Você está na página 1de 106

O Estado da Internet

2021
O Estado da Internet 2021

Edição
Pedro Fonseca

Design Gráfico
Sara Dias

Produção
Conclusão das Letras
Versão online em TICtank.pt

Data de Publicação
Março de 2021

Patrocínio
03 1 | A procura de uma nova Internet
Pedro Fonseca

10 2 | A verdadeira novidade da ARPANET


Sinclair Target

20 3 | Uma visão do futuro dos nossos dados: bem-vindo à era das coligações de dados
Matt Prewitt

28 4 | Privacidade não é propriedade


Cory Doctorow

31 5 | Desfinanciar a Big Tech, refinanciar a comunidade


The Tech Otherwise Collective

45 6 | Desgovernar?
Hubert Guillaud

51 7 | Adopção de carteiras digitais e de smartphones vai descentralizar a Internet


Doug Antin

57 8 | Moderação descentralizada de conteúdos


Martin Kleppmann

63 9 | Shhhh... Combatendo a cacofonia de conteúdos com bibliotecários


Joan Donovan

69 10 | Iria notar se as notícias falsas mudassem o seu comportamento?


Zach Bastick

75 11 | Jornalismo digital e regulação: propriedade e controlo


Victor Pickard

92 12 | Proposta de um serviço de Internet: a "homepage" da eternidade


Neil J. A. Sloane

95 13 | "Chatbots" que ressuscitam os mortos: uma tecnologia "perturbadora"


Edina Harbinja, Lilian Edwards e Marisa McVey

98 14 | O estado da Internet em Portugal


O Estado da Internet 2021

A procura de uma nova Internet

Pedro Fonseca, jornalista

Em quase 30 anos, a percentagem de utilizadores da Internet em Portugal passou dos


0,1% em 1991 para 75,3% em 2019, segundo a International Telecommunication Union [1].

Num futuro incerto, poderemos chegar ao limite do crescimento destes números. Não
se irá atingir os 100% pelo inevitável desinteresse de uns e a desistência de outros,
cansados do mundo online. Mas isso não é expectável nos próximos anos devido à
oferta generalizada do que cada vez mais nos liga á Internet.

Várias previsões apontam para uma rede de interligações entre humanos e


dispositivos, com os seus dados mais pessoais inseridos em minúsculos sensores que
circulam pelo corpo humano, num ciclo de re-alimentação apenas limitado pela vida
útil de corpos e máquinas.

Na sua forma tradicional, cerca de 66% da população mundial deve ter acesso à
Internet em 2023, antecipa a Cisco [2]. Serão quase 5,3 mil milhões de pessoas,
quando em 2018 se rondava os 4 mil milhões (51% da população).

Haverá forças positivas que podem acelerar este crescimento, como a adopção de
carteiras digitais e da distribuição de dados por satélite para smartphones em zonas
recônditas, como explica Doug Antin neste livro.

Hardware e software vão andar juntos neste percurso, cada um a puxar pelo outro. Os
smartphones terão um número maior de aplicações, com o 5G nas telecomunicações
a potenciar novos usos mais acelerados. Os dispositivos móveis serão apenas uma
parte dessa tendência, com mais de 70% da população global a ter conectividade
móvel daqui a dois anos, embora apenas 10% em ligações 5G.

"O número de dispositivos conectados às redes IP será mais de três vezes a população
global em 2023. Haverá 3,6 dispositivos em rede per capita em 2023, contra 2,4 dispo-
sitivos em rede per capita em 2018. Haverá 29,3 mil milhões de dispositivos em rede
em 2023, perante os 18,4 mil milhões em 2018", antecipa o mesmo estudo da Cisco.

| 03
O Estado da Internet 2021

As ligações máquina-a-máquina (M2M) A percentagem de adultos americanos que


serão metade do total de dispositivos "afirmam assistir a televisão por cabo ou
conectados em 2023, atingindo as 14,7 mil satélite caiu de 76% em 2015 para 56% este
milhões num volume que terá um impacto ano", segundo um estudo do Pew Research
significativo na infra-estrutura física da Center [4]. Cerca de 71% dos que não usam
Internet. serviços de TV (por cabo ou satélite) alegam
ter a alternativa do online, enquanto 69%
Nas ligações M2M, onde se insere a aponta o elevado custo dos serviços de cabo
"buzzword" da Internet of Things (IoT ou e satélite e 45% não vê normalmente
Internet das Coisas), as utilizações nas televisão.
"casas conectadas" estarão em maioria (48%)
e as aplicações em veículos terão o maior Até se chegar à Internet actual, decorreram
crescimento (30% entre 2018–2023). três etapas, nota Ben Thompson [5].

Um longo percurso de meio século A primeira, da Internet 1.0, foi focada no


desenvolvimento tecnológico (TCP/IP, World
A existência da Internet foi financiada "pelos Wide Web, email, DNS, HTTP ou browsers
militares dos EUA no auge da Guerra Fria e gráficos como o Mosaic) e na infra-estrutura
privatizada na América corporativa no auge de telecomunicações. "Os sites Web
da hegemonia neoliberal anglófona", nos proliferaram rapidamente, assim como os
anos Reagan, H.W. Bush e Clinton, escreve a sonhos sobre o que essa nova tecnologia
revista The Baffler [3]. Sinclair Target ilustra poderia possibilitar. Essa mania levou à
um episódio desses primórdios no capítulo bolha das 'dot com'" não sem antes se terem
"A verdadeira novidade da ARPANET". conseguido redes com bons débitos de
dados.
"A Internet é uma coisa muito americana,
tanto nas suas origens concretas como nas A etapa 2.0 foi a económica, com o ponto de
regras que a governam", recorda a revista. partida dado pela criação da Google em 1998
Ou na distribuição de conteúdos a nível mas principalmente pela sua entrada em
global - principalmente pela Google, bolsa seis anos depois. Esta movimentação
Amazon, Facebook, Netflix e Microsoft que, "sustenta a Teoria da Agregação: quando os
juntas, são "responsáveis por dois terços de serviços competem sem restrições
todo o tráfego mundial da Internet em 'horá- geográficas ou custos marginais, o domínio é
rio nobre'". alcançado pelo controlo da procura, não da
oferta, e os vencedores ficam com a maioria".
O termo adaptado das emissões televisivas é
pertinente quando o utilizador está cada vez Ou não. "Apesar da sua lógica económica
mais a olhar para ecrãs do smartphone ou baseada na tecnologia que sustenta a
computador e muito menos para o televisor. Internet, não é o estado final" e "muito pouco

A procura de uma nova Internet | 04


O Estado da Internet 2021

está resolvido". A Internet 3.0 pode ser a da "Este exemplo mostra que há certos aspectos
intervenção política. da sociedade em que o online não deve ser o
novo normal", sintetizou Caitriona
"Após décadas de desenvolvimento da Fitzgerald, do Electronic Privacy Information
Internet e da compreensão do seu potencial Center.
económico, o mundo inteiro está a acordar
para a realidade de que a Internet não é E depois da Internet of Things?
simplesmente um novo meio, mas um novo
criador da realidade". Neste cenário, a O online será o novo normal mas não como o
intervenção política pode impor-se do topo conhecemos.
para acalmar as bases de cidadãos cansados
da desinformação, da falta da sempre Após a IoT, perspectiva-se uma Internet of
prometida e nunca prometida privacidade, Materials (IoM) ou uma Internet of Bodies
da fadiga tecnológica e da sua obsolescência (IoB). No primeiro caso, trata-se de "imaginar
programada. uma nova geração de dispositivos de compu-
tação, materiais de computação, que são
A pandemia agilizou desenvolvimentos auto-sustentáveis, fabricados por baixo
tecnológicos expectáveis na sociedade custo em escala e exibem factores de forma
apenas num futuro sem data. Generalizou-se que são facilmente incorporados nos
a atenção aos dados pessoais requeridos nas ambientes quotidianos. Esses materiais
relações de saúde e laborais, a vigilância dos podem permitir que objectos comuns, como
empregadores e o "capitalismo da vigilância", paredes, carpetes, móveis, jóias e chávenas
a descurada cibersegurança. façam coisas computacionais sem se parece-
rem com os dispositivos computacionais de
Os enviesamentos dos algoritmos e da hoje", refere-se na introdução ao projecto de
inteligência artificial foram notícia e investigação SATURN [6].
raramente pelas melhores razões, apesar do
que podem fazer de positivo. E surgiram Estes materiais apresentam três grandes
novas maleitas, como a fadiga do Zoom e das desafios, nomeadamente a necessidade de
vídeo-reuniões em geral, com a respectiva ter um consumo energético auto-suficiente, o
escassez de segurança a provocar uma ainda seu custo ser acessível e o factor de forma,
maior ansiedade. devendo ser flexíveis para facilmente serem
integrados em objectos e superfícies.
Um caso limite ocorreu no estado da Virginia
(EUA), em que uma mulher se recusou a Relativamente à Internet of Bodies (ou
depor por videoconferência em tribunal após Internet dos Corpos), é pensar em
ter acusado um terapeuta de violação. Ela "comprimidos inteligentes transmitindo
temia que imagens suas pudessem ser grava- informações de dentro do seu corpo; camas
das e publicadas sem o seu consentimento. inteligentes que podem monitorizar a sua

A procura de uma nova Internet | 05


O Estado da Internet 2021

frequência cardíaca e respiração; até mesmo Uma nova geração de políticas/os


roupas inteligentes que podem detectar a
sua temperatura corporal" e interagir com o "Os construtores do novo mundo devem estar
termostato inteligente doméstico para cientes de que estão a construir uma
acertar uma nova temperatura mais sociedade", lia-se na apresentação do
confortável, explicam investigadores da pioneiro Tim Berners-Lee na primeira
RAND [7]. conferência internacional sobre a World
Wide Web, em Maio de 1994.
Junte-se a esta panóplia de dispositivos os
"trackers" de exercício físico, os registos Menos de dois anos depois, em Fevereiro de
electrónicos de saúde, pâncreas artificiais 1996, o letrista da banda Grateful Dead e
(para ajudar os diabéticos a controlar os ciberlibertário John Perry Barlow publicou
seus níveis de açúcar no sangue), implantes online a "Declaração de Independência do
cerebrais para controlar membros prostéti- Ciberespaço".
cos, "stents" inteligentes para detectar
coágulos sanguíneos, implantes cocleares "Além do lirismo desgrenhado do seu texto e
para a audição e, no futuro, implantes ocula- do contexto da publicação (a luta contra o
res para reparar ou melhorar a visão. 'Telecommunications Act'), Barlow também
entendeu que se tratava fundamentalmente
Todos eles podem ser úteis, até pela rápida de uma sociedade que se construía diante
comunicação com especialistas. E todos eles dos nossos olhos", lembra o professor de
podem ser perigosos quando podem ser ciências da informação e comunicação
"hackeados" mesmo dentro do corpo Olivier Ertzscheid [9].
humano. "Precisamos realmente de pensar
sobre as implicações da privacidade e da O que sucedeu entretanto? Ertzscheid cita a
segurança dos dispositivos que vivem socióloga Zeynep Tufekci que, em 2017,
connosco", apontam os investigadores. explicou [10] como "construímos uma disto-
pia apenas para levar as pessoas a clicar na
“Tem havido muito trabalho sobre como publicidade", um "novo mundo" onde se
precisamos de regular essa nova Internet esqueceu "ou cinicamente aceitou não consi-
dos Corpos”, considera Mary Lee, derar que por trás das arquitecturas técni-
responsável do estudo. cas enxameava uma sociedade inteira, e que
as escolhas tecnológicas e económicas
“Queríamos delinear alguns dos benefícios também moldariam esta sociedade".
nos quais muitas pessoas podem não ter pen-
sado. Estas tecnologias continuarão a cres- Chegados à segunda década do século XXI,
cer em popularidade, pelo que precisamos de com a promessa bastante sucedida de ter o
nos adiantar às questões políticas e ter certe- ser humano a comunicar do Afeganistão ao
zas de obter um equilíbrio adequado". Zimbabué, que mundo online temos?

A procura de uma nova Internet | 06


O Estado da Internet 2021

No mundo ocidental, há uma disponibilidade da publicação, o que leva as redes sociais a


satisfatória de conteúdos, a débitos aceitá- quererem ser vistas como plataformas
veis, e um amontoado de problemas ao nível tecnológicas e não como empresas de media,
da legislação não aplicada e de políticas cuja legislação é mais apertada e restritiva.
sobre certos conteúdos que circulam na
Internet. Os diagnósticos são inúmeros e 4. ...e pensar além dos EUA e da Europa
variados, as soluções mais difíceis de efecti-
var - nomeadamente pelas empresas das A interacção entre diferentes continentes
redes sociais. continua a ser episódica, embora se
entendam as limitações linguísticas que vão
No início do ano, o jornal The Guardian listou tender a aumentar com mais utilizadores e
uma dezena de ideias para "reconstruir uma mais dialectos e a força do mandarim. As
Internet partida" [11], onde aborda alguns fronteiras geográficas físicas podem evoluir
desses problemas: para territórios linguísticos online e os
“jardins digitais” temáticos para “nações de
1. Contratar 10 mil bibliotecários para a língua única”.
Internet
5. Proteger os jornalistas e investigadores que
Joan Donovan, no texto "Shhhh... Combaten- estudam as plataformas tecnológicas
do a cacofonia de conteúdos com bibliotecá-
rios", refere como "as empresas de media No capítulo "Jornalismo digital e regulação:
social podem enfrentar o desafio contratan- propriedade e controlo", Victor Pickard
do muitos bibliotecários para construir um retrata o estado do jornalismo e das
modelo de curadoria de conteúdo que não empresas de media, cuja sustentabilidade
dependa tanto da moderação reactiva". financeira se reflecte na qualidade do que é
impresso ou colocado online.
2. Financiar a formação para professores, os
"primeiros respondentes informativos" Jornalistas e investigadores necessitam de
informação fiável para divulgar ou trabalhar.
Diferentes programas de literacias mediáti- Nos projectos de investigação, é difícil obter
ca, tecnológica ou para os media não pare- dados fiáveis de pessoas que são pagas pelas
cem ter surtido grandes efeitos, mas não há plataformas.
razões para suspender estes programas.
6. Alterar os algoritmos de recomendação para
3. Compreender as limitações da Primeira promover informações precisas - e
Emenda... recompensar aqueles que lutam contra os
danos online
Trata-se de uma ampla lei nos EUA que
protege a liberdade de expressão mas não a 7. Implementar regras rígidas contra o assédio,

A procura de uma nova Internet | 07


O Estado da Internet 2021

discurso de ódio e outros danos online de literacia em diferentes camadas da popu-


lação e pela definição intrínseca do que é
Abordagens diversas sobre estas questões falso – afinal, quem pode classificar a verda-
podem ser lidas nos capítulos "Moderação de ou a mentira? O problema tem outras
descentralizada de conteúdos" (de Martin vertentes, nomeadamente com as “fake
Kleppmann), no referido "Shhhh..." de Joan news” e os responsáveis da validação de
Donovan ou em "Iria notar se as notícias factos ("fact checking") que armazenam e
falsas mudassem o seu comportamento?", do disponibilizam ao público grandes quantida-
autor Zach Bastick. des de desinformação.

