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Uma Epistemologia Evolutiva: Caracterização Global

Encontramo-nos, aqui, em termos de importância, com o sistema nervoso da


epistemologia de Juan Luis Segundo. Não é nossa pretensão tratar todos os elementos
implicados neste ponto, pois tal procedimento, dada a complexidade do tema, superaria
os objetivos e a competência deste trabalho. Daí nosso adendo – caracterização geral –
para reduzir as expectativas.
Nesta caracterização concentraremos nossa atenção nos seguintes tópicos que
deverão esclarecer o modo como Juan Luis Segundo se aproxima dos dados da evolução
na busca de relacioná-los com o pensamento e a ação: a) Por que uma epistemologia
evolutiva? b) Qual a concepção de evolução adotada por Segundo? c) Quais os
desafios lançados por uma visão evolutiva do universo e da história à teologia?

1. O Porquê de Uma Epistemologia Evolutiva

"...Estamos imersos num processo. Em termos mais vastos, no processo da evolução


universal. Em termos mais restritos, nessa evolução própria do homem, que se chama história.
[...]. Os mecanismos da evolução continuam agindo. Como? Sobre nós? Para nos destruir?
Mesmo que assim fosse, conhecer esses mecanismos seria a esperança mais realista para
escapar desse destino."1
Uma preocupação central de Juan Luis Segundo expressa-se na citação acima.
Trata-se da descoberta de que vivemos num novo contexto que nos lança desafios novos
e mais complexos e que, por sua vez, exige a busca de uma epistemologia evolutiva.
Esse contexto – de evolução universal, portanto – põe-nos face a face com a
necessidade de relacionar o pensamento e a ação com o que sabemos sobre a história
nossa, quer dizer humana, e do universo como um todo. O que fundamenta a convicção
de Juan Luis Segundo de que vivemos num contexto de evolução universal é o fato de
que:
"Até há pouco tempo, há mais ou menos meio século, os homens não tinham, nem podiam
ter, consciência do papel ativo e criador que lhes cabia de maneira inevitável na continuação
da evolução universal ou biológica. [...]. O evolucionismo apareceu primeiro como uma teoria
ou como hipótese científica. [...]. Mas esta teoria andou muito desde então. E saiu de muitas
simplificações, arbitrariedades e preconceitos antes de se converter em tarefa. Com efeito,
estamos diante do desafio de dirigir essa evolução em nosso planeta. Tomar consciência e

1
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, p. 386.
tomar deliberadamente em mãos as rédeas da evolução, por decisivo que isto seja para evitar
aberrações mortíferas, não é, contudo, fácil. Talvez possamos ter meios gigantescos, mas
sabemos pouco como manejá-los. O desafio supõe, assim, de certo modo, uma volta ao
passado – não só ao mais recente, mas a um mais antigo – para descobrir os mecanismos
dessa evolução que sofremos e que, de algum modo, deveremos imitar para sobreviver.
Qualquer um percebe que navegamos entre escolhos que, se não tivermos um bom mapa de
navegação, nos serão fatais."2
Dois fatores inéditos põem em evidência, na visão de Juan Luis Segundo, a
novidade radical que representa esse contexto universal em que vivemos. O primeiro é a
possibilidade objetiva que o ser humano hoje dispõe de destruir de maneira irreversível
a vida em nosso planeta através de uma decisão deliberada. O segundo, que converge
com o primeiro, é a possibilidade de um aniquilamento paulatino, porém rápido, do
nosso universo vital, desta vez não através de decisão deliberada, e sim por ausência de
decisão que acompanha atualmente o uso desenfreado e desequilibrante dos recursos
naturais.3
Para evitar mal-entendidos, vale ressaltar que aquilo que Juan Luis Segundo
entende por "contexto de evolução universal" não tem nenhum paralelo com uma
uniformização contextual. O que ele, na verdade, quer expressar é que nossa civilização
ou cultura entrou nesse contexto universal
"...não porque este se tenha uniformizado, mas porque tudo se inter-relacionou. E isso de
tal maneira que, enquanto tal, esse contexto não será substituído por outro nem tem
alternativas paralelas."4
Daí que, para Segundo, o grande desafio atual é agir e pensar relacionado com
os mecanismos de um único contexto evolutivo universal, mesmo reconhecendo que
ainda há grandes lacunas nos conhecimentos alcançados pelo homem sobre a evolução
universal.5
A descoberta de que se encontra envolvido num contexto de evolução universal
impõe ao homem uma nova tarefa. Segundo caracteriza essa nova tarefa de ecológica e
política. Para ele, essas características devem ser pensadas unidas, ou seja, elas devem
ser integradas.6 E isso porque torna-se cada vez mais claro que os problemas ecológicos

2
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, pp. 213-215.
3
Cf.: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, p. 214.
4
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, p. 215.
5
Cf.: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, pp. 215-216.
6
Cf.: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, p. 216. Segundo projeta a necessidade de integração das
características da nova tarefa para o homem e a mulher contemporâneos a partir da constatação de que,
por um lado, o movimento ecológico, quando do seu nascimento, virava as costas para a política, ou,
talvez, para o sentido costumeiro que lhe é dado e, por outro lado, a atitude ecológica nasceu como
só podem ser enfrentados com eficácia no nível político. Agora, essa integração do
ecológico e do político num mesmo processo de ação requer a superação de toda
redução egoísta tanto da ecologia como da política.
Segundo dá dois exemplos desse tipo de redução que deve ser superado. Trata-
se da análise feita sobre o fato do imperialismo ou fenômeno da dependência feita,
separadamente, pelos níveis ecológico e político. Quanto a análise do nível ecológico,
afirma:
"Na realidade, é esta uma colocação ecológica, no mais profundo sentido da palavra.
Mas atendendo sobretudo à apoliticidade dos partidos ecologistas, pelo menos no que se
refere às relações internacionais entre países ricos e pobres, aparece nestes últimos como uma
evasão."7
A crítica de Segundo quanto a análise que se faz do imperialismo no plano
ecológico refere-se a ausência de categorias políticas. Ele assinala, porém, que o campo
meramente político peca por seguir a mesma linha redutora, excluindo categorias
ecológicas:
"Prova disso é que essa análise se faça em termos de uma preponderante comparação
quantitativa. Quer dizer, qual o país ou qual o grupo de países que possui maior poder de
consumo."8
Daí a defesa de Segundo da integração de ecologia e política na ação humana.
Num contexto de interdependência universal a política inteira tem que ser pensada
ecologicamente e a ecologia politicamente, tanto pelos países pobres como pelos países
ricos. E isso,
"...certamente, em termos de uma política que tome em conta não organismos isolados,
delimitados por suas fronteiras, mas as grandes forças que passam por cima delas e obrigam
todos os povos a formar um circuito comum de estímulos e respostas mútuas." 9

preocupação própria dos países ricos e desenvolvidos porque estes levaram e continuam levando a
política de maximização dos recursos naturais. A política, por sua vez, especialmente uma política
democrática, via que sua tarefa era dar livre expressão aos desejos insensatos de consumo das maiorias,
maximizando, assim, o consumo sem considerar o preço que se pagava por isso. Segundo chama à
atenção, no entanto, para uma mudança que se estabeleceu quanto a esse distanciamento entre ecologia e
política nos países ricos à medida que os desastres ecológicos ameaçaram grandes multidões naqueles
países. Tal mudança une os dois campos: o da política e o da ecologia. A partir dessa mudança é que se
explica, por exemplo, o nascimento dos partidos ecologistas e a elevação do grau de atenção da política
tradicional, por razões mais ou menos interessadas, aos problemas ecológicos. Nos países pobres, porém,
a separação entre ecologia e política é radical. Considera-se a ecologia como a preocupação do primeiro
mundo para preservar seu ambiente vital. Tal concepção não supõe a aceitação de transformações radicais
e restritivas do consumo. Ela funda-se também na suspeita de que a preocupação ecológica dos países
ricos supõe a exportação da espoliação para os países pobres e mais dependentes do sistema. Cf.:
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, pp. 216-217.
7
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, p. 217.
8
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, p. 218. Grifo do autor.
9
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, p. 219.
Segundo vê justamente na ausência da integração entre ecologia e política um
fator problemático da democracia em geral e das esquerdas políticas da América Latina
em particular:
"Assim, é desoladora a ingenuidade com a qual periódicos, que pretendem dirigir a
opinião pública de países subdesenvolvidos, apresentam as eleições democráticas nos Estados
Unidos como um exemplo a imitar. Não se percebe que a democracia real de um país que
consome uma parte terrivelmente desproporcionada dos recursos do planeta constitui uma
catástrofe ecológica que impossibilita a democracia — ou, pelo menos, a desestabiliza
constantemente — nos países que, supõe-se, deveria imitá-la. [...]. A mesma falta de dimensão
ecológica existe na forma em que a esquerda encara seus programas, a partir do governo ou,
o que é muito mais freqüente, a partir da oposição. Parte-se do suposto de que esses
programas não podem ser outra coisa senão a transição ao socialismo em cada país. [...]. Só
que, mais uma vez, quando estes programas são pensados em forma linear, não ecológica, eles
impõem custos humanos cada vez mais elevados. E o principal deles é uma espécie de
esquizofrenia, que conduz a esquerda a inumeráveis e incessantes cismas políticos. Porque,
como ir concretamente em direção ao socialismo quando se pertence a um bloco político
multinacional que o rechaça e se opera num mercado igualmente internacional [...]? Assim,
nos países que não têm considerável riqueza ou competitividade, as políticas de esquerda
flutuam interminavelmente entre duas direções frustradas de antemão: ou se acomodam a ser
'socialismos no futuro', movendo-se dentro dos interesses do capitalismo presente..., ou a luta
pelo socialismo se torna uma escalada de meios desesperados dentro das fronteiras, o que
termina levando a uma opressão mais poderosa ainda." 10
Concluindo esta breve justificativa da busca segundiana por uma epistemologia
evolutiva urge ainda assinalar a multiplicação das variáveis, típica do contexto de
evolução universal, que deve ser considerada para empreender qualquer modificação
que se considere importante.11 Tal multiplicação das variáveis provém das
comunicações entre todos e da crescente interdependência mundial. Assim, implementar
mudanças tornou-se neste contexto universal algo muito complexo:
"Com efeito, onde atuam várias variáveis, mudar de maneira súbita e considerável uma –
ou umas quantas – delas desequilibra todo o conjunto. A qualidade considerada útil se torna
mortífera, sobrecarregando os circuitos encarregados de solucionar problemas mediante a
prova e o erro. [...]. Os propósitos particulares, o que este se empenha em introduzir numa
estrutura, julgando-o bom em si mesmo, atua ambivalentemente: soluciona um problema
criando outros.12"
Por isso Juan Luis Segundo defende a superação da forma linear de enfrentar
os problemas históricos e postula a integração, tanto no nível do pensamento como da
10
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, pp. 219-220. Grifos do autor.
11
Cf.: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, p. 223.
12
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, pp. 222-223.
ação, entre ecologia e política enquanto dimensões complementares e imprescindíveis
para o processo de humanização.13 A questão que se coloca agora e que será trabalhada
no próximo tópico diz respeito à concepção de evolução que subsidia a epistemologia
evolutiva de Juan Luis Segundo.

