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Coleção

PERSPECTIVAS DO HOMEM Mário Pedrosa


Volume 128

A Crise Mundial do
Imperialismo e
Rosa Luxemburgo

civilização
brasileira
Exemplar N° l471

Sumário
Capa: DOUNÊ

Revisão:
SILVIA CATUNDA MARQUES
e REGINA BEZERRA

Prefácio 7
I — Introdução 17
II — A Primeira Falência do Capitalismo 21
III — Um Ponto de Virada da História 28
IV — O Pensamento de Rosa Luxemburgo 33
V — A Querela: "Otimistas" e "Pessimistas" 47
VI — O Capitalismo 55
VII — O Amálgama do Estado e da Economia 63
VIII — A Máfia Que Sobrevive 80
IX — "Comércio Singular" e América Latina 89
X — Epílogo 106
Direitos desta edição reservados à
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A. APÊNDICE
Rua Muniz Barreto, 91-93
Rio DE JANEIRO — RJ Nota Explicativa 117
I — A Revolução Russa 130
II — O partido bolchevique, força motriz da Re-
1979 volução Russa 134
III — Duas palavras de ordem pequeno-burguesa:
partilha das terras e direito dos povos de
Impresso no Brasil disporem de si mesmos 139
Printed in Brazil IV — A dissolução da Assembléia Constituinte 148
V — Democracia e ditadura 154
Prefácio

Em pleno século XI X , a Inglaterra era a única


potência mundial capitalista em condições de novo arran-
que para a acumulação. Estava ela, com efeito, em vias
de uma nova abertura de vastos territórios não capita-
listas capazes de permitir ao capital perseguir a repro-
dução ampliada e entrar na fase de acumulação. E aqui
outra vez a questão se levanta: quem são esses novos
consumidores? quem vai pagar, em última análise, o no-
víssimo empréstimo internacional? quem vai realizar a
mais-valia das empresas fundadas nesse empréstimo?
Rosa Luxemburgo num dos mais luminosos capítulos de
sua obra, responde: "A história do Egito e da Turquia
fornece a resposta clássica a esta questão". Na segunda
metade do século XIX , a história do Egito caracteriza-se
por três pontos salientes: a criação de empresas modernas
de envergadura, o crescimento inaudito da dívida
pública e o desmoronamento da economia campesina.
A servidão ali1 se manteve até a época moderna, e o Wali
e o Khediva exerceram tranqüilamente no domínio da
propriedade fundiária uma política puramente pessoal,

1
Título do vice-rei do Egito.
7
isto é, de força. Mas, precisamente, esta situação primi- Sem dúvida o próprio Egito tornou-se nesse desen-
tiva oferecia um terreno extremamente favorável às ope- volvimento brutal da economia mercante a presa fácil do
rações do capitalismo. Do ponto de vista econômico aquela capital europeu. No Egito como na China ou mais recen-
condição era ideal: nada mais era preciso fazer que temente no Marrocos, descobre-se, nos diz nossa autora,
simplesmente destacar a autoridade do Estado; e Meha- o militarismo oculto por trás de empréstimos interna-
met Ali, o criador do Egito moderno, empregou até os cionais, na construção de estradas de ferro, nos trabalhos
anos de 1830 um método de simplicidade patriarcal: todo de acumulação e outras obras de civilização. E a lição
ano ele "comprava" aos "felás", em nome do Estado, sua que nos dá a história desses países; orientais é que eles
colheita inteira, para revender-lhes, a bom preço, o mí- evoluem com pressa febril da economia natural deles à
nimo necessário à subsistência deles, e à semeadura nova, economia mercante e desta à produção capitalista, e nesta
também controlada pois o governador era quem decidia pressa são todos indistintamente devorados pelo capital
quanto que deviam plantar, uma vez que o algodão e o europeu, pois sobretudo não podem submeter-se àquela
índigo eram declarados monopólios do Estado, e logo só transformação revolucionária sem se lhe entregar
podiam ser vendidos para o Estado. Por tais métodos totalmente de punhos e pés amarrados.
— é bom que se saiba — foi que o comércio foi intro- Outro exemplo recente a mencionar é o dos grandes
duzido no Egito. É oportuno que também aqui se infor- negócios do capital alemão na Turquia. Antes da vez dos
me que por volta de 1882, resultado dos vinte anos de alemães, entre 1850 a 1860, o capital inglês tentou finan-
operações realmente de big-business, os oficiais do Exér- ciar várias linhas férreas de Smirna-Aidin-Diner e Smirna-
cito inglês aproveitando-se oportunamente de um levante Kanaba-Alachehir, uma concessão para o prolongamento
de soldados mortos de fome, ocuparam o país e não o de outra linha, e confirmou a primeira linha da via
largaram mais. O episódio marcou o passo final da liqui- Anatólia, Haidar-Paha-Somid. Pouco a pouco o capital
dação da economia campesina no Egito por obra do capi- francês vem participar na construção de estradas de
talismo europeu em seu benefício. Invocando Eith, o emi- ferro. Enfim, em 1888, o capital alemão entra em cena.
nente expoente da civilização capitalista nos países pri- Negociações secretas nas quais o grupo francês
mitivos, de que Rosa Luxemburgo cita alguns dados representado pelo banco otomano, desempenhou papel
importantes e estes trechos de verdadeiros artigos de fé importante, chegaram a fusão de interesses internacio-
já imperialista: "O que aprendemos do passado também nais. O empreendimento de Anatólia e da via de Bagdad
vale para o futuro. A Europa deve e porá uma mão fir- devia ser financiado em 60% pelo grupo alemão e em
me sobre esses países que não poderão mais, nas condi- 40% pelo grupo internacional. A Companhia de estra-
ções modernas, ser mantidos sob o próprio domínio em- das de ferro Anatólia cede sua parte a toda uma série
bora tal só seja possível através toda espécie de lutas, de pequenos agentes. Todos esses intermediários querem
quando a diferença entre o direito e o falso ficará confu- cobrir suas despesas e retirar o maior lucro possível, de
sa, quando a justiça política e a justiça histórica freqüen- tal modo que no momento em que o dízimo é percebido
temente significarão desastre para milhões e sua salvação já aumentou em enormes proporções. O coletor de im-
irá depender do que politicamente estará errado. Por postos procura se recompensar de seus erros de cálculos
todo mundo a mão mais poderosa porá um fim à confu- às custas do camponês. Este último, em geral coberto de
são, e assim será mesmo nas margens do Nilo" (op. cit. dívidas, espera com impaciência o instante de vender sua
p. 247). Rosa Luxemburgo, no entanto, acrescenta: colheita. Freqüentemente, porém, depois de ter contado
"Rothstein mostrou com bastante clareza que espécie de o trigo, tem que esperar para batê-lo semanas inteiras,
ordem os "britânicos" criaram nas margens do Nilo. até o momento em que convenha ao coletor de dízimos
E ainda hoje o mundo não se convenceu da "ordem" que subtrair a parte que lhe caiba, A colheita ameaça apo-
os ingleses e seus herdeiros criaram ali ou vão criar. drecer no pé, e o coletor, ele mesmo negociador de grãos,

8 9
explora esta situação para obrigar o camponês a vender estradas de ferro são fabricados na Alemanha, o trigo do
seu trigo a preço ínfimo, pois sabe como assegurar-se camponês, transformado em dinheiro, serve ainda para
o apoio dos funcionários, notadamente dos muktar, contra realizar a mais-valia extorquida dos operários alemães
o protesto dos descontentes" (Ch. Marawitz — Die durante a fabricação desses meios de produção. Ao reali-
Turkei im Spiegel ihrer Finanzen, 1903, p. 24). zar esta função o dinheiro passa das caixas do Estado
Ao tempo que essas taxas (de fumo e algodão), Turco as do Deutsche Bank, para aí ser acumulado como
o dízimo da seda e as dívidas de pescarias são cobra- mais-valia capitalista, e sob a forma de lucros de emis-
dos, o Conselho Internacional de Dívidas Públicas Oto- são, direitos, dividendos dos senhores Gwinner, Siemens,
manas percebe os dízimos que servem de caução à garan- de seus co-administradores, acionistas e clientes da
tia quilométrica das estradas de ferro e aos emprésti- Deutsche Bank e de todo o sistema complicado das socie-
mos. Em cada caso o Conselho se reserva o direito de dades filiais.
intervir nos contratos dos fazendeiros-coletores a propó- Se não há fazendeiro-coletor, como é o caso previsto»
sito dos dízimos, e de mandar recolher as receitas de nos contratos das concessões, a série complicada das.
cada distrito (vilayet) diretamente nas caixas regionais metamorfoses se reduz a sua forma mais simples e mais
do Conselho. Se não se consegue encontrar o coletor, os clara. O trigo do camponês passa imediatamente à Admi-
dízimos são armazenados em espécie pelo governo turco; nistração da Dívida Pública Otomana, isto é, aos repre-
as chaves do depósito são confiadas ao Conselho de Ad- sentantes do capital europeu, e se torna, sob sua forma
ministração da Dívida Pública Otomana, e esta revende natural mesma, uma renda do capital alemão e estran-
os dízimos por sua própria conta. geiro. Este faz realizar a acumulação do capital europeu
Assim, as relações financeiras — ou digamos, o me- antes mesmo de se ter despido de sua forma de uso pró-
tabolismo econômico — entre esta longínqua entidade prio, que é campesina e asiática, e realiza a mais-valia
difusa, vasta mas real que se conhece como "o pequeno capitalista antes de se ter tornado mercadoria e realizado
campesinato da Ásia Menor, da Síria, da Mesopotâmia" seu próprio valor. O metabolismo que se define aqui se
e o capital alemão, concentrado em bancos da Berlim efetua de um modo brutal e direto entre o capital euro-
do Kaiser, se faz da maneira mais simples, assim: nas peu e a economia campesina asiática; enquanto o Estado
planícies das aldeias (vilayets) de Konia, de Bagdad, de turco, por sua vez, se reduz a seu justo papel, um mero
Basra, etc., o trigo que vem ao mundo como simples papel político destinado a explorar a economia campo-
produto da economia campesina primitiva, imediatamente nesa por conta do capital estrangeiro, "o que na verdade
passa à possessão do coletor de impostos como tributo se torna a real função de todos os Estados Orientais no
vendido ao Estado. E é então que esse trigo sofre sua período do imperialismo capitalista".
primeira transformação, e passa a ter foro internacional, (Transaciona-se aqui o que Rosa Luxemburgo cha-
primeiramente como mercadoria e logo a seguir tornan- ma de metabolismo rude e direto, entre o capital europeu
do-se dinheiro nas mãos do Estado ou do banco. e a economia campesina asiática, o Estado turco redu-
Este dinheiro não é senão aquele trigo camponês, zido a um papel muito simples e real, ou seja, uma ma-
sob uma forma alterada e que não foi produzido, porém, quinaria política de explorar a economia campesina para
como mercadoria. Agora, como garantia do Estado, serve fins capitalistas, verdadeira função esta de todos os Es-
para pagar em parte a construção e o tráfico ferroviá- tados Orientais).
rios, isto é, a realizar ao mesmo tempo o valor dos Este negócio de pagar produtos alemães com o ca-
meios de produção que aí são utilizados e a mais-valia pital alemão na Ásia não é o absurdo círculo que parece
extraída dos camponeses e operários asiáticos durante a à primeira vista, em que os pesados e bons alemães seriam
construção e os trabalhos da construção. Além disso usados pelos finórios turcos na execução de suas gran-
como os meios de produção utilizados na construção de des obras de civilização, pois que no fundo isso não
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passa de intercâmbio entre o capital alemão e a eco- a bomba, o ocupou, e exterminando-lhe a casta feudal,
nomia campesina asiática ou uma transação executada dessacralizando o imperador, nomeou-lhe um pró-consul
sob a compulsão do Estado, embora lembre outra dessas que lhe fez uma autêntica reforma agrária, mas com
formas de trocas econômicas, de que tratamos no capí- o cuidado de lhe não desmantelar a estrutura burguesa e
tulo "Comércio Singular e América Latina", deste livro. capitalista à qual se associou. O imperialismo americano
Com as relações germano-turcos abre-se o processo de fez e refez a história do rival vencido, e o largou pelo
acumulação e da "esfera de influência", que não é mais mundo, pensando poder contê-lo. Hoje, o imperialismo
que a expansão política e econômica do capital alemão japonês retoma sua via de prosperidade que já não tran-
e que vai ter sua explicação lógica e natural quando, na qüiliza Washington como há uma década. Mas nunca os
Primeira Guerra Mundial, o grande império Otomano Estados Unidos foram tão sábios como quando, ocupado
alinha-se ao império alemão de Guilherme n. o Japão, modernizaram seu anacronismo feudal-militar
A construção ferroviária e troca de mercadorias foram mas sem o descapitalizar, o que permitiu que, associando
promovidas pelo Estado, sem dúvida; mas não na base os velhos monopólios nipônicos aos novos capitais ame-
propriamente do progresso real da sociedade turca, e sim, ricanos, a estrutura política do país não fosse desfeita
ao contrário, de sua rápida desintegração, ruína e explo- e o Japão não regredisse economicamente. Hoje sua po-
ração da economia camponesa asiática no curso da qual sição imperial já não é negada, e com a Alemanha que
o Estado turco se torna mais e mais dependente do ca- avança para os primeiros postos, inclusive nas áreas de
pital europeu, tanto política como financeiramente. Ao ponta da tecnologia, como a nuclear, até então proibidas
fim da guerra em que se dissolve, ele é expulso quase aos antigos inimigos, são os dois impérios vencidos da
que totalmente da terra européia. Sua revolução, a revo- guerra que assumem a liderança na própria frente im-
lução turca ia, porém, chegar; e chegou mesmo, pouco perial.
depois, quando Kemal Pacha Atatürk, expulsando a ca-
marilha feudal termina com seus "sultões" e suas "subli-
mes portas", modernizando a Turquia, transformada, Diferente de Lênin, a concepção imperialista de Rosa
afinal, numa pequena república que pelo jogo da alta Luxemburgo não o apresenta como uma "fase superior
política estratégica mundial se reduz a um Estado tam- ou última" do modo capitalista de produção. Ao con-
pão, encostado à União Soviética e armada pelo impe- trário a sua função não é orgânica, mas dinâmica. Se de
rialismo anglo-americano. acordo com as teses leninianas, o capitalismo ganhando
em organicidade, ganha em previsibilidade o que perde em
improvisação, a mola da concorrência, que endurece não
No seu aguçado estudo sobre o Mito do Desenvolvi- faz, porém, do capitalismo uma máquina estática. Os
mento, Celso Furtado não tem dificuldade em furar o monopólios que lhe dão seu traço mais profundo de esta-
mecanismo interno de sustentação das engrenagens do bilidade não substituem, entretanto, o mecanismo com-
capitalismo internacional, e salienta não ser preciso muita petitivo, que continua a sobreviver e a reaparecer em
perspicácia para perceber que, a partir do segundo escala intercapital, ou interimperial. Os preços tendem a
conflito mundial, a organização capitalista mundial opera escapar ao jogo da competição, sem dúvida, mas para
como uma unidade de comando político apoiada sobre um lá do processo em que os oligopólios regulam as próprias
sistema unificado de segurança. Esta unidade de áreas do seu comércio e ressurgem formas atenuadas de
comando responde a uma política de rápida reconstrução concorrência. O imperialismo, e esta é a grande demons-
das economias desmanteladas da Europa Ocidental, pela tração de Rosa Luxemburgo, aparece já mesmo no início
doação do plano Marshall, e as obrigações do vencedor do modo de produção capitalista, e vem para criar por
implacável do Japão que o desfez, desencadeou sobre ele todos os meios e circunstâncias, inclusive pela violência

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ou pela força, condições que possam favorecer a acumu- galhos. Como acordaram as potências ali reunidas, in-
lação. E um dos meios mais importantes ao processo clusive a União Soviética? Outorgaram ao Estado ameri-
acumulativo é não respeitar a rotina das velhas eco- cano o privilégio de uma moeda intransitiva, isto é, auto-
nomias e sociedades, intervir em seus tesouros, abolir suficiente e emancipada, pelo poder indefinido e ilimi-
seus modos de ser, num aparelho externo que faz funcio- tado de emissão, inclusive de substituir o ouro, o que
nar as relações mais diretas entre o capital e as eco- lhe proporcionou a faculdade soberana de criar dinheiro
nomias primitivas e campesinas que com elas entram em para o mundo, logo a arma de colocar a faculdade de
contato. Não há por que esperar que o imperialismo acumulação à sua discrição. Mas eis que, afinal, a moeda
cresça, intumesça, crie órgãos especiais que transfor- soberana, o dólar, está em crise, e por esta crise seu
mem as formas orgânicas superiores, susceptíveis de débito está aberto ao mundo, e é irrecuperável, política
substituir o mecanismo competitivo anacrônico por um e praticamente, como quiserem. Seus derivados também
mecanismo científico de cooperação ou coordenação. dançam, sem fundo, por aí, desde o eurodólar ao marco
A história do nosso século tem demonstrado com e ao iene. Se a moeda soberana está em crise (em crise
maior clareza que o capitalismo não evolui para tal orga- permanente?), afinal que imperialismo não o está? Se
nicidade. O que ela tem demonstrado é exatamente o todos os imperialismos estão em crise, que economia vi-
contrário, uma marcha quase irresistível para uma ma- gora no mundo? Então, é verdade... Ouve-se, ainda, uma
quinaria de Estado com finalidades políticas quase ex- voz no tumulto — a de Rosa Luxemburgo.
clusivas e compulsoriamente. Para escapar ao destino
colono-capitalista que a máquina impõe a todos os países
que giram no ciclo do mercado mundial, é acima de tudo Rio, 27 de novembro, 1978.
preciso contrapor-se ao grande círculo, abrir verdadeiro
movimento de contramão, ou autêntica revolução nacio-
nal, à maneira da China, ao fim da Segunda Guerra
Mundial.
Quando Rosa Luxemburgo descreve "o metabolismo
entre o capital europeu e a economia campesina asiá-
tica, com o Estado Turco reduzido ao papel de uma
maquinaria política para a exploração da economia cam-
pesina para objetivos políticos", ela mostra que esta é a
função mesma não só do Estado turco, mas de todos os
Estados orientais no período do imperialismo capitalista.
O que a história atualíssima ainda ensina está bem me-
nos dentro das fórmulas orgânicas do imperialismo leni-
niano do que das improvisações empíricas da alta polí-
tica dos Estados metropolitanos, conforme mencionamos
acima com os episódios de luta imperialista no Extremo
Oriente. E basta sobretudo que aqui se mencione o que
se passou em Bretton Wood, no fim da Segunda Guerra
Mundial, quando as grandíssimas potências vitorio-
sas do mundo se reuniram solenemente para chegar
a um acordo comum visando a dar uma ordem defini-
tiva e perfeita ao sistema monetário mundial, em fran-

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I

Introdução

Tendo definido a crise na qual se está mergulhado


como uma crise capitalista de âmbito, enfim, mundial,
é oportuno que se vá às estantes da imensa biblioteca,
marxista já imersa na poeira dos tempos e que se pegue
nela a obra mais aberta a esse tema: "A acumulação do
capital", de Rosa Luxemburgo. Não é uma obra irrefutá-
vel; longe disso, mas melhor, trata-se de uma obra ainda
oportuna, atual, e cheia de contradições. E aqui pode-se
render à autora, um dos mestres do pensamento marxista,
a homenagem mais alta, pois sua qualidade ressalta
melhor com a prova do tempo. Essa revolucionária, infe-
lizmente abafada em seu mundo convulsivo e dilacerado
entre a Polônia e a Alemanha, era o espírito menos "eu-
ropeu-centrista"¹ de todos. Eis a razão de nossa reve-
rência a seu nome, nesse preâmbulo.

A emergência generalizada das multinacionais não


é fenômeno de um dia pouco venturoso nessa caótica
segunda metade do século. É antes o produto de uma

¹ Ou, mais precisamente, etnocentrista.


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longa gestação que se acelerou perto do fim da Segun- dem pouco a pouco a voltar a si mesmos. Terminou
da Guerra Mundial. Que restava do mundo, então? o sopro da história. A escravatura (mesmo nos tempos
Fora da Rússia soviética, sociedade fechada, na desgraça, modernos, como no século passado, nos Estados Unidos,
mas vitoriosa, e da China que bem ou mal terminava sua no Brasil, tão resistente a ser varrida), o modo do despo-
revolução e consolidava seu poder continental, havia os tismo asiático, a economia natural, a economia de mer-
Estados Unidos, a única potência imperial triunfante em cado simples e mesmo a servidão e o feudalismo não
todos os continentes e todos os mares. Sobre eles apenas podem agüentar a aproximação e a vizinhança do modo
repousava a "defesa" da civilização cristã ocidental e seu capitalista. Há um pouco mais de dois séculos a história
modo capitalista de produção (seria mais justo inverter da humanidade, em conseqüência dessa vizinhança, tor-
a fórmula). Além de suas fronteiras, só havia restos de nou-se uma série ininterrupta de desgastes dessas velhas
sociedade, com as engrenagens explodidas, sem alma e civilizações.
sem futuro, sobretudo a velha Europa, cujos tesouros de Se, desse ponto de vista, se observa o panorama his-
civilização, de cultura e de ciência estavam ainda intac- tórico desses séculos, chama a atenção imediatamente
tos, mas mais ou menos imprestáveis, pois, para serem o papel das sucessivas formações capitalistas que, partin-
utilizados, era preciso a priori uma escolha difícil acerca do da Inglaterra, infiltraram-se por toda parte no mundo,
da natureza da reconstrução, que ela mesma não estava e, não obstante interrupções sérias em seus avanços, não
mais em condições de fazer: rumo ao socialismo ou rumo desencorajaram em seus empreendimentos permanen-
ao capitalismo? A potência americana decidiu sobre a tes para dominar o mundo, abri-lo, tratá-lo como queijo
escolha pelos aliados e por todo o mundo periférico. que se come por fatias. O que resta ainda desse mundo?
E o fez com largueza e voracidade. Dessa decisão política, Os confins tropicais da África, as florestas da Amazônia
antes de tudo política, saiu o impulso fabuloso desse (as maiores reservas de oxigênio que ainda restam à hu-
renascimento do capitalismo, do qual as multinacionais manidade cada dia mais abafada), as sierras da América
são o fenômeno mais representativo e mais recente. Latina e seus pampas, os extremos longínquos da terra,
Antes de prosseguir a análise da natureza das corpo- a Ásia de povoamentos confusos, perdidos no tempo e
rações multinacionais e das modalidades de sua dinâmica no espaço, os mares que envolvem os continentes, onde
no conjunto da economia internacional, tentaremos fixar repousam as últimas esperanças das potências em pro-
o momento de sua aparição e situá-lo nos precedentes cesso de perda de suas velhas riquezas coloniais, de subs-
da própria história do capitalismo, para melhor ressaltar tituição delas pelos novos monopólios nos futuros impé-
seus laços com o passado e as determinações que disso rios coloniais submarinos. Não esqueçamos porém as mi-
resultam. Para fazê-lo, é em grande parte para a obra lhares e milhares de ilhas, algumas das quais chegam
de Rosa Luxemburgo que nos voltamos. à independência e outras vivem ainda da troca, em piro-
É conhecida a sua tese fundamental: "O capitalismo gas, sob os cocais dos arquipélagos polinésios, enquanto
é o primeiro modo econômico munido da arma da propa- as potências imperiais cobrem o tempo todo os espaços
ganda, um modo que tende a engolir o globo inteiro e a para que o mundo não arrebente, ao mesmo tempo que
varrer todas as outras economias, não tolerando a seu procuram detectar matreiramente nos mares, nos deser-
lado nenhuma outra". Eis aí seu traço primeiro e mais tos, nos subsolos, para um futuro monopólio, tudo o que
profundo. Todos os modos econômicos assinalados pela poderia fazer a riqueza desses povos condenados à des-
história sempre se distinguiram ao contrário pela falta graça. E tem-se assim imediatamente diante dos olhos
de dinamismo, um poder de conservação supra-histórico, as tarefas que restam por cumprir para as últimas dessas
indiferente às passagens e as peripécias das guerras, dos formações capitalistas, as multinacionais, cujas potentes
conquistadores, das catástrofes geológicas, das pestes. correias de transmissão envolvem o mundo em sua en-
Uma vez passados os acontecimentos, esses modos ten- grenagem. E aqui tereis diante de vós, plasticamente dês-
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crito, senão matematicamente medido, o segundo traço
fundamental do capitalismo, que foi pela primeira vez
e mais corajosamente definido por Rosa Luxemburgo: II
"... é também o primeiro modo econômico incapaz de
existir por si mesmo, uma vez que ele precisa de outros
sistemas econômicos como um meio e um campo. Se bem
que ele lute para tornar-se universal e que ele conte para
isso com sua própria tendência, ele deverá curvar-se a A Primeira Falência do Capitalismo
essa circunstância — portanto, ele é imanentemente in-
capaz de tornar-se uma forma de produção universal.
Em sua história viva, ele é uma contradição em si mes-
mo, e seu movimento de acumulação traz uma solução
ao conflito, mas ao mesmo tempo o agrava. A uma certa
etapa de seu desenvolvimento — escrevia Rosa Luxem-
burgo em 1913 — não haverá outra maneira de sair disso
senão pela aplicação de princípios socialistas". E ela lem-
bra ainda aos homens de seu tempo e aos do nosso que
"o objetivo do socialismo não é a acumulação, mas a
satisfação das necessidades da humanidade trabalhadora
pelo desenvolvimento das forças produtivas do mundo
inteiro. Assim, para nós, por sua própria natureza, o so- Fritz Sternberg, em seu Lê conflit du siècle (Seuil,
cialismo é um sistema econômico universal e harmo- 1956), ao resumir o desenvolvimento crítico do capitalis-
nioso". Ou, pelo menos, deveria ser. mo, dos meados do século xix até os nossos dias, emite
uma opinião contrária ao otimismo geral quanto às
perspectivas de um desenvolvimento continuado do ca-
pitalismo. Ele inspira-se no pensamento de Rosa Luxem-
burgo para escrever: "Perto da metade do século xix,
o capitalismo não constituía ainda senão uma ilha cer-
cada por todos os lados por um imenso oceano pré-capi-
talista; meio século mais tarde, perto de um terço da
humanidade já estava submetido ao novo modo de pro-
dução. Mais ainda: mesmo os territórios sobre os quais
ainda dominavam os métodos de produção pré-capitalis-
tas passavam desde então a sofrer, sem recurso possível,
o domínio político e econômico do capitalismo triunfan-
te e a perder uns após outros sua independência. Con-
tudo, mesmo no final desse período de expansão gigan-
tesca, a maioria da população de nosso planeta ainda não
trabalhava diretamente segundo os métodos de produção
capitalistas: no Leste europeu, na Ásia, e na África, cons-
tata-se ainda no interior uma clara preponderância de
formas de produção pré-capitalistas, mais freqüentemen-
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te feudais. Todavia, como o capitalismo demonstrava homens cuja atividade produtiva se exercia nos quadros
então com uma evidência patente sua superioridade sobre da produção capitalista, no momento da publicação do
todos os métodos de produção pré-capitalistas, a opinião Manifesto comunista. Contudo, as cadências do desenvol-
em geral admitia que, após novos progressos, o novo sis- vimento capitalista vão tomar logo em seguida um ritmo
tema econômico terminaria por incorporar a si a grande jamais atingido. Apenas dois terços de século, ou seja,
maioria da população do globo. "Essa previsão, predomi- de 1850 ao início da Primeira Guerra Mundial, bastaram
nante de modo indiscutível em todos os meios acadêmi- para que o capitalismo não visse mais sua dominação
cos do Ocidente, jamais poderia se realizar completa- absoluta limitada a um único país, a Inglaterra, mas se
mente." Muito antes de atingir essa meta, "o capitalis- tornasse o modo de produção dominante no mundo in-
mo devia ver triunfar as tendências que iriam antes frear teiro, entre 25 e 35% da humanidade. À Inglaterra, com
sua expansão, para em seguida detê-la inteiramente". efeito, vêm acrescentar-se os Estados Unidos, toda a Eu-
O século xix foi o verdadeiro século não do nasci- ropa Ocidental e a Alemanha. E, o que é menos notado,
mento do capitalismo, que se arrastou no tempo, mas a Rússia e o Japão, que se haviam guerreado, se trans-
de sua fundação. E quando Marx e 'Engels proclamaram formam também rapidamente e quase paralelamente.
seu Manifesto comunista, o capitalismo só era realidade O Japão aproveitou-se de sua vitória para terminar sua
em um único país, a Inglaterra; o resto do mundo era revolução feudal-burguesa-capitalista e apresentar-se de
a Europa, onde reinavam velhos Estados monárquicos, repente como uma ameaça ao desenvolvimento imperia-
ainda regidos por velhos modos tradicionais. Nas extre-
midades desse continente habitado por povos brigões e lista europeu, enquanto a Rússia tzarista, uma dezena
arruaceiros, de classes burguesas que ascendiam e se de anos depois da derrota que provocou escândalo na
enriqueciam às expensas dos de cima e dos proletários Europa, faz por seu turno a revolução, mas esta agora
de baixo e que freqüentemente se guerreavam entre si, não conserva nem o tzar, nem os nobres, nem os bur-
cresciam grandes Estados-impérios, que vão começar uma gueses. Restaram para realizá-la os camponeses, os pro-
nova história: a oeste, já fora da Europa e banhados pelo letários, os intelectuais. Nos próprios países capitalistas,
Atlântico, os Estados Unidos; a leste, a Rússia, que já o regime de formas pré-capitalistas encontra-se também
avançava irresistivelmente em direção à Sibéria asiática. ameaçado, as antigas ordens econômicas e sociais, com
Aqui, é preciso que nos detenhamos um instante, a aproximação do moderno mundo capitalista, corco-
antes de tomar consciência das novas perspectivas que veiam e estalam. Na América Latina, cujos Estados são
se abrem numa escala universal, para nos perguntar: todos formalmente soberanos (à exceção de Cuba, Porto
qual foi esse momento único da história? Foi quando Rico, as Guianas e outras ilhas do Caribe), o comércio
o novo modo capitalista de produção, exposto teoricamente exterior (gêneros tropicais, matérias-primas, etc.) es-
pelos clássicos ingleses (entre Adam Smith e Ricardo) e coa-se na engrenagem secular do velho circuito mercan-
anunciado paradoxalmente em seus efeitos pelos autores tilista até os tempos modernos, em total separação da
do Manifesto comunista, se apresentava aos olhos do vida no interior do país, onde vegeta uma população
mundo como o único modo econômico de produção que arcaica ou neocolonizada em diversas modalidades de
trazia em seu desenvolvimento a promessa de riqueza e troca ou de economia mercantil próxima do natural.
de progresso dos povos, os quais seriam, todos, uns após A hegemonia inglesa estende-se então sobre o mundo;
os outros, abarcados por ele. Para medir a força dessas ela deteria a chama do progresso até que, em pouco
perspectivas, alguns dados estatísticos, coletados aqui e tempo, os Estados Unidos a tomassem e a levantassem
ali por historiadores e economistas como o autor do Lê como farol do mundo, e a estátua dita da Liberdade pro-
conflit du siècle, podem servir. Exagerava-se, dizem-nos, clamasse as leis do capitalismo como sagradas e eternas.
ao avaliar-se em 10% de toda a humanidade o número de Essa primeira fase da ascensão do capitalismo caracte-