8. Aplicar as regras que as plataformas já têm E o futuro?

Há regras instituídas por força legislativa ou Será possível um outro futuro no domínio
mero marketing mas ignoradas em muitos digital - uma Internet mais ecológica e
países e em plataformas com muitos realmente social?
utilizadores. No caso da obscura gestão dos
dados pessoais, Matt Prewitt no capítulo "As promessas de uma tecnologia digital
"Uma visão do futuro dos nossos dados" e mais justa, mais fraterna, mais responsável,
Cory Doctorow em "Privacidade não é mais equitativa, mais ética, mais inclusiva,
propriedade" revelam abordagens mais democrática, mais frugal... nunca
interessantes desta temática. deixaram de se repetir à medida que nos
afastamos dela a cada dia. Como as
9. Abordar a "exclusão arquitectada" das repetidas desculpas de Mark Zuckerberg, o
comunidades marginalizadas das plataformas digital não pára de prometer que amanhã se
vai humanizar, quando na verdade ele não
O Tech Otherwise Collective aponta novas deixa, de escândalo em escândalo, de se
visões nesse sentido no capítulo revelar a cada dia ainda menos humano do
"Desfinanciar a Big Tech, refinanciar a que ontem", nota Hubert Guillaud [12], cujo
comunidade". texto "Desgovernar?" é aqui publicado.

10. Reformar o escudo da responsabilidade da Num evento em Março de 1998, o autor Neil
tecnologia para criar responsabilidade pela Postman concluiu nas suas "cinco ideias
conduta - não pelo discurso - dos utilizadores sobre mudança tecnológica" [13]:

Um pequeno exemplo desta questão prende- 1. "Pagamos sempre um preço pela


-se com a partilha de mensagens racistas ou tecnologia; quanto maior for a tecnologia,
de desinformação sobre o Covid. Há quem maior será o preço.
defenda que esta distribuição deve ser pena-
lizada mas outros argumentam com a falta 2. Vão existir sempre vencedores e derrotados,

A procura de uma nova Internet | 08


O Estado da Internet 2021

__________
e os vencedores tentam sempre persuadir os
perdedores de que são, na realidade, Referências
vencedores.
[1] Individuals using the Internet - Portugal
3. Existe em qualquer grande tecnologia um [2] Cisco Annual Internet Report (2018–2023) White
preconceito epistemológico, político ou Paper
[3] Why the internet remains a tool of American
social. Às vezes, esse enviesamento é muito hegemony
vantajoso para nós. Noutros casos, não é. A [4] Cable and satellite TV use has dropped
imprensa aniquilou a tradição oral; a telegra- dramatically in the U.S. since 2015
fia eliminou o espaço; a televisão humilhou a [5] Internet 3.0 and the Beginning of (Tech) History
[6] SATURN: An Introduction to the Internet of
palavra; o computador, talvez, irá degradar a Materials
vida da comunidade. E assim por diante. [7] Are We Ready for the Internet of Bodies?
[8] A Declaration of the Independence of Cyberspace
4. A mudança tecnológica não é adictiva; é [9] 1994. Retour vers le futur du web
[10] Estamos a criar uma distopia apenas para fazer
ecológica, ou seja, muda tudo e é, assim, as pessoas clicar em anúncios
importante demais para ser deixada [11] 10 ideas to rebuild our broken internet
inteiramente nas mãos de Bill Gates. [12] "De l’alternumérisme: d’autres numériques
sont-ils possibles?"
[13] Five Things We Need to Know About Technological
5. A tecnologia tende a tornar-se mítica; isto Change
é, percebida como parte da ordem natural
das coisas e, portanto, tende a controlar
mais as nossas vidas do que é bom para nós".

Postman explica essa ideia final de que qual-


quer "media tende a tornar-se mítica. Uso
essa palavra no sentido em que foi usada
pelo crítico literário francês Roland Barthes.
Ele usou a palavra 'mito' para se referir a
uma tendência comum de pensar nas nossas
criações tecnológicas como se fossem dadas
por Deus, como se fossem parte da ordem
natural das coisas".

Não são, são simplesmente humanas,


passíveis de serem remendadas, melhoradas
e aperfeiçoadas. É este o estado da Internet
em 2021.

A procura de uma nova Internet | 09


O Estado da Internet 2021

A verdadeira novidade da ARPANET

Sinclair Target, autor do blogue 0b10 Two-Bit History

Se fizer uma pesquisa de imagens pela palavra "ARPANET", encontrará muitos mapas
que mostram como a rede de investigação do governo se expandiu continuamente em
todo o país no final dos anos 60 e início dos anos 70. Eu suponho que a maioria das
pessoas que lê ou ouve sobre a ARPANET pela primeira vez encontra um desses
mapas.

Obviamente, os mapas são interessantes - é difícil acreditar que antes havia tão
poucos computadores em rede que as suas localizações pudessem ser transmitidas
com o que é realmente uma cartografia bastante "lo-fi". (Estamos a falar de diagramas
para retroprojectores na década de 1960. Percebe do que falo.) Mas o problema com os

| 10
O Estado da Internet 2021

mapas, desenhados como são com linhas em um enorme espaço oval para eventos,
negrito que se estendem por todo o conhecido como International Ballroom, que
continente, é que reforçam a ideia de que a foi durante muitos anos o maior salão de
maior conquista da ARPANET foi ligar baile sem pilares em [Washington D.C.]. Em
computadores através das vastas distâncias 1967, os Doors deram lá um concerto. Em
dos Estados Unidos pela primeira vez. 1968, Jimi Hendrix também o fez. Em 1972,
um acto um pouco mais tranquilo tomou
Actualmente, a Internet é a linha da vida que conta do salão para organizar a primeira
nos mantém presos uns aos outros, mesmo International Conference on Computing
quando um vírus transportado pelo ar nos Communication (ICCC), onde um projecto de
mantém trancados em casa. Assim é fácil investigação promissor conhecido como
imaginar que, se a ARPANET foi o primeiro ARPANET foi demonstrado publicamente
rascunho da Internet, então certamente que pela primeira vez.
o mundo antes estava totalmente
desconectado, tal como estaríamos sem a A ICCC de 1972, que ocorreu de 24 a 26 de
internet hoje, certo? A ARPANET deve ter outubro, contou com cerca de 800 pessoas.
sido um grande negócio porque ligava Reuniu todos os principais investigadores no
pessoas por meio de computadores quando nascente campo das redes de computadores.
tal não era antes possível. De acordo com o pioneiro da Internet Bob
Kahn, "se alguém tivesse lançado uma bomba
Essa visão não revela a história muito bem. E no Washington Hilton, teria destruído quase
também desvaloriza o que tornou a toda a comunidade das redes dos EUA
ARPANET numa inovação. naquele momento".

A estreia Nem todos os participantes eram cientistas da


computação, no entanto. Um anúncio para a
O Washington Hilton fica perto do topo de conferência afirmou que seria "focada no utiliza-
uma pequena elevação a quase 2,5 dor" e direccionada para "advogados, médicos,
quilómetros a nordeste do National Mall. As economistas e homens do governo, bem como
suas duas fachadas modernas pintadas de engenheiros e comunicadores". Algumas das
branco estendem-se em amplos sessões da conferência foram altamente técni-
semicírculos como as asas de um pássaro. O cas, como a intitulada "Data Network Design
New York Times, relatando a conclusão do Problems I" e a sessão subsequente "Data
hotel em 1965, observou que o edifício se Network Design Problems II". Mas a maioria das
parece "com uma gaivota empoleirada num sessões foi, como prometido, focada nos poten-
ninho no topo de uma colina". ciais impactos sociais e económicos das redes
de computadores. Uma sessão, hoje assustado-
O hotel esconde a sua característica mais ramente presciente, procurou fomentar uma
famosa no subsolo. Por baixo da garagem fica discussão sobre como o sistema jurídico

A verdadeira novidade da ARPANET | 11


O Estado da Internet 2021

poderia agir pró-activamente "para salva- conferência conforme se aproximavam do


guardar o direito à privacidade numa base de labirinto de fios e terminais. Os cenários
dados de computador". pretendiam provar que a nova tecnologia
funcionava, mas também que era útil, porque
A demonstração da ARPANET foi planeada até então a ARPANET era "um sistema de
como uma espécie de atracção lateral para rodovias sem carros", e os seus financiado-
os participantes. Entre as sessões, que res do Pentágono esperavam que uma
foram realizadas no International Ballroom demonstração pública despertasse um
ou noutro lugar no nível inferior do hotel, os maior interesse na rede.
participantes podiam livremente circular
pelo Georgetown Ballroom (um salão de Os cenários mostravam assim uma selecção
baile/sala de conferências mais pequena no diversificada de software que podia ser
corredor da maior), onde estavam 40 acedida pela ARPANET: havia intérpretes de
terminais de uma variedade de fabricantes linguagem de programação, um para uma
configurados para aceder à ARPANET. Eles linguagem baseada em Lisp no MIT e outro
eram terminais "burros" - manipulavam para um ambiente de computação numérica
apenas entradas e saídas e não podiam fazer chamado Speakeasy hospedado na UCLA
computação por conta própria. (Na verdade, [Universidade da Califórnia em Los Angeles];
em 1972, é provável que todos esses havia jogos, incluindo um programa de
terminais fossem terminais de impressos, ou xadrez e uma implementação do Game of
seja, máquinas de teletipo.) Os terminais Life de Conway; e - talvez o mais popular
estavam todos ligados a um computador entre os participantes da conferência -
conhecido como Terminal Interface Message vários programas de chat de inteligência
Processor ou TIP, que estava numa artificial (IA), incluindo o famoso programa
plataforma elevada no meio da sala. O TIP de chat ELIZA desenvolvido no MIT por
era uma espécie de roteador ("router") Joseph Weizenbaum.
arcaico especialmente concebido para ligar
terminais "burros" à ARPANET. Usando os Os investigadores que prepararam os cená-
terminais e o TIP, os participantes da ICCC rios tiveram o cuidado de listar cada comando
podiam experimentar ligar-se e aceder a que os utilizadores deviam inserir nos seus
alguns dos computadores nos 29 "host sites" terminais. Isso foi especialmente importante
que eram então a ARPANET. porque a sequência de comandos usados
para se ligar a qualquer "host" da ARPANET
Para exibir as capacidades da rede, os podia variar dependendo do "host" em ques-
investigadores nos "host sites" em todo o país tão. Para experimentar o programa de xadrez
colaboraram para preparar 19 "cenários" de IA hospedado no minicomputador PDP-10
simples para os utilizadores experimentarem. do Artificial Intelligence Laboratory do MIT,
Esses cenários foram compilados num por exemplo, os participantes da conferência
manual, entregue aos participantes da foram instruídos a inserir o seguinte:

A verdadeira novidade da ARPANET | 12


O Estado da Internet 2021

[LF], [SP] e [CR] abaixo representavam as @r [LF] // Reinicializa o TIP


teclas de avanço de linha, espaço e retorno, @t [SP] o [SP] L [LF] // Configuração
respectivamente. Expliquei cada comando "Transmit on line feed"
após //, mas esta sintaxe não foi usada para @i [SP] L [LF] // Configuração"Insert line
as anotações no original. feed", i.e., enviar avanço de linha com
cada retorno
@r [LF] // Reinicializa o TIP @L [SP] 65 [LF] // Ligar ao "host" 65
@e [SP] r [LF] // Configuração "Echo tso // Ligar ao sistema IBM Time-Sharing
remote", "host" ecoa caracteres em vez do Option
TIP logon [SP] icX [CR] // Ligar com o nome do
@L [SP] 134 [LF] // Ligar ao "host" 134 utilizador, em que "X" é um dígito
:login [SP] iccXXX [CR] // Fazer login no livremente escolhido
sistema do AI Lab do MIT, onde "XXX" devem iccc [CR] // Esta é a "password" (tão
ser as iniciais do utilizador segura!)
:chess [CR] // Iniciar o programa de xadrez speakez [CR] // Iniciar o Speakeasy

Se os participantes da conferência conse- A execução bem-sucedida deste desafio deu


guissem inserir esses comandos com suces- aos participantes o poder de multiplicar,
so, a sua recompensa seria a oportunidade de transpor e fazer outras operações em
brincar com algum do software de xadrez matrizes tão rapidamente quanto pudessem
mais avançado disponível na altura, com o inseri-las no seu terminal:
"layout" do tabuleiro a ser representado :+! a=m*transpose(m);a [CR]
assim: :+! eigenvals(a) [CR]

BR BN BB BQ BK BB BN BR Muitos dos participantes ficaram impressio-


BP BP BP BP ** BP BP BP nados com a demonstração, mas não pelas
-- ** -- ** -- ** -- ** razões que nós, do ponto de vista actual, pode-
** -- ** -- BP -- ** -- ríamos supor. A peça-chave do contexto difícil
-- ** -- ** WP ** -- ** de recordar hoje é que, em 1972, poder usar
** -- ** -- ** -- ** -- um computador remotamente, mesmo de uma
WP WP WP WP -- WP WP WP cidade diferente, não era novidade. Dispositi-
WR WN WB WQ WK WB WN WR vos de teletipo já eram usados para falar com
computadores distantes há décadas. Quase
Pelo contrário, para se ligarem ao IBM cinco anos antes da ICCC, Bill Gates estava
System/360 da UCLA e executar o ambiente numa escola secundária de Seattle a usar um
de computação numérica Speakeasy, os teletipo para executar os seus primeiros
participantes da conferência tinham que programas BASIC num computador General
inserir o seguinte: Electric instalado noutro local da cidade.
Ligar-se simplesmente a um computador

A verdadeira novidade da ARPANET | 13


O Estado da Internet 2021

"host" e executar alguns comandos ou jogar O campo do número do "host", como se pode
um jogo baseado em texto era normal. O ver, não tem espaço para mais de três dígitos
software em exibição era muito bom, mas os (ha!). Outros subcomandos NETWRK
dois cenários sobre os quais falei podiam permitiam que os utilizadores vissem o
aparentemente ter sido experimentados sem resumo dos resultados da pesquisa num
passar pela ARPANET. período histórico mais longo ou
examinassem o registo dos resultados da
Mas, claro, algo novo estava a acontecer. Os pesquisa para um único "host".
advogados, decisores políticos e economistas
da ICCC podem ter ficado encantados com o O segundo desses cenários apresentava um
programa de xadrez inteligente e os bots de software chamado SRI-ARC Online System
chat, mas os especialistas em redes estavam desenvolvido em Stanford. Era um software
mais interessados em dois outros cenários sofisticado com muitas funcionalidades (era
que fizeram um trabalho melhor a demonstrar o sistema de software que Douglas Engelbart
o que o projecto ARPANET tinha alcançado. demonstrou em "Mother of All Demos"), mas
uma das muitas coisas que podia fazer era
O primeiro desses cenários envolveu um usar o que era essencialmente um serviço de
programa chamado NETWRK em execução no armazenamento de ficheiros executado no
sistema operativo ITS do MIT. O comando "host" da UCSB [Universidade da Califórnia
NETWRK foi o ponto de entrada para vários em Santa Barbara]. De um terminal no
subcomandos que podiam reportar vários Washington Hilton, os participantes da
aspectos do estado operacional da ARPANET. O conferência podiam copiar um ficheiro
subcomando SURVEY revelava quais os "hosts" criado em Stanford para o "host" na UCSB
na rede que estavam a funcionar e disponíveis executando simplesmente um comando de
(todos cabiam numa única lista), enquanto o cópia e respondendo a algumas das
subcomando SUMMARY.OF.SURVEY agregava perguntas do computador:
os resultados das execuções anteriores de
SURVEY para revelar uma "percentagem de [ESC], [SP] e [CR] abaixo representam as teclas
aumento" para cada "host" e também durante de "escape", espaço e retorno, respectivamente.
quanto tempo, em média, cada "host" levava a As palavras entre parênteses são "prompts"
responder às mensagens. O resultado do impressos pelo computador. A tecla "escape"
subcomando SUMMARY.OF.SURVEY era uma é usada para preencher automaticamente o
tabela parecida com esta: nome do ficheiro na terceira linha. O ficheiro
que está aqui a ser copiado é chamado de
--HOST-- -#- -%-UP- -RESP-
<system>sample.txt;1, em que o último
UCLA-NMC 001 097% 00.80
valor indica o número da versão do ficheiro e
SRI-ARC 002 068% 01.23
<system> indica a directoria. Esta era uma
UCSB-75 003 059% 00.63
convenção para nomes de ficheiros usados
...
pelo sistema operativo TENEX.