2. Para Além de Uma Concepção Linear da Evolução

No tópico anterior obtivemos uma descrição do contexto novo em que vivemos


hoje. Percebemos também como esse novo contexto exige, na visão de Juan Luis
Segundo, a formação de uma mentalidade nova que incorpore o conhecimento sobre os
mecanismos da evolução, se quer empreender mudanças na realidade sem perder a
esperança. Isso significa, formar uma mentalidade político-ecológica, na medida em que
seu diferencial será pensar e agir levando em conta a diversidade de variáveis do
contexto.
Essa nova mentalidade deverá superar a mentalidade maniqueísta, linear e
fixista que caracteriza, na compreensão de Segundo, a abordagem feita dos problemas
da humanidade, apesar de tudo quanto já sabe sobre a evolução universal. Comentando
uma imagem utilizada por Teilhard de Chardin14 na sua obra Ativação da Energia para
descrever a mudança do contexto estanque para um novo contexto de evolução
universal, Juan Luis Segundo afirma:
"Assim, ainda que possa ser verdade que o umbral franqueado deva fazer surgir uma
nova humanidade, mais ainda é verdade que os homens atuais não possuímos a epistemologia
requerida para enfrentar a nova realidade. Depois de séculos de pensamento fixista, por
dinâmico que este fosse quanto a perseguir desígnios ou projetos humanos, não nos é fácil,
apesar de ser ineludível, o esforço por pensar de outra maneira. E, para dizê-lo de modo mais

13
Cf.: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, p. 221.
14
A imagem de Chardin é a seguinte: "Até aqui, os homens viviam ao mesmo tempo dispersos e fechados
em si mesmos, como passageiros reunidos acidentalmente no porão de um navio cujo movimento nem
sequer suspeitavam. Sobre a terra que os agrupava, não encontravam nada melhor do que disputar
ou distrair-se. Mas eis que, por casualidade ou, melhor, pelo efeito normal da organização, nossos
olhos acabam de se abrir. Os mais ousados dentre nós subiram à ponte. Viram o navio que levava
todos. Perceberam a espuma produzida pela proa que corta mar. Deram-se conta de que há uma
caldeira a alimentar e um timão a governar. E, sobretudo, viram flutuar nuvens, sentiram o perfume
das ilhas para além do círculo do horizonte. Já não é possível aquela agitação do porão, já não é
possível andar à deriva. Chegou o tempo de pilotar. É inevitável que outra humanidade tenha de
surgir desta visão." CHARDIN, Teilhard de. L’activation de l’énergie Paris: Ed. du Seuil, 1963, p. 80,
citado por SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, pp. 233-234.
concreto, por pensar os propósitos humanos como vinculados a um processo do qual recebam
ao mesmo tempo impulsos positivos e negativos, energia e condicionamentos." 15
É perceptível na passagem acima que Juan Luis Segundo não partilha, na
mesma intensidade, do otimismo de Chardin.16 Isso porque, para Segundo, não basta o
descobrimento do contexto no qual nos movemos. O mero descobrimento da "caldeira e
do leme" não representa, por si mesmo, a garantia de que o "barco", da alegoria de
Chardin, será conduzido a um porto seguro.17 Daí a suposição de Juan Luis Segundo de
que o novo contexto implica um aprender a pilotar que, por sua vez, exige a conversão
da ecologia moderna em ecologia da mente, ou seja:
"...em modo normal de resolver problemas de todo gênero, numa palavra, em
epistemologia... Isso significaria o novo contexto que implica aprender a pilotar. Para isso
será mister aprender da história humana, da pré-história, da evolução biológica e da própria
evolução universal, os mecanismos — que devem ter sido fundamentalmente sempre os
mesmos — que conduziram até aqui o barco comum entre tantos escolhos." 18
Quais são, então, para Juan Luis Segundo, as características de um pensamento
que incorpore o evolutivo e que, desta forma, proporcione uma epistemologia própria
para as novas tarefas que se apresentam ao homem e a mulher contemporâneos,
envolvidos num contexto de múltiplas variáveis?

2.1 A Analogia: Característica Fundamental do Pensamento Evolutivo

15
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, p. 246. Grifos do autor.
16
Segundo entende que a imagem que expressa melhor nosso atual contexto expressa-se na situação do
Filéias Fogg de Júlio Verne, ou seja, "... com um pequeno barco de madeira no meio do oceano, e
nossa obsessão é a caldeira. Acontece que temos descoberto que nosso combustível planetário se
esgota. O leme sonhado está aí, mas de que serve? Para manter o rumo é preciso jogar na caldeira
tudo o que é madeira, quer dizer, o próprio barco, com um único limite: que continue flutuando. E
pareceria que, dessa maneira, tarde ou cedo, nos encontraremos diante de uma terrível opção: ou a
caldeira ou o leme. Porque também o leme é de madeira ..." SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2,
p. 235.
17
Cf.: SEGUNDO. J. L. O Homem de Hoje II/2, 246s. Esse distanciamento crítico de Segundo perante o
otimismo do Padre Chardin baseia-se, entre outros, no fato de que a humanidade ainda está longe de
assumir a pilotagem do barco comum — que é o nosso planeta. Esta tarefa, na verdade, está muito
longe de ser uma característica multitudinária. Neste sentido, basta concentrar-se um pouco na análise
de como as grandes potências tratam as questões do desarmamento, do Oriente Médio, das relações
Norte-Sul, etc... Por isso Segundo entende que a imensa maioria da humanidade, de fato, parece
continuar mais preocupada na "agitação do porão" do que em tomar às mãos o leme da evolução ou a
alimentação da caldeira. Cf.: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, p. 244.
18
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, p. 247. Grifo do autor. Nesta mesma página Segundo
também assinala que pensar e agir com categorias evolutivas significa algo mais complexo do que
aceitar a hipótese da evolução. Neste sentido, ele chama a atenção de que nem mesmo os fundadores
do evolucionismo, que não dispunham da perspectiva que hoje temos, conseguiram ir além do nível da
explicação do universo a partir da hipótese da evolução. Eles não conseguiram, assim, estruturar uma
nova epistemologia que pudesse nos orientar não já frente à explicação, mas às exigências práxicas
que dela brotam.
Segundo descobre que a característica fundamental de um pensamento que
incorpora o evolutivo é a analogia:
"Dizemos que algo evolui quando reconhecemos sua unidade fundamental. Se o que
sucessivamente aparece estivesse divido em compartimentos estanques, como acontece com as
espécies no pensamento fixista, não falaríamos de evolução. Em outras palavras, dizer
evolução eqüivale a reconhecer uma analogia básica entre os mecanismos que operam em
qualquer dos campos do que chamamos de natureza ou mundo. E isso independentemente da
questão — insolúvel por definição — de saber se tal analogia provém da natureza em si (que
estaria economicamente unificada) ou da unidade da mente que a conhece." 19
Portanto, para Juan Luis Segundo, a analogia é o instrumento metodológico por
excelência. Ela é o mecanismo mental com o qual se pode pensar o universo por um
ângulo autenticamente evolucionista e, assim, obter uma compreensão da totalidade do
universo em seus diversos níveis de realidade.20 No que diz respeito à origem da
analogia como instrumento metodológico, Segundo afirma que:
"...as hipóteses básicas que levaram a ciência ao conhecimento da evolução e de seus
mecanismos estão ligadas a uma projeção, em todos os planos do universo, dos mecanismos
que ocorrem em nós, os seres humanos, aos seres que nos precederam, ao 'primordial'. Talvez
a mente humana não tenha outra chave para aplicar ao universo fora de suas próprias leis
fundamentais. E é possível que aí esteja a origem dessa 'analogia' que cremos perceber nas
próprias coisas. Mas será necessário concluir, no máximo, como diz Bateson, que, sendo a
mente o único meio de informação que possuímos sobre essa realidade, a 'analogia' se torna
de todos os modos nosso instrumento heurístico por excelência, aquele que nos leva a
conhecer o resto."21
Juan Luis Segundo, porém, não pensa que qualquer tipo de analogia seja útil
para uma epistemologia autenticamente evolutiva. Daí que ele estabelece uma distinção
entre dois tipos de analogias para mostrar qual o tipo que ele considera legitimamente
evolutivo e evitar, assim, simplificações contraproducentes ao processo de
humanização. O primeiro tipo de analogia, aquele considerado por Juan Luis Segundo
como insuficiente para uma epistemologia evolutiva, funda-se muito mais na captação
daquilo que é estritamente comum do que numa analogia entre os processos que
ocorrem nos diversos pontos do universo. Segundo nos oferece um exemplo que
possibilita captar sua tese de forma aplicada:

