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As muitas leituras de Bartleby

(seguido de Bartleby na escola)

Bartleby nos é um mistério.


Quando Herman Melville escreve a história do jovem escriturário pouco
sabemos do que se trata: não há descrição nem contornos claros da figura que leva o
nome do conto, não há histórico ou explicação que desvele na obra a figura excêntrica
do menino empregado em Wall Street, não há teoria filosófica ou literária que dê
razões suficientes para compormos uma topografia fiável ao personagem. Somos
apresentados, sobretudo, à um mistério. Melville nos expõe uma estrutura clara da
discrição de Bartleby desde seu surgimento: um jovem (sabe-se lá de que idade), que
por circunstâncias desconhecidas surge à entrevista de emprego de um advogado de
Wall Street (tão pouco nomeado), em um escritório tão pouco numerado (“meu
conjunto de salas era no segundo andar do n°... da Wall Street” 1), que nem mesmo
tem histórico trabalhista ou pessoal. Sua figura não carece apenas de uma biografia
bem escrita, mas também de uma expressão clara. Sua primeira aparição é como a
apresentação de um enigma: diferentemente de como somos levados a conhecer o
temperamento, as particularidades, os gostos e os receios de seu chefe e os
empregados2 nada nos é dado conhecer sobre o escrivão. Exceto, é isso, que tornou-
se escrivão por conta do acaso, que ao fim e ao cabo nada nos diz efetivamente sobre
ele. Tanto os outros personagens da história quanto milhares de jovens da época
compartilhavam essa mesma característica de ser escrivão, logo, nada de distinto nos
é dado sobre Bartleby.
O jovem parece não haver nada. Os dois primeiros movimentos do conto
ressaltam esse traço edificante, que cativa no leitor uma angustiante curiosidade,
primeiro conhecemos um pouco sobre a vida de nosso narrador, sua passagem de
renome sob supervisão de John Jacob Astor, seu atual cargo de conselheiro do
Tribunal de Chancelaria, suas virtudes e pecados (como é obviamente explicitado
pelas sentenças em primeira pessoa “sou um advogado que...”, “eu raramente me
descontrolo...”, “eu tinha duas pessoas trabalhando comigo...”, etc) e, segundo,
identificamos cada um de seus companheiros de escritório por uma análise quase que
científica e psicológica feita pelo conselheiro (conferir nota 2). Apesar de não termos
noção da vida anterior de Turkey e Nippers eles não são para nós iguais a Bartleby,
diferem-se por sua unicidade quase que diametralmente oposta, pois Turkey fica
fervoroso e incontrolável após o almoço enquanto que Nippers não resiste ao começo
da manhã. Bartleby não tem vida anterior e nem vida presente. É como um monge que
largou sua vida terrena e cometeu-se à um voto de silêncio.
Ler o conto é, portanto, conversar com a esfinge.
Começa a mobilizar-se, então, nesses primeiros parágrafos, um movimento
crescente de curiosidade que percorrerá a obra toda, recebendo forma no interesse
diverso que o narrador dedica à Bartleby. As teorias são muitas e das mais variadas:
primeiro crê-se que é um turrão de peculiaridades, privilégios e concessões muito
distintas e inflexíveis; depois, acredita-se que é um ser perverso e irracional, que não