22 23
riza-se por um movimento cada vez mais generalizado. são comandados pela indústria pesada. Em todos esses
De 1860 a 1913, o crescimento das nações mais impor- primeiros anos do século xx, o capitalismo não se desta-
tantes da época se faz em conjunto. É assim que a pro- cava senão por ter desenvolvido as indústrias de consu-
dução industrial mundial multiplicou-se quase sete vezes, mo, sobretudo as indústrias têxteis e alimentícias, en-
De 1870 a 1913, ela mais que quintuplicou. Esse cresci- quanto a indústria pesada estava ainda em estado em-
mento gigantesco não apenas se faz em conjunto, mas brionário. Durante toda a primeira metade do século pas-
se transmite continuamente, de um decênio a outro. sado, o capitalismo vivia ainda sua fase inicial, como
Trata-se de um potente movimento ascendente que atra- o demonstra o atraso em que se encontravam então tanto
vessa o mundo. No quadro geral dessa "ascensão prodi- a metalurgia quanto a indústria do carvão. Sua nova fase
giosa", os velhos Estados históricos, que a partir de 1860 conhecerá todo seu desenvolvimento na segunda metade
tomaram o primeiro lugar, atrasam-se em seguida no do século. O capitalismo atinge então seu apogeu. A
processo de crescimento. É assim que, se a produção in- produção de ferro bruto das quatro nações industriais
glesa, durante esse período, "triplicou" apenas, a produ- mais importantes (França, Inglaterra, Alemanha, Esta-
ção francesa quadriplicou, a produção alemã aumentou dos Unidos) eleva-se em 1859-1895 a 5,1 milhões de tone-
sete vezes, e a americana era, em 1913, doze vezes maior ladas; em 1910-1913 a 57,1 milhões. A produção de aço
que a de 1860. Essas diferenças de ritmo vão provocar desses mesmos anos salta de 0,06 milhões de toneladas
uma subversão total na hierarquia das potências indus- em 1857 a uma média de 53,6 milhões no período
triais entre 1860 e 1913. Já perto de 1880, a Inglaterra 1910-1913. A produção de carvão dos "quatro grandes"
perde seu primeiro lugar na produção mundial em pro- representa em 1855-1859 apenas 86 milhões de toneladas;
veito dos Estados Unidos, enquanto a Alemanha supera em 1913 ela eleva-se a 1.023,7 milhões.
a França. Por volta de 1890, a Inglaterra, superada pela Essas cifras exprimem a chegada do capitalismo
Alemanha, recua para o terceiro lugar. Desde essa época, ascendente a uma nova estrutura do aparelho produtivo,
uma outra tendência não menos importante faz-se sentir na qual a indústria pesada ganha todo o seu impulso
na economia mundial. Se bem que, em cifras absolutas, e logo vai alterar a fisionomia social em geral, Com
a Europa mostre ainda um formidável impulso de pro- efeito, a paisagem plácida do mundo do século xix vai
dução, sua parcela relativa na produção mundial baixa ser sacudida completamente por dois monstros tipi-
continuamente. Próximo de 1860, sua percentagem, com camente modernos: a estrada de ferro e a máquina a
a Rússia, era de 15% na produção industrial; o percen- vapor. A importância dessas invenções é tão grande que
tual americano era de 22%, no mesmo ano, para elevar-se elas não demoram a transcender o puro mundo industrial-
a 42% em 1913, enquanto o da Europa reduzia-se financeiro-político e mesmo a revolucionar o alcance
cultural da época, ao propor, no impressionismo, que
para 53%. Quanto às demais regiões do mundo, num logo se segue, uma nova sensibilidade.
total de 38 países, nesse mesmo ano, o percentual cor- A esse respeito, Sternbergn observou muito bem o
respondente ainda era negligenciável: 5%. Nessa época, fato de que "o crescimento geral da indústria pesada
o avanço capitalista completa-se em todos os ramos da e a extensão do sistema dos transportes puderam efe-
produção. A indústria pesada, por exemplo, ganha um tuar-se sem entravar o desenvolvimento paralelo e con-
impulso que a faz crescer mais rapidamente que a popu- temporâneo das indústrias de consumo", cujo impulso
lação dos grandes Estados industriais e o número de pes- era ainda superior ao acréscimo correspondente da po-
soas empregadas. Na maioria dos países, esses progressos pulação ativa. É que a expansão do aparelho produtivo
correspondia a uma expansão da produção de bens de
1 consumo por habitante. Contudo, essa correspondência
Ver Fritz Sternberg, Lê conflit du siécle, La phase ascendante du entre os dois ramos da produção não é tampouco um
capitalisme.

24 25
fato necessário. Por que insistir nisso? Porque ele faz O curso da história do tempo iria mudar de modo
questão de nos lembrar, paralelamente ao fato de que definitivo e bruscamente. Os objetivos da guerra perdiam
pela primeira vez na história do capitalismo os bens de eles próprios pouco a pouco sua clareza inicial, a de uma
produção superam os bens de consumo,2 um outro fato coalizão de interesses entre um bloco de grandes potên-
semelhante, uma outra experiência histórica análoga, cias imperialistas contra outro bloco. Sem dúvida, o blo-
num contexto inteiramente outro, décadas mais tarde, co dito da Entente, apoiado pelos Estados Unidos, não se
nos primeiros tempos perigosos da revolução russa, pois esqueceu um só momento de levar até o fim sua empresa
"a construção de um gigantesco aparelho de produção de esmagamento do bloco adversário, a Alemanha do
poderia atrapalhar o desenvolvimento das indústrias de Kaiser e seus vassalos. Contudo, por mais que estivessem
consumo ao ponto de obrigar o crescimento da produção apegados a essa tarefa, os vencedores de um modo ou de
a se manter, durante o período em questão, dentro dos outro aperceberam-se de que a vitória militar não iria
terminar suas aflições. Uma outra finalidade aparecia lá
limites do aumento da população". "Assim é, conclui ele, onde a conflagração européia se tinha decidido, muito
que as coisas iriam realmente se passar, algumas déca- mais complicada cfo que a de decidir pela força a querela
das mais tarde, na União Soviética, onde a edificação de vencedores e vencidos. Depois desta, reduzida a pro-
e a extensão forçadas da indústria pesada não foram obti- porções provinciais, isto é, européias, a outra questão,
das senão ao preço de um retardamento considerável do verdadeiramente mundial — a reconstrução da paz —,
desenvolvimento das indústrias de consumo e do nível tornava-se a questão essencial. Mas, de que paz se tra-
de vida da população." tava? A paz de um capitalismo universal, fundada sobre
Vimos como um fenômeno muito grave na história um centro de potências vitoriosas, ou uma paz recons-
européia apareceu — poder-se-ia dizer inopinadamente — truída sobre um sistema pluralista de finalidades sociais
como um acidente de tráfego na estrada, que cortou a diversas, convergentes ou opostas? Essa questão foi posta
marcha até então rápida e fácil do capitalismo ascen- desde o fim da guerra, no âmbito das potências européias
dente: trata-se da Revolução Russa de 1917. Desde os vitoriosas, cuja política não ia mais longe do que seus
primeiros dias ela se faz em plena negação deliberada horizontes. Com essa "largueza de espírito", elas convo-
do capitalismo. Ela foi com efeito construída como uma caram as pessoas ao Palácio de Versalhes, a fim de dis-
muralha levantada no caminho da história, que na época cutir um Tratado de Paz, mais semelhante àquele da
se acreditava completamente aberta à marcha ascensio- Santa Aliança do que a qualquer outra coisa, melhor
nal do capitalismo: vê-se, com efeito, sua marcha inter- se diria um conchavo de traficantes europeus. Fato mui-
rompida na Rússia, para escândalo das potências burgue- to característico, os Estados Unidos, a única das potên-
sas que conduziam a guerra. Na medida em que os revo- cias verdadeiramente vitoriosa, retiraram-se do negócio,
lucionários russos conseguiram vencer todos os obstáculos já olhando além da Europa. O Tratado de Versalhes não
econômicos e resistir a todos os assaltos políticos do in- foi senão uma senha vazia. Assinado solenemente em
terior e do exterior, até poder impor-se à própria Rússia 1919, vinte anos depois tudo recomeçava e a finalidade
e ao mundo com uma espécie de novo modo de produ- essencial da paz continuava aberta como uma chaga viva.
ção, o capitalismo não encontrou brecha para demolir Dessa vez, ao final da Segunda Guerra, não se quis repe-
o novo regime. Ao esbarrar contra esse muro russo, levan- tir a comédia sovada de Versalhes, e mesmo os russos
tado a toda pressa, o capitalismo europeu via-se diante não puderam impor sua paz em Helsinque, recentemente,
da sua primeira falência histórica. O foro realmente universal da paz será a ONU , ou não
será.
2
Le conflit du siècle, cap. I, "La marche triomphale du capitalisme"
ver quadro da p. 17.
27
26
çou a soçobrar. O império alemão, não tendo podido rom-
per o bloqueio anglo-americano que o asfixiava, não tar-
III dou em capitular, com todas as conseqüências sociais
previsíveis, e a arrastar em sua queda toda a ordem esta-
belecida; no leste europeu, todo um mercado, dos mais
importantes da Europa, o da Rússia, fechava-se brusca-
Um Ponto de Virada da História mente; e assim, a queda do bloco central, acrescentava-
se a da Rússia. A derrota na Alemanha e o desastre na
Rússia abalaram por seu turno as estruturas do capi-
talismo europeu, de um modo tal que, ao longo dos anos,
constatar-se-ia irreparável.
Se, antes da guerra, e inclusive, em seu início, os
antagonismos sociais e políticos entre os grandes Estados
se desenrolavam todos no interior do sistema capitalista,
logo a marcha inexorável da guerra aguçava as rivali-
dades entre beligerantes, de tal sorte que tudo era posto
em questão, inclusive a própria sobrevivência do sistema
econômico comum a todos os Estados. O capitalismo co-
nheceu então seu primeiro grande fracasso na história,
mas, é preciso reconhecer, era ainda um fracasso de
O ponto de encontro do século xix agonizante e do ordem política. O puro mecanismo da guerra, na contin-
século XX que irrompia foi 1913. Marca o fim de 53 anos gência geral, vem assim pouco a pouco a impor-se ao
de uma ascensão ininterrupta do modo capitalista de mecanismo capitalista puramente econômico e, perto do
produção, a partir de 1860, no curso da qual quatro na- fim, assume o comando dos acontecimentos.
ções estão à frente do mundo: a Inglaterra, a França e a É uma estranha característica dos tempos o fato
Alemanha, na Europa, e os Estados Unidos, no outro lado constatado em todas as nações que vão entrar em guerra:
do Atlântico. Elas assumiram então naturalmente a dire- nenhum desses Estados, mesmo o mais militarista, diga-
ção da cena política mundial e não se demoraram em mos, a Alemanha wilhelmiana, estava preparado para
inaugurar verdadeiramente o século xx, ao declarar a a guerra, que, não obstante, ocupava a maior parte de
Primeira Guerra Mundial. Sem esse crescimento formi- seus pensamentos. É que havia uma defasagem profun-
dável e inédito do capitalismo, a guerra mundial não da, ou melhor, natural, entre o pensamento dos estados-
teria sido possível. As grandes nações metropolitanas, ao maiores e a realidade que eles deveriam enfrentar. Quan-
começarem a fazer guerra entre si, partiram de uma base do partiram para a Primeira Guerra Mundial, esses es-
econômica comum, apoiadas sobre os mesmos modos de tados-maiores não tinham por modelo senão a última
produção capitalista chegados a seu pleno desenvolvi- guerra que haviam feito, ou seja, a guerra franco-prus-
mento. No interior de suas engrenagens, elas não se siana, que não era senão uma pequena guerra provincial,
diferenciavam muito umas das outras. Isto permitiu-lhes, de finalidade anacrônica por parte dos dois Estados, se
no curso dos primeiros anos da guerra, usufruir de um bem que positivo por parte da Alemanha bismarquiana.
sistema social muito semelhante e estável. Entretanto, Mas, dessa vez, ninguém imaginava em que aventura
já para o final da aventura, à medida em que a sorte todos esses generais, reis, presidentes e ministros iriam
das armas mudava francamente em favor de um dos embarcar. A envergadura da empresa era grande demais
blocos, a própria estrutura do capitalismo europeu come- para eles. O pensamento que os dominava era puramen-
28 29
te burguês, de uma burguesia em plena maturidade, que funcionamento desencadeia. Assim, a Primeira Guerra
acreditava firmemente nos negócios e no progresso, atava- Mundial provocou uma reviravolta decisiva na história da
se a uma racionalidade prudente, terra-a-terra, fugindo, Europa e de seu capitalismo enguiçado. Ela forçou uma
como o diabo da cruz, dos vôos da imaginação, para não distinção entre as leis do capitalismo, em suas funções
perder de vista a meta segura, bem delimitada, da específicas de negócios satisfatórios, e as leis inerentes
empresa capitalista, que devia, custasse o que custasse, às finalidades gerais e exclusivas da guerra. O sistema ca-
prosperar, ganhar dinheiro, acumular. A isto é que dedi- pitalista europeu viu assim seu destino tradicional afastar-
cavam seus pensamentos os cidadãos de todos esses Es- se claramente do novo sistema imperialista. Essa separação
tados, ou seja, os burgueses dos negócios, os burgueses vai desenvolver-se, cada vez mais, e em toda a sua
dos parlamentos, os burgueses por toda a parte, isto é, complexidade, nos anos que se seguem à guerra.
a sociedade burguesa. Na realidade, quando a guerra ar- A guerra termina, a Europa cai no impasse. Suas
rebentou, as classes dirigentes acreditaram que a guerra forças produtivas não se erguem mais. Para as prove-
seria um empreendimento puramente capitalista, o que rem, era necessário que ela pudesse superar as frontei-
se verificaria inteiramente falso. O'resultado desse erro ras do continente, tanto à esquerda quanto à direita,
não seria simples, mas com o tempo iria revelar-se como tanto a Oeste como a Leste, onde se poderiam ainda en-
um erro histórico essencial, uma virada da história. Tra- contrar vastos territórios não-capitalistas por explorar.
tamos aqui da maior conseqüência sócio-econômica da Por esse lado, o que se poderia encontrar? O império
Primeira Guerra Mundial: ela acabou por desenvolver dos tzares, que não era mais um capitalista bem cevado,
forças que são próprias dela mesma, independentes das rodeado de grandes partes não-capitalistas ou pré-capita-
determinações puramente econômicas do sistema capita" listas, ou um mercado interno, como sonhavam os antigos
lista. "A guerra toma a palavra e expõe seu discurso" "marxistas legais" antes da guerra; mas a revolução russa,
(André Glucksman)". Quais são as forças que não decor- em plena guerra civil levada a cabo pelas massas
rem mais do puro capitalismo? As forças políticas, ou camponesas invencivelmente empenhadas em defender as
seja, o Estado? Sim, forças intrinsecamente do Estado. terras violentamente arrancadas aos príncipes, aos no-
Com efeito, elas desenvolveram pela primeira vez algo bres, às igrejas; do outro lado, além da Europa, uma
como uma empresa gigantesca que engolia em suas en- jovem república cujo território imenso apenas acabava
tranhas mais de um, quase todos os Estados europeus, de ser ocupado, e por quem? Por aqueles que tinham
numa luta escarnecida entre eles. O sistema capitalista chegado exatamente para isto, os trabalhadores e campo-
tornara-se bastante forte para abraçar o mundo; o que neses europeus, os pequeno-burgueses independentes das
se passaria então? Chegando a tal escala, o capitalismo, cidades da Europa. Ao contrário das velhas nações capi-
com suas rivalidades econômicas que se aprofundavam, talistas européias, não se trata mais de conquistar espaços
perde o controle da situação, pois as empresas puramente novos para sua acumulação na América e regiões adja-
capitalistas jamais perdem seus objetivos intrínsecos, pri- centes. Aqui, ocorre o contrário do que se passou na
vados. Não são mais sociedades de interesses puramente Europa: as forças produtivas não pararam de crescer um
privados que se defrontam, mas é a guerra entre Estados só instante — antes, durante e depois da guerra — e um
que assumem uma política que os supera, se bem que mercado no interior, tanto de bens de produção quanto
movida por sua própria lógica. Essa entidade nova, que é de bens de consumo, encontrava-se em permanente pro-
ela? É o imperialismo. Este surge como uma máquina gressão. E mais. Esse país, que no início da guerra era
nova que terminará por gerir os negócios do mundo em uma nação devedora, saía dela quase como o único cre-
tensão, enquanto as estruturas clássicas do capitalismo dor no plano internacional. Assim, quando a guerra ter-
se tornam cada vez mais impotentes para encontrar por minou na Europa, todos os Estados, mesmo os vitoriosos,
si mesmas uma saída para as crises sucessivas que seu estão descrentes quanto à abertura no sentido de sua

30 31
prosperidade econômica. Têm consciência de que suas
estruturas capitalistas perderam o impulso interior que
anima todo mecanismo sadio. Se ninguém o diz em alta
voz, os dirigentes começam a saber que seu capitalismo IV
está em recessão, em decadência. Era a reviravolta.

O Pensamento de Rosa Luxemburgo

Antes de tratar do verdadeiro problema que nos


ocupa, acerca do desenvolvimento histórico do capitalis-
mo sob a égide do imperialismo, segundo o pensamento
de Rosa, retomemos o modo exemplar e isento com que
Joan Robinson, um dos mestres da Escola de Oxford, se
incumbiu de transmitir aos leitores ingleses esse pensa-
mento tão controvertido e fecundo, por ocasião da pu-
blicação de sua obra The acumulation of capital em Lon-
dres, em 1951. E para o esclarecimento dos leitores fran-
ceses, confrontemos a apreciação crítica de Robinson com
a de Irene Petit, que fez um trabalho mais modesto, mas
paralelo ao da economista inglesa, e com tanta isenção
quanto habilidade, em sua introdução e tradução parcial
(com Mareei Olivier) da mesma obra (L'accumulation du
capital, Maspero, 1972). O veredicto final das duas eco-
nomistas — uma inglesa e outra francesa, uma marxista,
outra não, uma com mais de vinte anos de distância
da outra — oferece bastante garantia de objetividade para
que nos apoiemos nelas.
E agora escutemos Robinson: "Negligenciada tanto
pelos economistas marxistas quanto pelos universitários,
ela oferece uma teoria do desenvolvimento capitalista do-
tada do maior interesse.

32 33
Se bem que o livro ofereça considerável dificuldade, Marx (Departamento I — bens de produção; e Depar-
à parte capítulos históricos vivos, para aqueles que estão tamento II — bens de consumo), não se esquecendo de
acostumados apenas às análises universitárias, a dificulda- referir os conceitos mais ou menos correspondentes em
de torna-se quase insuperável pela terminologia marxista uso no jargão da economia universitária. Assim, quando
com a qual ele foi escrito". os dois departamentos num dado momento se dão por
Robinson não negligencia nenhuma parte do livro. O equipados para passar a um outro turno de investimento,
propósito de seu prefácio é de fornecer "um glossário de na taxa prescrita, continuando o processo, observa-se que
termos", partir à procura do fio principal do argu- as taxas foram escolhidas de tal modo que a força de
mento (deixando as ilustrações históricas falar por si trabalho total e o produto bruto total aumentam em
mesmas) e expor tudo em uma linguagem mais simples. 10% ao ano." Mas tudo isso não passa de aritmética,
Ela o fez com um trabalho de inteira consciência e per- e Rosa diz: "Não há limite para o desenvolvimento dia-
feita isenção: "Nossa autora parte de exemplos numé- gramático da acumulação, segundo algumas regras fáceis
ricos da 'reprodução simples' (produção com um estoque demonstradas por nós. Mas agora já é tempo de tomar
constante de capital) e da 'reprodução ampliada' (pro- cuidado para não se deixar levar a resultados surpreen-
dução com capital em acumulação), expostas no vol. II dentemente fáceis, decorrentes simplesmente da elabora-
do Capital, de Marx. Conforme ela própria explica, Marx ção de certos exercícios matemáticos com provas fanta-
sistas de soma e subtração; devemos ainda prosseguir
completou o modelo da reprodução simples, mas os mo- nossas pesquisas para nos assegurar de que não é sim-
delos da acumulação foram deixados, pela morte dele, plesmente porque equações matemáticas são mais facil-
em um caos de notas, e estes não estão realmente em mente postas sobre o papel que a acumulação pode con-
condições 'de suportar todo o peso que ela ali deposita'. tinuar ad infinitum sem qualquer função" (The accumu-
'Contudo, para seguir sua lógica de pensamento, é pre- lation of capital, cap. VI, Enlarged Reprodution, p. 119).
ciso examinar de muito perto sua versão dos modelos de Rosa não esconde sua impaciência: "Chegou o tempo de
Marx, a fim de ver sobre quais pressupostos (explícitos encarar as condições sociais concretas da acumulação"
ou inconscientes) eles se baseiam e procurar então as (idem, p. 119). Robinson compreende essa importância:
hipóteses que podem conduzir às análises que se seguem.' "Por trás de toda essa confusão está o problema que ela
Tudo isto Robinson o faz de um modo muito preciso. está formulando: de onde provém a procura que mantém
Por exemplo, ela recorre, contra sua própria atitude de acumulação em função?" Aí está verdadeiramente o pro-
simpatia em relação ao pensamento de Rosa Luxem- blema que Luxemburgo colocou para si, diante do im-
burgo, à autoridade de um economista radical ame- passe em que ela se encontrou ao ler e,reler, fervorosa-
ricano (P. Sweezy, The theory of capitalist development, mente, as páginas e páginas do Capital, em seus três
para quem as teorias de1 Luxemburgo não são senão 'um volumes, mais aquelas chegadas posteriormente (pelos
disparate irremediável'. Após todo um paciente trabalho cuidados do último discípulo de Engels, Karl Kautsky,
de verdadeira exegese dos esquemas marxistas em lin- em Theorien über den Mehrwert) e os cadernos de ma-
guagem acadêmica, Robinson tenta ela mesma exerci- nuscritos deixados nas gavetas do Mestre, à espera da
tar-se nos modelos dos dois diagramas de produção de devoção e da curiosidade dos futuros discípulos e marxó-
logos.
1
É essa atitude tão radical e honesta de Luxemburgo
Sem desconhecer a autoridade científica de Sweezy, seu passado que tanto irritou seus companheiros de ideal e os neófi-
digamos de simpatizante senão de militante do lado oficial do mar- tos revolucionários. Seu livro foi publicado em Berlim,
xismo russo explica em parte sua hostilidade em relação aos dissi-
dentes revolucionários como Rosa Luxemburgo e Leon Trotsky. pela primeira vez, em 1913. Não chegou a ver a segunda