19
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, p. 248. Grifo do autor.
20
Cf.: SEGUNDO, J. L. Teología Abierta II, p. 456.
21
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, p. 256.
"En términos físicos, por ejemplo, se puede calcular el aumento de energía de que
dispone per capita la humanidad desde las épocas más remotas hasta las actuales. El estudio
comparado de esos cálculos mostrará una evolución 'cuantitativa' hacia una mayor energía
per capita a medida que ésta se obtiene con el concurso de animales domésticos, con el
aprovechamiento del vapor, con el de la eletricidad o con el de la energía atómica." 22
Segundo assinala que o problema deste tipo de analogia reside na insuficiência
que ela comporta quando se trata de abranger níveis superiores. A aplicação dos estudos
básicos, físico-químicos por exemplo, revelam-se insuficientes para ajudar na
compreensão dos fenômenos próprios de novos níveis:
"El aumento de energía que significa el paso de la energía eléctrica a la atómica es un
hecho, y un hecho importante. Pero, de por si, no basta para explicar los fenómenos culturales
que surgem cuando, por primera vez, hombres divididos por fronteras físicas e ideológicas se
ven enfrentados a la posibilidad de provocar la destrucción de una parte considerable de la
especie humana. [...]. A pesar de la permanencia de fenómenos del mismo orden en todos los
niveles del universo, es verdad lo que afirma Teilhard en una de sus cartas: 'Para cada círculo
del mundo, el misterio está en el círculo seguiente'."23
O que Juan Luis Segundo considera redutivo e, portanto, não analógico, são os
intentos de enquadrar todo o universo numa única linguagem básica, seja na da física,
da química, das matemáticas, ou mesmo da logística. Pois, quando se reduz tudo a um
único mecanismo de compreensão, excluem-se, então, da possibilidade de explicação
fenômenos como a culpa, a conflitividade, a dialeticidade e outros.24 Quando, de uma
forma redutiva, transferem-se indevidamente as certezas de um determinado círculo ao
mistério do círculo seguinte, sucede, na visão segundiana, que
"...se lleva al ámbito mismo de la libertad, es decir, de la evolución en las manos del
hombre, los determinismos que han regido esa evolucón cuando su control era más extrínseco
al individuo y cuando las adaptaciones a los problemas ambientales se realizabam de una
manera mecánica o casi mecánica."25
Depois de apresentados esses elementos de cunho negativo sobre a analogia,
passemos a estudá-la como Juan Luis Segundo a adota positivamente. Como já foi
indicado, o desafio que ele quer enfrentar é o de articular uma epistemologia evolutiva.
Neste sentido, ele encontra na analogia a esperança de um conhecimento do universo
que incorpore os mecanismos da evolução. Já vimos que ele exclui todo tipo de redução
do todo a uma única linguagem ou a um único campo do saber porque isso seria, na
verdade, um procedimento anti-evolutivo.
22
SEGUNDO, J. L. Teología Abierta II, p. 457. Grifos do autor.
23
SEGUNDO, J. L. Teología Abierta II, p. 457. Grifo do autor.
24
Cf.: SEGUNDO, J. L. Teología Abierta II, p. 459.
25
SEGUNDO, J. L. Teología Abierta II, p. 459. Grifos do autor.
Daí a questão: De qual analogia trata Segundo quando a maneja positivamente?
Como é possível aplicar a analogia como mecanismo de compreensão do universo sem
ceder a qualquer tipo de reducionismo? Comecemos com um exemplo dado pelo
próprio Segundo para depois tirarmos dele algumas conclusões.26 Segundo indica que a
idéia de facilidade, que normalmente é mais familiar nos processos políticos e
psicológicos, pode ser, contudo, transladada para outros níveis do universo. Se
transladamos a idéia de facilidade ao nível da cultura, podemos constatar que às
conquistas do homem seguiram uma mecanização, uniformação, quantificação, que,
pela linha da maior facilidade, reintroduziram muitos dos defeitos das situações
anteriores, dadas pretensamente como superadas. No entender de Juan Luis Segundo
isso é o que ocorre, por exemplo, com o ideal da "liberdade, da igualdade e
fraternidade" da Revolução Francesa e também com o socialismo, diante da alienação
gerada pelo capitalismo.
No nível das espécies biológicas deparamo-nos com o fato de que espécies
inteiras de animais desapareceram por conta da facilidade que lhes proporcionava um
atributo particular que desenvolveram de forma mecânica, uniforme e quantitativa até
que a vantagem, por exemplo a presa do mamute, reintroduzirão um ponto fraco perante
a escassez de erva que aparentemente estava excluída por aquela superioridade
alcançada.
Finalmente, no nível ainda mais elementar da matéria físico-química
inorgânica encontramos a facilidade dominando as regras do jogo, fazendo improváveis
as sínteses complexas que inauguram a vida e fazendo dela – da vida – uma
pequeníssima, ínfima e frágil porção da matéria existente, por mais decisiva que ela
seja.
Apresentado o exemplo, tiremos agora algumas conclusões. O exemplo mostra
três campos diferentes. Mostra, porém, que, sem violentar a especificidade de cada um
deles, é possível, pelo mecanismo da analogia, perceber uma unidade fundamental entre
os três campos no que diz respeito a idéia da facilidade. Do ponto de vista científico o
termo facilidade será substituído em cada um dos campos por conceitos mais exatos e
operacionais, de acordo com os instrumentos que cada um maneja. O exemplo permite-
nos, no entanto, constatar que, nos três campos citados, o termo facilidade é análogo.
O método da analogia permite, portanto, perceber e preservar a unidade
fundamental entre os diferentes níveis, sem que para tanto seja necessário enquadrar o
26
Ver: SEGUNDO, J. L. Teología Abierta II, pp. 458-459.
todo numa única linguagem. Detectar a unidade fundamental entre os diversos níveis
não significa eliminar as diferenças, pois as semelhanças entre os diversos planos da
realidade encontradas pelas analogias que cortam a evolução são de ordem formal e não
de conteúdo:
"Se tomamos, como se faz com toda lógica o propósito de um processo evolutivo, a
analogia entre o primordial e o desenvolvido, não podemos esquecer as diferenças 'materiais'
(enquanto o 'material', o conteúdo, se opõe ao 'formal'). Com efeito, os mecanismos e as
constâncias que aparecem em diferentes planos são muito diferentes, a ponto de que devem ser
examinados e detectados com processos diferentes de conhecimento sensorial e, portanto, à
base de instrumentais diferentes. Não se chega, verbi gratis, a um acelerador de partículas
subatômicas aperfeiçoando um telescópio. Daí o acertado do princípio geral que Teilhard
formula e que abarca a globalidade do conhecimento científico sobre o processo da evolução:
'No mundo nada pode um dia aparecer como final, através dos diversos umbrais franqueados
pela evolução, se não foi primeiro obscuramente primordial'."27
Nesta mesma direção, Segundo chama ainda a atenção para o corte estático que
cada especialidade científica introduz na realidade, por mais evolucionista que tente ser.
Isso acontece não tanto pela tendência, justificada, de aplicar a própria metodologia aos
outros níveis do universo, senão pela rotineira tendência a ignorar o "mistério" do novo
nível e as exigências de diversos procedimentos que daí decorrem.28 Por isso, na visão
segundiana, um conhecimento evolutivo exige algo mais:
"El salto hacia la otra concepción de la evolución lo da el conocimiento cuando
sospecha, por analogía, que los procesos complejos que se observan el el hombre y en la
sociedad tienen un parentesco —que llega a ascendencia directa— con otros, más simples,
observables en el origen de la vida y aun en la organización misma de la materia
inanimada."29

2.2 A Analogia Formal Que Não Ignora a Especificidade Científica

Um pensar analógico não é algo fácil, pois não significa simplesmente


encontrar o "mesmo" remontando o curso da evolução. Quando Segundo indica que a
analogia que aponta como método evolutivo não é material, mas sim formal, está com
isso querendo mostrar que o desafio que a evolução apresenta ao nosso conhecimento é
mais complexo do que se espera, pois o análogo, no seu entendimento, é o processo

27
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, p. 260. Grifos do autor.
28
Cf.: SEGUNDO, J. L. Teología Abierta II, p. 458.
29
SEGUNDO, J. L. Teología Abierta II, p. 458.
gerador de um fato ou de um ser e não o individual de um fato, o "pontual". Trata-se,
assim, de chegar até o processo que produziu determinado ser e a informação sobre as
relações que devem manter-se com outros seres e funções naquele mesmo processo de
geração. Daí que nem tudo pode ser análogo:
"O que se compara e pode ser análogo — e, portanto, heurístico — não é um pinheiro,
um cavalo nem um homem determinado. O primário são as 'relações'... Os termos
relacionados são secundários. Daí que a analogia, se existe, deverá estar, por exemplo, entre
a fotossíntese do pinheiro, a digestão de um ruminante e a agricultura humana. Ali é que se
percebe a redundância geral da natureza."30
Por isso Segundo, mais uma vez em diálogo criativo com o pensamento de
Gregory Bateson, propõe que o uso adequado da analogia exige a combinação criativa
do pensamento "laxo"31 com o pensamento "estrito".32 Somente tal interação pode
franquear uma concepção da realidade como algo projetivo e não apenas objetivo33 e