A verdadeira novidade da ARPANET | 14


O Estado da Internet 2021

@copy a comunicar remotamente com outro


(TO/FROM UCSB) to software, algo nunca visto.
(FILE) <system>sample [ESC] .TXT;1 [CR]
(CREATE/REPLACE) create Para entender realmente por que esse aspec-
to do projeto ARPANET era importante e não
Estes dois cenários podem não parecer muito os fios através do país, uma coisa de ligação
diferentes dos dois primeiros, mas eram física que os mapas de "host" sugerem (os fios
notáveis. Eles eram notáveis porque eram linhas de telefone alugadas de qualquer
deixaram claro que, na ARPANET, os maneira e já lá estavam!), considere que,
humanos podiam comunicar-se com os antes do início do projeto ARPANET em 1966,
computadores, mas os computadores os escritórios da ARPA no Pentágono tinham
também podiam comunicar entre si. Os uma sala de terminais. Dentro dela, havia
resultados SURVEY recolhidos no MIT não três terminais. Cada um ligado a um compu-
foram recolhidos por um humano que se liga tador diferente; um estava no MIT, outro
regularmente a cada máquina para verificar estava na UC Berkeley e ainda outro em
se estava a funcionar - eles foram recolhidos Santa Monica. Era conveniente para a equipa
por um programa que sabia como falar com da ARPA poder usar esses três computado-
as outras máquinas na rede. Da mesma res, mesmo em Washington DC. Mas o que
forma, a transferência de ficheiros de era inconveniente para eles era que tinham
Stanford para UCSB não envolveu nenhum de comprar e manter terminais de três fabri-
humano sentado nos terminais de Stanford ou cantes diferentes, lembrarem-se de três
da UCSB - o utilizador num terminal em procedimentos de "login" diferentes e familia-
Washington DC foi capaz de fazer os dois rizar-se com três ambientes de computação
computadores comunicarem invocando diferentes para usar os computadores. Os
simplesmente um pedaço de software. Para terminais podiam estar próximos uns dos
mais, não importava em qual dos 40 terminais outros, mas eram meramente extensões dos
do Ballroom se sentava, porque poderia sistemas de computação "host" na outra
visualizar as estatísticas de monitorização de extremidade do fio e operavam de forma tão
rede do MIT ou guardar ficheiros na UCSB diferente quanto os computadores. A comuni-
usando qualquer um dos terminais com cação com um computador distante era possí-
praticamente a mesma sequência de vel antes da ARPANET; o problema era que a
comandos. heterogeneidade dos sistemas de computação
limitava o quão sofisticada a comunicação
Isto é que era totalmente novo na ARPANET. A poderia ser.
demonstração da ICCC não envolveu apenas
uma comunicação humana com um “Come Together, Right Now”
computador distante. Não foi apenas uma
demonstração de I/O [entrada/saída de dados] O que estou a tentar clarificar aqui é que há
remota. Foi uma demonstração de software uma distinção importante entre a declaração A,

A verdadeira novidade da ARPANET | 15


O Estado da Internet 2021

"a ARPANET ligou pessoas em diferentes pela rede, talvez para marcar encontros ou
locais por meio de computadores pela manterem o contacto com namorados. Isso
primeira vez", e a declaração B, "a ARPANET tudo estava a acontecer na década de 1960.
ligou sistemas de computador entre si pela Rankin argumenta que, ao ignorar essas
primeira vez". Isso pode parecer confuso, primeiras redes de "time-sharing", empobrece-
mas a afirmação A elimina alguma história mos a nossa compreensão de como a cultura
esclarecedora de uma forma que a afirmação digital americana se desenvolveu nos últimos
B não faz. 50 anos, abrindo espaço para uma “mitologia
do Silicon Valley” que credita tudo ao génio
Para começar, a historiadora Joy Lisi Rankin individual de alguns poucos pais fundadores
mostrou que as pessoas estavam a socializar seleccionados.
no ciberespaço muito antes do surgimento da
ARPANET. Em "A People’s History of Quanto à ARPANET, se reconhecermos que o
Computing in the United States", ela descreve principal desafio era ligar os sistemas de
várias comunidades digitais diferentes que computador e não apenas os computadores
existiam em todo o país em redes por partilha físicos, então isso pode mudar o que
de tempo ("time-sharing") antes ou fora da escolhemos enfatizar quando contarmos a
ARPANET. Essas redes não eram, história das inovações que tornaram a
tecnicamente falando, redes de computadores, ARPANET possível. A ARPANET foi a primeira
uma vez que consistiam num único rede comutada por pacotes, e muita
computador "mainframe" a executar cálculos engenharia impressionante foi usada para
numa cave nalgum lugar para muitos fazer isso acontecer. Acho que é um erro, no
terminais "burros", como uma criatura ctónica entanto, dizer que a ARPANET foi um grande
corpulenta com tentáculos a espalharem-se avanço porque foi a primeira rede comutada
pelo país. Mesmo assim, possibilitaram a por pacotes e depois deixar isso assim. A
maior parte do comportamento social agora ARPANET foi concebida para facilitar a
conotado com a palavra "rede" num mundo colaboração dos cientistas da computação em
pós-Facebook. Por exemplo, na Kiewit todo o país; esse projecto era muito mais para
Network, que era uma extensão da Dartmouth descobrir como diferentes sistemas
Time-Sharing System para faculdades e operativos e programas escritos em
escolas secundárias em todo o Nordeste, os diferentes linguagens interagiriam uns com
alunos do ensino superior mantinham de os outros do que descobrir como transportar
forma colaborativa um "ficheiro de rumores" dados de forma eficiente entre Massachusetts
que lhes permitia acompanhar os e a Califórnia. Portanto, a ARPANET foi a
acontecimentos emocionantes de outras primeira rede comutada por pacotes, mas
escolas, "criando ligações sociais do também foi uma incrível história de sucesso
Connecticut ao Maine". Entretanto, as de normas - algo que considero
mulheres do Mount Holyoke College especialmente interessante tendo em conta
correspondiam-se com homens em Dartmouth as vezes que escrevi sobre normas falhadas.

A verdadeira novidade da ARPANET | 16


O Estado da Internet 2021

Inventar os protocolos para a ARPANET foi O mainframe típico da altura comportava-se


uma reflexão tardia, mesmo para a época, como se fosse o único computador do
pelo que, naturalmente, o trabalho recaiu universo. Não havia uma maneira óbvia ou
sobre um grupo formado em grande parte fácil de envolver duas máquinas diferentes,
por alunos de pós-graduação. Este grupo, mesmo na comunicação mínima necessária
mais tarde conhecido como Network para mover bits para frente e para trás. Você
Working Group (NWG), reuniu-se pela poderia ligar máquinas mas, uma vez
primeira vez na UC Santa Barbara em Agosto conectadas, o que diriam uma à outra?
de 1968. Havia 12 pessoas presentes naquela Naquela altura, um computador interagia
primeira reunião, a maioria das quais repre- com os dispositivos a ele ligados, como um
sentantes das quatro universidades que monarca comunicando com os seus súbditos.
seriam as primeiras anfitriãs da ARPANET Tudo ligado ao computador principal
quando o equipamento estivesse pronto. desempenhava uma tarefa específica, e cada
Steve Crocker, então um estudante universi- dispositivo periférico era considerado estar
tário na UCLA, compareceu; ele disse-me pronto o tempo todo para um comando do
por videochamada Zoom que eram todos tipo "traga-me os meus chinelos"... Os
jovens naquela primeira reunião, e Elmer computadores foram estritamente
Shapiro, que presidia a reunião, era prova- concebidos para esse tipo de interacção;
velmente o mais velho, por volta dos 38 anos. enviavam instruções para leitores de
A ARPA não encarregou ninguém de desco- cartões, terminais e unidades de fita
brir como os computadores comunicariam subordinados e iniciavam todos os diálogos.
assim que estivessem ligados, mas era óbvio Mas se outro dispositivo tocasse no ombro
que era necessária alguma coordenação. do computador com um sinal e dissesse:
Conforme o grupo continuou a reunir-se, "Olá, também sou um computador", a
Crocker continuou a esperar que algum máquina receptora ficaria perplexa.
“adulto legítimo” com mais experiência e
autoridade voasse da Costa Leste para assu- Em resultado disso, o progresso do NWG foi
mir o controlo, mas isso nunca aconteceu. O inicialmente lento. O grupo não estabeleceu
NWG teve a aprovação tácita da ARPA - todas uma especificação "oficial" para nenhum
aquelas reuniões envolveram muitas viagens protocolo até Junho de 1970, quase dois anos
longas e o dinheiro da ARPA cobria as despe- após a sua primeira reunião.
sas da viagem - pelo que eles iam.
Mas, quando a ARPANET foi mostrada na
O NWG enfrentou um grande desafio. ICCC de 1972, todos os protocolos-chave
Ninguém jamais se juntara para ligar estavam em vigor. Um cenário como o do
sistemas de computador para um propósito xadrez serviu para muitos deles. Quando um
geral; isso era contra todas as suposições utilizador executou o comando @e r,
que prevaleciam na computação no final dos abreviação de @echo remote, instruiu o TIP
anos 1960: a fazer uso de um recurso no novo protocolo

A verdadeira novidade da ARPANET | 17


O Estado da Internet 2021

do teletipo virtual TELNET para informar ao primeiros anos, numa tentativa de enfatizar a
"host" remoto que ele devia ecoar a entrada natureza aberta e colaborativa do que o grupo
do utilizador. Quando um utilizador executou estava a tentar fazer. Esse enquadramento e
o comando @L 134, abreviação de @login a disponibilidade dos próprios documentos
134, isso fez com que o TIP invocasse o Initial transformaram o processo de design do
Connection Protocol com o "host" 134, o que, protocolo num caldeirão de contribuições e
por sua vez, faria com que o "host" remoto contributos às contribuições de outras
alocasse todos os recursos necessários para pessoas, onde as melhores ideias podiam
a ligação e deixasse o utilizador numa sessão surgir sem ninguém perder prestígio. O
TELNET. (O cenário de transferência de processo RFC foi um sucesso estrondoso e
ficheiros que descrevi pode muito bem ter ainda hoje é usado para especificar as
feito uso do File Transfer Protocol, embora normas da Internet, meio século depois.
esse protocolo só estivesse pronto pouco
antes da conferência). Todos esses É esse legado do NWG que acho que devemos
protocolos eram conhecidos como protocolos destacar quando falamos sobre o impacto da
de "nível três" e abaixo deles estava o ARPANET. Embora hoje uma das coisas mais
protocolo de nível dois "host-to-host" (que mágicas sobre a Internet seja que ela pode
definiu o formato básico para as mensagens ligar-nos com pessoas do outro lado do
que os "hosts" devem esperar uns dos outros), planeta, é um pouco jocoso dizer que essa
e o protocolo "host-para-IMP" de nível um tecnologia está connosco desde o século XIX.
(que definiu como os "hosts" comunicavam A distância física foi conquistada muito
com o equipamento de roteamento ao qual antes da ARPANET pelo telégrafo. O tipo de
estavam ligados). Incrivelmente, todos os distância conquistada pela ARPANET foi, em
protocolos funcionaram. vez disso, a distância lógica entre os siste-
mas operativos, códigos de caracteres,
Na minha opinião, o NWG conseguiu reunir linguagens de programação e políticas orga-
tudo a tempo e ultrapassar-se em geral na nizacionais empregadas em cada "host".
sua tarefa porque adoptou uma abordagem Implementar a primeira rede comutada por
aberta e informal para a normalização, como pacotes foi, obviamente, um grande feito de
exemplificado pela famosa série de engenharia que também deve ser menciona-
documentos "Request for Comments" (RFC). do, mas o problema de chegar a um acordo
Esses documentos, originalmente distribuídos sobre normas para conectar computadores
entre os membros do Grupo por correio que nunca foram concebidos para se darem
tradicional, eram uma forma de manter bem uns com os outros foi o mais difícil dos
contacto entre as reuniões e solicitar dois grandes problemas envolvidos na cria-
"feedback" de ideias. O enquadramento dos ção da ARPANET - e a sua solução foi a parte
“Request for Comments” foi sugerido por mais milagrosa da história da ARPANET.
Steve Crocker, que escreveu o primeiro RFC e
supervisionou a lista de e-mails dos RFC nos Em 1981, a ARPA editou um “Completion

A verdadeira novidade da ARPANET | 18


O Estado da Internet 2021

Report” revendo a primeira década da


história da ARPANET. Numa secção com o
trabalhado título de "Technical Aspects of the
Effort Which Were Successful and Aspects of
the Effort Which Did Not Materialize as
Originally Envisaged" (Aspectos técnicos do
esforço que foram bem-sucedidos e aspectos
do esforço que não se materializaram como
originalmente previsto"), os autores
escreveram:

"Possivelmente, a tarefa mais difícil


empreendida no desenvolvimento da ARPANET
foi a tentativa - que se mostrou bem-sucedida -
de fazer com que vários sistemas independentes
de computador 'host' de vários fabricantes e
sistemas operativos diversos dentro de um
único tipo fabricado se comuniquem uns com os
outros, apesar das suas características".

Aí está, de uma fonte como o governo federal


dos Estados Unidos.
___________

Referências disponíveis no texto original.

A verdadeira novidade da ARPANET | 19


O Estado da Internet 2021

Uma visão do futuro dos nossos dados:


bem-vindo à era das coligações de dados

Matt Prewitt, presidente da RadicalxChange Foundation e co-autor do Data Freedom Act

Passe algum tempo com pessoas interessadas em política de dados e ouvirá


linguagem selvagem e floreada. Termos como “auto-soberania”, “colonialismo de
dados” e “capitalismo de vigilância” partilham frases com comparações de
transacções de dados a vendas de órgãos. Essas metáforas coloridas imploram pela
sua atenção, contrastando surpreendentemente com as transmissões insípidas de
uns e zeros a que se referem. Muita dessa conversa é confusa e enganadora, mas não
é acalorada. A linguagem está simplesmente a estalar perante a vastidão do problema.

Isto acontece normalmente com pessoas técnicas. Na década de 1990, aqueles que
realmente entendiam a Internet não podiam expressar as suas previsões sem
despertar um revirar de olhos. Durante grande parte da última década, os entusiastas
da "blockchain" soaram ridículos para todos, excepto entre si.