34 35
edição,2 pois foi assassinada nas ruas de Berlim seis anos "A análise que ela tem em mente supera agora os estritos
depois da publicação do livro. Em conseqüência do desen- limites do modelo aritmético. O progresso técnico pros-
volvimento de tantos problemas teóricos da economia segue e o produto de uma hora de trabalho eleva-se com
universitária, a linguagem de Rosa Luxemburgo torna-se, o tempo (O conceito de valor torna-se então ilusório,
sob certos aspectos, um tanto anacrônica. A questão, por pois o valor das mercadorias baixa continuamente). Os
exemplo, do problema do equilíbrio entre a poupança e o salários reais tendem a tornar-se constantes em termos
investimento, hoje familiar aos economistas, não interes- de mercadorias, e assim o valor da força de trabalho cai
sava à autora da L'accumulation du capital. Por quê? e a parte da mais-valia em renda líquida aumenta (s/v a
Robinson tenta apaziguar a irritação de seus colegas ex- taxa de exploração). Conseqüentemente, o volume de
plicando que Rosa Luxemburgo dá por suposto que cada poupança em termos reais se eleva (ela sugere posterior-
ato individual de poupança do excedente é acompanhado mente que a proporção do excedente economizado au-
por um montante correspondente de investimento real, menta com o excedente, no qual as economias reais cres-
e que cada ato de investimento é financiado por uma cem ainda mais). O problema apresenta-se assim mais
poupança do excedente do mesmo capitalista que o faz. formidável do que parecia no modelo, pois a taxa de
Ela se interessa no fundo pelo encorajamento para in- equilíbrio da acumulação do capital em termos reais é
vestir. Que motivos têm os capitalistas para aumentar maior do que no modelo, onde a taxa de exploração
seu estoque de capital real? De que modo sabem eles que é constante. Ao mesmo tempo, a proporção do capital
haverá procura de um produto suficiente para absorver constante em relação ao variável se eleva. Ela considera
o aumento da produção de bens que o novo capital irá isto não como qualquer coisa que aconteça por si mes-
acarretar, de tal maneira que ele possa "capitalizar" a ma, provavelmente por motivos técnicos, mas como sendo
mais-valia de forma rentável? É claro que ela não formula necessariamente ligada à verdadeira natureza do pro-
o problema do encorajamento para investir em termino- gresso técnico. Uma vez que a produtividade cresce, a
logia moderna, e aí está porque "as ambigüidades e con- quantidade de bens de produção elaborados por homem-
tradições que ressaltam de sua exposição suscitam em hora de trabalho aumenta; e então a proporção de c em
seus adversários críticas parcialmente favoráveis. Mas, relação a v vai aumentar. É um erro, que provém do
responde Robinson, "o modo mais natural de ler isto fato de conceber o capital constante em termos de bens,
é também o mais claro: o investimento pode ter lugar ao mesmo tempo que se contrasta com o capital variá-
vel, em termos de valor, isto é, em horas de trabalho. Ela
em um estoque de capital sempre em acumulação apenas esquece a advertência de Marx segundo a qual, quando
se os capitalistas estão seguros de um mercado em per- o progresso ocorre, o valor das mercadorias que for-
manente expansão para os bens que o capital produzirá. mam o capital constante também diminui. É perfeita-
Assim posto, o problema tal como está colocado conduz mente possível que a produtividade aumente sem aumento
diretamente, à solução proposta pela terceira seção do algum no valor do capital por homem empregado. Isto
livro, ou 'As condições históricas da acumulação'" (In- poderia acontecer se os aperfeiçoamentos na produtivi-
trodução, p. 21). dade do trabalho na confecção dos bens de produção se
Quanto à seção II do livro, "Exposição histórica do desenvolvessem paralelamente à produtividade do traba-
problema", Rosa aborda a questão sob o ângulo das res- lho no uso dos bens» de produção para produzir os ar-
posta que os teóricos de sua época lhe deram. Escutemos, tigos de consumo (as invenções para economizar o capital
a esse propósito, o comentário penetrante de Robinson: compensam as invenções para economizar o trabalho, e
assim o progresso técnico é "neutro"). Contudo, pode-se
2 sair facilmente dessas dificuldades ao "postular de fato
Ver "Critique dês critiques", em L'accumulation du capital, II, que o progresso técnico é principalmente do trabalho
1976.

36 37
poupado, ou, antes, do capital em uso, e assim o capital que marca de modo indelével o período inicial do impe-
por homem empregado aumenta com o tempo" (Intro- rialismo na Europa: o poder aquisitivo da classe operária
dução, p. 22). que se elevou de modo real. Isto constituiu um fator de
atenuação das crises. Essa constatação foi confirmada
pela própria Joan Robinson. Irene Petit conclui, da
Voltemo-nos agora para a versão francesa do livro admissão dessas correções, que estamos colocados diante
de Rosa Luxemburgo, pelas mãos de Irene Petit. Seu pri- da seguinte alternativa: ou bem o excedente invendá-
meiro mérito é o de manter-se acima de toda deformação vel de produtos da seção n é um fator de crises tal que
facciosa, sobretudo entre os marxistas. Irene Petit fez a longo prazo o "capitalismo puro" inevitavelmente de-
um excelente resumo da crítica contemporânea do pen-1 sabará — é a tese de Sternberg; ou bem o capitalismo
samento de Rosa. Ela destacou com razão a de Bukharin tem em si mesmo, ou, antes, com o socorro do Estado,
e a de Fritz Sternberg, um dos principais expoentes da os meios que lhe permitem resistir às "convulsões eco-
teoria de Luxemburgo. Ela inicialmente pôs em relevo nômicas — é a teoria desenvolvida por Keynes" (p. 12).
a posição-chave de Rosa Luxemburgo, a de negar a pos- Joan Robinson aproxima-se um pouco dessa tese. Irene
sibilidade da realização da totalidade da mais-valia capi- Petit tende a assimilar o ponto de vista de Joan Robin-
talista no capitalismo puro. Essa conclusão "não decorre son ao de Otto Bauer, se bem que ela tenha tido a leal-
logicamente da análise dos esquemas de Marx". "Dos dade de sublinhar que o ponto de vista da economista
esquemas, diz Irene Petit, pode-se apenas deduzir que inglesa se põe numa perspectiva inteiramente diversa.
uma fração da mais-valia capitalizável da seção II é irrea- Para Bauer, com efeito, o ponto a salientar é o de "cons-
lizável, ou seja, que sobra um excedente invendável de truir esquemas sobre outras bases numéricas que não
meios de consumo. Se fosse de outro modo, ou se, numa aquelas escolhidas por Marx, que leva em conta o pro-
economia puramente capitalista, a totalidade da mais- gresso da produtividade do trabalho, fazendo crescer o
valia destinada à acumulação fosse irrealizável, haveria capital constante mais rapidamente do que o capital va-
crise não mais periódica, mas permanente, e é difícil con- riável". Para corrigir o desequilíbrio entre as duas seções,
ceber como o capitalismo teria conseguido sobreviver Bauer propõe que os capitalistas da seção n invistam
antes da era da grande expansão imperialista." uma parte de sua mais-valia sedentária na seção i. A mes-
A crítica de Sternberg não é de ordem especulativa, ma sugestão, pretende Irene Petit, encontra-se em Joan
mas histórica. Chamou-lhe a atenção um fato histórico Robinson: "porque é necessário a priori... que o acrésci-
mo do capital no interior de cada seção no fim do ano
1
seja igual à "poupança" realizada na mesma seção no
A crítica de Bukharin refere-se sobretudo à função e à importância curso desse ano transcorrido? Se os capitalistas da se-
do dinheiro no processo de acumulação; se se concebe, como o faz Rosa ção ii pudessem investir uma parte das quantias poupa-
Luxemburgo na "crítica dos críticos", o conjunto da produção anual das no capital da seção i, seria evitado o desabamento
como um "monte" indiferenciado de mercadorias, é falso dizer que ao
lado da porção correspondente de produto excedente é preciso que haja do sistema" (versão Petit, p. 10). No entanto, a obje-
um monte de ouro equivalente; uma quantidade de dinheiro muito ção de Joan Robinson não se limita aos problemas dos
menor é suficiente. Com efeito, se é verdade que a mais-valia acumulada esquemas, às divergências de números que serão mais
precisa indispensavelmente passar pelo estágio do dinheiro, "ela não se apropriados a esse caso (Baranovski) ou a esse outro
realiza porém de uma só vez, mas pouco a pouco, não como um
monte compacto de mercadorias, mas pela intermediação de uma (O. Bauer). Ela o diz expressamente: "Não tem conse-
infinidade de operações comerciais, no curso das quais uma só n mesma qüência alguma o fato de que um exemplo numérico
quantidade de dinheiro realiza sucessivamente uma parcela após dado não tenha solução, e tem-se dificuldade em inter-
outra de mercadorias..." (Bukharin, Der Imperialismus und die pretar um exemplo porque é preciso distinguir as diver-
Akumulation dês Kapítals, Verlag für Literatur und Politik, Viena,
1926). gências que decorrem do arredondamento das cifras da-

38 39
quelas que se destinam a ilustrar um ponto de princípio". crônico do suplemento potencial do capital real em re-
(Nesse modelo, a taxa de exploração é diferente nas duas lação à sua procura, e o sistema deve cair em depressão
seções. Isto significa que as cifras representam o valor- crônica. (Esta é a stagnation thesis posta em discussão
dinheiro, e não apenas o valor J. R.) Isto significa, por- por Keynes e elaborada por economistas americanos mo-
tanto, para Joan Robinson, que não há necessidade em dernos, sobretudo Alvin Hansen.) E aqui Joan Robinson
se insistir na aritmética para encontrar onde se esconde levanta a mesma questão que Irene Petit vai levantar
a dificuldade. O modelo é sobredeterminado em virtude depois: "Como então acontece que a expressão capita-
da regra segundo a qual o aumento do capital em cada lista não tenha ainda (em 1912) dado sinal algum de
seção no fim do ano deve igualar a poupança feita na enfraquecimento ?''
mesma seção durante o ano.2 Em seguida ela ataca a Aproximamo-nos agora das conclusões dos dois au-
questão das cifras que concordam ou não com as propo- tores que prefaciaram o livro de Rosa Luxemburgo. Mas,
sições que requerem tal ou qual solução, e fornece alguns antes de dar a palavra a Irene Petit para suas conclusões
exemplos. O que é preciso, nos diz ela, é encontrar o ver- finais, devemos retornar a Joan Robinson, que faz uma
dadeiro ponto da contradição real. "Essas quantidades condensação histórica "da descrição devastadora" da ma-
podem muito bem estar de acordo entre si, mas não há neira pela qual o sistema capitalista, pelo comércio,
garantia de que o estejam. Se a taxa de poupança que a conquista e o roubo, engole as economias pré-capita-
os capitalistas (tomados em conjunto) escolhem supera listas, algumas reduzidas ao nível de colônias das nações
a taxa de acumulação ditada pelo progresso técnico, o ex- capitalistas, outras continuando nominalmente indepen-
cedente da poupança não pode ser 'capitalizado' senão dentes e se alimentando de ruínas. O fio da análise que
quando há uma saída para o investimento fora do sis- atravessa as ilustrações históricas não é fácil de seguir,
tema. (O caso inverso, de poupanças insuficientes, tam- queixa-se Robinson, mas o principal argumento parece
bém é possível. O progresso seria então desacelerado e ser este: tão logo uma economia primitiva fechada é
não atingiria o máximo tecnicamente possível; mas, uma rompida, pela força ou pela perfídia, um consumo em
vez que esse caso não foi contemplado pelo autor, Joan massa de bens de produção baratos desloca a antiga
Robinson considera que não vale a pena se deter nele.) produção manual das comunidades de família e de aldeia,
Inglesa verdadeira, Joan Robinson não gosta de se e cria-se um mercado provido de produtos sempre em
entregar à pesquisa de "pretensas necessidades lógicas" crescimento das indústrias da seção n nos velhos centros
e substituí-las umas pelas outras. Prefere trabalhar com do capitalismo, e isto sem que o nível de vida dos traba-
uma hipótese plausível sobre a natureza do caso, donde lhadores que consomem essas mercadorias seja elevado.
surge a argumentação, para dar seqüência ao trabalho. E depois chega uma época decisiva em todo o processo
Se, na realidade, a distribuição da renda entre operários de expansão. É a época das grandes obras em capital,
e capitalistas e a propensão à poupança dos capitalistas tais como estradas de ferro associadas necessariamente à
são tais que não exigem de uma taxa de acumulação que entrada em novos territórios. Esse investimento é aberto
ela não exceda a taxa de aumento dos estoques de capi- parcialmente a poupanças de suplementos extraídos no
tais adaptados às condições técnicas, então há um excesso local, mas sobretudo a empréstimos obtidos nos velhos
países capitalistas. Aqui não há dificuldade para encon-
2
trar os motivos para investir, pois os novos territórios
Irene Petit apresenta aqui uma nota esclarecedora em seu pre- fornecem as mercadorias que não se podem obter na
fácio: "que não se trata tanto de anos do calendário quanto de pe- própria casa.
ríodos de produção, pois Rosa o menciona em diversas passagens. A
divisão em anos data do Tableau Economique de Quesnay, onde a Joan Robinson retoma a essência dos argumentos
agricultura — e portanto as estações — desempenhavam um papel que se seguem: tecidos do Lancashire pagos pelo traba-
preponderante" (Prefácio, p. 11). lho na América. Esta fornece o salário e a matéria-prima

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da usina do Lancashire, enquanto os lucros adquiridos Sua conclusão aproxima-se da de Irene Petit. Tudo
tanto nas plantações quanto nas usinas são investidos isto será talvez claro demais, em relação ao que Rosa
nos trilhos de aço e nos equipamentos rodantes, que Luxemburgo quis dizer. Os argumentos saltam ao longo
abrem os novos territórios, de tal modo que todo o pro- de uma riqueza de exemplos históricos, e as idéias emer-
cesso fica em expansão contínua. Os territórios esten- gem e desaparecem de novo de um modo selvagem. Algu-
dem-se por toda parte, da África à América, da Ásia ma coisa parece ter sido querida. E com efeito, alguma
extremo-oriental à Ásia Menor, graças ao empréstimo de coisa dali é hoje largamente aceita. Conforme já vimos,
capitais ingleses e às estradas de ferro, façam-se ou não Rosa Luxemburgo negligencia a alta do salário real que
os investimentos com realização de mais-valia, pois pode ocorreu à medida que o capitalismo se desenvolveu, e
acontecer que uma operação se perca ou não, ou que nega o encorajamento interno a investir, proporcionado
não tenha seqüência, e não será muito surpreendente que pelo progresso técnico — dois fatores que ajudam a salvar
isto termine com a ruína das velhas economias primi- o capitalismo das dificuldades que ele cria para si próprio.
tivas, por destruições e mesmo por ganhos muito pouco Apenas uma influência (o imperialismo econômico) lhe
ortodoxos. fica para dar conta de uma acumulação contínua do
capital, e por isso sua análise é incompleta. Mas isto
Antes de terminar sua exposição, ela aborda o tema não muda coisa alguma.
do militarismo segundo Rosa Luxemburgo. Se se vai Poucos são aqueles que negariam que a extensão do
diretamente ao assunto, fica-se na obrigação de consi- capitalismo em novos territórios tenha sido a principal
derar os armamentos, segundo aquela autora, como uma mola propulsora daquilo que um economista univer-
"espécie de poupança forçada" sobre as costas dos ope- sitário chamou de "vasto e secular boom" dos dois últi-
rários, ou, se se prefere, "extras" de poupança prove- mos séculos (Hicks, V alue and capital, p. 302). Muitos
nientes já de um excedente. Nessa base, os próprios arma- economistas universitários atribuem as condições pouco
mentos não podem ser considerados como fornecendo confortáveis do capitalismo do século XX ao fechamento
uma saída para o investimento de excedentes. Contudo, das fronteiras em toda parte no mundo (A survey of
ela não esquece o uso dos armamentos como o que se contemporary economias, Ed. Ellis, p. 63).
fez na Guerra do Ópio (montada pelos ingleses) contra Cheguemos agora às conclusões finais de Irene Petit:
a China, a fim de quebrar as economias primitivas, pois "Contudo, para o período que precede a Primeira Guerra
trata-se no fundo de uma condição necessária para o Mundial, o que Rosa Luxemburgo explicou magistral-
investimento colonial, já descrita, mas também o capital mente não é tanto 'o desabamento do capitalismo' — que
em equipamento para produzir armamentos é simples- sobreviveu muito bem à guerra —, quanto o imenso im-
mente um substituto de um capital que produz bens de pulso, o grande boom de prosperidade que acompanhou
consumo. Os argumentos que melhor se acomodam aos a expansão imperialista no início do século". E ela ter-
da própria Rosa Luxemburgo e aos fatos são que os mina: "Se as previsões luxemburguianas não se cumpri-
armamentos proporcionam uma saída para os inves- ram, se o capitalismo, apesar da grande crise do período
timentos de excedentes (acima e além de toda contri- entre as duas guerras, estabilizou-se (?), é que novos
buição possível de uma poupança forçada de salários), fatores, tais como a intervenção do Estado na economia
os quais, diferentemente de outras espécies de investi- capitalista, desempenharam um papel regulador. Mas o
mentos, não criam outros problemas a uma capacidade próprio núcleo da teoria de Rosa Luxemburgo, sua aná-
produtiva crescente (para não mencionar as novas opor- lise do mecanismo capitalista — apresentado como um
tunidades de investimentos criadas pela reconstrução, sistema dinâmico e condenado por seu próprio dinamis-
depois que as nações capitalistas lançaram-se às armas mo a procurar saídas fora de si mesmo —, não parece
umas contra as outras). ter perdido sua atualidade".
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Mas Joan Robinson, menos tímida talvez do que De fato, claramente, ela explica que, diante da parte da
Irene Petit, constata a verdade: "Mas esses economistas mais-valia não-consumida pelos capitalistas, há investi-
universitários mostraram-se sábios depois dos aconteci- mento. "Os capitalistas talvez comprem uns dos outros
mentos passados. Com todas as suas confusões e seus essa última porção de mercadorias, não a fim de des-
exageros, esse livro mostra mais de pré-ciência do que perdiçá-las no luxo, mas para investir na ampliação da
poderia reivindicar qualquer um dos ortodoxos contem- produção, para a acumulação" (Rosa Luxemburgo, t. II,
porâneos". Critique dês critiques, p. 144). Aqui, por sua vez, como
Robinson, Dockès diz: "em termos desajeitados", Rosa
Luxemburgo coloca a questão do investimento pela pou-
Esse capítulo não estaria completo se não fosse atua- pança como o tinha feito Marx antes, o que lhe retira
lizado pela contribuição muito válida de um autor emi- uma parte de seu mérito. "Com efeito, para que os capi-
nente de nossos dias. Trata-se de Pierre Dockès, em sua talistas realizem a mais-valia comprando meios de pro-
L'internationale du capital (Economie en liberte), PUF dução, é preciso que eles sejam incitados, Ora, na hipó-
Paris, 1975). Ele aborda a questão (ia acumulação em tese onde C/V pode variar e onde os capitalistas só au-
Rosa Luxemburgo de um modo novo, distante da rotina mentam o capital constante, o lucro total permanece
marxista com a qual a obra de Luxemburgo foi recebida. necessariamente o mesmo, e se houver igualmente au-
Temos prazer em tomar em consideração o ponto de mento do capital variável, mas mais lentamente, haverá
vista de Dockès, tanto mais porque seu enfoque é seme- diminuição da taxa de lucro. Não é portanto a fim de
lhante ao de Robinson, pelo menos metodologicamente. aumentar seus lucros que eles aumentam seu capital
Como é sabido, Robinson foi o primeiro economista constante" (Rosa Luxemburgo, Critique dês critiques).
não-marxista a levar em conta a dificuldade de lingua- Se a concorrência força cada capitalista tomado in-
gem considerável de Luxemburgo para os não-habituados dividaalmente a aumentar seus meios de produção, a so-
à terminologia marxista. Dockès também faz essa reserva lução que ela oferece à questão da incitação para investir
para a penetração do pensamento de Luxemburgo. Na é insuficiente. Marx a rejeita, mas Luxemburgo amplia
longa parte de seu livro dedicada a Marx e ao mercado suas vistas, diz-nos nosso autor. Para que o capitalista
mundial, ele se detém nos "desenvolvimentos de Luxem- seja incitado a investir, é preciso que exista a perspectiva
burgo". E indo diretamente ao problema principal, ele de uma procura ulterior, superior. Não se trata
pergunta: "De onde vem a procura constantemente cres- absolutamente da idéia segundo a qual os mercados de-
cente que está na base do alargamento crescente na pro- vessem existir previamente para que houvesse investi-
dução no esquema de Marx?" (L’accumulation du capital, mento, mas de que há um "motivo prévio" para investir
tomo l, p. 119). Ou, mais precisamente: "De onde vem para o capitalista, ou seja, "perspectivas de mercados ex-
a procura para o produto suplementar que decorre da ternos", ou, segundo a melhor tradução inglesa, "an even
mais-valia capitalizada?" (op. cit., p. 132). E ele comenta: larger demand must be expected for the future" (versão
"se não se tem cuidado com isto, essa questão de Rosa inglesa da obra de Luxemburgo, comentada por Robin-
Luxemburgo poderia ser interpretada como referindo-se son, p. 137).
a duas grandezas ex-post: efetivamente, ela começa por Agora a conclusão brilhante de Dockès: "Luxem-
passar em revista as diversas fontes de uma tal procura, burgo volta a uma teoria do subconsumo não mais ingê-
mas evidentemente nem o consumo operário, nem o con- nua, mas solidamente construída. A previsão quanto à
sumo dos capitalistas, nem o de terceiros seria suficiente procura futura de máquinas é função da previsão quanto
para proporcionar uma procura em face dessa mais-valia. à procura final de bens de consumo. A contradição funda-
Daí a imputar-lhe uma teoria ingênua do subconsumo não mental entre um consumo de operários que estaciona
há senão um passo, freqüentemente dado". E ele continua: e o aumento considerável dos meios de produção passa

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pela incitação para investir que se torna insuficiente à
medida que a base do consumo final torna-se mais es-
treita em relação ao cume da produção de bens de capi-
tal. A realização é cada vez menos possível no seio do V
capitalismo. Donde o recurso crescente aos mercados ex-
ternos e a penetração das relações sociais do capital no
mundo inteiro, após suas mercadorias. O processo de
propagação-mundialização é também, segundo Marx, o A Querela:
produto fatal de uma outra contradição interna, agora
do lado do abastecimento". "Otimistas" e "Pessimistas"

Depois dessa explicação razoável dos pontos de vista


de nossa autora por Joan Robinson, sigamo-la quando
ela contorna a parte histórica do que a fascina. Ela começa
por Sismondi, que, único entre os economistas de seu
tempo, oferece, antes de Marx, uma teoria da reprodução.
Isto permite-lhe discutir, à volta do mestre suíço, todos
os economistas que ela situa historicamente no "primeiro
round" de sua polêmica: Malthus, Say, Ricardo, Mac-
culoch. Depois, no segundo round, vêm Rodbertus e von
Kirchmann e a teoria da reprodução. No, "terceiro round,
finalmente, a equipe dita dos russos, depois de Nikolaion,
o tradutor do primeiro volume do Capital, o amigo de
Marx, que, com Vorontsov, é o teórico da passagem di-
reta da velha Rússia agrária ao socialismo, evitando a
fase do capitalismo. Estamos aqui em presença dos re-
presentantes do "populismo russo", contra o qual se
levantam não apenas os primeiros marxistas ditos legais,
Strouve, Bulgakov, mas também os revolucionários, com
Plekhanov à frente, até Wladmir Ilyin, que, na época, não
passava de um estraçalhador de populistas, aos quais ele

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já chamava, com seu temível sarcasmo, em defesa do Ê a época do extremo otimismo de Engels. Essa era
desenvolvimento capitalista da Rússia, "os românticos", a situação na Europa ocidental.
em face do "ceticismo" deles quanto às condições de um Contudo, a Rússia desse tempo era bem diferente.
verdadeiro capitalismo em seu país. Aqui, os anos correspondentes eram anos de crises inter-
Luxemburgo aborda o "terceiro round" de sua polê- nas, com todas as suas agonias, período típico de tran-
mica com outros olhos, melhor dizendo, os de um histo- sição. Só então a grande indústria fazia sua entrada real
riador. Ela passa em revista, ligeiramente, a situação da em cena, anunciada pelo período de altas tarifas. Em
Europa ocidental, sobretudo da Alemanha, que é então particular, a introdução de uma tarifa sobre o ouro, na
uma espécie de prefácio pedante à Rússia: lá o capita- fronteira ocidental, em 1877, marca uma verdadeira vi-
lismo tinha já atingido a maturidade. Passando por cima rada do governo absolutista em favor do crescimento do
do panorama das opiniões clássicas de Smith, de Ricardo, capitalismo. Na Rússia, o capitalismo é realmente um
sobre uma economia burguesa ainda no nascedouro, ela fenômeno em ascensão, feito de progresso; mas dificil-
menciona "o otimismo auto-interessado da doutrina vul- mente se pode concebê-lo como um fenômeno econômico
gar manchesteriana da harmonia" e, dá ênfase ao "im- puro. A acumulação floresceu esplendidamente na Rússia,
pacto devastador do desabamento dos anos setenta, sob estimulada por todo tipo de subsídios do Estado, por ga-
os golpes violentos da luta de classes desencadeada em rantias, bonificações e encomendas governamentais. Os
todos os países capitalistas da época". Os anos que se lucros que se extraíam ali eram lendários no Oeste, onde
o puro interesse econômico regulava o assunto. No cam-
seguem, o social-reformismo, cujos anos de apogeu po, o declínio e a desintegração da economia rural sob
se passam sobretudo na Alemanha, não demoraram con- a pressão da exploração pelo Tesouro e o sistema mone-
tudo em terminar por uma ressaca. O processo de doze tário causavam conflitos terríveis, fomes periódicas e sub-
anos de legislação especial contra o Partido Social-Demo- levações de camponeses. Nas novas cidades, o proleta-
crata levou a uma amarga desilusão, ao pôr a nu as riado das fábricas não havia ainda consolidado, nem so-
contradições capitalistas em sua crua realidade. Desde cialmente, uma classe operária moderna. Na maioria,
então, o otimismo passou para o campo da classe operária essa classe era ainda estreitamente ligada à agricultura
em ascensão e de seus teóricos. Rosa Luxemburgo tem aqui e continuava semi-rural, particularmente nas regiões in-
o cuidado de distinguir esse otimismo banal e comum do dustriais de Moscou-Wladimir, o mais importante centro
campo burguês, no sentido de um equilíbrio, natural ou da indústria têxtil russa. Como se pode compreender, as
artificialmente estabelecido, da economia capitalista ou de formas primitivas de exploração eram contrabalançadas
sua duração eterna — e que se fundava sobre a pelos modos primitivos de defesa. Não antes do começo
convicção de que o capitalismo, como grande estimulador dos anos oitenta, quando a revolta espontânea explode
do desenvolvimento das forças produtivas, proporcionaria no distrito de Moscou com o movimento da sabotagem
um terreno excelente para o progresso histórico da das máquinas, é que começaram a surgir os primeiros
sociedade em direção a novas formas econômicas e rudimentos de uma legislação fabril no império dos
sociais. Na primeira fase do capitalismo, no tempo de tzares. O capitalismo russo tinha um solo fértil e imenso
Sismondi, o que predominava era uma tendência negativa para expandir-se, e crescia bem, mas não dispensava,
e depressiva; mas na etapa seguinte, parcialmente para prosperar, o chicote da coroa ao lado do arado do
secundada por Rodbertus, essa tendência inverteu-se e foi capital.
para a satisfação, para esforços cheios de esperanças dos Tendo brevemente esquematizado aqui a realidade
trabalhadores na ascensão de seu movi' mento sindical e russa, tal como ela se apresentava perto do fim do sé-
de sua ação política. O ambiente era de otimismo no culo, o que interessa a Rosa Luxemburgo é a luta de
movimento operário e na esquerda. opiniões que se tece sobre a realidade. O que se discutia

