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PRIMEIRA QUINZENA
DE JUNHO DE 2023
R$ 25,00
CENSURA
Nesta edição:
Expediente: Dossiê Causa Operária • Ano I • nº 14 • primeira quinzena de junho de 2023 • editor: Rui Costa Pimenta • contato@dossieco.org.br • Impresso por: O Cavaleiro Azul Artes Gráficas LTDA • tiragem: 650 exemplares
Ao leitor
Em sua mais nova edição, agora nas mãos do leitor, o Dossiê Causa Operária traz investiga-
ção, análise e debate político, histórico, cultural e teórico.
A censura, tema destaque dessa edição, se segue, desenvolvido por uma série de ângulos. O
PL das Fake News é discutido à luz do papel das redes sociais e dos interesses em jogo na
disputa. “Racismo recreativo: comediantes na berlinda”, aborda o caso Léo Lins e pincela a
parte conceitual; “Da luta por direitos civis ao combate à liberdade de expressão” desenvolve
uma abordagem teórica a fundo, e polemiza com a chamada ‘teoria crítica da raça’.
Ainda no tema da censura, mas pela arte: a reedição da ópera O Guarani, de Carlos Gomes,
uma das principais obras produzidas no Brasil. O Dossiê traz a discussão sobre o verdadeiro
ataque que vem se realizando à cultura nacional.
Já da parte também jurídica e agora histórica, são resgatadas as Leis Adolfo Gordo, de per-
seguição ao movimento operário no início do século XX.
O ocorrido em junho de 2013, mais recente, também se destaca, tema de ampla polêmica e
confusão na esquerda. Mais a fundo na parte histórica, a conformação de um “povo judeu”
e a história da religião e do território palestino; e a figura de Kruschev, numa polêmica com
o stalinismo.
O Dossiê Causa Operária pode ser assinado por todos que busquem um aprofundamento nos
principais temas da política nacional e internacional do momento. À luz da teoria marxista
e de pesquisa dedicada, os acontecimentos são expostos e desenvolvidos de maneira coesa e
coerente, garantindo ainda o máximo de informações para a análise dos leitores.
Os leitores aproveitarão ainda um brinde especial com as assinaturas, além do próprio ma-
terial de alta qualidade: um mês grátis de assinatura de um dos dois Clubes do Livro (o Clu-
be do Livro de Esquerda e o Clube do Livro Marxista). Acesse o site: dossieco.org.br e saiba
mais, ou entre em contato conosco por meio do número (11) 99733-9114 e contribua com a
imprensa revolucionária.
4 primeira quinzena de junho de 2023 OSSIÊ
CAUSA OPERÁRIA
internacional
T URQUIA
"V Q
erificou-se que o sr. Recep Tayyip Erdogan dente na mídia tradicional”. O que o articulista não diz, ualquer derrota do imperialismo, por princípio,
recebeu 51,91% dos votos na Turquia, e o no entanto, é que as eleições sofreram uma influência gi- merece ser comemorada pelos oprimidos. Afinal,
sr. Kemal Kılıçdaroglu, 48,09%. No exterior, gantesca dos serviços de inteligência norte-americanos, quanto mais enfraquecido estiver, mais dificuldade terá
4.986 das 5.657 urnas foram abertas, e uma taxa de aber- muito mais corruptos, sujos e poderosos que qualquer de dominar os países e, assim, mais fácil será para que os
tura de 88,14% foi registrada. O sr. Recep Tayyip Erdo- presidente no mundo. povos se rebelem. Mesmo em um país secundário, uma
gan recebeu 59,80% dos votos no exterior, e o sr. Kemal derrota parcial do imperialismo pode causar consequên-
Kılıçdaroglu, 40,20% dos votos. Ao todo, considerando as Essa indisposição contra Erdogan pode – e provavel- cias espetaculares. O caso do Afeganistão é um importante
votações em território nacional e no exterior, 196.744 de mente irá – levar, a médio prazo, a uma revolução colorida exemplo disso: a expulsão das tropas norte-americanas
197.871 urnas foram abertas, e uma taxa de abertura de – isto é, a um golpe de Estado. No momento, no entanto, inaugurou uma nova onda de enfrentamentos dos países
99,43% foi registrada. O sr. Recep Tayyip Erdogan rece- não há sinais de que isso acontecerá de imediato. atrasados com o imperialismo.
beu 52,14% dos votos e o sr. Kemal Kılıçdaroglu, 47,86%
A revista britânica The Economist, um dos principais Acontece que a Turquia, contudo, não é um país se-
O sr. Recep Tayyip Erdogan recebeu 27.513.587 votos porta-vozes do imperialismo a nível mundial, adotou o cundário, mas um dos mais importantes do planeta. An-
e o sr. Kemal Kılıçdaroglu, 25.260.109 votos. O resultado mesmo tom amargurado, porém aparentemente confor- tes de tudo, é preciso considerar a posição geográfica do
não mudará, mesmo que todos os votos restantes sejam mado que Guga Chacra: país. A Turquia tem uma posição tão privilegiada que é
computados para qualquer um dos candidatos presiden- até difícil mostrá-la em um único mapa.
ciais. Considerando-se esses dados parciais, verificou-se “Certamente não foi justo. Nem totalmente gratuito.
que o sr. Recep Tayyip Erdogan foi eleito presidente da Mas, goste ou não, a vitória em 28 de maio de Recep Tayyip O primeiro mapa, que apresenta uma visão mais dis-
República da Turquia”. Erdogan nas eleições presidenciais da Turquia é um fato. tante dos continentes europeu, africano e asiático, já mostra
a Turquia como um país em destaque, uma vez que fica
Foi assim que Ahmet Yener, presidente do Conselho exatamente no centro da região. É, portanto, um territó-
Eleitoral Supremo da Turquia (YSK), anunciou para o rio fundamental na ligação entre esses continentes. Para
mundo, em coletiva de imprensa, o desfecho das eleições enviar armamentos e alimentos ou mesmo para invadir
presidenciais no país euroasiático. um país, partindo da África para a Europa, da Europa
para a Ásia ou da África para a Ásia, a Turquia é uma
O resultado não causou grandes surpresas. Conforme das poucas rotas possíveis.
descrito na edição anterior do Dossiê, o mandatário turco
já havia conquistado 49,50% dos votos, dependendo de A essa questão de ordem puramente geográfica, so-
apenas 0,5% do eleitorado para consagrar-se presiden- ma-se o problema da configuração política da região.
te reeleito. Mesmo assim, não foi uma vitória folgada. Podemos dividir o primeiro mapa em quatro grandes
regiões: a Europa Central, que é a sede do imperialismo
Pelo contrário, as eleições ocorreram em meio a uma europeu, o Oriente Médio, o Leste Europeu e o Norte
grande polarização e permaneceram tensas até o anún- da África. Ainda que não faça fronteira direta, a Turquia
cio final. De lá para cá, não apareceram indícios expres- também está bem próxima da chamada Ásia Central.
sivos de que a vitória de Erdogan será contestada de Cada uma dessas regiões, conforme discutiremos, apre-
imediato. No entanto, pequenos agrupamentos, como senta uma série de características importantes para a luta
o Partido Democrático dos Povos (HDP) e o Partido da de classes mundial.
Esquerda Verde (YSP) já declararam que as eleições te-
riam sido “sujas”. Agora, passemos a examinar mais de perto o terri-
tório turco. Mais de 90% das terras turcas pertencem à
“Testemunhamos uma eleição injusta, marcada por Ásia, sendo a maior região do país a Anatólia. A Trácia,
violações das regras democráticas básicas, que ocorreu separada da Anatólia pelo estreito de Bósforo, é a porção
Wikipedia
internacional
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Região vital
política
“U
RGENTE: O DESESPERO BATEU!!! Qual seria, então, a ação das Big Techs que mereceria dos maiores símbolos da decadência capitalista nos dias de
um processo na Secretaria do Consumidor? O caso mais hoje. O capitalismo decadente, no entanto, não vai se ren-
Google usando a própria plataforma pra ata- grave, segundo o próprio Dino, teria sido o do Google: co- der sem resistência.
car a PL e o Twitter deslogando a conta das locar uma breve explicação, em seu próprio sítio, sobre o
pessoas pra atrapalhar. Projeto de Lei 2630. Isto é, a ação criminosa em questão Usando o poder incrível de empresas como Google e
seria uma plataforma dar a sua opinião sobre um projeto Facebook, os capitalistas querem fazer a roda da história
As Big Techs estão com medo de perder suas fortunas de lei que sequer foi aprovado. girar para trás e fazer desta ferramenta de progresso uma
ganhas em cima das vidas devastadas das nossas crianças, e arma sem precedentes contra a liberdade de expressão. Da
estão usando de tudo para tentar barrar o PL 2630! Não há absolutamente nada na lei brasileira que proíba era da liberdade da comunicação, querem nos lançar numa
isso. As plataformas de redes sociais são todas elas priva- nova era de censura, na qual o alvo não são jornais inde-
Vocês acham certo expor seus filhos a perigos mortais das – e, portanto, têm todo o direito de dizer se acham um pendentes e partidos apenas, mas as massas populares” (A
só pelo lucro dessas grandes empresas?? projeto de lei correto ou não. O caso grotesco das crianças, Era da censura das massas, Rui Costa Pimenta e João Jorge Caproni
levantado pelo Sleeping Giants, também é mais um sofismo. Pimenta, 2021).
Precisamos de você! Peça ao seu deputado que vote sim Não há um único caso comprovado de alguma criança que
no PL 2630 PELAS CRIANÇAS!” tenha morrido porque as plataformas criticaram o PL 2630. Vejamos agora em detalhe alguns aspectos de cada uma
dessas plataformas.
A mensagem acima foi publicada no dia 1º de maio por
um perfil obscuro na internet, o Sleeping Giants, uma es- Qual o real motivo do conflito
pécie de think tank que supostamente se dedica a combater
o “discurso de ódio” e as “fake news”. A publicação alcan-
Usuários
çou pelo menos quatro milhões de usuários no Twitter e foi
compartilhada pelo atual ministro da Justiça, Flávio Dino. O conflito pode ser resumido da seguinte forma: o Es-
tado brasileiro, seguindo a orientação dos órgãos de
inteligência dos países imperialistas, quer impor uma forte A rede social mais utilizada no Brasil é o WhatsApp,
que chegou ao Brasil em 2009, na época em que era
Ao endossar a publicação, Dino aproveitou para anun- regulamentação às plataformas de redes sociais, enquanto apenas um aplicativo para troca de mensagens curtas, se-
ciar, pelo seu Twitter, que estaria processando as empresas as mesmas plataformas resistem a essa tentativa. melhante ao SMS.
de redes sociais:
Aqueles que querem impor uma regulamentação – o Em fevereiro de 2014, o aplicativo foi vendido para o
“Estou encaminhando o assunto à análise da Secretaria Poder Judiciário, a grande imprensa e os deputados mais conglomerado que hoje é chamado de Meta, do bilionário
Nacional do Consumidor, órgão do Ministério da Justiça, à ligados ao imperialismo – não querem exatamente aniquilar Mark Zuckerberg, que pagou US$16 bilhões para adquirir
vista da possibilidade de configuração de práticas abusivas as empresas, embora seja isso que deem a entender quando o WhatsApp. Na época em que a venda foi feita, o aplica-
das empresas”. criticam hipocritamente os “lucros” das Big Techs. O verda- tivo era utilizado por 38 milhões de brasileiros – o maior
deiro objetivo é pressionar as empresas para que adotem a mercado após a Índia e os Estados Unidos (WhatsApp diz ter
Só pelos personagens envolvidos, o caso já parece bas- política do imperialismo para a internet: a de que qualquer 38 milhões de usuários no Brasil, Folha de S.Paulo, 26/2/2014).
tante suspeito. Qual o sentido de um ministro da Justiça conteúdo “indesejado” seja banido imediatamente das redes
compartilhar o conteúdo de uma organização cujos fins sociais. Neste sentido, trata-se de uma preocupação com o Em 2019, o número já havia saltado cerca de quatro
são completamente desconhecidos? Uma organização sem que os usuários publicam, e não com as opiniões das pró- vezes: 136 milhões de brasileiros costumavam usar o apli-
figuras públicas, com nome estrangeiro, que efetivamente prias plataformas. Caso as plataformas se recusem a san- cativo. E mais: de acordo com uma pesquisa da Câmara
veio do estrangeiro, e cuja atuação se resume a pressionar as cionar os usuários, aí sim sofreriam as seguintes punições: dos Deputados e do Senado Federal, 79% dos brasileiros
instituições brasileiras para adotar uma determinada política. afirmaram que o WhatsApp seria a sua principal fonte de
“I - advertência, com indicação de prazo para adoção informação (WhatsApp é principal fonte de informação do brasi-
Tudo se torna ainda mais suspeito se levarmos em conta de medidas corretivas; leiro, diz pesquisa, Agência Brasil, 10/12/2019).
que o próprio Flávio Dino é ligado a organizações seme-
lhantes à Sleeping Giants. Dino já agradeceu publicamente II - multa; Atualmente, o WhatsApp conta com 169 milhões de
por ter recebido uma doação da Open Society Foundations, usuários (Confira quais são as redes sociais mais usadas entre os bra-
de George Soros, quando era governador do Maranhão III - suspensão temporária das atividades; sileiros, MLabs, 23/5/2023). Há levantamentos que estimam
(Fundação internacional doa R$ 5 milhões para governo do Mara- que mais de 93% dos usuários de internet brasileiros, de 16
nhão durante pandemia, G1, 23/7/2020), e se encontrou recen- IV - proibição de exercício das atividades no país” (Pro- a 64 anos, fazem uso do aplicativo de mensagens (idem).
temente com o presidente global da mesma organização, jeto de Lei nª 2630, Senado Federal, 2020).