30
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, p. 261. Grifo do autor. Nesta mesma página e na seguinte,
Segundo observa que quando a gente particulariza e substantiva, o que deve ser feito
equilibradamente, torna impossível encontrar analogias. Tal procedimento ocorre, de uma forma
especialmente óbvia, quando observamos o fluir da história. Nela, exemplifica Segundo, nada é
análogo a Napoleão. Entre ele e outros personagens históricos podem ser encontradas tantas
diferenças quanto semelhanças. Quando trata-se, porém, do código napoleônico, ou seja, das
estruturas de direito criadas em sua época e sob sua influência, a situação, então, é bem outra. Aqui
podemos, analogicamente falando, reconstruir as relações que aquele código tem com outros
processos de fixação de direitos no passado, e mesmo com formas ainda mais "primordiais" de
estruturação de espécies e de organismos em níveis mais básicos da vida e, quem sabe, até mesmo da
pré-vida.
31
Significa, como o próprio Juan Luis Segundo define, aquele pensamento mais amplo, capaz de situar os
conhecimentos limitados e pontuais dos campos específicos no contexto mais amplo do universo e da
história. Tal pensamento caracteriza-se, portanto, por escapar à estreiteza dos métodos, cálculos e
instrumentos de uma ciência específica nas constâncias observáveis num só campo. Em geral, este
tipo de pensamento era considerado pelos cientistas como místico, com uma conotação pejorativa.
Atualmente, alguns dos cientistas mais profundos como, por exemplo, Gregory Bateson, vêem este
tipo de pensamento como "laxo" sim, em comparação com o pensamento tipicamente científico,
porém, pelo fato de basear-se na analogia universal da natureza, absolutamente necessário para
superar os compartimentos estanques ou estáticos, criados pelo conhecimento especializado. Cf.:
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, p. 363.
32
Pensamento "estrito" significa, na visão segundiana, o pensamento preciso, ou seja, aquele que, ao
contrário do pensamento "laxo" e abdicando ao uso da analogia, se ocupa em captar as constâncias
específicas de cada campo. Para tanto, cria um instrumental que aparentemente não comporta
nenhuma vinculação formal e se adequa ao compartimento estanque da ciência em questão. Cf.:
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, p. 264.
33
Juan Luis Segundo não pretende, com a proposição de interação entre pensamento "laxo" e pensamento
"estrito", passar por cima da evidência de que a maior parte dos avanços científicos tenham sido feitos
através do pensamento estrito. Cf.: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, pp. 259-260. Contudo,
ele denuncia que o avanço mais acelerado da ciência nos últimos séculos relegou as questões de
finalidade, valores e humanismo, ou seja, deixou de lado o antropomorfismo no espaço da explicação
e da observação. Cf.: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, p. 258. Juan Luis Segundo identifica
tal rejeição, por exemplo, no célebre prêmio Nobel Jacques Monod que reduz a evolução à evolução
biológica e rejeita quaisquer procedimentos analógicos no tocante aos mecanismos da evolução por
considerá-los antropomorfismos baratos. Para Monod, a natureza é meramente objetiva e não projetiva
e por isso "...apenas o acaso está na fonte de tôda novidade, de tôda criaçäo na biosfera. O acaso
puro, o só acaso, liberdade absoluta, mas cega, na raiz mesma do prodigioso edifício da evoluçäo:
contribuir, assim, para a construção de uma epistemologia capaz, ao mesmo tempo, de
explicar a evolução e de orientar o ser humano para uma continuação consciente da
evolução. Uma concepção da realidade, resultante da interação mencionada, superará a
tendência maniquéia que divide, sem matização, os seres entre coisas e pessoas.
Juan Luis Segundo assinala que o resultado trágico do domínio mental dessa
tendência maniquéia é que a ciência torna-se justificadora de tudo o que se fizer com as
coisas e a questão relativa à bondade ou maldade dos propósitos que o homem busca
com isso fica restrita à moral.34 Em outras palavras, na medida em que absolutiza o
pensamento estrito, essa tendência maniquéia exclui os valores, a questão do sentido e
da significação:
"A especialização científica tem ocultado, com a criação de novos instrumentais (e talvez
o ocultou a si mesma), que seus procedimentos estavam destinados a convergir em algo assim
como um imenso robô que desse a seu possuidor os poderes que este não possui. Ao se
considerar 'livre de valores' (value-free), a ciência não fez outra coisa do que modelar um
homem dominado por um único propósito: poder mais. O objetivo consiste em gozar mais e
mais rapidamente dos recursos materiais do planeta. Há valores, por certo os mais opostos à
evolução, que impulsionam a investigação e determinam o que se deve investigar na ciência
que parece mais objetiva."35
Disso procede, para Segundo, o desafio de recobrar o equilíbrio. Daí que ele
propõe, como alternativa, uma epistemologia evolutiva, baseada na analogia ou
redundância universal da natureza. Pois, uma vez que a causa e a fonte de tal analogia
estäo estreitamente ligada ao funcionamento da mente humana,36 donde parte a

hoje, essa nossa noçäo central da biologia moderna [...] é a única hipótese concebível .... E nada
permite supor (ou esperar) que nossas concepções sôbre êsse ponto deverão ou mesmo poderão ser
revistas. Essa noção também é, de tôdas aquelas de tôdas as ciências, a mais destrutiva de todo
antropocentrismo ....". MONOD, Jacques. O acaso e a necessidade. Ensaio sôbre a filosofía natural
da biologia moderna. Petrópolis: Vozes, 31976, pp. 129-130. Grifo do autor. [=MONOD, Jacques. O
acaso e a necessidade). Monod chega a nivelar o uso da analogia nas hipóteses de trabalho com o
animismo o qual consistiria, neste caso, em projetar à natureza inanimada a consciência do homem
quanto ao funcionamento teleonômico do seu sistema nervoso central. Monod rejeita, assim, toda
hipótese teleológica. Ver: MONOD, Jacques. O acaso e a necesidade, pp. 188s. Contrapondo-se à
hipótese de Monod que pretende passar por cima de toda teleologia concentrando toda força do
processo evolutivo no acaso, Juan Luis Segundo afirma: "Com efeito, dizer que 'somente o acaso está
na origem de toda novidade' não tem sentido lógico possível, sobretudo quando se lhe acrescentou o
advérbio somente. Do acaso só não pode sair novidade alguma, a menos que chamássemos qualquer
coisa de novidade. A 'novidade' que a ciência detecta é uma interrupção numa constância, o
nascimento de uma constância nova e mais complexa, a aparição de uma redundância, quer dizer,
precisamente o que escapa ao acaso, o que não resulta dele."SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje
II/2, p. 258. Grifos do autor. Ver também: SEGUNDO, J. L. ¿Qué mundo? pp. 21-176).
34
Ver: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, pp. 266-267.
35
SEGUNDO, J. L. O homem de Hoje II/2, p. 259. Grifos do autor.
36
Segundo indica que este princípio é sugerido por Bateson na obra: BATESON, Gregory. Mind and
Nature, Nova York: Bantam Books, 1980. [=BATESON, Gregory. Mind and Nature]. Quanto à
necessidade de reconhecer, em todos os planos da realidade, coisas e seres parecidos aos
humanos, somente ela — a analogia — é, para Juan Luis Segundo, a forma natural,
espontânea e efetiva pela qual podemos recobrar o equilíbrio entre meios e fins,
pensamento estrito e pensamento laxo, ideologia e fé:
"...um mundo povoado de analogias é também um mundo povoado de antropomorfismos,
um mundo humanizado. O único mundo em que o homem pode sentir respeito por processos,
na medida mesma em que os percebe como semelhantes aos que ele respeita em si mesmo e em
suas relações humanas. Finalmente, [...] o científico e o racional se integra com o mundo dos
sentidos e dos valores, impedindo uma separação que seria, a curto ou a longo prazo,
suicida."37
2.3 A Flexibilidade Como a Principal Qualidade do Movimento Evolutivo

recepção de Segundo no tocante à sugestão de Bateson, ver: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2,
pp. 246-257.
37
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, p. 266. Esta citação deve ser entendida num contexto de
polêmica que Juan Luis Segundo trava com a tendência científica, representada especialmente por
Jacques Monod segundo a qual a força evolutiva se restringe ao plano biológico. Cf.: SEGUNDO, J.
L. O Homem de Hoje II/2, pp. 272-280. Em outras palavras, enquanto Teilhard de Chardin fala de
evolução universal, a tendência mencionada restringe a evolução ao plano biológico. A diferença
reside então no fato de que, enquanto para Chardin existe uma analogia universal, para a segunda
tendência, e especificamente para Monod, pensar o universo analogicamente é um antropomorfismo
barato que ignora a matéria inerte e não conhece a distinção de essência entre matéria e vida. Juan
Luis Segundo assinala que por trás desse intento de limitar as hipóteses de trabalho da ciência ao
âmbito da evolução biológica há uma razão oculta relacionada com o papel que se atribui ao acaso ao
qual se subordinam todas as explicações no plano do inorgânico. Por isso, para Monod, na origem de
toda novidade está o acaso sozinho. Juan Luis Segundo rebate tal tese indicando que "...para
começar, o mundo do inerte não dá a impressão de um caos, de algo que, por definição, não
precisaria nem aceitaria explicação. Um caos seria, com efeito, o que em nossa linguagem
corresponderia ao resultado do 'puro acaso'. A física e a química que estudam os comportamentos
dos elementos desse mundo sem vida nos falam (pelo menos ao nível macroscópico) de constâncias
muito mais regulares do que as observadas na biosfera." SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, p.
275. Baseando-se mais uma vez nas teses de Gregory Bateson, Segundo conclui que o mundo do
inerte assemelha-se muito mais ao funcionamento de uma máquina do que ao jogo do azar. (Segundo
tem como pano de fundo dos seus argumentos a seguinte obra: BATESON, Gregory. Mind and
Nature, pp. 194-195. Assim, Juan Luis Segundo não vê nenhum mal no antropomorfismo que o
método analógico pressupõe e que é tão abominado por Monod que nega a existência de finalidade na
evolução do universo em nome da objetividade científica. Neste sentido, Segundo assinala que a
pretensa objetividade científica de Monod está também impregnada de antropomorfismo, só que
negativo: "...a própria noção de acaso é antropomórfica, ainda que só seja por negação. Ela é tirada
de um homem que não controla, ou suspende, em certo nível, por certo nível, por certo tempo e em
certo grau, sua teleonomia. Para imaginar um acaso total, deveríamos imaginar um mundo não feito.
E num mundo não feito também não haveria acaso. A noção de acaso nasce no interior de um
universo onde reina a finalidade, e indica os limites desta em cada nível lógico. Assim, o fato de cair
uma telha sobre a cabeça de um transeunte não é um sinal da ausência de finalidade. A telha a tem,
sua colocação a tem, seu estado de desgaste ou conservação a tem. Quando se diz que a telha feriu
por acaso o transeunte, entende-se que nenhum dos agentes dotados de finalidade no referente a ela e
a sua queda podiam prever o momento de sua queda nem o resultado concreto dela." SEGUNDO, J.
L. O Homem de Hoje. II/2, p. 275.
Tomando como referência os fundamentos científico-antropológicos de
Gregory Bateson,38 Juan Luis Segundo assinala que a questão central, colocada desde o
início a propósito da evolução, foi como as qualidades adquiridas pelos seres vivos na
luta pela vida se tornavam genéticas.39 Segundo indica que tal questionamento, dada sua
unilateralidade, recebeu uma dupla solução extrema e insatisfatória:
"...a primeira que, ao se tornarem rotineiras, as modificações úteis ocorridas na vida de
um ser vivo se transmitiam depois de um tempo aos genes; segundo, pensava-se que a
competição na luta pela existência eliminava de fato os indivíduos que não tivessem essas
características úteis. Ficava, entretanto, por ser explicado, nessa teoria, como se passava, no
fim, a espécies geneticamente formadas. Em outras palavras: ainda que se sublinhe a
importância do contexto ambiental, terminava-se diante do mesmo escolho: como a
sobrevivência do mais apto se convertia em herança genética. 40"
Está para além da competência deste trabalho entrar nos meandros das
respostas ao problema da herança genética acima mencionadas. Restringimos, portanto,
nosso interesse às conclusões que Juan Luis Segundo tira do conjunto das teorias da
evolução, as quais ele toma como base de um pensar evolutivo e analógico.
Pois bem, sem se concentrar na solução do problema da herança genética, mas
na dupla resposta que ele recebe, Segundo assinala que as duas soluções estão referidas
a um mesmo pressuposto, ou seja, ambas pressupõem que a evolução acontece quando
as qualidades úteis adquiridas por alguns elementos de uma espécie se tornam
hereditárias.41 Agora bem, aplicando tal pressuposto no âmbito humano, Segundo chega
a conclusão de que a evolução consiste em tornar hereditárias aquelas qualidades úteis
que foram descobertas e adquiridas num determinado momento por um pequeno grupo
ou indivíduo. Assim sendo, o progresso consistiria em que, como resultado desse
processo, cada ser humano pudesse ter uma resposta instintiva para cada situação
problemática com a qual se visse confrontado, poupando, consequentemente, a energia
que teria de gastar com o trabalho de deliberar em cada situação a respeito dos prós e
contras da opção a ser tomada.42
O grande mérito dessa tendência é detectar que o processo evolutivo supõe
uma poupança de energia. Ela, no entanto, é inflexível na medida em que não deixa
espaço para o novo, para o inédito e a criatividade. Daí que, na busca de superar essa