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acima de tudo eram as possibilidades do desenvolvi- correspondência, que deixava também vastos e sugestivos
mento capitalista no país. Daí uma literatura controver- ecos de larga repercussão sobre a literatura marxista.
tida que durou algumas décadas antes do final do século. Em relação ao problema de que eles se ocupavam, ou
O exemplo das experiências do Ocidente chegava à Rússia seja, as perspectivas gerais do desenvolvimento capita-
como uma evidência vital que se juntava ao debate. Um lista, uma nova geração de marxistas russos surgiu, a
fato foi porém de importânciia decisiva para o conteúdo qual, ao lado do que havia aprendido diretamente de
teórico da discussão: a predominância do pensamento Marx e Engels, se tinha formado na experiência e no
marxista entre os grupos em disputa. Não somente a conhecimento histórico vivo da Europa ocidental (Alema-
análise da reprodução do capital era já propriedade co- nha). Juntando suas forças às de Plekhanov — o intro-
mum da Rússia cultivada, mas também o segundo volu- dutor da arma teórica do marxismo na Rússia —, ela
me do Capital e sua análise da reprodução ampliada do se forma em oposição aos dois adversários encarniçados
capital como um todo tinham sido publicadas em 1885. do capitalismo. Entre outros, integravam-na os professo-
Isto deu um aspecto fundamentalmente novo ao pro- res Kabulov, Mannüov e S. Kortson; Vladimir Ilitch,
blema. O problema das crises não veio mais obscurecer Peter V. Strouve, Bulgakov e Tugan Baranovski, pois cada
o núcleo real da questão; pela primeira vez, a discussão um deles oferecia uma crítica mais ou menos acabada da
centrava-se puramente sobre a reprodução do capital teoria. Essa batalha, diz Rosa Luxemburgo em meio a tira-
como um todo, sobre a acumulação. A análise não se das de espírito, por vezes brilhantes, manteve a intetti-
perdia mais numa confusão em torno de conceitos de genzia socialista numa espécie de encantamento nos anos
renda, de capital industrial e capital composto. O diagra- noventa e não foi terminada senão por Wadkover, quando
ma de Marx da reprodução social trazia ao debate uma a escola marxista inseriu oficialmente no pensamento
base sólida. Finalmente a questão não girava mais em russo o marxismo como uma teoria econômico-histórica
torno do laissez-faire e das reformas sociais, mas entre vitoriosa. O "marxismo legal" nessa época tomou publica-
duas variedades de socialismo. Isto marcou a extrema ori- mente posse das universidades, das revistas e do mercado
ginalidade das discussões teóricas na Rússia, pois em do livro de economia, com todas as vantagens dessa po-
nenhum outro país se testemunhou uma semelhante con- sição. Dez anos mais tarde (ou seja, com os anos quentes
centração de pensamento de toda a intelligenzia acerca de mil e novecentos), quando as sublevações revolucioná-
dos destinos da sociedade. Cada grupo representava sua rias do proletariado demonstraram nas ruas o lado som-
variedade de socialismo. De um lado, a marca pequeno-, brio desse otimismo concernente ao desenvolvimento ca-
burguesa e "populista" dos socialistas russos manifestan- pitalista, ninguém dessa plêiade de marxistas otimistas,
do seu ceticismo quanto à possibilidade de um desenvol- com uma exceção apenas, foi se pôr "no campo do prole-
vimento capitalista, muito no espírito de Sismondi e em tariado". Essa exceção todo mundo conhece hoje, mas
parte de Rodbertus, se bem que eles próprios se apoiassem na época raros eram os que o conheciam. Na época
freqüentemente em Marx como sua autoridade; de outro a que se referia Rosa Luxemburgo, Vladimir Ilitch não
lado, era o otimismo representado pela escola marxista era ainda senão o eminente teórico do desenvolvimento
russa. do capitalismo na Rússia, o futuro Lênin, antes de assu-
Sob o nome de pena de V. V. (suas iniciais), Voront- mir a direção da Revolução de Outubro de 1917. E aqui,
sov era para o grande público o principal representante na prática da revolução, Lênin e seus companheiros de-
dos teóricos populistas russos, mas seu verdadeiro cam- vem ter observado que nem ele nem seus camaradas não
peão era Nikolaion (Danielson). Assentado numa cultura puderam impedir de aflorar à superfície dos aconteci-
séria, completamente familiarizado com o marxismo, mentos alguns traços desse "ceticismo" ou desse "ro-
editor do primeiro volume do Capital e amigo pessoal de mantismo" não totalmente estranhos portanto às condi-
Marx e Engels, ele mantinha com ambos uma copiosa ções da realidade profunda da Rússia. (Basta, para se
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aperceber disso, lembrar a mudança brusca imposta por existe, diz ele, uma sociedade capitalista real, por desen-
Lênin ao programa agrário de seu próprio partido e a volvida que seja, composta apenas de capitalistas e ope-
adoção não menos brusca do programa dos socialistas rários. Nem mesmo na Inglaterra e no País de Gales.
revolucionários, seus adversários tradicionais.) E ainda menos na Rússia, "esse vasto país, de uma popu-
Retornando à polêmica final dos marxistas legais e lação imensa". Ela está, diz ele, na honrosa posição de
dos populistas eslavófilos, que lhe interessava particular- dispensar os mercados estrangeiros. "Se o exemplo da
mente, Rosa Luxemburgo nem tem dúvida em proclamar América do Norte tem algo a fazer aqui, é para provar
a vitória dos primeiros sobre os segundos. Mas, observa que sob certas circunstâncias a indústria capitalista pode
ela, foi muita batalha por quase nada, se se pode dizer atingir um alto nível de desenvolvimento quase inteira-
assim, pois ela supera o objetivo da disputa. Foi, diz ela, mente à base do mercado interior". A quantidade negli-
uma vitória de Pirro. A questão era saber qual a viabili- genciável das exportações industriais dos Estados Unidos
dade do capitalismo não somente na Rússia, mas fora em 1882 vem apoiar essa idéia, como também sua dou-
dela também. Os marxistas legais fizeram isto ao ponto trina: "Quanto mais vasto for o território e maior a
de oferecer a prova teórica de que o capitalismo poderia população de um país, menos esse país requer mercados
continuar a se desenvolver indefinidamente. Presumindo exteriores para seu desenvolvimento capitalista". Daí a
que a acumulação do capital se pode fazer sem limites sua oposição direta aos populistas. Ele vê para a Rússia
(Tugan Baranovski), eles vão muito naturalmente ofere- o mais brilhante futuro capitalista, mais brilhante do
cer a prova da capacidade ilimitada de sobrevivência do que para qualquer outro país". À base da produção de
capitalismo. A acumulação é o método capitalista espe- mercadorias, um desenvolvimento progressista da agri-
cífico para a expansão da produção, pela produtividade cultura cria necessariamente um largo mercado e vai dar
progressiva do trabalho, o desenvolvimento das forças a seu país um potente desenvolvimento industrial capi-
produtivas, o progresso econômico, enfim. Se o modo talista. Esse mercado será capaz de uma expansão ilimi-
capitalista pode assegurar a expansão sem restrições das tada paralela ao progresso industrial e econômico geral
forças produtivas e do progresso econômico, ele é sem do país, conjuntamente com a substituição da velha eco-
dúvida invencível. Então o argumento objetivo mais nomia natural por uma economia francamente monetá-
forte em apoio da teoria socialista cai, a ação política ria". A esse respeito, conclui Strouve, "o capitalismo goza
socialista e o peso ideológico da luta de classes do prole- de condições mais favoráveis na Rússia do que em qual-
tariado deixam de aparecer como uma necessidade his- quer outro país" (Criticai comments on the próblem of
tórica. Dando-se por meta mostrar que o capitalismo é economic development in Rússia, 1894). Ao refutar a
possível, e4es terminam por mostrar que o socialismo perspectiva pessimista de seus adversários, Strouve res-
é impossível. Os populistas perderiam no particular e no ponde que seu país pode vencer os maus momentos do
geral, mas os três marxistas no curso da polêmica tor- mais recente capitalismo tão facilmente quanto o grande
naram-se conscientes de ter feito uma viravolta, como modelo dos Estados Unidos. Mas, simplesmente, ele es-
Strouve que, no prefácio de seu livro de 1901 (Criticai quece "desde o início que os Estados Unidos representam
comments on the próblem of economic develcpment in um Estado burguês, todo novo, fundado por uma pequena
Rússia), faz um verdadeiro coquetel de positivismo e de burguesia e por camponeses que fugiram do feudalismo
marxismo. Mas de qualquer maneira o que resta de mar- europeu para estabelecer, exatamente, uma sociedade
xismo nele é seu "otimismo" em relação "às condições puramente burguesa, uma sociedade de pequenos senho-
excepcionais da Rússia para o desenvolvimento do capi- res, como era o caso nas velhas etapas pré-capitalistas
talismo". Atacando os argumentos de Vorontsov e de que, se bem que já em desintegração, serviam ainda de
Nikolaion, Strouve trata-os de pura ficção, "que não faz base material sobre a qual a revolução capitalista (pois
avançar nem de um só cabelo nossa compreensão". Não era com efeito uma revolução social) poderia ter lugar

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e se tornar efetiva. Na América, uma economia monetá-
ria havia já sido estabelecida há mais de um século,
enquanto na Rússia uma economia natural predominava
até recentemente. Devia ser claro, por conseguinte, que VI
essa revolução na Rússia estava condenada a ser muito
mais brutal e violenta e acompanhada imensamente de
mais sofrimentos do que na América". Essas palavras
proféticas vêm de onde ou de quem? Do maior dos "mar- O Capitalismo
xistas" vivos, Engels, em pessoa, nas vésperas de sua
morte (Cartas a Nikolaion, 17 de outubro de 1893). Seu
parecer soa aqui contra o otimismo de seus discípulos,
e de um certo modo em favor do pessimismo de seu
amigo pessoal, mas adversário "populista". O equívoco
dessa polêmica entre "populistas" e marxistas mesmo
revolucionários não terminou por si mesmo, mas sim
facciosamente, ou melhor, pela vontade revolucionária
que veio de fora, do bolchevismo, ou seja, do primeiro
leninismo. Assim, ela terminou bruscamente, como um
motor em pane, que mergulha na lama da estrada. Os
antigos mecânicos da velha Rússia, populistas e marxis- De todos os processos sócio-econômicos que a histó-
tas legais, não podem mais repor o carro em movimento. ria nos apresenta, o único a interromper a rotina dos
Novos mecânicos, ainda sem prática, aparecem e se lan- tempos estabelecida pela preguiça criadora do bom Deus
çam ao trabalho. e a se desenvolver ao longo de gerações e gerações de
humanidade até nossos dias foi o sistema de trocas. Isto
se passou, se nos permitem falar brutalmente, quando as
primeiras virtudes sociais do agrupamento humano, ou
seja, a doação, a troca, o escambo antes da moeda e a
moeda, se institucionalizaram.
Os antropólogos nos ensinaram a distinguir "as for-
mas simples de circulação das 'mercadorias' 1 com ou
sem dinheiro, e as formas capitalistas de circulação de
mercadorias". E eles nos dizem: "Quando os bens foram
produzidos para a troca, e são trocados segundo taxas
aprovadas, estamos em presença de formas de troca, por-
tanto, de circulação mercantil sem moeda. Os povos pri-
mitivos compreenderam sempre, desde os primeiros con-
tatos, a lógica das doações, e a do escambo e mesmo

1
Não tomar a palavra 'mercadorias' na acepção que ela recebeu na
economia capitalista, segundo a terminologia marxista.

54 55
a da circulação simples 'das mercadorias', e mesmo se, ritmo mesmo, um mecanismo de substituição, próprio,
por vezes, se encontram em alguns de seus objetos pre- com exclusão de todas as outras formas de circulação.
ciosos formas arcaicas de nossa moeda, raramente, em É ele, segundo Aristóteles, o que trazia desequilíbrio à
todo caso, seu dinheiro foi manipulado como um capital cidade. Desde então, ele jamais mudou de papel. Os ama-
que se investe a fim de fazer lucros e acumulá-los". Pode-se dores da dialética acham facilmente nesse papel o fator
compreender assim, diz-nos o mesmo antropólogo, por- de progresso que todos lhe atribuem, mesmo Marx. O pro-
que, da Antigüidade aos nossos dias, esses objetos se des- gresso do desequilíbrio e da desigualdade, da riqueza e da
pojaram cada vez mais de seu caráter dominante de pobreza, etc.... Ele tem também a propriedade de se
objetos para presente e se especializaram de modo domi- isolar. De seus contatos com todas as outras formas
nante em objetos de comércio, mesmo se guardaram du- de circulação das sociedades primitivas, ele tem a fa-
rante muito tempo um aspecto "tradicional", ou, como culdade fatal de se distanciar de todos os condutos sociais
às vezes se diz, "ético". Mas explica-se também que a de toda relação humana, seja ela qual for. De todas as
existência de formas de produção e de circulação mer- formas de troca existentes, é a única que perde sua
cantil não altera por si a natureza profunda dos diversos sociabilidade para especializar-se, ao tomar a forma da
modos de produção no seio dos quais se os encontra. Não troca do comércio. Ele invade como área privada a área
é a circulação mercantil em geral que destrói as antigas do coletivo. Nos velhos tempos, essa última área era a
relações comunitárias de produção ou de vida social. área do sagrado, a área do privilégio. Com o tempo,
É a produção mercantil, dirigida sistematicamente para quando a troca ficou institucionalizada em venda, a área
o lucro. Com ela, um processo de acumulação desigual privada se intensifica, se mistura por toda parte e cor-
de riquezas aparece e se desenvolve, o qual contribui para rompe a área do sagrado; e começa então essa operação
a diferenciação social e ameaça as antigas relações comu- de depuração, através da história, até nossos dias; na
nitárias. E aqui acompanhamos ainda o antropólogo quan- realidade, tudo o que procura o capitalismo é desinfetar
do ele recorre à autoridade de Aristóteles para fazer, integralmente a área privada dos agentes puramente
a partir do plano filosófico que era o dele, um corte simbólicos do poder e ocupá-la inteiramente com os agen-
temporal, para "definir uma arte de bem viver e por- tes de sua própria camarilha. Tudo parece nos indicar
tanto uma moral cívica". Ele opunha a economia "na- que chegamos, precisamente, nesse último quarto de sé-
tural" das unidades domésticas, voltadas para a produ- culo, a essa operação final de desinfecção do coletivo que,
ção agrícola, à produção e à atividade mercantil, na segundo os dirigentes quase anônimos das multi ou
qual ele via "uma arte de adquirir que não põe limite transnacionais, marcará a hora em que o mundo poderá
à riqueza e à aquisição... A moeda é então o elemento ser governado, exclusivamente, em nome dos interesses
e o objetivo da troca, e a riqueza que resulta dessa arte privados, pela oligarquia privilegiada.
de adquirir não tem limite" (A política). R. Godelier, Entre todos os sistemas sociais anônimos que da pré-
que o cita, tem assim razão de concluir: "Ele opunha história chegam sob uma forma ou outra à história, a
portanto a produção para a necessidade e a produção única dessas formas de troca que aí entra mais ou
para a troca e constatava que essa última era uma amea- menos identificada foi o modo capitalista. Em nome da
ça para o equilíbrio da cidade grega. Depois de Aristó- ordem privada ele avançou em cena com uma formação
teles, a história demonstrou suficientemente bem a fun- histórica única, a burguesia. E por qual traço ela se dis-
damentação dessa análise (R. Godelier, L'anthropologie, tinguiu? Ela distinguiu-se das outras formações por sua
science des sociétés primitives? — L'anthropologie eco- insociabilidade inata; ela as combateu todas, e solapa
nomiques, p. 237). suas posições em toda parte onde as encontra. Ela come-
O capitalismo é portanto o primeiro produto social çou por combater e destruir os senhores feudais, os aris-
que quer e acaba por impor à realidade da história, a seu tocratas, os proprietários da única propriedade biblica-

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mente consagrada, a de um direito que ela entretanto expulsaram ou exterminaram. Proibiram-nos de se tor-
jamais admitiu de boa vontade, o da terra. Para ela, narem burgueses, capitalistas, americanos.
só há uma riqueza, o dinheiro. Sendo de origem laica Ademais, Rosa Luxemburgo teve, de certo modo, a
e de mentalidade lógica, vivendo apenas da manipulação intuição dessa espécie de tendência ao racismo que marca
de valores monetários, ela foi eticamente, em relação ao a evolução capitalista. Em seus dias, por exemplo, da
apólogo filosófico hegeliano do senhor e do escravo, o pri- África do Sul e da Rodésia ocupando o primeiro plano
meiro dos dois membros que, tendo ficado rico, pôde da cena mundial, onde se decide o direito sagrado do
interromper a cadeia dialética. Mas seu grande momento Apartheid, suas palavras sobre as "fontes onde foi re-
foi o de restabelecê-la, pela necessidade absoluta de en- crutado primeiramente o proletariado urbano e rural"
contrar seu "outro", o outro da cadeia de exploração. tornam-se subitamente de uma extraordinária atualidade.
Pela força, pela acumulação primitiva, ela criou seu Marx, observa ela, "sem dúvida influenciado pelas condi-
proletariado. Uma vez refeita a cadeia arcaica, ela crê ções inglesas de um alto nível de desenvolvimento capi-
que sua situação no mundo é definitiva, será eterna como talista, sustenta que os trabalhadores rurais que emigram
a cadeia filosófica do senhor e do escravo. Ou seja, a ex- continuamente para as cidades pertencem ao proletariado
ploração do homem pelo homem, sua realidade mais que assalariado, depois de terem sido dominados pelo capital
histórica, ontológica. Mas a realidade da história pode agrícola e em seguida submetidos ao capital industrial".
acarretar outras mudanças, inclusive a de romper nova- Ela esclarece então sua idéia: Marx ignora o problema
mente a cadeia arcaica: os milhões de homens, os escra- formidável das condições camponesas e artesanais na Eu-
vos, que morrem de fome na África, na Ásia, na América ropa, ou as fontes de onde vem esse proletariado urbano
Latina e outras regiões, um dia vão quebrá-la; eles a des- e rural. Trata-se de um processo contínuo de transfor-
truirão, pois não terão mais medo de morrer diante do mação das camadas urbanas e rurais em massa prole-
senhor, mesmo — e por isso mesmo — se este tem em tária, com a ruína da economia camponesa e das peque
seu poder a bomba atômica. nas empresas e oficinas de artesãos, e que prossegue em
As perturbações das épocas feudais que sacudiram uma transição incessante das condições não-capitalistas
a Europa, depois das guerras religiosas, não eram senão para condições capitalistas, para uma força de trabalho
revoluções burguesas embrionárias, à procura de si mes- que é abandonada por modos pré-capitalistas ou não-
mas, de sua identificação. Na Inglaterra, muito simples- capitalistas de produção, em sua progressiva dissolução
mente, os novos direitos que eles queriam impor ou e desintegração. Ao lado da decadência dos camponeses
adaptar a seu povo só visavam o benefício dos melhores europeus e artesãos, ela menciona igualmente a desinte-
cidadãos, ou seja, os cidadãos ingleses, ou os burgueses gração das formas de produção as mais variadas e pri-
autênticos. Mas não foi preciso muito tempo para que mitivas nos países não-europeus. Em sua visão realmente
o mundo observasse que a nova ordem que saía da revo- universal e humana, e partindo da Inglaterra, ao exem-
lução inglesa era carente de universalidade. E quando plo da maneira tão brilhante de Marx, ela segue de perto
chega a hora dos franceses mudarem seu mundo, eles o processo de decadência dos camponeses e artesãos da
o fizeram em nome dos "direitos do homem". Com os Europa e a une às formas mais primitivas de organi-
americanos, eles falam antes de sua sociedade que do zação social dos países não-capitalistas fora do continente
Estado, pois o que é novo é o fato de que sua sociedade europeu. Sem se deter, ela passa em sua tournée pelo
só é composta já de burgueses, isto é, de homens brancos. mundo pelos Estados Unidos, índia, Turquia, Egito, África
Os negros são outra coisa; ficam de fora; como na pri- do Sul, China, América do Sul, etc. ... __ "Uma vez que
meira época da ocupação do território, à chegada dos a produção capitalista não pode se desenvolver em sua
puritanos e dos ingleses privilegiados do Mayflower, por- plenitude senão quando tem completo acesso a todos os
tanto, dos superburgueses, os pele-vermelhas que eles territórios e climas, não se pode confinar aos recursos
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naturais e às forças produtivas da zona temperada, tanto sociais às ordens do capital. Esses esforços levam às com-
quanto não pode mais se satisfazer apenas com o traba- binações mais singulares entre o moderno sistema3 sala-
lho branco. O capital tem necessidade de outras raças rial e a autoridade primitiva nos países coloniais".
para explorar os territórios onde o homem branco não Esse é um exemplo concreto do fato de que a pro-
pode (ou não quer) trabalhar. Ele precisa ser capaz de dução capitalista não pode funcionar sem força de tra-
mobilizar a força de trabalho mundial sem distinção, balho de outras organizações sociais. Em seguida, Rosa
a fim de utilizar todas as forças produtivas do globo Luxemburgo refere-se ao próprio Marx, quando no Capi-
— até aos limites impostos por um sistema de produzir tal, vol. I, ele trata da origem do proletariado inglês,
mais-valia. Essa força de trabalho, entretanto, é na maio- da classe da renda fundiária capitalista e do capital in-
ria dos casos rigidamente controlada por organizações pré- dustrial, com um espírito particular de crítica sobre a
capitalistas tradicionais de produção. Ela precisa em pilhagem dos países coloniais pelo capital europeu. Mas,
primeiro lugar ser tornada 'livre', para que possa ser observa ela, é preciso ter em mente que tudo isto é tra-
incorporada ao exército ativo do capital. A emancipação tado unicamente como tendo em vista a pretensa acumu-
da força de trabalho das condições sociais primitivas, e lação primitiva. Para Marx, com efeito, esses processos
sua absorção pelo sistema capitalista de salário, é uma são puramente incidentes, ou mesmo uma simples ilus-
das bases históricas indispensáveis do capitalismo." tração da gênese do capital, sua primeira aparição no
E para nos trazer a prova histórica dessa avidez do capi- mundo; são como as dores pelas quais o modo capita-
talismo branco pela força do braço negro escravo e outros lista de produção emerge da sociedade feudal. Entretan-
braços coloridos do mundo das baixas latitudes, ela nos to, tão logo Marx começa a analisar o processo capita-
enumera a escala internacional desse comércio: "para lista de produção e de circulação, ele reafirma a domi-
o primeiro ramo capitalista de produção autêntico, a in- nação exclusiva e universal da produção capitalista. Mas,
dústria inglesa de algodão, não apenas o algodão dos como já vimos, o capitalismo em sua plena maturidade
Estados do Sul da União Americana era essencial, mas também depende, em todos os sentidos, das camadas não-
também os milhões de negros africanos embarcados para capitalistas e das organizações sociais que existem
a América a fim de fornecer força de trabalho às plan-
tações americanas e que, posteriormente, como proleta- 3
riado livre, foram incorporados à classe 2dos trabalhadores Ver James Bryce, Impressione of South África, Londres, 1892;
assalariados em um sistema capitalista. A obtenção da esse antigo ministro inglês não escondeu a verdade, e descreve o que
é um exemplo típico de tais formas híbridas do trabalho e das condi-
força de trabalho necessária às sociedades capitalistas ções de vida dos escravos negros das minas de diamante sul-africanas.
é de uma importância sempre crescente para o capital Os nobres proprietários dessas minas foram também os precursores
nas colônias. Todos os métodos possíveis da pretensa dos campos de concentração. Sob o nome de compounds, eles coloca-
'doce imposição' são empregados para resolver esse pro- vam cerca de dois mil negros num alojamento subterrâneo, sem teto,
mas cercado de arame farpado para impedir que se' jogasse qualquer
blema, a transferência do trabalho dos velhos sistemas coisa por cima do muro. Um corredor subterrâneo conduz ao buraco
onde eles vão trabalhar oito horas por dia. Escravos dormem e co-
mem ali, ali dançam e fazem música etc. Como se vê, é de um ra-
2 cionalismo perfeito. Bryce relata ainda os métodos do "problema ope-
Para assinalar a importância da contribuição da força de trabalho
negra dos Estados do Sul, ver esse quadro publicado nos Estados Uni- rário": "Em Kimberley, em Wittvatirsrendfan Natal, em Metabebe-
dos antes da Guerra da Secessão: land, eles são forçados a trabalhar nas minas e nas plantações, to-
mando-se deles toda sua terra e todo o seu gado, ou seja, todos os seus
1800 Algodão 5,2 milhões de US$ Escravos 893.041 meios de subsistência. Assim eles são proletarizados, e mina-se o mo-
1820 Algodão 26,3 milhões de US$ Escravos 1.543.688 ral deles pelo álcool. O objeto de exploração deve ser mantido num
1840 Algodão 74,6 milhões de US$ Escravos 2.487.255 estado que permita sua utilização, e enfim obrigam-nos pela força,
1850 Algodão 101,8 milhões de US$ Escravos 3.079.509 pela prisão, pelo chicote, a se integrarem no sistema de salário capi-
1851 Algodão 137,3 milhões de US$ Escravos 3.200.000 talista".

