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ANO I, Nº 14

PRIMEIRA QUINZENA
DE JUNHO DE 2023
R$ 25,00

CENSURA

Da luta por direitos


civis ao combate à
liberdade de expressão
2 primeira quinzena de junho de 2023 OSSIÊ
CAUSA OPERÁRIA

Nesta edição:

Imperialismo perde controle total de


região vital para sua dominação pág. 4
Vitória eleitoral de Recep Erdogan em disputa bastante
polarizada marca deslocamento em bloco de vários países
para uma posição de rebeldia contra a ordem mundial
Redes sociais vs. Estado brasileiro pág. 6
Ventativa de aprovar o Projeto de Lei 2630/2020
trouxe à tona uma série de acusações entre as
chamadas Big Techs e as instituições do País

Racismo recreativo: comediantes


na berlinda pág. 8
Piadas, risos e até palavras do dicionário estão
sendo proibidos sob um suposto respaldo legal, ao
arrepio do artigo 5º da Constituição Federal
Um balanço das manifestações pág. 10
Este artigo foi escrito pelo companheiro Rui Costa
Pimenta durante as jornadas de junho de 2013 no calor
dos acontecimentos. Publicamo-o nesta edição do Dossiê
Causa Operária com algumas pequenas atualizações
Da luta por direitos civis ao combate possíveis de serem feitas pela passagem do tempo.
à liberdade de expressão pág. 16
Como uma teoria confusa criada em universidades
norte-americanas foi apropriada pelo imperialismo e
transformada no "complexo industrial da censura"
100 anos da Lei Adolfo
Gordo pág. 20
Cerca de um século atrás, a República
Velha aprovava uma lei contra a liberdade
de expressão e para calar a oposição
A mediocridade burocrática no poder pág. 22
Ao contrário do que alegam os stalinistas, a bancarrota
da União Soviética não começou com Kruschev. Ele
apenas amenizou a situação política tensa do período
para justamente salvar o poder da burocracia medíocre que
assumiu o Estado após a contrarrevolução de Stálin
O mito da “Terra de Israel” pág. 24
O “direito histórico” à “Terra de Israel”
não passa de um mito sionista para justificar
os abusos praticados na Palestina

Carlos Gomes, o “selvagem”, e a


conquista do mundo pág. 28
Atacado pelos identitários, uma das mais grandiosas
obras musicais brasileira e mundial, O Guarani,
foi vandalizada em montagem no Municipal

Expediente: Dossiê Causa Operária • Ano I • nº 14 • primeira quinzena de junho de 2023 • editor: Rui Costa Pimenta • contato@dossieco.org.br • Impresso por: O Cavaleiro Azul Artes Gráficas LTDA • tiragem: 650 exemplares
Ao leitor
Em sua mais nova edição, agora nas mãos do leitor, o Dossiê Causa Operária traz investiga-
ção, análise e debate político, histórico, cultural e teórico.

O desenvolvimento da situação na Turquia abre a edição, aprofundando a cobertura sobre o


quadro naquela região estratégica, iniciada na edição anterior, e a dominação do imperialismo.

A censura, tema destaque dessa edição, se segue, desenvolvido por uma série de ângulos. O
PL das Fake News é discutido à luz do papel das redes sociais e dos interesses em jogo na
disputa. “Racismo recreativo: comediantes na berlinda”, aborda o caso Léo Lins e pincela a
parte conceitual; “Da luta por direitos civis ao combate à liberdade de expressão” desenvolve
uma abordagem teórica a fundo, e polemiza com a chamada ‘teoria crítica da raça’.

Ainda no tema da censura, mas pela arte: a reedição da ópera O Guarani, de Carlos Gomes,
uma das principais obras produzidas no Brasil. O Dossiê traz a discussão sobre o verdadeiro
ataque que vem se realizando à cultura nacional.

Já da parte também jurídica e agora histórica, são resgatadas as Leis Adolfo Gordo, de per-
seguição ao movimento operário no início do século XX.

O ocorrido em junho de 2013, mais recente, também se destaca, tema de ampla polêmica e
confusão na esquerda. Mais a fundo na parte histórica, a conformação de um “povo judeu”
e a história da religião e do território palestino; e a figura de Kruschev, numa polêmica com
o stalinismo.

O Dossiê Causa Operária pode ser assinado por todos que busquem um aprofundamento nos
principais temas da política nacional e internacional do momento. À luz da teoria marxista
e de pesquisa dedicada, os acontecimentos são expostos e desenvolvidos de maneira coesa e
coerente, garantindo ainda o máximo de informações para a análise dos leitores.

Os leitores aproveitarão ainda um brinde especial com as assinaturas, além do próprio ma-
terial de alta qualidade: um mês grátis de assinatura de um dos dois Clubes do Livro (o Clu-
be do Livro de Esquerda e o Clube do Livro Marxista). Acesse o site: dossieco.org.br e saiba
mais, ou entre em contato conosco por meio do número (11) 99733-9114 e contribua com a
imprensa revolucionária.
4 primeira quinzena de junho de 2023 OSSIÊ
CAUSA OPERÁRIA

internacional

T URQUIA

Imperialismo perde controle total


Vitória eleitoral de Recep Erdogan em disputa bastante polarizada marca deslocamento Outro dado muito importante da vitória de Erdogan
foi a imensa repercussão que o Partido da Causa Operá-
em bloco de vários países para uma posição de rebeldia contra a ordem mundial ria ganhou ao comemorar a derrota do imperialismo. As
publicações do Partido tiveram um alcance de milhões de
pessoas e renderam um agradecimento dos próprios turcos,
mostrando que a posição contrária ao imperialismo tem
ganhado cada vez mais apoio do conjunto da população.
Victor Assis
Posição privilegiada

"V Q
erificou-se que o sr. Recep Tayyip Erdogan dente na mídia tradicional”. O que o articulista não diz, ualquer derrota do imperialismo, por princípio,
recebeu 51,91% dos votos na Turquia, e o no entanto, é que as eleições sofreram uma influência gi- merece ser comemorada pelos oprimidos. Afinal,
sr. Kemal Kılıçdaroglu, 48,09%. No exterior, gantesca dos serviços de inteligência norte-americanos, quanto mais enfraquecido estiver, mais dificuldade terá
4.986 das 5.657 urnas foram abertas, e uma taxa de aber- muito mais corruptos, sujos e poderosos que qualquer de dominar os países e, assim, mais fácil será para que os
tura de 88,14% foi registrada. O sr. Recep Tayyip Erdo- presidente no mundo. povos se rebelem. Mesmo em um país secundário, uma
gan recebeu 59,80% dos votos no exterior, e o sr. Kemal derrota parcial do imperialismo pode causar consequên-
Kılıçdaroglu, 40,20% dos votos. Ao todo, considerando as Essa indisposição contra Erdogan pode – e provavel- cias espetaculares. O caso do Afeganistão é um importante
votações em território nacional e no exterior, 196.744 de mente irá – levar, a médio prazo, a uma revolução colorida exemplo disso: a expulsão das tropas norte-americanas
197.871 urnas foram abertas, e uma taxa de abertura de – isto é, a um golpe de Estado. No momento, no entanto, inaugurou uma nova onda de enfrentamentos dos países
99,43% foi registrada. O sr. Recep Tayyip Erdogan rece- não há sinais de que isso acontecerá de imediato. atrasados com o imperialismo.
beu 52,14% dos votos e o sr. Kemal Kılıçdaroglu, 47,86%
A revista britânica The Economist, um dos principais Acontece que a Turquia, contudo, não é um país se-
O sr. Recep Tayyip Erdogan recebeu 27.513.587 votos porta-vozes do imperialismo a nível mundial, adotou o cundário, mas um dos mais importantes do planeta. An-
e o sr. Kemal Kılıçdaroglu, 25.260.109 votos. O resultado mesmo tom amargurado, porém aparentemente confor- tes de tudo, é preciso considerar a posição geográfica do
não mudará, mesmo que todos os votos restantes sejam mado que Guga Chacra: país. A Turquia tem uma posição tão privilegiada que é
computados para qualquer um dos candidatos presiden- até difícil mostrá-la em um único mapa.
ciais. Considerando-se esses dados parciais, verificou-se “Certamente não foi justo. Nem totalmente gratuito.
que o sr. Recep Tayyip Erdogan foi eleito presidente da Mas, goste ou não, a vitória em 28 de maio de Recep Tayyip O primeiro mapa, que apresenta uma visão mais dis-
República da Turquia”. Erdogan nas eleições presidenciais da Turquia é um fato. tante dos continentes europeu, africano e asiático, já mostra
a Turquia como um país em destaque, uma vez que fica
Foi assim que Ahmet Yener, presidente do Conselho exatamente no centro da região. É, portanto, um territó-
Eleitoral Supremo da Turquia (YSK), anunciou para o rio fundamental na ligação entre esses continentes. Para
mundo, em coletiva de imprensa, o desfecho das eleições enviar armamentos e alimentos ou mesmo para invadir
presidenciais no país euroasiático. um país, partindo da África para a Europa, da Europa
para a Ásia ou da África para a Ásia, a Turquia é uma
O resultado não causou grandes surpresas. Conforme das poucas rotas possíveis.
descrito na edição anterior do Dossiê, o mandatário turco
já havia conquistado 49,50% dos votos, dependendo de A essa questão de ordem puramente geográfica, so-
apenas 0,5% do eleitorado para consagrar-se presiden- ma-se o problema da configuração política da região.
te reeleito. Mesmo assim, não foi uma vitória folgada. Podemos dividir o primeiro mapa em quatro grandes
regiões: a Europa Central, que é a sede do imperialismo
Pelo contrário, as eleições ocorreram em meio a uma europeu, o Oriente Médio, o Leste Europeu e o Norte
grande polarização e permaneceram tensas até o anún- da África. Ainda que não faça fronteira direta, a Turquia
cio final. De lá para cá, não apareceram indícios expres- também está bem próxima da chamada Ásia Central.
sivos de que a vitória de Erdogan será contestada de Cada uma dessas regiões, conforme discutiremos, apre-
imediato. No entanto, pequenos agrupamentos, como senta uma série de características importantes para a luta
o Partido Democrático dos Povos (HDP) e o Partido da de classes mundial.
Esquerda Verde (YSP) já declararam que as eleições te-
riam sido “sujas”. Agora, passemos a examinar mais de perto o terri-
tório turco. Mais de 90% das terras turcas pertencem à
“Testemunhamos uma eleição injusta, marcada por Ásia, sendo a maior região do país a Anatólia. A Trácia,
violações das regras democráticas básicas, que ocorreu separada da Anatólia pelo estreito de Bósforo, é a porção
Wikipedia

sob as condições repressivas do regime de um homem turca que pertence à Europa.


só”, declarou İbrahim Akın, do YSP (HDP and Green Left A imprensa capitalista decretou que a eleição de Erdogan foi a
Party: We made an effort to open the door to democracy, HDP vitória da “autocracia” contra a “democracia” No continente europeu, a Turquia tem como vizinhos
Europe, 29/5/2023). Akin sequer esconde que torcia pela a Grécia e a Bulgária. Já em sua porção oriental, o país
vitória do candidato do imperialismo na Turquia, Kılıçda- Nos próximos cinco anos, a Turquia, a Europa e o resto governado por Recep Erdogan faz fronteira com várias
roglu: “expressamos e defendemos que o principal objetivo do mundo terão de lidar com um populista espinhoso e nações distintas. A Turquia é o único país do mundo a
dessas eleições era mudar o regime” (idem). autoritário. Isso é uma má notícia em muitas frentes: eco- ter como vizinhos os três países do Cáucaso: Azerbaijão,
nomicamente, democraticamente e regionalmente. E, no Armênia e Geórgia. Além disso, a Turquia faz fronteira
A imprensa capitalista assumiu um papel semelhante. entanto, os pragmatistas têm o dever de procurar frestas de com Irã, Iraque e Síria.
Notoriamente desmoralizada, uma vez que havia apostado luz na escuridão” (How to make the re-election of Recep Tayyip
todas as fichas em uma vitória de Kılıçdaroglu no primeiro Erdogan less bad news, The Economist, 31/5/2023). Os estreitos de Dardanelos e Bósforo, ambos pertencen-
turno, inclusive manipulando as pesquisas eleitorais, decre- tes ao território turco, dão ao país de Erdogan o monopólio
tou que a eleição de Erdogan foi a vitória da “autocracia” A declaração da publicação britânica é de quem reco- do acesso ao Mar Negro. Não é possível navegar nas águas
contra a “democracia”. O tom derrotista do imperialismo nhece a derrota e irá, agora, se concentrar em reorganizar dessa importante região sem passar pelos estreitos turcos.
pode ser visto no artigo “A autocracia de Erdogan venceu suas tropas para voltar a investir contra o inimigo. Quem acessar o Mar Negro, por sua vez, ver-se-á diante
a democracia na Turquia”, assinado por Guga Chacra, da oportunidade de acessar os territórios da Bulgária, da
um réptil dos capitalistas norte-americanos: Do lado oposto, os povos oprimidos de todo o mundo Romênia, da Ucrânia, da Rússia, da Crimeia (pertencente
celebraram a derrota do candidato do imperialismo neste à Rússia) e da Geórgia.
“Apesar de um entusiasmo semanas atrás diante de uma importante país. O presidente da Rússia, Vladimir Putin,
possível vitória com a união da oposição, a democracia uma das principais lideranças na rebelião dos países contra Durante a operação russa na Ucrânia, o regime de Kiev
fracassou na tentativa de derrotar a autocracia na Turquia” a dominação imperialista, declarou: “a vitória eleitoral foi chegou a solicitar que a Turquia impedisse a navegação
(A autocracia de Erdogan venceu a democracia na Turquia, Guga um resultado natural do seu trabalho altruísta como chefe da marinha de Vladimir Putin sobre o Mar Negro (Turquia
Chacra, O Globo, 29/5/2023). Guga Chacra prossegue, da Turquia e uma clara evidência do apoio do povo turco diz que não pode impedir que navios de guerra russos acessem o Mar
então, fazendo as mesmas acusações que a “esquerda” aos seus esforços para fortalecer a soberania do Estado e Negro, CNN, 22/2/2022).
turca – esquerda essa que na verdade é um papagaio do conduzir uma política externa independente”. O presi-
imperialismo: “apesar de a votação ter sido transparente, dente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, por sua vez, Além das vantagens geográficas marcantes, a Turquia
o processo eleitoral não foi justo. A oposição sofreu uma colocou-se à disposição para uma parceria “na cooperação também conta com um grande poder militar. O país foi o
série de restrições e teve uma fração do espaço do presi- global pela paz e no combate à pobreza”. segundo convidado a entrar na Organização do Tratado
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internacional
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de região vital para sua dominação


do Atlântico Norte (OTAN), aproveitando-se disso para
modernizar as suas tropas.

De acordo com a classificação da Global Firepower,


a Turquia teria o 11º exército mais poderoso do planeta,
com 425 mil soldados ativos, um orçamento anual de 25
bilhões de dólares, uma força aérea com 1.065 aeronaves,
112 mil veículos blindados de combate e 154 forças da fro-
ta da marinha. Fica atrás de apenas três países europeus:
Reino Unido, França e Itália (Os 25 exércitos mais poderosos
do mundo em 2023, Maiores e melhores).

Região vital

A gora, analisemos cada uma das regiões com as quais


a Turquia tem ligação.

O Oriente Médio, como se sabe, vive hoje uma das


maiores crises políticas do mundo. Uma crise que, em-
bora a grande imprensa procure ocultar, é uma crise da
dominação do imperialismo na região. Toda a política
Reprodução

de dominação estabelecida na segunda metade do século


XX, com a ascensão do Estado de Israel e com a derrota
do movimento nacionalista de Gamal Abdel Nasser está A expulsão das tropas norte-americanas do Afeganistão inaugurou uma nova onda de enfrentamentos dos países atrasados com o imperialismo
se desmanchando.
Por fim, um caso muito surpreendente é o do Estado de a operação militar contra a Ucrânia.
O primeiro grande baque sofrido pelo imperialismo Israel, um enclave imperialista imposto pelo imperialismo
na ordem estabelecida no Oriente Médio foi a revolu- justamente para servir como uma polícia contra a rebeldia O Cazaquistão, por sua vez, também tem estreitado
ção iraniana de 1979, que pôs fim à ditadura pró-im- dos países do Oriente Médio. Ao ver as movimentações seus laços com Vladimir Putin, ao ponto de ter sofrido
perialista do Xá Reza Pahlavi. Embora tenha aberto pró-Rússia de seus vizinhos, o regime israelense decidiu, uma tentativa de golpe de Estado em 2022. Em declara-
uma crise gigantesca, o Irã permaneceu relativamente nos últimos meses, tentar se alinhar aos países do BRICS, ção recente, o presidente da Bielorrússia, Alexander Luka-
isolado e ainda sofreu as consequências da Guerra Irã- temendo que a rebeldia dos países do Oriente Médio possa shenko, afirmou, em defesa do Cazaquistão, que ninguém
-Iraque, impulsionada pelo imperialismo para fazer a levar até mesmo à sua extinção física. interviria no país porque o governo Putin iria garantir a
revolução refluir. defesa nuclear de quem se aproximasse da Rússia (Luka-
Como fica claro, em questão de anos, o imperialismo shenko oferece armas nucleares a países que se aliarem à Rússia,
Após a crise de 2008, começou um rápido desloca- perdeu completamente o controle do Oriente Médio. A Poder 360, 29/5/2023).
mento dos países do Oriente Médio para uma posição de Turquia, fazendo fronteira direta com alguns desses países
tipo nacionalista e anti-imperialista, alinhando-se, assim, e sendo influente em todos eles está, portanto, em uma Os países do Norte da África seguem o mesmo cami-
ao Irã. O caso mais marcante foi o do Egito, onde a Ir- posição muito importante para que essa rebelião avance. nho. O Egito, país que serve como principal elemento de
mandade Muçulmana acabou chegando ao poder, tendo A mera recusa em prestar apoio militar para o imperia- ligação entre o Norte da África e o Oriente Médio, apesar
sido necessário um golpe de Estado do imperialismo para lismo conter uma revolta em qualquer um desses países de estar sob uma ditadura imposta para conter a Irman-
destituí-la. Outro caso muito significativo é o da Arábia pode ser mais do que suficiente para garantir uma derrota dade Muçulmana, já começou a se reunir com os países
Saudita, que vem se aproximando cada vez mais dos chi- importante dos Estados Unidos na região. dos BRICS e seus aliados, indicando uma ruptura. No
neses e russos. Recentemente, o país pediu a entrada no Sudão, outro país onde o imperialismo interveio fortemen-
bloco comandado pelos países que estão se rebelando No Leste Europeu, a situação de crise é tão explícita te, a crise explodiu em uma guerra civil. A África, como
contra o imperialismo, os BRICS. quanto no Oriente Médio. Neste exato momento, ocorre um todo, tem procurado se alinhar à Rússia e à China,
lá a guerra mais importante do mundo: o conflito entre criticando abertamente o presidente francês Emmanuel
A aproximação da Arábia Saudita de chineses e russos Rússia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte Macron e sendo apoiada pelas milícias do Grupo Wagner,
tem servido inclusive para que a relação dos árabes com (OTAN), ocorrida no território ucraniano. A operação aliado de Vladimir Putin.
os demais países do Oriente Médio, marcada por muitos militar russa é uma reação à política agressiva do impe-
conflitos, evolua em um sentido positivo. Com o alinha- rialismo, de implementar bases militares nos países que
mento saudita aos BRICS, a Arábia Saudita restabeleceu
suas relações com a Síria e com o Irã. Outra decisão sig-
fazem fronteira com o país governado por Vladimir Putin.
Essa política agressiva, no entanto, não deixa de ser uma
O que fará Erdogan?
nificativa foi a da Arábia Saudita querer encerrar a guerra política defensiva.
contra o Iêmen.

Iêmen e Síria, por sua vez, são países que mostram


O golpe de Estado na Ucrânia, dado em 2014, foi re-
sultado justamente da boa relação que a Ucrânia, segundo
M uito em função de sua posição privilegiada, a Tur-
quia sempre procurou ter uma política equilibrada
em relação aos conflitos. Uma posição muito favorável ao
não só a tendência à rebelião contra o imperialismo, mas maior país da Europa, tinha com a Rússia. A Bielorrússia, Oriente Médio e hostil à Europa, por exemplo, poderia
também um aspecto central da atual situação política in- outro país importante do Leste Europeu, tem intensificado desencadear em uma série de reações dos países europeus à
ternacional: a incapacidade do imperialismo de conter seus laços com Putin, inclusive recebendo a promessa de Turquia, e vice-versa. Procurar uma relação relativamente
os países que se opõem à sua dominação. Mesmo tendo que este enviaria armas nucleares. “neutra” é até natural para a nação turca.
o exército mais poderoso do planeta, contando com seus
aliados da União Europeia e lançando mão de mil e um Uma situação que está em uma crise muito aguda Essa postura pôde ser vista claramente durante a ope-
artifícios para a desestabilização de regimes, os Estados também é a Ásia Central, região que não tem fronteira ração militar especial russa. Ao mesmo tempo em que a
Unidos falharam miseravelmente em depor os governos direta com a Turquia, mas é bastante próxima. Para ir da Turquia é parte da OTAN – e, portanto, uma ameaça
sírio e iemenita. Turquia à Ásia Central, basta atravessar o Irã e, assim, militar ao território russo –, o país se recusou a enviar
chegar ao Turcomenistão ou ao Afeganistão. Outra op- armamentos para a Ucrânia, evitando, assim, tomar par-
No Líbano, a derrota do imperialismo é marcada prin- ção é atravessar os países do Cáucaso, que são banhados tido na briga com dois gigantes países com quem divide
cipalmente pela incapacidade de conter o Hezbolá, dono diretamente pelo Mar Cáspio, pertencente à Ásia Central. o Mar Negro.
de um dos maiores exércitos paramilitares do planeta.
Os dois mais importantes países da Ásia Central es- A grande importância da vitória de Erdogan, neste
Outro país bastante pequeno, mas que também é tes- tão completamente rebelados contra o imperialismo. Em momento, é justamente o fato de que, diante de um gran-
temunha da fraqueza do imperialismo, é o Catar, um país 2021, o Afeganistão sofreu um processo insurrecional, de acirramento de todos os conflitos em todas as regiões
minúsculo, com uma pequena população e sem partici- em que o Talibã, grupo político que atualmente controla interligadas com a Turquia, o presidente turco, ciente da
pação efetiva no controle da economia mundial, apesar o país, expulsou as tropas norte-americanas de seu terri- fraqueza do imperialismo, pende para o bloco da Rússia
de ser bastante rico pela exploração de petróleo. O país, tório. Essa foi uma das derrotas mais humilhantes que o e da China.
que controla a rede Al Jazeera, tem sido um dos principais imperialismo sofreu em sua história, sendo um verdadeiro
defensores dos palestinos, a ponto de sofrer uma intensa ponto de inflexão na luta dos países oprimidos contra os O que Erdogan fará nos próximos meses, portanto,
campanha de calúnias por parte do imperialismo durante norte-americanos e europeus. A vitória Talibã, inclusive, poderá ser decisivo para uma rebelião conjunta de toda
a Copa do Mundo de 2022. pode ter sido fundamental para encorajar Putin a realizar a região ao seu redor.
6 primeira quinzena de junho de 2023 OSSIÊ
CAUSA OPERÁRIA

política

Q UEM ESTÁ COM A RAZÃO ?

Redes sociais vs.


Tentativa de aprovar o Projeto de Lei 2630/2020 trouxe à tona uma série No livro “A Era da censura das massas”, Rui Costa Pi-
menta e João Jorge Caproni Pimenta explicam por que o
de acusações entre as chamadas Big Techs e as instituições do País controle sobre a internet se tornou uma questão central para
a dominação da burguesia sobre o conjunto da população:

“Nunca na história tão poucos tiveram um controle


tão profundo sobre o que está sendo dito. A criação da in-
Victor Assis ternet, das redes sociais, tornou barato publicar um vídeo,
um artigo e ter um público de milhões de pessoas. Manter
uma televisão ou jornal digital se tornou viável para o ci-
dadão comum. O desenvolvimento humano deu um golpe
mortal nos monopólios da comunicação e na censura, um

“U
RGENTE: O DESESPERO BATEU!!! Qual seria, então, a ação das Big Techs que mereceria dos maiores símbolos da decadência capitalista nos dias de
um processo na Secretaria do Consumidor? O caso mais hoje. O capitalismo decadente, no entanto, não vai se ren-
Google usando a própria plataforma pra ata- grave, segundo o próprio Dino, teria sido o do Google: co- der sem resistência.
car a PL e o Twitter deslogando a conta das locar uma breve explicação, em seu próprio sítio, sobre o
pessoas pra atrapalhar. Projeto de Lei 2630. Isto é, a ação criminosa em questão Usando o poder incrível de empresas como Google e
seria uma plataforma dar a sua opinião sobre um projeto Facebook, os capitalistas querem fazer a roda da história
As Big Techs estão com medo de perder suas fortunas de lei que sequer foi aprovado. girar para trás e fazer desta ferramenta de progresso uma
ganhas em cima das vidas devastadas das nossas crianças, e arma sem precedentes contra a liberdade de expressão. Da
estão usando de tudo para tentar barrar o PL 2630! Não há absolutamente nada na lei brasileira que proíba era da liberdade da comunicação, querem nos lançar numa
isso. As plataformas de redes sociais são todas elas priva- nova era de censura, na qual o alvo não são jornais inde-
Vocês acham certo expor seus filhos a perigos mortais das – e, portanto, têm todo o direito de dizer se acham um pendentes e partidos apenas, mas as massas populares” (A
só pelo lucro dessas grandes empresas?? projeto de lei correto ou não. O caso grotesco das crianças, Era da censura das massas, Rui Costa Pimenta e João Jorge Caproni
levantado pelo Sleeping Giants, também é mais um sofismo. Pimenta, 2021).
Precisamos de você! Peça ao seu deputado que vote sim Não há um único caso comprovado de alguma criança que
no PL 2630 PELAS CRIANÇAS!” tenha morrido porque as plataformas criticaram o PL 2630. Vejamos agora em detalhe alguns aspectos de cada uma
dessas plataformas.
A mensagem acima foi publicada no dia 1º de maio por
um perfil obscuro na internet, o Sleeping Giants, uma es- Qual o real motivo do conflito
pécie de think tank que supostamente se dedica a combater
o “discurso de ódio” e as “fake news”. A publicação alcan-
Usuários
çou pelo menos quatro milhões de usuários no Twitter e foi
compartilhada pelo atual ministro da Justiça, Flávio Dino. O conflito pode ser resumido da seguinte forma: o Es-
tado brasileiro, seguindo a orientação dos órgãos de
inteligência dos países imperialistas, quer impor uma forte A rede social mais utilizada no Brasil é o WhatsApp,
que chegou ao Brasil em 2009, na época em que era
Ao endossar a publicação, Dino aproveitou para anun- regulamentação às plataformas de redes sociais, enquanto apenas um aplicativo para troca de mensagens curtas, se-
ciar, pelo seu Twitter, que estaria processando as empresas as mesmas plataformas resistem a essa tentativa. melhante ao SMS.
de redes sociais:
Aqueles que querem impor uma regulamentação – o Em fevereiro de 2014, o aplicativo foi vendido para o
“Estou encaminhando o assunto à análise da Secretaria Poder Judiciário, a grande imprensa e os deputados mais conglomerado que hoje é chamado de Meta, do bilionário
Nacional do Consumidor, órgão do Ministério da Justiça, à ligados ao imperialismo – não querem exatamente aniquilar Mark Zuckerberg, que pagou US$16 bilhões para adquirir
vista da possibilidade de configuração de práticas abusivas as empresas, embora seja isso que deem a entender quando o WhatsApp. Na época em que a venda foi feita, o aplica-
das empresas”. criticam hipocritamente os “lucros” das Big Techs. O verda- tivo era utilizado por 38 milhões de brasileiros – o maior
deiro objetivo é pressionar as empresas para que adotem a mercado após a Índia e os Estados Unidos (WhatsApp diz ter
Só pelos personagens envolvidos, o caso já parece bas- política do imperialismo para a internet: a de que qualquer 38 milhões de usuários no Brasil, Folha de S.Paulo, 26/2/2014).
tante suspeito. Qual o sentido de um ministro da Justiça conteúdo “indesejado” seja banido imediatamente das redes
compartilhar o conteúdo de uma organização cujos fins sociais. Neste sentido, trata-se de uma preocupação com o Em 2019, o número já havia saltado cerca de quatro
são completamente desconhecidos? Uma organização sem que os usuários publicam, e não com as opiniões das pró- vezes: 136 milhões de brasileiros costumavam usar o apli-
figuras públicas, com nome estrangeiro, que efetivamente prias plataformas. Caso as plataformas se recusem a san- cativo. E mais: de acordo com uma pesquisa da Câmara
veio do estrangeiro, e cuja atuação se resume a pressionar as cionar os usuários, aí sim sofreriam as seguintes punições: dos Deputados e do Senado Federal, 79% dos brasileiros
instituições brasileiras para adotar uma determinada política. afirmaram que o WhatsApp seria a sua principal fonte de
“I - advertência, com indicação de prazo para adoção informação (WhatsApp é principal fonte de informação do brasi-
Tudo se torna ainda mais suspeito se levarmos em conta de medidas corretivas; leiro, diz pesquisa, Agência Brasil, 10/12/2019).
que o próprio Flávio Dino é ligado a organizações seme-
lhantes à Sleeping Giants. Dino já agradeceu publicamente II - multa; Atualmente, o WhatsApp conta com 169 milhões de
por ter recebido uma doação da Open Society Foundations, usuários (Confira quais são as redes sociais mais usadas entre os bra-
de George Soros, quando era governador do Maranhão III - suspensão temporária das atividades; sileiros, MLabs, 23/5/2023). Há levantamentos que estimam
(Fundação internacional doa R$ 5 milhões para governo do Mara- que mais de 93% dos usuários de internet brasileiros, de 16
nhão durante pandemia, G1, 23/7/2020), e se encontrou recen- IV - proibição de exercício das atividades no país” (Pro- a 64 anos, fazem uso do aplicativo de mensagens (idem).
temente com o presidente global da mesma organização, jeto de Lei nª 2630, Senado Federal, 2020).
Mark Malloch-Brown (Flávio Dino debate democracia e agenda Logo atrás do WhatsApp, vem o YouTube, que che-
do MJSP em encontro com organização internacional, Ministério da E o que seria considerado “inadequado”? Segundo gou ao Brasil em 2007, dois anos após a sua criação e um
Justiça e Segurança Pública, 19/5/2023). o próprio projeto, todo “conteúdo, em parte ou no todo, ano depois de ter sido vendida para o conglomerado que
inequivocamente falso ou enganoso, passível de verifica- hoje é a Alphabet.
Analisada a forma na qual apareceu a questão, agora ção, colocado fora de contexto, manipulado ou forjado,
analisemos o seu conteúdo. A publicação do Sleeping Giants com potencial de causar danos individuais ou coletivos, Em 2015, o YouTube tinha cerca de 60 milhões de
é espalhafatosa, uma tentativa de causar um escândalo. E ressalvado o ânimo humorístico ou de paródia” (idem). usuários brasileiros (YouTube Insights: o que considerar na hora
qual seria o escândalo? O de que as chamadas Big Techs – com Em resumo, qualquer coisa que um tribunal considere de criar o vídeo da sua campanha, Think with Google, 2015).
destaque para a Alphabet (Google) e o Twitter – estariam falso. Na prática, seria tudo aquilo que fosse considerado Em 2019, o número já havia saltado para 133 milhões
expondo as crianças a perigos mortais simplesmente para “indesejado” para o Judiciário – isto é, aquilo que tenha de usuários (Você sabe qual é o tamanho do YouTube no Brasil?,
aumentar os seus lucros. A conclusão do Sleeping Giants um caráter subversivo. BuzzMonitor, 2019). No mesmo período, foi constatado
acaba sendo óbvia: é preciso pôr um freio nessas empresas. que, entre 2014 e 2018, houve um aumento de 135% no
A preocupação das plataformas, neste caso, não é exa- número de horas semanais dedicadas a assistir vídeos on-
Que as Big Techs visam o lucro é evidente. Alphabet (Goo- tamente ideológica, uma vez que essas empresas já aplicam line no Brasil (idem).
gle), Meta (Facebook, Whatsapp e Instagram) e Twitter são uma série de mecanismos de censura do conteúdo. Nem
grandes monopólios da internet – isto é, empresas capitalis- também é verdadeiro que o PL 2630 causaria um prejuízo Atualmente, a plataforma de vídeos conta com 142
tas que dominam o mercado daquele setor. No entanto, ter financeiro a essas empresas. O que justifica sua insubor- milhões de usuários brasileiros, sendo que o tempo diá-
lucro não é crime no Brasil. Fosse assim, Dino deveria estar dinação ao Estado brasileiro é o fato de que a política de rio gasto nela é de aproximadamente 45 minutos (Confira
preocupado em fechar todas as empresas capitalistas, expro- censura total aos usuários das plataformas praticamente in- quais são as redes sociais mais usadas entre os brasileiros, MLabs,
priar os bancos e expulsar os especuladores das estatais. É um viabilizaria as redes sociais. Isto é, faria com que os usuários 23/5/2023).
sofismo, uma tentativa de tornar as Big Techs em criminosas, abandonassem as plataformas em busca de algum ambiente
sem mesmo analisar o que de fato teriam cometido. mais democrático. A terceira maior plataforma de redes sociais no Bra-
OSSIÊ
CAUSA OPERÁRIA

política
primeira quinzena de junho de 2023 7

Estado brasileiro
sil é o Instagram, que chegou ao Brasil em 2012, mesmo
ano em que a Meta – na época, Facebook – anunciou a
compra da plataforma.

Em 2015, a plataforma já contava com 29 milhões de


usuários no Brasil, o maior mercado após os Estados Uni-
dos (Com 29 milhões, Brasil é o maior mercado do Instagram fora
dos EUA, TechTudo, 2015). Em 2019, o Brasil ainda era o
segundo maior mercado, mas o número de usuários havia
saltado para 66 milhões.

Atualmente, o Instagram conta com 113 milhões de


usuários brasileiros e uma média de tempo gasto por dia
de 30 minutos (Confira quais são as redes sociais mais usadas
entre os brasileiros, MLabs, 23/5/2023).

Após o Instagram, vem mais uma plataforma da Meta,


o Facebook, que chegou ao Brasil em 2007.