Mark Malloch-Brown (Flávio Dino debate democracia e agenda Logo atrás do WhatsApp, vem o YouTube, que che-
do MJSP em encontro com organização internacional, Ministério da E o que seria considerado “inadequado”? Segundo gou ao Brasil em 2007, dois anos após a sua criação e um
Justiça e Segurança Pública, 19/5/2023). o próprio projeto, todo “conteúdo, em parte ou no todo, ano depois de ter sido vendida para o conglomerado que
inequivocamente falso ou enganoso, passível de verifica- hoje é a Alphabet.
Analisada a forma na qual apareceu a questão, agora ção, colocado fora de contexto, manipulado ou forjado,
analisemos o seu conteúdo. A publicação do Sleeping Giants com potencial de causar danos individuais ou coletivos, Em 2015, o YouTube tinha cerca de 60 milhões de
é espalhafatosa, uma tentativa de causar um escândalo. E ressalvado o ânimo humorístico ou de paródia” (idem). usuários brasileiros (YouTube Insights: o que considerar na hora
qual seria o escândalo? O de que as chamadas Big Techs – com Em resumo, qualquer coisa que um tribunal considere de criar o vídeo da sua campanha, Think with Google, 2015).
destaque para a Alphabet (Google) e o Twitter – estariam falso. Na prática, seria tudo aquilo que fosse considerado Em 2019, o número já havia saltado para 133 milhões
expondo as crianças a perigos mortais simplesmente para “indesejado” para o Judiciário – isto é, aquilo que tenha de usuários (Você sabe qual é o tamanho do YouTube no Brasil?,
aumentar os seus lucros. A conclusão do Sleeping Giants um caráter subversivo. BuzzMonitor, 2019). No mesmo período, foi constatado
acaba sendo óbvia: é preciso pôr um freio nessas empresas. que, entre 2014 e 2018, houve um aumento de 135% no
A preocupação das plataformas, neste caso, não é exa- número de horas semanais dedicadas a assistir vídeos on-
Que as Big Techs visam o lucro é evidente. Alphabet (Goo- tamente ideológica, uma vez que essas empresas já aplicam line no Brasil (idem).
gle), Meta (Facebook, Whatsapp e Instagram) e Twitter são uma série de mecanismos de censura do conteúdo. Nem
grandes monopólios da internet – isto é, empresas capitalis- também é verdadeiro que o PL 2630 causaria um prejuízo Atualmente, a plataforma de vídeos conta com 142
tas que dominam o mercado daquele setor. No entanto, ter financeiro a essas empresas. O que justifica sua insubor- milhões de usuários brasileiros, sendo que o tempo diá-
lucro não é crime no Brasil. Fosse assim, Dino deveria estar dinação ao Estado brasileiro é o fato de que a política de rio gasto nela é de aproximadamente 45 minutos (Confira
preocupado em fechar todas as empresas capitalistas, expro- censura total aos usuários das plataformas praticamente in- quais são as redes sociais mais usadas entre os brasileiros, MLabs,
priar os bancos e expulsar os especuladores das estatais. É um viabilizaria as redes sociais. Isto é, faria com que os usuários 23/5/2023).
sofismo, uma tentativa de tornar as Big Techs em criminosas, abandonassem as plataformas em busca de algum ambiente
sem mesmo analisar o que de fato teriam cometido. mais democrático. A terceira maior plataforma de redes sociais no Bra-
OSSIÊ
CAUSA OPERÁRIA
política
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Estado brasileiro
sil é o Instagram, que chegou ao Brasil em 2012, mesmo
ano em que a Meta – na época, Facebook – anunciou a
compra da plataforma.
política
Racismo recreativo:
Piadas, risos e até palavras do dicionário estão sendo proibidos sob um ela também, negra e ter dito que se referia aos próprios
cabelos ao falar com a cliente loura, o que foi desconsi-
suposto respaldo legal, ao arrepio do artigo 5º da Constituição Federal derado. Coube à agência pagar uma indenização de R$
20 mil à vítima da “brincadeira”, considerada um caso
de “microagressão”, punido com intenção de promover
efeito pedagógico.
O
caso do humorista Léo Lins, levado às barras dos o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou “o humor racista é um tipo de discurso de ódio, é um
tribunais por causa de suas piadas “politicamen- mais pessoas”. No art. 20-A, ficamos sabendo que “os tipo de mensagem que comunica desprezo, que comuni-
te incorretas”, acende um sinal de alerta não só crimes previstos nesta Lei terão as penas aumentadas ca condescendência por minorias raciais”. Segundo ele,
aos artistas como à sociedade de modo geral. Enquanto de 1/3 (um terço) até a metade, quando ocorrerem em as piadas reforçam estereótipos negativos, os quais são
o comediante aguarda julgamento, uma medida caute- contexto ou com intuito de descontração, diversão ou responsáveis pelo fato de negros receberem salários mais
lar pedida pelo Ministério Público de São Paulo garantiu recreação”. Chegamos, então, ao ponto essencial da baixos. “Negros ganham 50% a menos do que brancos
que seus shows fossem cancelados e que seus vídeos com questão, o “racismo recreativo”. em função dos estereótipos negativos que circulam na
alto número de likes (monetizados pelo YouTube) fossem nossa sociedade sobre os membros desse grupo”, diz,
tirados do ar, além de determinar que ele se apresente simplificando a questão.
mensalmente às autoridades para relatar suas atividades
e permaneça proibido de sair da cidade de São Paulo,
Um novo conceito em repressão
onde mora. A opressão do negro
Com uma pitada de ironia, Léo Lins explica ao F5,
portal da Folha de São Paulo (Léo Lins não pode sair de SP
O conceito foi cunhado pelo professor Adilson Morei-
ra, doutor pela Universidade Harvard em Direito
Antidiscriminatório. Em 2018, ele lançou o livro “O que Em geral, quando se noticia, por exemplo, que um
por mais de 10 dias e aguarda julgamento por vídeo de comédia é racismo recreativo?”, um dos títulos da coleção Feminis- engenheiro negro recebe menos que um engenheiro
censurado): "Já adianto aqui o que eu faço: escrevo pia- mos Plurais, organizada por Djamila Ribeiro, a mesma branco, a primeira coisa que se imagina é que os dois
das, vou na academia, assisto filmes e séries e cuido dos em que se insere o volume “Racismo estrutural”(2018), estejam sentados lado a lado fazendo o mesmo trabalho
meus gatos. Preciso ir lá reportar estes atos que beiram de Silvio Almeida, atual ministro dos Direitos Humanos na mesma empresa e que o negro esteja recebendo um
o terrorismo". De fato, as restrições impostas ao humo- e da Cidadania. Em entrevista publicada na revista Carta salário inferior, o que seria um verdadeiro escândalo.
rista sugerem que sua atividade seja altamente pericu- Capital (Adilson Moreira: ‘O humor racista é um tipo de discurso Ocorre que esse tipo de notícia reproduz dados estatísti-
losa e tenha o condão de promover grandes prejuízos de ódio’), onde atua como colunista da editoria de Justiça, cos quantitativos. Analisá-los requer o cruzamento com
à sociedade. Seu espetáculo intitulado “Perturbador” Moreira afirma que “o conceito de racismo recreativo outros dados. É mais provável que as empresas maiores,
teria sido o estopim da ação judicial, dado o conjunto designa uma política cultural que utiliza o humor para que pagam os melhores salários, atraiam profissionais
de supostas ofensas a todas as minorias possíveis e ima- expressar hostilidade em relação a minorias raciais”. Se- com currículos mais extensos, estudos feitos no exterior,
ginárias. Usamos aqui o termo “supostas” porque as gundo ele, “o humor racista opera como um mecanis- conhecimento de línguas estrangeiras e um sem-núme-
falas “perturbadoras” do comediante são proferidas no mo cultural que propaga o racismo, mas que ao mesmo ro de quesitos que vão além do diploma de engenheiro,
palco, como esquetes de humor, o que faz – ou poderia tempo permite que pessoas brancas possam manter uma de tal forma que a desigualdade de oportunidades con-
fazer – alguma diferença. imagem positiva de si mesmas”. tinua falando mais alto, mesmo quando ocorre algum
tipo de ascensão social via educação. Como sempre, sai
Adilson Moreira conta ter criado a expressão du- premiada a origem de classe.
Jurisprudência inconstitucional rante uma entrevista na qual comentava episódios de
racismo em campos de futebol brasileiros e, meses de- Os departamentos de Recursos Humanos das empre-
pois, ter tomado conhecimento de uma decisão judicial sas, ao fazerem a seleção, elegem quesitos que atraiam para
política
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comediantes na berlinda
Conselho Nacional do Ministério Público, é um “ato de ri, certamente o humorista cancela a piada do espetáculo. crítico severo dos personagens de programas humorís-
precaução”. Na prática, “é o pedido para antecipar os É comum entre esses artistas “testar a piada”, como, aliás, ticos de televisão. Ele afirma: “Penso que Vera Verão é
efeitos da decisão, antes do seu julgamento”. O sítio da explica Léo Lins no seu vídeo. Segundo ele, o especial um exemplo perfeito de como o humor racista reproduz
entidade explica ainda que a medida “é concedida quando “Perturbador”, que sofreu censura, só continha piadas estereótipos negativos sobre minorias raciais de todas as
a demora da decisão causar prejuízos (periculum in mora)”. devidamente “testadas”, o que pode significar que, cor- maneiras possíveis. Primeiro, a degradação sexual de
retas ou incorretas, gostemos ou não, estão provocando minorias sexuais. Toda a sua personalidade girava em
Fato é que, no caso de Léo Lins, o uso desse instru- o riso de muita gente. torno da sua sexualidade. Encontrar parceiros sexuais
mento jurídico permitiu a censura, uma vez que os “cri- era o único propósito de sua vida. Sempre fazia questão
mes” supostamente cometidos por ele são aquilo que ele Para além de lamentar que a sociedade brasileira seja de enfatizar suas habilidades sexuais. Segundo, o per-
diz nos seus shows. Para “evitar danos”, ele foi calado pelo preconceituosa ou de considerar que o comediante em sonagem reproduzia a ideia do homem branco como
judiciário e sujeito a multa diária de R$ 10 mil aplicada questão seja bolsonarista, é relevante refletir sobre ou- único parceiro sexual socialmente aceitável porque ela
sobre cada eventual ato de desacato à ordem judicial. A tro aspecto: como autor de espetáculo de humor que se só se interessava por homens brancos. Terceiro, ela tam-
imprensa, ancorada no identitarismo, tem dado cobertura apresenta como “politicamente incorreto”, pode estar o bém expressava a noção de que todos os homossexuais
à justificativa “legal” da censura por meio não só de ar- humorista fazendo uma crítica ao cerceamento imposto são efeminados e [de] que todos os homens negros ho-
tigos de opinião como também pela seleção das notícias pelo cânone da cultura woke. O próprio Léo Lins, no vídeo mossexuais estão à procura de homens brancos. Quarto,
veiculadas constantemente. em que comenta sua condenação, aponta o identitarismo ela também reproduzia a imagem hipersexualizada da
como o mainstream, o discurso aprovado e reiterado pelo mulher negra porque ela se apresentava como uma mu-
Qualquer discussão em espaço público que envolva sistema. Talvez boa parte do sucesso de suas piadas ve- lher”. Segundo o autor, Vera Verão é responsável pelos
suposta ofensa à identidade, desde que presenciada e fil- nha não exatamente do preconceito “estrutural” arraiga- males da sociedade.