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lado a lado com ele. Mas essa não é simplesmente uma
questão de mercado para um produto adicional, confor-
me pensavam Sismondi e outros.
O capital tem necessidade dos meios de produção e
da força de trabalho de todo o globo para a acumulação VII
dita primitiva. Ele não pode dispensar os recursos natu-
rais e a força de trabalho de território algum. Uma vez
que a esmagadora maioria dos recursos e da força de
trabalho está ainda na órbita da produção pré-capitalista O Amálgama do Estado e da Economia
— é o meio histórico da acumulação —, o capital deverá
ir por toda parte a fim de obter uma ascendência sobre
esses territórios e organizações sociais. A realidade é que
os países cujos ramos de produção têm origem periférica
e eles próprios apresentam dominância pré-capitalistas
não são negligenciados pelo capital, ao contrário, e este
não cessará de lutar até poder estabelecer sua dominação
sobre eles e suas sociedades. E, com efeito, as condições
primitivas abrem possibilidades de uma ofensiva maior e
de medidas muito mais brutais do que aquelas que pode-
riam ser toleradas sob condições sociais puramente capi-
talistas. Assim, a acumulação primitiva — expressão ba-
tida nos meios do capitalismo com fins ideológicos, ou Desde os primeiros tempos, as relações entre Estados
seja, para insinuar que o capitalismo tornou-se bem com- capitalizados e as economias primitivas existem. Rosa
portado — responde ainda hoje à prática do capitalismo Luxemburgo fala mesmo da "invasão" dessas economias
nos países subdesenvolvidos. Rosa Luxemburgo mostrou pelo capitalismo, e é por esse meio que ele conserva vivo
com exemplos ainda de seu tempo que a penetração capi- o sistema. Quando descreve esse processo, ela não é me-
talista fora das regiões temperadas empregava os mes- nos veemente ou eloqüente do que o velho Marx, quando
mos métodos de violência e de brutalidade da época da este descreve o processo da acumulação primitiva na
"acumulação primitiva". Se há uma diferença de método metrópole dos monopólios, na própria Inglaterra, no pri-
no alto desenvolvimento do capitalismo, é que o uso da meiro volume do Capital. A diferença está em que ela se
violência simples não pode ser considerado tão oportuno volta para o exterior do mundo já capitalista, onde se
quanto o dinheiro e a corrupção nos momentos em que supõe que a fase inicial da acumulação primitiva já esteja
é preciso vencer a concorrência "pacificamente", segundo superada. Dir-se-ia que o capitalismo se civiliza à medida
a filosofia muito civilizada das multinacionais, tais que avança, que se torna metropolitano, europeu, mun-
como a Lockheed e a ITT . dial enfim.
À época em que Rosa Luxemburgo se preparava para
escrever L'accumulation du capital, os meios econômicos,
entre marxistas e não-marxistas, dividia-se em relação às
perspectivas que se atribuíam ao capitalismo; para os
marxistas, ele deveria um dia explodir e por esse meio
abriria caminho ao socialismo. Para os economistas não-
marxistas, o destino do capitalismo não estaria em jogo,
pois confundia-se com o próprio destino da humanidade.
62
63
Entre os marxistas, uma subdivisão surgiu, a que na ram fiéis conseqüentemente às implicações políticas práticas
Rússia se deu o nome de "marxistas legais" e na Ale- da análise estrutural de Marx, desde Kautsky e sua geração
manha de "revisionistas". Pouco a pouco eles se separa- e a geração seguinte de Lênin, não se pode citar : senão
ram da corrente ideológica do marxismo para aceitar Lênin e Rosa Luxemburgo. Entretanto, apesar dessa
o modo capitalista de produção sem as implicações pessi- coincidência de posição estratégica fundamental, .seus
mistas que a análise de Marx lhe atribuía. No interior caminhos 1se desviaram... mas em quê? Do caminho reto da
do Partido Social-Democrata alemão, a querela sobre o revolução ? De modo nenhum, pois ambos eram fiéis, cada
destino do capitalismo ia então a pleno vapor, à medida um a seu modo, ao caminho traçado por Marx. Rosa
que a política internacional das potências européias che- Luxemburgo encontrou a solução do imperialismo em
gava a um grau de tensão que anunciava as ameaças de sua obra-mestra, L'accumulaticn du capital. Três anos
guerra. Entre os teóricos desse partido, após Kautsky e depois, Lênin, já então chefe de Estado, lança seu livro
seu centro marxista, com a política colonial a noção de teórico decisivo, O imperialismo, etapa suprema do
imperialismo era cada vez mais objeto de debate. Rosa capitalismo, de 1918. Os dois livros partem de uma mes-
Luxemburgo escrevia em novembro' de 1911 a seu cama- ma concepção estratégica, a necessidade da queda do im-
rada de partido, Konstantin Zetkin: "Quero encontrar a perialismo como caminho para a chegada do socialismo,
causa do imperialismo. Sigo de perto os aspectos eco- sua concepção do que seja imperialismo difere muito".
nômicos desse conceito. Será uma explicação estritamente Rosa Luxemburgo vai aos volumes do Capital já publi-
científica do imperialismo e suas contradições". Ela es- cados e se detém num primeiro obstáculo, que ela não
tava então na Escola do Partido e ensinava ali a economia pôde vencer, não encontrando a justificação do postu-
marxista, e o que a interessava em particular era o pro- lado geral nos esquemas matemáticos do Mestre. Diante
blema da reprodução capitalista que Marx retomou no desse impasse, ela pôs-se a procurar em causas exteriores
vol. II do Capital.1 L’accumulation du capital foi o fruto às vias matemáticas. Faz então a grande descoberta, dessa
dessas preocupações, e em seu subtítulo está escrito: vez completamente de ordem empírica, ao investigar a
Contribuição à explicação do imperialismo. Nettl escreve história econômica dos países capitalistas europeus e dos
a esse respeito linhas muito pertinentes: "É quase certo países pré-capitalistas das primeiras periferias além da
que a solução desse problema levou-a à descoberta do que Europa. O capitalismo sendo um processo de crescimento
ela considerou como sendo a causa teórica do imperia- que não se poderá jamais conceber de um modo estático,
lismo. Por muito importante que seja a descoberta, esta ele acabou por encontrar o meio de continuar a existir
foi claramente incidente. Ela matou então dois pássaros c a crescer enquanto houver sociedades pré-capitalistas a
com uma só pedra e no processo ela descobriu não apenas conquistar e integrar em sua própria esfera econômica
como a reprodução composta era possível, mas como ela do poder colonial. É aqui que Rosa Luxemburgo encontra
deveria conduzir inevitavelmente ao imperialismo e a razão de ser do imperialismo; sua' necessidade histórica,
finalmente a seu desabamento". Nettl chama a isto "um senão lógica. É igualmente aqui que se afirma a posição
achado genial". "Partido do primeiro postulado marxista, dos marxistas ortodoxos ou revolucionários, como Lênin.
que condena o capitalismo a ruir sob o peso de suas Mas antes de chegar a eles, Rosa Luxemburgo esbarrou
próprias contradições, o que acima de tudo lhe interessa numa posição, digamos, intermediária, a de um dos
é verificar esse postulado na teoria e nos fatos da his- brilhantes "marxistas legais" da época: Tugan Baranovski.
tória. De todos os grandes teóricos do marxismo que fica- Este retomou os esquemas matemáticos da acumu-
lação de Marx; fundando-se sobre os argumentos deste,
Tugan pretende "completá-los" e readaptá-los em seus
1
J. P. Nettl, Rosa Luxemburgo, Oxford University Press, London, dados numéricos pela proporcionalidade, que faltava neles,
1966, vol. II, pp. 530-531.

64 65
e provar assim que os termos das equações se harmoni- mite concluir que a realidade é conforme ao "esquema
zavam, e que o impasse matemático estava resolvido. n° 2". E porque esse esquema pode ser seguido indefini-
Seu esquema correspondia assim, realmente, ao curso das damente, a acumulação capitalista pode, também ela,
coisas. Mas, observa Rosa Luxemburgo, sua argumenta- continuar aã infinitum. O que impressiona em tudo isto
ção consiste unicamente "no esquema marxiano da re- não é a conclusão de Tugan Baranovski, a saber, que
produção ampliada". Aqui, em uma longa passagem de o esquema corresponde realmente ao curso das coisas.
seu livro, e precisamente sobre "a desproporcionalidade" Bulgakov compartilhava dessa opinião. O que surpreende
de Tugan Baranovski, ela faz a crítica da "crítica" dele. é ver que "Tugan não considera sequer necessário perguntar-
Todas as suas análises, diz-nos ela, "reduzem-se a uma se se o 'esquema' é válido, e que em lugar de demonstrar o
transcrição literal do esquema marxista da reprodução bem fundado dele Tugan considera inversamente o próprio
ampliada, apenas com a diferença de que as cifras são esquema, o exercício sobre o papel como uma prova da
outras". E ela acrescenta: "não se encontra ali nem sinal conformidade à realidade. Bulgakov esforçava-se
de uma outra demonstração". Com efeito, no esquema honestamente por aplicar o esquema de Marx à situação
marxiano, a acumulação, a produção, a realização, a troca, a concreta da economia e das trocas capitalistas. Ele
reprodução, efetuam-se sem dificuldade. E depois se tentava, é verdade que sem êxito, de pôr termo às
pode prosseguir nessa "acumulação" ad infinitum, en- dificuldades que dali decorriam, embaraçado na análise
quanto houver tinta e papel. É, diz ela, "um exercício ino- de Marx que ele com razão e clarividência considerava
fensivo, que consiste em alinhar equações matemáticas inacabada e descontínua". Ao contrário, Tugan não precisa
sobre o papel", mas que Tugan quer fazer passar por de prova alguma: como, diz Rosa Luxemburgo, as
uma prova de que as coisas se passam assim na reali- operações aritméticas se resolvem com facilidade e
dade. "A implacável realidade das coisas" não é facil- podem ser estendidas indefinidamente, ele considera esse
mente manipulada. Há flutuações constantes na troca, fato como a prova de que a acumulação capitalista pode
assim como crises periódicas. Tugan Baranovski bem sabe prosseguir ao infinito, sob reserva da proporcionalidade
que "se as crises ocorrem, é porque não se respeita a em questão, a qual é fácil, contudo, e o próprio Tugan
proporcionalidade na ampliação da produção, ou, dito de não o contestará, de estabelecer de um modo ou de
outra forma, porque no avanço não se dá obediência às outro" (pp. 268-269). (Mais tarde, voltaremos ao problema
proporções do esquema n° 2. "Se fossem respeitadas", Tugan-Bulgakov retomado por Lênin e relacionado com
continua ela, "não haveria crise e tudo se passaria na Strouve, e sua reação, que se confrontará com a de Rosa
produção capitalista tão bem quanto no papel. Mas Tu- Luxemburgo.)
gan deverá admitir que não se pode oportunamente fazer Mas retornemos ao problema do imperialismo, que
abstração das crises, tanto quanto se considere o pro- preocupava Rosa Luxemburgo e todos os, outros teóricos
cesso de reprodução em seu conjunto como um processo do marxismo. A marcha da acumulação em toda a terra,
contínuo. Pouco importa que a proporcionalidade se des- eis o problema. Quando toda essa marcha estiver com-
loque a cada instante; na média das conjunturas, graças pleta, a fase do desabamento do capitalismo estará pró-
aos desvios, às flutuações cotidianas dos preços e às cri- xima. Chega então o momento de uma explicação eco-
ses periódicas, a proporcionalidade sempre é restabele- nômica do imperialismo. Para Rosa Luxemburgo, não
cida novamente. O que prova que no conjunto ela é mais é o "que" do imperialismo que interessa, mas sim o
ou menos respeitada é o fato de que a economia capi- "porque" é inevitável (ver Nettl, op. cit., p. 531). É a his-
talista continua a existir e a se desenvolver, senão tería- tória do capitalismo que nos solta o segredo: a inter-
mos conhecido há muito tempo o caos e a ruína. Em venção do capitalismo nos diversos modos econômicos pré-
um período longo, se se considera o resultado final, a capitalistas, desde a economia natural até a economia
proporcionalidade cara a Tugan é respeitada, o que per- mercantil, desde a economia camponesa aos meios técni-

66 67
cos econômicos especializados da economia capitalista já sem significação. E sobretudo não-marxista" (Leninska
avançada, tais como o crédito internacional, a exportação Sbornik, vol. XXII, p. 346, in J. P. Nettl, op. cit., p. 533).
de capitais, a protecionismo e o militarismo, ou aquilo Para ele, em lugar de estar preocupada pela solução do
que vai formar os traços específicos do imperialismo, se- problema da mais-valia, Rosa Luxemburgo procurava
gundo Rosa Luxemburgo. "o conforto da exploração colonial", ou seja, uma ques-
Lênin leu L'accumulation du capital, em 1913, no tão moral, o que é falso e injusto, como se o que ela
mesmo ano de sua publicação, quando suas relações polí- quisesse fosse desviar a atenção do imperialismo dos
ticas com a autora eram, ao que parece, longe de satis- militantes de seu partido no país deles para ver apenas
fatórias. Em todo caso, ele manifestou-se radicalmente os negros longínquos.
contra suas idéias. Sua tese segundo a qual é impossível Numa época em que os diversos teóricos social-de-
que a reprodução ampliada prossiga numa economia fe- mocratas, como Berstein, Kausteky, Hilferding, Otto
chada e tem necessidade de engolir economias pré-capita- Bauer e outros começavam, desde o início do século, a
listas para poder simplesmente funcionar foi qualificada, distinguir as diversas formas novas do desenvolvimento
por Lênin, de "erro fundamental" (ver Nettl, op. cit., do capitalismo, inclusive os refinamentos financeiros e
p. 532). Dessa apreciação partiram todas as críticas co- bancários do sistema, e a pôr em questão as perspectivas
munistas que vieram em seguida, inclusive a de Bukharin do capitalismo, segundo os prognósticos de Marx — fun-
(Der Imperialismus una die Akkumulazion des Kapiial; damento político da social-democracia européia —, para
Under den Banner dês Manismus, 1925/1926, vol. VI). saber se se caminhava para a sua estabilização, a ate-
Aqui, como se vê, as concepções dos dois teóricos nuação das crises, uma certa melhoria relativa do nível
sobre a função do imperialismo se contrapõem. No fun- de vida dos operários, ou, ao contrário, rumo ao agrava-
do, eles partem ambos de uma época em que, sobretudo mento de suas contradições, inclusive a abertura fatal da
na Rússia, se tratava de "defender" o capitalismo como guerra, muitas interpretações começavam a preocupar os
fator de progresso, ou a velha querela dos pessimistas-- meios dirigentes marxistas, sobretudo na Alemanha, e
românticos contra os otimistas-realistas, ou seja, os po- outros economistas e professores universitários da Europa
pulistas contra os marxistas. Rosa Luxemburgo embara- e da Rússia. Em 1910, Hilferding publicava seu Das
çada no impasse do "capitalismo puro", e Lênin emba- FinanzKapital, a grande obra, hoje clássica, sobre o im-
raçado na "defesa" da política segundo a qual é pre- perialismo, cuja influência sobre Lênin foi, como se sabe,
ciso aplicar o capitalismo na Rússia como meio legítimo marcante. O pequeno livro deste, se bem que baseado
de fazer progredir a indústria, criar e desenvolver a clas- nas teorias de Hilferding, causou a grande virada que
se operária, preparar enfim os2 ingredientes necessários se conhece no estudo e na apreciação do imperialismo.
à dialética final da revolução. A fúria de Rosa Luxem- O livro de Rosa Luxemburgo em 1913 foi entretanto o
burgo ao descrever o processo feroz da penetração impe- primeiro a ocupar a ponte do combate dos marxistas
rialista nos países pobres e em curso de colonização irri- revolucionários contra o imperialismo. Sua maneira de
tava profundamente Lênin, que comenta: "A descrição abordar o tema era de uma profunda originalidade. Este
da tortura dos negros na África do Sul" (Rosa Luxem- não era uma etapa estrutural precisa do alto desenvol-
burgo falava pelo futuro!) "está cheia de ruídos e cores vimento do capitalismo, ou, como o definia Lênin, sua
"etapa superior". Na concepção de Rosa Luxemburgo,
2
ele aparecia, ao contrário, com o primeiro ato de nasci-
Ademais, nessa época tardia, já em plena guerra, as críticas últi- mento do capitalismo, pois foi lá que ela constatou de
mas de Lênin não se dirigiam necessariamente a Rosa Luxemburgo, um modo mais preciso do que todos os populistas, mes-
mas a jovens bolcheviques, seus discípulos, que ele temia fossem in-
fluenciados por ela, Bukharin em pessoa, mas sobretudo Pyatak (ver mo depois de Sismondi, a impossibilidade da realização
Nettl, p. 534). da mais-valia no interior do sistema capitalista puro ou

68 69
composto apenas de capitalistas e operários. Indo muito à escala da economia mundial". É a vez de Lênin rejei-
mais longe do que aqueles, que ficavam numa posição tar também isto.
negativa, Rosa Luxemburgo avançou até encontrar a so- "Na realidade, a objeção de Strouve eqüivale a negar
lução da operação inicial (os esquemas da produção, que a realização se produza em um Estado isolado, auto-
seção I, e do consumo, seção II) da realização da mais- suficiente, mas sim na escala da economia mundial",
valia, enfim, não mais no círculo restrito do capitalis- ou, interpreta Lênin, "com a ajuda do escoamento dos
mo, mas superando-o na economia pré-capitalista, onde produtos para outros países. Essa objeção funda-se em
toda a operação é completada. Aqui, como ela o provou, um erro", afirma Lênin. E ele se pergunta se a questão
o capitalismo vence seu primeiro impasse, mas para pros- da realização não se acha um tanto modificada pelo
seguir em seu destino. fato de que nós não nos limitamos ao mercado interior
Vejamos, agora, a posição de Lênin. Há inicialmente (o capitalismo autárquico), mas nos referimos ao mer-
que evocar duas épocas em que ele tratou do problema cado exterior? E se em lugar de tomar um país, per-
da realização da mais-valia no capitalismo fechado. Na gunta Lênin, tomamos vários? É preciso também admitir
primeira, ele escreveu sua grande obra sobre O desenvol- que não se está em presença de casos ou episódios isola-
vimento do capitalismo na Rússia (1899) (T. III das dos, excepcionais, e sim de uma certa regularidade de
exportações e importações. Chega-se, portanto, ao pro-
Obras ccmpletas); ele tratou ali, como ele próprio escre- blema do comércio e do mercado externos. Trata-se, na
ve em subtítulo, da "teoria populista sobre a impossibi- verdade, de uma questão histórica, conclui Lênin, e não
lidade de realizar a mais-valia". Toda sua atenção voltou- mais teórica, a das condições concretas do desenvolvi-
se contra os populistas russos e aqueles que foram mento do capitalismo em tal ou qual país, em tal ou qual
considerados durante algum tempo na cena russa como época. No fundo, Lênin assimila as objeções de Strouve
"marxistas legais". À sua maneira de uma vigilância a Bulgakov, às velhas querelas dos populistas "que liga-
dupla, sempre armada, em qualquer situação dada, Lênin vam a questão da realização à do mercado externo".
não perdoa a menor afirmação, seja de quem for, adver- E ele passa em seguida à questão que o ocupa há muito
sário ou amigo, que lhe pareça susceptível de desvio ou tempo: "Qual é o valor científico real da teoria da reali-
passo em falso na política que ele3 persegue. Em "A pro- zação?" Chegado a este ponto, ele mergulha sua per-
pósito da teoria da realização" ele cai em cima de gunta na categoria das teses muito gerais da teoria
Strouve a propósito da "significação dessa teoria", e a abstrata de Marx. Detém-se então nas "relações entre o
opõe a Bulgakov, que diz: "A possibilidade da ampliação ideal do capitalismo e sua realidade" e argumenta: "A
da produção capitalista realiza-se nos fatos, se bem que teoria da realização supõe uma repartição proporcional
através de uma série de crises. . . A produção capita- da produção. Este é o ideal do capitalismo, e de modo
lista cresce no mundo inteiro". Se bem que seu colega nenhum sua realidade". E explica: "O que faz o valor
do grupo dos "marxistas legais", Strouve, retifique: "A científico da teoria de Marx é que ela elucidou o pro-
ampliação real da 'produção capitalista' não se efetua de cesso da reprodução e da circulação do conjunto do ca-
modo algum no Estado capitalista ideal ou isolado que pital social. Ademais, a teoria de Marx mostrou de que
supõe M. Bulgakov e que se bastaria a si mesmo, e sim maneira se realiza a contradição própria do capitalismo,
a saber, que o enorme aumento da produção não é de
modo algum acompanhado por um aumento correspon-
3
"A propósito da teoria da realização" é o terceiro extrato de março dente do consumo nacional". Lênin extrai então sua con-
de 1899, de Lênin, e acrescentado ao t. IV de suas obras em russo, clusão política maior: "Eis porque a teoria de Marx não
Moscou, 1946, e depois ao tomo V das Obras completas de Karl Marx, apenas não restabelece a teoria apologética da burguesia
em francês, Lê capital, livro décimo, Paris, Editions Sociales,
pp. 190-194. (como Strouve imaginava), mas, ao contrário, fornece-

70 71
uma arma extremamente potente contra a apologética" que não se pode encontrar operários suplementares,
(sublinhado no original). Aqui, vê-se muito bem o cuidado Strouve elude a questão referindo-se às condições histó-
de Lênin em guardar sua posição de reserva quanto ao que ricas e práticas, por exemplo: "Não penso que Marx podia
ele chama de teoria da realização. (Nessa época, Rosa resolver essa questão histórica à base dessa construção
Luxemburgo não havia ainda surgido com sua solução inteiramente abstrata, O capitalismo autárquico é histo-
original do mesmo problema. Lênin e ela, ambos, põem-se ricamente um limite impensável. . . A intensificação do
ao lado de Marx, naturalmente, na qualidade de revolu- trabalho que se pode impor ao operário é fixada não
cionários.) Decorre dessa teoria, continua Lênin, que apenas de um modo real, mas logicamente, dentro de
mesmo (sublinhado no original) se a reprodução e a cir- limites estreitos... A elevação ininterrupta da produti-
culação do conjunto do capital social são idealmente uni- vidade do trabalho não pode atenuar a obrigação do tra-
formes, proporcionais, a contradição entre o aumento da balho..."
produção e os limites mesmos do consumo permanece "O caráter ilógico de todas essas afirmações salta
inevitável. E além disso, na realidade, o processo da rea- aos olhos", exclama Lênin. Nenhum dos adversários de
lização não se desenrola segundo uma proporcionalidade Strouve jamais proferiu esse absurdo: "resolver uma
idealmente uniforme, mas apenas em meio a "dificulda- questão histórica com a ajuda de construções abstratas".
des", oscilações, "crises", etc. 4 Acerca dessa posição, que E Lênin precisa sua crítica: "na realidade, o próprio
se poderia chamar de eclética (se isto não for uma blas- Strouve não colocou de modo algum uma questão histó-
fêmia em face do menos equivocado dos pensamentos), rica, e sim uma questão inteiramente abstrata, pura-
Lênin, munido da teoria da realização, de Marx, sente-se mente teórica, 'de uma sociedade capitalista ideal'". Não
possuidor de uma arma extremamente poderosa, não é evidente que ele elude a questão? pergunta ainda
apenas contra a apologética, mas igualmente contra a Lênin. (Contudo, não poderemos perguntar, com toda
crítica reacionária pequeno-burguesa do capitalismo, "pois timidez, se ele próprio, o mestre, não elude sua questão
é justamente esse gênero de críticas do capitalismo que ulterior?) Ele continua a se perguntar, com efeito: "Não
se esforçaram para consolidar nossos populistas, com sua é evidente... que existem múltiplas condições históri-
teoria errada da realização. A concepção marxista da cas e práticas (sem falar das contradições do capitalis-
realização, leva a reconhecer o caráter historicamente mo) que resultam ou resultarão (sic) antes na morte do
progressista do capitalismo (desenvolvimento dos meios capitalismo que na transformação do capitalismo moder-
de produção e, conseqüentemente, das forças produti- no em capitalismo ideal?" Posta a questão, é com um
vas da sociedade), sem por isso obscurecer o caráter his- ar de desdém que ele responde: "É claro, não cogito de
toricamente transitório do capitalismo, mas ao contrário negá-lo". E então, a seu modo bem leniniano, não
jogando luz sobre ele. Depois disso, ele se volta para deixando nada na sombra, ele conclui: "Mas, relativa-
Strouve, "a propósito da sociedade capitalista autárquica mente à questão puramente teórica de uma sociedade
ideal ou isolada". A reprodução ampliada é impossível aí, capitalista ideal, sou sempre de opinião de que não existe
diz ele, "pois ela não pode absolutamente pegar em parte razão teórica alguma de negar a possibilidade da repro-
alguma dos operários suplementares que são necessários dução ampliada numa tal sociedade". Esse texto é de
a4 ela". Lênin não está de acordo com essa afirmação: março de 1899, publicado na revista russa L’Observateur
'Ele não demonstrou que é impossível recrutar os operá- Scientifique, de agosto do mesmo ano. Assim, mais de dez
rios suplementares no exército de reserva". Sentindo, in- anos antes de Rosa Luxemburgo ter formulado sua idéia
siste Lênin, que é teoricamente impossível demonstrar da impossibilidade da reprodução ampliada na sociedade
capitalista isolada, Lênin dizia exatamente o contrário.
4
Em outra passagem, dessa vez extraída do próprio
Ver pp. 65 e seguintes o que diz Rosa Luxemburgo, ao discutir a O desenvolvimento do capitalismo na Rússia, ele retorna
questão em relação a Tugan Baranovski.

