um artefacto, do material

original do qual ele é construído.

Uma reconsideração do argumento de Chandler é proposta por Salmon (1982). Esta

reconsideração corrige a falácia, cometida no argumento, de usar a mesma expressão para

nomear os dois barcos construídos em t3 em m e m´, e refuta a teoria das pretensões rivais

de identidade por não descrever correctamente a relação entre os dois mundos m e m´,

sendo ainda incompatível com a assunção de que a identidade intramundial é uma

identidade genuína. Admitidas estas correcções, a situação descrita em m, isto é, que a¹b e

a=c, poderá ser coerentemente explicada, segundo Salmon, através da teoria das

pretensões não já de identidade mas de constituição, dominante e recessiva. Isto é, é a

matéria de que são constituídos os barcos que pode ser dominante ou recessiva para a sua

identidade: em m, a matéria de que é constituído o barco b é recessiva relativamente à

matéria de que é constituído o barco c, sendo esta dominante.

Assim, quando se diz que em m, b tem em t3 uma pretensão recessiva para ser a

mesma coisa que a em t1, quer-se dizer que b´ (o pedaço de matéria que constitui b em t3 e

que é idêntico ao pedaço de matéria a´ que constitui a em t1) tem uma pretensão recessiva

para constituir o barco a; e quando se diz que em m, c tem uma pretensão dominante para

ser o mesmo barco que a, quer-se dizer que c´ (o pedaço de matéria que constitui o barco c

em t2 e que é diferente de a´ mas está ligado a a´, de t1 a t3, por uma espécie de

continuidade espacio-temporal) tem uma pretensão dominante para constituir o barco a.

Assim, em m, c´vence b´, e o barco que constitui em t3 é idêntico ao barco constituído por

a´ em t1, isto é, a=c. Como em m´não há pretendente rival a b´ que tem uma pretensão

96
recessiva para constituir o mesmo barco em t3 que a´constitui em t1, b´constitui o barco d,

isto é, a=d.

A teoria da pretensão recessiva de constituição não torna certas identidades

contingentes, apenas torna contingente a matéria de que um artefacto é constituído num

determinado tempo: necessariamente a é o mesmo barco que c, e necessariamente a´ é

absolutamente distinto de c´ , e c´ está contingentemente ligado a a´ por um certo tipo de

continuidade espacio temporal, pelo que em alguns mundos a é feito de c´ em t2, e noutros

não; necessariamente a´=b´ e necessariamente a¹b (de notar que o barco que em m´ é

feito a partir de b´ não é o barco b mas d), e em alguns mundos a é feito a partir de b´ em t3

e noutros não, já que b´ tem uma pretensão recessiva, logo contingente, para constituir a

em t3 .

O princípio essencialista utilizado de identificação de um artefacto através dos

mundos, segundo o qual a origem é uma condição suficiente de identidade, diz que barcos

construídos a partir da mesma matéria em diferentes mundos possíveis devem ser um e o

mesmo barco. O princípio de identidade através do tempo, correspondente àquele princípio

modal, identificaria barcos em diferentes tempos dentro de um mundo possível, desde que

fossem construídos da mesma matéria. Ora, não é este princípio temporal o adoptado por

Chandler, já que um dado objecto pode manter a sua identidade ao longo do tempo através

de uma apropriada continuidade espacio-temporal embora a sua matéria seja renovada:em

m a=c.

Admitindo que há situações possíveis similares a m, nas quais esta concepção

relativa à identidade através do tempo é correcta, então os princípios de identidade

transmundial segundo os quais a origem é uma condição suficiente e é uma condição

necessária de identidade têm de ser reformulados excluindo casos de renovação material.

A reformulação seria, respectivamente, a seguinte:

(16’) Se é possível uma mesa x ser a única mesa originariamente construída a partir

de um certo pedaço de matéria y, então necessariamente qualquer mesa que seja a única

mesa originariamente construída a partir de y é a mesa x e não outra.

97
(17´) Se é possível uma mesa x ser a única mesa originariamente construída a partir

de y, então é impossível que x seja a única mesa originariamente construída a partir de um

pedaço de matéria diferente de y.