38
Ver: BATESON, Gregory. Pasos hacia una ecología de la mente, p. 373ss.
39
Cf.: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, p. 387.
40
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, p. 387. Essas respostas ao problema da herança genética são
dadas consecutivamente por Lamarck e Darwin.
41
Cf.: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, p. 387.
42
Cf.: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, p. 388.
insuficiência, Juan Luis Segundo descobre um ponto de vista oposto, sobre a evolução
do homem, segundo o qual, considerando a cadeia evolutiva, observa-se que a
característica dos animais superiores é de disporem de menos instruções instintivas que
os inferiores. E isso é assim por que os superiores estão mais expostos ao erro. 43 O alto
nível de exposição ao erro faz do ser humano, por exemplo, o animal político e social
por excelência, pois ele, mais que todos os outros, tenta suprir a insuficiência de
instruções hereditárias buscando na sociedade dados que contribuam para sua
orientação.
A sociedade, no entanto, não é para o homem o simples complemento da sua
insuficiente herança instintiva. Se isso é assim, cabe então perguntar, como assinala
Segundo, pelos mecanismos que, do ponto de vista da evolução universal, cumpriram a
tarefa de compensação dessa incompletude da herança instintiva ou genética.44
A resposta científica que Segundo encontra para esta questão é: os mecanismos
homeostáticos.45 Chegados aqui, encontramo-nos então diante de duas tendências
explicativas do processo evolutivo: a primeira concentra a força do processo na herança
genética e a segunda nos mecanismos homeostáticos e na sua exposição ao erro.
Tratam-se de duas preferências. Seguindo a primeira, afirma Juan Luis Segundo,
pareceria formidável que se pudesse introduzir, por exemplo, todas as matemáticas na
herança genética de modo que elas pudessem sair do homem com a mesma segurança
com a qual, em cada geração, o joão-de-barro constrói seu ninho. Por outro lado, indica
Segundo, o Iluminismo está referido à segunda preferência, que é oposta: o Iluminismo
se caracteriza por introduzir a consciência, a deliberação e a opção onde o
funcionamento parece automático e inconsciente. Isso significa introduzir mecanismos
homeostáticos onde as coisas funcionam dirigidas pela herança genética. O Iluminismo
expõe ao erro e à crítica todo tipo de funcionamento dado como normal de geração em
geração.46

43
Cf.: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, p. 388.
44
Cf.: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, p. 389.
45
Cf.: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, p. 389. Em termos menos estritos pode-se dizer que
homeostáticos são todos os mecanismos que usam e acumulam experiência. Os termostatos servem
muito bem para exemplificar esses mecanismos, pois eles se expõem às variações da temperatura,
enfrentando, assim, o novo, o inesperado, algo que uma informação meramente genética não consegue
fazer. Ao expor-se à variação e, portanto, ao novo, o termostato realiza experiências de erro e
correção. Ver: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, pp. 389-390. Para uma definição mais
abrangente dos "mecanismos homeostáticos" ver: BATESON, Gregory. Pasos hacia una ecología de
la mente, p.339ss.
46
Ver: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, p. 390. Nesta mesma página, Segundo apresenta como
exemplo da segunda tendência o marxismo e a exploração freudiana do inconsciente.
Diante das duas tendências apresentadas surge o dilema: para qual das
preferências deve-se inclinar para que se possa melhor pensar e atuar conforme os
mecanismos da evolução? Para Juan Luis Segundo esse dilema deve ser eliminado ou,
melhor dizendo, deve dar lugar para uma visão analógica e complementar das
preferências:
"Os progressos feitos na teoria da evolução levam justamente a não se inclinar. Ou pelo
menos a não se inclinar a priori, a não se inclinar prescindindo das condições ambientais.
Bateson assinala com muita razão que a evolução enquanto tal não está em que o difícil se
torne fácil, ou em que o superior substitua o inferior. A principal qualidade que atravessa todo
o processo e o mantém em movimento é a flexibilidade. E esta está ameaçada tanto pela
tendência de tornar genéticas todas as qualidades consideradas úteis como pela tendência
oposta de substituir toda herança genética por mecanismos homeostáticos (mentais ou
racionais)."47
Em outras palavras, a força evolutiva supõe um cálculo energético. 48 Dado que
a energia é constante, a evolução não pode contar com energia ilimitada nem tampouco
com um aumento da energia disponível. O grande desafio é, então, como ter acesso à
energia. E assim, neste contexto de busca de energia, a flexibilidade converte-se na
qualidade evolutiva por excelência, pois ser flexível significa dispor da energia

47
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, p. 291. Grifos do autor.
48
Cf.: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, p. 291.Vale ressaltar que essa visão baseia-se no princípio
da termodinâmica sobre a degradação de energia que, em geral, é chamado de entropia.
Concentraremos nossa atenção nas três características da entropia. Ver: SEGUNDO, J. L. Teología
Abierta II, pp. 365-369. Elas ser-nos-ão úteis para compreendermos a alta importância da flexibilidade
no processo evolutivo. Primeira, a energia do universo é constante. Nada dela se perde e a ela não é
acrescentada energia nova. Isso significa que toda transformação natural comporta a mesma soma de
energia. Daí a conclusão que, de fato, a evolução supõe um cálculo energético, pois, considerando que
não se ganha nova energia, a evolução acontece, primeiramente, através do deslocamento de energia.
Segunda, a energia se conserva. Esta característica inclui, porém, uma contrapartida, ou seja, a
degradação de energia. A energia se conserva, porém se degrada, se simplifica. Toda energia ativada
transforma-se em energia mais simples e tal simplificação torna-a mais difícil de ser concentrada. Em
outras palavras, a degradação significa que a energia vai se convertendo na mais simples de todas que
é o calor. As energias utilizadas tornam-se difusas e, portanto, muito mais difícil de ser aproveitada
para alcançar sínteses novas e mais complexas. A terceira característica, no entanto, consiste numa
contracorrente frente a tendência entrópica do processo termodinâmico. Isso significa que, se a
evolução se faz pelo deslocamento e concentração de energia, ela se realiza, então, por um trabalho
contrário à tendência entrópica do processo termodinâmico. Por isso, este mecanismo contrário à
entropia é chamado de negaentropia. Enquanto as sínteses simples serão sempre mais fácil, menos rica
e eficaz, porém proporcionadora de satisfação imediata, as sínteses complexas, quer dizer, nega-
entrópicas, uma vez que dirigem-se contra o majoritário, implicam sempre altos custos energéticos:
"Digamos, pues, que si, por un lado, la evolución recorre el camino de síntesis energéticas cada vez
más concentradas y poderosas lo hace contra la tendencia estadisticamente mayoritaria hacia las
síntesis simples de energía degradada. Dicho en otras palabras, cada energía concentrada se edifica
como cumbre de una pirámide cuya base es la repetición de lo más simple. Así la materia viva sobre
la tierra es terriblemente minoritaria con respecto a los cuerpos físico-químicos más simples e
inorgánicos. Y así igualmente el sistema nervioso es una ínfima minoría sostenida por las infinitas
combinaciones más simples de la vida. Más minoritaria aún es la vida convertida en vida pensante,
sostenida por las energías de todos los otros planos, pero capaz de concentrar y liberar energías que
dormíam en ellos." SEGUNDO, J. L. Teología Abierta II, pp. 367-368.
necessária para enfrentar os novos problemas. A flexibilidade situa-se, portanto, no
núcleo do cálculo energético pelo qual se poupa energia, quando se pode, para aplicá-la
na obtenção de melhores resultados.
De posse desse novo dado, ou seja, que a flexibilidade é a qualidade que
atravessa todo o movimento evolutivo, Juan Luis Segundo retoma o problema que
representa para o pensamento atual decidir entre inclinar-se para a tendência da herança
genética ou para preferência pelos mecanismos homeostáticos. Ele mostra a
complementariedade e o equilíbrio entre ambas como alternativa a seguir:
"...a herança genética é o procedimento por excelência para poupar energia. Nos dá as
coisas feitas, mas sua importância não reside nesta facilidade, e sim em libertar energias para
outras atividades. Pelo contrário, os mecanismos homeostáticos, expostos por definição ao
inédito, ameaçador, errôneo, são capazes, estes sim, de enfrentar problemas maiores, porém
constituem também procedimentos custosos em termos energéticos. A partir destas
considerações, [...] entende-se que se a qualidade evolutiva por excelência deve ser a
flexibilidade diante dos desafios ambientais, esta se obtém por um equilíbrio entre herança
genética e mecanismos homeostáticos, equilíbrio que há de permanecer sempre sob
controle."49
Agora, se estendemos, por analogia, os dados levantados acima para além do
biológico, ou seja, para o âmbito da cultura e da política, o que encontramos? Segundo
reflete esta questão a partir da analogia sugerida por Bateson entre a legislação de uma
sociedade e a herança genética.50 Ele esclarece a analogia de Bateson acrescentando
dois pontos que devem ser considerados. O primeiro é que há uma correspondência
entre as liberdades que uma legislação outorga como direito, e o papel dos mecanismos
homeostáticos os quais, como já vimos, referem-se às possibilidades de dar um salto
qualitativo em termos de aprendizado através da experiência do erro e de sua correção.
O segundo ponto é que, em muitos casos, o legislado numa sociedade não se restringe
apenas àquilo que a constituição dita:
"Os decretos e a repressão de um governo totalitário ou autoritário, legitimamente ou
não, ampliam o âmbito do que é imposto, do que é subtraído à liberdade. Devem ser
entendidos, portanto, como uma ampliação dos procedimentos paralelos aos da herança
genética, com a subseqüente diminuição dos mecanismos homeostáticos da sociedade. Estes
ficam reduzidos ao estreito grupo dos que tomam decisões políticas, quer dizer, aos poucos