72 73
à questão da realização ou não da mais-valia. Aqui Lênin do capitalismo atestam seu caráter historicamente provi-
aborda a questão "no espírito dos dois populistas russos sório, jogam luz sobre as condições e as razões de sua
MM. Nikolaion e V. V.". Esses escritores explicam a ne- decomposição e de sua transformação em uma forma
cessidade do mercado exterior para uma nação capita- superior — mas elas não excluem nem a possibilidade
lista (a própria Rússia!) pelo fato de que é impossível do capitalismo, nem seu caráter progressista em relação
aos capitalistas realizar de outro modo os produtos. aos sistemas de economia social que o precederam (ex-
O mercado interior russo reduz-se, em conseqüência da certos de Lê development du capitalisme en Russie, Edi-
ruína do campesinato e da impossibilidade de realizar a tions Sociales, t. v, Oeuvres completes, p. 204).
mais-valia sem mercado externo, ou o mercado externo Ainda no mesmo extrato, por alto, p. 206, Lênin
é inacessível a um país jovem, ingressado tardiamente aborda a necessidade de um mercado exterior para um
na via do desenvolvimento capitalista: eis como, insiste país capitalista. Para os economistas populistas, a causa
Lênin, se proclama demonstrado que o capitalismo russo, dessa procura deve-se "à carência do próprio capitalis-
com fundamento em considerações a priori (e além de mo". "Muito ao contrário", replica Lênin, "essa necessi-
tudo falsas, de um ponto de vista teórico), não tem base dade mostra claramente o trabalho historicamente pro-
sólida, é um natimorto! Após longas considerações e aná- gressista do capitalismo, que destrói o isolamento, o ca-
lises sobre a insistente questão da realização da mais- ráter fechado dos sistemas econômicos de outrora (e, por
valia, sobre o problema do escoamento dos produtos no conseguinte, a estreiteza da vida intelectual e política),
exterior, sobre as contradições entre as tendências ilimi- e que reúne todos os países do mundo num só todo eco-
tadas ao crescimento da produção e ao consumo limi- nômico".
tado, inclusive a tese de Tugan Baranovski, para quem
o próprio Marx está em contradição com seus próprios
esquemas, o que leva a corrigi-los, Lênin é peremptório: O pensamento de Lênin e o de Rosa Luxemburgo
"Não há nada mais insensato do que deduzir dessas pas- concordam mas se separam em torno do conceito de
sagens do Capital que Marx não admitia a possibilidade capitalismo e, por desdobramento, do imperialismo. Lênin
de realizar a mais-valia na sociedade capitalista, que ele estava então mergulhado na análise da situação econômica
explicaria as crises por um consumo insuficiente, etc ___" russa, na qual ele demonstrava que o capitalismo não era
Lênin lembra ainda que em Marx a análise da realização mais em seu país um prognóstico, mas uma realidade
mostra que "em última análise a circulação entre capita] plena de promessas. Na época, aliás, toda a social-
constante e capital variável encontra seu limite no con- democracia russa (sob a inspiração de Plekhanov), tanto
sumo individual". Contudo, a mesma análise mostrou o quanto a alemã (sob a inspiração de Kautsky, então o
caráter verdadeiro dessa "limitação, e que os objetos de mestre incontestável de Lênin), marchava junto, ao
consumo desempenham um papel menor na formação do abrigo das mesmas perspectivas — o socialismo como
mercado interno, comparativamente aos meios de produ- fim, o desenvolvimento capitalista como base, as liber-
ção". E, finalmente, o que Lênin leva mais a peito, para dades democráticas e o Parlamento como meio. Lênin não
exprimir nesse debate, e confundir todos esses "românti- havia ainda concebido o instrumento de combate espe-
cos-populistas" e de um golpe livrar a Rússia desses cificamente russo para assestar o golpe mortal do tzaris-
(para ele) chatos: "Além disso, não há nada mais inepto mo, pois ele não havia ainda perdido a convicção de que
do que concluir da impossibilidade das contradições do o absolutismo autóctone do país se arranjaria bem com o
capitalismo, sua ausência de caráter progressista, etc.... "progressivismo" inato do capitalismo, crença generali-
É tão simplesmente afastar-se de uma realidade desagra- zada de todo o pensamento marxista e social-democrata
dável, certamente, mas indubitável, um refúgio nas altu- dominante, sem falar, bem entendido, da burguesia liberal
ras celestiais dos sonhos românticos. . . As contradições e não-liberal. Nessa mesma época os proletários, na

74 75
escola do sindicalismo britânico e da política social- A realidade específica dessas economias naturais é que
democrata alemã, começavam a ser tocados por essa elas opõem às exigências do capitalismo barreiras rígidas;
crença. E da mesma forma Lênin, em pessoa, não se e por quê? Porque elas mantêm suas instituições mais
cansava na época de pregar essa perspectiva e de pro- importantes como sua força de trabalho e a terra sujei
clamar, como já se viu, "o trabalho historicamente pro- tas aos costumes e às regras da lei. É o caso sobretudo
gressista do capitalismo, que destrói o isolamento, o ca- das comunidades camponesas ou da fazenda da corvéia
ráter fechado dos sistemas de outrora (e por conseguinte feudal. É preciso, portanto, conclui Rosa Luxemburgo,
a estreiteza da vida intelectual e política) e que reúne que o capitalismo trave sempre e em toda parte uma
todos os países do mundo em um só todo econômico". batalha de aniquilamento contra toda forma histórica
Quando Lênin escrevia isto, o capitalismo expan- de economia que ele encontre em seu caminho: a escra-
dia-se sem entraves além dos confins europeus, mas ainda vatura, o feudalismo, a comunidade camponesa patriar-
estava cercado por vastos territórios de civilização não- cal, etc __ Os principais métodos dessa luta, segundo a
européia, em diversos níveis de desenvolvimento, desde enumeração de Rosa Luxemburgo, são a força política,
as hordas primitivas de caçadores, dos coletadores e pas- o bombardeamento com as mercadorias baratas e tudo
tores, até povos de produção mercantil, camponeses e ar- isto aplicado parcimoniosamente, simultaneamente ou
tesãos. Isto compõe a vasta cena posta para a acumu- sucessivamente. Fora da Europa, onde a luta se faz contra
lação do capital. Rosa Luxemburgo distinguia três fases: as organizações sociais mais primitivas, essa ofensiva
a luta do capital contra a economia natural; a luta con- assume a forma da política colonial. Rosa Luxemburgo
tra a economia mercantil e a luta competitiva do capital as denuncia em conjunto: são os sistemas tarifários e de
no plano internacional, em busca de condições propícias relações comerciais com as comunidades primitivas, num
à acumulação. Observemos aqui duas considerações im- amálgama de poder político e de fatores econômicos que
portantes no esquema histórico de Rosa Luxemburgo: se juntam. Assim, o primeiro ato de uma operação no
a noção fundamental da expansão que caracteriza o ca- curso da qual se realiza o primeiro passo da acumulação
pitalismo não é porém uma operação econômica automá- fora da área privada capitalista é já um ato deliberado
tica, em si mesma. É função de uma necessidade exter- de natureza política. Mas um ato político deliberado é já
na, que deve ser satisfeita entre as camadas sociais não- a presença do imperialismo.
capitalistas, ali onde ele deverá encontrar um mercado Diferente pelo tom de outros economistas marxistas
para sua mais-valia, uma fonte de suplemento para seus de seu tempo, Rosa Luxemburgo não se contentou em
meios de produção e, finalmente, a força de trabalho para ficar no funcionamento abstrato dos esquemas de repro-
seu sistema de salários. Tendo em vista a realização des- dução ampliada de Marx (vol. II do Capital). Diante do
ses objetivos, nenhuma forma de produção fundada numa impasse em que se encontrou, ela decidiu submetê-los à
economia natural tem utilidade para o capital. E, reci- prova dos acontecimentos da história. Ela mesma o diz:
procamente, todas essas economias naturais, onde exis- "As premissas postuladas nos diagramas da acumulação
tem comunidades camponesas primitivas com propriedade de Marx não representam na realidade senão uma ten-
comum do solo, um sistema feudal de servidões ou qual- dência histórica do movimento da acumulação e de sua
quer coisa no gênero, nos diz Rosa Luxemburgo, a orga- conclusão lógica. O processo acumulativo visa em toda
nização econômica é essencialmente dirigida para a pro- parte substituir a economia natural pela economia mer-
cura interna, e não há portanto procura de bens estran- cantil simples. Seu objetivo final consiste em estabelecer
geiros, ou só há muito pequena. Assim como em regra a dominação exclusiva e universal da produção capita-
não há produção excedente. Essas produções naturais dis- lista em todos os países e em todos os esquemas da in-
pensam portanto as produções capitalistas. Estas, ao con- dústria". Mas é ela mesma que admite que uma tal pro-
trário, não dispensam em geral a existência daquelas. posição "não leva a parte alguma, pois tão logo esse

76 77
resultado final é obtido, pelo menos em teoria, natural- clusiva e universal da produção capitalista em todos os
mente, porque ele não poderá jamais ser alcançado, a países e em todos os ramos da indústria. Mas esse argu-
acumulação pára. A realização e a capitalização da mais- mento não leva a parte alguma, acrescenta ela, pois a
valia dão sem dúvida nascimento a essa operação, mas realização da mais-valia tornam-se impossíveis. Ora, pre-
para chegar a um impasse. E é esse o nó da questão. cisamente quando a realidade começa a corresponder ao
O capitalismo completa seu primeiro ato como capita- diagrama de Marx da reprodução ampliada o fim da
lismo no mundo: ele substitui a economia natural, na acumulação se aproxima, atinge seus limites. A produção
qual o mundo vivia pela graça de Deus, pela economia capitalista está in extremis. Chega-se aqui a um ponto
natural, na qual o mundo vivia pela graça de Deus, pela crucial da história do capitalismo, pois a suspensão da
economia mercantil, graças ao engenho do homem. Mas acumulação significa que o desenvolvimento das forças
o que se passa então, na realidade? O capital não pára. produtivas se interrompe e que o desabamento do capi-
Ele toma o lugar da economia mercantil simples e então talismo vai ocorrer, inevitavelmente, como uma necessi-
se verifica que essa criação do bom Deus, que levou tantos dade histórica objetiva. E Rosa Luxemburgo, aqui, com
anos a construí-la, vai ser remodelada. A extinção dessas uma soberba coerência, deduz: "eis a razão do comporta-
velhas organizações não-capitalistas deixa ao capitalismo mento contraditório do capitalismo, na fase final de sua
um solo fértil e instrumentos passivos de trabalho. A carreira: o imperialismo" (cap. 29, La lutte contre l'eco-
realização da mais-valia passa, finalmente, para o nomie paysanne, pp. 416-417). O impasse, digamos orgâ-
capitalismo, que efetua assim seu segundo ato como tal; nico, do capitalismo é superado pelo imperialismo que,
ele ocupa e arruína. Ou, como diz Rosa Luxemburgo, "mais desde então, como a continuação do modo capitalista,
estritamente, o capital se alimenta das ruínas de tais o transforma num empreendimento tanto político quanto
organizações e, se bem que esse meio não-capitalista seja econômico. Essa amálgama da economia e da política é
indispensável para a acumulação, esta última ocorre às manipulada pelo Estado, ou, antes, é o Estado em sua
expensas desse meio, e acaba por engoli-lo". Mais que um total integridade.
marxista, só um revolucionário do porte de Rosa
Luxemburgo poderia apanhar o fenômeno da acumulação
nessa profundeza da história social e política: "Histori-
camente, a acumulação do capital é uma espécie de meta-
bolismo entre a economia capitalista e os métodos pré-
capitalistas de produção, sem os quais ela não poderia
funcionar e que ela corrói e assimila. Assim, o capital
não pode acumular sem a ajuda de organizações não-
capitalistas, mas nem tampouco pode ele tolerar sua
existência contínua ao lado dele. Só a desintegração con-
tínua e progressiva das organizações não-capitalistas torna
possível a acumulação do capital".
Depois de partir das premissas do diagrama de Marx
e ter atravessado os impasses, ela define seu papel como
representando "a tendência histórica do movimento da
acumulação e sua conclusão lógica". O processo acumu-
lativo é um esforço permanente e generalizado para
substituir a economia natural pela economia mercantil
simples. Seu objetivo final é estabelecer a dominação ex-
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tura que o possa mascarar, etc. — Esse traço, digamos,
de neutralidade política ou antes de indiferença, comum
a toda manifestação imperialista, pode mesmo ser consi-
VIII derado como uma herança dos velhos tempos, e se en-
contra ao mesmo tempo entre os fenômenos das multi-
nacionais de nossos dias. Veja-se o caso Ludwig, um dos
inharões mais esplêndidos da fauna americana; um dia
A Máfia Que Sobrevive (muito recente) ele comprou uma pequena firma local,
"Jari Comércio e Navegação", ao norte do Estado do Pará
dirasil), e começou uma operação que atualmente adqui-
riu "as proporções de um monopólio, de uma empresa
multinacional".1
Quando Rosa Luxemburgo escreveu sua obra, ela de-
terminava: " . . . a construção das estradas de ferro na
Ásia e na África há cerca de 20 anos serve exclusivamente
M.OS objetivos da política imperialista"; é a propósito des-
sas regiões longínquas dos continentes selvagens do mun-
do que ela falou da "monopolização econômica e da do-
minação política das regiões atrasadas do capitalismo".
Diferentemente de todos os outros teóricos do impe- Assim, à parte a fase provincial do primeiro capita-
rialismo, a partir de 1910, quando Hilferding publicou lismo, que por assim dizer ainda pescava com linha a
sua obra-mestra, Das FinanzKapital, Rosa Luxemburgo mais-valia, não propriamente no país atrasado, mas no
aborda o fenômeno imperialista como algo de uma pene- país vizinho, a ação imperialista age diferentemente, e
tração muito fecunda. "A fase imperialista da acumu- sobretudo com outros meios. No fundo, está-se aqui em,
lação. .. é a da industrialização e da emancipação capi- presença ou quase de uma reação essencial do capitalis-
talista das regiões atrasadas, às custas das quais o capital mo, o mercado mundial. Ele faz parte do conceito mes-
realizava até então sua mais-valia." É "a fase da con- mo do capital. O pensamento de Rosa Luxemburgo que
corrência mundial do capital". Distingue-se um traço sin- freqüentemente desce até às profundezas na pesquisa do
gular dessa ampla definição, ou melhor, da ação impe- imperialismo, nos leva facilmente aos embasamentos ele-
rialista. Esta empreende não apenas a industrialização, mentares de onde saem as grandes descobertas de Marx.
mas também a emancipação capitalista, e não apenas na A força produtiva sendo duplicada, raciocina Marx, basta
parte metropolitana do país, mas também nas regiões um capital de 50 onde anteriormente era necessário um
atrasadas. E é indiferente que a ação imperialista se faça capital de 100, a fim de que um capital de 50 e o tra-
antes que o país central tenha inaugurado o processo balho necessário correspondente sejam liberados, para os
constante de sua mais-valia, ou depois. O importante é quais é preciso então criar um novo ramo de produção
que a ação imperialista na etapa seguinte proceda à in- qualitativamente diferente, que suscite e satisfaça novas
dustrialização e seja mesmo tomada por uma certa inde- necessidades. E então, esse brilhante ponto de partida de
finição ideológico-emancipadora do próprio capital. Às uma estrutura nova que, precede tanto o conceito de ca-
vezes detém-se em face da região atrasada do país. O capital pitalismo quanto o de imperialismo, permite que o valor
imperialista penetra na retaguarda, realiza ali sua mais-
valia sem tomar conhecimento de nenhuma estru- 1
Multinationals and Brazil — Brazilian Studies — Latin American
Research Unit, Marcos Arruda, p. 163 — Toronto-Ontario, Canada.
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da antiga indústria seja conservado, desde que se crie a Novo Mundo, embaraçados pelas querelas domésticas
base de uma indústria nova, onde a relação entre capital de .seus pequenos reis, de nomes pitorescos e preocupa-
e trabalho seja ela própria renovada. E é com toda faci- ções sórdidas, e abandonados às suas irremediáveis mani-
lidade que aqui se ajusta bem essa vasta generalização festações de provincianismos, à sua sorte, seus colegas e
marxiana: exploração de toda a natureza em busca de parentes ibéricos, ricos em ouro e pobres em indústria.
novas propriedades úteis das coisas; troca universal Mas, devemos repetir, a Oeste, em torno dos Estados Unidos,
de produtos oriundos de todos os climas e países estran- à medida que crescia quase a todo vapor o muito novo
geiros; tratamentos novos (artificiais) dos recursos natu- núcleo capitalista americano, engrossava também
rais, para conferir-lhes novos valores de uso; exploração paralelamente sua casca imperial, mergulhada no Caribe
da terra de um extremo a outro, pesquisa de novos ele- e no golfo do México. A propósito, Engels, em sua carta
mentos úteis, inovações aplicáveis à utilização de matérias- de 1893 a Danielson, que já citamos, a respeito do desen-
primas conhecidas" etc. Portanto, na primeira fase volvimento do capitalismo na Rússia, descreve de modo
imperialista, a missão histórica consistia em ir atrás das lapidar a diferença entre o capitalismo que se tenta in-
velhas capitais monárquicas e seculares para atingir os troduzir nos confins russo-asiáticos do lado da Europa
hinterlands do capitalismo. Era então a Rússia, a Ásia, e o capitalismo do além-Atlântico: "Ele (Strouve) pre-
o Extremo-Oriente, a Manchúria, a África, a Turquia, o tende que os efeitos desagradáveis do capitalismo moderno
Irã, a Síria, o Egito, etc. ... A África do Sul, que já foi serão tão facilmente superados na Rússia quanto nos
um cenário de retaguarda do capitalismo na época dos Estados Unidos. Mas ele esquece então completamente
bôer s e dos pigmeus, retorna hoje a esse estágio graças que os Estados Unidos nasceram modernos e burgueses,
à rebelião generalizada das colônias portuguesas, que tendo sido fundados por pequeno-burgueses e camponeses
abriu o último país imperial: pobre por dentro e deixou que fugiam do feudalismo europeu para construir além-
a podridão branca finalmente se mostrar ao sol mundial. Atlântico, uma sociedade puramente burguesa" (Cartas
E há ainda a Indonésia, as Celebes, Singapura, e a Ama- Danielson, pp. 7-11, 1893). O contraste marcado por Engels
zônia (que tem para tanto vastas dimensões e recursos tornou-se vivo e significativo até nossos dias, política e
ainda largamente inexplorados), que estão em vias de se culturalmente.
tornarem futuras regiões de retaguarda. O fenômeno im- De 1900 a 1910, o jovem capitalismo prosseguia sua
perial foi e é por essência um fenômeno mundial, pois marcha em pequenos passos, substituindo pela produção
inclusive precedeu o capitalismo, ele próprio empurrado mercantil, e já capitalista, a produção camponesa. Mas
pela necessidade de expansão, pelo menos continental- não se pode ter ilusões. A passagem dessas economias
mente. A Europa torna-se sem demora o testemunho na- que se sucedem, a partir da economia natural, agrava-se
tural desse avanço imperial. Sua extremidade oriental em uma série de crises políticas, até a guerra ou a re-
passa pela Rússia tzarista e avança sobre o Cáucaso, voluções. Estas são no fundo essenciais no processo de
a Turquia e, com as outras potências continentais, pros- transformação, que provoca mudança e torna as organi-
segue pela Pérsia, índia, Japão, China e depois para a zações políticas cada vez mais obsoletas. As réplicas de
África do Norte. A Inglaterra tem então uma forma ex- uma economia mercantil são substituídas por uma ma-
clusiva de presidir a caravana. Os que fixaram suas vistas quinaria adaptada aos objetivos da produção capitalista.
para as aberturas ilimitadas no tempo e no espaço eurá- Todos esses países, uns após outros, são jogados nas
sicos e desviaram os olhos de todo o resto do mundo, contradições de um novo regime econômico em expansão
provavelmente cometeram um erro irreparável, ao querer e de aspirações populares e nacionais contagiosas. A re-
refutar a história. Eles puderam cometer seus erros de volução está na ordem do dia, em toda parte. Nomeando,
perspectivas históricas à medida que esses velhos Estados por exemplo, a Turquia, a Rússia, a China, Rosa Luxem-
do sul da Europa traíram seu destino latino em face do burgo distingue-as lucidamente em suas engrenagens

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onde a economia e a política são inextrincavelmente mis- podido ser sacudidos por esse traço brilhante de revolu-
turadas. Suas formações sociais, tão diferentes e seme- ção permanente. (No que concerne à revolução russa,
lhantes ao mesmo tempo, estão envolvidas num processo á intuição de Rosa Luxemburgo foi a confirmação dos
inexorável pelo peso das reformas econômicas e militares fatos, mas no que concerne à revolução chinesa o golpe
onde elas entraram. de intuição teve o sentido de uma profecia.) A guerra,
O empréstimo internacional é aí o mestre soberano. escreveu ela brilhantemente, é geralmente o meio pelo
Atrás dele e estreitamente associada vem a construção qual um jovem Estado capitalista sacode a tutela do an-
das estradas de ferro, e ainda os armamentos, ingredientes tigo Estado, o batismo de fogo e a colocação à prova da
inseparáveis de um novo Estado; no contato com as independência capitalista de um Estado moderno. Os fa-
economias camponesas e primitivas tudo isto age direta- tores econômicos misturam-se aos fatores políticos e mi-
mente sobre todo o país e abala o aparelho de Estado, litares, provocam e freiam ao mesmo tempo as forças
ainda puramente feudal. Aqui nascem os primeiros movi- revolucionárias. As reformas militares e financeiras são
mentos que vão quebrar as formas tão atrasadas de Es- invariavelmente entrelaçadas na luta pela independência
tado, já inadaptável às exigências da produção capita- econômica. O movimento dos capitais, muito ativo nessa
lista. No caos dos acontecimentos políticos e econômicos época, corresponde muito bem ao desenvolvimento da
que sacodem esses velhos países em sua transformação rede ferroviária. O crescimento ininterrupto das estradas
importada pela penetração do capital, Rosa Luxemburgo de ferro, que nasce em 1840 na Europa, prossegue na dé-
acaba por fazer distinções de formas e de estruturas de cada seguinte na América até 1910, quando todos os con-
natureza revolucionária que se anunciam na Rússia, na tinentes já estão tocados: a Ásia em 1860, a Austrália
Turquia, na China, etc. — Não há um só desses países em 1870-1880 e a África em 1890. (Rosa Luxemburgo,
cujo processo revolucionário se repita em seu desenvolvi- op. cit., p. 93).
mento, um em relação ao outro, se bem que, em relação
à Rússia e à China, se possam encontrar, e Rosa Luxem-
burgo verificou isto em sua análise, traços muito impor- O agente principal desse desenvolvimento econômico
tantes em comum. Também os objetivos políticos da mundial seria impensável, tornemos a dizê-lo, sem o cré-
dominação capitalista que se começa a discernir em con- dito internacional, traço que marca a entrada sistemá-
junto com a corrente revolucionária do país, seja na tica em cena do imperialismo. Os empréstimos públicos
Rússia, seja na China, em plena dissolução, não predo- exercem um controle determinante em todo esse processo
mina sobre outras correntes que ali surgem imediata- de desenvolvimento capitalista que atravessa as fronteiras
mente e mesmo provisoriamente acima e ao lado de ou- dos Estados e dos não-Estados, ou colônias. É portanto,
tras exigências e motivos. Com efeito, os mais diversos então, o fator decisivo da acumulação do capital, em
antagonismos também estão presentes ali e se fazem todas as etapas: introdução da economia mercantil, in-
notar, provenientes de relações pré-capitalistas antigas e dustrialização do país, transformação revolucionária da
fortemente enraizadas. Ao mesmo tempo contradições agricultura, emancipação dos jovens Estados capitalistas.
completamente novas surgem e tornam-se susceptíveis já O empréstimo internacional é também decisivo na famosa
de projetar as sombras mais grossas sobre os vaticínios questão da realização da mais-valia, que tanto obcecava
otimistas de um futuro de hegemonia capitalista. São Lênin e outros teóricos marxistas, ou quase. A função
essas contradições que condicionam sua profundidade e do empréstimo não se limita à construção de grandes
seu impulso poderoso, mas entravam e perturbam ao mes- obras. Ele detalha entre outras funções no interior da
mo tempo a limpidez de seus cursos. Rosa Luxemburgo mecânica do empréstimo. Converte a moeda dos grupos
escreveu isto em 1913, num momento em que bem poucos não-capitalistas em capital, ou seja, da moeda como equi-
eram os que, observando a revolução na Rússia, teriam valente de mercadorias (poupança das classes médias in-

84 85
feriores) e como um fundo de consumo para os parasitas que conclui — a construção ferroviária e os emprésti-
da classe capitalista. Como sabemos, a transferência de mos necessários só serviram, sobretudo, para abrir a eco-
renda-capital não é uma prática recente. Seguindo uma nomia natural e difundir a economia mercantil. Com
longa corrente histórica que nunca se interrompeu, os efeito, naqueles anos, foi o caso dos empréstimos para
capitais que no século XIX se concentravam nos bancos as linhas ferroviárias russas. Entretanto, se as estradas
ingleses provenientes dos velhos centros financeiros das de ferro americanas foram feitas ainda com o capital
cidades nobres italianas e holandesas, fazendo-se cada vez europeu, esse mesmo capital, cerca de vinte anos depois,
mais móveis, voam de Londres para as Américas e para se dirigia para a Ásia e a África com as mesmas finali-
a Austrália, enquanto a Bélgica, a França e a Alemanha dades e não visava no fundo senão à aparência, pois as
já reuniram dinheiro suficiente para revivificar a Rússia construções eram sobretudo políticas: tratava-se de um
dos tzares. Mas em 1912 é a Alemanha que começava monopólio imperialista; o objetivo profundo e permanente
a regar a Turquia, e depois com a França e a Inglaterra é de subordinar a seus interesses econômicos gerais as
é também a vez da China. Rosa Luxemburgo chama a comunidades atrasadas. No que concerne à construção
isto "a era imperialista", ou seja, a época em que o em- ferroviária russa na Ásia Oriental, é sabido que a Rússia
préstimo externo se torna um poderoso meio de aquisi- empreendeu-a para a ocupação militar da Manchúria.
ção da independência de um jovem Estado capitalista, Com os mesmos objetivos, a Rússia obtém concessões fer-
mas, em compensação, por suas contradições mesmas, ele roviárias na Pérsia, enquanto a Alemanha obtém con-
vai determinar o futuro desses mesmos Estados e as for- cessões semelhantes na Ásia Menor e na Mesopotâmia,.
mas cada vez mais características dos monopólios impe- e a Inglaterra e ainda a Alemanha na África.
rialistas que abrem caminho ao seu desenvolvimento. O empréstimo internacional, mesmo o mais moderno,
Assim, os empréstimos externos são indispensáveis à ex- é o único método imperialista que é ligado a uma certa
pansão dos Estados capitalistas em progressão, mas são tradição capitalista dos velhos tempos. O usuário é um
todavia os laços mais sólidos através dos quais os velhos personagem nobre por seus vínculos pessoais, quase ínti-
Estados capitalistas mantêm sua influência, exercendo mos e efetivos, com as casas reais e os segredos de Es-
o controle financeiro e uma suficiente pressão sobre a tado. As grandes obras públicas de dimensão nacional
alfândega, a política comercial e exterior dos jovens Es- jamais dispensaram o aporte de dinheiro emprestado, di-
tados capitalistas; em suma, toda essa prática arquiconhe- gamos, em escudos, que se transforma em capital produ-
cida do imperialismo do século xix, de que a Inglaterra tivo. Ó capital nasce, como se sabe, quando as condições
detinha quase o monopólio. Os conflitos inerentes ao sis- que tornam possível a acumulação estão presentes, e o
tema de empréstimos internacionais constituem um exem- imperialismo toma a dianteira, arma-se e se põe literal-
plo clássico no tempo e no espaço das divergências entre mente sobre as rodas que a revolução industrial lhe em-
as condições da realização da mais-valia e da capitali- prestou. A alma de tudo isto é, cada vez mais, a mobili-
zação resultante. Enquanto a realização da mais-valia zação do dinheiro por empréstimo do Estado. Aqui, há
requer somente a difusão geral da produção mercantil, um casamento excepcional entre o capital que sai à pro-
sua capitalização requer que ela supere progressivamente cura da fecundidade produtiva, por meio de empresas do
a simples produção mercantil em direção à economia Estado — construção de estradas de ferro, de estradas
capitalista, ficando subentendido naturalmente que tanto de rodagem e de instalações militares —, e, finalmente,
os limites da realização quanto os da capitalização ten- o capital dos velhos capitalistas é dirigido para os países
dem a se estender. O emprego do capital internacional jovens. Esses sistemas de empréstimos não são apenas
na construção de uma rede ferroviária é o reflexo mesmo indispensáveis à emancipação dos jovens Estados capita-
dessa disparidade. Que isto seja verdade, a história nos listas, mas, ao mesmo tempo, eles vêm oferecer a esses
mostra: perto dos anos sessenta — é Rosa Luxemburgo velhos países a oportunidade que eles não desdenharão