Teresa Robertson (1998) evidencia o problema que esta reformulação proposta por

Salmon (1982: 229) dos princípios essencialistas (16) e (17) levanta: aquela reformulação

seria incompatível com aquilo que é intuitivamente aceite quer pelos defensores da quer

pelos agnósticos em relação à essencialidade da origem, de que é possível uma ligeira

alteração na constituição material original de uma mesa (continuando esta a existir).

Admitindo essa possibilidade, (16´) tem contra-exemplos: suponhamos que é posssível uma

mesa e ser a única mesa originariamente feita a partir de um determinado pedaço de

matéria f e uma outra mesa g ser a única mesa originariamente feita a partir de um pedaço

de matéria ligeiramente diferente de f, digamos f´; se se admite a possibilidade de uma

ligeira alteração na composição material original de um objecto, temos, de acordo com (16

´), que e=g; ora, o que acontece é que e¹g pois são numericamente duas mesas.

3.5- O argumento de McGinn da necessidade da origem (pessoas)

A tese essencialista da origem envolvida nestes casos do Necessário A Posteriori não

se aplica apenas a objectos materiais inanimados (mesas, barcos etc) como os exemplos e

contra-exemplos discutidos acima. Aplica-se também a entidades biológicas, em especial a

pessoas. A tese essencialista da origem relativamente a pessoas é especificada por Kripke

(1988: 110-113) como consistindo no seguinte: os pais biológicos de qualquer pessoa são

essencialmente os pais dessa pessoa, sendo a identidade dos pais fixada pela identidade

dos corpos dos quais provêm o espermatozóide e o óvulo que dão origem a essa pessoa.

Assim, a tese diz que se x é pai de y então necessariamente, x é pai de y (se x e y existem).

McGinn (1976: 127-135) argumenta a favor da necessidade da origem assim

entendida, distinguindo três relações entre entidades de diferentes tipos nas quais a origem

de uma pessoa pode ser dita consistir: a relação entre o zigoto e a pessoa que daí provem;

98
a relação entre os gametas e o zigoto; a relação entre os gametas e os corpos de que

provêm. McGinn defende que todas estas relações são rígidas, isto é, em qualquer mundo

possível em que existam, as entidades estão aí relacionadas tal como estão no mundo

actual.

A relação zigoto-pessoa é rígida porque é uma relação de identidade, e é uma relação

de identidade porque é uma relação de continuidade (biológica). Segundo McGinn a

continuidade entre organismos é uma condição necessária e suficiente de identidade entre

organismos: se há continuidade adulto-jovem-criança-bébé-feto-zigoto, então a pessoa-

adulto p é necessariamente idêntica ao jovem j que p foi, j é necessariamente idêntico à

criança c que j foi, c é necessariamente idêntico ao bébé b que c foi, b é necessariamente

idêntico ao feto f que b foi, f é necessariamente idêntico ao zigoto z que f foi; logo p é

necessariamente idêntico a z.

A relação gametas-zigoto não pode ser uma relação de identidade pois os gametas

são dois e o zigoto um, mas é também uma relação de continuidade, embora peculiar a

entidades biológicas: é uma relação de d-continuidade no sentido em que é uma relação de

uma coisa ou coisas que provêm de outra ou outras, é uma relação de fusão que não

requer a persistência das coisas das quais uma dada coisa é proveniente (contrariamente

ao que acontece na relação de composição ou constituição). Esta relação é, em todos os

aspectos relevantes, uma relação de continuidade, logo é rígida: uma determinada entidade

não poderia ter resultado da fusão de entidades distintas das que actualmente é o

resultado, isto é, é uma propriedade essencial de uma determinada entidade ter resultado

da fusão das entidades de que actualmente resultou. A rigidez desta relação é

aparentemente apoiada pela intuição.

Por último, a relação gametas-pais é também rígida pois é também uma relação de d-

continuidade.

Sintetizando, o argumento de McGinn pode ser assim formulado:

99
(18) Uma pessoa p é necessariamente idêntica ao zigoto z a partir do qual se

desenvolveu.

(19) O zigoto z tem essencialmente origem nos gametas x e y a partir dos quais se

desenvolveu .