49
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, pp. 391-392.
50
Ver: BATESON, Gregory. Hacia una ecología de la mente, p. 380. Quanto a reflexão feita por
Segundo sobre a analogia estabelecida por Bateson, ver: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, pp.
393-395.
homens que ocupam o poder, além, é claro, dos circuitos homeostáticos individuais e privados,
que nenhuma repressão alcança e consegue controlar de maneira eficaz e total. 51"
A conseqüência que Juan Luis Segundo tira daí é que tanto no plano
sociopolítico como no biológico o que importa efetivamente é levar seriamente em
conta a diversidade dos contextos de problemas e desafios energéticos que cada
sociedade tem de enfrentar. Quer dizer, trata-se da permanente necessidade de realizar o
melhor cálculo energético possível. Esta proposição torna-se mais patente a partir de um
exemplo de política que ignora este cálculo energético. Segundo encontra tal exemplo
naquele tipo de política que pretende estabelecer ou defender direitos humanos sem
proporcionar a energia que deve servir de base estável para eficácia e validade de tais
direitos. Na sua visão, tal procedimento
"...é um engano com o qual os mais fortes subjugam os mais fracos sob pretexto de lhes
ensinar como devem se organizar."52
Em outras palavras, todo procedimento que dissimula a necessidade de um
certo equilíbrio entre a herança genética e os mecanismos homeostáticos converte-se em
bloqueio ao movimento evolutivo na medida em que violenta uma qualidade por
excelência da evolução, a flexibilidade. No processo evolutivo, inflexibilidade é
sinônimo de retrocesso.
Uma epistemologia evolutiva deve aprender da evolução que buscou a
flexibilidade através da ordenação dos problemas em torno de um dos seus tipos
fundamentais de mecanismos. Assim, na medida em que os problemas mais graves para
a sobrevivência forem mais ou menos constantes, solucioná-los pelo mecanismo da
herança genética trará como resultado uma economia de energia a qual, por sua vez,
representará um fator de flexibilidade, liberando circuitos homeostáticos para o
imprevisto e variável.53
O desafio para o homem hoje, na visão segundiana, é aprender desta sabedoria
da evolução, pois, no que diz respeito a sua própria vida e cultura, ele terá que assumir o
ordenamento de problemas e de mecanismos correspondentes para continuar e dirigir a
evolução ulterior.

51
SEGUNDO, J. L., O Homem de Hoje I, p. 293.
52
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, p. 394. Ver também: SEGUNDO, J. L. Direitos humanos,
evangelização e ideologia, in: REB 145, Petrópolis: 1977, p. 91.[=SEGUNDO, J. L. Direitos
Humanos].
53
Cf.: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, p. 392.
3. Epistemologia Evolutiva Relacionada Com a Fé e a Ideologia

Para mostrar o funcionamento da epistemologia evolutiva nos planos da fé e da


ideologia, Juan Luis Segundo defende que é necessário descobrir a analogia existente
entre fé e herança genética e, por outro lado, entre as ideologias e os sistemas
homeostáticos. Qual seria, então, o conteúdo dessa analogia? Ora, já vimos que o
segredo da evolução reside no difícil cálculo energético que possibilita, por sua vez, a
flexibilidade necessária para passos qualitativos sem o risco de destruição da ecologia,
tanto natural como social:
"Assim, para explorar mais e mais as possibilidades e oportunidades que a realidade
oferece a seus fins, para fazê-la mais maleável sem se expor indevidamente ao risco de
sobrecarregar e bloquear os mecanismos investigadores que se expõem ao erro e o corrigem,
o homem deve contar com um dispositivo de poupança energética análogo àquele que a
herança genética lhe fornece."54
Na visão segundiana, esse dispositivo energético advém ao ser humano de suas
raízes sociais, das quais a mais profunda é a que no marco antropológico de Segundo
corresponde à fé antropológica.55 Como já tivemos oportunidade de mostrar, a fé
antropológica é social no seguinte sentido: em primeiro lugar, devido à dependência em
relação às testemunhas referenciais proporcionadas pela sociedade que todo ser humano
necessita para criar seu mundo de valores e sentido. Em segundo lugar, porque, no nível
pessoal, a fé antropológica é recebida como herança. Isto significa que ela não apenas
propõe, mas, em grande parte, impõe sistemas de significação. E essa imposição ocorre
na medida em que o ser humano escolhe suas testemunhas referenciais dentro de
tradições culturais já dadas.
As tradições culturais são, assim, balizas já traçadas, entre as quais o ser
humano constrói seu mundo de sentido e de valores.56 Pois bem, o fato de encontrar
essas balizas já traçadas propicia ao ser humano uma incalculável poupança energética.
E nisto reside, portanto, o fundamento da analogia que Juan Luis Segundo estabelece
entre fé antropológica e herança genética, ou seja, que a fé antropológica é uma herança
recebida, analogicamente falando, quase geneticamente e que, por isso, ela é, no nível
pessoal, a base que poupa energias para resolução de tarefas mais complexas, inéditas e
variáveis conforme o contexto. As ideologias são, também analogicamente, os

54
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, p. 396.
55
Cf.: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, p. 396.
56
Cf.: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, pp. 396-397.
mecanismos homeostáticos que permitem ao ser humano a busca de solução desses
problemas inéditos, variáveis que exigem um crivo crítico a cada passo.
Agora, da mesma forma que no plano da evolução natural, um pensar e um agir
humano que aprendeu dos mecanismos da evolução terá que buscar o equilíbrio entre a
fé antropológica (análoga à herança genética) e as ideologias (análogas aos mecanismos
homeostáticos), pois
"...assim como ficar sem tradição eqüivaleria a ficar sem instruções genéticas e, por isso
mesmo, bloqueado e desarmado perante qualquer mudança importante do ambiente, da
mesma maneira uma mudança demasiada rápida e total de tradições, implicando mudanças
importantes em toda nossa percepção do mundo, sobrecarregaria e bloquearia igualmente os
mecanismos mentais (homeostáticos) com os quais temos que lidar com esse mundo exterior,
mesmo no caso hipotético de que este permaneceria imutável." 57
Em outras palavras, o funcionamento da epistemologia evolutiva em relação
com a fé e a ideologia implica, a nível global, na superação de uma visão linear da
natureza, da história humana e da cultura em geral. Agora, como é que essa implicação
global se expressa nos planos específicos da eficácia (ideologia) e da significação (fé)?
No plano específico da eficácia, isso implica numa integração entre o
conhecimento "estrito" e o conhecimento "laxo" que encara os meios não puramente
como meios de uma causalidade linear mas, também, como partes de um contexto
ecológico e, portanto, de interdependência de fatores e processos. No plano específico
da significação e dos valores, uma epistemologia evolutiva implica em não se esquivar
de tratar do problema do sentido de um processo que é influenciado por dois vetores que
não se misturam, mas que, por outro lado, também não se separam: esses dois vetores
são, segundo as ciências, entropia e negaentropia, degradação e concentração de
energia, ordem e acaso e, finalmente, no plano humano podemos analogicamente
traduzi-los como vida e morte, amor e violência, graça e pecado, etc...
Trata-se, desta forma, de superar o modo de pensar e atuar fixista e linear que
desemboca no maniqueísmo, quer dizer, que opta unilateralmente pelo valor (amor,
síntese complexa, novidade, ordem), dissimulando, assim, a função positiva e
necessária que desempenham os paralelos negativos num contexto de economia
energética. Somente a integração desses vetores franqueará ao homem a flexibilidade
necessária para um agir verdadeiramente esperançado e humanizador.
Por que a insistência de Segundo na integração dos vetores positivos e
negativos no agir e pensar humanos? Em primeiro lugar, afirma ele, porque
57
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, p. 401.
"...a evolução não opta perante uma alternativa (quando se confronta com a entropia e a
negueentropia), mas combina necessariamente ambas as tentências termodinâmicas. Num
contexto de energia constante e escassa, toda realização supõe o uso simultâneo e
complementar de energia custosa e energia barata. Ou, se se prefere a metáfora dos circuitos,
um circuito de circuitos onde sempre é mister utilizar fusíveis, diferentemente calibrados, para
impedir as variações consideradas patogênicas de alguns dos distintos circuitos." 58
Os elementos acima apresentados já sugeriram a finalidade que Juan Luis
Segundo busca alcançar: considerando que as transformações históricas devem ser
implementadas reproduzindo os mecanismos da evolução, toda busca de realização de
um valor que não pretenda desembocar no desespero e na destruição da ecologia social
terá de reconhecer as lacunas dos meios aplicados face ao fim buscado e face a
complexidade ou espessura da realidade.59 Quer dizer, terá de respeitar as leis da
realidade, não para deixá-la como está, mas para transformá-la eficazmente de acordo
com o valor que se busca concretizar. Neste sentido afirma Juan Luis Segundo:
"...toda tentativa unilateral de grandes proporções, por ótima que seja sua finalidade,
termina destruindo de alguma forma a relação básica entre o homem e seu ambiente, seja este
biológico, seja social. Daí a necessidade de relacionar ideologias com ecologia, ou melhor,
com a dimensão ecológica de toda ideologia."60
Resumidamente, podemos indicar que uma epistemologia evolutiva deve, na
visão segundiana, propiciar ao conhecimento e a ação humanos uma sabedoria criativa
que se mantenha atenta aos condicionantes eficazes para uma complementariedade entre
herança e mecanismos mentais, tradição e crítica, meios e fins, fé e ideologia(s). Esta
complementariedade franqueará a flexibilidade necessária para uma construção do
homem e da sociedade a partir da sua própria base relacional e, portanto, mais
relacionada com o rítmo seguido pelo próprio universo para resolver seus problemas.61