86 87
jamais de ajudar, pois encontrarão ali os meios mais se-
guros de ter esses jovens Estados sob tutela. É apenas
um passo, aliás rapidamente dado, pois por essa tutela de
sabor ainda patriarcal (a tutela inglesa sobre os jovens IX
países da América do Sul, no curso do século XIX)
o velho Estado assume o controle total de suas finanças,
suas atividades comerciais e alfandegárias, e mesmo de
suas fontes de rendas e de impostos, enfim, esses alam-
biques e aparelhos complicados onde os investimentos e
"Comércio Singular"
as rendas de todo tipo são submetidos a operações cheias e América Latina
de desvios, mas que se realizam sem todavia deixar os
imperialistas com excedentes sem colocação. No fundo,
não há muito o de que se surpreender se, apesar das
objeções teóricas sérias de Rosa Luxemburgo, não ocorre
um momento de desabamento total do capitalismo. Este
é cada vez mais uma conspiração, cuja essência, de natu-
reza oligopólica, o faz agir como uma máfia. As preten-
siosas leis do capitalismo existem, mas não são muito
obedecidas. São sempre a astúcia e a força imperiais que
atuam.
Na primeira grande abertura imperialista do capital,
com os empréstimos internacionais e grandes obras públi-
cas como as estradas de ferro, que são implantadas em
quase todo o mundo, um outro capítulo se abre, colocan-
do na ordem do dia aquela parte pré-capitalista que a
história dos tempos praticamente havia deixado de lado.
É uma hora decisiva para o futuro do capitalismo no
mundo, uma série de jovens Estados que nascem no meio
de nações soberanas, em geral como embriões de capita-
lismo. Seu primeiro gesto é quase sempre o de pedir di-
nheiro às potências que até então eram investidoras.
É assim que perto dos anos vinte do século passado
Londres estava cheia de títulos e de ações dos países
muito jovens chegados à independência na América do
Sul. Única ou quase única herdeira de Napoleão, a Ingla-
terra tornou-se o deus ex-machina de um mundo em
convulsões. É ela, com efeito, que defendeu, contra seus
aliados da Santa Aliança, a independência de todas essas
jovens repúblicas latino-americanas (à exceção do Brasil,
que ao contrário se proclamou império, sob Pedro, o prín-

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cipe-herdeiro da casa real portuguesa, e já no lugar do problema que o impressionou particularmente, pela sua
pai, que correu para retomar a coroa em Lisboa, a qual novidade e pela novidade dos clientes que figuravam no
no entanto o aborrecia profundamente, e fora abando- comércio inglês. Quem é essa gente?, pergunta-se ele
nada por ele em toda velocidade às tropas invasoras de muito intrigado. "Onde foi que os povos da América do
Junot, mais de uma dezena de anos antes). E ela ainda Sul encontraram os meios de comprar em 1825 duas ve-
presidiu os atos de independência negociados entre as co- zes mais mercadorias do que em 1821?" E ele próprio res-
lônias e as velhas monarquias ibéricas; assegurou o regi- ponde: "Os próprios ingleses forneceram os meios. Os
me de novas dívidas contraídas pelos jovens Estados não empréstimos flutuando no stock cxchange de Londres ser-
apenas em face das velhas metrópoles, mas sobretudo viam de pagamento para os bens importados. Decepcio-
em face dela própria. A supermetrópole, pois era preci- nados pela procura que eles próprios criaram, os proprie-
samente na Inglaterra que esses jovens Estados iam pro- tários das fábricas inglesas acabaram compreendendo,
curar o dinheiro de que tinham tanta necessidade para por sua própria experiência, que suas altas perspectivas
sua nova vida de Estados autônomos. Um índice reve- eram exageradas". Rosa, que o cita,2 faz um comentário
lador da situação é que o stock exchange de Londres es- muito pertinente: Tugan caracteriza como um fenômeno
tava cheio de papéis de empréstimos no valor de mais econômico "anormal" o fato de que a procura sul-ameri-
de 20 milhões de libras esterlinas.1 Em seqüência a todos cana de bens ingleses foi comprada pelo capital inglês.
esses negócios, e sem demora, novos mercados latino- Tugan faz sua, embora sem espírito crítico, a doutrina
americanos abriram-se subitamente às exportações in- de um especialista com o qual ele não gostaria de ter
glesas. Para se ter uma idéia, veja-se o fato de que essas outras teorias em comum. Com efeito, trata-se do próprio
exportações elevavam-se em 1821 a £ 6.400.000. Apesar da Sismondi, que já durante a crise inglesa de 1825 expli-
incidência de crises numerosas (como em 1818), a po- cava-lhe porque ele chamava de "singular" o desenvolvi-
tência imperial rompe todos os obstáculos; ela não comete mento das relações entre o capital inglês e a procura sul-
erros; e nesse intenso momento de mudança histórica, americana. Sismondi em Nouveaux príncipes, segunda
através de todas as operações em que ela consente em edição, dá uma descrição muito exata desses aconte-
tomar parte, a Inglaterra jamais perde no final. Ela cimentos. "A abertura do imenso mercado da América
ganha sempre contra os países muito jovens e também espanhola aos produtores industriais veio oferecer uma
contra os muito velhos, pois ela é então a senhora da excelente oportunidade para a manufatura britânica.
situação mundial. Se as crises não faltam, se aparecem O governo britânico estava de acordo com essa idéia, e
regularmente, elas também passam não menos regular- nos sete anos que se seguiram à crise de 1818 ele de-
mente, pois novos mercados abrem-se sempre e não se senvolveu uma incrível atividade a fim de fazer penetrar
esgotam muito facilmente, enquanto as situações novas o comércio inglês nas regiões mais longínquas do Mé-
aparecem a todo momento, por acaso ou por conquista, xico, da Colômbia, do Brasil, do Rio da Prata, do Chile,
por embuste ou pela força, e às vezes por pura sorte, do Peru. Já antes do reconhecimento desses Estados, o
se se prefere, pois os privilégios se criam, monopólios governo inglês teve que, conforme já vimos, quase travar
começam a se cristalizar, oportunidades em acumulação uma batalha para defender o comércio inglês, com re-
surgem sem que fossem esperadas. curso freqüente aos navios de guerra, cujos capitães,
Tugan Baranovski, estudando as práticas comerciais sublinha Sismondi, tinham missões antes diplomáticas
de câmbio da época, teve sua atenção chamada para um que militares. A Inglaterra faz ouvidos moucos à Santa
Aliança e reconhecerá os Estados latino-americanos quan-
2
1 Tugan Baranovski, Studien zur Theorie und Geschichte der Han-
Ver Tugan Baranovski, Studien zur Theorie una, Geschichte der delskrisen, in Rosa Luxemburgo, Accumulation du capital.
Handelskrisen, in Accumulation du capital, de Rosa Luxemburgo.
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90
do toda a Europa, ao contrário, conspirará contra eles. se passa regularmente antes de cada crise. E ela se serve
Contudo, por grande que fosse a procura da América do testemunho de seu adversário, o próprio Tugan Ba-
mestiça, essa procura não seria de porte bastante para ranovski: A causa imediata da crise de 1836 foi a satu-
absorver todos os bens que a Inglaterra produzia acima ração do mercado americano pelos produtos ingleses, fi-
e além dos bens de consumo, se seus meios de comprar nanciados de novo pelo dinheiro britânico. Em 1834, as
produtos ingleses não tivessem sido aumentados além de importações de mercadorias dos Estados Unidos excedia
todo limite pelos empréstimos que a própria Inglaterra us exportações em seis milhões de dólares, mas ao mes-
concedia às novas nações. Cada Estado americano tomou mo tempo a importação de metais preciosos superava as
empréstimos à velha metrópole em quantidade suficiente exportações em cerca de 16 milhões de dólares.
para consolidar seu governo. Se bem que se tratasse de Ora, toda essa entrada de dinheiro, não menos do
empréstimos de capital, eles eram gastos imediatamente que um fluxo de bens, veio principalmente da Inglaterra,
no curso do ano como renda, o que quer dizer que eram onde todas as estradas de ferro dos Estados Unidos eram
empregados totalmente para comprar bens ingleses, em compradas. Em 1835-1836, viu-se nos Estados Unidos a
nome do Tesouro, ou para pagar o que havia sido reme- abertura de 61 bancos com um capital de 52 milhões de
tido por encomenda privada. Ao mesmo tempo, numero- dólares, de origem principalmente inglesa. De novo, a In-
sas companhias com imensos capitais formavam-se para glaterra pagava suas próprias exportações. O boom indus-
a exploração de todas as minas americanas, mas todo o trial sem precedente dos Estados do Norte dos Estados
dinheiro que elas gastam reencontra o caminho da In- Unidos, conduzindo possivelmente à guerra civil, foi com
glaterra, seja para pagar a maquinaria usada imediata- toda probabilidade financiado pelo capital inglês, que de
mente, seja para os bens enviados às localidades onde eles novo criava um mercado de expansão para a indústria
devem funcionar. Enquanto durou esse 'comércio sin- inglesa nos Estados Unidos. Em meados do século pas-
gular', no qual os ingleses apenas pediam aos america- sado, os capitais europeus começaram a participar desse
nos para serem bastante gentis e comprar mercadorias "comércio singular". Várias bolsas da Europa estavam
britânicas com capital inglês, e consumi-las por elas mes- então repletas de papéis americanos, de um valor de
mas, a prosperidade da manufatura inglesa parecia ra- £m. 100 (Schaeffle, p. 424). Em 1857, um movimento
diosa. Não era tanto a renda, mas o capital britânico de modernização industrial atinge tais dimensões que
que era posto em função para promover o consumo: os dele resultou um crash mundial.
próprios ingleses compravam e pagavam seus produtos O capital britânico avança para as índias Britânicas,
mandados à América, e com isto eles não fazem senão na construção de vias permanentes que passam, de 1860
ceder-lhes o prazer de usar seus bens." A longa passagem a 1890, de 844 milhas a 16.875. A procura de produtos
de Sismondi serve a Rosa Luxemburgo para mostrar os ingleses cresce igualmente. Quando a Guerra da Seces-
verdadeiros limites do mercado capitalista, que são marca- são chega ao fim, o capital inglês se volta para a União
dos pela renda, ou seja, apenas o consumo pessoal (op. Americana. E de novo é ele que distribui suas virtudes
cit, p. 95). Depois de Sismondi, esse "comércio singular" na maior parte das vastas construções ferroviárias dos
tornou-se com a prática uma rotina viva no capitalismo Estados Unidos: em 1870, 53.272 milhas; em 1890, 179.005.
muito refinado de nossos dias. E, vai-se ver mais adiante, Os materiais necessários a essas construções vinham, é
nas primeiras décadas de nosso século, os Estados Unidos claro, das Ilhas Britânicas, e aí esteve uma das causas
seguem, a seu modo, ou sei a, a seu grande modo, uma do rápido crescimento da indústria do carvão inglesa
forma desse comércio singular inaugurado pela Inglaterra c de suas indústrias do ferro. Por reflexo, sucessivas crises
no começo de seu século, com nossos povos ainda americanas afetaram seriamente as próprias indústrias
"primários" da América Latina. Rosa Luxemburgo co- britânicas. O que Sismondi encarava como uma loucura
menta: Particularmente na história do capital inglês, isto evidente se realizou. Esse exemplo: Com seus próprios ma-

92 93
teriais, seu próprio ferro, etc. ... os ingleses construíram com a associação dos capitais não-ingleses, como o ale-
estradas de ferro nos Estados Unidos, pagando-as com seu mão, o francês, o belga, ao capital britânico em investi-
próprio capital e simplesmente abandonando-as. Apesar de mentos no exterior. Se as construções ferroviárias per-
todas as crises periódicas, o capital europeu adquiriu um maneceram sobretudo a cargo dos capitais ingleses dos
tal gosto por essa loucura que a Bolsa de Londres foi anos cinqüenta aos anos oitenta, a partir dessa data o
tomada por uma verdadeira epidemia de empréstimos ex- capital alemão toma o lugar do inglês. Assumindo o pro-
ternos em meados dos anos setenta. Entre 1870 e 1885, os jeto ferroviário de Anatólia, na Ásia Menor, o capital
empréstimos dessa espécie foram contratados em Londres alemão é investido também na Turquia e provoca o au-
num valor de 260 milhões de libras esterlinas. A conse- mento das exportações de bens alemães. Como para o
qüência imediata foi um rápido aumento das exportações caso inglês, o capital alemão pagava grande parte dos
de além-mar de mercadorias inglesas. bens alemães importados pela Turquia: "contentava-se"
Se bem que na época os países estrangeiros em questão assim, segundo a expressão de Sismondi, "com o prazer"
se encontrassem periodicamente em bancarrota, os capitais de deixar aos devedores o uso de seus próprios bens.
em massa continuavam assim mesmo a afluir em direção A febre de empréstimos que reinava nos velhos capi-
deles. Traço da singularidade dos tempos, a grande maioria talismos europeus, ainda perto do fim do século, essa
dos países latino-americanos, do México à Bolívia, e depois febre acabou por atravessar o Atlântico e pegar no mais
ainda a Turquia, a Grécia, o Egito, estavam em regime de novo, o mais moderno dos capitalismos, o americano.
completa ou parcial suspensão dos pagamentos de juros. Absorvido pelas condições ideais de seu nascimento, o ca-
Contudo, perto do fim dos anos setenta, a febre de pitalismo americano não olhava para fora de suas fron-
empréstimos aos Estados de além-mar recomeçava; os teiras imensas. Um pioneiro autêntico das primeiras in-
Estados sul-americanos e as colônias africanas do sul cursões capitalistas de seu país no estrangeiro, o enge-
absorviam imensas quantidades de capital europeu. Só a nheiro Fred Lavis, que deixou um livro do maior inte-
República Argentina tomava em empréstimo em 1874 resse histórico, escreve, às vésperas da Segunda Guerra
perto de dez milhões de libras esterlinas, mas em 1880 suas Mundial: "Naqueles dias, estávamos de tal modo ocupa-
responsabilidades elevavam-se já a £ 59 milhões. Como dos com nosso próprio desenvolvimento que dávamos
era então seu papel (e como será no futuro o papel muito pouca atenção ao comércio exterior, aos negócios
dos Estados Unidos), a Inglaterra construía por toda externos ou às relações exteriores, e nenhuma a investi-
parte estradas de ferro com seu próprio ferro e seu próprio mentos no exterior. E isto continuou assim até tão tarde
carvão, e pagava com seu próprio capital. (Em tudo e quanto 1915" (Fred Lavis, The economic defense of the
por tudo, a Inglaterra do capitalismo do século XIX era Western hemisphere). Cinco anos mais tarde, porém, esse
a precursora dos Estados Unidos do capitalismo do mesmo Lavis, como modesto investidor dos velhos tem-
século XX). Mas de qualquer maneira as exportações pos, se queixava, escandalizado, de que os Estados Unidos,
inglesas não paravam, sobretudo de ferro, de maquinaria furiosamente em luta pela conquista de mercados da
e de carvão. Ao mesmo tempo, os capitais ingleses pros- América do Sul, até então caça reservada para capitais
seguiam seu movimento de penetração por toda parte, europeus, sobretudo ingleses e depois alemães, haviam
e ainda sob a forma de empréstimos de Estado eles che- literalmente inundado de dólares toda a região. O que
gavam à longínqua Austrália, e perto do final dos anos aconteceu, nesse entretempo? Muito simplesmente que o
1880 esses capitais elevavam-se a 112 milhões de libras, Congresso, em Washington, votou uma "lei para pro-
das quais 81 milhões destinadas à construção ferroviária, mulgar o comércio exterior e outros objetivos", a lei Webb-
nas três colônias de Victória, da Nova Gales do Sul e da Pomerane, em 1918. Esta lei tornou-se a chave da política
Tasmânia. Aqui a Inglaterra fornecia ao mesmo tempo americana para o comércio exterior. Com ela os Estados
o capital e os materiais de construção. O século termina Unidos inauguraram uma verdadeira política de

94 95
investimentos no estrangeiro. E as práticas do "comércio ainda menos do que o investimento europeu nos Estados
singular" (anglo-latino-americano) tomaram então ares Unidos; na ocasião, os banqueiros americanos mostra-
verdadeiramente americanos. O relatório da Comissão do vam pouco interesse por investimentos no exterior" (Ben-
Congresso que a preparou a definiu assim: "Uma legisla- jamin H. William, Foreign policy of the United States,
ção que dá aos fabricantes e produtores americanos ao Nova York, 1917). Lavis retoma sua narração. Mas em
menos a possibilidade de conservar o terreno, na luta muito pouco tempo eis que "nos atropelamos uns aos
comercial feroz (sic) que parece iminente, no final da outros, numa competição para dar dinheiro quase sem
guerra". Redigida quase em termos de um marxismo orto- garantia". Era uma "espécie de estranha generosidade",
doxo, o relatório fala de uma "carta econômica do mundo pois "o empréstimo não tinha o menor sentido de coope-
em curso de reelaboração" (sic). É impossível que os ração ou de desejo de ser construtivo na criação de ri-
relatores tenham lido Lênin, uma vez que em seu Impe- quezas". Graças à campanha anterior do "Empréstimo
rialismo; etapa suprema do capitalismo, 1915 (publicado da Liberdade" (Liberty Loan), "o povo americano acabou
três anos antes da lei), punha-se em questão um "capital por ser reduzido a adquirir os títulos do governo... Os
financeiro" que, em sua política mundial, "travava a luta colocadores de títulos encontravam-se então em todo o
pelas fontes de matérias-primas, pela exportação de ca- país. Assim, quando os papéis governamentais estrangei-
pitais, pelas esferas de influência... enfim, pelo terri- ros foram oferecidos, mesmo com taxas de juros inusita-
tório econômico em geral... quando o mundo inteiro damente altas, a 6, 7 e 8%, eles foram absorvidos em
está já inteiramente dividido e quando se é inevitavel- grande quantidade por um público que sabia já o que
mente conduzido a um período de luta intensa pela divi- eram valores de governo. Isto ocorreu com o boom de
são e redivisão do mundo". Numa linha quase-leniniana, 1820, quando um bilhão e meio de dólares foram espa-
o relatório aventura-se a prever para "os anos próximos lhados na América Latina por esse processo. A orgia de
um alcance tão grande para a indústria, o comércio e as dólares passou, mas a crise de 1930 ficou à espreita.
finanças americanas que não se poderia encontrar nada Como em toda parte, os pequenos portadores de
de parecido em nenhum outro ano da história do país". títulos nos Estados Unidos não pararam de gritar contra
E o que fez a lei, tão logo foi promulgada, em 10 de a falta de pagamentos. Os pequenos investidores, fala em
abril de 1918? Ela liberou os homens de negócios norte- nome deles nosso M. Lavis, "tornaram-se um rebanho
americanos das servidões da Lei Shermann, a lei anti- sem pastor". O dinheiro dos pequenos portadores não in-
truste, no exterior do país. O Big Business e os aventu- teressava em particular nem ao governo americano nem
reiros vão recuperar o tempo perdido. Fora das frontei- muito menos ao Big Business, enquanto os grandes
ras, a luta é livre. holdings estavam já fazendo o recenseamento para em
Foi, como se disse na época, "a orgia dos emprés- seguida se apropriarem dos recursos estratégicos do
timos privados, graças à euforia exogâmica que empol- mundo. Nas grandes conjunturas capitalistas, o dinheiro
gou os capitalistas americanos, depois da aprovação da dos pequenos não se perde jamais no vazio, o que eqüi-
Lei Webb-Pomerane".3 A propósito da "orgia dos dóla- valeria quase ao seu retorno ao bolso deles, onde ele não
res", Lavis explica as coisas de maneira simples. "Por vol- rica ou não é necessariamente "útil". Ademais, não se
ta de 1914-1918, o capital americano não tinha ainda deve dramatizar além da conta a perda dos interesses
realmente começado a ir para o estrangeiro. Em 1914, as americanos nessa questão da falta de pontualidade. Um
corporações americanas no exterior haviam investido, economista da época: "Os Estados Unidos emprestaram
talvez, 2 bilhões e 500 milhões de dólares, no total, mas porto de dois bilhões de dólares às repúblicas latino-
americanas entre 1920 e 1928. Antes de terminar 1938,
3 eles tinham já recebido um bilhão e quatrocentos milhões
Ver meu livro Opção imperialista (Civilização Brasileira, cap. 2, de dólares como pagamento de juros e principal das dívi-
Rio de Janeiro, 1955). Essa questão é tratada ali com detalhe.

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das, ao mesmo tempo que se estimava o mercado de dí- Dois acontecimentos foram essenciais nessa estranha
vidas em suspenso em 500 milhões de dólares (1,5%). transformação: de um lado, a chegada de um homem
É um bom resultado, se o comparamos à contração da como Franklin Delano Roosevelt, aristocrata, paralítico,
renda nacional provocada nos Estados Unidos pela crise" aventureiro, à Casa Branca, sucedendo a dois burgueses
(Bemis, The Laíin-American policy of the United States, típicos, conservadores republicanos da velha escola, Calvin
Harcourt, Brace & Co., p. 331). Coolidge e Herbert Hoover; e, de outro, o abalo das insti-
Assim, com métodos diferentes, os americanos refa- tuições econômicas do capitalismo americano, cujo apo-
zem a experiência inglesa e aprendem muito com ela. geu foi o crash de 1929, que fez tremer todo o edifício
Mas o instrumento essencial da conquista de mercados social e por muito tempo. O povo americano saía da droga
continua a ser o empréstimo de capital, como na Europa. do otimismo beato em que se encontrava depois de tantos
Segundo o mesmo autor, Bemis, perto de dois bilhões anos de Coolidge, e não sabendo porque se viam de sú-
e oitocentos milhões de dólares, em títulos e emissões bito jogados na rua, sem trabalho, sem segurança, sem
estrangeiras, foram lançados no mercado americano, em amanhã, a encarar o novo presidente que, cercado de
sua maioria de empréstimos governamentais, dos quais especialistas, de banqueiros, de políticos, improvisava en-
dois terços provenientes de governos latino-americanos quanto podia. Os economistas universitários e de prestí-
(Bemis, op. cit.). gio, que já não haviam previsto nada da crise, assim
Isto muda todo o aspecto das operações. O que pre- como os magnatas dos bancos ou da indústria, desempe-
domina no mundo capitalista dos negócios na América nhavam um papel mais ideológico que técnico. Para eles,
é já a ação do Estado, contrariamente à Inglaterra e à tratava-se sobretudo de salvar o renome dos Rockefeller,
Europa. A ação do Estado diretamente ao serviço dos Mellon, Ford, Morgan & Cia., e de salvar o futuro do
homens de negócios. O Estado substitui os emprestadores sistema capitalista americano de toda ameaça ou dúvida.
privados. Como foi o caso no que concerne à questão J. K. Galbraith, que escapa sob vários aspectos aos pre-
primordial, a da conquista do mercado externo, para a conceitos de classe da camarilha econômica universitá-
qual a Lei Webb-Pomerane criou, conforme se sabe, con- ria, em seu pequeno livro sobre A crise econômica de 1929
dições privilegiadas para a operação no exterior dos in- (Boston, 1961) (anatomia de uma catástrofe financei-
vestimentos americanos, o Estado americano tomou a si ra), não fugiu à análise do mecanismo do sistema capi-
esses negócios. O formidável jorro de dólares não cessou talista americano que contribuiu para a crise.4 Não ficou
logo, e isto apesar dos escândalos com que tais operações de fora, como seus colegas, estrangeiro face aos aconte-
são sempre e necessariamente acompanhadas. Mas em cimentos como diante de um tabu. "Durante os anos
face da impontualidade generalizada, contra a qual já se vinte, a produção de bens de investimento cresceu numa
elevavam em coro os investidores privados das primeiras taxa média anual de 6,4%; os bens de consumo não-
épocas, o movimento mudou de direção. Agora os que duráveis, categoria que compreende os objetos de consu-
vêm pedir dólares não são mais os modestos capitalis- mo de massa tais como produtos alimentares e roupas,
tas privados latino-americanos estimulados pelos ventos crescem apenas à taxa de 2,8% (a taxa de crescimento
da especulação que sopram da Bolsa de Nova York. para os bens de consumo duráveis tais como os automó-
Washington hesita, mas pouco a pouco se vê constran- veis, casas, equipamentos domésticos e similares, que re-
gida a assumir a direção dos empréstimos. Esta torna-se presentam geralmente despesas da categoria de pessoas
por fim, bem ou mal, uma operação de Estado, senão
diplomática. A formidável política de conquista dos mer- 4
cados sul-americanos para os produtos da indústria mo- Steinberg, Le conflit du siècle, p. 373. Depois da crise de 29, con-
derna dos Estados Unidos ganhava uma amplitude não trariamente ao que se tinha passado no curso de numerosas crises do
século XIX, a queda dos preços não devia bastar desta vez para de-
mais comercial, mas estratégica. sencadear automaticamente a ação das forças de recuperação.