Em 2015, o próprio Facebook declarou que 92 milhões


de usuários acessavam a plataforma todo mês – de longe,
a maior rede social operando no País na época. Em 2019,
o número de usuários era de 130 milhões, o terceiro maior
Reprodução

público no mundo (Brasil é o 3º país com maior base de usuários


do Facebook no mundo, Poder360, 7/3/2019).
Dino já agradeceu publicamente por uma doação da Open Society Foundations. Qual a influência de tais organizações no ministério?
Atualmente, o Facebook tem 109 milhões de usuários
no Brasil. Apesar da queda, a rede social ainda é a prin- oficiais (Youtube tira paródias com Hitler do ar, Revista Galileu). A sos escandalosos de censura que ficaram marcados como
cipal fonte de renda da Meta (58%) e a maior em número medida foi solicitada pela produtora do filme por infração uma verdadeira perseguição política. Ambos, por exem-
de usuários mundiais (Confira quais são as redes sociais mais de direitos autorais – o que posteriormente seria utilizado plo, suspenderam as contas do ex-presidente dos EUA,
usadas entre os brasileiros, MLabs, 23/5/2023). A média de para retirar do ar milhares de vídeos. Donald Trump.
tempo gasto por usuário por dia é de 30 minutos (idem).
Outro pretexto bastante utilizado para tirar vídeos do Essa política, no caso do Twitter, mudou sensivelmen-
Por fim, fechando a lista das redes sociais com maior ar é o da restrição de conteúdo para menores de idade. te com a troca de sua presidência. Em 2022, o bilionário
número de usuários brasileiros está o TikTok, que passou Vídeos com “adultos participando de atividades perigosas Elon Musk comprou a plataforma, reverteu algumas de
a operar no Brasil em 2018. Em cinco anos, o aplicativo que podem ser facilmente imitadas por menores”, “destina- suas políticas de censura e ainda divulgou informações
já alcançou os 82 milhões de usuários e uma média de 45 dos a adultos, mas que podem ser facilmente confundidos sobre como o Twitter foi utilizado para favorecer figuras
minutos gastos por dia para cada usuário (idem). com conteúdo familiar”, “atividades perigosas ou nocivas, do regime norte-americano (Twitter Files denunciam proteção
incluindo substâncias controladas e drogas”, “pegadinhas a Biden em 2020; Musk manifesta “preocupação” com eleições no
Embora com uma quantidade muito menor de usuá- falsas, mas que parecem tão reais que os espectadores não Brasil, Gazeta do Povo, 3/12/2022).
rios, o Twitter é uma das redes sociais mais influentes. Com conseguem diferenciar”, “nudez e conteúdo com apelo
24 milhões de usuários (idem), a plataforma costuma ser a sexual”, “atividades sexuais, como danças insinuantes e A política de Musk já é a manifestação de um fenômeno
preferida de figuras políticas e jornalistas, sendo uma das carícias”, entre tantas outras coisas, podem acarretar na cada vez mais visível: a política de censura que vem sendo
principais redes utilizadas para a obtenção de informação. retirada do vídeo do ar (Conteúdo com restrição de idade, Ajuda adotada pelas plataformas está causando um desgaste en-
do YouTube), como aconteceu em 2013 com um vídeo da tre as empresas e os seus usuários. É uma política, afinal,
banda NX Zero (YouTube libera clipe do NX Zero após censura impopular, que contribuiu para a queda do Facebook, que
Política de censura por ter mulheres seminuas, G1, 18/7/2013). Para publicar ví-
deos com esses conteúdos, é preciso restringir o público,
chegou a ser a maior rede social do mundo.

o que acaba por limitar o alcance.

P or suas próprias características, o WhatsApp tem um


histórico menos conhecido de censura a seus usuários. A censura mais abertamente política, no entanto, é o
Contestação
Afinal, grande parte do uso do aplicativo é para a troca chamado combate ao “discurso de ódio” e às fake news –
de mensagens privadas, o que não apenas torna a censura cujos critérios são absolutamente vagos. No ano passado, Refletindo o mesmo fenômeno que a reversão das polí-
mais complicada, como também mais absurda. No entanto, o YouTube removeu pelo menos 15 vídeos da TV 247 por ticas de censura do Twitter, as Big Techs vêm se colocando,
pelo poder que a ferramenta tem de massificar uma mes- difundir um suposto “discurso de ódio” (Youtube censura jor- de maneira cada vez mais firme, contra as tentativas de dar
ma mensagem ou uma mesma informação, a plataforma nalismo e remove diversos vídeos da TV 247 por "discurso de ódio", ao Estado o poder de obrigá-las a censurar os seus usuários.
vem sendo alvo de várias investidas. Brasil 247, 10/08/2022). No mesmo período, o YouTube
censurou um mini-documentário feito por Eduardo Vasco Um dos casos mais marcantes é o do Telegram, apli-
O WhatsApp foi um dos primeiros a serem duramen- e Rafael Dantas, transmitido na Causa Operária TV, que cativo alternativo ao WhatsApp, que não é controlado
te criticados por seu potencial de difundir fake news. Foi tratava das atrocidades ucranianas em Lugansk. por um monopólio e que vem ganhando popularidade
o que aconteceu, por exemplo, nas eleições presidenciais justamente pelas limitações causadas pelas restrições do
brasileiras de 2018. Por causa dessa pressão contra as fake O Instagram, além de se valer de recursos semelhantes seu concorrente.
news – isto é, a utilização do WhatsApp para a massificação ao do YouTube para a censura, ainda é frequentemente
de notícias que supostamente influenciaram um resultado acusado de bloquear os seus usuários sem qualquer tipo Em nota pública, o Telegram contestou a decisão do
eleitoral –, o aplicativo acabou adotando algumas medidas de notificação. “Não existe um jeito oficial para saber se Supremo Tribunal Federal (STF) de suspender os perfis do
que limitam o uso da plataforma. você foi bloqueado no Instagram (...). Ao contrário do Partido da Causa Operária (PCO) na internet.
Twitter, que avisa com todas as letras quando alguém blo-
Entre essas medidas, estão o limite de apenas cinco queou sua conta, o Instagram não exibe nenhum tipo de Outro caso ainda mais marcante tem sido o da posição
usuários para o envio de mensagens encaminhadas e comunicação clara” (Como saber se fui bloqueado no Instagram, da Alphabet, um dos maiores monopólios da informática,
a manutenção de um baixo limite de integrantes de CanalTech, 3/7/2023). Os motivos são vários, e frequente- contra o PL 2630. Anos depois de levar a fio uma política
um mesmo grupo. Outro acontecimento importante mente contas são bloqueadas por engano. A plataforma de censura no YouTube e em outras plataformas suas,
relacionado ao WhatsApp se deu em 2016, quando utiliza diversos recursos de inteligência artificial para isso. a Alphabet, muitas vezes sob a rubrica de Google, teria
um juiz determinou a suspensão do aplicativo por 72 gasto mais de R$2 milhões em campanha contra o pro-
horas porque seus donos não teriam entregue infor- O TikTok também tem uma coleção de proibições a jeto de lei (Google gastou mais de R$ 2 milhões em campanha
mações sigilosas para uma investigação criminal (De- seus usuários. Entre as punições estão não apenas o blo- contra PL das Fake News, Olhar digital, 1/6/2023).
sembargador derruba bloqueio do WhatsApp e aplicativo deve queio de usuários, mas também a suspensão de vídeos e o
voltar, G1, 3/5/2016). rebaixamento do alcance do usuário – este último acontece O principal investimento da Google foi na própria
sem que haja qualquer notificação. Meta, responsável por gerir o WhatsApp, o Instagram e o
Os casos de censura no YouTube no Brasil já vêm Facebook. E o que chamou mais a atenção, que inclusive
ocorrendo desde, pelo menos, 2010. Naquele ano, foram O Twitter e o Facebook, justamente pelo atrelamento suscitou a ameaça de Flávio Dino narrada no início des-
retiradas do ar várias paródias de uma cena curta do filme destes à figuras públicas – o primeiro, mais recentemen- te artigo, foi o fato de a empresa veicular em sua página
A Queda, que mostra Adolf Hitler discutindo com seus te, e o segundo, mais antigamente –, protagonizaram ca- inicial uma chamada criticando o projeto.
8 primeira quinzena de junho de 2023 OSSIÊ
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política

UM NOVO CONCEITO EM REPRESSÃO

Racismo recreativo:
Piadas, risos e até palavras do dicionário estão sendo proibidos sob um ela também, negra e ter dito que se referia aos próprios
cabelos ao falar com a cliente loura, o que foi desconsi-
suposto respaldo legal, ao arrepio do artigo 5º da Constituição Federal derado. Coube à agência pagar uma indenização de R$
20 mil à vítima da “brincadeira”, considerada um caso
de “microagressão”, punido com intenção de promover
efeito pedagógico.

Elisa Fagundes Adilson Moreira comemora o fato de a Justiça do


Trabalho estar punindo esse tipo de “brincadeira”, a
fim de tornar mais saudável o ambiente profissional das
empresas. Indagado sobre sua opinião sobre censura às
piadas de cunho racista, ele se disse, sim, favorável, pois

O
caso do humorista Léo Lins, levado às barras dos o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou “o humor racista é um tipo de discurso de ódio, é um
tribunais por causa de suas piadas “politicamen- mais pessoas”. No art. 20-A, ficamos sabendo que “os tipo de mensagem que comunica desprezo, que comuni-
te incorretas”, acende um sinal de alerta não só crimes previstos nesta Lei terão as penas aumentadas ca condescendência por minorias raciais”. Segundo ele,
aos artistas como à sociedade de modo geral. Enquanto de 1/3 (um terço) até a metade, quando ocorrerem em as piadas reforçam estereótipos negativos, os quais são
o comediante aguarda julgamento, uma medida caute- contexto ou com intuito de descontração, diversão ou responsáveis pelo fato de negros receberem salários mais
lar pedida pelo Ministério Público de São Paulo garantiu recreação”. Chegamos, então, ao ponto essencial da baixos. “Negros ganham 50% a menos do que brancos
que seus shows fossem cancelados e que seus vídeos com questão, o “racismo recreativo”. em função dos estereótipos negativos que circulam na
alto número de likes (monetizados pelo YouTube) fossem nossa sociedade sobre os membros desse grupo”, diz,
tirados do ar, além de determinar que ele se apresente simplificando a questão.
mensalmente às autoridades para relatar suas atividades
e permaneça proibido de sair da cidade de São Paulo,
Um novo conceito em repressão
onde mora. A opressão do negro
Com uma pitada de ironia, Léo Lins explica ao F5,
portal da Folha de São Paulo (Léo Lins não pode sair de SP
O conceito foi cunhado pelo professor Adilson Morei-
ra, doutor pela Universidade Harvard em Direito
Antidiscriminatório. Em 2018, ele lançou o livro “O que Em geral, quando se noticia, por exemplo, que um
por mais de 10 dias e aguarda julgamento por vídeo de comédia é racismo recreativo?”, um dos títulos da coleção Feminis- engenheiro negro recebe menos que um engenheiro
censurado): "Já adianto aqui o que eu faço: escrevo pia- mos Plurais, organizada por Djamila Ribeiro, a mesma branco, a primeira coisa que se imagina é que os dois
das, vou na academia, assisto filmes e séries e cuido dos em que se insere o volume “Racismo estrutural”(2018), estejam sentados lado a lado fazendo o mesmo trabalho
meus gatos. Preciso ir lá reportar estes atos que beiram de Silvio Almeida, atual ministro dos Direitos Humanos na mesma empresa e que o negro esteja recebendo um
o terrorismo". De fato, as restrições impostas ao humo- e da Cidadania. Em entrevista publicada na revista Carta salário inferior, o que seria um verdadeiro escândalo.
rista sugerem que sua atividade seja altamente pericu- Capital (Adilson Moreira: ‘O humor racista é um tipo de discurso Ocorre que esse tipo de notícia reproduz dados estatísti-
losa e tenha o condão de promover grandes prejuízos de ódio’), onde atua como colunista da editoria de Justiça, cos quantitativos. Analisá-los requer o cruzamento com
à sociedade. Seu espetáculo intitulado “Perturbador” Moreira afirma que “o conceito de racismo recreativo outros dados. É mais provável que as empresas maiores,
teria sido o estopim da ação judicial, dado o conjunto designa uma política cultural que utiliza o humor para que pagam os melhores salários, atraiam profissionais
de supostas ofensas a todas as minorias possíveis e ima- expressar hostilidade em relação a minorias raciais”. Se- com currículos mais extensos, estudos feitos no exterior,
ginárias. Usamos aqui o termo “supostas” porque as gundo ele, “o humor racista opera como um mecanis- conhecimento de línguas estrangeiras e um sem-núme-
falas “perturbadoras” do comediante são proferidas no mo cultural que propaga o racismo, mas que ao mesmo ro de quesitos que vão além do diploma de engenheiro,
palco, como esquetes de humor, o que faz – ou poderia tempo permite que pessoas brancas possam manter uma de tal forma que a desigualdade de oportunidades con-
fazer – alguma diferença. imagem positiva de si mesmas”. tinua falando mais alto, mesmo quando ocorre algum
tipo de ascensão social via educação. Como sempre, sai
Adilson Moreira conta ter criado a expressão du- premiada a origem de classe.
Jurisprudência inconstitucional rante uma entrevista na qual comentava episódios de
racismo em campos de futebol brasileiros e, meses de- Os departamentos de Recursos Humanos das empre-
pois, ter tomado conhecimento de uma decisão judicial sas, ao fazerem a seleção, elegem quesitos que atraiam para

O corre, porém, que a ação do MP/SP tem como base


a lei nº 14.532/2023 (Lei da Injúria Racial), que
“altera a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (Lei do
que absolveu uma mulher branca do que ele conside-
ra um delito dessa natureza. Num supermercado, essa
mulher, ao puxar conversa com uma mulher negra que
as melhores posições os egressos das classes mais abastadas,
que ocuparão os cargos de confiança, pois essas pessoas
são naturalmente mais propensas a defender os interesses
Crime Racial), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezem- comprava grande quantidade de bananas, comentou da empresa, em geral coincidentes com seus interesses de
bro de 1940 (Código Penal), para tipificar como crime que ela deveria “ter muitos macaquinhos em casa”. classe. Os negros que vão para Harvard, como o próprio
de racismo a injúria racial, prever pena de suspensão de Segundo ele, houve racismo. Ignora-se o fato de que Adilson Moreira, ou para Columbia, como Silvio Almei-
direito em caso de racismo praticado no contexto de ati- macacos gostam de comer bananas e de que a mesma da, tendem a conseguir boas colocações no mercado e,
vidade esportiva ou artística e prever pena para o racismo frase poderia ter sido dirigida a uma pessoa branca que no caso desses dois, graças às ideias que defendem, posi-
religioso e recreativo e para o praticado por funcionário estivesse a comprar muitas bananas. O autor tem cer- ções de influência. É, portanto, muito mais provável que
público”. Essa é a Lei da Injúria Racial, sancionada pelo teza de que a mulher branca, por ser branca, quis dizer as piadas não sejam o principal problema a enfrentar na
presidente Lula no início de seu mandato, cujo texto au- que os macaquinhos eram os filhos da mulher negra. A seara do combate à exploração. A evolução das condi-
toriza punições mais severas a quem faz ofensas verbais, conversa entre as duas mulheres deu-se em clima amis- ções materiais da população negra é que se encarregará
em tese, a pessoas negras. toso, sem que houvesse altercação, portanto a mulher de enterrar esse tipo de humor.
branca estaria fazendo um deboche gratuito da negra
Em tese, pois os tribunais têm trabalhado com o prin- com a finalidade de se divertir. Esse foi um exemplo
cípio da analogia, de modo a estender os efeitos dessa
lei a quaisquer grupos demarcados por algum tipo de
trazido pelo autor do conceito de “racismo recreativo”,
que hoje figura na letra da lei.
Defesa dos oprimidos?
“identidade” (raça, etnia ou nacionalidade, orientação
sexual, gênero, condição/deficiência física, mental ou
intelectual, porte físico avantajado etc.). A analogia,
usada nos julgamentos na ausência de definição clara
Foi com base em argumentação apoiada no seu livro
que a juíza Renata Bonfiglio, então na 27ª vara do Tra-
balho de São Paulo, deu ganho de causa a uma moça que
A propósito, a juíza Gina Fonseca Corrêa, que assi-
nou a medida cautelar de censura às piadas de Léo
Lins (Justiça retira show de Léo Lins do YouTube por piadas
do delito em lei, dá origem à jurisprudência, ou seja, ao teria sido vítima de delito desse tipo em seu ambiente de com minorias, portal Migalhas), é a mesma que, durante
conjunto de decisões judiciais, que acabam sendo usadas trabalho, uma agência de publicidade (Agência é condenada a pandemia, assinou ordem de despejo de 104 famílias
como parâmetro para novas decisões. Essa situação cria por "racismo recreativo" em ambiente de trabalho, portal Consultor alojadas na Ocupação dos Queixadas, em Cajamar (SP)
um quadro de “insegurança jurídica”, como dizem os Jurídico). A leitura do processo (disponível no mesmo por- (Juíza ignora falta de provas de supostos donos e manda despejar
“operadores do Direito”, pois acaba facultando ao juiz tal) nos mostra que o caso ocorreu durante uma reunião 104 famílias em SP, Brasil de Fato), beneficiando supostos
o poder de dar um veredicto baseado em suas crenças por videoconferência, quando a supervisora teria dito ao proprietários do terreno e impondo grandes dificuldades,
pessoais, em seus valores ou até mesmo em interesses grupo de supervisionados que gostaria de fazer uma reu- em momento particularmente difícil, a famílias pobres,
de outra ordem. nião presencial “para ver se o fulano [funcionário] tinha entre as quais por certo havia negros, homossexuais etc.
cortado o cabelo e se a fulana [mulher negra, a vítima] Os problemas concretos da população oprimida não
No art. 2º-A dessa lei, estabelece-se que “injuriar continuava preta”. No processo, incluiu-se ainda mais sensibilizaram a mesma juíza que se empenhou em as-
alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em uma frase dessa supervisora, que, em outra situação, teria segurar a censura de um humorista na forma de uma
razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional” acar- elogiado os cabelos lisos e louros de uma cliente, dizendo medida cautelar.
reta pena de “reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e “que não eram como os da Etiópia”. Em sua defesa, a
multa”, sendo que “a pena é aumentada de metade se agência incluiu o fato de a supervisora em questão ser, Medida cautelar (ou “liminar”), como nos ensina o
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política
primeira quinzena de junho de 2023 9

comediantes na berlinda
Conselho Nacional do Ministério Público, é um “ato de ri, certamente o humorista cancela a piada do espetáculo. crítico severo dos personagens de programas humorís-
precaução”. Na prática, “é o pedido para antecipar os É comum entre esses artistas “testar a piada”, como, aliás, ticos de televisão. Ele afirma: “Penso que Vera Verão é
efeitos da decisão, antes do seu julgamento”. O sítio da explica Léo Lins no seu vídeo. Segundo ele, o especial um exemplo perfeito de como o humor racista reproduz
entidade explica ainda que a medida “é concedida quando “Perturbador”, que sofreu censura, só continha piadas estereótipos negativos sobre minorias raciais de todas as
a demora da decisão causar prejuízos (periculum in mora)”. devidamente “testadas”, o que pode significar que, cor- maneiras possíveis. Primeiro, a degradação sexual de
retas ou incorretas, gostemos ou não, estão provocando minorias sexuais. Toda a sua personalidade girava em
Fato é que, no caso de Léo Lins, o uso desse instru- o riso de muita gente. torno da sua sexualidade. Encontrar parceiros sexuais
mento jurídico permitiu a censura, uma vez que os “cri- era o único propósito de sua vida. Sempre fazia questão
mes” supostamente cometidos por ele são aquilo que ele Para além de lamentar que a sociedade brasileira seja de enfatizar suas habilidades sexuais. Segundo, o per-
diz nos seus shows. Para “evitar danos”, ele foi calado pelo preconceituosa ou de considerar que o comediante em sonagem reproduzia a ideia do homem branco como
judiciário e sujeito a multa diária de R$ 10 mil aplicada questão seja bolsonarista, é relevante refletir sobre ou- único parceiro sexual socialmente aceitável porque ela
sobre cada eventual ato de desacato à ordem judicial. A tro aspecto: como autor de espetáculo de humor que se só se interessava por homens brancos. Terceiro, ela tam-
imprensa, ancorada no identitarismo, tem dado cobertura apresenta como “politicamente incorreto”, pode estar o bém expressava a noção de que todos os homossexuais
à justificativa “legal” da censura por meio não só de ar- humorista fazendo uma crítica ao cerceamento imposto são efeminados e [de] que todos os homens negros ho-
tigos de opinião como também pela seleção das notícias pelo cânone da cultura woke. O próprio Léo Lins, no vídeo mossexuais estão à procura de homens brancos. Quarto,
veiculadas constantemente. em que comenta sua condenação, aponta o identitarismo ela também reproduzia a imagem hipersexualizada da
como o mainstream, o discurso aprovado e reiterado pelo mulher negra porque ela se apresentava como uma mu-
Qualquer discussão em espaço público que envolva sistema. Talvez boa parte do sucesso de suas piadas ve- lher”. Segundo o autor, Vera Verão é responsável pelos
suposta ofensa à identidade, desde que presenciada e fil- nha não exatamente do preconceito “estrutural” arraiga- males da sociedade.
mada por algum celular, ganha as telas do Jornal Nacional, do nas pessoas, mas, isto sim, do fato de ele se posicionar
da Rede Globo, cujos apresentadores fazem caras e bocas contrariamente ao discurso moralista dos identitários, que Para reforçar sua argumentação, ele acrescenta isto:
para demonstrar que apoiam punição exemplar a “cri- aparece defendido pela imprensa burguesa e pelos grandes “Piadas sobre a potência sexual de homens asiáticos tam-
mes de fala” de pessoas comuns. Diariamente, os meios conglomerados empresariais. bém expressam a noção de que eles não são assertivos,
de comunicação publicam notícias desse tipo, gerando a de que não são agressivos. Consequentemente, eles não
percepção de que é preciso controlar o que se diz e punir Ao ler no vídeo os termos da peça processual em que têm capacidade de comando”. As piadas mais populares
aqueles que falam o que supostamente não deveriam. A é citado, na qual são reproduzidas várias de suas piadas, sobre esses homens mencionam antes o tamanho do ór-
censura, que foi tão combatida nos anos da ditadura mi- ele chama a atenção para a tentativa de condená-lo por gão sexual que a sua potência sexual – pelo menos, é o
litar, surge com nova roupagem, agora como um meio de dizer que faz “humor negro”. Não, o problema não é que se ouve no anedotário nacional. Até onde se sabe, os
higienizar a sociedade. fazer ou deixar de fazer “humor negro”, mas a própria mesmos japoneses alvo dessas piadas levam igualmente a
expressão “humor negro”, na qual ele estaria usando o fama de inteligentes e aplicados nos estudos – e nunca se
O advogado Elton Duarte Batalha, doutor em Direito adjetivo “negro” associado a algo ruim. Ele estaria, por- ouviu dizer que alguém duvidasse de sua capacidade de
pela USP e professor do Mackenzie, em seu artigo “Caso tanto, segundo o Ministério Público, sendo condenado por comando e lhes recusasse cargos de chefia por causa des-
Léo Lins e a Constituição: tempos estranhos”, pergunta-se, usar uma expressão idiomática registrada em dicionário: se tipo de anedota. A piada pode ser boba, mas também
acerca da natureza das atividades de humoristas: “estão no “humor negro: humor que se expressa a propósito de uma será considerada crime?
campo do real ou da ficção?”. E prossegue: “Concluindo-se situação ou de uma manifestação grave, desesperada ou
que as obras referidas estão no âmbito ficcional (que parece macabra”(dicionário Houaiss). Os judeus, nessa seara, parecem ter encontrado a me-
ser o caso de filmes, peças de teatro e produções humo- lhor solução. São eles próprios que disseminam o vasto
rísticas, como no caso Léo Lins), a aplicação da referida Léo Lins diz à Folha de São Paulo (portal F5, já citado) repertório de “piadas de judeu”, autorizando os ouvintes
lei [Lei da Injúria Racial] é indevida, pois tem o condão esperar não ser preso. "Mas, caso seja, com a superlotação a rir à vontade do seu estereótipo de sovina e esperto para
de, em última análise, inviabilizá-las, dada a existência de das cadeias, meu show vai continuar lotado. A propósito, ganhar dinheiro, mesmo à custa de enganar os outros.
falas e comportamentos em tais obras que, evidentemente, isso foi uma piada", disse. "Utilizei um caso hipotético Isso sem falar nas tradicionais piadas de árabes e judeus,
caso confundidas com a realidade, seriam contrárias à or- e uma figura de linguagem para isso. Estou explicando, contadas por uns e outros, cada qual fazendo o seu lado
dem jurídica nacional (violência em obras de ação e frases para não acharem que foi um crime de ódio. E, como fiz levar a melhor. Que dizer das famosas piadas de português,
moralmente reprováveis usadas em livros e novelas para a piada comigo e sou um homem branco hétero, creio que contadas no Brasil? Seriam crime de xenofobia? Bem, em
a construção do enredo, por exemplo)”. E conclui assim não tem problema, pois é um dos únicos temas permitidos Portugal, o pessoal conta piada de brasileiro. Piada com
seu raciocínio: “Se a conclusão for no sentido de que tais segundo o processo". piada se paga. Ou não?
manifestações devem ser consideradas no campo do real,
um grande processo de suposta higienização nas áreas O identitarismo é um movimento de caráter religioso,
artística e cultural pode ocorrer no Brasil, com impacto
relevante sobre o conceito e extensão da democracia no
A moral e os bons costumes que prega uma conduta moral severa, baseada no cercea-
mento do que se diz. No âmbito da cultura woke, muito
país. Nesse sentido, até a produção shakespeariana estaria mais importante do que aquilo que se faz é aquilo que se
em risco em terras brasileiras”.

A título de contraponto ao raciocínio do professor,


O debate nas redes sociais, por sua vez, acaba enfocando
o conteúdo das piadas. Quem não gosta de alguma
delas aprova a censura e a punição do humorista; quem
diz. Segundo essa lógica, Adilson Moreira sintetiza: “Não
podemos esquecer que o racismo recreativo tem um ca-
ráter estratégico: o uso de piadas não ocorre apenas para
poderíamos apresentar o argumento de que a violência gosta o defende. Não se trata, porém, de discutir o con- entreter pessoas brancas, mas sim para perpetuar a ideia
e os comportamentos ilícitos veiculados nas obras de fic- teúdo porque, se assim for, qualquer um que disser algo de que apenas membros do grupo racial dominante podem
ção não são estimulados, ao contrário do que, suposta- de que o poder vigente discorde será proibido de falar. ocupar posições de poder e prestígio. As crenças precisam
mente, ocorreria no caso do humor. O riso seria, então, Pode ser difícil, mas é necessário defender a liberdade de persistir para que as hierarquias raciais sejam legitimadas.
um reforço do estereótipo. Nesse caso, como argumenta expressão para todos, não apenas para os nossos amigos, Pessoas brancas vão perder oportunidades quando viver-
o próprio Léo Lins em vídeo gravado para explicar aos para aqueles que pensam como nós. mos em uma realidade na qual não existam estereótipos
fãs o processo a que responde (Léo Lins – Quer saber como raciais. Elas terão que justificar a presença delas nos lugares.
é um processo do Ministério Público?, disponível no Youtube), Os entusiastas da “censura do bem” acreditam que, É por isso que elas estão tão empenhadas na degradação
todos os que riram de suas piadas mereceriam punição. calando “os maus”, construirão uma sociedade “saudá- moral de minorias. Elas querem preservar suas vantagens
O autor do conceito de “racismo recreativo” afirma que vel”. Quem acredita nisso imagina que a sociedade es- injustas a qualquer custo”.
“não podemos esquecer que o humor é uma forma de dis- teja dividida entre os bons e os “bolsonaristas”, estando
curso que expressa valores sociais presentes em uma dada aqueles no direito de calar estes. Uma das consequências Dito isso, dois pontos devem ser salientados. Em pri-
sociedade”. Tal ideia é provavelmente verdadeira, mas é disso é que, amanhã, os “maus” voltam ao poder e os meiro lugar, o autor acredita que as piadas tolas de Léo
preciso perguntar se é por meio da censura, da punição, instrumentos de censura serão usados por eles contra os Lins é que garantem a presença dos brancos nas “posições
da cadeia ou do cancelamento que esses valores vão ser seus inimigos. Ademais, é muito difícil julgar as inten- de poder e prestígio”. Em segundo, o que nos parece mais
transformados. ções de quem diz o que quer que seja. Segundo Adilson importante, de acordo com ele, a solução para a socieda-
Moreira, as “microagressões podem tomar a forma até de virá quando vivermos em uma realidade na qual não
mesmo de atos que aparentemente expressam polidez”. existam estereótipos raciais, momento em que as pessoas
Censura crescente O exemplo usado por ele para corroborar essa ideia é
este: “Um segurança de shopping que pergunta a homens
brancas terão perdido oportunidades.

negros se eles precisam de ajuda pode estar na verdade O mundo ideal dos identitários, portanto, não passa

M uitas das piadas do stand-up comedy são absoluta-


mente sem graça. No documentário O riso dos
outros (Pedro Arantes), em que são filmados vários desses
motivado pela imagem da periculosidade do homem
negro”. Será mais saudável um mundo em que a Justiça
condene o segurança por perguntar a um homem negro
de uma revanche contra os brancos pobres e remediados,
os que estão sujeitos a “perder oportunidades” para dar
lugar aos negros. Não admira que os brancos realmente
comediantes em ação diante de suas plateias, é possível se ele precisa de ajuda? poderosos patrocinem essa política, que divide a classe
perceber que algumas dessas piadas não “funcionam”, trabalhadora e torna a todos em potenciais criminosos
provocam antes constrangimento do que riso. Se ninguém O autor do conceito de “racismo recreativo” é um até nas horas de lazer.
10 primeira quinzena de junho de 2023 OSSIÊ
CAUSA OPERÁRIA

política

10 ANOS DE JUNHO 2013

Um balanço
Este artigo foi escrito pelo companheiro Rui Costa Pimenta durante as jornadas de junho Esta é a mesma política empregada na USP, onde a
luta política e social da juventude foi apresentada como
de 2013 no calor dos acontecimentos. Publicamo-o nesta edição do Dossiê Causa Operária um ato de criminalidade sem qualquer conteúdo político.
com algumas pequenas atualizações possíveis de serem feitas pela passagem do tempo.
Essa repressão, no entanto, foi justamente um dos estí-
mulos para o crescimento das manifestações que aumen-
taram a cada novo episódio da ação policial.

Rui Costa Pimenta e Henrique Simonard A manifestação anterior à quinta-feira (13 de junho),
duramente reprimida, já indicava claramente a incapa-
cidade da força repressiva do governo do PSDB de efe-
tivamente conter o crescimento da mobilização política.

O
s acontecimentos políticos de junho de 2013 são manteve como o movimento de uma frente única de orga- Estava colocado o impasse para o governo estadual.
mal compreendidos por uma grande parte da es- nizações políticas e reivindicativas de caráter permanente. Ceder às manifestações ou reprimir. Se cedesse haveria sido
querda. De um lado, há quem considere que tais derrotado pela mobilização, a qual não conseguia conter,
manifestações foram o início do golpe orquestrado contra Este movimento estava intimamente ligado ao movi- desmoralizando completamente a campanha caluniosa
a presidenta Dilma em 2016, e cunhe o acontecimento de mento de luta nas universidades estaduais, em particular do movimento criminoso, do vandalismo e da baderna.
“revolução colorida”, aí se encontram principalmente mi- da USP, que ocupou a reitoria daquela universidade em Se reprimisse, abrir-se-ia a seguinte alternativa: ou não
litantes e figuras do Partido dos Trabalhadores. Do outro duas importantes oportunidades, em 2007 e 2011. conseguir impedir a manifestação, uma desmoralização
lado, PCB, PSOL e PSTU, principalmente, consideram ainda maior do que ceder sem enfrentamento, ou usar de
as manifestações como um grande movimento popular Esse é, essencialmente, um movimento da juventude muita violência para reprimir o movimento, o que levaria
contra o governo do PT. Vale ressaltar que esses partidos e um movimento dirigido contra a ditadura que a direita, à desmoralização da repressão diante da população que
se envolveram, de um jeito ou de outro, na campanha ou seja, o PSDB e seus aliados impuseram no mais im- estava sendo desinformada com o relato de que se tratava
golpista que tomou corpo contra o PT logo após as jor- portante estado da federação nacional. de uma minoria de marginais.
nadas de junho, notoriamente no movimento “Não Vai
Ter Copa” e depois no ataque ao governo da Dilma em A eleição de Fernando Haddad do PT em 2012, ou, Alckmin, de maneira absolutamente equivocada, optou
seu segundo mandato. mais precisamente, a derrota do PSDB, colocou em evi- pela repressão e colocou em jogo um amplo contingente
dência a crise dessa ditadura. O PT assume o governo não de repressão com milhares de soldados da PM, a Rota,
Nenhuma das duas análises está certa. Primeiro é como uma alternativa popular ao PSDB, mas como uma a Tropa de Choque, a Cavalaria e vários destacamentos
preciso entender como começaram as manifestações: foi versão mais débil de governo burguês representante do especiais. A violência da repressão – inevitável e não aci-
o movimento estudantil principalmente, mas também os regime político antidemocrático, antioperário e pró-impe- dental – que atingiu simples observadores e passantes,
trabalhadores, que deram início às manifestações. Se a rialista, indicando o completo esgotamento dos métodos jornalistas, além dos manifestantes, fez com que a crise
direita tomou conta da agitação no correr dos aconteci- anteriores de contenção e a completa perda de autoridade política se abrisse completamente.
mentos, isso se deve principalmente à política vacilante da direita para governar.
dos partidos da esquerda, que foi incapaz de abraçar as
reivindicações dos manifestantes e tomar a dianteira de O 13 de junho
um movimento contra a direita neoliberal, deixando que
a burguesia infiltrasse as manifestações e encobrisse os
Pela redução das tarifas
fatos através da imprensa, que apresentou sua própria
versão fantasiosa dos fatos: os manifestantes não estariam
nas ruas contra o neoliberalismo e a repressão do gover- A s manifestações de 2013 foram mais um sintoma do
agravamento dessa crise. Começaram com muito
A violenta repressão do dia 13 de junho foi o momento
decisivo de toda a crise. Justamente por isso, toda a
imprensa capitalista silenciou sobre esta questão nos dias
no do estado de São Paulo, mas sim contra o governo do maior participação da juventude. Seu espírito de luta tam- posteriores. A repressão não pôde ser escamoteada pela
PT. Vamos aos fatos. bém estava incrementado. Nos anos anteriores, alas mais imprensa com os argumentos conservadores tradicionais
moderadas do movimento, como a própria direção do de que o governo estava cumprindo a lei, que havia agi-
As manifestações que se espalharam por centenas de MPL (Movimento Passe Livre), buscavam evitar qualquer do contra baderneiros e outras fantasias da propaganda
cidades no País tiveram o seu ponto de partida em São manifestação mais radical e, particularmente, qualquer reacionária.
Paulo, com as passeatas contra o aumento da tarifa dos resistência à violência policial. Neste ano, a esquerda do
transportes coletivos implementado pelo prefeito Fernan- movimento, apoiada nos setores jovens da periferia que O resultado da repressão foi a liquidação de toda a
do Haddad, do PT, e pelo governador Geraldo Alckmin, começaram a participar, rompeu estes diques de conten- aparência de autoridade do governo do estado e da sua
do PSDB. ção e enfrentaram a repressão policial, apesar da óbvia máquina repressiva como fator político local e nacional.
desvantagem material. Os eventos de violência do início Todos os planos da direita estão baseados no controle
A luta pelo passe livre iniciou-se anos antes, durante o da manifestação, provocados diretamente pela repressão do aparelho administrativo do estado de São Paulo, a tal
governo Kassab e sofreu desde aquele momento a repressão policial, foram apresentados pela imprensa capitalista, que ponto que dias antes da manifestação, o jornal Folha de S.
policial. Ela teve momentos de mobilizações expressivas logo saiu em defesa do governo Alckmin, como “vanda- Paulo havia estampado na capa a manchete absolutamente
e outros momentos de pequenas manifestações, mas se lismo” e “baderna”. inverossímil de que Alckmin era eleitoralmente imbatível
em São Paulo e que seria capaz de derrotar até mesmo
o próprio Lula.