mada por algum celular, ganha as telas do Jornal Nacional, do nas pessoas, mas, isto sim, do fato de ele se posicionar
da Rede Globo, cujos apresentadores fazem caras e bocas contrariamente ao discurso moralista dos identitários, que Para reforçar sua argumentação, ele acrescenta isto:
para demonstrar que apoiam punição exemplar a “cri- aparece defendido pela imprensa burguesa e pelos grandes “Piadas sobre a potência sexual de homens asiáticos tam-
mes de fala” de pessoas comuns. Diariamente, os meios conglomerados empresariais. bém expressam a noção de que eles não são assertivos,
de comunicação publicam notícias desse tipo, gerando a de que não são agressivos. Consequentemente, eles não
percepção de que é preciso controlar o que se diz e punir Ao ler no vídeo os termos da peça processual em que têm capacidade de comando”. As piadas mais populares
aqueles que falam o que supostamente não deveriam. A é citado, na qual são reproduzidas várias de suas piadas, sobre esses homens mencionam antes o tamanho do ór-
censura, que foi tão combatida nos anos da ditadura mi- ele chama a atenção para a tentativa de condená-lo por gão sexual que a sua potência sexual – pelo menos, é o
litar, surge com nova roupagem, agora como um meio de dizer que faz “humor negro”. Não, o problema não é que se ouve no anedotário nacional. Até onde se sabe, os
higienizar a sociedade. fazer ou deixar de fazer “humor negro”, mas a própria mesmos japoneses alvo dessas piadas levam igualmente a
expressão “humor negro”, na qual ele estaria usando o fama de inteligentes e aplicados nos estudos – e nunca se
O advogado Elton Duarte Batalha, doutor em Direito adjetivo “negro” associado a algo ruim. Ele estaria, por- ouviu dizer que alguém duvidasse de sua capacidade de
pela USP e professor do Mackenzie, em seu artigo “Caso tanto, segundo o Ministério Público, sendo condenado por comando e lhes recusasse cargos de chefia por causa des-
Léo Lins e a Constituição: tempos estranhos”, pergunta-se, usar uma expressão idiomática registrada em dicionário: se tipo de anedota. A piada pode ser boba, mas também
acerca da natureza das atividades de humoristas: “estão no “humor negro: humor que se expressa a propósito de uma será considerada crime?
campo do real ou da ficção?”. E prossegue: “Concluindo-se situação ou de uma manifestação grave, desesperada ou
que as obras referidas estão no âmbito ficcional (que parece macabra”(dicionário Houaiss). Os judeus, nessa seara, parecem ter encontrado a me-
ser o caso de filmes, peças de teatro e produções humo- lhor solução. São eles próprios que disseminam o vasto
rísticas, como no caso Léo Lins), a aplicação da referida Léo Lins diz à Folha de São Paulo (portal F5, já citado) repertório de “piadas de judeu”, autorizando os ouvintes
lei [Lei da Injúria Racial] é indevida, pois tem o condão esperar não ser preso. "Mas, caso seja, com a superlotação a rir à vontade do seu estereótipo de sovina e esperto para
de, em última análise, inviabilizá-las, dada a existência de das cadeias, meu show vai continuar lotado. A propósito, ganhar dinheiro, mesmo à custa de enganar os outros.
falas e comportamentos em tais obras que, evidentemente, isso foi uma piada", disse. "Utilizei um caso hipotético Isso sem falar nas tradicionais piadas de árabes e judeus,
caso confundidas com a realidade, seriam contrárias à or- e uma figura de linguagem para isso. Estou explicando, contadas por uns e outros, cada qual fazendo o seu lado
dem jurídica nacional (violência em obras de ação e frases para não acharem que foi um crime de ódio. E, como fiz levar a melhor. Que dizer das famosas piadas de português,
moralmente reprováveis usadas em livros e novelas para a piada comigo e sou um homem branco hétero, creio que contadas no Brasil? Seriam crime de xenofobia? Bem, em
a construção do enredo, por exemplo)”. E conclui assim não tem problema, pois é um dos únicos temas permitidos Portugal, o pessoal conta piada de brasileiro. Piada com
seu raciocínio: “Se a conclusão for no sentido de que tais segundo o processo". piada se paga. Ou não?
manifestações devem ser consideradas no campo do real,
um grande processo de suposta higienização nas áreas O identitarismo é um movimento de caráter religioso,
artística e cultural pode ocorrer no Brasil, com impacto
relevante sobre o conceito e extensão da democracia no
A moral e os bons costumes que prega uma conduta moral severa, baseada no cercea-
mento do que se diz. No âmbito da cultura woke, muito
país. Nesse sentido, até a produção shakespeariana estaria mais importante do que aquilo que se faz é aquilo que se
em risco em terras brasileiras”.
negros se eles precisam de ajuda pode estar na verdade O mundo ideal dos identitários, portanto, não passa
política
Um balanço
Este artigo foi escrito pelo companheiro Rui Costa Pimenta durante as jornadas de junho Esta é a mesma política empregada na USP, onde a
luta política e social da juventude foi apresentada como
de 2013 no calor dos acontecimentos. Publicamo-o nesta edição do Dossiê Causa Operária um ato de criminalidade sem qualquer conteúdo político.
com algumas pequenas atualizações possíveis de serem feitas pela passagem do tempo.
Essa repressão, no entanto, foi justamente um dos estí-
mulos para o crescimento das manifestações que aumen-
taram a cada novo episódio da ação policial.
Rui Costa Pimenta e Henrique Simonard A manifestação anterior à quinta-feira (13 de junho),
duramente reprimida, já indicava claramente a incapa-
cidade da força repressiva do governo do PSDB de efe-
tivamente conter o crescimento da mobilização política.
O
s acontecimentos políticos de junho de 2013 são manteve como o movimento de uma frente única de orga- Estava colocado o impasse para o governo estadual.
mal compreendidos por uma grande parte da es- nizações políticas e reivindicativas de caráter permanente. Ceder às manifestações ou reprimir. Se cedesse haveria sido
querda. De um lado, há quem considere que tais derrotado pela mobilização, a qual não conseguia conter,
manifestações foram o início do golpe orquestrado contra Este movimento estava intimamente ligado ao movi- desmoralizando completamente a campanha caluniosa
a presidenta Dilma em 2016, e cunhe o acontecimento de mento de luta nas universidades estaduais, em particular do movimento criminoso, do vandalismo e da baderna.
“revolução colorida”, aí se encontram principalmente mi- da USP, que ocupou a reitoria daquela universidade em Se reprimisse, abrir-se-ia a seguinte alternativa: ou não
litantes e figuras do Partido dos Trabalhadores. Do outro duas importantes oportunidades, em 2007 e 2011. conseguir impedir a manifestação, uma desmoralização
lado, PCB, PSOL e PSTU, principalmente, consideram ainda maior do que ceder sem enfrentamento, ou usar de
as manifestações como um grande movimento popular Esse é, essencialmente, um movimento da juventude muita violência para reprimir o movimento, o que levaria
contra o governo do PT. Vale ressaltar que esses partidos e um movimento dirigido contra a ditadura que a direita, à desmoralização da repressão diante da população que
se envolveram, de um jeito ou de outro, na campanha ou seja, o PSDB e seus aliados impuseram no mais im- estava sendo desinformada com o relato de que se tratava
golpista que tomou corpo contra o PT logo após as jor- portante estado da federação nacional. de uma minoria de marginais.
nadas de junho, notoriamente no movimento “Não Vai
Ter Copa” e depois no ataque ao governo da Dilma em A eleição de Fernando Haddad do PT em 2012, ou, Alckmin, de maneira absolutamente equivocada, optou
seu segundo mandato. mais precisamente, a derrota do PSDB, colocou em evi- pela repressão e colocou em jogo um amplo contingente
dência a crise dessa ditadura. O PT assume o governo não de repressão com milhares de soldados da PM, a Rota,
Nenhuma das duas análises está certa. Primeiro é como uma alternativa popular ao PSDB, mas como uma a Tropa de Choque, a Cavalaria e vários destacamentos
preciso entender como começaram as manifestações: foi versão mais débil de governo burguês representante do especiais. A violência da repressão – inevitável e não aci-
o movimento estudantil principalmente, mas também os regime político antidemocrático, antioperário e pró-impe- dental – que atingiu simples observadores e passantes,
trabalhadores, que deram início às manifestações. Se a rialista, indicando o completo esgotamento dos métodos jornalistas, além dos manifestantes, fez com que a crise
direita tomou conta da agitação no correr dos aconteci- anteriores de contenção e a completa perda de autoridade política se abrisse completamente.
mentos, isso se deve principalmente à política vacilante da direita para governar.
dos partidos da esquerda, que foi incapaz de abraçar as
reivindicações dos manifestantes e tomar a dianteira de O 13 de junho
um movimento contra a direita neoliberal, deixando que
a burguesia infiltrasse as manifestações e encobrisse os
Pela redução das tarifas
fatos através da imprensa, que apresentou sua própria
versão fantasiosa dos fatos: os manifestantes não estariam
nas ruas contra o neoliberalismo e a repressão do gover- A s manifestações de 2013 foram mais um sintoma do
agravamento dessa crise. Começaram com muito
A violenta repressão do dia 13 de junho foi o momento
decisivo de toda a crise. Justamente por isso, toda a
imprensa capitalista silenciou sobre esta questão nos dias
no do estado de São Paulo, mas sim contra o governo do maior participação da juventude. Seu espírito de luta tam- posteriores. A repressão não pôde ser escamoteada pela
PT. Vamos aos fatos. bém estava incrementado. Nos anos anteriores, alas mais imprensa com os argumentos conservadores tradicionais
moderadas do movimento, como a própria direção do de que o governo estava cumprindo a lei, que havia agi-
As manifestações que se espalharam por centenas de MPL (Movimento Passe Livre), buscavam evitar qualquer do contra baderneiros e outras fantasias da propaganda
cidades no País tiveram o seu ponto de partida em São manifestação mais radical e, particularmente, qualquer reacionária.
Paulo, com as passeatas contra o aumento da tarifa dos resistência à violência policial. Neste ano, a esquerda do
transportes coletivos implementado pelo prefeito Fernan- movimento, apoiada nos setores jovens da periferia que O resultado da repressão foi a liquidação de toda a
do Haddad, do PT, e pelo governador Geraldo Alckmin, começaram a participar, rompeu estes diques de conten- aparência de autoridade do governo do estado e da sua
do PSDB. ção e enfrentaram a repressão policial, apesar da óbvia máquina repressiva como fator político local e nacional.
desvantagem material. Os eventos de violência do início Todos os planos da direita estão baseados no controle
A luta pelo passe livre iniciou-se anos antes, durante o da manifestação, provocados diretamente pela repressão do aparelho administrativo do estado de São Paulo, a tal
governo Kassab e sofreu desde aquele momento a repressão policial, foram apresentados pela imprensa capitalista, que ponto que dias antes da manifestação, o jornal Folha de S.
policial. Ela teve momentos de mobilizações expressivas logo saiu em defesa do governo Alckmin, como “vanda- Paulo havia estampado na capa a manchete absolutamente
e outros momentos de pequenas manifestações, mas se lismo” e “baderna”. inverossímil de que Alckmin era eleitoralmente imbatível
em São Paulo e que seria capaz de derrotar até mesmo
o próprio Lula.
Manobra desesperada
Reprodução
As manifestações que se espalharam por centenas de cidades no País tiveram o seu ponto de partida em São Paulo, com as passeatas contra o A crise do 13 de junho levou à convocação de uma ma-
nifestação na segunda-feira seguinte que todos com
uma mínima capacidade de analisar a situação política sa-
aumento da tarifa dos transportes coletivos
OSSIÊ
CAUSA OPERÁRIA
política
primeira quinzena de junho de 2023 11
das manifestações
biam que seria gigantesca. A convocação da manifestação
no Facebook, na própria sexta-feira (14), já registrava mais
de 100.000 pessoas confirmadas. A manifestação estava
preparada para ser a marcha fúnebre da direita em São
Paulo nacionalmente e dos seus propósitos golpistas em
nível nacional, articulados na embaixada norte-america-
na. Os preparativos do golpe, que seria um coup de main,
senão um coup d’état, viriam a se mostrar claramente na
semana seguinte à repressão.
política
O estrangulamento da mobilização
política
sandice, propagada intencionalmente em uma campanha da burguesia, em primeiro lugar os mais conservadores, que sem organização política, uma organização que não
orquestrada contra a Copa do Mundo pela direita, para mas também os liberais, democráticos e reformistas. No é apenas e nem essencialmente eleitoral, não é possível
impedir que o governo use na sua demagogia eleitoral a Brasil, este processo está muito desenvolvido porque os enfrentar o que a burguesia está cozinhando no seu cal-
Copa como elemento decisivo na eleição de 2014, que será partidos fundamentais da burguesia, em primeiro lugar deirão de bruxa: a ação fascista violenta contra todas as
realizada imediatamente após a competição. Na realidade, o PMDB, se esgotaram durante o governo Sarney quan- organizações operárias e democráticas.
os manifestantes buscavam utilizar o fato de que a Copa do tiveram que enfrentar a classe operária em ascenso
atrai a atenção popular para protestar e mostrar as suas de 1983 a 1989. A conclusão inevitável destes fatos é que tornou-se
reivindicações. Outro dado importante é que o governo necessário construir um partido, na medida em que o PT
do PSDB proibiu qualquer tipo de manifestação em 800 O único partido que ainda mantém autoridade sobre não cumpre efetivamente este papel e é, claramente, o
cidades do estado, o que cria automaticamente um movi- as massas é justamente o PT. principal responsável, com a sua política de conciliação
mento contra a repressão policial-estatal. de classes, pela ofensiva da direita e pelo enfraquecimento
A luta contra todos os partidos, contra o partidarismo das organizações operárias e democráticas.