(20)\ p tem essencialmente origem nos gametas x e y.

3.6- Réplica ao argumento de McGinn (Forbes)

A réplica de Forbes (1985: 132-159) ao argumento de McGinn pretende refutar (18).

(18), a premissa crucial do argumento, diz que a continuidade biológica é uma condição

necessária e suficiente para a identidade entre organismos. Forbes alega que há uma razão

para negar esta identidade que não implica, no entanto, a negação da continuidade

biológica.

A argumentação de Forbes vai no sentido de mostrar que o zigoto quando se divide

em duas células filhas deixa de existir: se continuasse a existir seria idêntico a uma ou outra

das duas células filhas mas não seria possível determinar qual; esta situação iria contra um

princípio de identidade transmundial defendido por Forbes, segundo o qual as identidades

devem ser intrínsecamente fundadas. Ora, se o zigoto deixa de existir quando se divide em

duas células, identificar o adulto com o zigoto contradiz a lei de Leibniz pois os adultos têm

propriedades que os seus zigotos não têm, nomeadamente a propriedade de existir num

período de tempo durante o qual os zigotos já não existem. Logo, apesar da continuidade

biológica pessoa-zigoto, estas entidades não são idênticas.

Um defensor de McGinn poderia contra-argumentar dizendo que o termo “zigoto”

designa uma fase de desenvolvimento dos seres humanos, isto é, cada ser humano adulto

tem a sua fase de zigoto, de feto, de criança, de adulto, pelo que todas as fases são fases

de uma mesma entidade: um ser humano.

Mas, argumenta Forbes, se se concebe assim o termo “zigoto”, então o argumento

não serve para defender o princípio essencialista acerca da origem: que é essencial a um

100
ser humano ter-se desenvolvido a partir da mesma célula a partir da qual actualmente se

desenvolveu. Se “zigoto” é usado como designando uma fase de desenvolvimento dos

seres humanos, então é correcto dizer que um ser humano adulto não poderia ter tido um

zigoto diferente, mas, nesta situação, o zigoto não é a mesma coisa que a célula que é o

antecedente biológico do ser humano, pois a célula deixa de existir quando se divide em

duas e o zigoto não. Nesta situação não podemos estabelecer (18) já que o adulto poderia

ter tido origem numa célula diferente, uma célula diferente poderia tê-lo constituído quando

era zigoto.

3.7- O argumento de Forbes da necessidade da origem.

Considerando que o argumento de McGinn não serve para defender a tese

essencialista acerca da origem, Forbes propõe e defende a seguinte expressão da tese de

Kripke da necessidade da origem:

(21) Para todo o x e para todo o y, se x é o antecedente biológico de y, então em

todos os mundos possíveis em que y existe, x é o antecedente biológico de y.

Esta formulação da tese essencialista acerca da origem, por si só, não atribui

essências individuais a organismos. Uma essência individual é uma propriedade essencial

individuadora. É consistente com (21) que x seja, em outros mundos possíveis, o

antecedente biológico de um organismo diferente de y. No entanto, para além de (21)

Forbes defende um princípio mais forte da necessidade da origem, um princípio que atribui

essenciais individuais a organismos:

(22) Uma condição necessária e suficiente para ser um determinado organismo em

qualquer mundo possível é provir do antecedente biológico do qual actualmente proveio e

ser da mesma espécie da que é actualmente.

A argumentação de Forbes na defesa da tese da necessidade da origem apoia-se em

dois princípios acerca da identidade (e não-identidade) transmundial:

1º-A identidade (ou não-identidade) de x e y deve ser fundada em factos que não

sejam os da identidade (ou não-identidade) de x e y; isto é, uma identidade (e uma não-

101
identidade) não pode ser simples, mas deve obter em virtude de outros factos, sendo estes

condição suficiente para essa identidade (ou não-identidade). Este princípio pode ser assim

enunciado: se y em m2 é idêntico a x em m1, então há um conjunto de propriedades que y

tem em m2 tal que qualquer objecto z num mundo possível m3, que tem em m3 estas

propriedades, deve também ser idêntico a x. A ideia por detrás deste princípio é a de que

se assim não fosse haveria uma distinção não fundada entre y e z (e portanto entre x e z), e

se houvesse tal não-identidade simples, a suposta identidade entre x e y seria não fundada

em factos suficientes para fazer y idêntico a x.