O colapso, contudo, não foi apenas eleitoral. O estado


de São Paulo, o mais industrializado do País, com uma
imensa classe operária e uma classe média muito politi-
zada, é um barril de pólvora e uma ameaça constante ao
regime político. Foi daqui que não apenas partiu, mas onde
se desenvolveu amplamente a luta que levaria ao fim do
regime militar. Aqui está também o maior quociente de
organização da esquerda nacional e o mais radical. A per-
da de controle em um estado como esse e, em particular,
em uma metrópole de mais de 20 milhões de habitantes
como é a Grande São Paulo, coloca o regime político de
conjunto em uma crise terminal.

O silêncio sobre estes acontecimentos decisivos e a sua


repercussão política nacional provam acima de qualquer
dúvida esta análise.

Manobra desesperada
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As manifestações que se espalharam por centenas de cidades no País tiveram o seu ponto de partida em São Paulo, com as passeatas contra o A crise do 13 de junho levou à convocação de uma ma-
nifestação na segunda-feira seguinte que todos com
uma mínima capacidade de analisar a situação política sa-
aumento da tarifa dos transportes coletivos
OSSIÊ
CAUSA OPERÁRIA

política
primeira quinzena de junho de 2023 11

das manifestações
biam que seria gigantesca. A convocação da manifestação
no Facebook, na própria sexta-feira (14), já registrava mais
de 100.000 pessoas confirmadas. A manifestação estava
preparada para ser a marcha fúnebre da direita em São
Paulo nacionalmente e dos seus propósitos golpistas em
nível nacional, articulados na embaixada norte-america-
na. Os preparativos do golpe, que seria um coup de main,
senão um coup d’état, viriam a se mostrar claramente na
semana seguinte à repressão.

A situação extremamente crítica forçou a direita a


ensaiar um verdadeiro golpe, mas contra o movimento
popular, que foi organizado emergencialmente de quinta
a segunda-feira. A imprensa colocou em ação toda a sua
capacidade de manipulação com as seguintes diretrizes:
ocultar a repressão da quinta-feira, apoiar a manifestação
que estava sendo convocada, chamar à realização de uma
manifestação pacífica, ordeira e “cívica”, ou seja, o oposto
do que tinha acontecido até aí. Era preciso conter a raiva
e a rebelião popular contra a repressão e diluir completa-
mente as reivindicações. Até este ponto, não se tratava de
uma manobra muito distinta daquelas que estes mesmos
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capitalistas da comunicação, a serviço dos grandes capi-


talistas em geral, haviam realizado antes, durante a luta
contra a ditadura, nas diretas já, no Fora Collor etc. Seu As manifestações que começaram contra o aumento da passagem e escalaram rapidamente como reação à repressão estatal do governo
objetivo era diluir, conter e, finalmente, asfixiar a mani- do PSDB foram infiltradas pela direita
festação popular contra o governo Alckmin. Ainda mais
quando as manifestações em solidariedade a esse movi- alas democráticas, social-democratas e frente-populistas do veio, em grande medida, de fora, é parte do processo de
mento começavam a ocorrer em todo o País e até mesmo regime político. São claramente, nesse sentido, uma evo- organização golpista dos empresários, do governo e do
fora do País. lução da direita tradicional para posições fascistas, inde- aparelho de inteligência do imperialismo, em especial
pendentemente da sua diversidade atual. É um fenômeno do norte-americano. O Instituto Millenium brasileiro
Não podemos esquecer que o crescimento das mani- paralelo ao que acontece dentro do movimento operário e é um desses centros organizadores impulsionados de
festações poderia quebrar as outras duas pernas do tripé popular dirigido pela esquerda burguesa e conciliadora. Há fora que, assim como outras organizações, a maioria
que sustenta o regime político, ou seja, os governos esta- um desenvolvimento no sentido de ultrapassar as limita- de laços diretos com o imperialismo norte-americano,
duais do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, este último, ções desta esquerda em um sentido oposto, revolucionário. contribuem para a proliferação de grupos de extrema-
também um baluarte do PSDB. -direita no Brasil.
Na época o Partido Republicano norte-americano
A burguesia, porém, era consciente de que esta ma- deu lugar ao Tea-Party; dentro da UMP francesa, após o A imprensa capitalista foi também um dos viveiros onde
nobra para diluir e estrangular o movimento não era su- colapso de Sarkozy, a ala oficial foi derrotada pela facção cresceu esta direita. Revistas de grande circulação como a
ficiente. Finalmente, uma manifestação pacífica, com os de Jean-François Copé, que buscou uma aliança com o revista Veja assumiram claramente uma política de direita
mesmos objetivos e sob a mesma direção que havia atuado partido da extrema-direita Reagrupamento Nacional, de mais aberta, mais radical, mais próxima da extrema-direi-
até então, somente serviria para transferir a luta contra Marine Le Pen; na Inglaterra, a desagregação acelerada ta e com a sua retórica fascistoide inflamam elementos de
a direita para o terreno eleitoral, beneficiando objetiva- do Partido Conservador, destruído por Margareth That- classe média desesperados, cuja grande propensão política
mente o PT, e para postergar a ofensiva popular nas ruas. cher, também levou ao crescimento da extrema-direita do é buscar bodes expiatórios para as suas dificuldades, causa-
Era necessário fazer intervir um novo fator para destruir UKIP, que teve um extraordinário desempenho nas eleições das pelo grande capital. A tendência ao empobrecimento
ou manipular os efeitos da manifestação. Era preciso efe- europeias de 2014, com 4 milhões de votos. de setores da pequena-burguesia leva setores conservado-
tivamente disputar a direção da mobilização em um sen- res a se radicalizarem sem perder o impulso conservador,
tido mais profundo e buscar direcionar o ponteiro da As organizações de direita se multiplicam no mundo e esta é a base social do fascismo.
manifestação contra o governo, contra o PT e contra a todo em resposta à enorme crise capitalista e são, quei-
esquerda em geral. ram ou não, uma arma contra a classe operária mundial. A direita, organizada pelo aparato policial clandestino
do PSDB, foi chamada à manifestação organizadamente
No Brasil, a crescente debilidade da direita no terre- não para impor uma política de direita, mas para anular
A burguesia e seus pitbulls no eleitoral levou ao surgimento de vários grupos de ex-
trema-direita que pregam contra a moderação da direita
a política da esquerda e das lideranças do movimento. O
golpe foi dar ao protesto o caráter de um não protesto, uma
institucional e que defendem abertamente uma política manifestação inócua, ecumênica, de “todos os brasileiros”,

A burguesia, incapacitada de intervir contra a esquerda


por meio da força policial, decidiu intervir utilizando
em seu favor as forças para-policiais da extrema-direita
de força contra a esquerda, ou seja, contra o movimento
operário, que frequentemente aparece como uma defesa
do golpe militar de 64.
com a bandeira do Brasil, hino nacional, em resumo, uma
festa, ou seja, o exato oposto de uma manifestação. Para
isso, foi necessário anular a esquerda completamente. Essa
nacional. necessidade levou a extrema-direita e os policiais infiltra-
No Brasil, logicamente, a extrema-direita não apenas dos a usar uma política violenta de expulsar a esquerda
Esta escolha não foi puramente intelectual, mas foi o é mais fraca que nos países desenvolvidos, como é muito da manifestação, não com o apoio da massa presente,
resultado de uma situação que já estava em marcha há mais dependente do aparelho de Estado, em particular do mas aproveitando-se da confusão e da inconsciência dessa
algum tempo no Brasil, ou seja, um tenaz esforço de or- aparelho repressivo. A extrema-direita é extremamente massa. O que foi feito e, em certa medida, com sucesso,
ganização de uma direita militante, fascista ou filo-fascista, reacionária e antipopular e o Brasil, como todos os países devido fundamentalmente à covardia da esquerda peque-
para se opor à militância operária e de esquerda. atrasados, é um país pobre onde não há uma verdadeira no-burguesa, como o PSOL e o PSTU, que não quiseram
base popular, nem mesmo minoritária, como nos países enfrentar a direita violenta e que falsificaram a situação
Este é um fenômeno mundial que perdura até hoje imperialistas, para uma política aberta de defesa dos inte- apresentando a ofensiva direitista como uma opinião po-
e cuja base fundamental é a desagregação dos partidos resses capitalistas e dos privilegiados em geral, que vivem pular “atrasada”, o que nada tinha de realidade. Posterior-
tradicionais da direita como resultado do imenso fracas- em uma permanente guerra contra a população pobre. O mente, ambos os partidos foram completamente envoltos
so da política neoliberal, enfrentada pelas massas com que está particularmente ausente no Brasil é uma classe pela campanha golpista contra o PT. Toda propaganda
verdadeiras insurreições populares como na Bolívia, e so- camponesa consolidada e uma aristocracia operária con- golpista contra o governo Dilma disfarçada em demanda
terrada pela crise capitalista. A decomposição da política servadora, que aparecem nos países desenvolvidos e que popular era reforçada pela esquerda pequeno-burguesa.
implica inevitavelmente na desagregação das forças que podemos ver no cordão bíblico dos Estados Unidos ou nas Após o golpe, esses partidos sequer reconheceram que se
lhe servem de base. poderosas e ultraconservadoras organizações sindicais bu- tratava de um, reconhecendo-o apenas depois de ficarem
rocráticas da Inglaterra, França, Itália, Estados Unidos etc. completamente isolados do resto da esquerda que levava
A divisão da direita tradicional levou ao surgimento adiante uma luta contra o golpe.
de uma ala ortodoxa de direita no interior destes partidos, Aqui cabe uma observação, esse esforço em criar uma
cuja base de desenvolvimento é a propaganda de que a base de extrema-direita para enfrentar a esquerda se mos- A necessidade extrema, no entanto, obrigou a direi-
política neoliberal fracassou não porque encontrou pela trou bem-sucedido. Após as jornadas de junho de 2013, ta a mostrar as suas cartas antes do que seria necessá-
frente a resistência das massas, mas porque não foi levada evoluiu para a criação do MBL (Movimento Brasil Livre) rio. Tornou-se de conhecimento comum que o fascismo
adiante de maneira radical e coerente. A direita ortodoxa e acabou culminando na criação do bolsonarismo. se organizava no Brasil para atacar a classe operária e
não quer se dobrar à pressão popular, que não compreende que os propósitos da direita eram claramente golpistas
muito bem, e quer restringir a política de aliança com as O impulso para a organização da direita nacional contra o PT.
12 primeira quinzena de junho de 2023 OSSIÊ
CAUSA OPERÁRIA

política

Como se organiza um golpe

T oda a esquerda pequeno-burguesa, do PT ao PSOL e


PSTU, passando por PCdoB e outras variantes, fize-
ram o impossível para ocultar a ação política da direita e
as tendências inerentemente golpistas da sua ação. Esta é
uma das leis fundamentais da política pequeno-burguesa
de conciliação de classe de frente popular: ocultar o caráter
antidemocrático e violento da burguesia, anestesiando as
massas com a miragem do jogo eleitoral e do reformismo
medíocre, sem resultados, das negociações parlamentares.

Na época, a vitória eleitoral do PT não foi uma ver-


dadeira vitória eleitoral, mas um acordo com a burguesia
para a preservação do regime político após o colapso da
política neoliberal de FHC. Este acordo precário rompeu-se
com a crise de 2008 e as tímidas reformas sociais do PT
tornaram-se insustentáveis para a burguesia, que busca
desesperadamente descarregar a crise totalmente sobre os
ombros das massas. As tentativas do PT de levar adiante
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um neoliberalismo privatizante para conseguir a anuên-


cia da burguesia, embora um duro golpe contra o País e
a sua classe trabalhadora, pareceu ao setor fundamental As manifestações que começaram contra o aumento da passagem e escalaram rapidamente como reação à repressão estatal do governo
do capital financeiro nacional e internacional como extre- do PSDB foram infiltradas pela direita
mamente limitado. A burguesia necessitava de um ataque
mais profundo contra as massas, ao estilo do que foi feito promisso e emergencial da burguesia diante da crise, mas realidade, mostrando através de um verdadeiro truque de
nos países europeus, para manter a sua posição dentro não a sua política fundamental. Contudo, com o desen- prestidigitação a manifestação como o oposto do que era,
do País e internacional. Não à toa precisou derrubar o volvimento da crise econômica de 2008, o imperialismo ou seja, não contra a direita e os seus ataques ao povo, mas
PT e levou adiante, através de Temer e de Bolsonaro, um tratou de romper com qualquer compromisso político e contra a corrupção do PT. As falsas manifestações de mas-
programa intenso para aniquilar a economia brasileira. econômico nos países sob sua esfera de influência. sa, manipuladas pelos meios capitalistas de comunicação
A Lava Jato foi uma peça fundamental para liquidar as foram uma manifestação clara dessa tendência golpista,
principais empresas nacionais brasileiras, e justificar as A campanha contra o PT foi uma típica campanha gol- e um serviu de impulso para as campanhas posteriores do
privatizações de outras com a desculpa da “corrupção”. pista. Seu centro foi o velho refrão da burguesia golpista de “Não Vai Ter Copa”, encabeçada pelo senhor Guilherme
antes de 1964. O Brasil todo, de 1950 a 1964, foi obrigado Boulos junto a setores de direita, e da Lava Jato.
O grande problema deste setor da burguesia era jus- a ouvir a cantilena dos Lacerda e outros udenistas que se
tamente o arremedo de regime representativo que existe erguiam como defensores da moral pública. O único ob- A maior parte dos analistas acreditava haver uma con-
no Brasil, onde, da mesma forma em que todos os países jetivo desta campanha moral era um resultado material: tradição absoluta não dialética entre a luta eleitoral e o
latino-americanos, com o desenvolvimento da crise capita- abrir a economia brasileira e destruir boa parte dela para golpe de Estado, como uma muralha intransponível. Na
lista, são favorecidos os partidos com maior apelo popular satisfazer a fome de lucros dos monopólios estrangeiros. realidade, a relação entre ambos é de alimentação mútua,
e reformistas em alguma medida, ou seja, os representantes Outro tema constante da agenda política dos reacionários quanto mais se exacerba a luta, mais a disputa eleitoral ali-
da burguesia nacional contra os representantes declara- era a defesa da democracia contra a falta de democracia menta o golpe de Estado e este radicaliza a disputa eleitoral.
dos do imperialismo. Na Venezuela, Argentina, Equador, do varguismo. Este objetivo foi realizado através do golpe
Brasil, a mera manipulação eleitoral não é suficiente para fascista de 1964 e dispensa maiores comentários.
uma direita que tem cada vez menos votos e não consegue
agrupar o conjunto da burguesia em torno dela como fez A questão do “Mensalão” foi o eixo fundamental da
Quem estava nas ruas?
com a política neoliberal. campanha e evoluiu para uma acusação de corrupção do

O resultado fundamental desta limitação da direita


diante de forças que se apresentam como mais democráti-
governo Dilma e do próprio Lula. A direita, que domina a
esmagadora maioria da imprensa capitalista nacional, criou
o mito de que o “Mensalão” teria sido o maior escândalo
O maior mito já criado acerca das manifestações é sobre
o perfil dos manifestantes. Sociólogos amadores tira-
ram a conclusão de que eram nacionalistas, afinal portavam
cas frente ao eleitorado popular não foi, como esperariam de corrupção que o Brasil já conheceu, uma afirmação bandeiras do Brasil; são de direita, uma vez que a Rede
os crédulos da democracia, um fortalecimento do regime cínica a ponto de ser cômica para os que conhecem, por Globo, instrumento sociológico fundamental no Brasil,
parlamentar e do Estado de Direito, mas o exato oposto, pouco que seja, o interior do Estado nacional. mostrou cartazes contra o PT e até defendendo propostas
o seu enfraquecimento. A parcela mais poderosa da bur- muito à direita; que são contra partidos, afinal os partidos
guesia, buscando recuperar a sua posição, usou meios que O julgamento do “Mensalão” pelo STF teve todas de esquerda foram vaiados e atacados por manifestantes.
fugiram ao mero jogo parlamentar e culminaram no golpe as características de um verdadeiro golpe de Estado: foi Sabe-se que as pessoas assustadas veem fantasmas atrás
de Estado. Todos os países da América Latina onde a es- realizado em meio às eleições, com os juízes assumindo de cada porta. É natural que a esquerda, que foi comple-
querda aliada a burguesia nacional governava passaram o papel de propagandistas políticos do partido de direita, tamente tomada de surpresa pelas manifestações, visse
por golpes de Estado, viram a ascensão da extrema-direita um procedimento escandaloso que somente tem curso todos esses fantasmas. O problema, porém, é que eles não
e a perseguição de seus partidos de esquerda. entre uma parcela da população devido ao controle da eram reais e sequer era correto fazer a análise a partir da
imprensa e à completa capitulação do PT diante dessa observação de determinados fatos que ocorreram dentro
Esses regimes nacionalistas, socialdemocratas e frente- manobra política. Um julgamento sem rigor que pisoteou de uma multidão confusa e heterogênea ou, para efeito
-populistas na América Latina eram o governo da burguesia todas as normas possíveis do direito burguês democráti- de método, qualquer manifestação.
nacional, reformista e liberal que foi estabelecido com base co, mesmo em um sentido muito superficial, é uma ação
no esgotamento da política neoliberal, que levou milhões a golpista e concertada. É preciso fazer uma análise objetiva do desenvolvimen-
uma situação insustentável sem conseguir qualquer avanço to das manifestações, o que, para a maioria, parece não
na recuperação da capacidade do capitalismo funcionar. O caráter golpista da ação da direita foi se avoluman- ter importância alguma ou certamente menor do que o
Isso quer dizer que foram uma solução forçada, de com- do e veio sair à luz do dia nas passeatas, onde falsificam a testemunho de um cartaz escrito em papel de cartolina. A
maior de todas as manifestações foi a da segunda-feira (17
de junho). O que provocou o afluxo da multidão às ruas?
Óbvia e inconfundivelmente, a repressão da quinta-feira
anterior. O clima de mobilização cresceu com o repúdio
à violência da PM contra o movimento dos jovens. O que
isso teria a ver com todo o conservadorismo que as tes-
temunhas reputam tão importante? As pessoas viram na
repressão, um motivo para protestar contra os partidos,
contra a PEC 37, contra a liberação do aborto e a favor
da ditadura militar e pelo esmagamento do comunismo?
Claro que basta formular o problema para ver que ele não
faz sentido algum.

Todo o segredo do ilusionismo estava na engrena-


gem política da manifestação e não na mística análise
da “opinião do povo” dos sociólogos sem carteirinha ou
com carteirinha.

O primeiro fato fundamental é que a direção do mo-


vimento era muito fraca organizativamente para tamanho
crescimento da mobilização, na qual a maioria esmagadora
dos participantes era de esquerda e apoiava em algum grau
Reprodução

a luta contra Alckmin e pelo transporte. Essa debilidade foi


ainda terrivelmente agravada pelas manias e preconceitos
Alckmin optou pela repressão e colocou em jogo um amplo contingente com milhares de soldados da PM, a Rota, a Tropa de Choque, a
inculcados naquele movimento há tempos, de que ele deveria
Cavalaria e vários destacamentos especiais
política
OSSIÊ
CAUSA OPERÁRIA
primeira quinzena de junho de 2023 13

A participação da esquerda era muito maior que o res-


tante da manifestação inteira, o que pôde ser observado
porque a passeata se dividiu pelas duas mãos da Av. Pau-
lista. Este fato desmascarou dois dos mitos. Em primeiro
lugar, que a maioria das manifestações era conservadora,
antipartido etc. Em segundo lugar, que a orientação que
foi imposta à manifestação pela imprensa capitalista teria
sido um eixo da manifestação e não o seu estrangulamento.

A posição favorável da esquerda também foi perdida


por motivos puramente políticos. Várias organizações da
esquerda atenderam ao chamado de levantar bandeiras
na manifestação da vitória, mas atenderam ao chamado
com os seus próprios conceitos políticos, ou seja, de que
não se tratava de organizar uma ofensiva contra a direita,
de enfrentar fisicamente a repressão que havia se transfe-
rido para dentro do movimento e sim que a própria pre-
sença majoritária da esquerda já realizaria toda a tarefa.
A esquerda não foi ao ato para combater o fascismo em
broto, ou seja, uma violência e um golpe contra a manifes-
tação, e sim para fazer uma parada eleitoral e aterrorizar
os policiais à paisana, os skinheads e os integralistas com
a imponência de uma propaganda puramente eleitoral. O
Reprodução

resultado desta comédia foi o de que, quando cerca de 50


elementos da direita partiram para dentro da manifestação
Em grande medida, o movimento foi vitorioso graças aos “vândalos” que reagiram como puderam à repressão policial com gás de pimenta, bombas de efeito moral, cassetetes e
uma ou outra faca, a esquerda se dispersou rapidamente
ser “horizontal”, ou seja, sem carros de som ou organiza- o ato para o dia seguinte. Na realidade, não fizeram qual- e não apenas não enfrentou a violência como procurou
ção formal e de que deveria ser apartidário. Esta posição, quer análise do que estava acontecendo no quadro polí- evitar que outros, como os militantes do PCO, que já es-
que corresponde a um anarquismo de classe média, e que tico geral, preocupados apenas com a negociação com os peravam por esta ação, reagissem a ela. Um militante do
era a “ideologia” dos integrantes do MPL, permitiu que a governos municipais e estaduais. De um dia para o outro, PCO foi contido por um segurança do PSTU para que não
direita, mais organizada e mais dissimulada do que qual- a situação ficou ainda mais difícil para a esquerda e mais reagisse à provação direitista. Essa política parlamentar,
quer esquerdista, se impusesse de maneira agressiva à ma- fácil para a direita. de crença na conciliação permanente, no pacifismo e na
nifestação, ainda que relativamente. No meio da confusão superioridade moral da democracia conduziu a passeata,
e da dispersão enorme, da ausência de uma organização A esquerda, acuada pelo que havia acontecido na se- que seria uma vitória segura da esquerda, a um empate.
central, foi extremamente fácil para um grupo reduzido de gunda-feira, simplesmente não compareceu à manifestação,
direitistas atacar individualmente militantes ou grupos de o que facilitou ainda mais a ação da direita contra nosso
militantes da esquerda dentro da manifestação, acobertados
pela palavra de ordem absurda de “abaixo os partidos”. A
partido e os poucos que decidiram levantar uma bandeira.
A direita, mais à vontade, partiu para a agressão contra
O movimento nacional
direita organizada infiltrou-se ruidosamente no meio da militantes ou pequenos grupos isolados dominando com-
manifestação com as suas próprias palavras de ordem, al-
tamente impopulares, como a defesa da volta dos militares
ao poder. No entanto, a dispersão, a confusão, o clima de
pletamente a manifestação.

Alckmin e Haddad cederam na quarta-feira (19) à


O movimento nacional foi detonado pelas mobilizações
de São Paulo e pela repressão policial, particularmen-
te depois do dia 13 de junho.
extrema desorganização, não permitiram reação alguma, reivindicação, mostrando que já não tinham condição
ainda mais de pessoas não acostumadas a qualquer mani- de sustentar a sua resistência à manifestação, mas tam- O movimento todo tinha muita semelhança com o de
festação ou luta política em geral. Por sua vez, as redes de bém que temiam o acirramento da luta no interior da São Paulo, a começar pela ampla presença da juventude.
TV selecionavam a seu critério como mostrar a manifes- mobilização e o seu crescimento nacional. A vitória do Em Minas Gerais, era totalmente dirigido contra o governo
tação e a diluíam ainda mais em um espírito de completa movimento foi inconteste e ficou realçada pelo fato de do PSDB, que reprimiu com brutalidade as manifestações.
abstração com frases tais como a de “como isso é lindo”, “o que a imprensa mais direitista, como a revista Veja, saiu No Rio de Janeiro, incorporou uma parcela ainda maior
povo está na rua”, “paz”, “somos todos brasileiros”. Obvie- no final de semana a denunciar que a vitória não havia da população proletária e, embora a presença da direita
dades e coisas sem qualquer conteúdo real ou mesmo sem sido “completa”, uma tática para roubar às massas o também se manifestasse no meio da confusão e desorien-
sentido (se somos todos brasileiros, por que saímos à rua, o entusiasmo por esta vitória sobre um governo repressor tação geral, esta presença estava mais diluída. Também,
país está sendo ameaçado ou será que ganhou a Copa do como é o governo do PSDB. A burguesia se preocupa em todos os estados, atendendo ao apelo carnavalesco da
Mundo com antecedência?). com que as massas não consigam medir efetivamente a imprensa capitalista, as bandeiras brasileiras apareciam
sua força, o que certamente impulsionará novas mani- em número considerável, sublinhando ainda mais a falta
A mistura dentro da manifestação era heterogênea, festações e de maior ambição. de orientação da manifestação toda.
comportando todo o tipo de gente, mas sobretudo uma
parcela expressiva de classe média, em grande parte de Diante da vitória a esquerda, inclusive o PT, decidiu Em muitos lugares, o movimento assumiu claramen-
esquerda, mas cheia de preconceitos pacifistas e morais, comparecer em maior número à marcha da vitória, in- te também a bandeira de luta pela revogação das tarifas
em bem menor parte conservadora. Embora os partici- clusive os próprios militantes do PT, despertados pela de- e em várias cidades foi vitorioso ainda antes do de São
pantes originais da manifestação estivessem lá em gran- monstração de força da direita dentro da manifestação. Paulo. Em geral, o objetivo das manifestações era protes-
de número, estavam completamente desorganizados e A discussão sobre as agressões e a denúncia da ação da tar diante das sedes dos governos municipais e estaduais,
dispersos. As palavras de ordem reacionárias, como a de extrema-direita contribuíram para alinhar a todos contra evidenciando a falácia divulgada pela imprensa de que o
“fora todos os partidos” eram minoritárias e em alguns a direita. Já não havia a mesma confusão e ilusão de dois movimento seria contra o governo nacional do PT. Em
momentos eram confundidas pelos mais desavisados com dias antes. vários lugares, Belo Horizonte em particular, o movimen-
um protesto de esquerda. to dirigiu-se aos jogos da Copa, além das sedes dos go-
A concentração da esquerda no MASP agrupou mais vernos. Para a máquina de desinformação da imprensa,
O que facilitou o relativo crescimento dessa confusão de 500 pessoas convocadas especialmente para se impor isso seria uma demonstração de um repúdio à Copa do
e uma pequena liberdade para a direita foi a completa contra a direita. Mundo no Brasil por parte da população, uma rematada
falta de compreensão da esquerda, boa parte da qual es-
tava educada para acreditar que a burguesia era pacífica
e democrática e que o nazi-fascismo só existia em filmes e
que o Brasil está acima dessas coisas estranhas. A esquerda,
majoritária em todas as passeatas, deixou o caminho livre
para uma minoria de direita se impor no meio da confu-
são. Para aqueles que até então nunca haviam visto nem
estudado o mecanismo do golpe de Estado esta foi uma
experiência em primeira mão, ainda que em miniatura.
Os golpes de Estado sempre são o golpe de uma minoria
organizada e montada no poder do Estado e do dinheiro
contra uma maioria desorganizada e confusa. A políti-
ca da esquerda pequeno-burguesa é sempre um fator de
desorganização das lutas das massas. Estes são os fatores
fundamentais.

O estrangulamento da mobilização

A manifestação convocada para a Praça da Sé na terça-


-feira (18) foi a mais confusa e a mais dominada pela
Reprodução

direita de todas, e o número de manifestantes diminuiu


consideravelmente em relação à segunda-feira. Outro erro
A violência da repressão que atingiu simples observadores e passantes, jornalistas, além dos manifestantes, fez com que a crise política
dos que estavam encarregados da convocação foi chamar
se abrisse completamente
14 primeira quinzena de junho de 2023 OSSIÊ
CAUSA OPERÁRIA

política

sandice, propagada intencionalmente em uma campanha da burguesia, em primeiro lugar os mais conservadores, que sem organização política, uma organização que não
orquestrada contra a Copa do Mundo pela direita, para mas também os liberais, democráticos e reformistas. No é apenas e nem essencialmente eleitoral, não é possível
impedir que o governo use na sua demagogia eleitoral a Brasil, este processo está muito desenvolvido porque os enfrentar o que a burguesia está cozinhando no seu cal-
Copa como elemento decisivo na eleição de 2014, que será partidos fundamentais da burguesia, em primeiro lugar deirão de bruxa: a ação fascista violenta contra todas as
realizada imediatamente após a competição. Na realidade, o PMDB, se esgotaram durante o governo Sarney quan- organizações operárias e democráticas.
os manifestantes buscavam utilizar o fato de que a Copa do tiveram que enfrentar a classe operária em ascenso
atrai a atenção popular para protestar e mostrar as suas de 1983 a 1989. A conclusão inevitável destes fatos é que tornou-se
reivindicações. Outro dado importante é que o governo necessário construir um partido, na medida em que o PT
do PSDB proibiu qualquer tipo de manifestação em 800 O único partido que ainda mantém autoridade sobre não cumpre efetivamente este papel e é, claramente, o
cidades do estado, o que cria automaticamente um movi- as massas é justamente o PT. principal responsável, com a sua política de conciliação
mento contra a repressão policial-estatal. de classes, pela ofensiva da direita e pelo enfraquecimento
A luta contra todos os partidos, contra o partidarismo das organizações operárias e democráticas.
O movimento começou a refluir na medida em que em geral, era a luta dos partidos que foram completamente
foi derrotado em São Paulo. rejeitados pelas massas contra os partidos que não foram. Se A proposta de frente de esquerda para defender o mo-
a burguesia não consegue dizer, “largue o PT, venha para vimento de luta contra as agressões fascistas foi recebida
o PSDB”, então ela diz, “largue todos os partidos, todos por uma ampla camada de militantes com entusiasmo e
A “revolução” dos eleitores são maus”. É um velho truque da política burguesa que
leva ao bonapartismo, ao golpe de Estado e ao fascismo.
expressa a tendência geral a construir um partido operário,
mas, fundamentalmente, um partido operário de ação e
não eleitoral, vale dizer, um verdadeiro partido operário,

A improvisação e o desespero podem ser os piores con-


selheiros. Para desarmar a bomba prestes a explodir
após o dia 13 de junho, a direita, apoiada pelas redes de TV
Toda a campanha da direita nas manifestações, in-
cluindo a proposta do senador Cristovam Buarque de
dissolução de todos os partidos, apontavam uma tentativa
um partido revolucionário. A evolução da situação mos-
trou que mesmo diante de uma investida golpista, o PT
foi incapaz de mobilizar sua base militante e seu amplo
direitistas, lançou duas palavras de ordem completamente de transformar a eleição de 2014 em uma disputa entre eleitorado para lutar contra a direita, acreditando até o
sem sentido. De um lado, cartazes muito cuidadosamente indivíduos e não de partidos, ou seja, para o reforço do último minuto nas instituições. Na verdade, mesmo após a
improvisados diziam “contra todos os partidos”, e alguns tradicional sistema político brasileiro que se caracteriza prisão de Lula, a cassação do ex-presidente das eleições de
grupos gritavam “o povo unido não precisa de partido”. pela incapacidade da burguesia de construir partidos na- 2018, o partido continuou acreditando que as instituições
cionais sólidos. A formação do partido Rede da Sustenta- brasileiras mudariam da água para o vinho e não mais se-
São palavras de ordem completamente sem sentido, bilidade – que já busca se disfarçar eliminando o partido riam ferramentas da burguesia na luta de classes, mas sim
porque até mesmo os regimes ditatoriais mais bonapar- do nome – era parte dessa manobra para atrair o voto da defensoras da abstrata democracia. As necessidades da luta
tistas acabam tendo uma organização partidária e um classe média despolitizada e confusa, para dividir o voto vão servir para esclarecer de maneira cabal este proble-
programa que lhes dêem alguma coerência. O funciona- contra a direita e permitir a vitória da direita. ma e apontam para a criação de um partido operário que
mento da sociedade política sem partidos é logicamen- reúna todo o ativismo da juventude e da classe operária.
te uma fantasia delirante própria dos anarquistas e dos
fascistas, manifestações políticas da pequena-burguesia
encurralada pelo capitalismo e do individualismo tipica-
O “abaixa a bandeira” Desde que começou a onda golpista, uma década já,
a questão do partido está colocada integralmente na or-
mente pequeno-burguês. A experiência histórica, porém, dem do dia.
nos mostra que o fascismo no poder substitui os fascistas
“sinceros” pelas mais burocráticas máquinas partidárias A esquerda pequeno-burguesa, cuja grande arte política
é ver tudo do ponto de vista eleitoral e parlamentar
e estatais de que se tem notícia, apoiadas na monstruosa
burocracia das forças armadas. Já os anarquistas acabam
apesar da sua escassa capacidade eleitoral, lançou a sua
tradicional política de mimetização diante da ofensiva
“Vandalismo”
a reboque dos partidos democráticos (I Guerra Mundial, da direita. Se “as manifestações” rejeitavam os parti-
Revolução Espanhola de 1936) ou se diluindo nos partidos
revolucionários (Revolução Russa de 1917), mas nunca
conseguem ter um verdadeiro papel independente que
dos, ela não viu outra alternativa a abaixar as bandeiras
e se disfarçar. Se “o povo” não queria partido, seriam
os partidos menos partidos possíveis. Esta camaleônica
S e houve um tema que se manteve constante em todas
as etapas da manifestação e que foi unânime, da es-
querda pequeno-burguesa à extrema-direita, passando
consiste na criação de uma terceira via entre a revolução falta de personalidade da esquerda pequeno-burguesa é pelo governo do PT, foi o do “vandalismo”, ou melhor,
e a contrarrevolução, entre a burguesia e o proletariado. uma característica inerente a este tipo de esquerda. Nis- da condenação do “vandalismo”.
No caso específico do Brasil, sequer se poderia pensar em so são uma caricatura da política burguesa que procura
tal coisa, que significaria impedir forças sociais poderosas manipular o eleitorado em função dos seus interesses O tema em si é muito pouco complexo e foi esclareci-
como os capitalistas e a classe operária de se organizar de classe, mas não sacrificar os seus interesses para se do até mesmo através do humor. Algumas mensagens da
politicamente para fazer valer os seus interesses. Somen- adaptar ao eleitorado. internet mostravam um quadro da Revolução Francesa,
te uma ditadura muito brutal, baseada, no entanto, em no dia histórico da derrubada da Bastilha e dizia, “derru-
um regime de partido único, cujas frações seriam partidos Este instinto para a mimetização, porém, impede a bar a Bastilha não! É vandalismo, bora fazer uma petição
dentro do partido, poderia conseguir realizar este feito e, esquerda pequeno-burguesa de ver o lado dinâmico da online!”. Uma outra mostrava, nos levantes do Leste Euro-
mesmo assim, de forma falaciosa. peu, a cabeça de uma estátua de Stá-
lin, enquanto um manifestante dizia
Fato significativo é que cerca de para o outro: “a estátua do Stálin é
85% da população votou na eleição patrimônio público”. É uma crítica
de 2014, e naturalmente votaram perfeita ao cinismo, à hipocrisia da
em algum partido, porque o regime burguesia, da polícia e dos governos
político brasileiro, antidemocrático, e à atitude beata da esquerda peque-
não permite candidaturas sem parti- no-burguesa que fala em revolução,
do. Se tais palavras de ordem fossem mas chora quando vê uma janela
realmente a política que domina o estilhaçada.
povo, como apresentavam, teríamos
praticamente uma revolução dos elei- Já Marx havia ensinado coi-
tores contra si mesmos. sa muito diferente quando assina-
la, durante a Revolução Alemã de
Há sempre, entretanto, alguma 1848, que os revolucionários não
razão mesmo na pior loucura e em deveriam conter as massas quando
política, que é uma manifestação es- estas se põem a destruir símbolos do
sencialmente prática do mundo real regime etc., mas estimulá-las.
e material, as fantasias não podem
ser colocadas em prática e se tornam, Um argumento particularmente
por este motivo, quando se tenta co- cretino – uma palavra que Marx usa-
locá-las em prática, em uma outra va saborosamente contra a esquerda
coisa, independentemente da vonta- pequeno-burguesa da sua época –
de de quem a formulou, compatível é o de que o suposto vandalismo é
com o mundo real. Nesse sentido, a obra de pequenas minorias, dando
fantasia e loucura políticas têm que a entender que seria apoiado e legí-
Reprodução