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Veja-se, por exemplo, a apresentação meticulosa que o empregador desvela sobre Turkey, Nippers e
Ginger Nut, analisando seus temperamentos referentes à cada estágio do dia, conjecturando sobre suas
ambições secretas e até mesmo expondo-lhes seu almoço.
sabe o que faz mas que inevitavelmente causa desconforto; após isto é um fantasma
que assombra o escritório nas horas que ninguém mais o habita; ao passo que logo
em seguida é um doente, portador de uma grave enfermidade “inata e incurável”, é,
por fim, ainda também, um solitário jogado à própria sorte, incapaz de lidar com o
mundo, um cidadão de um mundo que não existe mais, cadavérico por natureza,
morto entre os vivos (um morto-vivo); é um alento e/ou uma penitência que faz parte
de um “propósito misterioso de uma sábia providência”; é uma estranha criatura que
parasita e contamina os outros; é um “errante” sem lar; enquanto que para a polícia é
um vadio. Bartleby é muitas coisas, mas simultaneamente não é nenhuma delas. É um
homem de muitos adjetivos que não lhe cabem. Como um ser que não aceita ser
caracterizado por qualquer forma ou categoria.
Quem é, portanto, Bartleby?
Primeiro, é aquilo que o autor nos diz ser: um escrivão. É uma máquina copista
por excelência. Ele é habilidoso, incansável, eficiente e muito produtivo, além de
reservado, quieto e educado, recebe os trabalhos e realiza-os sem receber qualquer
advertência quanto à qualidade de suas produções. Sua profissão de escrivão,
aparentemente ordinária e corriqueira, tem ai sua grandeza, dado que é justamente
essa sua habilidade de copiar e reescrever sem alterações, erros ou borrões que o faz
ser contratado. Para o senhor de leis, dono do escritório, ele é a supressão do humano
(o erro, a alteração temperamental, o cansaço) na execução do trabalho. É, em suma,
um sonho. Um homem tão abdicado de si e do mundo que toda sua concentração no
trabalho produz a obra mais fiel em um tempo recorde.
Toda sua perfeição logo é compensada pelo surgimento de um conflito
insolúvel que é nuclear para a estória. Quando o advogado pede que reexamine as
cópias que fez Bartleby retira-se de seu estado mudo e finalmente aparece ao mundo
real, como se abandonasse aquele submundo e subisse à superfície da interação
humana. Ainda de maneira muito sutil ele formula pela primeira vez aquela que ficaria
conhecida por sua máxima: ele admite que “prefere não conferir as cópias” (“I would
rather not to”). Não é de se admirar que isso enfureça o senhor das leis, o homem
correto por natureza, à um nível extremo (“nada irrita tanto uma pessoa séria quanto
uma resistência passiva”), ao ponto que se vê incapaz de fazer qualquer coisa perante
a atitude do jovem escrivão, de tão inusitada não sabe como reagir à tal atitude.
Porque Bartebly o enfurece? Em um primeiro momento por causa de sua
atitude inesperada, dado que já não seria universalmente aceitável um empregado
recusar-se à cumprir uma de suas tarefas ainda mais quando trata-se de um que
comportava-se impecavelmente até momentos antes. A sua primeira ação realmente
humana é, portanto, incompreensível ao extremo.
Melville, entretanto, trata de mostrar-nos que Bartebly não é indiferente às leis
da cortesia e da sociabilidade humana. Ele sabe muito bem qual é seu papel na
estrutura social (comprovado por sua constante educação e cortesia, apesar das
poucas palavras), contudo parece incoerente e insubordinado às regras sociais e à
racionalidade do senso comum. O julgamento do narrador, apesar de perplexo, é
adiado pela primeira tentativa de compreensão de quem realmente é Bartleby. Ele
torna-se receptáculo de um mal social, das pessoas que são excêntricas e
incognoscíveis, incapazes de cooperar para um bem comum, alienadas à seu ego e
incapazes de cumprir o contrato social que todos nos submetemos. Por isso Bartleby
é, sob jugo do senhor de leis, um ser irracional e perverso 3, que causa sofrimento não
para deleite próprio, mas por falta de empatia.
Passamos então de um terreno puramente social e rígido da norma e da
obediência para o terreno humano das concessões, preferências e discussões.
Bartleby afasta-se sutilmente dessa figura do excêntrico inconveniente porque sua
posição é inconciliável com tal arquétipo: ela ainda apresenta um caráter muito
afirmativo para alguém que recusa-se a fazer algo. Por isso quando recebe o
advogado na manhã de domingo ele expressa seus sentimentos de condolência e
mostra-se empático. “Sinto muito, não terminei ainda” é a forma mais sutil que tem de
mostrar que seu embotamento não é maquiavélico4.
Essa reação (e a própria presença do escrivão) transtornam mais ainda o
advogado5, que vê-se em busca de uma nova explicação para o comportamento de
Bartleby.
Deixe-me fazer uma pausa para sintetizar tudo que sabemos sobre ele no
momento: que é um escrivão, propriamente um mestre na arte da cópia (a ação
mecânica por excelência), que se recusa a cooperar voluntariamente, mas que não
está isento de compaixão e preceitos morais. Contudo se Bartleby não o faz por mal,
então quais os motivos da sua reincidente negação em obedecer?
A resposta lógica que o texto nos dá é de que Bartleby ao invés de ser amoral
e antiético apenas está sujeito à uma outra moralidade que não aquela do presente.
Seu misterioso passado ratifica a plausibilidade de supormos que em sua terra natal a
lógica discursiva sobre o trabalho e a obediência seja outra. Desse modo o escrivão
nada mais é que um morto entre os vivos, um ser que responde à leis de outra época,
que segue princípios que não sobreviveram à marcha de sua vida e que lhe conferem
seu aspecto cadavérico. Desse modo exalta-se sua forma quase que fantasmagórica
ao habitar o escritório silenciosamente sem ser notado, é essa sua inocente
incompreensão que o torna alheio às regras do mundo moderno. Wall Street não é por
acaso, é magnanimamente o epicentro de um mundo que nunca antes existiu, que tem
como objeto de trabalho as propriedades imateriais, o capital especulativo, as relações
de poder midiáticas, as influências sociais, a mão invisível do mercado. Como um
bárbaro sentiria se fosse “teletransportado” para essa nova sociedade? Como
compreenderia que age errado sendo que age conforme os ideais mais nobres de
outra época? Como entenderia os códigos sociais implicitamente inscritos na vida de
todos? No mínimo suporíamos uma constante contemplação e reflexão, o que Bartleby
comumente nos entrega6 (veja-se as constantes passagens sobre seu silêncio, suas
sessões de contemplação da parede, os longos períodos de observação quieta7).