Hoje, são os pensadores políticos que ficam pasmados com a questão da


regulamentação dos dados. Porque, embora nem todos percebam ainda, as decisões
políticas que agora enfrentamos moldarão a sociedade e a democracia durante
décadas.

Neste ensaio, dirigido ao leitor a partir de 2022, vou retratar e defender uma visão
atraente e viável para o futuro da economia dos dados. Mas não se engane: vai ter de
se lutar por isso.

Uma visão desde 2022

Após uma onda de afastamento não-partidário, 2021 marcou o início de um


re-alinhamento histórico dos nossos governos e economias. Visto à distância, parecia
apenas o mais recente conflito político em torno de dados, inteligência artificial e Big
Tech. Mas mais do que parecia estava em jogo quando as legislaturas transformaram
a “era da coligação de dados” em legislação.

| 20
O Estado da Internet 2021

A lei estabeleceu uma nova classe de prejudiciais e anti-éticos de Silicon Valley - e,


organizações chamada coligações de dados não por coincidência, também reduziram a
para compensar o poder descomunal das capitalização de mercado de muitas grandes
empresas de tecnologia. Ela consolidou empresas tecnológicas. Mas, ao mesmo tempo,
coligações de dados na economia, exigindo estão a acelerar o desenvolvimento geral da
que as grandes empresas negociassem com tecnologia e a gerar um novo ecossistema
elas afim de obterem os direitos de uso de empresarial dinâmico, dando uma vantagem
dados relativos a qualquer pessoa que às empresas que tentam aceder e usar dados
fizesse parte da coligação. Por outras de maneiras que o público realmente apoie.
palavras, estabeleceu as coligações como
intermediários inevitáveis na economia dos Mais fundamentalmente, as coligações de
dados. dados estão a restaurar para os cidadãos
comuns o poder sobre as nossas vidas, as
As próprias coligações são legalmente nossas comunidades e o nosso mundo que
independentes, entidades especialmente cedemos à Big Tech. As coligações
regulamentadas com fortes deveres tornaram-se os principais fóruns através dos
fiduciários para com os seus membros - um quais expressamos as nossas opiniões sobre
pouco como as cooperativas de crédito ou as a questão pública mais importante dos
antigas companhias de seguros mutualistas. tempos modernos: como fazemos a
Ao representarem muitos membros, agem tecnologia trabalhar para nós?
como agentes de negociação colectiva em
nome dos interesses dos membros. Como é a era da coligação de
dados?
As coligações surgiram para representar
muitos tipos diferentes de dados e filosofias Seleccionar uma coligação requer um pouco
do uso de dados. Algumas pessoas optaram de empenho, como votar. Todos devemos
por coligações com foco na privacidade, pesar as questões difíceis de valor: se
enquanto outras se juntaram àquelas queremos que os nossos dados médicos, de
interessadas em investigação e progresso. navegação, de geolocalização ou outros
Muitos juntaram-se a coligações com o sejam reservados, usados para o bem
objectivo de garantir que as plataformas de público ou para ganhar dinheiro.
media social não usem as informações de
maneira que prejudiquem a democracia. Todas as opções, no entanto, são melhores do
Outros ainda juntaram-se a coligações que que o "status quo ante". A lei exige que as
visavam gerar lucros para os membros. coligações de dados sejam totalmente
controladas pelos membros. Assim, eles tomam
As coligações de dados substituíram decisões democraticamente por voto directo ou
rapidamente as bases da economia digital. delegado. Os membros também podem fazer
Elas inibiram os usos de dados mais ouvir a sua voz saindo: se discordamos

Uma visão do futuro dos nossos dados: bem-vindo à era das coligações de dados | 21
O Estado da Internet 2021

da direcção da nossa coligação de dados, O primeiro, da informação pessoal, incluía


podemos ir para outra. Como em qualquer coisas como o nosso número de segurança
organização democrática, por vezes optamos social e histórico médico. O segundo, da
por seguir as nossas coligações quando elas propriedade intelectual, incluía direitos
não tomam a decisão que esperávamos. Mas autorais da expressão do nosso trabalho e
o facto de que as coligações de dados estão a quaisquer patentes ou marcas registadas
negociar por nós numa base amplamente por nós detidas.
colectiva - algumas ganharam rapidamente
muitos milhões de membros - significa que Mas houve sempre uma terceira,
elas já garantiram políticas de privacidade e sub-governada, categoria: os dados que
termos de serviço muitíssimo melhores do geramos de forma semi-espontânea à
que poderíamos esperar antes de 2022. medida que nos movemos pelo mundo,
interagindo com serviços e sensores que
Escolher uma coligação em vez de outra capturam todo o tipo de informação sobre a
significa por vezes que ganhamos ou nossa localização, interesses, hábitos e
perdemos acesso a determinados serviços comportamento. Essa categoria de dados,
digitais. Por exemplo, se a sua coligação por vezes chamada de "data exhaust", era
escolhida não conseguir negociar os termos previamente recolhida por empresas de
com o Slack, você não poderá usar [essa forma quase irrestrita e usada para prever o
plataforma de comunicação]. Muitas pessoas nosso comportamento, influenciar as nossas
preocuparam-se com isso no início. Mas decisões e treinar algoritmos que pudessem
ficou claro que a ameaça de “ataques” da emular o nosso trabalho intelectual.
coligação força as empresas de tecnologia a
servir os nossos verdadeiros interesses e As coligações de dados representam agora os
abre mais espaço para concorrentes nossos interesses em relação a todas essas
corajosos. Essa nova diversidade de informações - incluindo as informações à
serviços, por exemplo, leva as empresas a “exaustão” que antes (e por engano)
concentrarem-se na interoperabilidade em considerávamos não-sensíveis. Suponha que
vez de tentarem prender os utilizadores nos passa por uma farmácia numa tarde de
seus ecossistemas. sábado e os monitores de tráfego de pedestres
da loja registam que uma pessoa não
Protegendo uma nova categoria de identificada passou por ali naquele momento.
informação: tudo A sua coligação, com outras, negoceia agora
os termos nos quais a farmácia pode usar até
Actualmente, as coligações de dados mesmo esse simples dado.
representam os nossos interesses numa gama
estonteante de informação. Antes de 2021, Isto parece radical para aqueles que se
tínhamos interesses reconhecíveis em, grosso lembram do século XX, mas é extremamente
modo, apenas dois “pacotes” de informações. necessário. As coligações de dados fazem

Uma visão do futuro dos nossos dados: bem-vindo à era das coligações de dados | 22
O Estado da Internet 2021

muito mais do que proteger os nossos punhado de cópias de algo que escreveram.
interesses económicos e de privacidade. Em Mas se os leitores respondessem
2021, percebemos que, se não pudermos positivamente, as editoras maiores reagiriam,
tomar decisões democráticas ágeis sobre o saturando rapidamente o mercado e excluindo
uso de todos os tipos de informação, nunca o escritor tanto do lucro como do crédito
seguiremos um caminho intermediário entre moral. Assim, o poder passou dos criadores
a tirania e o caos. para os proprietários das mais rápidas
máquinas de processamento de informações.
Rimas com Gutenberg
Não pretendo sugerir que a imprensa era
O ditado de que “conhecimento é poder” prejudicial ou mesmo uma faca de dois
contém um registo completo da economia dos gumes. A questão é que a facilitação da
dados. Quem controla a informação na qual distribuição de informação pela tecnologia
confiamos controla-nos e pode, assim, lucrar do século XV concentrou inexoravelmente o
connosco. Outro ditado (apocrifamente poder entre os proprietários do capital.
creditado a Mark Twain) diz que a história Desafiou o Estado, mas também transformou
não se repete - ela rima. Fomos sempre os editores em magnatas e os escritores em
lentos a reconhecer quando a informação se seus peões.
torna nossa mestre em vez de nossa serva.
Duzentos anos depois, após várias guerras
Considere a história da imprensa escrita. religiosas impulsionadas por panfletos
Sabemos que a tecnologia da imprensa heréticos - as notícias falsas da época - os
permitiu aos proprietários capitalistas das países começaram a responder. Após o fim
impressoras desafiarem o Estado. Um lado da Guerra dos Trinta Anos, em 1648, os
negligenciado da história é como também os soberanos estabeleceram severos regimes
capacitou a explorar os escritores. de censura à imprensa. Pouco depois,
também a fortaleceram para os escritores.
A invenção de Gutenberg mudou a vida dos Em 1710, o Parlamento britânico aprovou a
escritores de duas maneiras importantes. primeira lei de direitos autorais ("copyright"),
Primeiro, aumentou a sua distribuição dando aos autores ferramentas legais para
potencial e, segundo, diminuiu o seu se protegerem da fácil exploração dos
controlo. As prensas podem produzir proprietários da imprensa.
milhares de cópias de um texto com muito
mais facilidade do que os copistas manuais. A censura estatal centralizada não é lembra-
Mas os escritores geralmente não beneficiam da com carinho: os regimes mais progressis-
porque não possuem essas novas e caras tas (como a Suécia e os Estados Unidos)
máquinas de impressão. Para ter certeza, derrubaram-na no século XVIII. Com o direi-
com um orçamento apertado, eles podem tos autorais, por outro lado, não funcionou
alugar uma impressora e imprimir um muito mal. Claro que nunca foi perfeito.

Uma visão do futuro dos nossos dados: bem-vindo à era das coligações de dados | 23
O Estado da Internet 2021

E hoje, a lei de direitos de autor tem uma Onde a lei da propriedade intelectual dá aos
reputação merecidamente terrível porque as indivíduos direitos de propriedade
empresas globais de media a vergaram para unilaterais, as coligações de dados em vez
atender aos seus interesses. (Por exemplo, disso dão às comunidades autoridade
os textos foram originalmente protegidos por democrática. As impressoras possibilitavam
um período razoável de 21 anos desde a sua aos detentores do capital apropriarem-se de
escrita. Agora, graças ao lobby da Disney, a certos textos montados (em teoria) por
maioria dos direitos autorais dura mais de escritores solitários. Mas o Big Data e a
um século, gerando rendimentos absurdos inteligência artificial permitiram que os
de trabalhos antigos.) Mas, no geral, o proprietários do capital se apropriassem de
projecto de 300 anos de armar os autores todas as informações que todos registaram
contra a exploração tem sido um dos maiores colectivamente. É por isso que precisamos
sinais de sucesso da lei moderna. de coligações de dados em vez de novos
direitos individuais.
A lição histórica é que, quando novas
tecnologias radicais de processamento de Os dados do século XXI não podem ser
informação emergem, o equilíbrio de poder entendidos nos termos individualistas do
entre os produtores de conteúdo, século XVIII. Os seguidores de John Locke e
proprietários dos dispositivos de de Immanuel Kant, sem surpresa,
processamento de informação e o Estado restringiram a sua protecção da informação
muda. É necessária uma nova às obras em escala artesanal dos “génios e
infra-estrutura legal para re-estabelecer grandes homens” que eles paroquialmente
essas relações de uma forma que permita viam como condutores da história. Mas os
que o potencial desbloqueado pela tecnologia vastos dados que impulsionam hoje a
floresça, enquanto protege os fracos da história não são assim. Em vez disso,
exploração e evita que os proprietários ricos sempre pertence sempre e tem origem num
da tecnologia ajam contra os interesses número indefinido de pessoas e ganha o seu
públicos. valor através da agregação. Os “meus” dados
são valiosos não porque são uma obra-prima
Governança partilhada, não a de auto-expressão, mas porque contêm
propriedade individual percepções profundas e predictivas sobre as
pessoas com as quais me relaciono. Assim,
As coligações de dados fazem algo muito sempre que uma pessoa a revela ou retém,
diferente da propriedade intelectual. Ainda inúmeras outras são afectadas de maneiras
assim, é útil ver que abordam o mesmo que não podemos simplesmente ignorar.
problema: ajudar os criadores de
informações valiosas a protegerem-se das É por isso que os dados não podem
partes bem capitalizadas posicionadas para possuídos mas devem ser controlados. Os
se apropriarem delas. dados devem ser objecto de decisões

Uma visão do futuro dos nossos dados: bem-vindo à era das coligações de dados | 24
O Estado da Internet 2021

democráticas partilhadas, em vez de os dados como uma força policiada ou um


decisões individuais e unilaterais. Isso sistema de água - ou seja, como objecto de
apresenta desafios específicos para as uma governança amplamente partilhada,
ordens jurídicas liberais que normalmente mas profundamente responsável.
se centram nos direitos individuais.
Responsabilidades individuais,
Imediatamente antes da era da coligação de direitos democráticos
dados, alguns dos mais fervorosos
defensores de uma melhor economia de É importante enfatizar que “os seus dados” e
dados permaneceram presos a uma “os meus dados” não existem como coisas
mentalidade proprietária defunta do século distintas. O meu endereço é o endereço do
XVIII, na esperança de nos conceder filho do meu pai, e os meus genes são os
“soberania” sobre as nossas informações genes dos meus primos. Os meus desejos
individuais. Mas, no contexto dos dados do mais profundos também são os desejos dos
século XXI, isso não fazia sentido. Era como meus amigos, não apenas porque temos
imaginar milhares de pessoas tendo fios experiências em comum, mas porque
diferentes no mesmo cobertor. comunicamos e formamos os nossos desejos
juntos.
Da mesma forma, muitos defensores
bem-intencionados dos dados abertos não Para alguns, esse é um "insight"
conseguiram ver como a informação livre desestabilizador que ameaça submergir o
sempre concentrou o poder nos proprietários indivíduo num colectivo. Pode parecer
das máquinas de processamento de neutralizar as dimensões emancipatórias do
informações mais rápidas. Como os editores pensamento iluminista. Afinal, as democracias
dos séculos anteriores, as empresas de modernas fizeram muito bem ao transformar
tecnologia mais ricas vão sempre liderar a diferentes sujeitos humanos em detentores de
extracção de valor dos dados abertos, direitos legais. Se os dados não pertencem a
dando-lhes uma vantagem desmerecida indivíduos, como vamos preservar essa
sobre o resto da sociedade. Portanto, colocar tradição neste novo contexto crucial?
os dados em domínio público, na verdade, faz
exactamente o oposto de nivelar o tabuleiro As coligações de dados tratam dessa
de jogo. preocupação de uma poderosa mas
inesperada forma. Na verdade, mantêm os
Se a propriedade de dados individuais for indivíduos no centro. Mas em vez de centrar
Scylla, o monstro marinho mítico que os direitos individuais, eles centralizam as
devorou marinheiros incautos, então os responsabilidades individuais.
dados abertos são Charybdis, o remoinho
perto da caverna de Scylla. Encontrar o Embora não possamos todos ter direitos
caminho estreito entre os dois significa tratar individuais absolutos num "corpus" inseparável