ser interpretadas para descobrir a timo se fosse de uma maioria. Nes-


qual realidade estas fantasias cor- A campanha golpista evoluiu e usou-se de elementos esquerdistas da pequena-burguesia contra o PT, notadamente na se caso, não seria melhor propor a
respondem no mundo real. campanha do “Não Vai Ter Copa” expansão do vandalismo ao invés de
condená-lo?
No mundo real, as coisas se passavam da seguinte situação de crise que levou a direita a um ataque frontal a
maneira. Os partidos burgueses tradicionais, várias vezes todos os partidos, e entregou o jogo, mostrando ao mesmo Deixando de lado os argumentos de tipo parlamentar,
reciclados, como se fossem papel velho, estavam comple- tempo que o ataque a todos os partidos é fundamental- o problema é simplesmente que o temor da burguesia ao
tamente esgotados e eram rejeitados, não pela manifes- mente um ataque aos partidos “vermelhos”. De um lado, a “vandalismo” é um disfarce do pavor de que as massas
tação e sim pelo eleitorado. Os partidos de direita eram burguesia colocou na mesa o debate do partido e mostrou, passem da manifestação “pacífica”, ou seja, inócua, à ação
os mais abalados, tanto que depois do golpe, boa parte para os mais esclarecidos, que a luta contra a organização violenta e revolucionária.
desses partidos como o PSDB, DEM e o MDB (PMDB na partidária é uma luta central para ela. Em segundo lugar,
época), tiveram que se fundir com outros ou se tornaram levou a questão do antipartidarismo da pura retórica de- A ação violenta, como somente poderia ser, partiu da
uma sombra do que já foram. Um dos aspectos centrais magógica para a prática mostrando que a conclusão lógica juventude, em particular de um setor proletário da juven-
de qualquer processo revolucionário em desenvolvimento do antipartidarismo é a ditadura e o golpe, esclarecendo tude, mais decidido e radical. É a expressão da evolução da
é o fato das massas ultrapassarem os partidos tradicionais assim ainda mais a questão. Em terceiro lugar mostrou luta geral para métodos mais eficazes, superando a política
OSSIÊ
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política
primeira quinzena de junho de 2023 15

puramente parlamentar da esquerda pequeno-burguesa. política de classe e revolucionária. Não compreendem isso com uma equivalência entre a direita tradicional e
que a luta de classes não é uma cruzada moral, mas que o reformismo do PT. Nós combatemos os movimentos
Em grande medida, o movimento foi vitorioso graças o programa e as bandeiras de agitação que se depreen- nacionalistas e frente-populistas sempre pela sua inca-
aos “vândalos” que reagiram como puderam à repressão dem dela servem justamente para agrupar militantes e pacidade de combater a direita, pelas suas alianças com
policial. O medo dos governos estava em que estas ações as massas em um sentido determinado. A bandeira da a direita, por colocar em prática a política da direita
se generalizassem com a ocupação de edifícios públicos e pseudo-luta contra a corrupção serve apenas para orga- quando esta não é capaz, cobrando deles as posições es-
um agravamento da crise política. Basta conferir quantas nizar a clientela política dos corruptos de direita contra querdistas, em grande parte demagógicas, com as quais
vezes os órgãos da imprensa do grande capital e da direi- a esquerda corrupta ou não. Usado no interior do movi- pretendem atrelar as massas. Dizer que Lula é igual
ta usaram as expressões “paz”, “manifestação pacífica”, mento operário e da juventude não passa de um elemento ou pior que Serra, como o PSOL e o PSTU diziam na
a qual foi considerada logicamente “linda”. de confusão. Este princípio elementar da luta política foi época, serviu apenas para desmoralizar quem dizia isso
provado nas manifestações. e a própria ideia de independência política em relação
O mesmo cenário havia se repetido na USP, onde o ao PT e à frente popular. Se a esquerda revolucionária
governo do estado queria usar de máxima violência po- A esquerda pequeno-burguesa moralista continuou não combater os ataques da direita contra as pequenas
licial contra os estudantes e colocar a universidade em acompanhando a agitação política da direita, mas, ao realizações da esquerda burguesa, como irá convencer
estado de sítio, mas a reação estudantil somente poderia contrário do que acreditava, não estava disputando com militantes e o movimento dos trabalhadores de que fará
ser absolutamente pacífica, ou seja, os estudantes teriam ela a propriedade da luta contra o PT, mas sendo absorvi- grandes reformas através da revolução?
que baixar a cabeça diante da repressão, o que não é da pela direita. Isso ficou demonstrado já na época com a
apenas contrarrevolucionário, mas indigno. Foi apenas a posição da esquerda diante do julgamento do “Mensalão”, A crítica à esquerda burguesa também não é, como
atitude dos “vândalos” que colocou em xeque a ditadu- onde sacrificaram a luta democrática para levar adiante assinalamos acima, uma cruzada, mas um instrumento
ra do PSDB. A esquerda pequeno-burguesa, do PSTU e a miragem da luta contra a corrupção. O julgamento do para ajudar as massas a superar as limitações da esquerda
do PSOL também aí condenou o “vandalismo” de uma “Mensalão” buscava enfraquecer o PT, criar uma pla- burguesa e para organizar um movimento independente.
minoria que segundo eles não teria sido aprovada pela taforma eleitoral para a direita, criar novas lideranças
maioria, que supostamente seriam eles. direitistas (Joaquim Barbosa) e tudo o que foi obtido foi

Embora seja um truísmo, para usar um anglicismo


isso. Para o movimento operário e para a esquerda ficou
o reforço da repressão dos julgamentos arbitrários. O
O desfecho
tão de acordo com a nossa época, é preciso dizer: não há mesmo se deu com a luta contra a PEC 37, que diminui
revolução sem violência. E mesmo que os revolucioná-
rios fossem mais exageradamente pacíficos do que são, a
burguesia nunca lhes permitiria o luxo de uma revolução
o poder do Ministério Público, supostamente, para repri-
mir a corrupção. Ao fazer eco desta outra campanha da
direita, a esquerda pequeno-burguesa reforçou o poder
O desenvolvimento das manifestações defrontou-se com
o problema crucial da falta de organização e da falta
de uma orientação política e até mesmo reivindicativa clara.
pacífica e os faria dançar conforme a música ou perecer. repressivo de um organismo não eleito pelo povo para
Somente preconceitos arraigados podem levar alguém a cometer ainda mais arbitrariedades. Nesse caso, a cam- Em outras oportunidades, tais movimentos que eram
pensar de forma diferente depois de tantas manifestações panha nada mais é que um fortalecimento da repressão mais coerentes e concentrados, mas não tão amplos, ser-
da própria burguesia. Nesse sentido, não faz sentido ignorar geral do Estado contra o povo. viram fundamentalmente como um estopim de uma nova
a presença da violência na sociedade e sim compreendê-la etapa de lutas e de desenvolvimento revolucionário da classe
e preparar-se conscientemente para ela. A luta contra a corrupção não é uma luta do movi- operária. Em 1977, meses de intensa agitação estudantil
mento operário, que não defende ideias abstratas que não que começaram em São Paulo e se tornaram nacionais
Nesse sentido, se a ação dos “vândalos” é desorgani- podem ser colocadas em prática na realidade, mas os seus deram lugar ao início do ascenso operário que liquidou
zada, deve ser organizada. próprios interesses materiais. A denúncia da corrupção, de fato com a ditadura, tendo como centro as greves do
que deve ser feita contra o regime burguês de conjunto e ABC. Em 1983, após três anos de recessão, para tomar os
Se a ação dos “vândalos” é sem objetividade, deve ser não apenas contra a esquerda do regime, esquecendo a exemplos que correspondem à atual etapa política, uma
fornecido um objetivo claro. direita, é um meio para mostrar a necessidade de intensifi- manifestação do movimento dos desempregados invadiu
car a luta pelos seus próprios interesses e não para exaltar a sede do governo estadual nos primeiros dias do gover-
Se a ação dos “vândalos” é minoritária, é preciso tor- o espírito moral da classe operária. E, finalmente, como no do PMDB de Franco Montoro e deu lugar a uma se-
ná-la geral. tudo o que não é real, a luta contra a corrupção é pura mana de quebra-quebras em São Paulo, para ceder lugar
demagogia eleitoral e é isso o que mais seduz a esquerda em seguida ao crescimento do movimento grevista, que
E não combatê-la. pequeno-burguesa, que não resiste à tentação de tomar realizou duas importantes greves gerais, depois à campa-
carona na campanha eleitoral da direita contra a poderosa nha das diretas e, enfim, ao amplo movimento grevista
máquina eleitoral do PT. revolucionário de 1985-89. A campanha do Fora Collor,
A frente popular balança Outro mito que deve ser completamente desfeito é
também começada pela juventude estudantil, a partir da
campanha política da burguesia na imprensa capitalista,
o de que a luta da classe operária é contra o governo. levou à queda de Collor, à manobra da posse de Itamar e

E mbora as manifestações não fossem fundamental-


mente dirigidas contra o governo federal como quer
a máquina de desinformação que é a
Já a formulação é essencialmente eleitoral e encobre o
problema de classe. A classe operária luta contra a bur-
a toda a crise que foi fechada com o Plano Real e a eleição
de FHC dois anos depois.

imprensa capitalista, não há dúvida Nesse caso, as manifestações que


de que todo o regime político bur- começaram contra o aumento da
guês foi sacudido e também a frente passagem e escalaram rapidamen-
popular no governo. É importante te como reação à repressão estatal
assinalar o fato de que o principal do governo do PSDB foram infiltra-
aliado do PT, o governo do Rio de das pela direita. Logo após o triunfo
Janeiro, foi tão duramente atingido do movimento sobre o governo do
quanto os governos do PSDB de São PSDB, fazendo-o abaixar o preço
Paulo e Minas Gerais. das passagens, uma extrema direita
embrionária, a campanha manipu-
Mesmo assim, as manobras gol- ladora da imprensa e a covardia da
pistas da direita não conseguiram esquerda fizeram das manifestações
garantir a derrota do PT nas elei- o início de mais uma campanha que
ções. se somou à do “Mensalão” e der-
rubou, em 2016, o governo Dilma
Diante desse quadro, qual deve- recém-reeleito em 2014.
ria ser a política da classe operária?
Parte da esquerda acreditava que Essa campanha golpista evoluiu,
pelas sucessivas vitórias da esquer- e por um lado usou-se de elementos
da, crença desmentida de maneira esquerdistas da pequena-burguesia
contundente pelos acontecimentos, contra o PT, notadamente na campa-
não havia mais direita no país, que nha do “Não Vai Ter Copa” liderada
o PT havia agrupado toda a bur- por Guilherme Boulos, e engendrou
guesia detrás de si, que os partidos grupos de direita como o MBL. Em
de oposição eram um tigre de papel março de 2014, começou a operação
Reprodução

etc. Alguns foram inclusive ao extre- Lava Jato.


mo de dizer que, se houvesse algum As pessoas viram na repressão, um motivo para protestar contra os partidos, contra a PEC 37, contra a liberação do aborto e a favor
golpe no Brasil, ele partiria do PT. da ditadura militar e pelo esmagamento do comunismo? Claro que basta formular o problema para ver que ele não faz sentido algum Mesmo a burguesia sendo exitosa
Vimos a mesma posição em relação na campanha golpista, é importan-
a todos os governos nacionalistas latino-americanos, o guesia, contra o regime político burguês em seu conjunto te evitar a confusão de interpretar junho de 2013 como
PSTU nos esclareceu que não havia golpe e nem mesmo e contra os governos burgueses. O antigovernismo pe- uma orquestração golpista desde o princípio. A crise in-
“dinâmica golpista”. queno-burguês serve apenas para se alinhar ao partido terna da burguesia foi certamente, como fato histórico, o
de oposição burguesa mais forte do momento. A classe maior estímulo para a explosão inicial das mobilizações
Um dos argumentos mais extraordinários apresen- operária e seu partido devem lutar, ao mesmo tempo, populares. A crise dos partidos, que acabaram por se de-
tados por esta esquerda pequeno-burguesa era o de que contra a direita e a esquerda da burguesia, mas não de- compor durante os anos conseguintes com a campanha
“não podíamos deixar a luta contra o PT para a direita vem confundir os dois. Maduro não é igual a Guaidó e do golpe, e a repressão aos manifestantes, fizeram com
e, em particular, não podemos deixar a bandeira de luta Lula não é igual a Alckmin e FHC. Hoje essa colocação que em junho de 2013 os estudantes e os trabalhadores
contra a corrupção para a direita”. Todos estes argumen- pode parecer óbvia, mas na época, pelo fato do PT ter impusessem uma importante derrota ao principal partido
tos apenas provam que estamos diante de uma esquerda governado 14 anos seguidos graças a uma tolerância da burguesia imperialista no Brasil, no mais importante
que não conhecia, e ainda não conhece, o abc da luta da burguesia, a esquerda pequeno-burguesa confundia estado da Federação.
16 primeira quinzena de junho de 2023 OSSIÊ
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política

C ENSURA

Da luta por direitos civis ao


Como uma teoria confusa criada em universidades norte-americanas foi apropriada truth becomes a crime in the West, Donbass Insider, 21/06/2022).
pelo imperialismo e transformada no "complexo industrial da censura" A sanha por silenciar dissidentes resvalou até mes-
mo em Roger Waters, antigo líder da influente banda
britânica Pink Floyd, que teve seus shows cancelados na
Alemanha por vestir-se como um comandante nazista
em determinado momento do espetáculo. Waters realiza
Fábio Picchi a paródia em suas apresentações musicais há décadas,
mas a questão finalmente tornou-se um problema não
apenas pela posição crítica do músico em relação ao
conflito no leste europeu ou por sua defesa histórica do
povo palestino contra o Estado de Israel, mas pelo clima

G
lenn Greenwald, jornalista norte-americano famoso O rótulo foi inclusive aplicado a cidadãos dos próprios de censura imposto pela burguesia imperialista mundial
por expor as revelações do ex-técnico da Agência países que censuraram a imprensa russa, como foi bem ilus- (Roger Waters Frankfurt Concert Canceled After City Council Calls
de Segurança Nacional (NSA, em inglês) Edward trado no caso do ex-parlamentar britânico George Galloway, Him One of World’s ‘Most Well-Known Antisemites’, Billboard,
Snowden ao mundo, já há muitos anos não trabalha com que em seu perfil no Twitter aparecia como "mídia associa- 28/02/2023).
o jornal britânico The Guardian, que há uma década publi- da ao Estado russo" (George Galloway threatens to sue Twitter for
cava suas matérias sobre o caso. Também está fora do The flagging account as Kremlin-linked, The Guardian, 30/06/2022). A guerra deixou claro que apesar do controle exerci-
Intercept, portal de notícias que ajudou a fundar, do qual se do sobre os principais órgãos de comunicação do mun-
afastou em 2020, quando acusou os editores de tentarem A guerra também levou outro importante jornalista do, a desaprovação em relação às políticas da burguesia
censurar seu trabalho. Atualmente, o jornalista vai ao ar norte-americano, Seymour Hersh, que denunciou o mas- imperialista levaram a um descrédito inédito em seus
diariamente às 19h na plataforma Rumble, alternativa me- sacre de My Lai na Guerra do Vietnã, a publicar sua de- porta-vozes, deixando apenas a censura de dissidentes
nos popular ao YouTube, enquanto seu trabalho escrito é núncia sobre a explosão dos gasodutos russo-germânicos como alternativa. Como qualquer método repressivo,
publicado na Locals. Nord Stream no Substack. Segundo Hersh, o atentado quando seu uso mostra-se insuficiente, a solução é sem-
teria sido organizado pelo governo dos Estados Unidos pre aprofundar ainda mais a repressão, como podemos
Em toda abertura de seu programa diário, chamado e executado pela CIA com apoio norueguês. Os grandes ver se compararmos o atual cenário com a última onda
System Update ("Atualização do Sistema", numa tradução jornais norte-americanos não apenas não estavam dispostos de censura durante a pandemia da covid-19.
livre), Greenwald destaca que seu trabalho é transmitido
exclusivamente no Rumble, "a alternativa pró-liberdade
de expressão ao YouTube". A afirmação, porém, não é
mera propaganda, ainda que Greenwald tenha uma par-
ceria pública com o Rumble desde janeiro deste ano (Our
Migration to Rumble and Locals, Substack, 16/01/2023).

Especialmente desde a pandemia da covid-19, quan-


do críticas às políticas de saúde pública adotadas durante
o período passaram a ser reguladas pelas redes sociais,
Greenwald tem muitos motivos para suspeitar que seu
trabalho, frequentemente crítico das autoridades, sofreria
intervenção no YouTube, razão de sua saída do The Intercept.
Apenas entre abril e junho de 2020, mais de 11,4 milhões
de vídeos foram removidos da plataforma subsidiária do
Google (YouTube took down more videos than ever last quarter as it
relied more on non-human moderators, The Verge, 25/08/2020).

Se um jornalista vencedor do celebrado prêmio Pu-


litzer por sua cobertura do caso Snowden tem receio de
que seu trabalho possa ser censurado, o que dizer de um
pequeno jornalista independente? Ou de um cidadão
qualquer que queira publicar sua opinião ou seus posi-
cionamentos políticos?

Censura global
Reprodução

N uma época em que a censura acontece em larga es-


cala, de forma global, e tornou-se algo praticamente
corriqueiro, a liberdade de expressão passou a ser uma
Glenn Greenwald em seu programa, System Update. Na tela: “Brasil mira Twitter, FaceBook, Rumble”
a publicar a grave denúncia de Hersh, como demoraram A política de isolamento social em escala nacional, im-
mercadoria como outra qualquer, ainda que cada vez mais mais de um mês para repercutir uma notícia que, se con- posta pela maioria dos países do mundo em algum momento
escassa, vendida por empresas como o Rumble. Um caso firmada verdadeira, como as evidências dão a entender, da crise sanitária, foi muito criticada por especialistas como
similar é o do Substack, onde Greenwald publicou maté- deveria causar um escândalo internacional (Studied silence o professor da Universidade de Stanford, Jayanta Bhatta-
rias escritas no período entre sua saída do The Intercept e o on Nord Stream report belies freedom of the press in the West: China charya. Especializado em saúde pública, Bhattacharya foi
início de sua parceria com o Rumble. Daily editorial, China Daily, 20/03/2023). um dos signatários da polêmica Declaração de Great Bar-
rington, que sugeria o isolamento apenas da população de
Mas até mesmo essa liberdade limitada oferecida por Foi durante a guerra também que o Rumble caiu nas risco, a fim de minimizar os danos sociais e econômicos aos
algumas plataformas privadas pode estar sob o risco de graças de Greenwald ao recusar-se a excluir o perfil da emis- demais setores da sociedade (A Declaração De Great Barrington,
tornar-se ilegal por projetos de lei como o PL das Fake sora russa Russia Today da plataforma, numa disputa com as portal Great Barrington Declaration, 10/2020).
News aqui no Brasil, do qual tratamos em detalhe em autoridades francesas. Por seu posicionamento, a platafor-
nossa 12.ª edição, e outras iniciativas similares ao redor ma foi forçada a cancelar suas operações no país europeu. Críticos às novas vacinas baseadas na tecnologia de
do mundo como a Lei dos Serviços Digitais, já aprovada RNA mensageiro, fabricadas pelos monopólios farmacêuti-
pelo parlamento da União Europeia. A censura oriunda do conflito entre Rússia e OTAN cos Pfizer e Moderna, e até mesmo críticos do uso universal
em países ditos democráticos recaiu ainda sobre jornalistas de máscaras como uma medida eficaz de saúde pública
Com o início da operação militar russa na Ucrânia, como a alemã Alina Lipp, que chegou a ter suas contas foram silenciados e perseguidos como "negacionistas da
provocada sobretudo pelo avanço cada vez mais audacioso bancárias na Alemanha bloqueadas por cobrir o conflito ciência", tática utilizada em menor escala para suprimir
da OTAN em direção a Moscou, o debate político sobre no Donbass antes mesmo da intervenção russa; e Anne- críticos da tese do aquecimento global. Mais do que isso,
o tema foi reprimido e praticamente todos os portais de -Laure Bonnel, jornalista francesa que filmou um docu- a mera interlocução com tais críticos, muitos deles cientis-
comunicação russos foram proibidos nos países imperia- mentário sobre a situação no leste ucraniano e que não tas da área de saúde pública e infectologia, tornou-se um
listas, assim como em seus vassalos. O pretexto seria de apenas teve suas contas bancárias bloqueadas, como não crime. O entrevistador norte-americano Joe Rogan, que
que esses canais seriam reprodutores da "desinformação teve seu contrato com a Universidade de Sorbonne reno- conduz o podcast de maior audiência no mundo, teve um
russa" sobre o conflito. vado (Julian Assange, Alina Lipp, and Anne-Laure Bonnel–When de seus programas retirados do YouTube por entrevistar
política
OSSIÊ
CAUSA OPERÁRIA
primeira quinzena de junho de 2023 17

combate à liberdade de expressão


Robert Malone, um médico que contribuiu com a pesqui- da esquerda, em parte por verem seus adversários políticos, agressões imperialistas contra a Rússia e na perseguição a
sa sobre vacinas baseadas em mRNA nos estágios iniciais como Bolsonaro e Trump, serem perseguidos, em parte por políticos de extrema-direita, mas é nas pautas identitárias
da tecnologia (YouTube takes down antivaxx Joe Rogan interview uma ideologia pré-estabelecida que examinaremos a seguir. que ela ocorre de forma mais aguda. Essa última é im-
with Dr Robert Malone which likened vaccines to mass psychosis, O resultado político é visivelmente reacionário: a restrição portante porque, apesar de não ser nada mais que mera
The Independent, 04/01/2022). Malone, naturalmente, ti- à expressão do livre pensamento. E como podemos ver nos demagogia por parte do imperialismo, trata-se de uma
nha uma visão destoante do "consenso científico" sobre a exemplos de Greenwald, Galloway, Lipp, Bonnel e Waters, importante ferramenta na ocultação da crescente repres-
política de vacinação praticamente universal conduzida além do notório caso de Julian Assange, ilude-se a esquerda são intelectual e perseguição política que ocorre em escala
com um fármaco ainda considerado experimental. que acredita que tal política não se voltará contra ela própria. global. A "restrição das liberdades para o bem comum",
nas palavras de O'Reilly, dá feições dóceis a uma política
O caso que talvez ilustre com maior clareza como essa profundamente nefasta e reacionária.
Esquerda autoritária ideologia autoritária tomou conta de setores ditos progressis-
tas envolve recente debate no senado irlandês sobre a Lei de Para encontrarmos as origens desse fenômeno, porém,
Justiça Criminal (Incitação à Violência ou ao Ódio e Ofensas é preciso voltar na linha do tempo do final dos anos 2010

O s casos da pandemia e da guerra na Ucrânia ganharam


notoriedade por sua escala e abrangência, mas também
podemos remontar os métodos e argumentos de censura ao
de Ódio) de 2022. O texto da legislação demarca que um
indivíduo pode ser preso por "preparar ou possuir" qualquer
material que "seja suscetível de incitar violência ou ódio contra
para meados dos anos 1960, quando os Estados Unidos
entravam em ebulição com o movimento dos direitos civis
dos negros, capitaneados por figuras como Malcolm X e
período anterior. Em janeiro de 2021, Donald Trump, ainda uma pessoa ou um grupo de pessoas devido às suas caracte- Martin Luther King Jr.
na qualidade de presidente dos Estados Unidos, foi banido das rísticas protegidas ou a qualquer uma dessas características
redes sociais numa violação grotesca de seu direito de fala, e com vistas que o material seja comunicado ao público ou a Ao mesmo tempo, em que a população negra norte-a-
do direito de sua audiência de quase 89 milhões de pessoas, um setor do público, seja por si próprio ou por outra pessoa". mericana lutava por seus direitos e, certamente, estimula-
para citar seu número de seguidores apenas no Twitter. Em outras palavras, a mera posse de um livro que expresse do por esse movimento, surgia em 1964 na Universidade
uma posição crítica sobre as teorias modernas sobre gênero de Berkeley, na Califórnia, o Movimento pela Liberdade
A perseguição foi tamanha que a plataforma alterna- e transsexualidade pode incorrer na prisão de um irlandês, de Expressão, liderado pelo estudante Mario Savio (Vi-
tiva ao Twitter para a qual Trump migrou, o Parler, teve a depender do juiz (Irish citizens could soon be jailed for 'possessing sual History: Free Speech Movement, 1964, portal Free Speech
seus serviços retirados do ar devido à posição dos grandes material likely to incite violence or hatred', Fox News, 03/05/2023). Movement 50 da Universidade de Berkeley, consultado em
monopólios de computação. A Amazon, que hospedava 28/06/2023). O movimento surgia contra os anos tenebro-
o serviço, recusou-se a manter a plataforma em sua in- Mais assustador que o conteúdo da legislação foi sua sos do Macarthismo das décadas anteriores – que buscou
perseguir e desmantelar as organizações de esquerda nos
Estados Unidos –, em defesa do direito dos estudantes de
manifestar seus posicionamentos políticos. Com o suces-
so em Berkeley, rapidamente disseminou-se pelas demais
universidades norte-americanas.

A ampla mobilização somada à crise no cenário inter-


nacional, com o início da intervenção norte-americana
no Vietnã, forçaram concessões por parte das autorida-
des. Em 1964, o presidente Lyndon B. Johnson assinou
a Lei dos Direitos Civis, que proibia a discriminação
com base em raça, religião, sexo ou nacionalidade, que
ampliava as garantias estabelecidas na Lei dos Direitos
Civis de 1957 e sedimentava a decisão da Suprema Corte
no caso Brown vs. Board of Education, de 1954, quando
foi considerada inconstitucional a segregação racial em
escolas que ainda existia em boa parte dos estados do sul
dos Estados Unidos.

Naquele momento político, a esquerda norte-ame-


ricana e os movimentos populares prezavam acima de
tudo pelas proteções garantidas pela Constituição nor-
te-americana, em especial da Primeira Emenda, para
denunciar que qualquer repressão às mobilizações era
completamente ilegal e inconstitucional. Essa consciên-
cia é visível nas palavras de King em discurso realizado
um dia antes de seu assassinato, em 3 de abril de 1968,
quando declarou que a marcha planejada para o dia 8
Reprodução

era assegurada pela Primeira Emenda, apesar da tenta-


Movimento pela Liberdade de Expressão (faixa) na Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos EUA tiva de proibi-la:

fraestrutura de computação em nuvem. Simultaneamen- defesa apresentada pela senadora Pauline O'Reily, do Par- "Temos uma liminar e iremos ao tribunal amanhã de
te, Google e Apple retiraram o aplicativo da rede social tido Verde Irlandês, que disse ao plenário: manhã para lutar contra essa liminar ilegal e inconstitu-
alternativa de suas app stores, dificultando ainda mais seu cional. Tudo o que dizemos à América é para ser fiel ao
acesso (Depois do Google, Apple e Amazon também suspendem "Quando alguém pensa sobre o assunto, toda lei e toda que disse no papel. Se eu morasse na China ou mesmo
aplicativo Parler, portal G1, 10/01/2021). legislação trata da restrição da liberdade. Isso é exatamente na Rússia, ou em qualquer país totalitário, talvez pudesse
o que estamos fazendo aqui", argumentou O'Reilly. "Es- entender algumas dessas injunções ilegais. Talvez eu pu-
Foi ainda atribuída a Trump a responsabilidade pela in- tamos restringindo a liberdade, mas estamos fazendo isso desse entender a negação de certos privilégios básicos da
vasão do Congresso norte-americano, logo após seu discurso pelo bem comum." Primeira Emenda, porque eles não se comprometeram
em Washington no dia 6 de janeiro, quando seus apoiadores com isso lá. Mas em algum lugar eu li sobre a liberdade
buscaram obstruir a cerimônia que formalizava a vitória Mostrando consciência de que o intuito do projeto é de reunião. Em algum lugar eu li sobre a liberdade de
eleitoral do atual presidente Joe Biden. Apesar de Trump efetivamente restringir a liberdade intelectual dos irlande- expressão. Em algum lugar eu li sobre a liberdade de im-
ter explicitamente clamado por uma manifestação "patrió- ses, a senadora continuou: "se as opiniões de uma pessoa prensa. Eu li em algum lugar que a grandeza da América
tica e pacífica", inúmeros processos buscam responsabili- sobre a identidade de outras pessoas tornam suas vidas é o direito de protestar pelo direito. E assim como eu digo
zá-lo pela invasão e somam-se aos crescentes esforços para inseguras e causam um desconforto tão profundo que elas que não vamos deixar nenhum cachorro ou mangueira de
torná-lo inelegível antes das eleições de 2024 (Trump can face não podem viver em paz, nosso trabalho como legisladores água nos fazer dar meia volta, não vamos deixar nenhuma
civil lawsuits over the Jan. 6 riot, DOJ says, CNBC, 02/03/2023). é restringir essas liberdades para o bem comum". liminar nos fazer dar meia volta" (Martin Luther King's Last
Speech Discussed Our First Amendment, portal da Foundation for
Qualquer semelhança com a decisão pela inelegibi- Individual Rights and Expression, 21/01/2013).
lidade de Jair Bolsonaro por parte do Tribunal Superior
Eleitoral por supostos "ataques à democracia", firmada
No início, a liberdade O movimento oriundo da luta por direitos civis e li-
quando fechamos esta edição, não é coincidência. berdade de expressão culminaria com enormes manifes-

Essa sanha autoritária tomou conta inclusive de setores O apoio de parte da esquerda à supressão da liberdade
de expressão ocorreu na questão da pandemia, nas
tações contra a guerra do Vietnã. Influenciaria figuras
como Daniel Ellsberg, analista militar à época trabalhando
18 primeira quinzena de junho de 2023 OSSIÊ
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política

para o think tank RAND Corporation, a revelar as mentiras


que o governo norte-americano contava sobre a guerra
fosse em benefício dos brancos.
Captura
à população com o vazamento dos Pentagon Papers. A Bell foi um autor prolífico e suas ideias influencia-
crise política do então governo Nixon e, acima disso, as ram muitos estudantes de direito nas décadas de 1970
enormes mobilizações populares, dificultaram o uso da
Lei de Espionagem ou tentativas de desmerecer Ellsberg
pessoalmente. O ativista continuou em liberdade e suas
e 1980. Para o ativista, as conquistas legais dos negros
não se mostravam suficientes pelo próprio caso em que
atuou. Quando a segregação racial foi proibida nas es-
S eus discípulos lhe elegeram fundador da Teoria Crítica
da Raça (TCR), doutrina do direito que ganhou tra-
ção nos anos 1990 e que hoje transformou-se num dogma
revelações cumpriram papel importante na saída dos Es- colas, famílias brancas mudaram seus filhos de escola, inquestionável, em particular nas universidades norte-a-
tados Unidos do Vietnã. Ellsberg faleceu em junho deste perpetuando, de certa forma, a segregação. Em sua mericanas. A TCR é importante para a compreensão do
ano com 93 anos e defendeu até o final de sua vida a li- carreira acadêmica, Bell passou por Harvard, onde foi avanço da censura no geral, particularmente em círculos
berdade de Julian Assange, Edward Snowden (exilado na o primeiro professor negro, e em sua passagem por di- de esquerda, porque a interpretação de Bell de que a so-
Rússia) e outros denunciantes dos crimes do imperialismo versas universidades atuou em defesa da admissão de ciedade norte-americana seria inerentemente racista le-
norte-americano que não tiveram vou à conclusão de que a própria
sua sorte. Primeira Emenda teria um caráter
opressor.
Ainda nessa época, numa vi-
tória para a liberdade de expres- "Argumentamos que o discur-
são, a Suprema Corte estabeleceu so e a igualdade, a liberdade de
um importante precedente para o expressão e o apelo à comunida-
texto relativamente vago da Pri- de se pressupõem e se ameaçam
meira Emenda no caso Branden- mutuamente. A fala, pelo menos
burg vs. Ohio. Em 1969, os juris- no grande sentido dialógico, pres-
tas norte-americanos defenderam supõe uma igualdade aproxima-
o direito de Clarence Branden- da entre os falantes, enquanto a
burg, líder do movimento racista igualdade depende do ativismo e da
Ku Klux Klan (KKK) no estado ação de massa, ambos impensáveis
de Ohio, de expressar seus pensa- sem a fala. Insultos e injúrias de
mentos, por mais reprováveis que uma maioria poderosa, entretanto,
fossem. Brandenburg foi filmado podem oprimir uma minoria. Da
em mobilização da KKK com mesma forma, a imposição dos va-
seus colegas encapuzados empu- lores e crenças de uma comunidade
nhando cruzes em chamas defen- dominante pode sufocar a fala e o
dendo seu direito de se vingar dos pensamento.
negros, judeus e seus apoiado-
Daniel McPartlan

res, alegando que "o presidente, "Os esforços para equilibrar


o Congresso, a Suprema Corte, esses valores concorrentes falham
continuam a oprimir os brancos, Manifestante em Berkeley, 4 de março de 2017 porque eles ignoram a maneira
a raça caucasiana". como os dois são aspectos inextri-
cavelmente interdependentes de
Ironicamente, Brandenburg foi condenado por advo- minorias, em mais de uma ocasião com protestos ampla- uma estrutura mais básica – a comunidade interpretati-
gar pela violência para atingir objetivos políticos, crime mente apoiados por seus alunos. Bell visava fazer valer va. Os juízes solicitados a encontrar um equilíbrio entre
segundo o estatuto de Ohio, que trata do sindicalismo o fim da discriminação por meio de ações afirmativas, a liberdade de expressão e a proteção das minorias estão,
criminoso, categoria jurídica criada para perseguir o mo- ou seja, do incentivo a participação de minorias nas na verdade, decidindo os contornos de uma nova comu-
vimento operário em 1919. universidades, como alunos e professores, e em outras nidade interpretativa. Eles devem decidir quais pontos de
esferas antes inacessíveis a elas, da mesma forma como vista contam, qual discurso deve ser levado a sério, cuja
Em decisão per curiam, a maioria da Corte considerou as políticas de cotas para admissão em instituições pú- humanidade deve ser totalmente respeitada. Eles podem
o estatuto inconstitucional: blicas funcionam no Brasil. fazê-lo de forma justa e aberta, dado que a maioria deles
vem da comunidade de fala dominante? Temos nossas
"[...] as garantias constitucionais da liberdade de ex- "A melhoria mensurável no status de alguns negros dúvidas" (Hateful Speech, Loving Communities: Why Our No-
pressão e da liberdade de imprensa não permitem que e as previsões de mais progresso não alteraram substan- tion of a Just Balance Changes so Slowly Symposium: Critical
um Estado proíba ou proscreva a defesa do uso da força cialmente a máxima: o interesse próprio dos brancos Race Theory: Essays on Hate Speech, Richard Delgado, Jean
ou da violação da lei, exceto quando tal defesa for dire- prevalecerá sobre os direitos dos negros. Este princípio Stefancic, 1994).
cionada para incitar ou produzir ação ilegal iminente e é não declarado, mas firmemente seguido, caracterizou as
suscetível de incitar ou produzir tal ação" (Brandenburg v. decisões políticas raciais nesta sociedade por três séculos. Como colocam Richard Delgado e Jean Stefancic,
Ohio, 395 U.S. 444 (1969), portal Justia U.S. Supreme Court As políticas raciais ainda se baseiam no senso – não me- partidários da TCR e estudiosos de Bell, apesar da su-
Center, consultado em 28/06/2023). nos arraigado quando inconsciente – de que os Estados posta tensão entre a liberdade de expressão e a igualdade,
Unidos são uma nação branca e que o domínio bran- juízes formados numa sociedade racista não teriam como
A decisão contou até mesmo com o apoio do único juiz co sobre os negros é natural, correto e necessário, bem proteger os direitos de minorias oprimidas. Segundo essa
negro da corte, Thurgood Marshall, que como advogado como lucrativo e satisfatório. Essa crença generalizada, a tese, a liberdade de expressão, apesar de necessária para
havia lutado pelos direitos civis, liderando o Fundo Edu- própria essência do racismo, continua sendo um recurso a igualdade, atuaria contra a última por reforçar a posi-
cacional e de Defesa Legal da Associação Nacional para o nacional viável e valioso. O compromisso com a domi- ção da maioria dominante. Concluem, portanto, que se-
Progresso de Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês) nação branca não é menos potente porque geralmente ria necessário uma "ação afirmativa" também no caso da
(Black history: Thurgood Marshall and the First Amendment, The não é reconhecido, frequentemente não é intencional e liberdade de expressão, codificando em lei o que grupos
University Star, 10/02/2018). praticamente nunca é reconhecido. minoritários consideram ofensivo de modo a servir de guia
para juízes inerentemente enviesados.
Há, sugiro, evidências no passado e indicações no
Teoria Crítica da Raça presente de que o impulso dos brancos para satisfazer e
justificar sentimentos de superioridade racial resultará em
De fato não há juízes imparciais, alheios às forças da
sociedade, mas propor que qualquer restrição à liberda-
políticas públicas e privadas que têm o efeito de manter o de de expressão lhes faria atuar contra sua parcialidade é