O movimento começou a refluir na medida em que em geral, era a luta dos partidos que foram completamente
foi derrotado em São Paulo. rejeitados pelas massas contra os partidos que não foram. Se A proposta de frente de esquerda para defender o mo-
a burguesia não consegue dizer, “largue o PT, venha para vimento de luta contra as agressões fascistas foi recebida
o PSDB”, então ela diz, “largue todos os partidos, todos por uma ampla camada de militantes com entusiasmo e
A “revolução” dos eleitores são maus”. É um velho truque da política burguesa que
leva ao bonapartismo, ao golpe de Estado e ao fascismo.
expressa a tendência geral a construir um partido operário,
mas, fundamentalmente, um partido operário de ação e
não eleitoral, vale dizer, um verdadeiro partido operário,
política
primeira quinzena de junho de 2023 15
puramente parlamentar da esquerda pequeno-burguesa. política de classe e revolucionária. Não compreendem isso com uma equivalência entre a direita tradicional e
que a luta de classes não é uma cruzada moral, mas que o reformismo do PT. Nós combatemos os movimentos
Em grande medida, o movimento foi vitorioso graças o programa e as bandeiras de agitação que se depreen- nacionalistas e frente-populistas sempre pela sua inca-
aos “vândalos” que reagiram como puderam à repressão dem dela servem justamente para agrupar militantes e pacidade de combater a direita, pelas suas alianças com
policial. O medo dos governos estava em que estas ações as massas em um sentido determinado. A bandeira da a direita, por colocar em prática a política da direita
se generalizassem com a ocupação de edifícios públicos e pseudo-luta contra a corrupção serve apenas para orga- quando esta não é capaz, cobrando deles as posições es-
um agravamento da crise política. Basta conferir quantas nizar a clientela política dos corruptos de direita contra querdistas, em grande parte demagógicas, com as quais
vezes os órgãos da imprensa do grande capital e da direi- a esquerda corrupta ou não. Usado no interior do movi- pretendem atrelar as massas. Dizer que Lula é igual
ta usaram as expressões “paz”, “manifestação pacífica”, mento operário e da juventude não passa de um elemento ou pior que Serra, como o PSOL e o PSTU diziam na
a qual foi considerada logicamente “linda”. de confusão. Este princípio elementar da luta política foi época, serviu apenas para desmoralizar quem dizia isso
provado nas manifestações. e a própria ideia de independência política em relação
O mesmo cenário havia se repetido na USP, onde o ao PT e à frente popular. Se a esquerda revolucionária
governo do estado queria usar de máxima violência po- A esquerda pequeno-burguesa moralista continuou não combater os ataques da direita contra as pequenas
licial contra os estudantes e colocar a universidade em acompanhando a agitação política da direita, mas, ao realizações da esquerda burguesa, como irá convencer
estado de sítio, mas a reação estudantil somente poderia contrário do que acreditava, não estava disputando com militantes e o movimento dos trabalhadores de que fará
ser absolutamente pacífica, ou seja, os estudantes teriam ela a propriedade da luta contra o PT, mas sendo absorvi- grandes reformas através da revolução?
que baixar a cabeça diante da repressão, o que não é da pela direita. Isso ficou demonstrado já na época com a
apenas contrarrevolucionário, mas indigno. Foi apenas a posição da esquerda diante do julgamento do “Mensalão”, A crítica à esquerda burguesa também não é, como
atitude dos “vândalos” que colocou em xeque a ditadu- onde sacrificaram a luta democrática para levar adiante assinalamos acima, uma cruzada, mas um instrumento
ra do PSDB. A esquerda pequeno-burguesa, do PSTU e a miragem da luta contra a corrupção. O julgamento do para ajudar as massas a superar as limitações da esquerda
do PSOL também aí condenou o “vandalismo” de uma “Mensalão” buscava enfraquecer o PT, criar uma pla- burguesa e para organizar um movimento independente.
minoria que segundo eles não teria sido aprovada pela taforma eleitoral para a direita, criar novas lideranças
maioria, que supostamente seriam eles. direitistas (Joaquim Barbosa) e tudo o que foi obtido foi
política
C ENSURA
G
lenn Greenwald, jornalista norte-americano famoso O rótulo foi inclusive aplicado a cidadãos dos próprios de censura imposto pela burguesia imperialista mundial
por expor as revelações do ex-técnico da Agência países que censuraram a imprensa russa, como foi bem ilus- (Roger Waters Frankfurt Concert Canceled After City Council Calls
de Segurança Nacional (NSA, em inglês) Edward trado no caso do ex-parlamentar britânico George Galloway, Him One of World’s ‘Most Well-Known Antisemites’, Billboard,
Snowden ao mundo, já há muitos anos não trabalha com que em seu perfil no Twitter aparecia como "mídia associa- 28/02/2023).
o jornal britânico The Guardian, que há uma década publi- da ao Estado russo" (George Galloway threatens to sue Twitter for
cava suas matérias sobre o caso. Também está fora do The flagging account as Kremlin-linked, The Guardian, 30/06/2022). A guerra deixou claro que apesar do controle exerci-
Intercept, portal de notícias que ajudou a fundar, do qual se do sobre os principais órgãos de comunicação do mun-
afastou em 2020, quando acusou os editores de tentarem A guerra também levou outro importante jornalista do, a desaprovação em relação às políticas da burguesia
censurar seu trabalho. Atualmente, o jornalista vai ao ar norte-americano, Seymour Hersh, que denunciou o mas- imperialista levaram a um descrédito inédito em seus
diariamente às 19h na plataforma Rumble, alternativa me- sacre de My Lai na Guerra do Vietnã, a publicar sua de- porta-vozes, deixando apenas a censura de dissidentes
nos popular ao YouTube, enquanto seu trabalho escrito é núncia sobre a explosão dos gasodutos russo-germânicos como alternativa. Como qualquer método repressivo,
publicado na Locals. Nord Stream no Substack. Segundo Hersh, o atentado quando seu uso mostra-se insuficiente, a solução é sem-
teria sido organizado pelo governo dos Estados Unidos pre aprofundar ainda mais a repressão, como podemos
Em toda abertura de seu programa diário, chamado e executado pela CIA com apoio norueguês. Os grandes ver se compararmos o atual cenário com a última onda
System Update ("Atualização do Sistema", numa tradução jornais norte-americanos não apenas não estavam dispostos de censura durante a pandemia da covid-19.
livre), Greenwald destaca que seu trabalho é transmitido
exclusivamente no Rumble, "a alternativa pró-liberdade
de expressão ao YouTube". A afirmação, porém, não é
mera propaganda, ainda que Greenwald tenha uma par-
ceria pública com o Rumble desde janeiro deste ano (Our
Migration to Rumble and Locals, Substack, 16/01/2023).
Censura global
Reprodução
fraestrutura de computação em nuvem. Simultaneamen- defesa apresentada pela senadora Pauline O'Reily, do Par- "Temos uma liminar e iremos ao tribunal amanhã de
te, Google e Apple retiraram o aplicativo da rede social tido Verde Irlandês, que disse ao plenário: manhã para lutar contra essa liminar ilegal e inconstitu-
alternativa de suas app stores, dificultando ainda mais seu cional. Tudo o que dizemos à América é para ser fiel ao
acesso (Depois do Google, Apple e Amazon também suspendem "Quando alguém pensa sobre o assunto, toda lei e toda que disse no papel. Se eu morasse na China ou mesmo
aplicativo Parler, portal G1, 10/01/2021). legislação trata da restrição da liberdade. Isso é exatamente na Rússia, ou em qualquer país totalitário, talvez pudesse
o que estamos fazendo aqui", argumentou O'Reilly. "Es- entender algumas dessas injunções ilegais. Talvez eu pu-
Foi ainda atribuída a Trump a responsabilidade pela in- tamos restringindo a liberdade, mas estamos fazendo isso desse entender a negação de certos privilégios básicos da
vasão do Congresso norte-americano, logo após seu discurso pelo bem comum." Primeira Emenda, porque eles não se comprometeram
em Washington no dia 6 de janeiro, quando seus apoiadores com isso lá. Mas em algum lugar eu li sobre a liberdade
buscaram obstruir a cerimônia que formalizava a vitória Mostrando consciência de que o intuito do projeto é de reunião. Em algum lugar eu li sobre a liberdade de
eleitoral do atual presidente Joe Biden. Apesar de Trump efetivamente restringir a liberdade intelectual dos irlande- expressão. Em algum lugar eu li sobre a liberdade de im-
ter explicitamente clamado por uma manifestação "patrió- ses, a senadora continuou: "se as opiniões de uma pessoa prensa. Eu li em algum lugar que a grandeza da América
tica e pacífica", inúmeros processos buscam responsabili- sobre a identidade de outras pessoas tornam suas vidas é o direito de protestar pelo direito. E assim como eu digo
zá-lo pela invasão e somam-se aos crescentes esforços para inseguras e causam um desconforto tão profundo que elas que não vamos deixar nenhum cachorro ou mangueira de
torná-lo inelegível antes das eleições de 2024 (Trump can face não podem viver em paz, nosso trabalho como legisladores água nos fazer dar meia volta, não vamos deixar nenhuma
civil lawsuits over the Jan. 6 riot, DOJ says, CNBC, 02/03/2023). é restringir essas liberdades para o bem comum". liminar nos fazer dar meia volta" (Martin Luther King's Last
Speech Discussed Our First Amendment, portal da Foundation for
Qualquer semelhança com a decisão pela inelegibi- Individual Rights and Expression, 21/01/2013).
lidade de Jair Bolsonaro por parte do Tribunal Superior
Eleitoral por supostos "ataques à democracia", firmada
No início, a liberdade O movimento oriundo da luta por direitos civis e li-
quando fechamos esta edição, não é coincidência. berdade de expressão culminaria com enormes manifes-
Essa sanha autoritária tomou conta inclusive de setores O apoio de parte da esquerda à supressão da liberdade
de expressão ocorreu na questão da pandemia, nas
tações contra a guerra do Vietnã. Influenciaria figuras
como Daniel Ellsberg, analista militar à época trabalhando
18 primeira quinzena de junho de 2023 OSSIÊ
CAUSA OPERÁRIA
política
política
primeira quinzena de junho de 2023 19
Lei de Controle de Crimes Violentos e Aplicação da Lei de was harsh against leakers, AP News, 11/09/2018). O fenômeno é tão prevalente que se transformou numa
1994, que introduziu na legislação norte-americana uma política da Organização das Nações Unidas (ONU). "Abor-
série de "crimes de ódio", incluindo como agravantes cri- Os eventos que fizeram confluir a ideologia da esquer- dar o discurso de ódio não significa limitar ou proibir a
mes cometidos com base na raça, religião, nacionalidade, da universitária norte-americana com o maior aparato de liberdade de expressão. Significa impedir que o discurso
etnia ou gênero da vítima. Em discurso realizado em 1995, vigilância e perseguição política já criado, porém, ainda de ódio se transforme em algo mais perigoso, particular-
Clinton declarou que a ação afirmativa era positiva para estavam por vir. mente a incitação à discriminação, hostilidade e violência,
os Estados Unidos (Clinton Declares Affirmative Action Is ‘Good o que é proibido pelo direito internacional", declarou o
for America’, Los Angeles Times, 20/07/1995). "Dois desafios sísmicos à ordem liberal do pós-guerra, secretário-geral da ONU para os Direitos Humanos, An-
ambos ocorridos em 2016: o Brexit em junho e a eleição tónio Guterres (Hate speech versus freedom of speech, portal da
Ao mesmo tempo, variações da TCR foram estimula- de Donald Trump como presidente em novembro. Os dois ONU, 05/2019).
das, em particular as teses de Kimberlé Crenshaw sobre eventos chocaram e assustaram os líderes de segurança
interseccionalidade, a ideia de que um indivíduo não pode nacional de ambos os lados do Atlântico. Muitos disseram
ser reduzido à sua raça, mas que deve ser considerado
sob diversos aspectos como raça, gênero e sexualidade.
abertamente que a ameaça política à OTAN e à Aliança
Ocidental era maior do que qualquer ameaça à segurança,
"Convergência de interesses"
As divagações chegaram ao ponto que Richard Delgado conclusão dramaticamente reforçada pela eleição de Trump
criticou seus novos colegas:
cultura
D
uas leis levam o nome do político da República de um discurso de ruptura. A habilidade de Bocaiuva, um dos Deputados).