Uma visão do futuro dos nossos dados: bem-vindo à era das coligações de dados | 25
O Estado da Internet 2021

de informações partilhadas, podemos e temos ou milhões de pessoas - acreditam ser melhor


responsabilidades individuais palpáveis em ou pior servidos pela proliferação de serviços
relação a como fazemos uso de todas as específicos. O poder dessas decisões parti-
informações à nossa disposição. Afinal, lhadas força até mesmo os maiores progra-
quando divulgamos informação madores a apelar a uma noção mais profunda
unilateralmente, comprometemos (ou do interesse público ao conceberem os seus
promovemos) os interesses dos outros. O serviços. Assim, ao participar dessas deci-
mesmo acontece quando retemos informação, sões partilhadas, promovemos os nossos
como quando nos recusamos a participar do interesses e cumprimos as nossas responsa-
rastreamento de contactos que pode impedir bilidades de maneiras que eram impossíveis
a propagação de um vírus contagioso. Assim, antes de 2021.
as nossas decisões sobre as “nossas”
informações devem parecer mais decisões Como aconteceu isto?
nas urnas (exercícios de responsabilidade) do
que decisões sobre o dinheiro nas nossas A era da coligação de dados não poderia ter
carteiras (exercícios de poder). começado sem o apoio dos legisladores.
Nunca teria surgido apenas por meio da
Antes da era da coligação de dados, não organização de base ou de novos desenvolvi-
tínhamos esperança de exercer essas mentos tecnológicos. Existem três razões
responsabilidades de forma significativa. As para tal.
corridas até ao fundo dominavam o dia.
Alguma nova aplicação de produtividade de 1. As coligações de dados precisavam de ser
recolha de dados tentaria frequentemente feitas em contrapartes necessárias para as
algumas pessoas a usá-la, dando aos empresas que queriam usar dados. De outra
primeiros utilizadores uma vantagem social forma, a Big Tech teria feito todo o possível
ou profissional, pressionando assim outros a para contornar as coligações e continuar a
fazerem o mesmo e, finalmente, revelando reunir dados dos indivíduos dispostos a
informações sobre muitos terceiros que - desfazerem-se deles da maneira mais
uma vez tendo percebido que tinham poucos barata.
interesses de privacidade para ainda
defender - também a acabavam por adoptar. 2. As coligações de dados precisavam de estar
Por exemplo, não valia a pena tentar manter sujeitas a regulamentações especiais. Essa
as suas informações longe do Gmail quando regulação garantiu que elas permanecessem
a maioria das pessoas com quem se totalmente independentes das empresas
correspondia o usava. convencionais de exploração de dados e que
se preocupassem realmente com os interes-
Este tipo de coisas acontece muito menos ses dos seus membros. Elas também estabe-
agora. Hoje, os votos de toda a coligação lecem as directrizes necessárias para agilizar
indicam se os membros em geral - milhares as disputas complexas que surgem entre as

Uma visão do futuro dos nossos dados: bem-vindo à era das coligações de dados | 26
O Estado da Internet 2021

diferentes coligações que representam A era da coligação de dados não é uma tecno-
dados parcialmente sobrepostos. -utopia nem um sonho febril ludita. É sim-
plesmente um novo acordo político -econó-
3. Os direitos individuais sobre os dados cria- mico com uma síntese mais razoável de inte-
dos por legislação legada, como o RGPD (na resses concorrentes, melhores incentivos e
Europa) e o CCPA (na Califórnia), precisavam uma concentração de poder menos alarman-
de ser temporariamente delegáveis para as te em Silicon Valley.
coligações. Se isso não acontecesse, elas não
poderiam ter cumprido o seu propósito Questiono-me para onde estaríamos a ir sem
central: facilitar as decisões partilhadas pelos ela?
seus membros sobre o uso de dados. Tornar
os direitos de dados individuais estritamente
não delegáveis às coligações tê-los-ia neutra-
lizado exactamente da mesma forma que as
leis do “direito ao trabalho” neutralizam os
sindicatos.

Chegámos ao paraíso?

As coligações de dados entraram pelos


monopólios em rede dos gigantes da Internet
como um nó górdio. Essas empresas não
ficaram satisfeitas.

Mas as coligações de dados não diminuíram a


qualidade dos serviços digitais, nem
retardaram o progresso tecnológico. Pelo
contrário, a concorrência aumentou e o sector
de tecnologia como um todo está a prosperar.
Hoje, qualquer empresário com uma boa
ideia tem a mesma possibilidade de obter
acesso a grandes conjuntos de dados como a
Amazon e a Google. Os consumidores estão
mais felizes e o discurso público é mais
saudável. As coligações de dados ajudaram a
sociedade a fazer exactamente o tipo de
julgamentos inteligentes sobre a tecnologia e o
interesse público que foi desastrosamente
negligenciado nas duas décadas anteriores.

Uma visão do futuro dos nossos dados: bem-vindo à era das coligações de dados | 27
O Estado da Internet 2021

Privacidade não é propriedade

Cory Doctorow, autor, jornalista e activista

Quando tudo o que se tem é a ortodoxia do mercado, tudo parece uma falha do
mercado. Considere-se a privacidade: gigantes e gananciosas corporações
instrumentalizaram os mundos digital e físico para nos estarem sempre a espiar, pelo
que algumas pessoas acham que elas deveriam pagar-nos pelos nossos dados.

Há uma história teórica muito rica que explica porque esse "dividendo dos dados" é
uma ideia estúpida. Em primeiro lugar, a informação privada não é muito parecida
com uma propriedade. E não apenas porque partilha todos os problemas das obras
digitais (infinitamente, instantaneamente copiáveis a custo zero).

A informação privada constitui uma má "propriedade" porque é "possuída" por várias


partes sobrepostas que geralmente discordam sobre quando e com quem a partilhar.
Quando você e eu temos uma conversa, ambos reconhecemos o facto de que a
conversa aconteceu.

O que acontecerá se eu não vender, mas você vender? Afinal, as empresas de


tecnologia são realmente boas em encontrar o vendedor mais barato de um bem da
informação. Por exemplo, sempre que você visita o site de um "jornal de qualidade", há
um leilão em tempo real para definir quem licita o direito a mostrar-lhe anúncios.

Digamos que há 13 proponentes para esse direito. Um mostra um anúncio, mas os


outros 12 também recebem algo: o seu identificador exclusivo e o facto de ler, por
exemplo, o New York Times.

Esse facto é então vendido a sites de [publicidade online conhecidos por] "chumbox"
de lixo como o Tabouleh, cujo argumento de venda para os anunciantes é que "Posso
mostrar os seus anúncios aos leitores do NYT por 15% do preço que o Times cobra".
Se o mesmo facto é "propriedade" de muitas pessoas, é uma mercadoria
("commodity").

Os compradores encontrarão o vendedor mais barato e menos exigente. Além disso,


não se pode resolver isso exigindo um consenso de todos os "donos" de um facto antes

| 28
O Estado da Internet 2021

que ele seja divulgado - quem é o dono do Para fazer isso bem, precisamos de parar de
facto de que o seu chefe o assediou fingir que os dados são uma boa propriedade
sexualmente: você ou ele? Ele tem direito de e que, portanto, os mercados resolverão os
veto sobre as suas divulgações? problemas dos dados. E só porque os dados
não são propriedade, não quer dizer que não
Mesmo se pudéssemos fazer com que os sejam valiosos.
direitos de propriedade funcionassem com a
privacidade (o que, para que fique registado, Longe disso: as coisas mais valiosas que
não podemos), tudo o que conseguiríamos conhecemos (seres humanos) não são
seria transformar a privacidade num bem de propriedade precisamente porque tratá-las
luxo em que os pobres são coagidos a vender como propriedade as embarateceria. Nós,
os seus dados por centavos, como nos humanos, somos tão valiosos que temos um
lembra Malavika Jayaram . conjunto complexo de regras exclusivamente
para nós.
Os dividendos dos dados também exigem
que alguém estabeleça preços sobre os A minha filha não é minha propriedade, mas
dados, e as hipóteses são de que o preço seja tenho interesse nela. O mesmo acontece com
definido por uma empresa de tecnologia a minha esposa, os avós, os professores, o
invasora de privacidade ou por um regulador distrito escolar e os Serviços de Protecção à
subordinado a elas. Criança... e ela também. Esse sistema
baseado em "interesses" reconhece a
E seja qual for o preço, ele não irá capturar o complexa teia de reivindicações sobrepostas.
custo real, como Hayley Tsukayama nos
recorda: "Os americanos com baixos Temos toda uma disciplina - uma que não se
rendimentos e muitas vezes comunidades de cruza com os mercados de forma alguma -
cor não devem ser incentivados a despejar que descreve essas relações, com conceitos
mais dados num sistema que já os explora e especializados como "direitos de nutrição" e
usa os dados para os discriminar". "direitos de auto-determinação" (obrigado a
Rory Pickens por me apresentar esses
"A privacidade é um direito humano, não conceitos).
uma mercadoria".
Todos esses pontos e muito mais são
Não é tarde demais para acabar com o mostrados em "Why data ownership is the
"pagamento pela privacidade", porque, como wrong approach to protecting privacy"
diz Dipayan Ghosh, os dados ("Porque a propriedade de dados é a
comportamentais são "temporalmente abordagem errada para proteger a
sensíveis" - as empresas precisam mais privacidade"), um artigo do Brookings
deles durante mais tempo, o que significa Institute, de 2019, de Cameron F. Kerry e
que ainda podemos recuar. John B. Morris, que os relaciona à legislação

Privacidade não é propriedade | 29


O Estado da Internet 2021

pendente e à jurisprudência relevante.

"Ao licenciar o uso das suas informações em


troca de consideração monetária, podemos
estar em pior situação do que sob o actual
regime de notificação e escolha... Um
sistema baseado em propriedade também
desconsidera os interesses para lá da
propriedade que os indivíduos possuem na
informação pessoal".
___________

Referências disponíveis no texto original.

Privacidade não é propriedade | 30


O Estado da Internet 2021

Desfinanciar a Big Tech, refinanciar a


comunidade

The Tech Otherwise Collective

"A única maneira que vejo de aplicar tantos recursos financeiros é convertendo os meus
lucros na Amazon em viagens espaciais"

(Jeff Bezos, Business Insider, 6 de Agosto de 2019)

Jeff Bezos fez o comentário citado em relação à riqueza que adquiriu como CEO e
maior accionista da Amazon. Aqui, consideramos os danos produzidos pela Amazon,
junto com as outras empresas denominadas de Big Tech - Apple, Google/Alphabet,
Facebook e Microsoft, e oferecemos uma proposta melhor de como se pode
colectivamente redistribuir as enormes receitas ao serviço da prosperidade terrestre.
O movimento Black Lives Matter contra o racismo sistémico e o longo movimento
organizado abolicionista nos Estados Unidos fornecem um contexto importante para
os nossos esforços. Fomos inspirados pelos constantes apelos ao Defund the Police
nos Estados Unidos, que revigoraram o debate vital a respeito sobre o financiamento
dos departamentos de polícia, quem é realmente servido por eles e quais as formas de
injustiça histórica que são perpetuadas pelas actuais instituições de policiamento e
encarceramento. No contexto do movimento abolicionista, desfinanciar significa
convidar as comunidades locais e regionais a decidir como redireccionar os fundos
desproporcionais agora investidos na aplicação [das autoridades] e no
encarceramento para apoiar formas alternativas e mais holísticas para o bem-estar e
infra-estrutura da segurança pública. No espírito deste movimento, adaptamos alguns
dos seus conceitos-chave ao domínio das infra-estruturas de informação e
comunicação públicas/comunitárias (TIC), em particular aquelas agora dominadas
pela Big Tech.

A nossa proposta é baseada numa premissa essencial: para redireccionar o fluxo


excessivo de lucros da Big Tech, devemos transformar as condições e estruturas de
financiamento que o permitem. O objectivo é libertar recursos para apoiar uma ampla
gama de fins socialmente benéficos, incluindo iniciativas comunitárias e orientadas
para o desenvolvimento de infra-estruturas digitais que atendam melhor ao interesse

| 31
O Estado da Internet 2021

público. Embora não estejamos a pedir o fim redistribuir recursos para capacitar
da Big Tech, apela-se a uma reforma radical. iniciativas individuais e colectivas na
Isso inclui a abolição das condições que construção de infra-estrutura alternativa,
criam e normalizam o alcance desproporcio- muitas das quais já existem, mas carecem de
nal da Big Tech sobre a infra-estrutura prin- recursos. A tecnologia comunitária
cipal das TIC e as suas amplas consequên- compreende um esforço holístico para
cias negativas para a sociedade e o meio capacitar as pessoas com a capacidade de
ambiente. O objectivo é reter - e expandir - os criar, aceder e administrar tecnologias
muitos benefícios que as pessoas actual- digitais que sirvam os seus interesses.
mente obtêm das tecnologias digitais, ao
mesmo tempo que se atende melhor às suas I Porquê desfinanciar a Big Tech?
necessidades individuais e colectivas.
O mito da origem da Big Tech é familiar para
Escrevemos num momento histórico crítico. a maioria de nós: génios empreendedores
A pandemia global do Covid-19 intensificou o que procuram o risco começam do nada e
papel vital que as tecnologias digitais perseguem uma ideia nova, desde a criação,
desempenham na vida de tantas pessoas. passando pela comercialização e produção
Isso contribuiu directamente para as até a escalar. De acordo com a lógica deste
fortunas crescentes da Big Tech, enquanto o mito, os capitalistas de risco ["venture
resto da economia está a passar pela pior capitalists"] que, contra todas as
crise desde a Grande Depressão. Essa probabilidades, seguiram a sua visão
riqueza crescente e disparidades inovadora, devem colher os frutos: eles
informacionais aumentaram os apelos criaram o valor que cimenta as receitas.
recentes do governo e da sociedade civil para Mas, como explicamos, muito pouco dessa
dividir o poder de mercado monopolista da narrativa familiar é verdadeira. A sua
Big Tech. repetição sem fim apenas diminui a nossa
capacidade de ver os desafios e as
Começamos com uma revisão das origens oportunidades que as novas tecnologias de
míticas, e actuais, da infra-estrutura de TIC comunicação apresentam.
dominada pela Big Tech, bem como os danos
que o sistema existente trouxe. Em seguida, Em primeiro lugar, os “visionários” da Big
discutimos maneiras de desfinanciar a Big Tech invariavelmente começaram com
Tech, esboçando os papéis que diferentes tecnologias baseadas em investigação em
actores podem desempenhar. Por fim, instituições que contam com um significativo
mostra-se como se pode reembolsar as financiamento público. Os "venture capitalists"
comunidades, ajudando-as a desenvolver e a não assumiram a maior parte do risco, nem os
adoptar os sistemas de TIC que atendam tecnólogos criaram por sua própria conta a
melhor às suas necessidades. Promovemos a base para a avaliação de mercado dos seus
tecnologia comunitária como uma forma de desenvolvimentos. Em vez disso, como a

Desfinanciar a Big Tech, refinanciar a comunidade | 32


O Estado da Internet 2021

economista Mariana Mazzucato (2013) e O Facebook e a Google vendem os perfis dos


outros mostraram, longe de sair do caminho utilizadores, composto de conteúdos criados
da inovação privada, o Estado abre o cami- pelos utilizadores - não pelas empresas. O
nho. É o Estado, não o capital privado, que que tem valor num perfil de utilizador não é
financia a longo prazo a investigação e a estrutura de dados mas o registo das
desenvolvimento (I&D) de elevado risco e escolhas que eles fazem e o conteúdo que
que sustenta a Big Tech. Ao contrário da criam. Essas escolhas e a atenção requerida
mitologia reinante, o Estado não gerou para produzi-los e consumi-los tornam-se
apenas as condições que tornam Silicon activos valiosos para as plataformas
Valley possível como também financiou a venderem aos anunciantes publicitários.
I&D e, em muitos casos, apoiou os seus Tudo o resto facilita a extracção e a
produtos até à comercialização. Praticamen- monetização desse valor. No caso do
te todas as principais tecnologias que permi- Facebook, a empresa assegurou um
tem as infra-estruturas digitais contemporâ- monopólio na monetização do valor criado
neas, da própria Internet ao agora icónico pelos seus utilizadores e evita que seja
smartphone, foram criadas com financia- partilhado de forma mais livre. De modo
mento nacional da I&D muito antes da tecno- semelhante, plataformas como o Twitter e o
logia chegar ao mercado. Instagram dependem inteiramente dos seus
utilizadores para criar o valor que leva
Em segundo, apesar do seu papel central, o outros utilizadores a aderirem. Todos esses
Estado tem sido sistematicamente privado espaços digitais são permeados por uma
das recompensas geradas pelos seus publicidade incessante. O trabalho dos
próprios investimentos em inovação. utilizadores na criação do valor dessas
Décadas de lobby pela desregulamentação plataformas pode ser facilmente
permitiram que empresas como a Apple contabilizado nas métricas de adesão que as
evitassem "devolver" uma parte dos seus empresas compilam. Para complicar ainda
lucros ao mesmo Estado que financiou mais as coisas, as infra-estruturas que
grande parte do seu sucesso. Os "Big Five" permitem uma proporção significativa do
exploram a sua influência para evitar o valor dos principais serviços da Big Tech
pagamento de milhões de dólares em repousam nos ombros de uma extractiva,
impostos, bem como multas quando são mal paga e ampla rede de trabalho invisível,
considerados culpados de acusaçõess. No que criou uma proporção significativa do
final, o Estado fica com uma cauda de valor no núcleo de vários dos principais
questões complexas para lidar. serviços da Big Tech.