D esse movimento de características revolucionárias, em


defesa das liberdades democráticas e contra a ditadura
imperialista dentro e fora dos Estados Unidos, surgiu uma
domínio sobre os não-brancos por muitas gerações para
vir" (Racial Remediation: An Historical Perspective on Current
Conditions, Derrick Bell, 1976).
uma proposta ainda mais confusa que apenas faz abrir um
precedente para restrições sobre a fala. Apesar da roupa-
gem materialista, tudo não passa de uma teoria idealista
dissidência aparentemente à esquerda na figura do ativista que pretende que a lei possa educar a maioria suposta-
negro Derrick Bell. Assim como Thurgood Marshall, Bell Para Bell, o racismo enraizado na sociedade norte-a- mente opressora.
havia atuado como advogado em defesa dos direitos civis mericana era inerente. A abolição da escravidão teria sido
dos negros norte-americanos, em especial na luta contra conquistada apenas para favorecer os capitalistas brancos Apesar de suas claras contradições, as ideias propostas
o fim da segregação nas escolas. do norte com excesso de mão-de-obra e, subsequentemen- pelos defensores da TCR ganharam notoriedade, especial-
te, as conquistas dos anos 1960 vieram apenas para que mente na regulação do discurso em campi universitários.
Ao contrário de Marshall, porém, Bell abdicou de os Estados Unidos "convencessem as nações emergentes O objetivo era transformar o ambiente frequentado pela
seu cargo no Departamento de Justiça norte-americano do terceiro mundo a optar por formas de governo demo- burguesia ou pela mais alta camada da pequena-burgue-
nos anos 1950, para continuar como militante na NAA- cráticas no lugar de comunistas" (idem). sia norte-americana em locais acolhedores para negros e
CP. No início dos anos 1970, porém, com o refluxo das mulheres, que mesmo nos anos 1990 tinham participação
mobilizações anteriores, Bell desenvolveu uma tese sobre Se por um lado as ideias de Bell advogam por uma limitada nas universidades.
porque, apesar das decisões positivas da Suprema Corte mobilização permanente contra os poderosos, sua dico-
em defesa dos direitos dos negros e da aprovação da Lei tomia entre negros e brancos com requintes pseudo-ma- As ideias começaram a sair dos círculos universitários
dos Direitos Civis de 1964, a população negra ainda não terialistas e sua tese de que a sociedade norte-americana e ganharam maior abrangência com os governos do presi-
havia sido elevada de suas péssimas condições sociais. e, consequentemente, suas leis eram inerentemente racis- dente democrata Bill Clinton. Clinton tentou indicar Carol
Segundo sua tese, formulada no livro "Race, Racism tas deram origem a uma doutrina esquerdista extrema- Lani Guinier para o cargo de advogada geral assistente
and American Law", elaborado em 1973, avanços para mente confusa. Sua própria avaliação do caso Brown vs. para Direitos Civis, cargo de relevo no Departamento de
minorias, como a população negra norte-americana, Board of Education mostra uma incompreensão sobre a Justiça. Dois meses depois, sob pressão da oposição repu-
só ocorreriam quando houvesse uma "convergência de dialética de mudanças realizadas na superestrutura do blicana, Clinton retirou a nomeação.
interesses" com os grupos majoritários da sociedade, no Estado, que podem levar a uma mudança material na
caso dos Estados Unidos, a população branca. Em suma, condição do negro na sociedade e efetivamente alterar Isso não impediu seu governo de continuar fazendo
qualquer vitória da população negra só aconteceria se a visão racista prevalente na sociedade. demagogia com a pequena-burguesia universitária com a
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política
primeira quinzena de junho de 2023 19

Lei de Controle de Crimes Violentos e Aplicação da Lei de was harsh against leakers, AP News, 11/09/2018). O fenômeno é tão prevalente que se transformou numa
1994, que introduziu na legislação norte-americana uma política da Organização das Nações Unidas (ONU). "Abor-
série de "crimes de ódio", incluindo como agravantes cri- Os eventos que fizeram confluir a ideologia da esquer- dar o discurso de ódio não significa limitar ou proibir a
mes cometidos com base na raça, religião, nacionalidade, da universitária norte-americana com o maior aparato de liberdade de expressão. Significa impedir que o discurso
etnia ou gênero da vítima. Em discurso realizado em 1995, vigilância e perseguição política já criado, porém, ainda de ódio se transforme em algo mais perigoso, particular-
Clinton declarou que a ação afirmativa era positiva para estavam por vir. mente a incitação à discriminação, hostilidade e violência,
os Estados Unidos (Clinton Declares Affirmative Action Is ‘Good o que é proibido pelo direito internacional", declarou o
for America’, Los Angeles Times, 20/07/1995). "Dois desafios sísmicos à ordem liberal do pós-guerra, secretário-geral da ONU para os Direitos Humanos, An-
ambos ocorridos em 2016: o Brexit em junho e a eleição tónio Guterres (Hate speech versus freedom of speech, portal da
Ao mesmo tempo, variações da TCR foram estimula- de Donald Trump como presidente em novembro. Os dois ONU, 05/2019).
das, em particular as teses de Kimberlé Crenshaw sobre eventos chocaram e assustaram os líderes de segurança
interseccionalidade, a ideia de que um indivíduo não pode nacional de ambos os lados do Atlântico. Muitos disseram
ser reduzido à sua raça, mas que deve ser considerado
sob diversos aspectos como raça, gênero e sexualidade.
abertamente que a ameaça política à OTAN e à Aliança
Ocidental era maior do que qualquer ameaça à segurança,
"Convergência de interesses"
As divagações chegaram ao ponto que Richard Delgado conclusão dramaticamente reforçada pela eleição de Trump
criticou seus novos colegas:

"Poderia ser a atração da publicação fácil, para não


em 2016, que repetidamente criticou a OTAN e insinuou a
retirada dos Estados Unidos dela" (The Censorship Industrial
Complex, Michael Shellenberger, 09/03/2023).
A bsorvida pela burguesia imperialista, a Teoria Crítica da
Raça incluiu em seu infindável leque de minorias, que
há muito tempo ultrapassava as questões raciais que lhe dão
mencionar a de participar de uma conferência anual onde o nome, burocratas a serviço do Estado e dos grandes capi-
se pode encontrar os amigos e relaxar no esplendor de A saída do Reino Unido da União Europeia e a vitória talistas. No Brasil, tornaram-se vítimas do discurso de ódio
um spa, que explica a proliferação do discurso acadêmico de Trump nos Estados Unidos mostraram que um setor os "ilustres" ministros do Supremo Tribunal Federal; a urna
durante o período em questão? E, do ponto de vista do menos poderoso da burguesia, que atua primariamente eletrônica brasileira, que sequer é um ser humano para ter
reitor, não é mais seguro financiar estudos que examinam no mercado interno dos países imperialistas, se desgarrou seus direitos protegidos; e a "democracia", um conceito in-
tropos literários do que aqueles que têm o descaramento do setor mais poderoso e usou seus recursos para atuar de tangível, mas cuja forma política não pode mais ser discutida.
de propor que o momento de maior orgulho da Améri- forma razoavelmente autônoma nas cada vez mais popu-
ca – Brown v. Board of Education – surgiu porque os lares redes sociais. Essa dissidência, porém, era intolerável O mesmo pôde ser observado, em escala mundial, du-
brancos decidiram fazer um favor a si mesmos?" (Realism, para o regime imperialista mundial em crise. rante a pandemia da covid-19. Um grupo seleto de buro-
idealism, and the deradicalization of Critical Race Theory – Re- cratas da área da saúde foi protegido de toda e qualquer
thinking The CRT Debate, Part 2, MROnline, 10/09/2021) Shellenberger, um dos jornalistas a ter acesso aos Twit- crítica sob o pretexto de que seus oponentes desafiavam a
ter Files, ou Arquivos do Twitter, pôde ver em primeira "ciência" e que as críticas às políticas adotadas durante o
mão como os serviços de inteligência norte-americanos, trágico período estavam "matando pessoas". Com o fim da
Complexo industrial da censura assim como o FBI e o Departamento de Segurança In-
terna, atuaram em conjunto com a rede social para su-
crise sanitária, os efeitos negativos de uma ampla política
de isolamento social discretamente apareceram nas pági-
primir o discurso político de seus usuários no contexto da nas da imprensa capitalista (I was called a killer for warning

A prevalência da TCR em círculos acadêmicos, incen-


tivada pela burguesia, cumpriu vários papéis, mas
principalmente serviu como demagogia a fim de tornar a
pandemia e das eleições presidenciais de 2020, a fim de
evitar um novo 2016.
of lockdown harms, The Telegraph, 12/08/2022); assim como
os efeitos colaterais da mais ampla política de vacinação
pública já realizada; possíveis tratamentos alternativos; e,
política neoliberal do Partido Democrata mais palatável A TCR surge então como a base ideológica dos cen- até mesmo, o amplo uso de máscaras (The Mask Mandates
para a classe trabalhadora norte-americana e como for- sores dentro do Twitter e das demais redes sociais, os su- Did Nothing. Will Any Lessons Be Learned?, The New York Ti-
ma de angariar a pequena-burguesia de esquerda na luta postos "especialistas em desinformação". A relativização mes, 21/02/2023).
contra a liberdade de expressão, fazendo com que abando- da liberdade de expressão, a tese de que palavras podem
nasse sua posição tradicional, como aquela dos anos 1960. machucar e oprimir por si só, formaram a justificativa A discussão, porém, ainda ocorre com base na "verda-
para seus atos injustificáveis. de" estabelecida durante a pandemia. Não passa de uma
A relativização da liberdade de expressão somou-se ao aparência de liberdade, necessária para a estabilidade da-
aparato de vigilância construído pelo imperialismo norte-a- As similaridades entre o "discurso de ódio" de Del- quilo que é uma ditadura cada vez mais profunda que se
mericano após os atentados a Nova Iorque em 11 de setem- gado e o "populismo" de Trump e seus apoiadores é sustenta no controle minucioso do debate realizado pela
bro de 2001. Como denunciado por Snowden em 2013, o inegável. A categoria, porém, foi expandida para incluir internet em escala mundial.
sistema monitorava não apenas a população de outros países, “desinformação que poderia causar danos à população”
incluindo seus chefes de Estado, mas os próprios cidadãos como "hesitação em se vacinar". Shellenberger definiu A tese de que certas ideias são perigosas demais para
norte-americanos que supostamente buscava proteger. Tudo o que batizou de "Complexo Industrial da Censura" que sua circulação seja permitida soma-se ao clamor pela
em nome do combate ao terrorismo. como "uma rede de instituições governamentais, ONGs responsabilização daqueles que simplesmente expressam seu
e acadêmicas alinhadas ideologicamente que descobri- posicionamento e estabelece a punição por crimes cometi-
A revelação do estado de vigilância digital, com a parti- ram nos últimos anos o poder da censura para proteger dos por terceiros. Como reportamos em nossa 12ª edição,
cipação dos grandes monopólios de tecnologia, teve efeitos seus próprios interesses contra a volatilidade e os riscos quando tratamos do Projeto de Lei das Fake News, até mesmo
sensíveis no próprio comportamen- plataformas como as redes sociais
to dos internautas. Em pesquisa rea- que nos habituamos a utilizar estão
lizada em 2014, 28% dos entrevista- no alvo do judiciário como propa-
dos afirmou estar autocensurando gadores de "discurso de ódio", com
suas postagens, enquanto 43% de- total conivência de um amplo setor
clararam evitar o acesso a certos sí- da esquerda mundial, aliciada por
tios ou aplicativos (How Internet Users uma ideologia que pretensamente
Adapted After Snowden Revelations, Sta- defende os oprimidos, mas que, na
tista, 28/11/2014). prática, atua em favor dos opressores.

Se nos anos 1970, Daniel Ells- Das universidades norte-ame-


berg teve seus direitos protegidos ricanas, de um movimento con-
mesmo ao revelar segredos do Es- fuso corrompido pela burguesia
tado norte-americano, em 2012 imperialista, a ideia de que pos-
Julian Assange teve que buscar asilo sa haver uma censura em nome
na embaixada equatoriana de Lon- do bem se espalhou pelo mundo.
dres para escapar das autoridades Um setor mais fraco da burguesia
britânicas. Em 2023, o jornalista nacional de diversos países, repre-
que revelou o programa de assas- sentado, por exemplo, na figura
sinatos indiscriminados com dro- de Jair Bolsonaro no Brasil ou de
nes no Afeganistão teve seus recur- Donald Trump nos Estados Uni-
sos esgotados na Justiça britânica dos, ganhou prestígio perante as
e aguarda sua extradição para os massas ao defender a liberdade de
Estados Unidos onde, na melhor expressão contra seus opositores:
Reprodução

das hipóteses, a prisão perpétua a burguesia imperialista que bus-


o aguarda. Julian Assange foi preso e torturado por publicar provas de crimes cometidos pelo imperialismo ca controlá-los e a esquerda, mera
espectadora dos acontecimentos,
A virulência desse aparato de vigilância e seu poder do processo democrático. Eles não estão “defendendo a que torce por sua repressão.
para sufocar dissidentes foram demonstrados no gover- democracia”, como afirmam. Em vez disso, eles estão
no de Barack Obama, durante o qual foram executados defendendo sua própria política e interesses pecuniários Curiosamente, é possível traçar um paralelo entre as
mais processos contra denunciantes valendo-se da Lei de contra a democracia" (idem). teses originais de Bell e o momento que atravessamos. A
Espionagem de 1917 do que em todas as administrações TCR avançou politicamente apenas devido a uma "con-
anteriores somadas. A atuação do complexo, naturalmente, não se restringe vergência de interesses" com o imperialismo mundial. Os
apenas aos Estados Unidos. A TCR rapidamente dissemi- "direitos" conquistados aos oprimidos, sua “proteção” con-
"Em 2013, o governo Obama obteve os registros de 20 nou-se pelo mundo com o apoio financeiro da burguesia im- tra o discurso de ódio e outros males que possam surgir
linhas telefônicas do escritório da Associated Press e os telefo- perialista por meio de simpósios e congressos, de forma que pelo debate público, avançaram apenas porque os grandes
nes residenciais e celulares dos repórteres, apreendendo-os neologismos como "decolonialismo" tornaram-se correntes capitalistas decidiram que não poderiam mais governar
sem aviso prévio, como parte de uma investigação sobre na língua portuguesa. Por outro lado, o aparato de vigilân- com abertura para o dissenso. Com uma extrema-direita
a divulgação de informações sobre uma conspiração ter- cia, apoiado em monopólios de tecnologia em sua maioria desgarrada, restou apoiar-se numa esquerda pequeno-
rorista frustrada da Al Qaeda" (AP FACT CHECK: Obama norte-americanos, difundiu-se ainda mais rapidamente. -burguesa confusa.
20 primeira quinzena de junho de 2023 OSSIÊ
CAUSA OPERÁRIA

cultura

C ENSURA , UMA VELHA PAUTA DA DIREITA

100 anos da Lei


Cerca de um século atrás, a República Velha aprovava uma lei Um personagem secundário no início da República,
seu nome se fortaleceu com as “Leis Adolfo Gordo”, duas
contra a liberdade de expressão e para calar a oposição leis com características anti-operárias logo no início da
República. A primeira Lei Adolfo Gordo, o Decreto Nº
1.641, de 7 de janeiro de 1907, “Providencia sobre a ex-
pulsão de estrangeiros do territorio nacional”. Diz o des-
pacho: “O Presidente da Republica dos Estados Unidos
Roberto França do Brazil: Faço saber que o Congresso Nacional decretou
e eu sancciono a seguinte resolução: Art. 1º O estrangei-
ro que, por qualquer motivo, comprometter a segurança
nacional ou a tranquillidade publica, póde ser expulso de
parte ou de todo o territorio nacional” (Portal da Câmara

D
uas leis levam o nome do político da República de um discurso de ruptura. A habilidade de Bocaiuva, um dos Deputados).
Velha, Adolfo Gordo. Primeiro a Lei de 1907, que dos mentores do jornal O Globo, posteriormente, consistia
permitia a expulsão de estrangeiros. Feita para em manobrar as palavras para atrair diversos setores para A primeira lei Adolfo Gordo se voltava contra estran-
atacar líderes sindicais, classe que na época era composta o movimento republicanista: geiros, não por motivo étnico, mas para barrar o cresci-
principalmente por operários vindos da Europa, com essa mento do movimento operário. Com o desenvolvimento
lei a antiga oligarquia brasileira tentava desmembrar o “Somos da América e queremos ser americanos. A urbano e industrial brasileiro, imigrantes chegavam ao
incipiente movimento operário brasileiro. A segunda lei, nossa forma de governo é, em sua essência e em País e se organizavam politicamente contra a política de
“lei infame” como foi apelidada pela imprensa, permi- sua prática, antinômica e hostil ao direito e aos espoliação da classe trabalhadora. Gordo e os setores mais
tia a censura de jornais e proibia o anonimato. Ambas interesses dos estados americanos. A permanên- reacionários pretendiam cortar o que consideravam a raiz
as leis eram tentativas do já decadente regime da Repú- cia dessa forma tem de ser forçosamente, além da origem do problema, e tudo iniciou para estabelecer represália à
blica Velha de calar e decepar a sua oposição cada vez de opressão no interior, a fonte perpétua da hostilidade greve dos ferroviários da Cia. Paulista de Estradas de Fer-
mais crescente. e das guerras com os povos que nos rodeiam. Perante a ro e ao ascendente operariado. Após essa greve, Adolfo
Europa passamos por ser uma democracia mo- Gordo propôs a expulsão dos anarquistas estrangeiros e
nárquica que não inspira simpatia nem provoca dos líderes do movimento.
O início do movimento operário adesão. Perante a América passamos por ser uma
democracia monarquizada, onde a força do povo Na realidade, o tiro de Adolfo Gordo saiu pela culatra,
não pode preponderar ante o arbítrio e a onipotência do pois, apesar de terem expulsado 132 estrangeiros no pri-

O s primeiros anos da República registram o sur-


gimento de sindicatos operários no lugar das as-
sociações, que discutiam a jornada e as condições de
soberano. Em tais condições pode o Brasil considerar-se
um país isolado, não só no seio da América, mas no seio
do mundo” (Os programas dos partidos e o 2º Império, Américo
meiro ano da lei (Batalha, 2000), o movimento operário
continuou crescendo influenciado pelos eventos ocorridos
na Rússia em 1905, e pelo crescimento da opressão vivi-
trabalho; salários; formas de pagamento, entre outras Brasiliense, São Paulo, 1878, págs. 59-88). da pelos operários. Político secundário até a primeira Lei
questões trabalhistas. Os sindicatos, para burlar a re- Adolfo Gordo, foi elevado ao Senado em 1913, impondo
pressão estatal, denominavam-se de Centro; Grêmio; O projeto supostamente democrático vinculava o Brasil mais repressão aos anarquistas e estrangeiros. Mediou
Liga; Sociedade; União, etc. De acordo com Claudio aos interesses do imperialismo, embora mobilizado por di- novos atos legislativos para prevenir greves urbanas e ru-
Batalha (O movimento operário na Primeira República, 2000), versas forças progressistas para encurralar o antigo regime, rais. Nos anos de 1919, 1920 e 1921, o Congresso prepa-
as organizações também portavam o nome de “Resistên- já em crise. A facilitação do comércio de matérias-primas rou legislações mais repressoras, na esteira da Revolução
cia” para se diferenciarem de “sociedades mutualistas”, e o fim do protecionismo brasileiro era o principal projeto Russa e da grande agitação no Brasil, principalmente em
consideradas “beneficentes”. Em 1890, um ano após a dos Republicanos. Com isso, Saldanha Marinho e Quin- 1917. A repressão começou a focalizar os órgãos de im-
Proclamação da República, foi fundado o Partido Ope- tino Bocaiuva decidiram formar o Clube Republicano, prensa operária.
rário (O movimento operário e a república, Marcos Vinícius no Rio de Janeiro, com um projeto vindo de longo prazo
Pansardi). Como foi escrito por Luiz França e Silva para a derrubada da monarquia e o estabelecimento de “Seguindo a lógica da repressão, o historiador Pedro
na Revista Typográphica de 16 de dezembro de 1899: uma república federativa. Tórtima destaca um importante evento acontecido no
“Já dissemos e repetimos: o nosso partido é o partido mês de maio de 1917. Nas dependências da Biblioteca
operário” (O movimento operário e a república, Marcos Vi- Nacional, realizou-se a Conferência Judiciário-Policial,
nícius Pansardi). Adolfo Gordo que reuniu autoridades de segurança, algumas das quais,
de fora do país. O encontro de especialistas em crimino-
logia não negligenciaria a questão operária e anarquista.
Jornal “A República” A dolfo Gordo não foi signatário do Manifesto Repu-
blicano, embora fundador do Clube Republicano
Oportunizada em grande medida pelos esforços do chefe
de polícia, o baiano Aurelino Leal, o evento marcou e
Acadêmico, na faculdade de Direito, e da versão aca- potencializou de forma significativa a normatização de

O relativo crescimento do Brasil – com a formação de


uma classe média capaz de proporcionar renda ao
Estado, crescimento urbano e todas as contradições de
dêmica do A República, onde foi redator, se vinculando
à propaganda republicanista. Nas proximidades do gol-
pe contra o Império do Brasil, Gordo tinha sido eleito
procedimentos entre agentes policiais e de segurança
para além das fronteiras do país. Isso em uma conjun-
tura de greves e motins urbanos, dos quais acreditamos
um capitalismo atrasado, com a formação de uma mão- para a comissão permanente do Partido Republicano, merecer destaque a ‘Insurreição Anarquista’, de 18 de
-de-obra “livre” – criou as condições para o movimento em 1887, e secretariou o partido no congresso de 1889. novembro de 1918, exaustivamente estudada pelo his-
republicano, com todos os elementos que constituem tal Embora numa posição intermediária na seção paulista toriador Carlos Addor.
regime, em meio ao atraso marcado por uma economia dos republicanos, o Partido Republicano Paulista (PRP),
agrário-exportadora e com número insuficiente de indús- juntamente com membros da ação republicana da capital, Em função da permanente agitação operária, das greves
trias para atender o próprio mercado interno. Tal cenário foi um dos responsáveis pela articulação do movimento gerais e da propaganda animada pela Revolução Russa,
reuniu as condições para a circulação de jornais burgueses republicanista com os militares de alta patente do exér- as leis anteriores receberiam novo reforço e atualizações
mais radicalizados contra os trabalhadores, como o jornal cito, liderado por Aristides Lobo, que acabou se tornan- em 1919. Uma atualização que não eliminou a vigên-
A República, fundado em 2 de dezembro de 1870. Em torno do membro do primeiro governo provisório, enquanto cia da lei de 1907. Nesse contexto, os jornais operários
desse jornal cresce o movimento republicano, composto Gordo se tornou governador do Rio Grande do Norte. e anarquistas do Rio de Janeiro e São Paulo não cansam
por uma ala mais progressista e outra ala mais reacioná- Gordo ficou pouco tempo como governador, mas teve de denunciar a escalada das arbitrariedades. Dois anos
ria, e com uma militância ativa, cujo líder foi Quintino participação destacada entre as facções mais reacionárias depois, o decreto nº 4.269, de 17 de janeiro de 1921, não
Bocaiuva. Na primeira edição de A República, ele escreveu do movimento republicano. dava margem a interpretações sobre o seu principal alvo
o Manifesto Republicano, com 60 signatários. ao deixar claro no seu subtítulo que vinha para regular:
Após um tempo de ostracismo político, sem mandato ‘a Repressão do Anarquismo’. A lei complementava, no
Esse movimento era dissidente do Partido Liberal, e entre 1903 e 1906, Adolfo Gordo dedicou-se à profissão tocante aos ativistas estrangeiros no Brasil, o decreto nº
tinha a intenção de derrubar a monarquia. A queda do de advogado e à organização de outra facção chamada 4.247, de 06 de janeiro de 1921, que normatizava a en-
Império foi fruto de uma série de movimentos, a instau- Partido Republicano Dissidente. Quando retornou ao trada de estrangeiros no Brasil, prevendo a manutenção
ração da República foi uma revolução brasileira, levada Congresso, ergueu a plataforma que o elegeu, ou seja, o das deportações” (Estrangeiros indesejáveis, Alexandre Samis,
adiante pelos setores mais progressistas das forças armadas. combate às agitações de rua e greves. Retornou também no portal Que República é essa, do Arquivo Nacional, 28 de
O Manifesto Republicano defendia a “democracia” e a ao Partido Republicano Paulista, a partir das conexões junho de 2019).
“liberdade econômica”, e não mencionava os trabalhado- familiares após se casar com Albertina Vieira de Car-
res como membros ativos no processo. Portanto, o objetivo valho, o que ampliou suas conexões com a burguesia O movimento operário crescia e a quantidade de leis
final foi o fortalecimento da burguesia e das emergentes paulista. Adolfo Gordo tornou-se tio de Júlio César de também, assim como as forças policiais. Porém, a jovem
“oligarquias” das mais diversas províncias. Outro projeto do Mesquita Filho e contraparente de Cerqueira César e República compreendeu que precisaria atingir o ponto
manifesto era a subordinação ao imperialismo, travestido Campos Salles. central de agitação operária, isto é, a imprensa.
OSSIÊ
CAUSA OPERÁRIA

cultura
primeira quinzena de junho de 2023 21

Adolfo Gordo
A segunda lei Adolfo Gordo “Qualquer ofensa ao Presidente da República, no exercício
ou não de suas funções; a qualquer estrangeiro ou a qualquer
representante diplomático, se não tiver o caráter de injuria ou
calunia, será punido com de 3 a 9 meses de prisão celular e

T ambém conhecida como “lei infame” pelos críti-


cos, a Segunda Lei Adolfo Gordo é a Lei de Im-
prensa (Decreto nº 4.743 de 31 de outubro de 1923). A
uma multa de 4.000 a 20.000 réis”.

Os outros artigos punem a publicação de segredos


Lei de Imprensa de 1923 foi estabelecida e combatida de Estado, informações sobre forças militares e outros;
dentro de um “estado de sítio” decretado por Arthur ofensas feitas às estrangeiras; atentado à moral pública
Bernardes, que enfrentou grandes ondas de protestos, e aos bons costumes; propaganda médica não aprovada
culminando com a formação do Partido Comunista pela Direção da Saúde Publica. Esta salada brasileira
do Brasil (PCB). — é perfeita!

Gordo retornaria ao centro do debate do Senado A critica só será permitida se “tiver por objetivo preparar
com duras e repressivas leis. A atenção dada à imprensa a opinião publica para reformas em prol do bem publico e
foi providencial à República, pois garantia que veículos sendo formulada em linguagem moderada, leal e respeitosa”.
chapa branca como O Estado de São Paulo, O Globo
e Folha da Manhã (atual Folha de S. Paulo) pudessem São declarados sucessivamente responsáveis o autor, o edi-
garantir livre circulação de “veículos oficiais”, sempre tor, o impressor, o vendedor ou distribuidor. Qualquer publi-
visando um pacto por cima. O projeto, apesar de rece- cação deve levar os nome do diretor e do gerente e os endereços
ber críticas de diversos jornalistas e até de órgãos da im- da administração e da impressora.
prensa burguesa, tinha a pretensão de manter a ordem
social comprometida pela crise que atingia o País após As clausulas sobre a responsabilidade “sucessiva” desfe-
a Primeira Guerra Mundial. O artigo primeiro da Lei cham um golpe bastante rude contra a imprensa pobre, quer
de Imprensa de 1923 é a intensificação das penalidades dizer, a revolucionária, obrigado a recorrer aos serviços de
na lei estabelecida anteriormente, em 1921. Os demais impressora particulares, quase sempre burgueses, que para
artigos ditatoriais praticamente impedem a redação de evitar a responsabilidade legal, naturalmente se recusam a
qualquer crítica ao governo ou mesmo a defesa de outra nos imprimir.
ordem política.
As dificuldades de propaganda comunista aqui, são
“ Art. 2º A publicação de segredos do Estado é assim, grandemente aumentadas pela nova lei. Dois im-
punida com a pena de prisão cellular por um a quatro pressores já nos recusaram seus serviços. Nosso próprio
annos, tambem applicavel no caso de noticias ou infor- material tipográfico foi aprendido ou destruído durante a
Reprodução

mações relativas á sua força, preparação e defesa militar, campanha policial de maio-junho. Nossa ação pela luta
si taes noticias ou informações puderem de algum modo de classes revolucionária não diminuirá. Mas que os ope-
influir sobre a sua segurança externa ou despertar “O carrasco não tem culpa. Agiu por instinto de conservação”, diz a rários europeus saibam o que valem no Brasil as liberda-
rivalidades ou desconfianças, perturbadoras das legenda da charge des democráticas.”
boas relações internacionaes.
mente inviabilizando qualquer atividade política que
Paragrapho unico. E’, entretanto, permitida a dis-
cussão e critica si tiver por fim esclarecer e preparar a
se confrontasse com a “República do Café com Lei-
te”, que, de “café com leite”, não tinha nada no que
Uma tentativa de calar o progresso
opinião para as reformas e previdencias conve- diz respeito à repressão, não devendo nada à ditadura
nientes ao interesse publico comtanto que se
use de linguagem moderada, leal e respeitosa.
militar brasileira.

Sobre essa lei, Octávio Brandão Rego, farmacêutico e


E m resumo, as Leis Adolfo Gordo foram uma tentativa
de impedir o crescimento do movimento operário, cada
vez mais forte no Brasil. Com o desenvolvimento industrial
Art. 3º A offensa feita pela imprensa ao Pre- militante comunista e dirigente do recém criado Partido brasileiro, e a chegada de imigrantes para suprir a demanda
sidente da Republica no exercicio de suas func- Comunista Brasileiro (PCB) — tradutor da primeira edição por mão de obra qualificada, a burguesia, e principalmente a
ções ou fóra delle, e a algum soberano ou chefe do Manifesto do Partido Comunista no Brasil — escreve oligarquia, tentou, através da censura e da deportação, con-
de Estado estrangeiro, ou aos seus representantes uma carta em dezembro de 1923, dois meses depois de trolar a situação política. Contudo, o regime não suportou
diplomaticos, quando não revista caracteres da calum- sua aprovação: a série de crises que sucederam e caiu por definitivo menos
nia ou injuria, é punida com a pena de prisão cellular de uma década depois. As tensões contra a República Velha
por tres a nove mezes e multa de 4:000$ a 20:000$000. “As Republicas Sul-americanas ainda passam – Europa! - por eram tão grandes que, em 1924, houve a revolta Paulista,
ter tradições de liberdade! continuação do movimento tenentista que começou em 1922.
Art. 4º E' prohibido, sob pena de multa de 200$ a 4:000$, A Revolução de 24 colocou o país em pé de guerra. A cidade
affixar ou expôr ao publico em qualquer logar e A imprensa européia não prestou atenção, que nós saibamos, do de São Paulo foi bombardeada pela República, e embora os
por qualquer meio, inclusive fitas cinematogra- decreto nº. 4743 que entrou em vigor no Brasil há alguns meses. No tenentistas tenham sido derrotados, em 1930, novamente os
phicas, cartaz, estampa, gravura dcsenho, e em entanto, o decreto nº. 4743 é uma obra prima no gênero. Ele é cha- tenentistas, agora com apoio da burguesia de outros estados,
geral impresso, manuscripto ou figura onde haja offensa mado também de lei de imprensa, uma lei sobre a imprensa. como Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba, puseram
a ali alguma nação estrangeira. fim à República Velha definitivamente.
O Congresso, sediado no Rio de Janeiro, aprovou-o depois de
Paragrapho unico. Fica sujeito á pena de prisão cellular prolongados debates, nos quais tomou parte importante o senador Irina A Lei Adolfo Gordo de 1923 deu um sinal claro de que as
por dous a seis mezes quem apregoar, em logares publicos, Nachade (burguês liberal); o decreto foi sancionado pelo presidente antigas oligarquias que controlavam o regime político não con-
a venda de gazetas, papeis e impressos, ou manus- da republica a 31 de outubro. seguiram fazer frente ao movimento operário, nem à burguesia
criptos de modo offensivo a pessoa ou nacionalidade industrial. Ambos se desenvolveram rapidamente com a queda
certa e determinado com o fim de escandalo e (ilegível). Suas finalidades são: do Império. Vale lembrar, em 1917 São Paulo foi palco de uma
gigantesca Greve Geral. A paralisação havia começado na fá-
Art. 5º A offensa á moral publica ou aos bons cos- 1. Reforçar a legislação contra alguns crimes (ca- brica Crespi com 2000 trabalhadores. Os operários clamavam
tumes, feita de qualquer modo pela imprensa, é lunias, injurias, insuficientemente punidos no por aumento de salário, redução da jornada de trabalho, proi-
punida com a pena de prisão cellular por seis mezes a dous Código Penal). bição do trabalho infantil e do trabalho feminino à noite. Esse
annos, e da perda do objecto de onde constar a mesma 2. Combater as propagandas subversivas (anar- movimento rapidamente se espalhou, ao longo do mês de junho
offensa, além da multa de 200$ a 2:000$000. quista e comunista) muitas fábricas se juntaram à greve. Dada a repressão estatal e
3. Tornar impossível, de fato, qualquer critica à patronal, os operários se recusam a negociar diretamente com
Paragrapho unico. E' prohibido, sob a mesma administração ou às suas autoridades... os patrões. Foi conquistado um aumento salarial de 20%, direito
pena deste artigo, vender, expôr á venda ou, por de associação e a não demissão dos envolvidos na greve.
algum modo, concorrer para que circule qualquer E aí está a novidade. A administração passa a ser tabu. O go-
livro, folheto, periodico, ou jornal, gravura, dese- verno, sagrado. Diante dessa demonstração de força, a repressão foi
nho, estampa, pintura ou impresso de qualquer estabelecida de vários modos. Primeiro, a oligarquia ten-
natureza desde que contenha offensa á moral pu- Este monstro é fruto dos esforços conjuntos do semifeudal estado tou cortar a cabeça do movimento operário, deportando
blica ou aos bons costumes” (grifos nossos). de São Paulo e do católico de Minas Gerais. sindicalizados, jornalistas e líderes aos seus países de ori-
gem (a maioria era de origem italiana). Não conseguindo
A lei foi instrumento brutal de ditadura, pratica- O artigo 3 está assim redigido: resolver a contradição de classe, recorreu-se à censura.
22 primeira quinzena de junho de 2023 OSSIÊ
CAUSA OPERÁRIA

história

NIKITA KRUSCHEV

A mediocridade
Ao contrário do que alegam os stalinistas, a bancarrota da União Soviética não começou com URSS em Moscou.
Kruschev. Ele apenas amenizou a situação política tensa do período para justamente salvar Com apoio da burocracia stalinista na Ucrânia, Krus-
o poder da burocracia medíocre que assumiu o Estado após a contrarrevolução de Stálin chev começou a ascender nas posições do partido, auxi-
liando a contrarrevolução na perseguição aos opositores,
que passaram a ser perseguidos brutalmente por Stálin e
sua camarilha.