Velha, Adolfo Gordo. Primeiro a Lei de 1907, que dos mentores do jornal O Globo, posteriormente, consistia
permitia a expulsão de estrangeiros. Feita para em manobrar as palavras para atrair diversos setores para A primeira lei Adolfo Gordo se voltava contra estran-
atacar líderes sindicais, classe que na época era composta o movimento republicanista: geiros, não por motivo étnico, mas para barrar o cresci-
principalmente por operários vindos da Europa, com essa mento do movimento operário. Com o desenvolvimento
lei a antiga oligarquia brasileira tentava desmembrar o “Somos da América e queremos ser americanos. A urbano e industrial brasileiro, imigrantes chegavam ao
incipiente movimento operário brasileiro. A segunda lei, nossa forma de governo é, em sua essência e em País e se organizavam politicamente contra a política de
“lei infame” como foi apelidada pela imprensa, permi- sua prática, antinômica e hostil ao direito e aos espoliação da classe trabalhadora. Gordo e os setores mais
tia a censura de jornais e proibia o anonimato. Ambas interesses dos estados americanos. A permanên- reacionários pretendiam cortar o que consideravam a raiz
as leis eram tentativas do já decadente regime da Repú- cia dessa forma tem de ser forçosamente, além da origem do problema, e tudo iniciou para estabelecer represália à
blica Velha de calar e decepar a sua oposição cada vez de opressão no interior, a fonte perpétua da hostilidade greve dos ferroviários da Cia. Paulista de Estradas de Fer-
mais crescente. e das guerras com os povos que nos rodeiam. Perante a ro e ao ascendente operariado. Após essa greve, Adolfo
Europa passamos por ser uma democracia mo- Gordo propôs a expulsão dos anarquistas estrangeiros e
nárquica que não inspira simpatia nem provoca dos líderes do movimento.
O início do movimento operário adesão. Perante a América passamos por ser uma
democracia monarquizada, onde a força do povo Na realidade, o tiro de Adolfo Gordo saiu pela culatra,
não pode preponderar ante o arbítrio e a onipotência do pois, apesar de terem expulsado 132 estrangeiros no pri-
cultura
primeira quinzena de junho de 2023 21
Adolfo Gordo
A segunda lei Adolfo Gordo “Qualquer ofensa ao Presidente da República, no exercício
ou não de suas funções; a qualquer estrangeiro ou a qualquer
representante diplomático, se não tiver o caráter de injuria ou
calunia, será punido com de 3 a 9 meses de prisão celular e
Gordo retornaria ao centro do debate do Senado A critica só será permitida se “tiver por objetivo preparar
com duras e repressivas leis. A atenção dada à imprensa a opinião publica para reformas em prol do bem publico e
foi providencial à República, pois garantia que veículos sendo formulada em linguagem moderada, leal e respeitosa”.
chapa branca como O Estado de São Paulo, O Globo
e Folha da Manhã (atual Folha de S. Paulo) pudessem São declarados sucessivamente responsáveis o autor, o edi-
garantir livre circulação de “veículos oficiais”, sempre tor, o impressor, o vendedor ou distribuidor. Qualquer publi-
visando um pacto por cima. O projeto, apesar de rece- cação deve levar os nome do diretor e do gerente e os endereços
ber críticas de diversos jornalistas e até de órgãos da im- da administração e da impressora.
prensa burguesa, tinha a pretensão de manter a ordem
social comprometida pela crise que atingia o País após As clausulas sobre a responsabilidade “sucessiva” desfe-
a Primeira Guerra Mundial. O artigo primeiro da Lei cham um golpe bastante rude contra a imprensa pobre, quer
de Imprensa de 1923 é a intensificação das penalidades dizer, a revolucionária, obrigado a recorrer aos serviços de
na lei estabelecida anteriormente, em 1921. Os demais impressora particulares, quase sempre burgueses, que para
artigos ditatoriais praticamente impedem a redação de evitar a responsabilidade legal, naturalmente se recusam a
qualquer crítica ao governo ou mesmo a defesa de outra nos imprimir.
ordem política.
As dificuldades de propaganda comunista aqui, são
“ Art. 2º A publicação de segredos do Estado é assim, grandemente aumentadas pela nova lei. Dois im-
punida com a pena de prisão cellular por um a quatro pressores já nos recusaram seus serviços. Nosso próprio
annos, tambem applicavel no caso de noticias ou infor- material tipográfico foi aprendido ou destruído durante a
Reprodução
mações relativas á sua força, preparação e defesa militar, campanha policial de maio-junho. Nossa ação pela luta
si taes noticias ou informações puderem de algum modo de classes revolucionária não diminuirá. Mas que os ope-
influir sobre a sua segurança externa ou despertar “O carrasco não tem culpa. Agiu por instinto de conservação”, diz a rários europeus saibam o que valem no Brasil as liberda-
rivalidades ou desconfianças, perturbadoras das legenda da charge des democráticas.”
boas relações internacionaes.
mente inviabilizando qualquer atividade política que
Paragrapho unico. E’, entretanto, permitida a dis-
cussão e critica si tiver por fim esclarecer e preparar a
se confrontasse com a “República do Café com Lei-
te”, que, de “café com leite”, não tinha nada no que
Uma tentativa de calar o progresso
opinião para as reformas e previdencias conve- diz respeito à repressão, não devendo nada à ditadura
nientes ao interesse publico comtanto que se
use de linguagem moderada, leal e respeitosa.
militar brasileira.
história
NIKITA KRUSCHEV
A mediocridade
Ao contrário do que alegam os stalinistas, a bancarrota da União Soviética não começou com URSS em Moscou.
Kruschev. Ele apenas amenizou a situação política tensa do período para justamente salvar Com apoio da burocracia stalinista na Ucrânia, Krus-
o poder da burocracia medíocre que assumiu o Estado após a contrarrevolução de Stálin chev começou a ascender nas posições do partido, auxi-
liando a contrarrevolução na perseguição aos opositores,
que passaram a ser perseguidos brutalmente por Stálin e
sua camarilha.
A
história da União Soviética é um dos maiores alvos maio, tornou-se presidente. Não era, no entanto, um bol- da organização partidária.
da falsificação histórica dos tempos modernos. De chevique. Juntou-se ao grupo apenas após a Revolução de
um lado, a burguesia imperialista busca apresentar Outubro, quando os bolcheviques tomaram o poder, der- Em 1929, Kruschev se aproximou da camarilha bu-
o antigo Estado operário como o inferno na terra na tenta- rubando o governo provisório. Dessa forma, Kruschev foi rocrática, seguindo Kaganovich para Moscou, e se matri-
tiva de caluniar o que é apresentado como “comunismo”. apenas mais um dos milhões de trabalhadores que se jun- culou na Academia Industrial. Na instituição, tornou-se,
Do outro, os stalinistas glorificam os antigos burocratas do taram ao partido após a revolução. Mais especificamente, com apoio da burocracia, secretário do partido na escola,
regime na tentativa de apresentar o sistema político sovié- ele se juntou aos bolcheviques ao final de 1918, ano em perseguindo setores da oposição que estavam organizados
tico como um exemplo a ser seguido pelos revolucionários. que começou a Guerra Civil contra as forças reacionárias na academia e haviam sido eleitos como delegados para
que queriam derrotar a revolução. uma conferência distrital.
No entanto, ocorre que, após o evidente fracasso da
URSS, esses últimos tiveram de manobrar para explicar Seu biógrafo William Taubman explica que, antes A ascensão de Kruschev foi então constante. Foi o líder
o que aconteceu. Inimigos mortais da ciência materialista disso, Kruschev era mais propenso a apoiar a política partidário para o distrito de Bauman, local da Academia,
desenvolvida pelos marxistas, os stalinistas se refugiaram menchevique: antes de ocupar a mesma posição no distrito de Krasnopres-
em vários tipos de falsidades. Adoradores do líder da con- nensky, o maior e mais importante de Moscou. Em 1932,
trarrevolução no primeiro Estado operário da história, “A afirmação de que ele determinou sua posição ideo- tornou-se o segundo homem da organização do partido
José Stálin, não podiam naturalmente compreender que lógica imediatamente após Outubro de 1917 é simples- em Moscou, atrás apenas de Kaganovich. Dois anos mais
a queda do regime fosse um desenvolvimento contrarre- mente falsa. Na verdade, Kruschev provavelmente sentia-se tarde, seria o 1º secretário na capital e se tornaria membro
volucionário desenvolvido pelo seu ídolo. mais próximo dos mencheviques com seu foco na melho- do Comitê Central. Na posição, Kruschev recebeu a Or-
ria econômica do que dos bolcheviques, que buscavam dem de Lênin (maior condecoração da União Soviética)
Assim, alguns apresentam a situação da seguinte ma- o poder político a qualquer custo. Afinal, a base política pela construção do metrô da capital. Em 1935, também
neira: até Stálin, a URSS era um exemplo a ser seguido. dos mencheviques era composta por trabalhadores mais virou 1º secretário do Comitê Regional de Moscou, saindo
Após sua morte, o Estado foi tomado pelos chamados prósperos, que tinham algo a perder, e Kruschev era um da liderança distrital para a liderança provincial.
“revisionistas”. Quem teria começado esse processo seria deles. Enquanto os moderados estivessem no controle, ele
Nikita Kruschev, secretário-geral do Partido Comunista tinha muito a ganhar. Somente depois que os bolchevi- Nessa época, começaram os Grandes Expurgos, quan-
da URSS de 1953 a 1964 e primeiro-ministro do país de ques assumiram o controle e pareciam os mais propensos do Stálin limpou o partido definitivamente dos antigos
1958 a 1964. Não entendem, no entanto, que Kruschev a reprimir tentativas de contrarrevolução, Kruschev pas- quadros revolucionários aproveitando-se do assassinato
foi a continuação da política stalinista: manteve o Estado sou a apoiá-los” (Khrushchev: The Man and His Era, William de Serguei Kirov. Os antigos dirigentes bolcheviques que
controlado por uma burocracia privilegiada em detrimento Taubman, 1990). realizaram a revolução (com exceção dos que já haviam
do restante da população e continuou a política de aliança morrido por causas naturais, de Leon Trótski, que estava
com o imperialismo e contrarrevolução interna e mundial. Kruschev foi então mobilizado como comissário políti- exilado, e Alexandra Kollontai, que havia se retirado da
co do Exército Vermelho, mas não realizou grandes feitos. política) foram todos julgados em processos farsescos: os
No entanto, os stalinistas criticam o burocrata soviético Em 1921, com o fim da guerra, ele foi desmobilizado e Processos de Moscou, enviados para campos de concen-
por uma das poucas ações boas que realizou: denunciar designado, no mesmo ano, como diretor assistente de as- tração e, em seguida, executados.
os crimes políticos de Stálin. Ainda, os stalinistas, que suntos políticos para a mina de Rutchenkovo, na região de
apresentam Kruschev como um direitista em relação ao Donbas, vivendo na penúria causada pelos anos de guerra. Mais tarde, Kruschev denunciaria os Grandes Expur-
“revolucionário” Stálin, não compreendem que, pelas cir- Sem grandes interesses políticos, Kruschev queria apenas gos de Stálin. Mas, na época, ele foi um ferrenho defensor
cunstâncias políticas, o dirigente soviético das décadas de ser bem-sucedido profissionalmente. Por isso, ingressou dos mesmos: “Todos que se alegram com os sucessos al-
1950 e 1960, na verdade, estava à esquerda do “homem na Universidade Operária de Carcóvia em 1922. Nas cançados em nosso país, as vitórias do nosso partido lide-
de aço”. Para os marxistas isso não significa, no entanto, fileiras do partido, cuja Secretaria-Geral (até então um rado pelo grande Stálin, encontrarão apenas uma palavra
uma defesa da política de Kruschev. Este foi um burocrata cargo administrativo) já estava controlada por Stálin, que adequada para os cães mercenários e fascistas do bando
qualquer, sem qualquer relevância para a Revolução Russa. se apoiava na burocracia do Estado soviético devastado trotskista-zinovievista. Essa palavra é execução”, defendeu
pela Guerra Civil, Kruschev assumiu os irrelevantes car- na época, como lembra Taubman (Khrushchev: The Man and
gos de secretário do partido da escola técnica (tekhnikum) His Era, William Taubman, 1990).
Um burocrata qualquer do Donbas e de membro do bureau do comitê do partido
para a cidade de Yuzovka. A verdade é que os Grandes Expurgos foram benéficos
para Kruschev, pois Stálin mandou assassinar até mesmo
história
primeira quinzena de junho de 2023 23
burocrática no poder
efetivo do Politburo em março de 1939. Alguns anos antes, Sem conseguir dar conta das metas estabelecidas por serviu como um fator de progresso ao denunciar os crimes
foi nomeado por Stálin como chefe do Partido Comunista Moscou em relação às colheitas, prejudicadas por uma in- cometidos pelo stalinismo, comprovando as denúncias fei-
na Ucrânia. Na federação ucraniana, os expurgos haviam tensa seca que atingiu a Ucrânia, Kruschev foi removido do tas pelos setores de oposição anos antes.
sido gigantescos. Quando assumiu, o ritmo das prisões cargo de primeiro-ministro, substituído por Kaganovich. No
acelerou consideravelmente. Quase todo o quadro diri- entanto, foi mantido na liderança do partido na Ucrânia. No entanto, as denúncias levaram a uma crise política
gente do partido e do Exército Vermelho foi substituído. internacional nos partidos comunistas – órgãos satélites
Kruschev não deixou pedra sobre pedra. da burocracia soviética. No Brasil, por exemplo, os setores
internacional
O mito da
O “direito histórico” à “Terra de Israel” não passa de um mito Ilíada e Odisseia dos hebreus, explica que, antes do sécu-
lo X a.C., das estepes e desertos meridionais e orientais,
sionista para justificar os abusos praticados na Palestina tribos judias chegaram ao local e se depararam com os fi-
listeus no oeste e os cananeus que já habitavam a região.