4. Epistemologia Evolutiva e Teologia

58
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, pp. 393-394.
59
Cf.: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, pp. 313-384. Segundo mostra através de uma longa análise
que ideologias como, por exemplo, o marxismo ignorou a necessidade de um cálculo energético no
processo de transformação das sociedades, ou seja, ignorou a necessidade de se reduzir a pretensões
compatíveis com a fé antropológica e com uma fé determinada, sobrecarregando, assim, um dos
vetores da realidade. Essa unilateralidade gera inflexibilidade e enrigecimento de um processo que
poderia evoluir mais. Segundo também mostra em sua análise como na América Latina a mesma
dissimulação da espessura da realidade levou ao que ele chama de "ciclo desespero-subversão-
repressão".
60
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, p. 383.
61
Juan Luis Segundo assinala que para essa complementariedade não existe uma dose determinada,
universal e válida para sempre. O que ela requer é a prudência própria de todo cálculo energético
delicado. Cf.: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, p. 401.
Está para além dos objetivos deste trabalho mostrar toda a riqueza da
incorporação que Segundo faz das categorias evolutivas no conjunto de sua obra. O que
pretendemos com este tópico é simplesmente registrar que para ele a introdução de uma
epistemologia evolutiva no fazer teológico é a condição para que a teologia não apenas
ganhe uma linguagem atual e compreensível mas também para que ela ganhe
compatibilidade em relação às grandes conquistas da ciência moderna e, sobretudo, em
relação às perguntas fundamentais do homem e da mulher contemporâneos. Do
contrário, ela seguirá
"...viviendo, hablando y pensando, en gran medida, como en la Edad Media. ¡Extraño
edificio en la ciudad moderna! Pero menos mal si fuera para claridad y fuerza del mensaje
cristiano. El mismo magisterio nos dice que así la verdad pierde vida y plenitud. Y ya no se le
puede pedir que ilumine y humanice los problemas de hoy.62"
Para alcançar esse objetivo Segundo entende que a teologia deve se tornar
capaz de pensar, ativar e expressar a fé cristã relacionando-a com os mecanismos de um
único contexto de evolução universal.63 Para isso não basta, porém, a aceitação de que a
realidade se encontra em evolução. Na verdade, estamos diante de uma tarefa muito
mais complexa que promete um alcance muito amplo e longo.
Trata-se, por um lado, de incorporar no próprio modo de aproximação da
revelação uma lógica de circuitos que dê conta e atenção relacional aos diversos
estágios de um mesmo processo e, por outro lado, de descobrir a dinâmica evolutiva,
como foi descrita aqui, no interior mesmo da revelação de Deus. Este último passo
supõe o primeiro. Pela conjugação desses passos num único caminho poder-se-á libertar
a teologia e a pastoral da visão fixista, linear, atemporal e idealista sobre o universo,
Deus, ser humano, história, Jesus Cristo, Igreja, graça, pecado, amor cristão,
escatologia, etc... E a superação dessa visão é urgente porque uma teologia
fundamentada num modo linear de conhecer e atuar funciona como base teórica de
projetos lineares de tornar vigentes universalmente os valores cristãos, dissimulando as
variáveis que compõem nosso mundo e, consequentemente, o cálculo energético que
comporta todo passo qualitativo no processo da evolução natural e humana. Neste
sentido afirma Juan Luis Segundo a propósito de um pensamento ou mente ecológica,
ou seja, daquela mente que mantém um equilíbrio entre o projeto e o respeito pelos
mecanismos energéticos do ambiente:

62
SEGUNDO, J. L. La historia perdida y recuperada, p. 13.
63
Cf.: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje I, pp. 212-216.
"O primeiro que parece exigir este equilíbrio flexível, sobre o qual está plantada a
ecologia (mental e natural), é uma certa modéstia no que pedimos ao sentido, quer dizer, uma
moderação na 'pretensão' humana. Devemos habituar-nos à limitação irremediável do sentido,
para evitar essas escaladas de meios que terminam inflexivelmente destruindo o sentido em
nome de sua realização."64
Por isso, Segundo entende que para se alcançar uma mentalidade teológica
libertada de todo literalismo idealista não basta uma aproximação simpática aos aportes
da ciência moderna. É necessário, além dessa aproximação, uma conversão na
metodologia teológica e um situar cuidadoso desses novos aportes tanto no contexto dos
dados transcendentes e valores da fé cristã, como no contexto dos problemas atuais. A
teologia deverá para tanto, a partir de uma base epistemológica evolutiva, descobrir as
características estruturais de suas próprias questões. Isso significa dizer que a teologia
deverá situar suas questões num contexto mais amplo através de uma metodologia que
inclua a analogia ou redundância universal.
Chegados aqui, convém perguntar-nos como se concretiza essa proposição no
pensamento de Juan Luis Segundo. Em primeiro lugar, podemos afirmar, sem sombra
de dúvida, que em toda a sua obra podemos nos encontrar com esse empreendimento de
tentar pensar teologicamente a partir de uma mentalidade evolutiva. Em segundo lugar,
e como consequência do que acabamos de afirmar, uma tentativa de tematizar aqui os
resultados concretos da proposição de Segundo excederia em muito os objetivos deste
trabalho. Em terceiro lugar, poderemos ter acesso a uma concretização da proposta de
Segundo quando tratarmos da sua eclesiologia nos próximos capítulos. Diante mão,
podemos, porém, registrar que encontramos tal proposição explicitamente formulada na
abordagem segundiana sobre o pecado65 e, numa etapa posterior, sobre o homem
contemporâneo, suas possibilidades e limites de acesso a Jesus de Nazaré.66

64
SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/2, p. 368. Grifos do autor.
65
Cf.: SEGUNDO, J. L. Teología Abierta II, pp. 347-486. Segundo mostra nesta obra que não basta
mudar a nomenclatura dos temas clássicos da teologia, chamando, por exemplo, pecado, alienação e
graça, libertação. Na busca de superar a mentalidade maniqueísta do pecado, por exemplo, Segundo
propõe uma concepção de pecado a partir do próprio coração da dogmática cristã relacionada,
analogicamente, com os mecanismos da evolução natural e humana. Impossibilitados de apresentar
aqui como Juan Luis Segundo procede sua reflexão sobre pecado e redenção, restringimo-nos, mesmo
correndo o risco de simplificação, a indicar em linhas gerais a direção de sua reflexão e das suas
conclusões. Ele descobre que as estruturas criadas pelo pecado original e a redenção não constituem
um marco fixo dentro do qual o indivíduo de cada geração joga sua sorte. Tal concepção de moral
individual e de redenção individual representa para Segundo uma deformação do cristianismo. Cf.:
SEGUNDO, J. L. Teología Abierta II, p. 399. Uma chave dialética e evolutiva permite situar a relação
pecado-redenção em planos mais primordiais e universais que o individual. Através desta chave
Segundo mostra como, por um lado, o universo inteiro está trabalhado pela libertação, entendida como
verdade prática e como, também desde o seu início, o mesmo universo segue sínteses fáceis,
conservadoras, que cada vez mais devem defender-se da luz, de uma crise que aponte para sínteses
4.1 A Revelação no Contexto Evolutivo e o Desafio de Aprender em
Segundo Grau

Neste tópico pretendemos mostrar qual a concepção de revelação que Juan


Luis Segundo assinala como consequência e, ao mesmo tempo, base de uma teologia
que incorpora uma epistemologia evolutiva. Nossa intenção com isso é de com-
plementar o tópico anterior, quer dizer, dar uma idéia mais concreta daquilo a que
conduz um fazer teológico que busca incorporar o evolutivo.
O primeiro passo indicado por Segundo é de situar a própria revelação cristã no
tempo e no espaço para que ela ganhe a relevância que lhe compete como síntese
complexa e difícil. E esse situar é importante porque mostra-nos que Deus esperou por
um certo amadurecimento da humanidade que pudesse possibilitar a compreensão de
sua revelação explícita.67 Isso significa dizer que o momento localizado da revelação
cristã explícita tem, na visão segundiana, conteúdo teológico na medida em que ele
pertence não apenas ao contexto mas também ao próprio objeto da revelação.
Se assim é, então a revelação segue também um processo pelo qual e em
conformidade com o crescimento humano ela vai ganhando características, extensões e
profundidades novas. Uma ilustração deste princípio Segundo encontra no processo
pelo qual passa a concepção veterotestamentária de Deus. Mesmo sendo inegável que a
religião de Israel continha elementos que já apontavam na direção do monoteísmo, ela,
na verdade, não era monoteísta, mas sim monólatra, ou seja, adorava um Deus, mas
reconhecia os outros. As obras javistas até o século IV testemunham esse procedimento.