Juca Simonard Kaganovich enviou Kruschev para Carcóvia, então


capital ucraniana, para ser chefe do Departamento Or-
ganizacional do Comitê Central do Partido Ucraniano.
Depois, ele foi para Kiev, onde se tornou chefe do depar-
tamento organizacional, sendo o segundo em comando

A
história da União Soviética é um dos maiores alvos maio, tornou-se presidente. Não era, no entanto, um bol- da organização partidária.
da falsificação histórica dos tempos modernos. De chevique. Juntou-se ao grupo apenas após a Revolução de
um lado, a burguesia imperialista busca apresentar Outubro, quando os bolcheviques tomaram o poder, der- Em 1929, Kruschev se aproximou da camarilha bu-
o antigo Estado operário como o inferno na terra na tenta- rubando o governo provisório. Dessa forma, Kruschev foi rocrática, seguindo Kaganovich para Moscou, e se matri-
tiva de caluniar o que é apresentado como “comunismo”. apenas mais um dos milhões de trabalhadores que se jun- culou na Academia Industrial. Na instituição, tornou-se,
Do outro, os stalinistas glorificam os antigos burocratas do taram ao partido após a revolução. Mais especificamente, com apoio da burocracia, secretário do partido na escola,
regime na tentativa de apresentar o sistema político sovié- ele se juntou aos bolcheviques ao final de 1918, ano em perseguindo setores da oposição que estavam organizados
tico como um exemplo a ser seguido pelos revolucionários. que começou a Guerra Civil contra as forças reacionárias na academia e haviam sido eleitos como delegados para
que queriam derrotar a revolução. uma conferência distrital.
No entanto, ocorre que, após o evidente fracasso da
URSS, esses últimos tiveram de manobrar para explicar Seu biógrafo William Taubman explica que, antes A ascensão de Kruschev foi então constante. Foi o líder
o que aconteceu. Inimigos mortais da ciência materialista disso, Kruschev era mais propenso a apoiar a política partidário para o distrito de Bauman, local da Academia,
desenvolvida pelos marxistas, os stalinistas se refugiaram menchevique: antes de ocupar a mesma posição no distrito de Krasnopres-
em vários tipos de falsidades. Adoradores do líder da con- nensky, o maior e mais importante de Moscou. Em 1932,
trarrevolução no primeiro Estado operário da história, “A afirmação de que ele determinou sua posição ideo- tornou-se o segundo homem da organização do partido
José Stálin, não podiam naturalmente compreender que lógica imediatamente após Outubro de 1917 é simples- em Moscou, atrás apenas de Kaganovich. Dois anos mais
a queda do regime fosse um desenvolvimento contrarre- mente falsa. Na verdade, Kruschev provavelmente sentia-se tarde, seria o 1º secretário na capital e se tornaria membro
volucionário desenvolvido pelo seu ídolo. mais próximo dos mencheviques com seu foco na melho- do Comitê Central. Na posição, Kruschev recebeu a Or-
ria econômica do que dos bolcheviques, que buscavam dem de Lênin (maior condecoração da União Soviética)
Assim, alguns apresentam a situação da seguinte ma- o poder político a qualquer custo. Afinal, a base política pela construção do metrô da capital. Em 1935, também
neira: até Stálin, a URSS era um exemplo a ser seguido. dos mencheviques era composta por trabalhadores mais virou 1º secretário do Comitê Regional de Moscou, saindo
Após sua morte, o Estado foi tomado pelos chamados prósperos, que tinham algo a perder, e Kruschev era um da liderança distrital para a liderança provincial.
“revisionistas”. Quem teria começado esse processo seria deles. Enquanto os moderados estivessem no controle, ele
Nikita Kruschev, secretário-geral do Partido Comunista tinha muito a ganhar. Somente depois que os bolchevi- Nessa época, começaram os Grandes Expurgos, quan-
da URSS de 1953 a 1964 e primeiro-ministro do país de ques assumiram o controle e pareciam os mais propensos do Stálin limpou o partido definitivamente dos antigos
1958 a 1964. Não entendem, no entanto, que Kruschev a reprimir tentativas de contrarrevolução, Kruschev pas- quadros revolucionários aproveitando-se do assassinato
foi a continuação da política stalinista: manteve o Estado sou a apoiá-los” (Khrushchev: The Man and His Era, William de Serguei Kirov. Os antigos dirigentes bolcheviques que
controlado por uma burocracia privilegiada em detrimento Taubman, 1990). realizaram a revolução (com exceção dos que já haviam
do restante da população e continuou a política de aliança morrido por causas naturais, de Leon Trótski, que estava
com o imperialismo e contrarrevolução interna e mundial. Kruschev foi então mobilizado como comissário políti- exilado, e Alexandra Kollontai, que havia se retirado da
co do Exército Vermelho, mas não realizou grandes feitos. política) foram todos julgados em processos farsescos: os
No entanto, os stalinistas criticam o burocrata soviético Em 1921, com o fim da guerra, ele foi desmobilizado e Processos de Moscou, enviados para campos de concen-
por uma das poucas ações boas que realizou: denunciar designado, no mesmo ano, como diretor assistente de as- tração e, em seguida, executados.
os crimes políticos de Stálin. Ainda, os stalinistas, que suntos políticos para a mina de Rutchenkovo, na região de
apresentam Kruschev como um direitista em relação ao Donbas, vivendo na penúria causada pelos anos de guerra. Mais tarde, Kruschev denunciaria os Grandes Expur-
“revolucionário” Stálin, não compreendem que, pelas cir- Sem grandes interesses políticos, Kruschev queria apenas gos de Stálin. Mas, na época, ele foi um ferrenho defensor
cunstâncias políticas, o dirigente soviético das décadas de ser bem-sucedido profissionalmente. Por isso, ingressou dos mesmos: “Todos que se alegram com os sucessos al-
1950 e 1960, na verdade, estava à esquerda do “homem na Universidade Operária de Carcóvia em 1922. Nas cançados em nosso país, as vitórias do nosso partido lide-
de aço”. Para os marxistas isso não significa, no entanto, fileiras do partido, cuja Secretaria-Geral (até então um rado pelo grande Stálin, encontrarão apenas uma palavra
uma defesa da política de Kruschev. Este foi um burocrata cargo administrativo) já estava controlada por Stálin, que adequada para os cães mercenários e fascistas do bando
qualquer, sem qualquer relevância para a Revolução Russa. se apoiava na burocracia do Estado soviético devastado trotskista-zinovievista. Essa palavra é execução”, defendeu
pela Guerra Civil, Kruschev assumiu os irrelevantes car- na época, como lembra Taubman (Khrushchev: The Man and
gos de secretário do partido da escola técnica (tekhnikum) His Era, William Taubman, 1990).
Um burocrata qualquer do Donbas e de membro do bureau do comitê do partido
para a cidade de Yuzovka. A verdade é que os Grandes Expurgos foram benéficos
para Kruschev, pois Stálin mandou assassinar até mesmo

F ilho de uma família ucraniana pobre, Nikita Kruschev


nasceu em 15 de abril de 1894 em Kalinovka, uma
aldeia localizada na atual província de Kursk. Em 1908,
Subindo na burocracia stalinista
dirigentes que eram próximos na burocracia. Kruschev,
assim, assumiu o cargo de suplente do Politburo de Sta-
nislav Kossior, destituído de seus cargos e fuzilado durante
acompanhou seu pai quando este foi trabalhar no Donbas, os últimos anos dos expurgos.
uma das áreas mais industrializadas do antigo Império
Russo. Na região, ele se incorporou à classe operária, tra-
balhando em fábricas e outros trabalhos braçais. Por isso,
A carreira de Kruschev reflete a tomada do controle
do Estado operário soviético após a contrarrevolução
realizada por Stálin. Para se manter no poder político e
Ele não apenas se beneficiou, como acatou as ordens e
participou ativamente da perseguição política. O líder do
teve seu primeiro contato com a política revolucionária. exercer sua ferrenha ditadura contra os dirigentes revo- partido em Moscou mandou prender mais de 40 mil pes-
lucionários bolcheviques, o ditador se apoiou justamente soas e pediu a execução de mais de 8 mil. Eram números
Quando estourou a Primeira Guerra Mundial, em nos setores da burocracia. Foram justamente pessoas como tão exorbitantes que ultrapassavam mesmo a cota fixada
1914, por ser um operário especializado, o que lhe dava Kruschev, com cargos administrativos e totalmente irrele- pela própria burocracia (o Politburo estabelecera uma
melhores condições de vida em relação aos outros tra- vantes para a revolução, que começaram a ter o controle cota de 35.000 inimigos a serem presos na província de
balhadores, foi dispensado do serviço militar para conti- do poder político. Moscou, sendo que 5.000 deles deveriam ser executados).
nuar trabalhando. Ele foi empregado por uma oficina que
prestava serviços a diferentes minas – importantes para Em 1925, Kruschev foi nomeado secretário do partido Na liderança partidária em Moscou, dos 38 principais
manter a máquina de guerra russa funcionando. Mesmo do distrito de Petrovo-Marinsky. Nesse ano, ele foi “notado funcionários do Partido na cidade e província de Moscou,
envolvendo-se em algumas greves nesse período, Kruschev por Kaganovich, tornou-se aparatchik na Ucrânia”, con- 35 foram mortos, enquanto os três sobreviventes foram
não teve nenhum papel dirigente na Revolução de 1917, forme conta o historiador Pierre Broué (Le Parti Bolchevique, transferidos para outras partes da União Soviética (idem).
que derrubou o regime czarista. Pierre Broué, 1963). Lázaro Kaganovich era o dirigente Além disso, dos 146 secretários de cidades e distritos fora da
stalinista da Ucrânia, que colocou Kruschev sob sua tute- cidade de Moscou na província, apenas 10 sobreviveram.
Com o surgimento de diferentes sovietes (conselhos) la. No final de 1925, o baixo burocrata foi eleito delegado
após a revolução, foi eleito para o de Rutchenkovo e, em não votante ao XIV Congresso do Partido Comunista da Pelo “bom trabalho”, Kruschev foi elevado a membro
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CAUSA OPERÁRIA

história
primeira quinzena de junho de 2023 23

burocrática no poder
efetivo do Politburo em março de 1939. Alguns anos antes, Sem conseguir dar conta das metas estabelecidas por serviu como um fator de progresso ao denunciar os crimes
foi nomeado por Stálin como chefe do Partido Comunista Moscou em relação às colheitas, prejudicadas por uma in- cometidos pelo stalinismo, comprovando as denúncias fei-
na Ucrânia. Na federação ucraniana, os expurgos haviam tensa seca que atingiu a Ucrânia, Kruschev foi removido do tas pelos setores de oposição anos antes.
sido gigantescos. Quando assumiu, o ritmo das prisões cargo de primeiro-ministro, substituído por Kaganovich. No
acelerou consideravelmente. Quase todo o quadro diri- entanto, foi mantido na liderança do partido na Ucrânia. No entanto, as denúncias levaram a uma crise política
gente do partido e do Exército Vermelho foi substituído. internacional nos partidos comunistas – órgãos satélites
Kruschev não deixou pedra sobre pedra. da burocracia soviética. No Brasil, por exemplo, os setores

Durante a Segunda Guerra Mundial, no período do


No poder, a ‘desestalinização’ linha-dura do stalinismo racharam com o PCB em 1962,
fundando um outro partido, atualmente conhecido como
Pacto Molotov-Ribbentrop (acordo de Stálin com a Ale- PCdoB. Essas divisões ocorreram em quase todos os países
manha Nazista de Adolf Hitler), Kruschev acompanhou
as tropas soviéticas na ocupação da Polônia em 1939. Sua
função política foi garantir que as áreas ocupadas votassem
N o final de 1949, Kruschev voltou a servir como líder
do partido em Moscou. Após a morte de Stálin em
1953, participou de uma imensa disputa interna pela suces-
do mundo. Outros setores, desiludidos com a política da
burocracia soviética, fundaram novos partidos, alguns deles
aderindo à influência da China de Mao Tse-Tung. Na União
pela incorporação à URSS, o que ocorreu mediante gran- são na liderança do Partido Comunista. O poder político Soviética, o discurso causou a maior crise. Setores pró-Stálin
des manipulações. No entanto, a coletivização forçada de inicialmente ficou com a linha-dura do stalinismo: princi- se mobilizaram contra a nova direção do partido, enquan-
terras confiscadas gerou amargor nos camponeses locais palmente Malenkov, que virou primeiro-ministro, e Beria to na Hungria, em 1956, setores combativos aproveitaram
e acabou fortalecendo o movimento pela independência (chefe dos serviços secretos), mas também Kaganovich, a crise para se mobilizar contra a política oficial dirigida a
polonesa, contra a ocupação soviética – que provocava Bulganin e Molotov. Kruschev foi apontado 1º secretário partir de Moscou. O “discurso secreto”, portanto, acabou
outras barbaridades repressivas contra a população local. do Comitê Central do partido. Aliou-se a Malenkov contra não sendo tão secreto assim. Diversas cópias foram feitas e
reformas propostas por Beria e acabou ganhando apoio divulgadas à imprensa local e internacional. O vazamento
Após a invasão da União Soviética pelos nazistas, em de outros membros do Presidium do Soviete Supremo. foi autorizado por Kruschev, que procurava utilizar as de-
1941, Kruschev foi apontado como comissário político, núncias para atingir seus objetivos políticos.
servindo como linha-dura de Stálin para manter os co- Apoiados em setores importantes da burocracia, Krus-
mandantes do Exército Vermelho sob controle. Em Kiev, chev e Malenkov ordenaram a prisão de Beria, que foi Pela situação política tensa na URSS, a linha política
a burocracia impediu a evacuação da cidade, ocasionando executado, facilitando a ascensão ao poder total da dupla do país durante seu controle acabou ficando em um es-
na captura de mais de 600 mil prisioneiros. pectro mais à esquerda da política de Stálin.
O marechal Jorge Zhukov, um dos respon- Para suavizar a situação, Kruschev diminuiu
sáveis pela derrota dos ocupantes nazistas, o poder da burocracia sobre determinados
em detrimento da burocracia, era um dos setores da economia, amenizou a censura a
defensores de evacuar a cidade para evitar obras artísticas e à imprensa. Em outros ter-
a vitória nazista, mas não foi ouvido. Mais mos, ele suavizou a repressão política, sem,
tarde, Zhukov denunciou que Kruschev foi no entanto, abdicar dela. Em seu ensaio so-
em grande parte culpado, pois foi ele quem bre o governo Kruschev, o escritor georgiano
convenceu Stálin. Roy Medvedev apontou que “o terror polí-
tico como um método cotidiano de gover-
O marechal conta que, quando tentou no foi substituído por Kruschev por meios
argumentar pela retirada, em agosto, Stálin administrativos de repressão” (Khrushchev:
“me disse que havia consultado mais uma The Years in Power, Roy Medvedev, 1978).
vez Kruschev, que o convenceu de que sob
nenhuma circunstância Kiev deveria ser Kruschev derrotou os setores (Grupo An-
abandonada” (Vospominaniia i razmyshle- ti-Partido) que se opunham às suas reformas
niia, vol. 2, Zhukov). e depois rifou um aliado seu na luta interna,
o marechal Zhukov. Temendo o militar, ago-
Em suas memórias, Kruschev conta outra ra ministro da Defesa, pela sua popularida-
versão. Ele teria tentado convencer Stálin a de após a Segunda Guerra Mundial, Krus-
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dispersar as tropas de Kiev. Conhecendo o chev armou para expulsá-lo da direção do


funcionamento da burocracia stalinista, é partido. Em 1958, se consolidou no poder
bem possível que, em algum momento, ele Kruschev foi um burocrata qualquer, sem qualquer relevância para a Revolução Russa ao arranjar a demissão de Bulganin como
tenha tentado persuadir Stálin da retirada, primeiro-ministro da URSS, assumindo ele
mas pela insistência do chefe da URSS tenha, finalmen- na União Soviética. Depois, o secretário do partido for- mesmo o cargo.
te, decidido em concordar com ele. De qualquer forma, taleceu sua posição no interior da organização. Com isso,
o cerco da cidade ucraniana foi mais uma comprovação buscou isolar os elementos linha-dura do stalinismo, entre No poder, portanto, Kruschev continuou a política de
de incapacidade da burocracia stalinista. eles, Malenkov, Molotov e seu antigo mestre, Kaganovich Stálin de perseguição aos opositores, algo que seria contínuo
– que mais tarde conspiraram para derrubar Kruschev, na história do Estado operário burocratizado. Ainda, do
Em 1942, esteve ao lado de Stephen Timoshenko formando uma facção que ficou conhecida como “Grupo ponto de vista internacional, a União Soviética continuou
na liderança da Frente Sudoeste na fracassada e suicida Anti-Partido”, e seriam derrotados. com a política contrarrevolucionária, boicotando as revo-
contraofensiva na província de Carcóvia, que foi cerca- luções ao redor do mundo (Cuba, Congo, Argélia, etc.).
da pelos alemães e custou cerca de 267.000 soldados, Ao assumir o controle do partido, Kruschev promoveu A política de colaboração de classes foi mantida a partir
incluindo mais de 200.000 homens capturados. Em se- a chamada “desestalinização” para aliviar a pressão social do estabelecimento da teoria da “coexistência pacífica”.
guida, Kruschev participou da Frente de Stalingrado e política do país. No final de 1955, milhares de prisionei-
em agosto de 1942, mas não teve um papel importante. ros políticos retornaram para suas casas e contaram suas Ainda assim, pela hostilidade que o imperialismo assu-
Com a vitória em Stalingrado, iniciou-se a contraofensi- experiências horríveis nos campos de trabalho forçado miu contra os soviéticos no período da chamada “Guerra
va soviética que começou a repelir os invasores nazistas. (Gulag). No XX Congresso do PCUS, em fevereiro de Fria”, ao contrário de Stálin, Kruschev se aliou a alguns
Kruschev foi para a Batalha de Kursk e, à medida que 1956, Kruschev realizou o famoso “discurso secreto” em países que estavam em oposição ao imperialismo, por pura
os nazistas eram repelidos, ele começou o trabalho de que revelou alguns crimes do stalinismo. necessidade. Nesse sentido, também desse ponto de vista
reconstruir a Ucrânia, sendo nomeado primeiro-minis- o regime de Kruschev aparece mais à esquerda do que a
tro da federação, mantendo ainda o cargo de chefe do O secretário-geral do partido denunciou que seu an- URSS de Stálin. Isso não o impediu de cometer grandes
partido na região. tecessor “frequentemente escolheu o caminho da repres- crimes contra o movimento operário internacional, como
são e aniquilação física, não apenas contra inimigos reais, a intensa repressão à Revolução Húngara de 1956 e a
Em 1945, ao final da Guerra, no entanto, a indústria mas também contra indivíduos que não haviam cometido construção do Muro de Berlim em 1961.
ucraniana estava apenas a um quarto dos níveis pré-guer- nenhum crime contra o partido ou o governo soviético”.
ra. Para aumentar a produção, Kruschev, utilizando-se da Em 1964, após novas disputas internas pelo poder político,
perseguição política, começou um expurgo nas fazendas O relatório, no entanto, buscou direcionar as denúncias Kruschev deixou o cargo máximo do partido e de primeiro-
coletivas. Ainda, impulsionou a coletivização forçada na das atrocidades, responsabilidade de toda a burocracia – -ministro, sendo deposto e substituído por Leonid Brejnev.
parte ocidental da Ucrânia (ocupada durante a guerra), inclusive Kruschev –, para responsabilizar apenas Stálin.
mas o projeto foi retardado pela falta de recursos e a re- Assim, o atual chefe da União Soviética livrava importantes Portanto, ao contrário do que alegam os stalinistas, a
sistência armada dos guerrilheiros partisans que haviam setores da burocracia soviética da culpabilidade pela intensa bancarrota da União Soviética não começou com Krus-
ajudado a vencer os nazistas do Exército Insurgente Ucra- repressão, tortura e aniquilamento das épocas anteriores. chev. Ele apenas buscou amenizar a situação política tensa
niano (UPA), de Stepan Bandera. A repressão aumentou, do período para justamente salvar o poder da burocracia
resultando na morte e prisão de centenas de milhares de Contraditoriamente, o discurso que serviu para ameni- medíocre que assumiu o Estado após a contrarrevolução
guerrilheiros, além da população local. zar a situação caótica do domínio da burocracia também liderada, décadas antes, por José Stálin.
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internacional

UMA FALSIFICAÇÃO HISTÓRICA

O mito da
O “direito histórico” à “Terra de Israel” não passa de um mito Ilíada e Odisseia dos hebreus, explica que, antes do sécu-
lo X a.C., das estepes e desertos meridionais e orientais,
sionista para justificar os abusos praticados na Palestina tribos judias chegaram ao local e se depararam com os fi-
listeus no oeste e os cananeus que já habitavam a região.
Antes de chegar a Canaã, “essas tribos viviam em gens;
dedicavam-se à criação de gados nos oásis dos desertos.
Com o tempo, as gens dividiram-se em grandes famílias
Juca Simonard patriarcais que possuíam seus próprios rebanhos”, conta
o professor soviético A. V. Michulin (História da Antigui-
dade, Moscou: Vitória, 1960).

A história é narrada pelas Escrituras Hebraicas sem

O
principal pretexto dos sionistas para justificar mizando com os nacionalistas judeus, Marx aponta que compromisso com a realidade histórica e, provavelmente,
a limpeza étnica e o regime de apartheid que se eles opõem “à nacionalidade real sua nacionalidade qui- com personagens inventados, mas o documento serve para
estabeleceu na Palestina é que a região seria a mérica e à lei real sua lei ilusória, crendo-se com o direito ilustrar o feito. No Egito e na Mesopotâmia, surgiram os
verdadeira terra de seus antepassados judeus. A “terra de manter-se à margem da humanidade, a não participar, fundadores das chamadas “doze tribos de Israel”. Lide-
ancestral” foi o principal argumento não só para iniciar por princípio, do movimento histórico, a aferrar-se à espe- rados por Moisés, eles teriam migrado para Canaã, terra
a colonização do território nos primórdios do século XX rança de um futuro que nada tem a ver com o futuro geral que lhes teria sido prometida por Deus, e exterminado a
como para capturar Jerusalém e quase toda a Palestina do homem, considerando-se membro do povo hebraico, população local:
após a Guerra dos Seis Dias, em junho de 1967. que reputa eleito” (A Questão Judaica, Karl Marx, 1843).
Finalmente, o judeu alemão é antes alemão que judeu, “Mas nas cidades desses povos que o Senhor seu Deus
No entanto, esse argumento não passa de engodo. Insi- assim como o alemão cristão é antes alemão que cristão. está lhes dando como herança, vocês não devem deixar
diosamente, os sionistas procuram unificar o “povo judeu” vivo nada que respire” (Deuteronômio 20:16). “E todo o
e, mediante mitos de um suposto exílio judeu ocorrido no Além disso, a criação artificial de um “povo judeu” espólio dessas cidades e gado o povo de Israel tomou como
passado, justificar o “direito histórico” à “Terra de Israel” serviu como pretexto para que judeus europeus de diversas pilhagem. Mas todas as pessoas eles atingiram com o fio
(Eretz Yisrael). Patrocinado pelo imperialismo britânico e nacionalidades, que nada tinham a ver com os antigos ju- da espada até as terem destruído, e não deixaram nada que
o norte-americano, o sionismo seria, portanto, o respon- deus que habitaram a Palestina, iniciassem um movimento respirasse” (Josué 11:14).
sável pela “volta do povo escolhido” à “terra ancestral”. nacionalista reacionário baseando-se em ideias que nem
mesmo eram apoiadas pelos líderes religiosos judaicos do “Quando os israelitas e os judeus penetraram na Pales-
Assim, o “povo exilado” teria direito à propriedade passado. Esses nunca defenderam o regresso à “terra an- tina exterminaram parcialmente a população que aí vivia e
nacional “de um território no qual não viveu subjugaram o resto. Nas regiões ocupadas,
por dois milênios, ao passo que a população cada tribo se estabeleceu em comunidades
que ali estivera vivendo por tantos séculos e estas passaram, pouco a pouco, à agricul-
[os árabes] não tinha tal direito”, conforme tura. Os israelitas estabeleceram-se ao nor-
aponta o historiador israelense Shlomo Sand te, onde existiam vales férteis. Os judeus
(A invenção da Terra de Israel, 2012). ocuparam as zonas montanhosas situadas
ao sul”, conta Michulin (1960). A partir da
“Sempre me pareceu que uma tentativa luta contra os filisteus, povo guerreiro que
sincera de organizar o mundo tal qual estava começou a assaltar as propriedades israeli-
há centenas ou milhares de anos significaria tas, os chefes da tribo seriam os primeiros
a injeção de uma insanidade delirante no sis- reis de Israel entre os séculos XI e X a.C.
tema geral de relações internacionais. Será
que alguém cogitaria encorajar hoje em dia Sendo assim, seguindo a política identitá-
uma exigência árabe de se assentar na Pe- ria sionista, a região da Palestina não deveria
nínsula Ibérica para ali estabelecer um Es- ser considerada propriedade exclusiva dos
tado muçulmano simplesmente porque seus hebreus, mas sim das tribos que lá viviam
ancestrais foram expulsos da região durante anteriormente. As “tribos de Israel” não têm
a Reconquista? Por que os descendentes dos origem ali, mas são um povo que fugiu do
puritanos, forçados a deixar a Inglaterra sé- Egito e da Mesopotâmia para se estabelecer
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culos atrás, não haveriam de tentar retornar na região. É certamente absurdo afirmar que
em massa para a terra de seus antepassados a os filisteus e cananeus guardam algum tipo
fim de estabelecer o reino celestial? Alguma O califa Omar conquista Jerusalém, no ano 638. de “direito histórico” às terras palestinas,
pessoa em sã consciência apoiaria exigências mas é exatamente essa a natureza do argu-
de nativos norte-americanos de assumir a posse territorial cestral”. Para eles, Jerusalém e o antigo território da Judeia mento dos apoiadores do Lar Nacional Judeu.
de Manhattan e expulsar seus habitantes brancos, negros, não eram nada mais que um local de adoração religiosa, e
asiáticos e latinos?”, argumenta Sand (2012). não uma terra onde se deveria instaurar um Estado judaico. Os reinos de Judá e Israel seguiram o caminho natural
do desenvolvimento das forças produtivas da agricultura:
Ademais, a tentativa de criar um “povo judeu” não uma aristocracia rural e militar compunha a burocracia
passa de falsificação histórica. Primeiro, porque os des-
cendentes diretos dos judeus do passado se espalharam
Os reinos de Judá e Israel estatal e, à medida que crescia, apoderava-se da terra dos
camponeses, que por sua vez tinham de executar os tra-
pelo mundo, misturando-se com outros povos. O judeu balhos reais em determinados períodos e pagar impostos
“puro”, das tribos que fundaram os reinos de Israel e Judá,
não existe mais, tendo se incorporado aos diversos povos
semitas que existem no Mediterrâneo e na Mesopotâmia.
O s argumentos sionistas se erigem em conceitos iden-
titários, alegando que o judeu é o povo original da
atual região que engloba Israel e Palestina. No entanto,
para sustentar o Estado. Parte do poder adquirido pela
aristocracia se deveu às rotas comerciais que passavam
pela Palestina e ligavam a Mesopotâmia ao Egito. De outro
Os judeus que viveram nessas regiões ao longo dos sécu- essa alegação é refutada pelas escrituras hebraicas, ou o lado, a acumulação de riquezas levou ao empobrecimento
los são uma junção de diversos grupos étnicos convertidos Antigo Testamento, que explicam as origens dos judeus. dos camponeses, que se tornavam escravos por dívidas. A
ao judaísmo. Trata-se de um grupo essencialmente reli- divisão enfraqueceu os reinos, que frequentemente guer-
gioso, não se podendo falar, então, de um “povo judeu”. Devido aos escassos registros históricos do período, reavam entre si, além de precisar enfrentar os ataques da
O mesmo se aplica aos judeus europeus que iniciaram a pouco se sabe realmente sobre o estabelecimento dos he- Assíria, reino situado ao norte da Mesopotâmia.
colonização da Palestina. breus na Palestina, então chamada Canaã. A região é uma
estreita faixa de terra a sudeste da Fenícia (atual Líbano e
Por isso, o historiador inglês Eric Hobsbawn apontou
que “é inteiramente ilegítimo identificar os elos judaicos
Síria), a leste do rio Jordão e do Mar Morto e a oeste do
Mediterrâneo. Em muitos pontos, o território está cortado
Ascensão e queda do judaísmo
com a Terra de Israel ancestral [...] com o desejo de re- por montanhas, onde o clima é rude e o solo pouco fértil.
unir todos os judeus em um Estado territorial moderno
situado na antiga Terra Santa” (Nações e nacionalismo
desde 1780, 1990).
Em outros, a Palestina tem pequenos vales, que graças ao
rio Jordão são cobertos por planícies de pastoreio e campos
para agricultura. No sul, um areal converte-se num deserto,
E m 723 a.C., os assírios se apoderaram do Reino de
Israel, o mais rico, com as melhores terras para agri-
cultura. Submetidos, os israelitas passaram a pagar tribu-
onde na época de chuvas cresciam ervas suculentas, e a tos aos conquistadores. Menor e mais fraco, o Reino de
É também nesse sentido que, em A Questão Judaica, região permitia o pastoreio. Na seca, no entanto, os pastos Judá, por sua vez, seguiu existindo ainda algum tempo.
Karl Marx, ele mesmo um alemão oriundo de uma família sumiam, e os pastores tinham de ir às montanhas a fim de Caiu em 586 a.C., após ser derrotado pelo exército de
judia convertida ao cristianismo, refere-se à “nacionalida- conseguir alimento para os rebanhos. Nabucodonosor II, rei do Império Babilônico. Os babi-
de” judia como “nacionalidade quimérica”, ou seja, algo lônios conquistaram Jerusalém e destruíram o Templo de
desprovido de realidade, resultado da imaginação. Pole- O Velho Testamento, que serve como uma espécie de Salomão, dispersando parcela da elite hebraica para ou-
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“Terra de Israel”
tros centros políticos e culturais do Oriente Médio, onde Infelizmente, pouco se sabe sobre o que terá ocorrido Deus; e restaurou o sumo sacerdócio a Hircano, tanto por-
continuou se organizando política e culturalmente. Entre na Palestina entre os séculos V e II a.C., quando o judaísmo que ele havia lhe sido útil em outras funções, quanto por
os judeus, surgiu muito cedo uma escrita própria. Outra se expandiu e os livros da Bíblia foram redigidos, editados ter evitado que os judeus na zona rural do país ajudassem
parte da população, principalmente os camponeses, foram e retrabalhados. No entanto, ao contrário dos assírios e dos Aristóbulo de qualquer forma em sua guerra contra ele”
escravizados pelos babilônios. babilônios, os persas e os helenos permitiram aos judeus (Antiguidades Judaicas, 93-94).
de Jerusalém determinado grau de liberdade, e o judaísmo
A organização judaica fora da Palestina obteve novos começou a se propagar em pequenas localidades ao redor O fim da guerra civil romana – com a morte de Pom-
frutos durante o domínio persa na região, iniciado cerca de da cidade. No século II a.C., os adoradores do Deus único peu e de seu rival, Júlio César –, enfraquece o domínio
50 anos depois, originando o chamado Período do Segun- eram já uma “ampla comunidade de crentes apta a abraçar romano sobre Israel, permitindo um breve ressurgimento
do Templo. Ao contrário dos assírios e dos babilônios, os suas visões e até se rebelar contra um governante pagão asmoneu, com apoio do Império Parta. A Judeia volta a
persas trataram os judeus com certa liberdade, permitindo a fim de defender seus princípios religiosos e práticas ri- ficar sob forte domínio romano após Herodes I, o Gran-
que voltassem a Jerusalém. Esse período durou de 516 tuais”, conta Sand (2012). de, em 37 a.C., ascender a rei e tornar Israel um Estado
a.C., quando foi construído o Segundo Templo de Jerusa- cliente dos romanos.
lém, até a dominação da Palestina pelo Império Romano. Entre 167 e 160 a.C., há um acontecimento essencial
para a expansão do monoteísmo: a Revolta Asmoniana Sand (2012) aponta que, “ao contrário do passado, os
Esse foi o principal momento de propagação do judaís- (ou Macabeia) permite o surgimento do primeiro Estado governadores romanos agora empregavam uma política
mo. Provavelmente, a religião terá surgido nessa época. A judaico da história. A revolta eclode no contexto do colap- destrutiva e irresponsável contra a fé judaica e compro-
hipótese mais plausível é que, quando os persas chegaram so do Império Selêucida diante dos ataques de potências metiam seriamente a sacralidade do Templo. Além disso,
à Babilônia, encontraram sacerdotes e antigos escribas emergentes como Roma e o Império Parta. a política tributária rigorosa também causava queixas so-
entre os exilados judeus e puseram-nos em contato com ciais e agitação de classe”.
o zoroastrismo. Em luta contra o politeísmo mas ainda Ao contrário do que hoje alegam os sionistas, a causa
fiel ao dualismo divino, a religião oficial dos persas teria não foi uma luta nacional por independência e soberania, Em 66 d.C, eclodiu a primeira guerra judaico-romana.
influenciado os exilados e seus descendentes a adotarem mas um movimento de cunho religioso. A questão do Em 70, durante o governo do imperador romano Vespasia-
a crença em um único Deus. Estado judeu não estava colocada. Afinal, em quase 300 no, Jerusalém foi cercada, e o Templo destruído. Apoia-
anos sob o domínio persa e depois macedônio, os judeus dos por agricultores pobres da região, os judeus reagiram
“O grau de abstração presente no jovem monoteísmo nunca levantaram essa proposta. A revolta, liderada por tomando a fortaleza de Massada, mas os romanos cerca-
só poderia ter emergido dentro de uma cultura material e Judas Macabeu, iniciou após o imperador Antíoco IV Epi- ram-na e derrotaram os revoltosos.
oficial estatal com considerável controle tecnológico so- fânio proibir certos ritos e tradições religiosas judaicas.
bre a natureza. Na época, tal controle havia sido obtido A revolta dos judeus ortodoxos implicou o surgimento Com a vitória romana, acaba o período do Segundo
apenas pelas grandes civilizações hidráulicas, como Egito de um Estado independente, reconhecido pelo senado da Templo, fundamental para a propagação do judaísmo – e,
e Mesopotâmia. O notável encontro entre exilados e seus emergente República Romana, em 139 a.C. portanto, do monoteísmo. Foi o momento em que surgiu
descendentes de um lado e esse centro de alta cultura de a Bíblia, e os judeus circularam por diversas regiões do
outro parece ser o que proporcionou a fundação para as No entanto, o reino teocrático soberano teve curta du- Oriente Médio difundindo a religião e se aproveitando da
teses pioneiras”, argumenta Sand (2012). ração. Eclodiu na Judeia uma guerra civil no interior da decadência do politeísmo.
dinastia asmoniana, entre Hircano II e Aristóbulo II. O
E prossegue: “Como é típico de revoluções intelectuais general romano Pompeu Magno, que já havia conquistado Durante o curto reinado asmoniano, os judeus avan-
decisivas, esses pensadores ousados e cultos foram for- quase toda a Síria selêucida, interveio na Judeia com apoio çaram ainda mais. Sand (2012) conta que os judeus “es-
çados a desenvolver suas ideias radicais fora dos círculos de Hircano, cercou Jerusalém e anexou a região a Roma. forçaram-se apaixonada e energicamente para converter
culturais estabelecidos. Ao escrever em uma linguagem Nomeou Hircano sumo sacerdote, mas não lhe concedeu os habitantes dos territórios vizinhos conquistados. Os
não familiar e, no caso de alguns indivíduos, migrar para o título de rei. O Estado judaico deixou de ser indepen- edomitas de Neguev e os iturianos da Galileia foram obri-
Canaã sob a proteção do soberano persa, verificaram ser dente, pagando tributo aos romanos e sendo obrigado a gados pelos asmonianos a remover o prepúcio e se tornar
possível evitar choques frontais com um sacerdócio he- apoiar suas ações militares. judeus no pleno sentido da palavra. Assim, a comunidade
gemônico e hostil e com autores da corte que ainda eram de crentes judeus cresceu tanto em tamanho quanto em
semipoliteístas. Dessa maneira, deslocando-se entre Canaã O historiador Flávio Josefo narra os acontecimentos: poder, e a terra da Judeia expandiu-se”.
e Babilônia, deram o primeiro passo do lento movimento “Dos judeus, caíram doze mil, mas dos romanos, muito
histórico rumo a um tipo completamente novo de tradição poucos... e não poucas enormidades foram cometidas no “Essa conversão em massa não foi exclusiva do rei-
teológica” (Sand, 2012). próprio templo, que, em épocas anteriores, era inacessível no da Judeia. A partir desse período, e em especial como
e não podia ser visto por ninguém; pois Pompeu entrou resultado do fértil encontro do monoteísmo com a cultu-
“A pequena Jerusalém do século V a.C. tornou-se um nele e não poucos dos que estavam com ele também e ra grega, o judaísmo tornou-se uma religião ativamente
local de refúgio e uma sementeira intelectual para esses viram o que era ilegal ser visto por quaisquer outros ho- proselitista e começou a se espalhar pelo Mediterrâneo,
intelectuais excepcionais. Alguns parecem ter permaneci- mens, acessível apenas aos sumos sacerdotes. Havia no adquirindo muitos praticantes novos. E, embora houvesse
do na Babilônia e fornecido logística material e espiritual Templo a mesa de ouro, o candelabro sagrado, os vasi- existido continuamente uma comunidade monoteísta na
aos migrantes, o que ajudou a criar o corpo revolucioná- lhames de água e uma grande quantidade de temperos; e, Babilônia desde o século V a.C., os migrantes começa-
rio. Canaã, portanto, serviria de ponte espiritual entre a além destes, estava ali o tesouro de dois mil talentos de ram a deixar a Judeia três séculos depois rumo a todos os
fé nascida no Crescente Fértil ao norte e as culturas da dinheiro sagrado: mas Pompeu não tocou nada disto por centros do mundo helenístico, onde então começaram a
região mediterrânea. Jerusalém se tornaria a primeira pa- causa de seu respeito à religião; e, neste ponto, agiu de disseminar sua fé em massa” (Sand, 2012).
rada da poderosa campanha teológica (judeo-cristã-mu- maneira digna de sua virtude. No dia seguinte, ele deu a
çulmana) que por fim conquistaria uma larga porção da ordem para que os encarregados do templo o limpassem O caráter proselitista da expansão do judaísmo des-
terra” (Sand, 2012). e que levassem até lá as oferendas requeridas pela Lei a mente a mitologia criada pelos sionistas, que inventaram