Antes de chegar a Canaã, “essas tribos viviam em gens;
dedicavam-se à criação de gados nos oásis dos desertos.
Com o tempo, as gens dividiram-se em grandes famílias
Juca Simonard patriarcais que possuíam seus próprios rebanhos”, conta
o professor soviético A. V. Michulin (História da Antigui-
dade, Moscou: Vitória, 1960).
O
principal pretexto dos sionistas para justificar mizando com os nacionalistas judeus, Marx aponta que compromisso com a realidade histórica e, provavelmente,
a limpeza étnica e o regime de apartheid que se eles opõem “à nacionalidade real sua nacionalidade qui- com personagens inventados, mas o documento serve para
estabeleceu na Palestina é que a região seria a mérica e à lei real sua lei ilusória, crendo-se com o direito ilustrar o feito. No Egito e na Mesopotâmia, surgiram os
verdadeira terra de seus antepassados judeus. A “terra de manter-se à margem da humanidade, a não participar, fundadores das chamadas “doze tribos de Israel”. Lide-
ancestral” foi o principal argumento não só para iniciar por princípio, do movimento histórico, a aferrar-se à espe- rados por Moisés, eles teriam migrado para Canaã, terra
a colonização do território nos primórdios do século XX rança de um futuro que nada tem a ver com o futuro geral que lhes teria sido prometida por Deus, e exterminado a
como para capturar Jerusalém e quase toda a Palestina do homem, considerando-se membro do povo hebraico, população local:
após a Guerra dos Seis Dias, em junho de 1967. que reputa eleito” (A Questão Judaica, Karl Marx, 1843).
Finalmente, o judeu alemão é antes alemão que judeu, “Mas nas cidades desses povos que o Senhor seu Deus
No entanto, esse argumento não passa de engodo. Insi- assim como o alemão cristão é antes alemão que cristão. está lhes dando como herança, vocês não devem deixar
diosamente, os sionistas procuram unificar o “povo judeu” vivo nada que respire” (Deuteronômio 20:16). “E todo o
e, mediante mitos de um suposto exílio judeu ocorrido no Além disso, a criação artificial de um “povo judeu” espólio dessas cidades e gado o povo de Israel tomou como
passado, justificar o “direito histórico” à “Terra de Israel” serviu como pretexto para que judeus europeus de diversas pilhagem. Mas todas as pessoas eles atingiram com o fio
(Eretz Yisrael). Patrocinado pelo imperialismo britânico e nacionalidades, que nada tinham a ver com os antigos ju- da espada até as terem destruído, e não deixaram nada que
o norte-americano, o sionismo seria, portanto, o respon- deus que habitaram a Palestina, iniciassem um movimento respirasse” (Josué 11:14).
sável pela “volta do povo escolhido” à “terra ancestral”. nacionalista reacionário baseando-se em ideias que nem
mesmo eram apoiadas pelos líderes religiosos judaicos do “Quando os israelitas e os judeus penetraram na Pales-
Assim, o “povo exilado” teria direito à propriedade passado. Esses nunca defenderam o regresso à “terra an- tina exterminaram parcialmente a população que aí vivia e
nacional “de um território no qual não viveu subjugaram o resto. Nas regiões ocupadas,
por dois milênios, ao passo que a população cada tribo se estabeleceu em comunidades
que ali estivera vivendo por tantos séculos e estas passaram, pouco a pouco, à agricul-
[os árabes] não tinha tal direito”, conforme tura. Os israelitas estabeleceram-se ao nor-
aponta o historiador israelense Shlomo Sand te, onde existiam vales férteis. Os judeus
(A invenção da Terra de Israel, 2012). ocuparam as zonas montanhosas situadas
ao sul”, conta Michulin (1960). A partir da
“Sempre me pareceu que uma tentativa luta contra os filisteus, povo guerreiro que
sincera de organizar o mundo tal qual estava começou a assaltar as propriedades israeli-
há centenas ou milhares de anos significaria tas, os chefes da tribo seriam os primeiros
a injeção de uma insanidade delirante no sis- reis de Israel entre os séculos XI e X a.C.
tema geral de relações internacionais. Será
que alguém cogitaria encorajar hoje em dia Sendo assim, seguindo a política identitá-
uma exigência árabe de se assentar na Pe- ria sionista, a região da Palestina não deveria
nínsula Ibérica para ali estabelecer um Es- ser considerada propriedade exclusiva dos
tado muçulmano simplesmente porque seus hebreus, mas sim das tribos que lá viviam
ancestrais foram expulsos da região durante anteriormente. As “tribos de Israel” não têm
a Reconquista? Por que os descendentes dos origem ali, mas são um povo que fugiu do
puritanos, forçados a deixar a Inglaterra sé- Egito e da Mesopotâmia para se estabelecer
Reprodução
culos atrás, não haveriam de tentar retornar na região. É certamente absurdo afirmar que
em massa para a terra de seus antepassados a os filisteus e cananeus guardam algum tipo
fim de estabelecer o reino celestial? Alguma O califa Omar conquista Jerusalém, no ano 638. de “direito histórico” às terras palestinas,
pessoa em sã consciência apoiaria exigências mas é exatamente essa a natureza do argu-
de nativos norte-americanos de assumir a posse territorial cestral”. Para eles, Jerusalém e o antigo território da Judeia mento dos apoiadores do Lar Nacional Judeu.
de Manhattan e expulsar seus habitantes brancos, negros, não eram nada mais que um local de adoração religiosa, e
asiáticos e latinos?”, argumenta Sand (2012). não uma terra onde se deveria instaurar um Estado judaico. Os reinos de Judá e Israel seguiram o caminho natural
do desenvolvimento das forças produtivas da agricultura:
Ademais, a tentativa de criar um “povo judeu” não uma aristocracia rural e militar compunha a burocracia
passa de falsificação histórica. Primeiro, porque os des-
cendentes diretos dos judeus do passado se espalharam
Os reinos de Judá e Israel estatal e, à medida que crescia, apoderava-se da terra dos
camponeses, que por sua vez tinham de executar os tra-
pelo mundo, misturando-se com outros povos. O judeu balhos reais em determinados períodos e pagar impostos
“puro”, das tribos que fundaram os reinos de Israel e Judá,
não existe mais, tendo se incorporado aos diversos povos
semitas que existem no Mediterrâneo e na Mesopotâmia.
O s argumentos sionistas se erigem em conceitos iden-
titários, alegando que o judeu é o povo original da
atual região que engloba Israel e Palestina. No entanto,
para sustentar o Estado. Parte do poder adquirido pela
aristocracia se deveu às rotas comerciais que passavam
pela Palestina e ligavam a Mesopotâmia ao Egito. De outro
Os judeus que viveram nessas regiões ao longo dos sécu- essa alegação é refutada pelas escrituras hebraicas, ou o lado, a acumulação de riquezas levou ao empobrecimento
los são uma junção de diversos grupos étnicos convertidos Antigo Testamento, que explicam as origens dos judeus. dos camponeses, que se tornavam escravos por dívidas. A
ao judaísmo. Trata-se de um grupo essencialmente reli- divisão enfraqueceu os reinos, que frequentemente guer-
gioso, não se podendo falar, então, de um “povo judeu”. Devido aos escassos registros históricos do período, reavam entre si, além de precisar enfrentar os ataques da
O mesmo se aplica aos judeus europeus que iniciaram a pouco se sabe realmente sobre o estabelecimento dos he- Assíria, reino situado ao norte da Mesopotâmia.
colonização da Palestina. breus na Palestina, então chamada Canaã. A região é uma
estreita faixa de terra a sudeste da Fenícia (atual Líbano e
Por isso, o historiador inglês Eric Hobsbawn apontou
que “é inteiramente ilegítimo identificar os elos judaicos
Síria), a leste do rio Jordão e do Mar Morto e a oeste do
Mediterrâneo. Em muitos pontos, o território está cortado
Ascensão e queda do judaísmo
com a Terra de Israel ancestral [...] com o desejo de re- por montanhas, onde o clima é rude e o solo pouco fértil.
unir todos os judeus em um Estado territorial moderno
situado na antiga Terra Santa” (Nações e nacionalismo
desde 1780, 1990).
Em outros, a Palestina tem pequenos vales, que graças ao
rio Jordão são cobertos por planícies de pastoreio e campos
para agricultura. No sul, um areal converte-se num deserto,
E m 723 a.C., os assírios se apoderaram do Reino de
Israel, o mais rico, com as melhores terras para agri-
cultura. Submetidos, os israelitas passaram a pagar tribu-
onde na época de chuvas cresciam ervas suculentas, e a tos aos conquistadores. Menor e mais fraco, o Reino de
É também nesse sentido que, em A Questão Judaica, região permitia o pastoreio. Na seca, no entanto, os pastos Judá, por sua vez, seguiu existindo ainda algum tempo.
Karl Marx, ele mesmo um alemão oriundo de uma família sumiam, e os pastores tinham de ir às montanhas a fim de Caiu em 586 a.C., após ser derrotado pelo exército de
judia convertida ao cristianismo, refere-se à “nacionalida- conseguir alimento para os rebanhos. Nabucodonosor II, rei do Império Babilônico. Os babi-
de” judia como “nacionalidade quimérica”, ou seja, algo lônios conquistaram Jerusalém e destruíram o Templo de
desprovido de realidade, resultado da imaginação. Pole- O Velho Testamento, que serve como uma espécie de Salomão, dispersando parcela da elite hebraica para ou-
OSSIÊ
CAUSA OPERÁRIA
internacional
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“Terra de Israel”
tros centros políticos e culturais do Oriente Médio, onde Infelizmente, pouco se sabe sobre o que terá ocorrido Deus; e restaurou o sumo sacerdócio a Hircano, tanto por-
continuou se organizando política e culturalmente. Entre na Palestina entre os séculos V e II a.C., quando o judaísmo que ele havia lhe sido útil em outras funções, quanto por
os judeus, surgiu muito cedo uma escrita própria. Outra se expandiu e os livros da Bíblia foram redigidos, editados ter evitado que os judeus na zona rural do país ajudassem
parte da população, principalmente os camponeses, foram e retrabalhados. No entanto, ao contrário dos assírios e dos Aristóbulo de qualquer forma em sua guerra contra ele”
escravizados pelos babilônios. babilônios, os persas e os helenos permitiram aos judeus (Antiguidades Judaicas, 93-94).
de Jerusalém determinado grau de liberdade, e o judaísmo
A organização judaica fora da Palestina obteve novos começou a se propagar em pequenas localidades ao redor O fim da guerra civil romana – com a morte de Pom-
frutos durante o domínio persa na região, iniciado cerca de da cidade. No século II a.C., os adoradores do Deus único peu e de seu rival, Júlio César –, enfraquece o domínio
50 anos depois, originando o chamado Período do Segun- eram já uma “ampla comunidade de crentes apta a abraçar romano sobre Israel, permitindo um breve ressurgimento
do Templo. Ao contrário dos assírios e dos babilônios, os suas visões e até se rebelar contra um governante pagão asmoneu, com apoio do Império Parta. A Judeia volta a
persas trataram os judeus com certa liberdade, permitindo a fim de defender seus princípios religiosos e práticas ri- ficar sob forte domínio romano após Herodes I, o Gran-
que voltassem a Jerusalém. Esse período durou de 516 tuais”, conta Sand (2012). de, em 37 a.C., ascender a rei e tornar Israel um Estado
a.C., quando foi construído o Segundo Templo de Jerusa- cliente dos romanos.
lém, até a dominação da Palestina pelo Império Romano. Entre 167 e 160 a.C., há um acontecimento essencial
para a expansão do monoteísmo: a Revolta Asmoniana Sand (2012) aponta que, “ao contrário do passado, os
Esse foi o principal momento de propagação do judaís- (ou Macabeia) permite o surgimento do primeiro Estado governadores romanos agora empregavam uma política
mo. Provavelmente, a religião terá surgido nessa época. A judaico da história. A revolta eclode no contexto do colap- destrutiva e irresponsável contra a fé judaica e compro-
hipótese mais plausível é que, quando os persas chegaram so do Império Selêucida diante dos ataques de potências metiam seriamente a sacralidade do Templo. Além disso,
à Babilônia, encontraram sacerdotes e antigos escribas emergentes como Roma e o Império Parta. a política tributária rigorosa também causava queixas so-
entre os exilados judeus e puseram-nos em contato com ciais e agitação de classe”.
o zoroastrismo. Em luta contra o politeísmo mas ainda Ao contrário do que hoje alegam os sionistas, a causa
fiel ao dualismo divino, a religião oficial dos persas teria não foi uma luta nacional por independência e soberania, Em 66 d.C, eclodiu a primeira guerra judaico-romana.
influenciado os exilados e seus descendentes a adotarem mas um movimento de cunho religioso. A questão do Em 70, durante o governo do imperador romano Vespasia-
a crença em um único Deus. Estado judeu não estava colocada. Afinal, em quase 300 no, Jerusalém foi cercada, e o Templo destruído. Apoia-
anos sob o domínio persa e depois macedônio, os judeus dos por agricultores pobres da região, os judeus reagiram
“O grau de abstração presente no jovem monoteísmo nunca levantaram essa proposta. A revolta, liderada por tomando a fortaleza de Massada, mas os romanos cerca-
só poderia ter emergido dentro de uma cultura material e Judas Macabeu, iniciou após o imperador Antíoco IV Epi- ram-na e derrotaram os revoltosos.