Finalmente, as empresas Big Tech são Uma situação paralela desenrola-se na econo-
altamente lucrativas porque geram valor mia do biscate ("gig economy"), na qual os
económico numa enorme escala. Mas quem trabalhadores se ligam a empresas de plata-
cria muito desse valor? Os utilizadores. formas por empregos incertos, inseguros

Desfinanciar a Big Tech, refinanciar a comunidade | 33


O Estado da Internet 2021

e temporários. Esse "pipeline" de trabalho é Mas as maiores ameaças que a riqueza da


profundamente problemático: a sua global- Big Tech representa são para a democracia.
mente - e amplamente desigual - natureza Semelhante a períodos históricos anteriores,
distribuída, no que Virginia Eubanks chama quando elevadas concentrações de riqueza
de "ambientes de reduzidos direitos", cria as ameaçavam as práticas democráticas, as
condições para uma força de trabalho vulne- empresas da Big Tech usam o seu poder
rável praticamente sem estruturas legais de económico num amplo espectro de arenas
defesa ou protecção. Além disso, este siste- políticas. Elas estão entre os lobistas mais
ma já preocupante não está isento das som- activos nos sectores das comunicações e da
bras raciais e coloniais do passado. Da racia- electrónica, forçando a aprovação de leis a
lização das mulheres de cor dentro do "pipe- seu favor ou resistindo àquelas que não o
line" de produção da electrónica inicial, ao são. Pressionando descaradamente os gover-
estereótipo étnico dos trabalhadores do sul nos para os seus lucros privados sobre os
da Índia como aptos para o trabalho relacio- interesses públicos, elas costumam ser sufi-
nado com a tecnologia, as fundações da cria- cientemente poderosas para o conseguir. Em
ção de valor da Big Tech, e de Silicon Valley áreas onde a regulamentação é fraca ou
mais amplamente, herdam os legados do inexistente, avançam com uma abordagem
capitalismo racial. do tipo "apanhe-me se puder". Dada a relati-
va novidade dos seus fundamentos tecnoló-
Assim, qual é o problema com tudo isto? À gicos e modelos de negócios associados, os
primeira vista, o rápido crescimento da Big principais aspectos das operações da Big
Tech indica que essas tecnologias estão a Tech são frequentemente discutíveis nas
preencher algumas necessidades sociais. margens ou mesmo fora das jurisdições
Em apenas algumas décadas, a Big Tech legais convencionais e dos regimes regulató-
tornou-se parte da vida diária de milhões em rios. Principalmente dentro da indústria
todo o mundo. No entanto, os custos sociais tecnológica, as Big Five afirmam normalmen-
desta abordagem à infra-estrutura e aos te que qualquer restrição às suas ações iria
serviços digitais são muito menos visíveis. "sufocar a inovação", ameaçando com uns
Impulsionados por um punhado de indivídu- vagos mas nefastos custos sociais. Eles igno-
os e por imperativos dos accionistas, os Big ram convenientemente a possibilidade de
Five são monopolistas de facto, integrados que as suas inovações podem ser prejudi-
vertical e horizontalmente, posicionando-se ciais e muitas vezes o são.
como guardiões inevitáveis nas suas respec-
tivas áreas de especialização. Esse domínio Como muitos apontaram, a refinada captura,
do mercado gerou várias investigações anti- análise e exploração de informação pessoal
-concorrência por parte do Congresso dos para influenciar o comportamento a uma
Estados Unidos, dos Procuradores-Gerais de escala populacional na busca de interesses
50 estados e territórios dos Estados Unidos e comerciais privados constitui uma forma
da União Europeia. perigosa do que a professora Shoshana

Desfinanciar a Big Tech, refinanciar a comunidade | 34


O Estado da Internet 2021

Zuboff (2018) se refere como "capitalismo da Para agravar os problemas da vigilância em


vigilância". Monetizar as informações massa, em vez de conter a recolha e explora-
pessoais e a atenção dos seus utilizadores ção em massa da informação pessoal pela
provou ser tão lucrativo para as empresas de Big Tech, os governos têm procurado apro-
tecnologia dependentes da publicidade que veitar-se dos seus enormes armazenamen-
elas foram para lá do desenvolvimento de tos de dados e recursos analíticos de Big
recursos que fornecem valor aos utilizadores Data para fins de inteligência de segurança
e conceberam sistematicamente os seus do Estado, estrangeiros e domésticos. Como
serviços para serem "viciantes". Empregando Edward Snowden revelou, a Agência de
técnicas da psicologia comportamental que Segurança Nacional (NSA) dos Estados
opera subconscientemente, essas empresas Unidos assumiu a liderança nesse sentido. O
"agarram" as pessoas para agir de forma que seu programa de vigilância PRISM, no qual
sirvam a sua vantagem comercial. Isto pode pelo menos quatro das Big Five participaram
ter efeitos deletérios para os indivíduos formalmente, foi declaradamente "a princi-
envolvidos, corroendo a sua agência e pal fonte de inteligência bruta usada para
autonomia. De modo mais notório, essas relatórios analíticos da NSA".
práticas contribuíram para que as pessoas
fossem submetidas a manipulação política. Um resultado perturbador das infra-estrutu-
ras da Big Tech se tornarem num braço do
Além das formas conhecidas pelas quais as Estado é o uso de vigilância pervasiva para
grandes corporações há muito procuram exacerbar a crise de encarceramento em
influenciar os processos políticos, os novos massa a longo prazo nos EUA. O reconheci-
modelos de negócios da Big Tech, que mento facial, o policiamento predictivo e os
dependem em vários graus da exploração da algoritmos de perfil de risco, entre outras
informação pessoal e das comunicações dos tecnologias carcerárias, servem como meca-
seus utilizadores, introduzem novas nismos que reproduzem uma longa história
aberturas para a interrupção da governação de policiamento e discriminação racial nos
convencional. O exemplo mais proeminente é Estados Unidos e no exterior. Essas tecnolo-
a controvérsia sobre o papel prejudicial que gias são aproveitadas como armas "usadas
os media sociais desempenharam nas pelas autoridades da lei para identificar,
eleições, testemunhada recentemente com a traçar o perfil e ordenar a violência contra
agitada ocupação do Capitólio nos EUA. O categorias de pessoas" (Hamid, 2020). Estas
Facebook é actualmente o maior vilão público, técnicas são ainda mais aperfeiçoadas e
manchado pelo escândalo Cambridge normalizadas por meio da participação invo-
Analytica e por permitir que discurso de ódio luntária do público nos produtos de consu-
e (des)informação inflamada circulem ampla mo, como a identificação biométrica em
e rapidamente nas suas redes, especialmente smartphones.
durante eleições duvidosas.
Existem outras maneiras, menos directas

Desfinanciar a Big Tech, refinanciar a comunidade | 35


O Estado da Internet 2021

mas não menos potentes, de as empresas de sem compensarem adequadamente os


Big Tech desempenharem um papel despro- editores. Em resultado disso, os editores
porcional na governação. Como vigorosos vêem-se atraídos por um modelo de negócio
promotores do solucionismo tecnológico, de publicidade que tem sérias
prioritizando as respostas tecnológicas a uma consequências para o jornalismo
ampla gama de questões sociais, económicas, independente e no qual os media que
políticas e ambientais enfrentadas pela socie- protegeram a democracia durante séculos
dade contemporânea, elas marginalizam as está a desaparecer.
respostas menos intensamente tecnológicas,
mas possivelmente mais adequadas. Mesmo Em suma, a Big Tech mostrou que as
quando as tecnologias digitais podem desem- tecnologias digitais podem oferecer um valor
penhar um papel apropriado, a Big Tech social significativo mas num período de
restringe abertamente as opções viáveis. Por tempo notavelmente curto a indústria
exemplo, em vez de tratar a informação também desenvolveu práticas que agora
pessoal capturada nas interacções online ameaçam as capacidades da governação
exclusivamente como um activo corporativo democrática. Isso leva-nos ao nosso pedido
proprietário a ser monetizado de várias de desfinancimento, para garantir que a
maneiras, com a consideração adequada dos tecnologia digital sirva o interesse público.
direitos do sujeito, essa informação pode ser
tida como um activo colectivo ou comum, a II Desfinanciar a Big Tech
ser gerido através de fundos de dados ou
cooperativas para benefício público. No espírito da campanha de desfinanciamen-
to anti-racista, propomos alargar o projecto
As grandes empresas de tecnologia que de redistribuição de recursos ao domínio das
dependem da publicidade corroem a infra-estruturas públicas, e mais especifica-
governação democrática, bem como minam mente aos processos de desenvolvimento
uma característica indispensável da das TIC vitais. De acordo com os recentes
deliberação democrática, o jornalismo apelos de Ron Deibert (2020) e Cory Docto-
profissional independente. À medida que a row (2020) para conter as forças do capitalis-
Google e o Facebook capturam uma grande e mo de vigilância, concentramos-nos primeiro
crescente proporção das receitas de em reduzir o poder da Big Tech, enquanto
publicidade, eles privam os media recuperamos os recursos que actualmente
convencionais de rendimentos que contribuem para o seu controlo sobre a
sustentam as notícias e normalmente nossa infra-estrutura de informação e comu-
recusam-se a arcar com o custo da produção nicação (desfinanciar), que pode assim ser
de conteúdos noticiosos que atrai as pessoas redireccionado para serviços orientados
para as suas plataformas. Além disso, para a comunidade (refinanciar). Estas
permitem que os utilizadores disponibilizem mudanças exigirão iniciativas de vários acto-
excertos de notícias nas suas plataformas res, a começar pela própria Big Tech.

Desfinanciar a Big Tech, refinanciar a comunidade | 36


O Estado da Internet 2021

Big Tech (e outras empresas tecnológicas): eles são usados ao máximo.

As principais empresas de tecnologia têm de A história provou que a Big Tech não tomará
levar a sério as preocupações legítimas essas medidas simplesmente por sua
sobre o seu poder excessivo e os impactos própria iniciativa. A acção colectiva por
prejudiciais cada vez mais expressos por parte da sociedade civil e do governo será
actores em todo o espectro social, político e necessária para exercer a pressão e a força
económico. Em particular, as empresas da reguladora que podem remodelar as
Big Tech precisam de: prioridades e os modos de operação da Big
Tech.
- Pagar a sua justa parte dos impostos. As
receitas perdidas devido à evasão fiscal Governos e decisores políticos:
pelas maiores empresas de Silicon Valley
(Facebook, Apple, Amazon, Netflix, Google e O governo tem a primeira responsabilidade
Microsoft) ultrapassam os 100 mil milhões de promover o interesse público, além de ser
de dólares globalmente nos últimos 10 anos. a única instituição com legitimidade,
autoridade e recursos suficientes para
- Parar o secretivo lobby e outros esforços responsabilizar a Big Tech, especialmente na
nos bastidores para evitar a regulamentação. medida em que trabalha em conjunto com a
Embora algum grau de lobby seja legítimo, sociedade civil. Os órgãos públicos eleitos
deve ser conduzido de forma totalmente devem agir de forma decisiva e colaborativa
pública. em todas as jurisdições para regular a Big
Tech, exigir que essas corporações paguem
- Fornecer transparência pública em relação impostos justos e, através dos seus poderes
à política de privacidade, práticas de de aquisição e de contratação, promover um
vigilância, tráfico de dados, campanhas sector de tecnologia que atenda de forma
políticas nas redes sociais e impactos sustentável às necessidades de informação e
ambientais (consumo e fontes de energia). comunicação das pessoas. Em particular, os
governos e decisores políticos precisam de:
- Oferecer acesso a APIs ("Application
Programming Interface" ou Interface de - Rever as leis anti-concorrência para
Programação de Aplicações) a funções separar monopólios e desarticular fusões
essenciais em conformidade com normas anti-concorrenciais, para permitir mercados
abertas para permitir a interoperabilidade mais competitivos e controlar a excessiva
com fornecedores de serviços alternativos. influência política.

- Apoiar o direito a reparar. Se não podemos - Designar as grandes plataformas de


assegurar o funcionamento dos nossos tecnologia como "Platform Utilities"
dispositivos, não conseguimos garantir que [plataformas de serviço público], proibindo a

Desfinanciar a Big Tech, refinanciar a comunidade | 37


O Estado da Internet 2021

Big Tech de possuir e monetizar tanto a excessos. Em vez disso, as instituições


plataforma quanto os seus utilizadores. públicas podiam alavancar o seu poder
colectivo por forma a desenvolverem os seus
- Exigir interoperabilidade de plataformas, próprios serviços ou a apoiar o desenvolvi-
incluindo para facilitar a "portabilidade de mento de serviços alternativos governados
identidade" para permitir que modelos de pela comunidade mas não controlados pela
negócios alternativos, incluindo os sem fins Big Tech.
lucrativos, surjam sem manter os
utilizadores cativos. - Consultar e colaborar com organizações
profissionais, como a Association for Com-
- Alargar a responsabilidade do produtor puting Machinery (ACM), trabalhadores e
para mitigar os danos ambientais e apoiar a grupos laborais organizados, grupos de
reparção versus a obsolescência planeada. advocacia e de direitos humanos, grupos
ambientais e outros para garantir que todas
- Estabelecer e aplicar um regime tributário as vozes são ouvidas e que o importante
razoável com base em elevados lucros conhecimento local seja considerado ao
corporativos, em transacções financeiras ou desenvolver políticas tecnológicas.
em ambos, bem como outras abordagens que
reembolsem a comunidade. - Consultar e colaborar com outros órgãos
governamentais, incluindo vilas, cidades e
- Reverter a vigilância estatal em massa, regionais, bem como nacionais, internacio-
especialmente quando depende do acesso nais e supranacionais, para ajudar a garantir
secreto e irresponsável do governo aos que políticas digitais justas, prudentes e não
dados pessoais mantidos pelos fornecedores opressivas não sejam desfrutadas apenas
de plataformas. por uns poucos privilegiados.