Assim, o Velho Testamento teria sido escrito para fun-


damentar as bases do novo monoteísmo, que surgia num
momento importante do desenvolvimento civilizacional.
Nos séculos V e IV a.C., enquanto se desenvolviam a filo-
sofia e a literatura gregas e se disseminavam o budismo e
o confucionismo, os pioneiros do monoteísmo floresciam,
com foco em Jerusalém.

No Período do Segundo Templo, surgiram diversas


seitas judaicas como os fariseus, os saduceus, os essênios
e os zelotes. Surgiu ainda o cristianismo, uma variação do
judaísmo que floresceu nos últimos anos desse período.
Também surgiu o primeiro Estado judeu da história, resul-
tado da revolta asmoniana de 167-160 a.C., que, por sua
vez, resultava do desenvolvimento do judaísmo durante
o período helenístico.

Em 332 a.C., os persas são derrotados por Alexandre, o


Grande, da Macedônia, que absorveu o gigantesco Império
Persa. No entanto, sua morte, em 323 a.C., levou à divisão
Reprodução

do Império Macedônico entre seus generais, formando di-


versos reinos; entre eles, o ptolomaico e o selêucida, que
dominavam a região da Palestina. Expansão islâmica
26 primeira quinzena de junho de 2023 OSSIÊ
CAUSA OPERÁRIA

internacional

um “povo judeu” homogêneo. Ao contrário, os judeus não enfraqueceu a conexão com


floresceram com a conversão de diferentes povos ao ju- o ‘lugar’ como foco de anseio: de
daísmo, um fato contínuo na história. A tradução da Bí- certa forma, na verdade fortaleceu
blia para o grego por Filo de Alexandria também foi um a significância da Terra e a pre-
fato importante na propagação do judaísmo, facilitando a servou como um local judaico”,
conversão de outros povos. continua Sand (2012).

A derrota da revolta de 66-70 foi o início da decadência “O imperativo de ‘que Israel


do judaísmo. Entre 115 e 117, ocorreu a segunda guerra não cresça pela força’ expressou
judaico-romana, ou Guerra de Kitos. Como ela consistiu a imensa oposição a fazer do ele-
numa revolta das comunidades judaicas que viviam fora mento humano uma força ativa
da Judeia, principalmente no norte da África, no Egito e na história e realçou sua fraque-
em Chipre, os sionistas referem-na como “a revolta da za. Deus Todo-Poderoso foi visto
Diáspora”, para enfatizar um foco nacional imaginário. como um substituto total para o
homem, que não deveria tomar
No entanto, os judeus não defendiam nenhum movi- parte nos acontecimentos ou con-
mento político de tipo nacionalista reivindicando a sobera- cluí-los antes da redenção. Como
nia da Judeia. Na verdade, de tipo religioso, o movimento resultado de sua considerável fle-
era contra o já decadente Império Romano, que esmagava xibilidade e de seu sólido e arrai-
as províncias que dominava cobrando altos tributos, en- gado pragmatismo, os dois irmãos
quanto piorava a situação dos agricultores, principal base mais moços do judaísmo, o cristia-
política do monoteísmo. nismo e o Islã, provaram-se muito
mais bem-sucedidos em adquirir
Menos de 20 anos depois, tem lugar a terceira guer- comando e controle das forças
ra judaico-romana, entre 132 e 135. Liderada por Simão terrestres – reinos, principados,
Barcoquebas, foi um levante armado contra os romanos. aristocracia rural – e alcançar a
Os judeus, todavia, foram derrotados. Sand (2012) afirma hegemonia sobre largas porções
que “a derrota total desse levante iria acelerar o declínio do globo. Embora as tentativas
e queda do judaísmo helenístico em torno do mar Medi- de soberania judaica tenham des-
terrâneo e sua substituição por seu irmão mais jovem e frutado de sucesso temporário em
pós-messiânico – o cristianismo –, que adotaria armamen- várias regiões, as sérias derrotas
to diferente, mas conservaria a atraente e mobilizadora do judaísmo no início da era cristã
visão monoteísta da natureza unidimensional do paraíso”. levaram-no a forjar uma identida-
de de fé baseada na autopercepção
Assim, o judaísmo começa a perder espaço para sua de um ‘povo escolhido’, sem base
variante mais nova, o cristianismo, que passa a dominar a na possessão de uma localidade
Reprodução

região da Palestina. O movimento cristão cresce a tal ponto física definida” (Sand, 2012).
que o Império Romano, com Constantino e seu Édito de Maomé Ali Paxá, líder militar e político egípcio, considerado o fundador do Egito moderno
Milão, em 313, aceita o monoteísmo cristão como religião; Portanto, os pretextos sionistas
e depois, pelo Édito de Tessalônica, de 380, o Imperador não se sustentam nem no aspecto
Teodósio I torna o cristianismo a única religião do impé- histórico, nem no sentido religioso do judaísmo. Como precisavam da unificação para seguir adiante no progres-
rio. Foi assim que o cristianismo se tornou em seguida a mostra Sand (2012), “a ‘terra ancestral’, que por vezes so de suas forças produtivas, estimuladas pelo comércio
religião mais popular do mundo, inclusive em Jerusalém. é referida como ‘pátria’, não seria o local de um Estado e pela agricultura.
judeu, mas apenas o berço do judaísmo, um lugar religio-
so que deveria ser adorado. Ao contrário, os judeus eram Maomé começou sua pregação por volta do ano 610,
Sionismo x judaísmo um povo escolhido que deveria se expandir pelo mundo em Meca, contrariando a nobreza da cidade, que defen-
inteiro, como os verdadeiros escolhidos. Eles se expan- dia o culto politeísta da Caaba. Em face às perseguições,
diram por todo o sul do Mediterrâneo e na Mesopotâmia. Maomé emigrou em 622 para Medina, onde sua comu-

A população judaica, por sua vez, continuou ganhan-


do adeptos em torno do Mediterrâneo, na Europa,
no norte da África e na Ásia, sem, no entanto, conseguir
Essa expansão ocorreu por meio da conversão. Não se nidade cresceu rapidamente. Em 630, os muçulmanos se
trata de um povo original da Judeia, mas da conversão apoderaram de Meca, unificando os povos e iniciando o
de diferentes povos ao judaísmo, um aspecto puramente crescimento do mais importante império da época.
disputar com seu irmão mais novo. religioso, e não étnico”.
Os muçulmanos começaram conquistando toda a Ará-
O judaísmo cresceu com o rabinismo pacifista, baseado bia. Após a morte de Maomé, colocaram-se à frente dos
em textos como a Mixná e os Talmudes de Jerusalém e da
Babilônia. Com caráter proselitista, isto é, de conversão
Domínio árabe árabes os califas (“sucessores”). Unificados agora num
Estado, os árabes se aproveitaram do enfraquecimento de
e propagação para outros povos, o judaísmo se espalhou Bizâncio e do Irã, esgotados após uma guerra pelo controle
pelo mundo em diversos povos, mas nunca houve entre os
adeptos do judaísmo o caráter nacionalista que o sionis-
mo criou. A “terra ancestral” não tinha nada além de um
O Império Romano foi dividido em dois, e sua porção da Síria e do Egito, para iniciar uma guerra pelo controle
ocidental caiu em 476. A região da Palestina con- das regiões do Oriente Médio.
tinuou sob controle do lado oriental, conhecido como
significado religioso. A Ordem do Ketubot, no Talmude Império Bizantino, com capital em Constantinopla (atual Sob a liderança do califa Omar (633-644), em poucos
Babilônico, aponta claramente: Istambul). A presença judaica em Jerusalém era gran- anos os árabes apoderaram-se de enormes territórios como
de, mas minoritária; a maioria da população era cristã. a Síria, o Irã e o Egito. Em agosto de 636, na Batalha de
“Qual foi o propósito dessas três adjurações? Uma, No entanto, no século VII, a região seria dominada por Jarmuque, foi conquistada a Palestina, com exceção de Je-
que Israel não cresça pela força [migração coletiva para um novo império ascendente: os árabes, liderados por rusalém e de Cesareia, que se renderam, respectivamente,
a Terra]; uma pela qual o Sagrado, bendito seja Ele, ad- aquele que é considerado o principal profeta do islamis- em 638 e 640. O país foi separado em duas regiões admi-
jurou Israel a não se rebelar contra as nações do mundo; mo, Maomé. nistrativas, a Jordânia (Al-Urdunn) e a Palestina (Filastin).
e uma pela qual o Sagrado, bendito seja Ele, adjurou os Em Jerusalém, Omar ordenou a construção da Mesquita
idólatras [as nações do mundo] a não oprimir Israel ex- Os árabes eram uma série de tribos da península ará- de Al-Aqsa, considerada ainda hoje um dos locais mais
cessivamente” (Ketubot 13:111). bica, região de planícies e mesetas de irrigação escassa, sagrados do Islã.
onde em alguns lugares se transformaram em desertos
As adjurações referem-se aos três versos que se repe- extraordinários. A parte fértil do território se encontrava “Diante das perseguições severas sofridas sob o Im-
tem no Cântico dos Cânticos. Para os judeus, são decretos principalmente no sul, onde está atualmente o Iêmen. Ao pério Bizantino, os judeus acolheram os conquistadores
divinos. Portanto, para o judaísmo, os judeus não deveriam longo da costa do Mar Vermelho, havia uma rota comer- árabes favoravelmente e até mesmo com entusiasmo. Os
migrar para Jerusalém até a chegada do Messias. Conta cial importante, que ia de Bizâncio ao sul da península, testemunhos judaicos tanto quanto as fontes muçulmanas
Sand (2012) que “até o nascimento do nacionalismo mo- passando depois pela Etiópia para ir à Índia. A principal mencionam a ajuda que os judeus deram ao exército ára-
derno, poucos ousaram desconsiderar esse mandamento. cidade comercial era Meca, e ao norte dela estava Medina, be vitorioso”, aponta Sand em outro livro (A invenção do
A posição ‘antissionista’ do judaísmo rabínico teria uma onde havia agricultura. Essa região, que florescia econo- Povo Judeu, Shlomo Sand, 2008).
vida longa e se manifestaria com destaque nas principais micamente, é chamada de Hejaz.
encruzilhadas na história das comunidades judaicas”. Com o tempo, a população de Jerusalém se tornou
Os árabes eram majoritariamente beduínos, um povo árabe e muçulmana. Para vários judeus, a chegada dos
“O fato de que os judeus não foram exilados à força da nômade que se ocupava da criação de gado – camelos, muçulmanos foi vista como um presente de Deus, e mui-
Judeia após a destruição do Templo significa que também ovelhas e cavalos. Devido às condições territoriais, os po- tos deles se converteram ao islamismo. “A política de ta-
não fizeram esforço para ‘retornar’. Os crentes judeus que voados permanentes eram escassos. Como aponta o histo- xação dos novos conquistadores tinha também um caráter
aderiram à Torá de Moisés multiplicaram-se e se espalha- riador soviético E. A. Kominsky, “a maioria da população particular: um muçulmano não pagava imposto algum,
ram pelo mundo helenístico e mesopotâmico antes até vivia em tendas e ia se deslocando com seu gado pelos apenas os heréticos estavam submetidos a ele. À luz das
da destruição do Templo, e foi assim que disseminaram lugares pobres em pastagens do país desértico” (Histó- facilidades de conversão ao Islã, não é surpreendente que
sua religião com relativo sucesso. É claro que a conexão ria da Idade Média, Kominsky, Moscou: Vitória, 1960). grande número de adeptos rapidamente tenha engrossado
das massas de judeus convertidos com a terra da Bíblia suas fileiras”, conta Sand (2008).
não poderia basear-se em anseio pela pátria, pois ela não As tribos nômades só foram unificadas com Maomé e
representava a terra de origem nem para eles, nem para a religião fundada por ele: o Islã. Influenciado tanto pelo “Se durante o período bizantino assistia-se ainda, a
seus antepassados. O estado de ‘exílio’ espiritual em que judaísmo como pelo cristianismo no Oriente Médio, o Islã despeito das perseguições, à construção de algumas si-
eles viviam, ao mesmo tempo em que mantinham contato é uma religião abraâmica. Seu surgimento é expressão do nagogas, com a conquista árabe esse fenômeno cessou
regular com sua cultura e verdadeiro local de nascimento, desenvolvimento social e político dos povos árabes, que pouco a pouco, e os locais de oração judaicos se tor-
internacional
OSSIÊ
CAUSA OPERÁRIA
primeira quinzena de junho de 2023 27

O sionismo

A colonização sionista na Palestina teve início como


resultado das perseguições sofridas pelos judeus na
Europa, especialmente na Rússia, no final do século XIX.
Os primeiros sionistas eram predominantemente judeus
do Leste Europeu que buscavam um refúgio seguro para
escapar da discriminação e da opressão.

Na Primeira Guerra Mundial, após a derrota do Im-


pério Otomano, o movimento sionista recebeu apoio
da comunidade judaica internacional, incluindo figuras
proeminentes como a família Rothschild, que deram
suporte financeiro e influência política. Além disso, o
imperialismo britânico, que usou o nacionalismo árabe
para vencer os otomanos e depois, com o Acordo Sy-
kes-Picot, dividiu o território árabe com o imperialismo
francês, teve um papel significativo ao favorecer o es-
tabelecimento de um Lar Nacional Judaico na Palestina
(Dossiê Causa Operária n. 13).
Reprodução

No entanto, a colonização sionista entrou em conflito


Perdas territoriais otomanas desde seu auge até a entrada na Primeira Guerra Mundial com o nacionalismo árabe, que se via ameaçado pela imi-
gração judaica em massa. Isso levou a tensões crescentes e
naram raros com o tempo. Não seria abusivo sustentar O nacionalismo árabe a conflitos entre as comunidades judaica e árabe na região.
que a Palestina/Terra de Israel conheceu certo processo
de conversão moderado de longa duração, que evoluiu Após a Segunda Guerra Mundial, o sionismo recebeu
paralelamente para o ‘desaparecimento’ da maioria ju-
daica” (Sand, 2008). C om maioria árabe na região, a população começou a
se revoltar contra o Império Otomano. No início do
século XVIII, ocorreu a primeira grande revolta popular
um impulso significativo com o apoio do imperialismo
norte-americano por meio da Organização das Nações
Unidas (ONU), que aprovou a resolução para a criação
Portanto, a maioria dos judeus que ainda existiam em na Palestina. O governador de Damasco, Maomé Paxá de um Estado judeu na Palestina, resultando no estabe-
Jerusalém se converteu ao islamismo. Ao longo de mais Curde Bairam, aumentou os impostos em várias regiões lecimento do Estado de Israel em 1948 (Dossiê Causa
de 300 anos de domínio árabe, a população bizantina que administrativas, causando protestos da população beduí- Operária n. 13).
vivia na região também foi se assimilando aos conquis- na e camponesa.
tadores, tornando-se etnicamente árabe. A história, todavia, mostra que a reivindicação dos
Em Jerusalém, Maomé ibne Mustafá Aluafai Huceini judeus sobre o território da Palestina é totalmente in-
Os árabes formaram um império gigantesco, domi- liderou a revolta contra o governador, assumindo com seus fundada. Primeiro, porque a região não é nem sequer o
nando todo o Oriente Médio, o norte da África e quase seguidores o controle da cidade. No entanto, em 1705, lugar de origem dos primeiros povos hebreus. Segundo,
toda a Península Ibérica, até que decaiu no século X. No as divisões internas e a intervenção do exército otomano porque os judeus que colonizaram a Palestina, promo-
ocidente europeu, a Reconquista expulsaria os árabes e, puseram fim à revolta, cujo líder foi detido e executado vendo em seguida uma limpeza étnica, nunca tiveram
nesta luta, formaria os reinos de Portugal e, em seguida, a pelos otomanos em 1707. Surgia o embrião do naciona- relação alguma com a região. Esses colonos são judeus
Espanha. Por meio das Grandes Navegações, nos séculos lismo árabe. asquenazis, de origem europeia, sobretudo da Europa
XV e XVI, esses reinos expulsaram os árabes de alguns Central e Oriental, especialmente Alemanha, Polônia,
de seus domínios e formaram os dois principais impérios Em fins do século, liderados por Dair Omar, da família Rússia e países vizinhos.
ultramarinos que iniciaram a transição do feudalismo eu- Zaidanis, setores nacionalistas tornaram a se revoltar contra
ropeu para o capitalismo. os otomanos. Dair Omar se aliou a Ali Bei Alquibir, que O termo asquenazi deriva de Ashkenaz, que é a pa-
liderou uma revolta no Egito. No entanto, os revoltosos lavra hebraica para a Alemanha. Os judeus que havia na
Na Palestina, com as Cruzadas, os cristãos conquista- foram derrotados, e os otomanos invadiram a Palestina, Palestina antes da chegada dos sionistas eram majorita-
ram Jerusalém em 1099, estabelecendo o Reino Latino de forçando Omar a fugir de Acre, então capital da região. riamente sefarditas. O termo sefardita vem de Sefarad,
Jerusalém. A conquista estimulou sobretudo uma peregri- que é a palavra hebraica para a Península Ibérica. Esses
nação cristã para a região, mas também uma peregrinação Após a Revolução Francesa de 1789, os movimentos judeus se espalharam por diferentes partes do mundo
judaica. Durante toda a sua existência, até o final do século de caráter nacionalista explodiram em todo o mundo. No mediterrâneo, incluindo o norte da África, os Bálcãs,
XIII, a região controlada pelo Reino foi disputada entre início do século XIX, Maomé Ali Paxá, um líder militar e a Turquia e o Oriente Médio, após ter sido perseguidos
cristãos e muçulmanos. Jerusalém foi tomada em 1187 político egípcio, considerado fundador do Egito moderno e pela Inquisição Espanhola, com o Decreto de Alhambra
pelo líder militar muçulmano Saladino e, em seguida, re- que servia como governador otomano do país, se revoltou de 1492.
tomada por Ricardo Coração de Leão, rei da Inglaterra. contra o domínio otomano e levou adiante um projeto de
expansão territorial e autonomia. Seu filho, Ibrahim Paxá, Ao chegar à Palestina, os asquenazis entraram em
Ao longo do século XIII, os mamelucos, uma classe foi enviado para conquistar a Palestina e outras regiões conflito com os judeus ortodoxos que viviam no país, pois
militar de origem turco-circassiana que se estabeleceu no do Levante, como a Síria e a atual Jordânia, derrotando defendiam ideias seculares contra os judeus ortodoxos, con-
Egito e na Síria durante a Idade Média, tomaram aos pou- os otomanos e assumindo o controle desses territórios. trários à ideia de um Estado judeu – isto é, antissionistas.
cos os territórios do reino, até a queda de Acre, capital do
reino cristão, em 1291. No entanto, o domínio egípcio na Palestina enfrentou Quando ocorreram as primeiras investidas sionistas
resistência tanto da população local como do Império contra a Palestina, os judeus não representavam nem
Otomano. Com apoio das reacionárias tropas do Império 5% da população local. O dado é elucidativo: revela
O domínio otomano Russo e do Império Austro-Húngaro, o Império Otoma-
no recuperou o controle da região, expulsando as forças
a total falta de vínculos concretos dos sionistas com
a região. A Palestina era dominada por árabes, princi-
egípcias em 1840. palmente muçulmanos e, minoritariamente, cristãos.

O reinado dos mamelucos, no entanto, durou pouco.


À medida que o Império Bizantino e a dinastia xiita
dos Fatímidas (árabes) estavam decaindo, surgia um novo
O curto governo de Maomé Ali, todavia, permitiu um
desenvolvimento da Palestina. Suas reformas e moderni-
Os judeus árabes eram ainda mais escassos. O número
serve ainda para esclarecer que a colonização sionista
da Palestina foi um movimento de origem europeia.
império: o Otomano, de tribos turcas lideradas por Osmã zações tiveram impacto nas estruturas sociais, econômi- Inclusive, o nacionalismo judeu nem sequer existia
I, que dominavam a região de Anatólia desde o século XIV. cas e educacionais da Palestina, e algumas das mudanças antes do século XVIII, mas surgiu diante da persegui-
O líder “reuniu a maior parte das possessões turcas num implementadas nesse período persistiram mesmo após o ção promovida por Estados reacionários na Europa e
Estado, que tomou o nome de Otomano [...]. Osman, e retorno do domínio otomano. depois estimulado pelo imperialismo para controlar
depois seu filho e sucessor, Orkhan-ghasi, apoderaram-se a região do Oriente Médio – dominado por diversos
de quase todos os domínios de Bizâncio na Ásia Menor e Foram introduzidas novas técnicas agrícolas, favore- movimentos antiimperialistas.
aproximaram suas fronteiras do mar de Mármara” (Ko- cendo a irrigação e o cultivo de novas culturas. Surgiram
minsky, 1960). grandes propriedades estatais, onde se plantava olivei- Terceiro, a unificação de um “povo judeu” operada
ras, citrinos e algodão, aumentando a produção agrícola pelos sionistas é uma falsificação. O judaísmo se pro-
Durante o reinado do sultão Selim I (1512-1520), a e impulsionando a economia local. Houve melhoria da pagou pelo mundo por meio da conversão de outros po-
Palestina, a Síria e o Egito foram conquistadas pelo Im- infraestrutura da Palestina, com a construção de estra- vos, chegando à Europa durante a Idade Média. Assim,
pério Otomano, que derrotou o Império Bizantino defini- das, pontes e sistemas de abastecimento de água, facili- os judeus não são outro povo, mas uma mistura de di-
tivamente com a tomada de Constantinopla (renomeada tando o comércio e a comunicação entre as cidades e os versos povos, dentre os quais uma minoria se converteu
Istambul) em 1492. A Palestina permaneceu sob domínio vilarejos. Surgiram escolas modernas, que concorriam ao judaísmo por diferentes motivos. Nesse sentido, se
do Império Otomano, que era muçulmano, até a Primeira para a formação de uma classe educada e consciente fosse possível estabelecer essa relação, os árabes que
Guerra Mundial, mas continuou sendo um território etni- na Palestina, de onde surgiria o posterior nacionalismo vivem (ou viviam) na Palestina estariam mais próximos
camente árabe, onde se encontravam árabes muçulmanos árabe na região. dos judeus antigos do que os sionistas europeus que hoje
(principalmente) e cristãos. As características populacio- dominam a região.
nais e linguísticas da região seguiram inalteradas com o Assim, o domínio egípcio também contribuiu para des-
domínio otomano. Os judeus eram uma minoria, embora pertar um sentimento nacionalista entre a população local, O “direito histórico” à “Terra de Israel”, portanto, não
houvesse árabes judeus ortodoxos que viviam sobretudo preparando o terreno para futuros movimentos políticos e passa de um mito sionista para justificar os abusos prati-
na cidade de Jerusalém. reivindicações de independência. cados na Palestina.
28 primeira quinzena de junho de 2023 OSSIÊ
CAUSA OPERÁRIA

cultura

NOSSO MAIOR MAESTRO

Carlos Gomes, o “selvagem”,


Atacado pelos identitários, uma das mais grandiosas obras musicais brasileira –, é o grande herói da peça, por isso os aimorés são apre-
sentados como grandes e temidos inimigos pelos próprios
e mundial, O Guarani, foi vandalizada em montagem no Municipal portugueses e espanhóis.

Krenak pensou tanto que o Peri de Carlos Gomes (e


de José de Alencar) era ridículo, que ele mesmo acabou
concebendo e introduzindo um Peri ridículo. O terceiro
Henrique Áreas de Araujo ato, que é o mais importante da peça, foi reduzido a nada.
O cacique dos aimorés foi transformado numa figura eu-
ropeia que não se sabe exatamente o que está fazendo ali,
tiraram o balé dos aimorés, que simboliza a preparação
para matar e comer o prisioneiro Peri.

E
steve em cartaz, entre os dias 12 e 20 de maio, como tores, mas o aspecto cênico tão necessário para a obra foi
parte da temporada de óperas de 2023 do Theatro trucidado, liquidado e enterrado. Substituíram tudo por E assim, depois de transformar Peri num personagem
Municipal de São Paulo, a obra-prima O Guarani, elementos de uma arte genericamente indígena. Desenhos ridículo, Krenak também transforma os aimorés em algo
de Carlos Gomes. pretensamente tribais que passeavam num telão moderno sem importância.
(o que por si só já responde à pergunta estendida em faixa
Logo que foi anunciada a apresentação do espetácu- no palco: “Como é ser civilizado?”), projeções sem rela- Se Carlos Gomes procurou exaltar o índio para um
lo, apareceram as notícias na imprensa capitalista de que ção com a história que estava sendo contada, frases com público europeu ávido por conhecer o que na época con-
haveria uma nova montagem da ópera, com a “concep- pseudo protestos que apareciam fora de tempo e de lugar. sideravam exótico, Krenak fez o contrário. No final das
ção” de Ailton Krenak, apresentado como "índio escritor, Chegou ao ponto tal que, durante o belo solo da soprano contas, quem assistiu à montagem fica sem saber exata-
filósofo e sociólogo". que interpretava Ceci, passavam imagens antigas em outro mente o que pensar dos índios: seriam eles grandes per-
telão, com frases desconexas sobre a ação de antropólogos sonagens ou apenas pobres coitados?
Foi justamente a apresentação de O Guarani, a "nova em tempos imemoriais, concorrendo a atenção com uma
adaptação" e as inúmeras besteiras ditas para justificá-la das partes mais importantes da peça. Na verdade, temos a impressão que os índios foram
que nos motivou a escrever esse artigo sobre Carlos Gomes, enganados de novo. Um espertalhão escolhido pela bur-
talvez o mais importante compositor brasileiro. A palavra aventureiro, que consta na peça, foi “tradu- guesia para ser seu representante ganhou um cargo no
zida” ideologicamente para “explorador”, e dezenas de Theatro Municipal, ligado à prefeitura do MDB-PSDB,
Pretendemos, com este artigo, em primeiro lugar mos- outras coisas absurdas como essa. para vender o peixe de que ali eles seriam “representados”.
trar qual foi a "concepção" da obra apresentada no Muni-
cipal e quais as ideias apresentadas na imprensa capitalis- Um diretor que se propõe a fazer uma montagem de Fizeram foi uma enorme sacanagem com os índios!
ta sobre a obra. Depois, cabe-nos fazer justiça ao grande uma peça tende a realizá-la de acordo com uma interpre-
compositor brasileiro, falar brevemente de sua importân- tação que ele faz da obra. Atualmente, essas interpretações Os românticos do século XIX tinham como objetivo
cia e da importância de O Guarani para a música e as têm sido uma verdadeira lástima. Mas suponhamos que retratar os índios como heróis nacionais, já os supostos
artes em geral. a tentativa de interpretação de O Guarani proposta por defensores atuais dos índios se mostram, na realidade,
Krenak fosse séria. Se esperaria algo que fosse interessante grandes inimigos deles.
de se assistir, ainda que a concepção ideológica por trás
O que houve no Theatro Municipal da interpretação fosse errada. O que se assistiu no Muni-
cipal, no entanto, foi algo vergonhoso, de péssimo gosto. A burguesia e o identitarismo
C onforme amplamente noticiado pela imprensa bur-
guesa, Krenak “concebeu” a obra para “corrigir ‘dano
cultural enorme’”, segundo artigo de O Estado de S. Paulo.
Segundo o que se noticiou na imprensa e as próprias
declarações de Krenak, a intenção da montagem era opor
o índio apresentado na ópera ao índio que, segundo eles, O jornal golpista O Estado de S. Paulo, quando a peça foi
estreada, publicou matéria afirmando, sobre a "con-
Fica claro pelo comportamento dos jornais golpistas que a seria o índio “real”. Mas isso não fica claro para o espec- cepção" da obra, que se trata de “corrigir ‘dano cultural
burguesia financiou o espetáculo com a demagogia iden- tador. Colocaram um índio mudo para servir como uma enorme’”, segundo o próprio Krenak. Logo no início do
titária à custa da destruição de uma obra importantíssi- espécie de sombra do tenor que representava Peri, meio artigo do jornal, há uma afirmação do mesmo Krenak di-
ma da cultura nacional. É o que tem ocorrido com toda que numa relação da dupla Zorro e Tonto. A única sen- zendo que “Peri é uma caricatura de índio ridícula, a que
a história do Brasil. sação que conseguiram passar foi a de ridículo, como se estamos sujeitos há 150 anos”. O maior jornal de Cam-
costuma dizer popularmente, uma vergonha alheia. pinas, Correio Popular, resumiu a adaptação: “A ópera ‘O
O que foi visto no Theatro Municipal durante as apre- Guarani’ sob a ótica de Ailton Krenak”. Quem é Krenak
sentações em maio é exatamente isso: a tentativa de des- Mas é ainda pior do que simples ridículo. Ao enxertar para fazer a ópera sob sua ótica própria, não se sabe, sa-
truir a obra de Carlos Gomes. na peça elementos supostamente indígenas, Krenak apenas be-se apenas que ele é o escolhido da burguesia para falar
conseguiu o vexame de colocar os índios, que estavam ali, em nome dos índios.
Gomes está entre os maiores compositores da história numa posição desfavorável. Esse, aliás, é o único resulta-
da música brasileira. Sua peça mais famosa é justamente do possível quando se contrasta o verdadeiro “tiro de ca- Em suma, os espectadores que compraram os ingres-
O Guarani, cuja estreia ocorreu no Teatro Alla Scala, em nhão” que é uma ópera super complexa do romantismo sos para assistir à ópera brasileira mais famosa do mundo
Milão, Itália, em 19 de março de 1870. É uma ópera bra- com elementos simples da cultura dos índios. acabaram comprando gato por lebre. Chegaram ao Mu-
sileira, escrita em italiano, feita para o público europeu. nicipal na expectativa de assistir à obra de Carlos Gomes,
Não há nenhum problema nisso. Na realidade, a peça foi Aqui, vale um parêntese: a cultura do índio apresen- mas encontraram outra coisa, no máximo uma interpre-
pensada justamente para apresentar os temas brasileiros tada ali já não é nada mais do que uma cultura popular tação da obra. Uma interpretação que ninguém discutiu,
para os europeus, algo que despertava bastante interesse brasileira. Um violão e uma rabeca ou violino, instru- ninguém aprovou, a não ser a cúpula que rege os traba-
na época. mentos trazidos pelos europeus, acompanhando algum lhos no Municipal.
vestígio de percussão indígena. É provável que Krenak,
A obra foi concebida para ser um grande espetáculo, em toda a sua vontade demagógica, nem tenha parado Além de caracterizar o personagem da ópera como
não apenas pela música belíssima e poderosa, mas por para pensar que aquela música apresentada como sendo ridículo, Ailton Krenak continua: “Os povos originários
todo o conjunto da apresentação. A ópera, em quatro dos índios era no máximo um resquício de cultura indí- se sentem ofendidos pela narrativa da ópera. E ela traz
atos, contém um coral numeroso e um balé no terceiro gena. Não há nenhum problema nisso, é assim a cultura um dano cultural enorme por ter sido perpetuada acriti-
ato. Tudo para dar o aspecto de grandeza e aventura épi- folclórica brasileira, uma mistura de elementos europeus, camente por tanto tempo”. Já que o negócio é interpre-
ca que a história transmite. É uma grande realização da indígenas e africanos, mas é preciso notar esse tipo de tar, podemos interpretar da seguinte maneira a frase de
cultura nacional. coisa para mostrar a incoerência da ideologia identitária. Krenak: “eu mesmo e mais meia dúzia de pretensos índios
universitários nos sentimos ofendidos pela ópera”.
Mas como a cultura nacional não vale nada para os Krenak, ao tentar prevalecer na montagem sua con-
identitários, chegamos ao resultado da montagem atual no cepção do “índio real” como “protagonista”, acabou con- É disso que se trata realmente. Como é possível afir-
Theatro Municipal. Todo o espírito da obra foi aniquilado. seguindo o efeito contrário. Transformou o índio num mar que os “povos originários” se sentem ofendidos com
Não havia aventura, não havia guerra, não havia luta; os pobre coitado. uma ópera!? A única explicação é que essa "ofensa" está
conflitos foram reduzidos ao máximo. Talvez o conflito restrita ao círculo de identitários que se apoderaram do
que mais tenha aparecido foi justamente a luta de Ailton Enquanto Carlos Gomes na obra enaltece os índios, direito de falar em nome dos índios.
Krenak contra a obra de arte. Mas Krenak não foi muito Krenak os torna pequenos. Os românticos enalteciam
bem sucedido em sua tentativa de destruir a peça, e o que os índios porque eles entendiam – e é verdade – que os A declaração revela também a ignorância completa dos
o público pôde ver foi a transformação de um espetáculo índios constituíam parte essencial da formação social e pretensos intelectuais modernos identitários sobre o que foi
grandioso em algo incompreensível. cultural do Brasil. o romantismo brasileiro, como mostraremos mais adiante.