oficial estatal com considerável controle tecnológico so- fânio proibir certos ritos e tradições religiosas judaicas.
bre a natureza. Na época, tal controle havia sido obtido A revolta dos judeus ortodoxos implicou o surgimento Com a vitória romana, acaba o período do Segundo
apenas pelas grandes civilizações hidráulicas, como Egito de um Estado independente, reconhecido pelo senado da Templo, fundamental para a propagação do judaísmo – e,
e Mesopotâmia. O notável encontro entre exilados e seus emergente República Romana, em 139 a.C. portanto, do monoteísmo. Foi o momento em que surgiu
descendentes de um lado e esse centro de alta cultura de a Bíblia, e os judeus circularam por diversas regiões do
outro parece ser o que proporcionou a fundação para as No entanto, o reino teocrático soberano teve curta du- Oriente Médio difundindo a religião e se aproveitando da
teses pioneiras”, argumenta Sand (2012). ração. Eclodiu na Judeia uma guerra civil no interior da decadência do politeísmo.
dinastia asmoniana, entre Hircano II e Aristóbulo II. O
E prossegue: “Como é típico de revoluções intelectuais general romano Pompeu Magno, que já havia conquistado Durante o curto reinado asmoniano, os judeus avan-
decisivas, esses pensadores ousados e cultos foram for- quase toda a Síria selêucida, interveio na Judeia com apoio çaram ainda mais. Sand (2012) conta que os judeus “es-
çados a desenvolver suas ideias radicais fora dos círculos de Hircano, cercou Jerusalém e anexou a região a Roma. forçaram-se apaixonada e energicamente para converter
culturais estabelecidos. Ao escrever em uma linguagem Nomeou Hircano sumo sacerdote, mas não lhe concedeu os habitantes dos territórios vizinhos conquistados. Os
não familiar e, no caso de alguns indivíduos, migrar para o título de rei. O Estado judaico deixou de ser indepen- edomitas de Neguev e os iturianos da Galileia foram obri-
Canaã sob a proteção do soberano persa, verificaram ser dente, pagando tributo aos romanos e sendo obrigado a gados pelos asmonianos a remover o prepúcio e se tornar
possível evitar choques frontais com um sacerdócio he- apoiar suas ações militares. judeus no pleno sentido da palavra. Assim, a comunidade
gemônico e hostil e com autores da corte que ainda eram de crentes judeus cresceu tanto em tamanho quanto em
semipoliteístas. Dessa maneira, deslocando-se entre Canaã O historiador Flávio Josefo narra os acontecimentos: poder, e a terra da Judeia expandiu-se”.
e Babilônia, deram o primeiro passo do lento movimento “Dos judeus, caíram doze mil, mas dos romanos, muito
histórico rumo a um tipo completamente novo de tradição poucos... e não poucas enormidades foram cometidas no “Essa conversão em massa não foi exclusiva do rei-
teológica” (Sand, 2012). próprio templo, que, em épocas anteriores, era inacessível no da Judeia. A partir desse período, e em especial como
e não podia ser visto por ninguém; pois Pompeu entrou resultado do fértil encontro do monoteísmo com a cultu-
“A pequena Jerusalém do século V a.C. tornou-se um nele e não poucos dos que estavam com ele também e ra grega, o judaísmo tornou-se uma religião ativamente
local de refúgio e uma sementeira intelectual para esses viram o que era ilegal ser visto por quaisquer outros ho- proselitista e começou a se espalhar pelo Mediterrâneo,
intelectuais excepcionais. Alguns parecem ter permaneci- mens, acessível apenas aos sumos sacerdotes. Havia no adquirindo muitos praticantes novos. E, embora houvesse
do na Babilônia e fornecido logística material e espiritual Templo a mesa de ouro, o candelabro sagrado, os vasi- existido continuamente uma comunidade monoteísta na
aos migrantes, o que ajudou a criar o corpo revolucioná- lhames de água e uma grande quantidade de temperos; e, Babilônia desde o século V a.C., os migrantes começa-
rio. Canaã, portanto, serviria de ponte espiritual entre a além destes, estava ali o tesouro de dois mil talentos de ram a deixar a Judeia três séculos depois rumo a todos os
fé nascida no Crescente Fértil ao norte e as culturas da dinheiro sagrado: mas Pompeu não tocou nada disto por centros do mundo helenístico, onde então começaram a
região mediterrânea. Jerusalém se tornaria a primeira pa- causa de seu respeito à religião; e, neste ponto, agiu de disseminar sua fé em massa” (Sand, 2012).
rada da poderosa campanha teológica (judeo-cristã-mu- maneira digna de sua virtude. No dia seguinte, ele deu a
çulmana) que por fim conquistaria uma larga porção da ordem para que os encarregados do templo o limpassem O caráter proselitista da expansão do judaísmo des-
terra” (Sand, 2012). e que levassem até lá as oferendas requeridas pela Lei a mente a mitologia criada pelos sionistas, que inventaram
internacional
região da Palestina. O movimento cristão cresce a tal ponto física definida” (Sand, 2012).
que o Império Romano, com Constantino e seu Édito de Maomé Ali Paxá, líder militar e político egípcio, considerado o fundador do Egito moderno
Milão, em 313, aceita o monoteísmo cristão como religião; Portanto, os pretextos sionistas
e depois, pelo Édito de Tessalônica, de 380, o Imperador não se sustentam nem no aspecto
Teodósio I torna o cristianismo a única religião do impé- histórico, nem no sentido religioso do judaísmo. Como precisavam da unificação para seguir adiante no progres-
rio. Foi assim que o cristianismo se tornou em seguida a mostra Sand (2012), “a ‘terra ancestral’, que por vezes so de suas forças produtivas, estimuladas pelo comércio
religião mais popular do mundo, inclusive em Jerusalém. é referida como ‘pátria’, não seria o local de um Estado e pela agricultura.
judeu, mas apenas o berço do judaísmo, um lugar religio-
so que deveria ser adorado. Ao contrário, os judeus eram Maomé começou sua pregação por volta do ano 610,
Sionismo x judaísmo um povo escolhido que deveria se expandir pelo mundo em Meca, contrariando a nobreza da cidade, que defen-
inteiro, como os verdadeiros escolhidos. Eles se expan- dia o culto politeísta da Caaba. Em face às perseguições,
diram por todo o sul do Mediterrâneo e na Mesopotâmia. Maomé emigrou em 622 para Medina, onde sua comu-
O sionismo
cultura
E
steve em cartaz, entre os dias 12 e 20 de maio, como tores, mas o aspecto cênico tão necessário para a obra foi
parte da temporada de óperas de 2023 do Theatro trucidado, liquidado e enterrado. Substituíram tudo por E assim, depois de transformar Peri num personagem
Municipal de São Paulo, a obra-prima O Guarani, elementos de uma arte genericamente indígena. Desenhos ridículo, Krenak também transforma os aimorés em algo
de Carlos Gomes. pretensamente tribais que passeavam num telão moderno sem importância.
(o que por si só já responde à pergunta estendida em faixa
Logo que foi anunciada a apresentação do espetácu- no palco: “Como é ser civilizado?”), projeções sem rela- Se Carlos Gomes procurou exaltar o índio para um
lo, apareceram as notícias na imprensa capitalista de que ção com a história que estava sendo contada, frases com público europeu ávido por conhecer o que na época con-
haveria uma nova montagem da ópera, com a “concep- pseudo protestos que apareciam fora de tempo e de lugar. sideravam exótico, Krenak fez o contrário. No final das
ção” de Ailton Krenak, apresentado como "índio escritor, Chegou ao ponto tal que, durante o belo solo da soprano contas, quem assistiu à montagem fica sem saber exata-
filósofo e sociólogo". que interpretava Ceci, passavam imagens antigas em outro mente o que pensar dos índios: seriam eles grandes per-
telão, com frases desconexas sobre a ação de antropólogos sonagens ou apenas pobres coitados?
Foi justamente a apresentação de O Guarani, a "nova em tempos imemoriais, concorrendo a atenção com uma
adaptação" e as inúmeras besteiras ditas para justificá-la das partes mais importantes da peça. Na verdade, temos a impressão que os índios foram
que nos motivou a escrever esse artigo sobre Carlos Gomes, enganados de novo. Um espertalhão escolhido pela bur-
talvez o mais importante compositor brasileiro. A palavra aventureiro, que consta na peça, foi “tradu- guesia para ser seu representante ganhou um cargo no
zida” ideologicamente para “explorador”, e dezenas de Theatro Municipal, ligado à prefeitura do MDB-PSDB,
Pretendemos, com este artigo, em primeiro lugar mos- outras coisas absurdas como essa. para vender o peixe de que ali eles seriam “representados”.
trar qual foi a "concepção" da obra apresentada no Muni-
cipal e quais as ideias apresentadas na imprensa capitalis- Um diretor que se propõe a fazer uma montagem de Fizeram foi uma enorme sacanagem com os índios!
ta sobre a obra. Depois, cabe-nos fazer justiça ao grande uma peça tende a realizá-la de acordo com uma interpre-
compositor brasileiro, falar brevemente de sua importân- tação que ele faz da obra. Atualmente, essas interpretações Os românticos do século XIX tinham como objetivo
cia e da importância de O Guarani para a música e as têm sido uma verdadeira lástima. Mas suponhamos que retratar os índios como heróis nacionais, já os supostos
artes em geral. a tentativa de interpretação de O Guarani proposta por defensores atuais dos índios se mostram, na realidade,
Krenak fosse séria. Se esperaria algo que fosse interessante grandes inimigos deles.
de se assistir, ainda que a concepção ideológica por trás
O que houve no Theatro Municipal da interpretação fosse errada. O que se assistiu no Muni-
cipal, no entanto, foi algo vergonhoso, de péssimo gosto. A burguesia e o identitarismo
C onforme amplamente noticiado pela imprensa bur-
guesa, Krenak “concebeu” a obra para “corrigir ‘dano
cultural enorme’”, segundo artigo de O Estado de S. Paulo.
Segundo o que se noticiou na imprensa e as próprias
declarações de Krenak, a intenção da montagem era opor
o índio apresentado na ópera ao índio que, segundo eles, O jornal golpista O Estado de S. Paulo, quando a peça foi
estreada, publicou matéria afirmando, sobre a "con-
Fica claro pelo comportamento dos jornais golpistas que a seria o índio “real”. Mas isso não fica claro para o espec- cepção" da obra, que se trata de “corrigir ‘dano cultural
burguesia financiou o espetáculo com a demagogia iden- tador. Colocaram um índio mudo para servir como uma enorme’”, segundo o próprio Krenak. Logo no início do
titária à custa da destruição de uma obra importantíssi- espécie de sombra do tenor que representava Peri, meio artigo do jornal, há uma afirmação do mesmo Krenak di-
ma da cultura nacional. É o que tem ocorrido com toda que numa relação da dupla Zorro e Tonto. A única sen- zendo que “Peri é uma caricatura de índio ridícula, a que
a história do Brasil. sação que conseguiram passar foi a de ridículo, como se estamos sujeitos há 150 anos”. O maior jornal de Cam-
costuma dizer popularmente, uma vergonha alheia. pinas, Correio Popular, resumiu a adaptação: “A ópera ‘O
O que foi visto no Theatro Municipal durante as apre- Guarani’ sob a ótica de Ailton Krenak”. Quem é Krenak
sentações em maio é exatamente isso: a tentativa de des- Mas é ainda pior do que simples ridículo. Ao enxertar para fazer a ópera sob sua ótica própria, não se sabe, sa-
truir a obra de Carlos Gomes. na peça elementos supostamente indígenas, Krenak apenas be-se apenas que ele é o escolhido da burguesia para falar
conseguiu o vexame de colocar os índios, que estavam ali, em nome dos índios.