2º- Os factos que fundam uma identidade (ou não-identidade) devem ser “intrínsecos”

e não “extrínsecos” ; isto é, a identidade (ou não-identidade) de x e y não deve ser fundada

em factos exteriores a x e y. Este princípio é incompatível quer com a teoria de Chandler

acerca das pretensões rivais de identidade, quer com a teoria das Contrapartes de David

Lewis. A teoria de Chandler das pretensões rivais, dominante e recessiva, de identidade,

envolvida no argumento do Barco de Teseu analisado atrás, é um exemplo de uma

concepção da identidade extrínsecamente fundada: se uma coisa x tem uma “pretensão

recessiva” para ser a mesma coisa que y, então, em todos os mundos onde não há

nenhuma coisa com uma “pretensão dominante”, tem-se x=y, mas naqueles mundos em

que uma coisa com uma “pretensão dominante” está presente, tem-se x¹y. A relação

Contraparte de é um exemplo de uma relação que, não sendo uma relação de identidade, é

extrínsecamente fundada: para um determinado objecto em m ser ou não uma contraparte

de x no mundo actual, depende da ausência ou existência de outros objectos em m mais

semelhantes a x do que esse objecto.

A defesa do 1º princípio, o de que factos acerca de identidades e não-identidades

transmundiais devem ser fundados em outros factos, é suportada na ideia de que isso faz

parte do conteúdo do nosso conceito de identidade, quer transmundial quer transtemporal.

Esta ideia é ilustrada por uma grande variedade de casos. Em todos eles a ininteligibilidade

da identidade (ou não-identidade) deriva da ausência de factos em virtude dos quais a

identidade (ou não-identidade) se verifica. Assim, por exemplo, consideremos que as coisas

102
poderiam ter sido exactamente como são excepto que a Ponte Vasco da Gama é diferente

da actual Ponte Vasco da Gama; admitindo que a ponte não é originariamente feita de um

material diferente do qual é actualmente feita, nem tem um design, ou um projectista, ou

uma história diferentes, como conceber essa diferença? A ideia é a de que a situação é

ininteligível.

A defesa do 2º princípio é suportada por exemplos que mostram que fundar a

identidade (ou não-identidade) em factos extrínsecos é não intuitiva. A intuição de que as

relações de identidade não são extrínsecas é especialmente forte no caso da identidade

transtemporal.

A argumentação de Forbes é, sumariamente, a de que quem subscreve aqueles dois

princípios acerca da identidade transmundial tem de subscrever (21): a negação de (21)

conduz a situações de identidade em relação às quais se não encontram factos que as

justifiquem.

3.8- Réplicas ao argumento de Forbes.

Penelope Mackie (1987) argumenta contra o compromisso com propriedades

essenciais distintivas (P é uma propriedade essencial distintiva de y sss y tem P e nenhum

outro objecto tem actualmente ou possivelmente P) a que os dois princípios de identidade

transmundial de Forbes conduzem. Mostrando que o 1º princípio de identidade transmundial

pode ser rejeitado, admite serem possíveis identidades transmundias não fundadas. Esta

proposta de Mackie poderá ser imediatamente contestada, pelo facto de que conduz a

situações que entram em conflito com as nossas intuições acerca da possibilidade e com a

interpretação de afirmações de re acerca de objectos em termos de identidade

transmundial.

A contestação da proposta de Mackie não obsta a que o 1º princípio de identidade

transmundial de Forbes, e consequente compromisso com propriedades essenciais

distintivas, possa ser contrariado, nomeadamente através de casos de gémeos idênticos. A

questão está em explicar a situação de gémeos idênticos que são gerados a partir do

103
mesmo zigoto. Cada gémeo teria de ter algum antecedente biológico distinto do outro. Uma

resposta possível seria: cada gémeo tem como antecedente biológico uma das células nas

quais o zigoto se divide, no processo de produção de gémeos. Mas então a questão que se

põe é a seguinte: admitindo que as identidades se fundam noutros factos, nomeadamente

nas identidades dos seus antecedentes biológicos, estas últimas identidades também

devem ser fundadas noutros factos, isto é, cada antecedente biológico deve ter a sua

propriedade essencial distintiva. Ora, tal não acontece no caso dos gémeos, pois cada uma

das duas células de que provêm, provêm por sua vez de uma mesma célula, o zigoto.