- Estabelecer uma forte privacidade Profissionais/trabalhadores da tecnologia,


internacional e outros regimes de direitos investigadores e as suas organizações:
digitais, suficientemente robustos para
proteger efectivamente os indivíduos, bem Como as pessoas mais conhecedoras das
como para ajudar a abolir o modelo de operações da Big Tech, bem como aqueles
negócios do capitalismo de vigilância. trabalhadores cujas funções são essenciais
para a viabilidade contínua da Big Tech, os
- Reduzir a dependência das instituições trabalhadores da tecnologia têm um papel
públicas da Big Tech. Em vários sectores, transformador especialmente importante a
nomeadamente na defesa, serviços governa- desempenhar. Muitos entraram no sector
-mentais e educação, os governos passaram com grandes expectativas sobre as contri-
a depender fortemente dos serviços de Big buições que poderiam dar para a melhoria
Tech, tornando mais difícil controlar os seus social, mas desde então desiludiram-se.

Desfinanciar a Big Tech, refinanciar a comunidade | 38


O Estado da Internet 2021

Embora os investigadores na tecnologia sociedade civil (OSC) e os movimentos


estejam mais afastados das operações, eles sociais que levam os governos a agir no inte-
também podem oferecer "insights" bem infor- resse das pessoas a quem deviam suposta-
mados. Trabalhando em conjunto, estes mente servir e, depois, a continuar a pressio-
grupos precisam de: nar para garantir que fazem a coisa certa.
Elas actuam como vigilantes especializados,
- Organizarem-se para se opor ao comporta- empreendedores de políticas e veículo prin-
mento escandaloso da Big Tech, recorrendo a cipal para uma mobilização eficaz, pressio-
esforços já bem-sucedidos. nando empresas e governos a agirem.
Embora existam muitas OSC activas no
- Recusar patrocínios de empresas que campo dos direitos tecnológicos/digitais, até
violam os critérios de boas práticas nos agora não há o mesmo grau de mobilização
negócios. do movimento social que outras áreas alcan-
çaram, como na justiça racial e na sustenta-
- Trabalhar dentro de organizações profis- bilidade ambiental. Eis algumas acções que
sionais para garantir que essas questões podem ser concretizadas:
recebem a atenção que merecem.
- Monitorizar de perto a Big Tech e responsa-
- Educar os alunos da tecnologia sobre os bilizá-la em áreas como a concorrência de
perigos da Big Tech e como assumir a respon- mercado, liberdades civis, acessibilidade,
sabilidade pelos sistemas que desenvolvem. trabalho e sustentabilidade ambiental.

- Apoiar profissionais em todo o mundo que - Considerar alternativas às plataformas Big


revelam abusos de tecnologia e incentivam a Tech para comunicar com apoiantes,
tecnologia comunitária. organizar eventos e divulgar problemas.

- Usar a sua experiência tecnológica e - Cooperar com membros da comunidade,


imaginação social para trabalhar com trabalhadores da tecnologia e outros no
pessoas da comunidade, bem como com desenvolvimento e implementação de abor-
funcionários do governo e organizações da dagens que melhorem a eficácia dos seus
sociedade civil, para imaginar, conceber, esforços sem sacrificar os seus ideais.
desenvolver e gerir alternativas para a Big
Tech e outras abordagens corporativas - Trabalhar com outras organizações e redes
convencionais. em todo o mundo para garantir que as
empresas de tecnologia e os governos estão
Organizações da sociedade civil e movimentos a usar a tecnologia de maneira responsável.
sociais:
Indivíduos (consumidores, empresas,
São frequentemente as organizações da investidores):

Desfinanciar a Big Tech, refinanciar a comunidade | 39


O Estado da Internet 2021

Se queremos abolir as condições que levam - Boicotar a publicidade no Facebook e outras


aos danos da Big Tech e, ao mesmo tempo, plataformas que prejudicam a democracia e,
redireccionar o desenvolvimento da tecnologia de outra forma, agem de forma flagrante
para um futuro mais justo e sustentável, contra o interesse público.
acções individuais, mesmo pequenas, que
sejam proporcionais às nossas capacidades, - Assinar e, quando viável, pagar por
meios e campos de especialização podem jornalismo de qualidade e outros recursos
contribuir cumulativamente para mudanças informativos, em vez de simplesmente lhes
significativas. Muitos de nós estamos em aceder por meio de plataformas que
posição de reter as informações pessoais e o redistribuem conteúdo gratuitamente sem
dinheiro de que a Big Tech depende e compensar de forma justa a fonte.
redireccioná-las de forma mais positiva. Eis
algumas medidas a tomar, que são mais - Apoiar e trabalhar com organizações da
eficazes quando feitas em conjunto e sociedade civil nos seus esforços de
colectivamente: anti-vigilância e outros esforços para moldar
a tecnologia democrática.
- Insistir para que os governos cumpram o
seu papel de defensores dos direitos - Exercer os nossos direitos e
humanos e defensores do interesse público responsabilidades democráticas, por
na prossecução das acções identificadas exemplo a liberdade de expressão, de
acima, uma vez que, sem esta pressão, comunicação, privacidade e de reunião.
provavelmente não o farão.
Há um apoio público crescente para
- Reconhecer que nenhuma computação vem controlar o poder da Big Tech. Iniciativas
sem custo, mesmo quando oferecida "de anti-concorrência estão a liderar com o
borla". Pagamos colectivamente por serviços objectivo de segmentar os gigantes e regular
de publicidade através de preços mais melhor o sector. No entanto, embora essas
elevados para o consumidor. Conforme já foi medidas sejam urgentes e vitais, é preciso
observado, é preciso considerar uma série de olhar muito para lá de simplesmente
outros custos ocultos também, em termos de permitir que os concorrentes menores das
democracia, privacidade e outras liberdades Big Five participem de mercados digitais que
civis e sustentabilidade ambiental. permanecem impulsionados por modelos de
negócios convencionais. Actualmente, há
- Resistir às práticas de vigilância da Big uma rara janela de oportunidade para
Tech, usando serviços alternativos, de considerar como esses enormes fluxos de
preferência de código aberto, para pesquisa, rendimentos podem ser usados para
navegação online, envio de e-mails, re-orientar o desenvolvimento da tecnologia
mensagens, videoconferência, bloqueio de para melhor servir objectivos sociais muito
anúncios e de rastreadores da Web, e mapas. mais amplos.

Desfinanciar a Big Tech, refinanciar a comunidade | 40


O Estado da Internet 2021

III Refinanciar a comunidade bem-estar público em vez do lucro privado.

O principal objectivo de desfinanciar a Big O objectivo dessas iniciativas não é apenas


Tech é reduzir o seu poder desproporcional e reter, mas também expandir os benefícios
redireccionar os seus excessivos fluxos de que as pessoas actualmente obtêm das
rendimentos para melhor atender às necessi- tecnologias digitais, atendendo melhor aos
dades humanas. Existem muitas áreas ema- seus interesses individuais e colectivos. Este
ranhadas de crise social que exigem trata- processo começa com o reconhecimento de
mento prioritário, incluindo a emergência que muitos milhões de pessoas dependem
climática e a protecção ambiental, reforma diariamente dos serviços da Big Tech (por
democrática, desigualdade social (por exem- exemplo, pesquisa, e-mail, redes sociais,
plo, resolução de disparidades económicas, recolha e partilha de notícias, mapas e locali-
de classe, raciais e de género) e reforma da zação de percursos), tornando-os utilizado-
justiça criminal, para citar os mais proemi- res de "utilities" de infra-estruturas. Como
nentes. Sem desafiar essas reivindicações outros serviços públicos (casos da água, elec-
vitais de recursos, concentramos-nos aqui tricidade e telecomunicações), não podemos
nos desenvolvimentos da tecnologia que permitir que a infra-estrutura digital seja
visam atender às diversas necessidades de operada por monopolistas irrestritos. Em vez
informação e comunicação das pessoas, disso, eles precisam de atender aos critérios
permanecendo sob o controlo da comunidade. do interesse público, o que inclui ser gover-
Abordamos isso de forma ampla como tecno- nado e trazido à responsabilidade democráti-
logia comunitária. Destacamos como seria o ca como serviços públicos, de modo que
reembolso em relação às principais infra-es- todos possam desfrutá-los livre e equitativa-
truturas e serviços tecnológicos digitais. Pela mente, ao mesmo tempo que ajudam a definir
sua natureza infra-estrutural, esses desen- a sua direcção. Além disso, os actores da
volvimentos tecnológicos podem auxiliar na comunidade também precisam do acesso
reparação das múltiplas crises mencionadas. aberto a essas infra-estruturas digitais para
desenvolver serviços novos e potencialmente
Inspirados por projectos que imaginam uma alternativos, sintonizados com as necessida-
Internet baseada em fundamentos radical- des emergentes ou mais localizadas. Esta
mente diferentes, identificámos os tipos de visão de tecnologiacomunitária representa
iniciativas de tecnologia baseadas na comuni- um híbrido de governação de utilidade públi-
dade que iriam beneficiar de uma redistribui- ca clássica de infra-estruturas sociais ede
ção das receitas da Big Tech e contribuiriam inovação liderada pela comunidade.
parareinventar as infra-estruturas digitais. A
democratização radical do projecto e da O desenvolvimento da tecnologia comunitária
governação das TIC é fundamental para o precede em muito a comercialização da
desfinanciamento/refinanciamento, com base Internet e o surgimento da Big Tech no final da
em modelos financeiros orientados para o década de 1990. De facto, as principais

Desfinanciar a Big Tech, refinanciar a comunidade | 41


O Estado da Internet 2021

inovações sobre as quais as grandes erário público governado democraticamente


empresas de tecnologia construíram os seus para apoiar de forma sustentável serviços
impérios originaram-se como iniciativas digitais essenciais para todos, experimenta-
comunitárias sem fins lucrativos em meados ção pelo sector da tecnologia comunitária
da década de 1970 e atingiram o seu apogeu para desenvolver novos serviços e iniciativas
em meados da década de 1990, quando mais bem-sucedidas que ofereçam bens públi-
de 100 redes comunitárias em todo o mundo cos/comuns valiosos. Em termos de enten-
estavam a organizar-se entre si e a fornecer der os riscos e as oportunidades relaciona-
serviços digitais a todos, geralmente sem das com os sistemas de informação e comu-
custos e sem vigilância. Embora o sector da nicação, nunca houve melhor momento para
tecnologia comunitária continue activo até estabelecer instituições públicas adequadas
hoje, com poucas exceções, as iniciativas às distintas necessidades e media do século
orientadas para a comunidade permanecem XXI.
relativamente marginais devido à falta de
recursos. Enquanto as startups de tecnologia Refinanciar a comunidade implica assumir
que têm sucesso em fornecer serviços uma maior responsabilidade partilhada para
amplamente apreciados podem esperar todos os aspectos do ciclo de vida da tecnolo-
prosperar, os empreendimentos sem fins gia, desde o conceito e design até à implanta-
lucrativos que são igualmente bem-sucedidos ção, redesenho, reparação e remoção. Todo o
em demonstrar o seu valor social ainda trabalho comunitário de refinanciamento
enfrentam um obstáculo quase intransponível deve considerar a educação como parte da
para alcançar a sustentabilidade. Em grande sua missão, incluindo como a tecnologia
parte, isso ocorre porque lhes falta um funciona e como trabalhar com ela, mas
modelo de rendimento comparativamente também o pensamento crítico relativo às
lucrativo com as suas alternativas com fins suas implicações sociais. Isso inclui identifi-
de lucro. car e comunicar os custos reais da tecnolo-
gia e potenciais danos futuros, e patrocinar
Tal como as principais instituições públicas conversas sobre os trabalhadores da tecno-
fundadas na media impressa numa era logia e condições de trabalho.
anterior - como escolas, bibliotecas e o
serviço postal - não existiriam sem um Existem agora milhares de novos projectos
financiamento público significativo e fiável, que apoiam vários aspectos da tomada de
as iniciativas agora emergentes na era digital decisão democrática, incluindo discussão,
que produzem de forma eficiente bens deliberação, design de serviço, partilha de
públicos/comuns semelhantes devem informações, agregação de notícias locais,
receber um apoio comparável. Para conseguir media "faça você mesmo", tomada de decisão,
isso, os fundos desviados dos subsídios monitorização ambiental, transparência
actuais à Big Tech e outros financiamentos governamental e orçamento participativo.
devem ser redireccionados por meio de um Um dos desafios é fornecer os recursos e a

Desfinanciar a Big Tech, refinanciar a comunidade | 42


O Estado da Internet 2021

infra-estrutura institucional para manter o em interromper tais projectos e abrir possi-


sucesso desses projectos. A cidade de bilidades para um planeamento urbano mais
Seattle, por exemplo, estabeleceu um genuinamente participativo que aproveita as
Citizens Advisory Board on Technology tecnologias digitais de maneiras que reflec-
(CTAB) que, entre outras funções, faz tem as necessidades e aspirações dos resi-
pequenas doações para projectos dentes locais.
tecnológicos de vizinhança. Numa escala
maior, uma entidade Corporation for Public Um esforço notável que oferece liberdade do
Software foi recentemente proposta para domínio da Big Tech é o DECIDIM, um siste-
ajudar a garantir que o software público, ma de código aberto para uma variedade de
especialmente sistemas deliberativos, abordagens de governança participativa, que
encontra um lugar seguro na esfera pública. está agora a ser usado ou testado em cidades
Eventos de hacking cívico desenvolvem ao redor do mundo, incluindo Barcelona,
dados públicos e aplicações digitais para uso Milão, Helsínquia e Cidade do México. Além
cívico. A consultora Ideas for Change disso, grupos e governos em todo o mundo,
desenvolveu grandes projectos na UE que como a Federação Internacional da Cruz
usam design participativo e tecnologia Vermelha e as Sociedades do Crescente
digital, como tecnologia de sensores, para Vermelho estão a trabalhar para a partilha de
ajudar as pessoas a desempenharem um dados para ajudar a implementar sistemas
papel activo na melhoria da sua cidade. inteligentes para o bem comum. Propostas
Barcelona, em Espanha, alberga uma ampla recentes no desenvolvimento de cooperati-
variedade de projectos comunitários vas de dados, relações de confiança e mode-
inovadores e de tecnologia cívica, incluindo o los de administração pavimentam o caminho
Barcelona Ciutat Refugi para ajudar a para paradigmas de dados que focados na
enfrentar a crise humanitária de milhões de comunidade. Alguns desenvolveram recente-
pessoas deslocadas. mente tecnologias que beneficiam comuni-
dades, como o Sentilo e o DECODE em
Ao mesmo tempo, grandes iniciativas de Barcelona, que se concentram em sensores
"players" da Big Tech para tornar as cidades urbanos e disponibilizam dados gerados
ou regiões "inteligentes" merecem um escru- para benefício público, ou o Telecomunica-
tínio crítico, especialmente propostas que ciones Indigenas Comunitarias focado na
marginalizem os residentes. Alguns desses infra-estrutura de comunicações públicas no
esforços tentam transferir responsabilida- México. Outros, como o Free Geek e a Reboot
des públicas importantes para mãos priva- Canada, concentram-se na reciclagem de
das. Muitos fazem afirmações incrivelmente hardware para ajudar a fornecer computa-
confiantes, fornecem uma transparência ção acessível em comunidades que promo-
mínima e acumulam dados públicos para o vem uma série de objectivos de equidade
seu ganho privado. A organização de resi- social. O We Don't Have Time é um movimen-
dentes locais tem sido, nalguns casos, eficaz to e uma startup de tecnologia que aproveita