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Como será comprovado pela ponderação do advogado sobre a motivação que levou Bartleby invadir
seu escritório. Dirá ele: “Estaria acontecendo algo errado? Negativo, isso estava fora de questão. Não se
podia pensar por um segundo sequer que Bartleby fosse uma pessoa imoral. [...] Bartleby era
eminentemente uma pessoa do maior decoro”.
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“A aparência totalmente inesperada de Bartleby [...] teve um efeito tão estranho sobre mim”.
6
É claro que exige-se um salto de fé ao considerar que esses momentos taciturnos de Bartleby sejam
tentativas de compreensão do mundo atual, até porque esse é o grande mistério do livro “porque age
da forma que age?”, mas não leva-las em consideração seria um pecado maior ainda. Tratarei melhor
sobre isso quando citar a visão de Bartleby como filho do absurdo.
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“[...] os mistérios silenciosos [...], longos períodos de pé, olhando para fora de sua pálida janela atrás
do biombo [...] numa daquelas sessões de contemplação da parede sem vida.” (pág. 29)
Segue-se aí a figura de Mário sob os escombros de um mundo que já não
existe para simbolizar Bartleby como um Matusalém que viu seu tempo desvanecer
sobre si. Inverte-se o jogo então e cai sob o escrivão a compaixão que ele tanto
parecia negligenciar aos olhos do advogado: ele não sabe o que faz, é um jovem
perdido, sem instrutores ou colegas8 que necessita da ajuda, que necessita
esclarecimento. As figuras da Renascença aqui intensificam-se uma vez que Bartleby
carece de humanidade no sentido mais iluminista possível. Para o advogado a
compaixão em suas diversas formas (o desalento, a melancolia fraternal, etc) torna-se
o sentimento predominante perante aquela jovem figura que padece de uma
ignorância natural, que precisa de instrução e acolhimento. Por isso ao invés de
rechaçar o bárbaro que apossa-se de seus territórios, o advogado planeja oferecer à
Bartleby um amparo gratuito, livre de qualquer cobrança (patente ao oferecer-lhe 20
dólares e conceder que cuidará dele mesmo que este recuse-se a trabalhar9).
A complacência do grande filho de Adão, esclarecido e iluminado pela cultura,
é (adivinhem) recusada repetitivamente pelo escriturário com sua máxima do “prefiro
não fazer”, o que recomeça o projeto de compreensão da natureza das ações de
Bartleby. Porém isto não significa que todas as informações colhidas sejam
repentinamente descartadas, mas sim que elas mostram-se insuficientes. Se as ações
do escrivão não são guiadas por um desejo culpável (como Agostinho diria ser a
causa do mal) e também não são causadas por sua ignorância somos obrigados a
culpar seu estado orgânico por suas excentricidades. A sua vontade, sua sabedoria
podem não ser as determinantes em sua unicidade, mas sua disposição biológica,
afetada por uma doença parece ser a próxima teoria que o homem de leis supõe para
explicar Bartleby.

Ele deixa de ser indistinto e surge como alguém. Ele adentra um terreno de
relações humanas e expressa-se como um ser único, e enfim conhecemos algo sobre
ele: que uma de suas preferências é não revisar as cópias, mesmo que isso seja ainda
algo incompreensível é ao menos algo incomum e para o quanto conhecemos de
Bartleby já é muito.
O problema começa, propriamente dizendo, quando Bartebly não apenas
exprime em voz alta seus gostos, mas sim realiza uma ação (que não a de copiar). A
experiência é o que dá sentido à vida e nessa significação Bartebly exprime-se como
total

. Tudo que nos é dado saber é que é um escrivão, como sutilmente nos sugere
o título

8
“A silhueta pálida do escriturário surgia estendida, entre estranhos que não se importavam com ele,
envolvida em um sudário gelado” (pág. 28)
9
Trata-se do plano descrito pelo narrador no último parágrafo da pág. 30, logo após “finalmente, decidi-
me”.
Sabemos apenas que é um escrivão, nada mais. Essa indefinição de Bartleby
(que resiste até mesmo às definições detalhadas e cuidadosas das primeiras páginas
em que conhecemos os outros empregados de seu empregador) é o pilar central da
magnificência do conto de Melville, é justamente esse aspecto que rodeia a obra e
permite leituras tão variadas da figura excêntrica do escrivão. Não tratarei de recompor
toda a fortuna crítica de

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