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A moral do Brasil

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 17 de outubro de 2013

Se você quer entender e não tem medo de perceber em que tipo de ambiente mental está
metido nesse nosso Brasil, nada melhor do que estudar um pouco a Teoria do
Desenvolvimento Moral de Lawrence Kohlberg. Enunciada pela primeira vez em 1958 e
depois muito aperfeiçoada, ela mede o grau de consciência moral dos indivíduos conforme os
valores que motivam as suas ações, numa escala que vai do simples reflexo de
autopreservação natural até o sacrifício do ego ao primado dos valores universais.
Kohlberg, que foi professor de psicologia na Faculdade de Educação em Harvard, desenvolveu
alguns testes para avaliar o desenvolvimento moral, mas os críticos responderam que isso só
media a interpretação que os indivíduos testados faziam de si mesmos, não a sua motivação
efetiva nas situações reais. Essa dificuldade pode ser neutralizada se em vez de testes
tomarmos como ponto de partida as condutas reais, discernindo, por exclusão, as motivações
que as determinaram.
Os graus admitidos por Kohlberg são seis. No mais baixo e primitivo, em que a conduta
humana faz fronteira com a dos animais, a motivação principal das ações é o medo do
castigo. É o estágio da “Obediência e Punição”. No segundo (“Individualismo e Intercâmbio”),
o indivíduo busca conscientemente a via mais eficaz para satisfazer a seus próprios
interesses e entende que às vezes a reciprocidade e a troca são vantajosas.No terceiro
(“Relações Interpessoais”), os interesses imediatos cedem lugar ao desejo de captar
simpatia, de ser aceito num grupo, de sentir que tem “amigos” e distinguir-se dos estranhos,
dos concorrentes e inimigos.
No quarto (“Manutenção da Ordem”), o indivíduo percebe que há uma ordem social acima
dos grupos e empenha-se em obedecer as leis, em cumprir suas obrigações. No quinto
(“Contrato Social e Direitos Individuais”), ele se torna sensível à diversidade de opiniões e
entende a ordem social não como imperativo mecânico, mas como um acordo complexo
necessário à convivência pacífica entre os divergentes.
No sexto e último (“Princípios Universais”), ele busca orientar sua conduta por valores
universais, mesmo quando estes entram em conflito com os seus interesses pessoais, com a
vontade dos vários grupos ou com a ordem social presente.
Essas seis motivações refletem três níveis de moralidade: os dois primeiros expressam a
“moralidade pré-convencional”; os dois intermediários, a “moralidade convencional”, e os
dois últimos, a “moralidade pós-convencional”.
Se não atentamos para os discursos, mas para as escolhas reais que as pessoas fa zem na
vida, não é preciso observar muito para notar que os indivíduos que nos governam, bem
como os seus porta-vozes na mídia e nas universidades, não passam do terceiro estágio, o
mais baixo da moralidade convencional, em que a identidade, a coesão e a solidariedade
interna do grupo prevalecem sobre a ordem social, as leis, os direitos dos adversários e
quaisquer valores universais que se possa conceber (e que desde esse nível de consciência
são mesmo inconcebíveis, embora nada impeça que sua linguagem seja macaqueada como
camuflagem dos desejos do grupo).
Duas condutas típicas atestam-no acima de qualquer dúvida possível. De um lado, a
mobilização instantânea e geral em favor dos condenados do Mensalão. O instinto de
autodefesa grupal predominou aí de maneira tão ostensiva e tão pública sobre as exigências
da lei e da ordem, que até pessoas identificadas ideologicamente ao partido governante se
sentiram escandalizadas diante dessa conduta.
De outro lado, não havendo nenhum movimento político “de direita” que se oponha ao grupo
dominante, este dirige seus ataques contra meros indivíduos e movimentos de opinião sem a
menor expressão política, fingindo e depois até sentindo ver neles uma ameaça eleitoral ou o
perigo de um golpe de Estado. Aí o instinto de autodefesa grupal assume as dimensões de
uma fantasia persecutória que se traduz na necessidade de calar por todos os meios qualquer
voz divergente, por mais débil e apolítica que seja.
Também não é preciso nenhum estudo especial para mostrar que essa conduta, normal na
adolescência, quando a solidariedade do grupo é uma etapa indispensável na consolidação da
identidade pessoal, não é de maneira alguma aceitável em cidadãos adultos investidos de
prestígio, autoridade e poder de mando. Aí ela passa a caracterizar precisamente a
associação mafiosa, a solidariedade no crime.
É evidente que, numa sociedade onde essa é a mentalidade do grupo dominante, os níveis
superiores de consciência moral (pós-convencionais) se tornam cada vez mais abstratos e
inapreensíveis, de modo que o máximo de moralidade que se concebe é o quarto grau, o
apego à lei e à ordem. Os indivíduos cuja conduta evidencia essa motivação tornam-se então
emblemas do que de mais alto e sublime uma sociedade moralmente degradada pode
imaginar, e são quase beatificados. O ministro Joaquim Barbosa é o exemplo típico.
Os dois graus superiores da escala são exemplificados por um número tão reduzido de
pessoas, que já não têm nenhuma presença ou ação na sociedade e passam a existir apenas
em versão caricatural, como fornecedores de chavões para legitimar e embelezar as condutas
mais baixas.
A autopreservação paranooica do grupo dominante envolve-se com frequência na linguagem
dos “direitos humanos” (quinto grau), e qualquer imbecil que tenha lido a Bíblia já sai usando
a Palavra de Deus (sexto grau) como porrete para atemorizar os estranhos e impor a
hegemonia do grupo “fiel” sobre os “infiéis” e “hereges”.
Isso, e nada mais que isso, é a moralidade nacional.

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