Gomes está entre os maiores compositores da história numa posição desfavorável. Esse, aliás, é o único resulta-
da música brasileira. Sua peça mais famosa é justamente do possível quando se contrasta o verdadeiro “tiro de ca- Em suma, os espectadores que compraram os ingres-
O Guarani, cuja estreia ocorreu no Teatro Alla Scala, em nhão” que é uma ópera super complexa do romantismo sos para assistir à ópera brasileira mais famosa do mundo
Milão, Itália, em 19 de março de 1870. É uma ópera bra- com elementos simples da cultura dos índios. acabaram comprando gato por lebre. Chegaram ao Mu-
sileira, escrita em italiano, feita para o público europeu. nicipal na expectativa de assistir à obra de Carlos Gomes,
Não há nenhum problema nisso. Na realidade, a peça foi Aqui, vale um parêntese: a cultura do índio apresen- mas encontraram outra coisa, no máximo uma interpre-
pensada justamente para apresentar os temas brasileiros tada ali já não é nada mais do que uma cultura popular tação da obra. Uma interpretação que ninguém discutiu,
para os europeus, algo que despertava bastante interesse brasileira. Um violão e uma rabeca ou violino, instru- ninguém aprovou, a não ser a cúpula que rege os traba-
na época. mentos trazidos pelos europeus, acompanhando algum lhos no Municipal.
vestígio de percussão indígena. É provável que Krenak,
A obra foi concebida para ser um grande espetáculo, em toda a sua vontade demagógica, nem tenha parado Além de caracterizar o personagem da ópera como
não apenas pela música belíssima e poderosa, mas por para pensar que aquela música apresentada como sendo ridículo, Ailton Krenak continua: “Os povos originários
todo o conjunto da apresentação. A ópera, em quatro dos índios era no máximo um resquício de cultura indí- se sentem ofendidos pela narrativa da ópera. E ela traz
atos, contém um coral numeroso e um balé no terceiro gena. Não há nenhum problema nisso, é assim a cultura um dano cultural enorme por ter sido perpetuada acriti-
ato. Tudo para dar o aspecto de grandeza e aventura épi- folclórica brasileira, uma mistura de elementos europeus, camente por tanto tempo”. Já que o negócio é interpre-
ca que a história transmite. É uma grande realização da indígenas e africanos, mas é preciso notar esse tipo de tar, podemos interpretar da seguinte maneira a frase de
cultura nacional. coisa para mostrar a incoerência da ideologia identitária. Krenak: “eu mesmo e mais meia dúzia de pretensos índios
universitários nos sentimos ofendidos pela ópera”.
Mas como a cultura nacional não vale nada para os Krenak, ao tentar prevalecer na montagem sua con-
identitários, chegamos ao resultado da montagem atual no cepção do “índio real” como “protagonista”, acabou con- É disso que se trata realmente. Como é possível afir-
Theatro Municipal. Todo o espírito da obra foi aniquilado. seguindo o efeito contrário. Transformou o índio num mar que os “povos originários” se sentem ofendidos com
Não havia aventura, não havia guerra, não havia luta; os pobre coitado. uma ópera!? A única explicação é que essa "ofensa" está
conflitos foram reduzidos ao máximo. Talvez o conflito restrita ao círculo de identitários que se apoderaram do
que mais tenha aparecido foi justamente a luta de Ailton Enquanto Carlos Gomes na obra enaltece os índios, direito de falar em nome dos índios.
Krenak contra a obra de arte. Mas Krenak não foi muito Krenak os torna pequenos. Os românticos enalteciam
bem sucedido em sua tentativa de destruir a peça, e o que os índios porque eles entendiam – e é verdade – que os A declaração revela também a ignorância completa dos
o público pôde ver foi a transformação de um espetáculo índios constituíam parte essencial da formação social e pretensos intelectuais modernos identitários sobre o que foi
grandioso em algo incompreensível. cultural do Brasil. o romantismo brasileiro, como mostraremos mais adiante.
A música permaneceu, ali havia a orquestra e os can- Por isso Peri – que foi chamado de ridículo por Krenak Também é preciso dizer que a ópera no Brasil, infe-
OSSIÊ
CAUSA OPERÁRIA
cultura
primeira quinzena de junho de 2023 29
e a conquista do mundo
lizmente, é assistida por alguns milhares de pessoas. Com Vejam como o identitarismo cega as pessoas. O autor consideração está muito longe de ser exagerada e reside
certeza – e também infelizmente – desses milhares pode- do artigo não consegue reconhecer o óbvio. Está lutando aí a importância do grande compositor de O Guarani.
mos contar nos dedos quantos são índios. Ou seja, quem contra uma “elite” imaginária, que ele sequer sabe o que
mais poderia se sentir ofendido senão os pretensos índios é, enquanto a verdadeira “elite”, a burguesia e o imperia- A ida de Carlos Gomes à Itália o incorpora ao movi-
de gabinete, como é o caso de Krenak? lismo, está levando adiante uma operação de destruição mento mais avançado da música erudita internacional.
de tudo o que se produziu no Brasil, com a cobertura cí- Como veremos adiante, Gomes não é simplesmente um
Dizemos infelizmente porque, para nós, o povo bra- nica de que isso seria algo "progressista", que valoriza os brasileiro que estuda na Europa. Ele faz parte, como um
sileiro – e aqui estamos falando de todo o povo: índios, povos oprimidos. nome importante, do movimento de artistas italianos que
negros, brancos, asiáticos etc – deveria ter acesso a uma estavam na vanguarda da música e da arte operística na-
obra cultural da envergadura do que é a obra de Carlos quele momento.
Gomes. No entanto, o que se vende por aí, inclusive com
a ajuda dos identitários, é o mais completo lixo cultural,
Artista de importância universal A estreia de O Guarani, em 1870, é o momento em
de preferência um lixo vindo diretamente dos Estados que a cultura brasileira atinge o mesmo nível de quali-
Unidos ou influenciado por ele.
Os identitários não querem saber de arte. Eles "É na sua própria pátria, o Brasil, que entre
querem usar uma posição ou um cargo recebido os países da América Latina é o que ostenta mais
do PSDB para destruir a obra de arte. Se Krenak antigas tradições no campo da música culta (basta
e a corja identitária não gostam da ópera de Carlos pensar na escola de Minas Gerais …), que podem ser
Gomes, o problema é deles. Mas tentar modificar a encontrados os estímulos que favoreceram a voca-
obra para atender aos seus desejos individuais, com ção de Gomes para o melodrama e junto às origens
patrocínio da burguesia, é uma coisa muito dife- daquela italianidade, para não dizer simplesmente
rente e não tem nada a ver com expressão artística. verdianidade, de estilo que prevalecerá nitidamente
nas suas primeiras experiências teatrais".
A imprensa golpista adorou a “polêmica” sobre
o caso. Na verdade, adorou a destruição da ópera, A explicação, segundo o mesmo autor, estaria
com muita propaganda de Krenak como grande não apenas nas tradições, mas na própria inicia-
“líder indígena”, “filósofo”, “intelectual”. tiva, por assim dizer, oficial do Segundo Império:
Reprodução
Os setores mais poderosos da burguesia, desde "No Brasil nasce uma iniciativa que ficou úni-
os que organizaram a ópera até a imprensa golpista ca na história teatral da América: a fundação, em
que aplaude a tal “adaptação”, apoiam e financiam Carlos Gomes (1836-1896) 1857, da Imperial Academia de Música e Ópera
essa política. Isso é óbvio, não para uma esquer- Nacional. (...) Nasceu com o propósito de limitar em
da de classe média que cai no conto do vigário do parte a influência da ópera italiana e de beneficiar
identitarismo. parte de seu “Ensaio Sobre a Música Brasileira” afirma a criação de óperas em língua brasileira (sic), através tam-
que "Carlos Gomes pode nos orgulhar além dos pedidos bém da execução de óperas e operetas italianas, francesas
Uma reportagem de um portal chamado Itatiaia afirma da época e nós temos que fazer justiça a quem está como e espanholas traduzidas para o português. Mas o objetivo
que "A chiadeira da elite paulistana que se deparou com a ele entre os melhores melodistas universais do séc. XIX." principal da Academia era a representação, pelo menos
novidade no Theatro Municipal, que ainda se grafa como uma vez por ano, de uma ópera nacional".
no período colonialista, é representativa de um pensamento A apreciação de Mário de Andrade é muito impor-
escravocrata que insiste em manter-se arraigado”. tante porque talvez tenham sido os modernistas – não O romantismo brasileiro, movimento do qual faz parte
por politicagem, mas por necessidade de impor sua nova Carlos Gomes, é propriamente a escola artística do Impé-
Essa colocação é de dar pena. Segundo o autor da estética contra o que consideravam a "velha arte" – os rio. É um movimento de tipo nacionalista, mas um tanto
matéria, a “elite paulistana” – sempre ela – está insatisfeita primeiros que contribuíram para diminuir a importância quanto oficialista, ao menos em suas duas primeiras fases,
com a montagem da ópera. Falta discernimento político e de Carlos Gomes. Mas a luta entre diferentes gerações e na medida que era dominado por uma política estatal, jus-
social para quem escreveu tal coisa: a “elite paulista”, ou movimentos artísticos não deve confundir sobre a impor- tamente porque Pedro II era ele mesmo ligado às artes. O
mais especificamente o setor mais poderoso dela, ligado tância e significado de uma obra de arte. Um artista e um Estado financiou muitos artistas, como foi o caso de Carlos
ao imperialismo, está financiando, apoiando, impulsio- movimento não devem ser medidos com a régua da luta Gomes, agraciado com uma bolsa de estudos na Europa.
nando e aplaudindo Krenak e sua “nova concepção” da entre as diferentes escolas e movimentos.
ópera. Essa “elite” deu até um cargo remunerado para No entanto, esse caráter oficialista do romantismo
que o pretenso representante dos índios pudesse fazer Note que Mário de Andrade coloca Carlos Gomes en- não deve ser analisado de um ponto de vista negativo. Na
esse trabalho. tre os melhores melodistas universais do século XIX. Essa realidade, faz parte da própria peculiaridade da forma-
30 primeira quinzena de junho de 2023 OSSIÊ
CAUSA OPERÁRIA
cultura
ção histórica do Brasil. Esse impulsionamento oficial era música universal. imperador para o rei de Portugal, Dom Fernando, que o
fundamental para o desenvolvimento das artes num país recomenda ao maestro Lauro Rossi, diretor do Conser-
de formação social e cultural recente, tendo conquistado Além de grande músico, Arthur Napoleão era um des- vatório de Milão.
sua independência política pouco tempo antes. cobridor de talentos e editor da Revista Musical e de Belas
Artes. Assim, Carlos Gomes e seu hino ganharam fama
O desenvolvimento das artes musicais no Brasil, con-
forme destaca Marcello Conati, de cuja tradição Carlos
também no Rio de Janeiro. O movimento musical italiano
Gomes é herdeiro, fica claro no comentário do jornal na "Sois da Pátria esperança fagueira
época da estreia da primeira ópera de Gomes:
cultura
primeira quinzena de junho de 2023 31
como Aida, de Verdi, e para se ter uma ideia da importân- do alemão Richard Wagner. Foi esse gênio da época de Em 1892, estreia o poema coral sinfônico em quatro
cia de Gomes, foi parceiro do brasileiro em duas óperas: maior desenvolvimento da arte operística que considerou atos, Colombo, por ocasião da comemoração do aniver-
Fosca (1873) e Salvador Rosa (1874), além de trabalhos Gomes como seu sucessor. sário da América.
incompletos de parceria entre ambos.
E à parte a consideração de Verdi, que já valeria muito, Em primeiro lugar O Guarani, mas também Fosca e
Carlos Gomes não foi apenas um estrangeiro adotado fato é que Carlos Gomes fez parte desse meio de enorme Salvador Rosa, continuam fazendo turnês pelo mundo todo,
pelos artistas de Milão, foi parte daquele movimento de evolução da arte operística. com enorme sucesso. Carlos Gomes é o artista brasileiro
vanguarda que, principalmente no que diz respeito à pro- que conquistou o mundo, não como homem estrangeiro,
dução operística, era o mais avançado do mundo. Um jornal descrevia, assim, a estreia da ópera: exótico, que desperta a curiosidade do europeu, mas como
parte integrante e essencial do que foi talvez o mais im-
Participavam do movimento nomes da música como "Dezoito chamadas ao Maestro Gomes consagraram portante movimento operístico da história.
Amilcare Ponchielli, Errico Petrella, Alfredo Catalani, o sucesso de sua ópera 'Il Guarany', representada ontem
Gaetano Braga. De uma geração mais nova, aluno de de noite no Teatro Scala. E os fragorosos aplausos ofere- Ainda sobre sua importância na evolução da ópera in-
Ponchielli, Giacomo Puccini. Além de poetas, jornalistas, cidos pelo numerosíssimo e seleto auditório ao simpático ternacional, o crítico italiano Marcelo Conati conclui que:
pintores. A casa de Carlos Gomes, palacete construído jovem não eram de puro cumprimento ou cortesia mas de
pelo arquiteto também pertencente ao grupo, Giuseppe arrebatamento face às numerosas belezas que a partitura "No panorama operístico italiano dos anos setenta e oi-
Invernizzi, que ficou conhecida como Villa Brasilia, servia contém realmente... O editor Lucca concluiu contrato de tenta, excluindo-se, é claro, a figura solitária e inalcançável
inclusive como local de encontro do grupo. aquisição da partitura apenas terminado o primeiro ato." de Giuseppe Verdi, Gomes surge com Ponchielli como a
(La Lombardia, Milano, 21/03/1870). figura de maior relevo pela originalidade de idéias e perso-
nalidade de estilo: não se pode compreender plenamente
O Guarani, a estreia no Teatro Scala O sucesso da ópera, que também deve ser relacionado
à curiosidade que um jovem compositor brasileiro, falando
no seu significado histórico a fase de transição do melo-
drama romântico ao teatro musical, chamado 'naturalis-
de temas brasileiros, despertava nos europeus, é absoluto. ta', sem se fazer necessariamente referência à sua obra."