mais ricas e, portanto, mais difíceis e custosa em termos de energia. Podemos perceber que nesta
concepção reside uma analogia em relação aos vetores negativo e positivo da evolução: entropia e
negaentropia. Através deles Segundo percebe pecado e redenção atuando em umbrais primordiais. Cf.:
SEGUNDO, J. L. Teología Abierta II, p. 407.
66
Ver: SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje II/1.; II/2.
67
Cf.: SEGUNDO, J. L. Teología Abierta I, pp. 38-61; pp. 174-178.
Somente nas obras referentes à experiência do exílio é que se percebe a passagem para
um outro nível.68
O que podemos tirar disso como premissa? Primeiro, a revelação não é um
ditado de informações precisas, sempre verdadeiras, porque procedentes da verdade
mesma. Segundo, o Concílio Vaticano II confirma o assinalado anteriormente quando
afirma que os livros do Antigo Testamento,
"...embora contenham também coisas imperfeitas e transitórias, manifestam contudo a
verdadeira pedagogia divina."69
Assim, as "coisas imperfeitas e transitórias" são também parte da "verdadeira"
revelação divina. E isso não significa, assinala Juan Luis Segundo, relativização da
verdade, pois
"...una vez más, Dios no parece preocuparse de que lo que 'revela' sea verdad en sí
mismo, verdad eterna, verdad inalterable, sino de que se 'haga' verdad en la humanización del
hombre. En otras palabras, no habla sino con un hombre que busca, y no le da recetas sino le
guía en su búsqueda."70
Daí o entendimento segundiano de que a revelação é um processo que consiste
não na acumulação ou adição de informações, mas sim em aprender a buscar a verdade.
O que faz da revelação uma "pedagogia verdadeira" como indica a Dei Verbum não é
que ela ensina coisas, mas sim o fato de ela ser processo educativo pelo qual se aprende
a aprender:
"Exactamente como en toda pedagogía; se guía a un niño (esa es la etmología de la
palabra) para que aprenda a buscar la verdad, usando de sus mismas equivocaciones y
errores [...]. La pedagogía es un proceso de aprendizaje en segundo grado. Y su verdad no
está en la verdad intemporal del primer nivel donde las informaciones se suman, sino en el
segundo nivel de aprendizaje en que los factores para buscar y hallar la verdad se
multiplican."71
Daí que, sendo a revelação um processo educativo, urge um tipo de relação
entre revelação e verdade. Esse novo tipo de relação não deve se concentrar na soma de
verdades que, numa lógica linear, conduziria à subtração de erros, mas na busca
analógica de uma verdade que amadurece conforme o crescimento humano e que, por
isso, há de incorporar a imperfeição e a transitoriedade.
68
Cf.: SEGUNDO, J. L. O Dogma, pp. 77-83.; pp. 96-103.
69
Constituição Dogmática Dei Verbum 15, in: Compêndio do Vaticano II Constituições, Decretos,
Declarações. Petrópolis: Vozes, 131983. [=DV].
70
SEGUNDO, J. L. Fe, Signos de los tiempos, p. 453.
71
SEGUNDO, J. L. Fe, Signos de los tiempos, p. 454. Vale relembrar que a expressão "aprendizagem de
segundo grau ou aprender a aprender" é tomada por Segundo de Gregory Bateson e designa o
processo de multiplicação de informação. Em outras palavras, significa não acumular informações
mas ser capaz de multiplicar a informação recebida ao defrontar-se com situações novas.
Isso significa dizer que num processo de aprendizagem de segundo grau, a
verdade principal que se aprende não é simplesmente a última, pois novos planos da
realidade surgirão, provocando crises e questionamentos dos dados transcendentes que
dão razoabilidade à fé (não somente a religiosa) e a urgência de reflexão em busca de
atualização mais abrangente que supere compreensões insuficientes e, ao mesmo tempo,
sirva de base para um novo umbral no processo de busca da verdade. A verdade se
mostra, desta maneira, como uma trilha por onde se caminha para uma verdade cada vez
mais cabal.
Por isso, Juan Luis Segundo propõe que a solução do dilema das formulações
contraditórias na revelação consiste em não entrar nele. Ou seja, em não apresentar o
ensinado antes e depois como alternativa entre o erro e a verdade, mas em reconhecer o
caráter profundamente pedagógico do processo guiado por Deus.72
A partir dos elementos apresentados, Juan Luis Segundo propõe a superação de
uma visão de revelação de Deus que entendida como produto já concluído por Deus,
diante da qual a única função do ser humano seria acatá-la na fé e aplicá-la na práxis.
Tal visão pode se processar na medida em que encaremos com profundidade, como o
faz o processo bíblico, que a revelação não somente supõe uma busca e uma fé prévia à
escuta de Deus que revela, mas também e, além disso, a constituição de um povo,
encarregado de transmitir de geração em geração uma sabedoria. Este povo se torna,
pela efetivação da tarefa de transmitir essa sabedoria, "tradição".73
Povo e geração apontam para um contexto processual que, por sua vez, traz à
tona a idéia de provisoriedade e relatividade. Significa isso uma relativização da
revelação de Deus? Para Juan Luis Segundo, não. O que isso significa é que o absoluto
da revelação não reside na letra da Escritura ou nas conclusões provisórias, mas na
própria pedagogia ou no processo educativo que é dirigido por Deus. Por isso, que para
formar parte desse povo transmissor, dessa tradição guiada por Deus em processo na
busca da verdade é necessário, afirma Segundo,
"...tener 'fe' en ella. No en Dios directamente, porque no es él quien nos habla. Dios tiene
testigos, pero esos testigos divinos no son individuos aislados: constituyen una comunidad, un
pueblo al que Dios, con su 'verdadera pedagogía', va encaminando hacia la verdad liberadora
de todas las potencialidades creadoras del hombre. Pueblo israelita, pueblo cristiano,

72
Essa idéia de Segundo encontra-se formulada de forma explícita e concreta sobretudo em duas obras:
SEGUNDO, J. L. ¿Qué es un cristiano? Etapas precristianas de la fe - Concepción cristiana del
hombre, Montevideo: Mosca Hnos, 1971.; SEGUNDO, J. L. O Dogma.
73
Cf.: SEGUNDO, J. L. Fe, Signo de los tiempos, p. 457. Essa tarefa confere à memória e à pedagogia
coletiva uma função decisiva no próprio processo de revelação.
cumplen una función de interpretación y transmisión sin la cual no podríamos hoy reconocer
dónde y cómo suena la 'palabra de Dios'. Sin Israel o sin Iglesia no hay, en el mundo que
conocemos y dentro de la tradición cristiana, revelación de Dios."74
A fé no conteúdo revelado, em sua totalidade, significa, assim, para Juan Luis
Segundo, confiar absolutamente em que o seguimento do caminho marcado na tradição
não nos conduzirá à estagnação do sentido ou a uma aporia na busca da verdade. Isso
significa que, ao toparmos nas coisas imperfeitas e transitórias, inerentes a todo e
qualquer processo de educação, teremos oportunidade de aceder a uma verdade cada
vez maior que, por sua vez, nos franqueará uma riqueza mais profunda de sentido para
nossa existência.
Esse é, na visão segundiana, o pressuposto para a razoabilidade da fé e,
portanto, para superação do fideísmo. Quer dizer, que a fé não se reduza a repetição
rotineira de afirmações "verdadeiras", no entanto, isoladas, mas que desenvolva a
capacidade de encarar as crises como geradoras de descobrimentos. A fé absoluta na
tradição não implica crer em mistérios ininteligíveis. Muito ao contrário, implica que
somos guiados pelo Absoluto como seres livres e criadores para uma verdade sempre
maior, mais rica e mais profunda.75
De fato, com a concepção da revelação como um processo de dêutero-
aprendizagem, Juan Luis Segundo abre um caminho de resposta ao problema de como
relacionar equilibradamente o absoluto e o relativo quando se trata da revelação. Por
outro lado, já vimos que Juan Luis Segundo articula essa tensão ou interrelação entre
relativo e absoluto já num nível pré-religioso, ou seja, no nível antropológico enquanto
ideologia e fé. Agora, já foi mostrado que para Segundo a fé religiosa pressupõe a fé
antropológica. Este dado é muito importante para compreender como ele estende a
relação dos pólos constitutivos do seu marco antropológico, ou seja, fé e ideologia para
o interior mesmo da revelação concebida como processo de aprendizagem de segundo
grau.
Resumidamente, Segundo entende que ao lidarmos com a revelação
encontramos também os dois pólos constitutivos de toda existência humana, quer dizer,
fé e ideologia.76 Agora, como já vimos, as ideologias, que se caracterizam pela
relatividade, modificam-se conforme a evolução da realidade. Daí surge então uma
questão para Juan Luis Segundo, ou seja, como é possível conceber a revelação como

74
Cf.: SEGUNDO, J. L. Fe, Signo de los tiempos, p. 457.
75
Cf.: SEGUNDO, J. L. O Dogma, p. 145.
76
Ver: SEGUNDO, J. L. Libertação da Teologia, pp. 122-136.
absoluto, na medida em que nela estão contidas também ideologias, por sua vez,
relativas?
Segundo entende que o fato de as ideologias modificarem-se constantemente
não implica que o mesmo ocorra com a fé. Com a fé ocorre o contrário. Ela gera
ideologias, ela constitui em processo de aprendizagem o uso sucessivo das ideologias e
vai se enriquecendo a nível de conteúdo através do próprio uso dessas ideologias.
Assim, as ideologias que encontramos nas Escrituras transmitem uma informação de
primeiro grau, quer dizer, uma informação que se soma, enquanto que a fé transmite
uma informação de segundo grau, quer dizer, uma informação que se multiplica.
Tratando da questão das ideologias presentes nas Escrituras, Segundo afirma:
"...são as respostas aprendidas frente a determinadas situações históricas. A fé, por sua
vez, é um processo total ao qual o homem se entrega, e esse processo é uma aprendizagem,
através das ideologias, para criar as ideologias necessárias para novas e inéditas situações
históricas. As próprias Escrituras podem e devem ser vistas e estudadas a partir de ambos os
pontos de vista, já que ambos estão nela e não se disputam seu conteúdo. Em outros termos, o
sair lutando da escravidão é uma experiência, como o oferecer a outra face é outra
experiência. Quem fez ambas as experiências e refletiu sobre elas, aprendeu a aprender,
multiplicou sua informação de fé e de maneira alguma a reduzir a zero."77
Da mesma forma que em cada existência humana a complementariedade entre
ideologia e fé é a condição da maturidade, conceber a revelação como um processo de
aprendizagem de segundo grau supõe perceber os momentos desses dois pólos e sua
articulação dialética no interior de um mesmo processo. Na visão segundiana, o que se
conhece em cada encontro de fé com a fonte objetiva da verdade absoluta é uma
ideologia,
"...mas o que se aprende não é essa ideologia. Através do processo se aprende a aprender
com as ideologias. Esta aprendizagem em segundo grau tem seu próprio conteúdo, e quando
digo que Jesus tinha duas naturezas, uma divina e outra humana, estou dizendo algo do
conteúdo dessa aprendizagem. Mas esses conteúdos não podem traduzir-se em tal ou qual
ideologia, porque pertencem ao segundo grau ou à segunda potência do conhecimento: são
essencialmente símbolos metodológicos. Por uma parte, não têm tradução ideológica
imediata, e por outra parte, não têm outra função do que a de serem traduzidos em
ideologias."78
Vemos assim que o intento de Segundo é enfatizar o caráter pedagógico da
verdade da revelação e sua base antropológica, sem desaguar pelos rios do relativismo.
A fé converte-se, assim, não num conteúdo atemporal o qual se encontra quando
77
SEGUNDO, J. L. Libertaçäo da Teologia, p. 133.
78
SEGUNDO, J. L. Libertaçäo da Teologia, p. 120. Grifos do autor.
desembaraça a revelação das ideologias, mas sim na maturidade para fundar ideologias
que contribuam para a libertação real e integral dos homens e das mulheres. Este
processo de aprendizado não parou, no caso do cristianismo, em Jesus Cristo. Ele deve
continuar hoje guiado pelo seu Espírito e mantido pela comunidade da fé – a Igreja –
numa tensão permanente entre a unidade dinâmica da fé e a pluralidade histórica das
ideologias suscitadas e ao mesmo tempo requeridas pela própria fé para sua realização
histórica.

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