3.8- A plausibilidade da tese kripkeana da essencialidade da origem exigida nestes

casos do Necessário A Posteriori

Como mostrei no início desta secção, o esquema de aplicação do argumento de

Kripke a favor de TK forte a estes casos do Necessário A Posteriori seria o seguinte:

(10) Sei a priori que se um objecto material, digamos x, tem uma determinada origem,

digamos y, então, necessariamente, se x existe, x tem origem em y.

(11) Sei só a posteriori que x tem origem em y.

(12) \Sei só a posteriori que necessariamente x tem origem em y.

O que (10) diz sabermos a priori é que a origem de um indivíduo é uma propriedade

essencial desse indivíduo, isto é, uma propriedade que esse indivíduo possui em todos os

mundos possíveis em que existe. O que (10) diz sabermos a priori não é incompatível com

a situação, atrás referida, dos gémeos idênticos. O que esta situação contraria é a tese

segundo a qual a origem é uma propriedade essencial individuadora, isto é, uma

propriedade essencial que é peculiar a um dado indivíduo, uma propriedade essencial que

não é partilhada por qualquer outro indivíduo.

Assim sendo, a situação dos gémeos idênticos não é, pelo menos directamente, um

contra-exemplo ao que (10) diz sabermos a priori, que se um indivíduo x tem uma

104
determinada origem y, então, necessariamente, se x existe, x tem origem em y. Permanece

plausível a tese da essencialidade da origem exigida nestes casos do Necessário A

Posteriori, e especificada por Kripke (1988: 110-116).

Aplicada a pessoas, a tese da essencialidade da origem é informalmente defendida

por Kripke (1988:110-113) tendo como base a ideia de não ser possível imaginar uma

situação contrafactual na qual uma determinada pessoa tivesse uma origem biológica

diferente e, portanto, quem quer que seja que tenha uma origem biológica diferente não

poderá ser a pessoa em questão. É esta intuição que Kripke se propõe “demonstrar” com o

argumento em defesa da essencialidade da origem (1988:114), já referido no início desta

secção, embora aplicado a mesas e não a pessoas. O que Kripke visa aqui demonstrar por

meio da tese da necessidade da não identidade, é apenas8 que objectos com diferentes

origens não podem ser um e o mesmo objecto, que uma diferença de origem corresponde a

uma diferença de objectos, que ter uma determinada origem é uma condição necessária

para ser um determinado objecto.

8
A reformulação de Salmon do argumento de Kripke, analisado atrás em 3.2, parece extrapolar as pretensões
do autor do argumento.

105
LISTA DE TESES E VERSÕES

1- TT (Tese Tradicional): Se p é uma proposição necessária então p é conhecida a

priori.

2- TK (Tese Kripkeana): Para alguns valores de p, p é uma proposição necessária e

p só pode ser conhecida empiricamente.

1*- TT- ampla: Se p é uma proposição necessária então p é a priori.

1**- TT- restrita: Se p é uma proposição necessária e se p é conhecida, então p é

conhecida a priori.

1.1- Versão (I) de TT: Se a proposição que p é necessária, então sabe-se a priori que

p.

1.2- Versão (II) de TT: Se a proposição que p é necessária, então sabe-se a priori que

a proposição que p é necessariamente verdadeira.

1.3- Versão (III) de TT: Se a proposição que p é necessária, então sabe-se a priori

que a proposição que p é necessária.

2.1- Versão fraca (I´) de TK: Para alguns valores de p, p é necessária e sabe-se só a

posteriori que p.

2.2- Versão forte (II´) de TK: Para alguns valores de p, p é necessária e sabe-se só a

posteriori que p é necessariamente verdadeira.

106
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((*)
Apenas é referida a bibliografia mencionada no texto da dissertação

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110

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