A música permaneceu, ali havia a orquestra e os can- Por isso Peri – que foi chamado de ridículo por Krenak Também é preciso dizer que a ópera no Brasil, infe-
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cultura
primeira quinzena de junho de 2023 29

e a conquista do mundo
lizmente, é assistida por alguns milhares de pessoas. Com Vejam como o identitarismo cega as pessoas. O autor consideração está muito longe de ser exagerada e reside
certeza – e também infelizmente – desses milhares pode- do artigo não consegue reconhecer o óbvio. Está lutando aí a importância do grande compositor de O Guarani.
mos contar nos dedos quantos são índios. Ou seja, quem contra uma “elite” imaginária, que ele sequer sabe o que
mais poderia se sentir ofendido senão os pretensos índios é, enquanto a verdadeira “elite”, a burguesia e o imperia- A ida de Carlos Gomes à Itália o incorpora ao movi-
de gabinete, como é o caso de Krenak? lismo, está levando adiante uma operação de destruição mento mais avançado da música erudita internacional.
de tudo o que se produziu no Brasil, com a cobertura cí- Como veremos adiante, Gomes não é simplesmente um
Dizemos infelizmente porque, para nós, o povo bra- nica de que isso seria algo "progressista", que valoriza os brasileiro que estuda na Europa. Ele faz parte, como um
sileiro – e aqui estamos falando de todo o povo: índios, povos oprimidos. nome importante, do movimento de artistas italianos que
negros, brancos, asiáticos etc – deveria ter acesso a uma estavam na vanguarda da música e da arte operística na-
obra cultural da envergadura do que é a obra de Carlos quele momento.
Gomes. No entanto, o que se vende por aí, inclusive com
a ajuda dos identitários, é o mais completo lixo cultural,
Artista de importância universal A estreia de O Guarani, em 1870, é o momento em
de preferência um lixo vindo diretamente dos Estados que a cultura brasileira atinge o mesmo nível de quali-
Unidos ou influenciado por ele.

Ailton Krenak pode ter a opinião que quiser sobre


O desconhecimento e a ignorância sobre os fatos e per-
sonagens da história e da cultura nacionais favore-
cem o aparecimento de oportunistas e impostores que se
dade da cultura europeia. Carlos Gomes é considerado,
não apenas pela fama que conquistou na época, mas pe-
los próprios artistas e estudiosos, como um dos grandes
a ópera. Não podemos deixar de dizer, no entanto, que atribuem como grandes intelectuais e porta-vozes do povo. compositores daquele período, atingindo o nível de um
sua opinião é a de um verdadeiro ignorante que não sabe Puccini, por exemplo.
nada sobre o tema. A importância de Carlos Gomes para a música e as
artes nacionais é imensa, reconhecida internacionalmente. Mário de Andrade, ao ressaltar a qualidade universal
Chama a atenção que uma pessoa que não gosta da Mas ao povo brasileiro, condenado a viver na ignorância de Carlos Gomes, se refere justamente a esses fatos.
obra em questão foi chamada, foi contratada (essa é a pa- graças a espertalhões, oportunistas e demagogos, é retirado
lavra correta) para fazer uma nova “concepção” da ópera. o direito de conhecer e apreciar a produção dos grandes
É como chamar um bolsonarista para fazer a curadoria
de uma exposição fotográfica sobre a vida de Lula. Por
personagens desta terra. A música no Brasil
que isso acontece? Isso ocorre porque a intenção é justa- O modernista Mário de Andrade, ao final da primeira
mente destruir o patrimônio cultural brasileiro, é
uma política orientada para isso por parte da bur-
guesia. Quem gere o Theatro Municipal é uma
É senso comum há muitas décadas que a música
brasileira está entre as mais criativas e diversas
do mundo. Diz-se muito sobre isso ao se referir à
organização social, obviamente ligada à prefeitura música popular: ela é "a mais completa, mas total-
do MDB/PSDB. mente nacional, mais forte criação da nossa raça até
agora", dizia Mário de Andrade no ensaio já citado.
A grande preocupação com a “ofensiva” ópe-
ra de Carlos Gomes vem dos maiores destruidores E são justamente essas características os fatores
do patrimônio nacional. Ailton Krenak, homem que auxiliaram num grande desenvolvimento tam-
que figura nos jornais da imprensa golpista como bém de uma música erudita nacional.
o grande representante dos índios, é da confiança
dessa gente e foi contratado para fazer o serviço Conforme afirma o crítico musical italiano Mar-
sujo. Essa é mais uma prova de que o identitarismo cello Conati, em texto sobre Carlos Gomes chamado
é uma política do imperialismo levada adiante no "Formação e afirmação de Gomes no panorama da
Brasil pelos partidos de confiança do imperialismo. ópera italiana - Notas e considerações", o Brasil foi
o país com a produção musical mais antiga dentre
O PSDB e o MDB já destruíram tudo o que os países latino-americanos e daí deve ser tirada a
podiam da economia nacional. Destruir a cultura, primeira explicação para a envergadura universal
nesse caso, é até mais fácil. atingida pela música de Carlos Gomes:

Os identitários não querem saber de arte. Eles "É na sua própria pátria, o Brasil, que entre
querem usar uma posição ou um cargo recebido os países da América Latina é o que ostenta mais
do PSDB para destruir a obra de arte. Se Krenak antigas tradições no campo da música culta (basta
e a corja identitária não gostam da ópera de Carlos pensar na escola de Minas Gerais …), que podem ser
Gomes, o problema é deles. Mas tentar modificar a encontrados os estímulos que favoreceram a voca-
obra para atender aos seus desejos individuais, com ção de Gomes para o melodrama e junto às origens
patrocínio da burguesia, é uma coisa muito dife- daquela italianidade, para não dizer simplesmente
rente e não tem nada a ver com expressão artística. verdianidade, de estilo que prevalecerá nitidamente
nas suas primeiras experiências teatrais".
A imprensa golpista adorou a “polêmica” sobre
o caso. Na verdade, adorou a destruição da ópera, A explicação, segundo o mesmo autor, estaria
com muita propaganda de Krenak como grande não apenas nas tradições, mas na própria inicia-
“líder indígena”, “filósofo”, “intelectual”. tiva, por assim dizer, oficial do Segundo Império:
Reprodução

Os setores mais poderosos da burguesia, desde "No Brasil nasce uma iniciativa que ficou úni-
os que organizaram a ópera até a imprensa golpista ca na história teatral da América: a fundação, em
que aplaude a tal “adaptação”, apoiam e financiam Carlos Gomes (1836-1896) 1857, da Imperial Academia de Música e Ópera
essa política. Isso é óbvio, não para uma esquer- Nacional. (...) Nasceu com o propósito de limitar em
da de classe média que cai no conto do vigário do parte a influência da ópera italiana e de beneficiar
identitarismo. parte de seu “Ensaio Sobre a Música Brasileira” afirma a criação de óperas em língua brasileira (sic), através tam-
que "Carlos Gomes pode nos orgulhar além dos pedidos bém da execução de óperas e operetas italianas, francesas
Uma reportagem de um portal chamado Itatiaia afirma da época e nós temos que fazer justiça a quem está como e espanholas traduzidas para o português. Mas o objetivo
que "A chiadeira da elite paulistana que se deparou com a ele entre os melhores melodistas universais do séc. XIX." principal da Academia era a representação, pelo menos
novidade no Theatro Municipal, que ainda se grafa como uma vez por ano, de uma ópera nacional".
no período colonialista, é representativa de um pensamento A apreciação de Mário de Andrade é muito impor-
escravocrata que insiste em manter-se arraigado”. tante porque talvez tenham sido os modernistas – não O romantismo brasileiro, movimento do qual faz parte
por politicagem, mas por necessidade de impor sua nova Carlos Gomes, é propriamente a escola artística do Impé-
Essa colocação é de dar pena. Segundo o autor da estética contra o que consideravam a "velha arte" – os rio. É um movimento de tipo nacionalista, mas um tanto
matéria, a “elite paulistana” – sempre ela – está insatisfeita primeiros que contribuíram para diminuir a importância quanto oficialista, ao menos em suas duas primeiras fases,
com a montagem da ópera. Falta discernimento político e de Carlos Gomes. Mas a luta entre diferentes gerações e na medida que era dominado por uma política estatal, jus-
social para quem escreveu tal coisa: a “elite paulista”, ou movimentos artísticos não deve confundir sobre a impor- tamente porque Pedro II era ele mesmo ligado às artes. O
mais especificamente o setor mais poderoso dela, ligado tância e significado de uma obra de arte. Um artista e um Estado financiou muitos artistas, como foi o caso de Carlos
ao imperialismo, está financiando, apoiando, impulsio- movimento não devem ser medidos com a régua da luta Gomes, agraciado com uma bolsa de estudos na Europa.
nando e aplaudindo Krenak e sua “nova concepção” da entre as diferentes escolas e movimentos.
ópera. Essa “elite” deu até um cargo remunerado para No entanto, esse caráter oficialista do romantismo
que o pretenso representante dos índios pudesse fazer Note que Mário de Andrade coloca Carlos Gomes en- não deve ser analisado de um ponto de vista negativo. Na
esse trabalho. tre os melhores melodistas universais do século XIX. Essa realidade, faz parte da própria peculiaridade da forma-
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ção histórica do Brasil. Esse impulsionamento oficial era música universal. imperador para o rei de Portugal, Dom Fernando, que o
fundamental para o desenvolvimento das artes num país recomenda ao maestro Lauro Rossi, diretor do Conser-
de formação social e cultural recente, tendo conquistado Além de grande músico, Arthur Napoleão era um des- vatório de Milão.
sua independência política pouco tempo antes. cobridor de talentos e editor da Revista Musical e de Belas
Artes. Assim, Carlos Gomes e seu hino ganharam fama
O desenvolvimento das artes musicais no Brasil, con-
forme destaca Marcello Conati, de cuja tradição Carlos
também no Rio de Janeiro. O movimento musical italiano
Gomes é herdeiro, fica claro no comentário do jornal na "Sois da Pátria esperança fagueira
época da estreia da primeira ópera de Gomes:

"A musa da arte nacional rasgou o crepe que a en-


Branca nuvem de um róseo porvir C arlos Gomes chega em Milão em 9 de fevereiro de
1864. Inicialmente, não é inscrito como aluno do con-
servatório, mas estuda como aluno particular do maestro
volvia desde a morte de José Maurício: um novo filho Do futuro levais a bandeira Lauro Rossi. O que se sabe é que em 6 de julho de 1866,
bem seu (...) vai continuar a tradição do passado, revi- Gomes prestou exames no Conservatório e foi agraciado
ver a chama quase extinta da pyra sagrada", escrevia Hasteada na frente a subir por Rossi com o título de Maestro Compositor.
o crítico musical Henrique César Muzzio, no Diário do
Rio de Janeiro no dia 6 de setembro de 1861, sobre a es- Mocidade, eia avante, eia avante! Seria um erro considerar a vida de Carlos Gomes em
treia da primeira ópera de Gomes, A noite do castelo, Milão como se ele fosse simplesmente um mero aprendiz
no Teatro Lyrico Fluminense (Carlos Gomes, "Do sonho à Que o Brasil sobre vós ergue a fé de um país atrasado que vai à Europa para receber uma
conquista", Juvenal Fernandes). espécie de civilização. Está muito longe disso. Gomes fez
Esse imenso colosso gigante parte da vanguarda artística que se reunia na Itália, em
Padre José Maurício (1767-1830), citado como um particular em Milão, naquele período.
precursor de Carlos Gomes, tão desconhecido do grande Trabalhai por erguê-lo de pé"
público brasileiro, foi um dos maiores compositores da Não apenas era uma pessoa distante que participava
história da música nacional. Descendente de escravos, (Trecho do Hino à Mocidade Acadêmica) esporadicamente desse movimento sobre o qual falaremos
nasceu muito pobre e teve sua educação na Igreja Ca- mais adiante. Gomes era considerado na época como um
tólica. Ele é hoje reconhecido internacionalmente por de seus membros mais importantes e ativos.
muitos estudiosos como estando entre os maiores compo-
sitores negros da história da música erudita. Citamos esse
Os estudos no Rio de Janeiro Após deixar o conservatório, em 1867, Carlos Gomes é
personagem justamente para mostrar que o fenômeno convidado para escrever a música da Revista do Ano, o equi-
Carlos Gomes não deve ser interpretado como um raio
em céu azul, mas como produto de um desenvolvimento
da música nacional.
E m junho de 1859, Carlos Gomes matricula-se no Con-
servatório de Música dirigido por Francisco Manuel
da Silva, na classe de composição do maestro italiano
valente a um festival que ocorria anualmente. Ele escreve,
então, Se Sa Minga (Não se sabe), em dialeto milanês. O
autor do libreto era o importante escritor Antônio Scalvi-
ni, que fez parcerias com todos os
Antônio Carlos Gomes nas- grandes compositores da época.
ceu em 11 de julho de 1836, em
Campinas, São Paulo, filho de Se Sa Minga faz um sucesso
Fabiana Maria Jaguary Cardoso estrondoso na Itália, ainda maior
e de Manuel José Gomes. do que o êxito obtido com o Hino
da Mocidade Acadêmica, em São
Seu pai era mestre de coro, Paulo. Pelos comentários dos jor-
orquestra e banda, responsável nais da época é possível ter uma
pela parte musical nas cerimônias dimensão do tamanho do suces-
cívicas e religiosas de Campinas. so: "Peça digna de 100 represen-
Foi o pai que ensinou teoria e mú- tações". Carlos Gomes e Scalvi-
sica instrumental e integrou An- ni percorrem a península itálica
tônio, com os 25 irmãos, nos seus durante todo o ano de 1866 em
conjuntos musicais. Mais do que temporadas, todas com grande su-
os outros, Antônio destacou-se no cesso. Uma das canções da peça,
empenho do estudo do piano e chamada Fucile ad Ago (Fuzil de
dos instrumentos de orquestra e Agulha), é cantada, repetida em
banda. As primeiras composições pianos e realejos durante anos.
de Carlos Gomes datam ainda de Se Sa Minga transforma Carlos
sua adolescência. Gomes num dos maestros mais
famosos de Milão.
Reprodução

Ainda jovem, Carlos Gomes


faz algumas viagens a São Pau- Um índio mudo para servir como uma espécie de sombra do tenor que representava Peri, meio que numa relação da dupla Zorro e Tonto. A Um jornal italiano descrevia
lo. Ali, ele tem contato com os única sensação que conseguiram passar foi a de ridículo assim o fenômeno:
clássicos, possivelmente acompa-
nhando os concertos de "música de classe" do Jardim da Gioacchino Giannini, por indicação do Imperador D. "Para o sucesso deste caprichoso enredo, concorre a
Luz, durante a década de 50 do século XIX. Pedro II. Francisco Manuel da Silva fora aluno do Padre música do senhor Gomes, um brasileiro, aluno do Maestro
José Maurício. Lauro Rossi – este jovem além de se revelar bem instruído
Foi na capital paulista que Carlos Gomes começou a se pela ótima escola do Diretor do Conservatório, parece-me
envolver com a intelectualidade da época, frequentando a Os progressos de Carlos Gomes são muito rápidos, possuir uma veia rara em nossos dias, a fantasia, a inven-
república de estudantes da faculdade de Direito do Largo compõe duas cantatas. A primeira é executada na presen- ção... música que Gomes escreveu miraculosamente em
São Francisco chamada Cazuza. A república possuía um ça do Imperador, o que lhe vale uma medalha de ouro; seis noites de assíduo trabalho... hoje é um verdadeiro mi-
piano e estabeleceu-se ali uma amizade entre os acadêmi- a segunda, chamada A última hora do Calvário, lhe vale lagre encontrar um lugarzinho entre a multidão que acorre
cos e o jovem compositor. Frequentavam ali nomes como a cadeira de diretor de orquestra e maestro substituto no ao Se Sa Minga" (La Perseveranza, Milano, 17/12/1866).
Teófilo Otoni, Bernardino de Campos, Rangel Pestana, Teatro Lírico Nacional.
Bittencourt Sampaio, Otávio Couto de Magalhães e os Esse sucesso é muito demonstrativo da importância
futuros presidentes, Prudente de Morais e Campos Salles. Passam-se cerca de 20 meses do início de seus estudos que Gomes adquiriu no meio artístico italiano. Segundo
no conservatório até a apresentação da sua primeira ópera, ele, "foi precisamente 'quella musichetta da organetti' que
Nessa época, Carlos Gomes, ainda conhecido como em três atos, A Noite do Castelo, que estreou em 4 e 7 de me abriu as portas do Scala".
Nhô Tonico, compõe o Hino Acadêmico ou Hino à Mo- setembro de 1861 no Teatro Lyrico Provisório. Com libreto
cidade Acadêmica, com letra de Bittencourt Sampaio, de Fernandes dos Reis, com tema inspirado no poema de
que dedica aos amigos. mesmo nome do português António Feliciano de Castilho. O movimento "Scapigliati"
Os estudantes promovem um concerto para apresentar A primeira ópera é um enorme sucesso e Carlos Gomes
a novidade e o Hino espalha-se por toda a cidade. O poeta
Luís Guimarães Júnior chamou o Hino de A Marselhesa
da Mocidade, o que serve para nos dar a ideia de como a
é nomeado Cavaleiro da Ordem da Rosa pelo Imperador.

A segunda ópera de Gomes, Joanna de Flandres, tam-


C arlos Gomes integrou-se ao grupo conhecido como
"Scapigliatura", um movimento artístico que se reuniu
no norte da Itália, tendo como centro a cidade de Milão.
canção foi popular na época. bém em três atos, é apresentada dois anos depois, em 15 Mais do que um movimento com ideias estéticas comuns,
de setembro de 1863, no Rio de Janeiro. Com libreto de o grupo de jovens artistas que se agrupavam tinha em co-
Os relatos dos biógrafos afirmam que o Hino era can- Salvador de Mendonça, a apresentação também faz enor- mum uma maneira de encarar a vida, mais ao estilo da
tado em toda parte em São Paulo, e Carlos Gomes foi me sucesso. Luís Guimarães Júnior considera o melhor boemia francesa também do século XIX. "Scapigliatura"
reconhecido como o maestro dos acadêmicos e do povo. libreto até então escrito em língua portuguesa. significa viver livremente, ou seja, o movimento exaltava
a liberdade e individualismo do artista.
Com o sucesso, a música foi impressa no Rio de Janeiro Com Joanna de Flandres, o Imperador oferece uma
pelo pianista Arthur Napoleão, e as partituras passaram a ser bolsa de estudos para o aperfeiçoamento na Alemanha. O movimento procurava romper com o provincianismo
vendidas na capital paulista em lojas especializadas. Napoleão Mas graças à intervenção da imperatriz Teresa Cristina, italiano. A Itália vivia as lutas pela unificação, o equiva-
era o editor musical mais famoso da época e considerado filha do ex-rei de Nápoles, Francisco I, a bolsa é transfe- lente à revolução burguesa no país.
um exímio pianista, tendo percorrido a Europa e as Améri- rida para Milão.
cas. Segundo conta-se, Arthur Napoleão foi reconhecido e O grupo se reunia em torno da figura do intelectual
exaltado por Franz Liszt e Richard Wagner, o que mostra Já em 8 de dezembro de 1863, Antônio Carlos Gomes Antonio Ghislanzoni que era poeta, libretista, romancista,
também o que dissemos acima sobre a tradição do Brasil na parte para a Itália com uma carta de recomendação do cantor lírico e pintor. Ghislanzoni foi libretista de óperas
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como Aida, de Verdi, e para se ter uma ideia da importân- do alemão Richard Wagner. Foi esse gênio da época de Em 1892, estreia o poema coral sinfônico em quatro
cia de Gomes, foi parceiro do brasileiro em duas óperas: maior desenvolvimento da arte operística que considerou atos, Colombo, por ocasião da comemoração do aniver-
Fosca (1873) e Salvador Rosa (1874), além de trabalhos Gomes como seu sucessor. sário da América.
incompletos de parceria entre ambos.
E à parte a consideração de Verdi, que já valeria muito, Em primeiro lugar O Guarani, mas também Fosca e
Carlos Gomes não foi apenas um estrangeiro adotado fato é que Carlos Gomes fez parte desse meio de enorme Salvador Rosa, continuam fazendo turnês pelo mundo todo,
pelos artistas de Milão, foi parte daquele movimento de evolução da arte operística. com enorme sucesso. Carlos Gomes é o artista brasileiro
vanguarda que, principalmente no que diz respeito à pro- que conquistou o mundo, não como homem estrangeiro,
dução operística, era o mais avançado do mundo. Um jornal descrevia, assim, a estreia da ópera: exótico, que desperta a curiosidade do europeu, mas como
parte integrante e essencial do que foi talvez o mais im-
Participavam do movimento nomes da música como "Dezoito chamadas ao Maestro Gomes consagraram portante movimento operístico da história.
Amilcare Ponchielli, Errico Petrella, Alfredo Catalani, o sucesso de sua ópera 'Il Guarany', representada ontem
Gaetano Braga. De uma geração mais nova, aluno de de noite no Teatro Scala. E os fragorosos aplausos ofere- Ainda sobre sua importância na evolução da ópera in-
Ponchielli, Giacomo Puccini. Além de poetas, jornalistas, cidos pelo numerosíssimo e seleto auditório ao simpático ternacional, o crítico italiano Marcelo Conati conclui que:
pintores. A casa de Carlos Gomes, palacete construído jovem não eram de puro cumprimento ou cortesia mas de
pelo arquiteto também pertencente ao grupo, Giuseppe arrebatamento face às numerosas belezas que a partitura "No panorama operístico italiano dos anos setenta e oi-
Invernizzi, que ficou conhecida como Villa Brasilia, servia contém realmente... O editor Lucca concluiu contrato de tenta, excluindo-se, é claro, a figura solitária e inalcançável
inclusive como local de encontro do grupo. aquisição da partitura apenas terminado o primeiro ato." de Giuseppe Verdi, Gomes surge com Ponchielli como a
(La Lombardia, Milano, 21/03/1870). figura de maior relevo pela originalidade de idéias e perso-
nalidade de estilo: não se pode compreender plenamente
O Guarani, a estreia no Teatro Scala O sucesso da ópera, que também deve ser relacionado
à curiosidade que um jovem compositor brasileiro, falando
no seu significado histórico a fase de transição do melo-
drama romântico ao teatro musical, chamado 'naturalis-
de temas brasileiros, despertava nos europeus, é absoluto. ta', sem se fazer necessariamente referência à sua obra."

A ópera mais famosa de Carlos Gomes é justamente sua


obra de estreia na Itália, O Guarani. Embora não seja
apontada por muitos críticos como sua melhor obra, fato é
O sucesso estrondoso de O Guarani cria muita expec-
tativa para as próximas apresentações de Gomes. Esse fato
A importância de Gomes para a cultura nacional – e
no caso dele para a cultura universal – é um fato. Infeliz-
que foi e ainda é reconhecida não apenas pelo sucesso na é apontado pelos biógrafos como uma fonte de frustração, mente é escondido do povo brasileiro esse grande nome
época e na posteridade, mas também pela enorme quali- já que, embora faça obras com qualidade ainda maior, não que deveria ser profundamente estudado e conhecido.
dade e criatividade da composição. consegue igualar o sucesso de O Guarani.
Mas tudo isso só mostra como os identitários, que ten-
Lauro Rossi, quando da "prima" da ópera, em 19 de tam vandalizar a obra e a própria personalidade de Carlos
março de 1870, no Teatro Scala, afirmou: "não consta
que mestre algum colhesse em circunstância idêntica vi-
Figura de relevo Gomes, com considerações falsas e absurdas como as que
foram apontadas no início do artigo, são elementos com-
tória igual à de 'O Guarani'". Foi um arrebatamento ge- pletamente alheios e hostis às conquistas do povo brasi-
ral, por toda a Europa espalhava a notícia do sucesso do
jovem compositor. S ua próxima estreia é Fosca, cuja primeira apresenta-
ção é no Scala em 16 de fevereiro de 1873. Essa obra
é considerada por muitos como sua obra de maior quali-
leiro. A ideologia identitária, reacionária, importada dos
escritórios dos países imperialistas, presta um serviço aos
interesses estrangeiros ao tentarem desmoralizar a cultura
Diz-se que Franz Liszt saiu de Weimar para acompanhar dade. Mas o sucesso demora mais a vir. Não que a ópera nacional e as conquistas do povo.
o acontecimento e tece elogios a Carlos Gomes. O grande tenha sido um fracasso, mas a comparação com o sucesso
compositor húngaro, segundo relatos, teria afirmado que: da ópera anterior acaba empalidecendo Fosca, que fará Diferentemente do que afirmam, Carlos Gomes não era
mais sucesso na sua segunda temporada em 1878. um "elitista", mas um homem das camadas médias baixas
"Custa-me acreditar que esta ópera seja a primeira da sociedade que acabou, graças à música, conquistando
de um jovem, pois é densa de amadurecimento técni- "No seu conjunto, Fosca marca a fase de maior avanço um reconhecimento nacional e internacional. Como vi-
co, de novidades harmônicas e orquestrais e, acima de alcançado na arte por Gomes e ao mesmo tempo o ver- mos, Gomes não foi nem mesmo um acadêmico, como a
tudo, exprime tão original sensibilidade emotiva, deci- diano momento da sua efetiva inserção no vivo da evo- maioria dos artistas de sua época. Também diferente do
didamente dramática, que desafia as regras fixadas nos lução da ópera lírica italiana, representando para os seus que afirmam, ele mesmo foi, na Europa, tratado como
conservatórios e, ao mesmo tempo, as respeita superior- tempos uma das tentativas mais sérias de mediação entre um selvagem, embora tendo seu talento reconhecido. Um
mente, quando me deixa entrever uma terra longínqua, o melodrama italiano e as experiências 'ultramontanas'. artigo do jornal Gazzetta Musicale di Milano descrevia
que se apresenta a nós, europeus, como uma revelação Feitas as contas, ela constitui também o resultado artís- assim o nosso maestro, nos anos 60:
de horizontes luminosos e de tenebrosas e intermináveis tico talvez mais equilibrado e coerente obtido no teatro
florestas, através de uma sensibilidade mediterrânea en- musical do movimento da 'Scapigliatura', eu ousaria dizer "Quando Gomes anda pelas nossas ruas – sempre sozi-
solarada e de plácidos reflexos azuis de céus infinitos. mais coerente, embora menos vistoso que não aquele, por nho e absorto – dir-se-ia dele um selvagem, transportado
Eu sinto, porém, que o nacionalismo de Gomes não é muitos aspectos equívoco, conseguido por Mefistófeles, de de repente e por encanto no meio belo da nossa Milão.
premeditado; é uma necessidade, um estímulo espontâ- Boito" (Marcelo Conati, Formação e afirmação de Gomes Gomes, com o seu porte grave, parece que a cada passo
neo de seu esperto, que dá à sua música uma vida cheia no panorama da ópera italiana – Notas e considerações). suspeita um precipício, uma traição; em qualquer pes-
e flagrante de novidade tropical." E diz Sgambati – com soa, um inimigo. Esse seu porte primitivo, este seu agir
ar pensativo e de olhar faiscante, Liszt concluiu: "Este O mesmo crítico afirma, sobre a importância de Fos- espantado, e o seu olhar taciturno, chegando a parecer
Gomes fez entrar, com 'O Guarany' a nova música da ca na evolução da ópera italiana, que ela seria uma ante- sinistro, fizeram com que muitos julgassem misantropo.
sua terra nas esferas das mais belas manifestações artís- cipação do que foi, poucos anos depois, A Gioconda de Gomes não o é: tem um coração nobre e generoso; cheio
ticas da Europa." (Franz Liszt, segundo o testemunho de Ponchielli. Citando Gino Monaldi, Conati afirma: "'Com de afeto pelos amigos, de entusiasmo pela sua arte: mas
GIOVANNI SGAMBATI na Revista "Cultura", Brasília, a Gioconda chega a invasão dos sopranos dramáticos – e ama, adora, se entusiasma a seu modo: de verdadeiro
abril e junho de 1971, pp. 38 e 39). mais especialmente daqueles sopranos cheios de ímpeto e selvagem. (...) é um cavalheiro: nele tudo é nobre; mas é
de fogo que Verdi, com uma frase muito expressiva, cha- uma nobreza toda nua; uma nobreza primitiva, aboríge-
Giuseppe Verdi acompanha os ensaios de O Guarani mava prima-donas com o diabo no corpo'. Observação ne. De estatura além da média; corpulento, musculoso.
e elogia Gomes. Segundo testemunhos, Verdi considerava pertinente que no entanto se adapta com maior razão e Tem cabelos densos, encrespados, longuíssimos, rudes e
Gomes como seu sucessor. alguns anos de antecipação a Fosca" (idem). negros; sobrancelhas e bigodes espessos e negros como
o ébano; o olho inteligente, vivaz, irrequieto. De longe,
"Gino Monaldi, no seu Verdi nella vita e nell'arte (Con- Mais ainda, Fosca faria parte de uma nova fase da ópe- poder-se-ia dizer cântabro ou lusitano; de perto, jamais.
versazioni verdiane), Milão, Ricordi (1914), escreve nas pp. ra chamada "naturalista" ou "pré-verista", antecipando A cor de bronze do seu rosto; uma certa proeminên-
187-8: ‘Um compositor pelo qual Verdi teve, logo depois Carmen, de Georges Bizet, de 1875, considerada o marco cia nos malares; a pequenez dos pés e das mãos; certas
de O Guarani, uma profecia esplêndida – que depois se dessa fase. Com Fosca, Gomes é um precursor, com Pon- nódoas amarelas, com as quais são manchados os seus
confirmou foi Gomes. E isto se explica. Na música de O chielli, de uma nova geração cujo nome de maior relevo olhos; os dentes miúdos e brancos como marfim; o calo
Guarani, Verdi encontrava muito de si mesmo, pois a é Giacomo Puccini, considerado o maior compositor de dos tomadores de mate na sua língua; o olhar turvo, in-
fuga e o ímpeto do artista brasileiro lhe recordavam as ópera italiano depois de Verdi. certo, meditabundo; tudo isto te diz indubitavelmente
conciliações geniais de sua juventude. E Gomes sabia e que Gomes é um aborígene americano".
conhecia bem esta simpatia e fé do grande maestro por A próxima ópera de Gomes é Salvador Rosa (1874),
ele, e nos últimos anos, quando, depois de O Condor, lhe com grande sucesso logo na estreia, o que, contraditoria- É esse "aborígene americano", com "cabelos crespos e
sentiu dissipar-se o último sopro das suas baldas esperan- mente traduz-se numa certa decepção para o maestro, rudes", "rosto cor de bronze", esse "verdadeiro selvagem"
ças, experimentou uma amargura infinita, 'Veja – me disse já que considerava Fosca sua melhor obra. Em carta de que os identitários ignorantes chamam de "elitista". Carlos
um dia, num momento de grande desconforto –, a coisa 1878 ao amigo e escritor do romantismo brasileiro Alfredo Gomes, antes de mais nada, era um brasileiro típico, era
que mais dói é ter traído a palavra profética de Verdi... e d'Escragnolle Taunay, Gomes diz: a cara do nosso povo.
não ter podido ser o seu sucessor... Que gênio o de Verdi!
– continuava, entusiasmado – Depois de Otelo, eu não "É sempre assim, o que nada me custou, o que escre- O grande maestro morreu em 16 de setembro de 1896,
chego mais a medí-lo... Me dá medo!’". (Marcello Cona- vi apenas num momento de bom humor, causa todo esse em Belém do Pará, em decorrência de um câncer na lín-
ti, Formação e afirmação de Gomes no panorama da ópera italiana barulho ao passo que a 'Fosca' que é um trabalho sério, gua e na garganta. Em outubro, os filhos Carlos André
– Notas e considerações). consciencioso e cheio de valor, foi recebida friamente." e Ítala celebram uma missa na igreja de San Fedele, em
Milão, para os amigos, artistas e admiradores do maestro.
O elogio e a profecia não vieram de qualquer um. Em 1879, estreia Maria Tudor, com libreto de Emilio Na porta da igreja, algo que resume bem a importância
Giuseppe Verdi foi e é considerado pela maioria dos apre- Praga, com colaboração de Arrigo Boito (autor de libre- de Gomes para o Brasil e a Itália e consequentemente
ciadores e estudiosos da música como o maior composi- tos como Otello e Falstaff, de Verdi e La Gioconda, de para o mundo:
tor de óperas de todos os tempos. Para ser mais preciso, Ponchielli, entre outros). Em 27 de setembro de 1889,
havia, no século XIX, duas escolas, por assim dizer, que estreia, no Rio de Janeiro, O Escravo, uma homenagem "Ao maestro Antônio Carlos Gomes, glória do Brasil
na realidade funcionam como verdadeiros clubes com à Princesa Isabel e à abolição. De volta a Milão, em 1891 onde nasceu, honra da Itália onde educou e desenvolveu
torcedores e defensores fanáticos: a do italiano Verdi e a estreia Condor, sua última ópera. o seu gênio".
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