98 99
entre a abastança e a riqueza, era de 5,9 %.5 Um invés- mente à desonestidade, que seria congenital nos latinos
timento importante e crescente em valores era, em ou- do sul. Mas a realidade é diferente. A suspensão das dí-
tros termos, o principal meio pelo qual se gastavam os vidas já era uma doença comum no século passado na
lucros. Segue-se que tudo o que podia interromper esses Europa, por parte dos países aos quais os velhos Estados
gastos de investimento (na verdade, tudo o que poderia imperialistas emprestavam seu dinheiro. A maior parte
frear a taxa necessária de crescimento) corria o risco desses Estados, jovens ou não, da América Latina ou da
de provocar dificuldades. Quando isto acontecia, uma Ásia Menor, da Europa periférica ou central não-desen-
compensação por um crescimento de despesas de consu- volvida, viviam no mais das vezes em crise e em regime
mo corrente não devia sobrevir automaticamente. O efeito de suspensão de dívidas. O curioso, entretanto, é que sua
de investimentos insuficientes — investimentos que não incapacidade de cumprir o serviço das dívidas não im-
podiam seguir o ritmo regular do crescimento dos lucros pedia que os Estados credores continuassem a lhes enviar
— podia traduzir-se por uma procura total em baixa, dinheiro e a investir. Assim, credores e devedores no fundo
refletindo-se por seu turno em uma baixa das encomendas e não interrompiam suas funções mútuas. Dir-se-ia que as
da produção. Todavia, não há provas definitivas para essa transações entre os maus pagadores de dívidas e os bons
argumentação, pois, infelizmente, não sabemos o quanto promotores dos empréstimos entre Estados não se corrigem
os investimentos deviam aumentar para manter-se ao pela interrupção das transações, mas, ao contrário, por
nível do crescimento corrente dos lucros. Contudo, essa novos negócios duvidosos, O processo de "realização" é
explicação corresponde em grosso aos fatos" (Ver J. K. difícil de isolar em combinações de negócios que estão
Galbraith, A crise econômica de 1929, que cita ainda sempre misturadas. É o exemplo mesmo da história dos
Lionnel Robbins, The great depression, Thomas Wilson, empréstimos tanto na Europa, no século passado, quanto
Flutuations in income, e J. M. Keynes, A treatise on na América, no curso deste século. Entretanto, a
money, 1930.) diferença entre o que se passava na Europa a esse
Comentário de Galbraith: os lucros dos negócios ele- respeito e o que se vai passar na América é radical. Passa-
vavam-se muito rapidamente; a situação era de tal modo se a uma política inteiramente nova. Os credores privados
favorável que mesmo os mais prevenidos o admitiam, a desaparecem do campo. Em seu lugar vai surgir uma
tal ponto que todos censuravam Coolidge por sua inca- política de empréstimos diretos de governo, ou seja, do
pacidade de discernir que os tempos eram bons demais governo americano aos governos da América Latina. Para
para que a situação pudesse durar (Galbraith, op. cit., isto o governo de Washington cria numerosas agências
p. 28). oficiais, que visam a regular as relações financeiras de
O desastre da impontualidade dos empréstimos latino- Estado para Estado. A mais importante dessas orga-
americanos nos Estados Unidos era atribuído exclusiva- nizações foi o Export-Import Bank, fundado em 1934;
além de um fundo de estabilização, do mesmo ano, com
5
A expansão capitalista americana durou sete anos, num porte
os "lucros" resultantes da revalidação da lei sobre a de-
excepcional. Entre 1925 e 1929, o número de estabelecimentos indus- preciação do dólar.
triais aumentou de 183.900 a 206.700; o valor de sua produção in- Em 1939, o Estado cria a Agência Federal de Emprés-
dustrial elevou-se de 60.8 bilhões de dólares a 68 bilhões. O índice timos. A oposição dos empresta dores privados à nova po-
da produção industrial indicado pelo Banco Federal dos Estados Uni- lítica financeira do Estado americano foi bastante grande.
dos, cuja média não fora senão de 67 em 1921 (1923-25 = 100), ele- Roosevelt, na Casa Branca, tinha consciência dos tempos
vou-se a 110 em torno de julho de 1928 e atingiu 126 em junho de
1929. Em 1926, 4 300 000 automóveis tinham sido fabricados. Três extraordinários que o país vivia, e não hesitava diante de
anos mais tarde, em 1929, a produção havia aumentado em mais de uma política de reformas com as quais as massas operá-
um milhão e havia atingido 5 300 000, cifra que se compara muito rias em geral estão de acordo, enquanto os homens de
honrosamente as 5 700 000 matrículas de novos carros durante o ano negócios, os pequenos investidores, protestam, e os gran-
opulento de 1953 (Galbraith, op. cit., p. 28).

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des pelo menos levantam dúvidas. Os dois, em todo caso, seguinte a propósito das possibilidades financeiras ofe-
tendem a acusar o presidente de ser hostil a Wall Street. recidas pelo Peru: Peru, mau passado em matéria de
A história desses empréstimos e transações financei- dívidas, risco moral e político sério, situação da dívida
ras é cheia de anedotas, por vezes bastante escabrosas. interna ruim, situação comercial aproximadamente tão
O mesmo autor conta que, por pressão de interesses con- ruim quanto a do Chile nos três últimos anos. Recursos
trariados, o Departamento de Estado precisou encontrar naturais mais variados. Do ponto de vista econômico,
uma fórmula diplomática como "nenhuma objeção" que o Peru devia ir rapidamente à frente nos dez anos pró-
pudesse cobrir com a autoridade do governo o banqueiro ximos". "Apesar de um relatório como esse", continua
engajado em operações semelhantes. O governo no fundo Galbraith, "a National City Company emitiu um em-
recusava-se a assumir o papel de coletor de rendas. Não préstimo de 15 milhões de dólares para o Peru, seguido
apenas porque isto iria rebaixar seu papel na grande po- de outro, um mês depois, de 50 milhões e, alguns meses
lítica imperial, que era a sua, mas também porque ele depois, de uma emissão de 25 milhões de dólares. (O Peru
tinha uma certa idéia da qualidade dos lançadores de revelou-se efetivamente um risco político dos mais des-
empréstimos. Eis aqui, ainda segundo Bemis, a gama favoráveis. O presidente Leguia, que negociou os emprés-
desses lançadores: "Os compradores de títulos em dólares timos, foi demitido de suas funções e os empréstimos não
englobavam... homens ricos e pobres, doutores, magis- foram reembolsados.) Sob todos os pontos de vista, essas
trados, homens de negócios, ladrões (sic), universidades, operações... eram muito frágeis. . . e elas terminaram
hospitais, igrejas, fundações e instituições de caridade, bruscamente". Isso levou a uma certa mudança na polí-
órfãos, professores e membros do clero". tica externa dos Estados Unidos. A balança comercial
Um caso levantou muita celeuma na época, como dos países da América Latina era negativa em relação
hoje o da Lockheed no mundo inteiro. Foi o do emprés- aos Estados Unidos. Tentou-se equilibrar essa balança
timo americano ao governo do Peru, para o qual o filho em favor do Estado americano "por pagamentos maiores
do presidente Leguia recebeu uma comissão de 450 mil em ouro", mas isto não podia durar muito tempo. Isto
dólares, a fim de facilitar a operação junto ao governo significa, raciocina Galbraith, "que eles deviam ou au-
de seu pai. A operação, realizada no final de 1927, foi mentar suas exportações rumo aos Estados Unidos, ou
executada pela J. and W. Seligman and Company e a reduzir suas importações, ou então não reembolsar os
National City CJ (filial do National City Bank), para empréstimos passados". Mas evidentemente nenhuma
o serviço de um empréstimo de 50 milhões de dólares. dessas soluções podia ser agradável ao presidente Hoover
Galbraith, que dá a informação, acrescenta ainda o ou ao Congresso. Rapidamente, eliminaram a primeira
caso do presidente Machado, de Cuba ("ditador mar- possibilidade, mas o que propuseram foi justo o contrário
cado por suas disposições ao assassinato"), cliente do — equilibrar as contas pelo aumento das importações e
Chase Manhattan Bank, que lhe facilitou créditos pes- das tarifas alfandegárias. E quanto às dívidas, bem, não
soais muito generosos. Num dado momento, eles atingi- foram pagas (ver Galbraith, op. cit., p. 207).
ram 200 mil dólares. O genro de Machado era empregado Como um patrimônio de órfãos desprezados por
do Chase; o banco estava habituado com negócios de Hoover, quando ele se recusou a resolver a questão das dí-
ações cubanas. "Ao estudar esses empréstimos, constata-se vidas, Roosevelt precisou apanhá-lo na sarjeta, a fim de
que havia uma tendência certa a passar rapidamente por manter as aparências. Washington resistia à pressão cres-
cima de tudo o que poderia parecer desvantajoso para cente das pessoas atingidas no sentido de que o governo
o credor." Galbraith. tem ainda essa passagem bastante adotasse represálias contra os maus pagadores de emprés-
longa mas muito instrutiva: "M. V. Shoerpperle, um vice- timos; como já vimos, ele se limitou, no começo, a criar
presidente da National City Company, responsável por uma comissão privada mista para a defesa dos credores
empréstimos à América Latina, emitiu o julgamento (Foreign Bond Holder Protective Council). Contudo,

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Washington se esquivava o quanto podia de suas respon- Ihões de dólares ao México para a construção da Estrada
sabilidades no que concernia às ações privadas da Comis- Pan-Americana, além de outros créditos. Ainda Bemis
são, sob pretexto de que não se tratava de assunto de comenta assim: "Um banco quase-oficial dos Estados Uni-
ordem diplomática. Mas as dívidas estavam sempre lá, dos empresta dinheiro do governo a um governo (estran-
imóveis, e entre elas e os Estados dependentes da Amé- geiro) cujos papéis nenhum banqueiro privado cogitaria
rica Latina, com seus problemas econômicos insolúveis ao de comprar, após 'as faltas de pontualidade' espetacula-
menos no status quo interamericano, Washington ficava res do México" (Latin American policy of the U.S., in
sendo o único ponto pelo menos de agitação, de contato, Opção Brasileira, p. 101). O caso era realmente extraor-
de acordo possível. E assim se compreende que um ho- dinário. Emprestar dinheiro ao México depois das expro-
mem como Bemis, tantas vezes citado aqui, tenha podido priações das companhias de petróleo, três anos antes?
escrever: "o próprio governo tinha acabado por entrar O que tinha acontecido? Washington impôs suas condi-
no negócio, emprestando dinheiro por sua própria conta, ções: "Um tratado com os Estados Unidos (19 de abril
e indo buscar mais fundos entre os mesmos cidadãos de 1941), cujas ratificações foram depressa trocadas, em
que antes haviam emprestado seu dinheiro e perdido" 25 de abril; as bases navais e aéreas concedidas aos Es-
(Bemis, The Latin-American policy of the United States). tados Unidos" (Chamisso, Une politique economique d’he-
Finalmente a lição é aprendida por todos, inclusive pelo misphère, 1953, p. 88). Isto deu um jeito, enfim, nas ex-
capital privado e pelo Estado, e passou-se aos emprésti- propriações, nos tratados e nos empréstimos. Por coinci-
mos diretos de governo a governo. E disso Rosa Luxem- dência, três semanas antes de Pearl Harbour.
burgo não teve idéia. O Estado imperialista substitui o
capital em falência. Há a guerra, e em 1940 Washington
cria o primeiro Escritório de Coordenação dos Assuntos
Culturais e Comerciais Interamericanos, para pôr em pé
as relações entre os países da América Latina e a metró-
pole do Norte, em má postura desde o fracasso das dívi-
das, e chama Nelson Rockefeller em pessoa para coorde-
nador. As exportações dos Estados Unidos, em função das
dificuldades dos tempos, tendem a baixar. O coordenador
intervém e obtém do Banco de Exportação e Importação
facilidades especiais de créditos em favor de certos ban-
queiros latino-americanos, especialmente designados para
serem utilizados como intermediários de bancos ameri-
canos, aprovados antecipadamente. Em 1941, um fato
extraordinário verificou-se nos meios financeiros: o pri-
meiro empréstimo privado de um banco americano a um
país latino, a Venezuela, depois de 1920-1930, a era das
orgias financeiras. O National City Bank de Nova York
é o banco que interrompeu a suspensão dos empréstimos,
entregando dez milhões de dólares para responder às
dificuldades conseqüentes a um começo de queda nas
exportações de petróleo daquele país. E finalmente, nesse
mesmo ano, um fato ainda mais sensacional: o Banco
de Exportação e Importação abre um crédito de dez mi-

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gações. No fundo, no enxoval dos países jovens que che-
gam à independência há de tudo, mas certamente títu-
los, papéis que vão servir para operações de acumulação
X de um capitalismo que não é ainda seu ou que não é
ainda desenvolvido. Mas de quais recursos dispõem eles para
fazer face às suas obrigações de Estado? Os velhos Estados
vêm cheios de solicitude e se apressam em pôr na mão
Epílogo do príncipe ou do herói da independência o dinheiro que
vai também constituir as futuras dívidas. Os economistas,
concentrados em suas especialidades, esquecem
freqüentemente os problemas de mais-valia que devem se
realizar a cada ato de independência de um novo Estado
(no enxoval há de tudo, inclusive um segundo enxoval
de casamento do príncipe com uma princesa de uma casa
real em má situação financeira).
Sem essas épocas de virada histórica, o capitalismo
não teria conhecido o impulso formidável que ele conhe-
ceu sob a hegemonia de um novo instrumento poderoso
nos negócios e nas armas, o imperialismo inglês. Este
Na outra margem do capitalismo, a mudança não foi também um produto típico de sua época. Sua grande
foi considerável, pois tratava-se também de bilhões de contribuição não foi apenas sua Royal Navy, da qual
dólares derramados nos novos países, desta vez da Amé- a orgulhosa divisa Britannia rules the waves se estendia
rica Latina, e para os mesmos fins conhecidos na Eu- sobre todos os mares, mas também algo de mais refinado
ropa, sobretudo na Inglaterra, no século passado. Que e mais durável, a armadura financeira que se constituiu
foi feito, de fato, de todo esse dinheiro que ia para a ao longo do tempo no quarteirão dos comerciantes do
Inglaterra para pagar os produtos da indústria britânica centro de Londres, que se tornou a City, onde os homens
e para os Estados Unidos para absorver os produtos da de negócios internacionais vinham se acotovelar, confiar
exportação americana (automóveis!) e para satisfazer seu ouro, ouvir seu conselho e tomar conhecimento do
outros compromissos desses tipos de Estados que, desde próximo golpe de mão dos mestres. Londres tornou-se a
seu nascimento, precisam pagar dívidas? Pagar dívidas? credora do mundo e a clearing house dos pagamentos
Mas sim, uma vez que, enquanto colônias, como o Brasil, entrecruzados dos governos. O dinheiro do mundo é de-
por exemplo, ele já vendia seus gêneros, se bem que por positado ali em massa nos bancos dos comerciantes, que
intermédio da velha mãe colonizadora, Portugal, que, de se tornam especializados nos papéis estrangeiros que se
seu lado, pelo Tratado de Methuen, o mais antigo tra- negociam no Foreign Exchange. São eles que lançam em-
tado de comércio (segundo a lenda, de que os portu- préstimos na City de Londres. Esses bancos foram funda-
gueses eram muito orgulhosos), entre a Coroa portuguesa dos para operar no império e nos países estrangeiros, que
e a Coroa inglesa, era completamente avassalado ao tinham escritórios em Londres.
comércio imperial. Por ocasião da independência, assis- Todos esses negócios não ficavam nas mesmas mãos
tida pela Inglaterra, uma grande parte das dívidas por- nem nos bancos de província, mas eram de um interesse
tuguesas foram transferidas, como herança, ao novo Es- vital como não importa qual outro banco privado, no
tado, que além disso devia assumir suas próprias obri- final do século XVII, ao tempo da dita revolução "glorio-
sa" (para distingui-la da brutal feita pelos plebeus de
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Cromwell). Sob esse auspício, ela não tardou a tornar-se padrão-ouro, da qual a da Inglaterra era o símbolo em
o modelo dos bancos, e assumiu o papel de banco central todo o mundo, ou seja, quando o saque de libras ester-
do Reino Unido. Suas funções tornavam-se cada vez mais linas pagava as contas nas casas de câmbio e nos balcões
decisivas para a economia nacional britânica e, pela das companhias de navegação e outros comércios nos
concentração da City, ela exerce sua autoridade até sobre portos ou nas capitais, tornou-se inoperável, durante a
os big shots da finança mundial. Emitindo bilhetes de Primeira Guerra Mundial, e foi suspensa formalmente
banco, ela é também um banco do governo, tanto quanto de 1919 a 1925, substituída por uma circulação de bilhetes
banco dos bancos comerciais; controla as transações do do Tesouro, puramente fiduciária, isto foi um mau sinal
Foreign Exchange, da política monetária e da circulação para o futuro do imperialismo inglês. Mas os financistas
do país. Para todo burguês britânico que se respeita in- britânicos não se resignaram facilmente a abandonar
clusive os historiadores universitários, o banco sempre se suas velhas práticas caras às tradições do bom velho
conduziu, ao longo de sua vasta existência, por um capitalismo inglês; tentaram restabelecer e liberar as
"princípio" sagrado, o do supremo, interesse nacional, transações do bloco de ouro nos bancos, entre 1925 e
e não tanto pela prática habitual da instituição, de fazer 1931. A realidade, contudo, foi que jamais a moeda de ouro
lucros com a manipulação do dinheiro. E esse "princí- retornou à circulação, e de novo o padrão-ouro foi
pio" era de tal modo enraizado na mentalidade do cida- abandonado em 1931. Em 1939, o estoque de ouro do
dão que, após o primeiro de março de 1946, quando os banco é transferido à igualização do câmbio. Depois
trabalhistas vão finalmente ao poder para fazer qualquer disso, o banco não guardava praticamente mais ouro,
coisa e nacionalizam o banco, ele continua a ser gerido os bilhetes tornaram-se modernizados, completamente
como se fosse uma empresa privada, exceto sua direção, fiduciários, em quantidades fixadas pelo Tesouro. Agora é
que é hoje nomeada pela Coroa, e o punhado de seus a política da moeda barata que vai prevalecer, seguida do
acionistas, que são indenizados pelo Estado para não mais abandono do padrão-ouro e da revolução da taxa do
serem obrigados a comparecer em seus antigos escritórios, banco, o que conduz a um relaxamento do controle
talvez já mal arrumados. do banco central sobre o crédito.
A data do primeiro de março de 1946 tem hoje um Através dessa época, o banco passou a trabalhar em
valor simbólico, pois o Banco da Inglaterra, nacionali- contato crescente com o governo. Para consolidar as
zado, perdeu a função mundial única que ele exercia experiências contraditórias no campo do banco e da moeda
quando o imperialismo inglês dominava ainda o mundo. uma lei de 1935 foi adotada. Mas ela não demorou a
Quando os trabalhistas chegaram ao poder na Inglaterra, ser anulada pelas coisas da vida real. Seus efeitos come-
após a guerra, em 1945, já era tarde demais. Eles conce- çaram a ser roídos pela venda de ouro aos Estados
deram a independência, é verdade, à índia, nacionaliza- Unidos, pois, segundo a versão inglesa, em virtude das
ram o Banco da Inglaterra e algumas indústrias defici- dificuldades políticas e econômicas do resto do mundo,
tárias e anacrônicas e perderam o fôlego, para serem ocorria uma corrida irresistível do ouro mundial para os
postos fora nas eleições seguintes. Socialmente, eles se Estados Unidos, e o desfecho na Inglaterra foi um
iniciaram no welfare state, na medicina social, etc. ... tal aumento das reservas do banco que o poder regula-
Mas não mudaram a estrutura econômica do país. E aci- mentador da lei se mostrou incapaz de anular seus efei-
ma de tudo acreditaram que podiam conservar a estru- tos. Os imperialistas ingleses eles próprios saíam da
tura financeira, essencialmente formada para servir às guerra muito inseguros quanto ao futuro de seu impe-
suas funções de primeira potência imperial e assegurar rialismo. Já por ocasião da famosa conferência interna-
o retorno de seus excedentes espalhados pelo mundo, cional de Genebra, de 1922, onde todos os vencedores da
pois pouco a pouco eles vão se acomodar em tornar-se guerra foram arrumar os negócios da paz, inclusive os
um país pacífico de rendeiros. Quando a moeda de dos vencidos — a Rússia e a Alemanha, que até então
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tinham sido mantidos à margem da civilização —, inse- Depois da guerra, o grave problema dos Estados
riu-se nas recomendações da conferência ao Comitê Fi- Unidos foi o de retornar à paz. O Big Business prepara-
nanceiro da Sociedade das Nações, por iniciativa do go- se para retomar não apenas a direção dos negócios, mas
verno inglês, a cláusula célebre dita do Padrão-Ouro de da política. Quando a guerra começou, uma verdadeira
Câmbio (Gold Exchange Standard), termo sem nenhum mudança de quadros políticos foi realizada por Roosevelt,
outro equivalente nas outras línguas, pois "sua concepção por ocasião de suas reformas, inspiradas pela inortodoxia
é essencialmente britânica". Jacques Rueff, o conselheiro antiliberal de Keynes e sua escola. Roosevelt morre, e
financeiro de De Gaulle, assim a explicou: "Antes dela, os Truman teve como tarefa imediata encontrar um modus
bancos de emissão não podiam manter em suas reservas vivendi entre as figuras sociais mais importantes que
senão o ouro, os documentos de crédito em moeda na- Roosevelt chamara para formar seus quadros dirigentes, o
cional. A recomendação... pedia às nações que elas au- aparelho sindical, a burocracia de Estado e o Big
torizassem seus respectivos bancos de emissão a conser- Business. O escritório do Coordenador dos Negócios
var também em seu ativo divisas pagáveis em ouro, ou Interamericanos é dissolvido, e Nelson Rockefeller termina
seja, de fato, libras esterlinas e dólares" (Jacques Rueff, seu aprendizado de homem público com Roosevelt, e vai
L’époque de l’inflation). Apesar disso, em 1947, em acor- em seguida alinhar-se nas fileiras do Partido Republicano,
do com os Estados Unidos e à base da recomendação de pelo qual ele será mais tarde eleito governador do Estado
1922, a Inglaterra faz uma tentativa de levar a libra es- de Nova York. Esse movimento de grandes nomes
terlina ao estatuto da plena convertibilidade. Mas a con- financeiros rumo ao velho partido do Big Business se
fiança na libra no estrangeiro estava ainda em baixo generaliza. Nessa mesma época, em novembro de 1946,
nível e, em conseqüência, um grande rush ocorreu, no uma figura muito representativa desses meios, Leon
qual os portadores não-britânicos lucraram com a opor- Welch, tesoureiro da Standard Oil de Nova York, fazia um
tunidade para converter seus valores... em dólares. E o verdadeiro discurso político na Conferência do
governo de Londres, se bem que reforçado pelo dinheiro Comércio Exterior, no qual traçava a política de sua
emprestado pelos Estados Unidos, precisou suspender ra- classe: "O dirigente sindical, o político liberal, o
pidamente a operação de convertibilidade de sua moeda. propagandista de esquerda, substituíram o homem de
Assim a confrontação da libra com o dólar não estava negócios e sua influência sobre o andamento das coisas,
mais ao alcance da primeira. O imperialismo inglês, desde aqui, no plano local ao mesmo tempo que no exterior...
então, vai viver da cumplicidade benevolente do rival. Em nossa busca de soluções para o capital norte-ameri-
Mas é justo, antes que seu papel histórico esteja ter- cano no exterior, comecemos pelo plano interior e esco-
minado, mencionar que ele presidiu ao nascimento de lhamos como primeiro passo a reorientação da mentali-
novos Estados, embrulhou os negócios do mundo inteiro dade e dos objetivos do homem de negócios norte-ameri-
até o fim do século passado e o começo do atual. E isto cano, a fim de que ele retome o lugar que lhe corres-
depois dos cuidados que dedicava aos negócios de seu ponde de direito na vida social e1 política, assim como na
império e da índia, até a China, rendida a seu ópio, vida econômica de nosso país". E, conseqüente com a
à África do Sul, onde abundavam o ouro e os negros posição que ele acabava de definir para seus pares, Welch
escravos, até o Egito, onde franceses e ingleses rasgaram
um pedaço do território para construir um canal, por sua lança uma verdadeira palavra de ordem: "Em outras pa-
própria conta, do qual o país não tinha necessidade, até lavras, da mesma forma que nosso país começou a de-
transformá-lo em seu domínio, com uma falta de es- senvolver sua política exterior do pós-guerra, as empre-
crúpulos, um refinamento na exploração que Rosa Lu-
xemburgo nos relata com uma precisão de historiador e 1
de economista inegável. Victor Perlo: El imperialismo norte-americano, Editorial Platina,
Buenos Aires, 1961, p. 184. Ver discussão in Opção imperialista, 1966.
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sas privadas devem começar a desenvolver sua política para declarar, diante da imprensa, que havia chegado o
exterior a partir da maior contribuição que elas podem momento de "substituir os empréstimos públicos pelos
dar: seus homens ao governo". empréstimos privados" (Agence economique, 15 de ou-
Os Estados Unidos saem da guerra como o único país tubro de 1946). Finalmente, a 6 de março de 1947, diante
vitorioso e enriquecido. Mas eles não estão convencidos dos estudantes da Universidade do Texas, o presidente
de que têm o mundo às suas ordens. Temem que o mun- Truman tenta desarmar definitivamente o partido das
do lhes escape e que seus aliados, se bem que vitoriosos grandes corporações, de Rockefeller, Aldrich, Welch: "O
militarmente, mas na desgraça, não estejam em condi- sistema americano da iniciativa privada faz face à con-
ções de lutar para manter o capitalismo. O Big Business corrência desesperada das economias estrangeiras e con-
tem plena consciência desse estado de coisas. Welch não troladas pelos governos de seus países. As pobres (sic)
tem ilusões: "a empresa privada norte-americana se vê empresas americanas isoladas não poderiam enfrentar a
diante dessa alternativa: pode atacar e salvar sua posi- concorrência dos preços estabelecidos pelo governo des-
ção no mundo, ou ficar assentada, e assistir a seus pró- sas economias estrangeiras". E em seguida essa con-
prios funerais. Nossa política exterior deve preocupar-se clusão patética, dogmática e perigosa para a paz do
sobretudo com a estabilidade e a segurança de nossos mundo: "Todo o mundo deveria adotar o sistema ameri-
investimentos no estrangeiro, e ainda mais no futuro. cano... o sistema americano não pode sobreviver na Amé-
O respeito adequado ao nosso capital no exterior é tão rica se não se tornar um sistema mundial". Como se vê,
importante quanto o respeito aos nossos princípios polí- eles tampouco crêem no "capitalismo num só país". Assim
ticos, e devemos mostrar tanto cuidado e habilidade em o imperialismo americano é finalmente formulado em
obter tanto um quanto outro". Truman não merecia sua toda consciência e amplitude, e completamente identifi-
confiança, sendo para eles um resto da época reformista cado com o seu Estado; ele não tem mais uma economia
do New Deal ou do War Deal rooseveltiano, não impor- para desenvolver, mas uma política a impor ao mundo,
tando as declarações que ele fizesse no sentido desejado pois diante de si ele não vê mais do que a hipótese do
pelos grandes magnatas; "para bem servir este país e a desabamento, um dia, do sistema capitalista, segundo o
economia mundial, nosso comércio exterior, as exporta- esquema de Marx e as previsões de Rosa Luxemburgo,
ções, importações, devem ser entregues às empresas pri- resultantes do seio mesmo da história.
vadas e financiados pelas empresas privadas. Desejo ar-
dentemente que haja a mais completa cooperação no Paris, 24 de julho de 1976.
retorno de nosso comércio exterior e de nossos investi-
mentos à iniciativa privada, tão logo quanto possível"
(declaração à imprensa, de 27 de junho de 1946). Mas
o Big Business não se desarma: o presidente do Chase
National Bank de então, M. Winthrop W. Aldrich, de seu
lado, declara diretamente à imprensa, em 8 de junho
de 1946: "Se os empréstimos do governo aos países es-
trangeiros foram necessários durante ou imediatamente
após a guerra, eles deveriam em complemento recorrer
ao financiamento internacional privado e ser finalmente
substituído por este último". (O presidente do comitê
incumbido de formular a política de empréstimos ao ex-
terior). Mas o mesmo eminente cidadão estava impa-
ciente, pois, em outubro do mesmo ano, ele retornava

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