Desfinanciar a Big Tech, refinanciar a comunidade | 43


O Estado da Internet 2021

o poder dos media sociais para manter líde- opressão ou violência sistémica. Ao mesmo
res e empresas responsáveis pelas mudan- tempo, sabe-se que a humanidade enfrenta
ças climáticas. Muitas outras iniciativas de outros problemas profundamente sérios,
tecnologia comunitária dignas de apoio incluindo mudanças climáticas, pandemias,
podiam ser mencionadas. autoritarismo e guerra. Por essa razão, um
objectivo crítico do refinanciamento das
Onde as formas convencionais de tomada de comunidades é apoiar a sua organização em
decisão democrática são consideradas inade- torno de questões partilhadas. É vital desen-
quadas para enfrentar desafios espinhosos volver coligações que sustentem as infra-es-
de políticas, como a crise climática e a refor- truturas digitais essenciais amplamente
ma eleitoral, as pessoas recorrem às assem- utilizadas e promovam a cooperação entre as
bleias de cidadãos como a forma mais popu- comunidades, não apenas nos Estados
lar de deliberação colectiva em torno de Unidos mas em todo o mundo.
questões controversas. As assembleias de
cidadãos também podem ser adequadas para Ao permitir que corporações e governos
propor, avaliar e recomendar estratégias estabeleçam as regras relativas à tecnologia,
para o desenvolvimento da tecnologia que negligenciámos as possibilidades de expan-
podem ser relativamente livres da influência dir as nossas próprias agências, enquanto
dos interesses da Big Tech e do solucionismo muitos que usam essas tecnologias são afec-
tecnológico em geral. Fóruns públicos ainda tados adversamente por elas. Resistir à cap-
mais modestos, como debates entre defenso- tura das nossas infra-estruturas de informa-
res rivais e o questionamentos por especia- ção e comunicação e redireccionar recursos
listas, pode ajudar as pessoas a compreender para iniciativas orientadas e baseadas na
as opções e limitações tecnológicas das solu- comunidade torna-se mais crítico e cada vez
ções tecnológicas para questões preocupan- mais difícil, à medida que a tecnologia é
tes, de outra forma obscurecidas pelas incorporada de forma mais profunda, com-
promoções da Big Tech. pleta e menos transparente nas nossas
mentes e corpos, nossas casas e cidades, e
IV Outra tecnologia é possível no ambiente onde vivemos. Agora é a hora de
radicalmente refinanciar o futuro da tecnolo-
A mobilização actual em torno da violência gia, reivindicando os propósitos do desenvol-
policial e do racismo sistémico nos Estados vimento tecnológico e redistribuindo as
Unidos recorda-nos a profunda opressão que responsabilidades e benefícios associados,
foi tecida no fabrico social e tecnológico de ao serviço do nosso bem-estar colectivo e
regiões e países em todo o mundo. Refinan- sustentável.
ciar as comunidades ajudará a fortalecer as ___________
organizações que desenvolvem tecnologias
para reconhecer, apoiar e ajudar indivíduos e Referências disponíveis no texto original.
comunidades que vivem com discriminação,

Desfinanciar a Big Tech, refinanciar a comunidade | 44


O Estado da Internet 2021

Desgovernar?

Hubert Guillaud, editor da Internetactu.net

Se o mundo nos parece tão incompreensível é porque se tornou assim!, explica o


escritor Tim Maughan (@timmaughan), autor em particular de um romance de ficção
científica, "Infinite Detail" (MCD Books, 2019, não traduzido), em OneZero (@ozm). De
cadeias de distribuição automatizadas às trocas comerciais de alta frequência, a
complexidade torna o mundo "desconhecido" para qualquer inteligência humana. Pior,
realça ele, para gerar cada vez mais crescimento, os sistemas automatizados devem
aumentar constantemente a sua complexidade. Nenhum ser humano é capaz de
entender o que está a acontecer por trás dos ecrãs: diariamente, 82,2 anos de vídeo
são carregados no YouTube; são trocados 500 milhões de tweets, o equivalente a um
livro de 10 milhões de páginas!

Já em 2014, o escritor passou uma semana num navio porta-contentores... e o que


mais o impressionou foi o quanto cada decisão era tomada pela tecnologia. Do
responsável pelos guindastes ao comandante, todos receberam instruções por meio
de algoritmos de gestão, aceites e sem dúvida respeitados por profissionais
competentes, embora essas decisões não fossem motivadas com qualquer explicação.
Assim, explica ele, o capitão do barco recebia regularmente e-mails automáticos
pedindo-lhe para diminuir a velocidade do navio, sem que a empresa de navegação lhe
explicasse o motivo. Como se já tivéssemos abandonado a motivação para as decisões
e a explicabilidade do mundo...

| 45
O Estado da Internet 2021

Tanto faz, desde que haja comida e roupa nas Como o capitão do navio porta-contentores,
lojas, dinheiro nas máquinas, histórias no temos cada vez menos controlo político
nosso Instagram… Agora, tudo parece ser sobre as nossas próprias democracias, diz
feito sozinho, sem necessidade de ter preo- Maughan. Parafraseando o cineasta Adam
cupações! No entanto, esses sistemas com- Curtis, em vez de eleger líderes visionários,
plexos podem falhar. 2020, por exemplo, estamos na verdade a votar em quadros
permitiu constatar quanta pressão podem intermédios num sistema global complexo
ter as cadeias de abastecimentos, levando a sobre o qual ninguém tem controlo total. O
uma quota de escassez. As cadeias de distri- resultado desta situação assemelha-se cada
buição também sofrem regularmente com vez mais a um vácuo democrático. Vivemos
ataques de malware... Ainda assim, nenhu- numa época em que os eleitores têm um
ma falha foi verdadeiramente catastrófica, nível recorde de desconfiança em relação
como se o colapso da complexidade fosse, aos políticos, em parte porque podem sentir
em última análise, muito mais resiliente do essa desconexão, argumenta Maughan: eles
que o esperado. É de se perguntar se essas vêem na realidade quotidiana que, apesar
redes, em última análise, não funcionam das suas reinvindicações, os políticos não
muito bem, apesar de sua opacidade ineren- podem realizar mudanças, como se ninguém
te. Demos-lhes um grande poder de decisão pudesse actuar no sistema automatizado de
para atingirem os seus objectivos da manei- tomada de decisão. Pior, sublinha Maughan,
ra mais eficiente possível e elas estão a fazer muitos políticos acreditam que não devemos
isso relativamente bem... desde que os deta- consertar o sistema, mas acelerar o proces-
lhes não sejam inspeccionados, ressalva so de desregulamentação, ou seja, dar ainda
Maughan, porque não têm capacidade de mais poder à automação em rede.
tomar decisões éticas ou julgamentos morais
sobre o que fazem - lembrando-nos as pala- Para Maughan, precisamos de encontrar
vras de Miriam Posner sobre os limites da maneiras de aumentar o nosso conhecimen-
transformação do software na cadeia de to do incognoscível e de estratégias para
fornecimentos. Na verdade, recorda Mau- combater a impotência e a ansiedade que o
ghan, pelo seu próprio design, a rede da sistema produz, conclui ele. Poderíamos
cadeia global de abastecimentos perpetua e concordar plenamente com isso se não
aumenta as desigualdades: o seu papel é percebessemos, com o tempo, que essa
aproveitar as diferenças nos padrões de vida exigência de explicação e ética, à força de
para produzir em países onde essa produção ser repetida, parece estar-se a afastar de
é mais barata e despachar as mercadorias nós à medida que avançamos, à medida que
para o outro lado do mundo para as vender os sistemas se desdobram e criam raízes.
com lucro. Essas constatações estendem-se Em vez de exigir transparência que parece
a plataformas de streaming que oferecem recuar em todos os lugares à medida que é
conteúdos de entretenimento ilimitado, em mobilizada, não deveríamos olhar melhor
detrimento dos lucros de quem os produz. para o que está a impedir isso? Por que essas

Desgovernar? | 46
O Estado da Internet 2021

cadeias parecem cada vez mais fortes e cada visões sob reinvindicações de universalidade
vez menos governáveis? Talvez se deva sem portanto proporem adequadas
entender que elas não se pretendem gover- prescrições, sem possibilidade de fazer
náveis precisamente - ou mais exactamente corresponder as estruturas institucionais
que a sua estrutura (que é bem governada) aos resultados.
tende antes de tudo a produzir, voluntaria-
mente, a ingovernabilidade, ou seja, a redu- Mais precisamente, explicam, a não gover-
zir o alcance de quem pode governá-las... nança global não significa uma ausência de
governança, mas tensões entre o facto de
Um mundo sem governança que o lado global perturba a governança e o
acessível? facto de que a governança perturba o seu
projeto mundial. Para eles, a não governança
A revista jurídica Transnational Legal funciona num contexto de grandes visões
Theory retomou precisamente numa edição (como o mercado ou o Estado de direito) que
recente o conceito da "não governança" não têm vias de recursos adequados... e que,
("ungovernance"). Nas várias contribuições a portanto, sofrem de uma impossibilidade de
esta questão, vários significados emergiram, acção (quer dizer que as estruturas institu-
mostrando que o conceito ainda precisa cionais não podem atingir os resultados
certamente de ser refinado. Para alguns desejados), o que leva tanto a dar continuida-
autores, a não governança parecia antes de à sua acção e a constatar a impossibilida-
resultar da ingovernabilidade, da de, tanto que o sucesso não se mede na sua
impossibilidade de governar pela ausência capacidade de construir instituições adapta-
de estruturas e instrumentos para o fazer. das, mas muito mais em re-organizar cons-
Para outros, a não governança parecia tantemente as grandes visões iniciais.
resultar de uma desgovernança, de um
declínio na governamentalidade, conforme Para os seus colegas Dimitri Van Den
proposto por procedimentos baseados em Meerssche (@dimitri_vdm) e Geoff Gordon, o
algoritmos e inteligência artificial, por risco e a resiliência são a nova arquitectura
exemplo (seguindo o conceito de normativa. Tomando como exemplo o
governamentalidade algorítmica definido por funcionamento da banca mundial, os dois
Antoinette Rouvroy e Thomas Berns, que é investigadores revelam que o risco e a
uma mudança nos métodos de governo complexidade já não são considerados como
precisamente visando eliminar o “próprio condições limitadoras de um projeto, mas
projecto de governar”). como elementos constitutivos, visando
governar a partir de ferramentas baseadas
Assim, os juristas Deval Desai na incognoscibilidade.
(@devalsdesai) e Andrew Lang, no seu artigo
introdutório, definem a não governança como Um outro artigo de Stephen Humpreys exami-
projectos globais que procuram grandes na a não governança da questão climática.

Desgovernar? | 47
O Estado da Internet 2021

Para este último, o Painel Intergovernamen- de um conjunto de decisões racionais,


tal sobre Mudanças Climáticas (IPCC), por sustentadas por um vasto aparelho
exemplo, sublinhou muitas vezes que a regulatório, mas que acaba por se revelar
governança da questão climática - ou melhor, muito selectivo e que acima de tudo integra e
a sua ausência - era justamente um grande pressupõe a incerteza em qualquer
obstáculo para a resolução do problema resolução. Para Christine Bell, a não
climático. Ou para o dizer de outra forma, governança não está fora da lei, mas nas
que as estruturas de governança existentes suas falhas, suas montagens, suas
são em si mesmas um obstáculo à gestão do actualizações, suas dissonâncias... Para
clima. Para Humphreys, a não governança Zinaida Miller, a justiça de transição, por
aqui significa antes uma recusa provisória, exemplo, decorre de uma forma de não
estratégica ou consciente de mecanismos de governança onde os objectivos de justiça, de
controlo em relação aos poderes institucio- apaziguamento, de verdade e reconciliação
nais existentes. O regime de direito construí- parecem mais importantes do que as
do para conter as mudanças climáticas é soluções mobilizadas. Para Michelle
imperfeito e complexo e encaixa-se numa Burgis-Kasthala, os acordos de Oslo que
vasta rede de aparatos regulatórios interliga- definiram as modalidades das relações entre
dos. Se a questão do clima é antes de mais israelitas e palestinianos baseiam-se muito
uma questão de conhecimento que o IPCC mais na ausência de governança do que em
ilumina e mapeia, ele não governa a política modalidades claras de governo, o que
climática, que é deixada para os decisores permitiu aos actores de introduzir
políticos (bem como para organizações inter- incontáveis perturbações.
nacionais, instituições científicas, ONGs ou
mesmo empresas ou indivíduos...). Quando A edição da Transnational Legal Theory não
se olha para certos sectores, por exemplo, se interessa pelo digital. Mas o conceito de
como o petróleo ou a aviação, toda a questão não governança ou mesmo degovernança por
é o que deve ser regulamentado, por quem e sistemas técnicos certamente mereceria
como... e segundo quais práticas regulamen- certamente ser mais explorado e
tares. A questão da não governança não é esclarecido. Num momento em que os
reconhecer a complexidade ou inconsistên- sistemas técnicos nos fazem entrar numa
cia das políticas, mas entender como as suas gestão à vista, ágil e reactiva, onde as
interacções podem ser entendidas como algo ferramentas de tomada de decisão nunca
necessário, racional ou útil, ao invés de algo foram tão alimentadas para modelar o
contingente, irracional, errado ou inevitável. futuro, ainda se está a tentar traçar um
futuro, como sublinhou correctamente o
Ele distingue vários modos de não governança: investigador Olivier Ertzscheid ao relatar
agnóstico, experimental, inoculativo ou uma discussão com Antoinette Rouvroy. “Na
catastrófico. Para ele, explica, a não verdade, pode ser precisamente porque os
governança é o resultado acidental ou fortuito governos estão sobrecarregados (em parte)

Desgovernar? | 48
O Estado da Internet 2021

por falsas capacidades de prever 'o' futuro organizações estão mal equipadas para os
que eles se encontram também incapazes de escalar. “A cooperação e a coordenação
conceber 'um' futuro. A quase-certeza de continuam a ser o elo fraco - o 'pouco
poder conter a parte da incerteza do mundo, pensado' - dos dispositivos organizacionais”,
diminui mais porque ela não aumenta a daí o facto de saírem dos enquadramentos
capacidade de agir numa situação de em caso de crise, mas muitas vezes em
incerteza". detrimento do que é excluído (como as
considerações económicas excluídas do
A desorganização: modo de enquadramento muito hospitaleiro da crise).
funcionamento das organizações? Num mundo saturado de organizações,
penamos sempre para as organizar!
Eis-nos confrontados com repetidos erros Certamente porque essa organização está
que a crise sanitária ampliou ainda mais intimamente ligada ao poder (o que traz à
porque deixou de lado as questões de equi- mente as perguntas feitas por Frédéric
dade e de igualdade, em favor de uma efici- Laloux em "Reinventing organisations".
ência que só seria essencial quando tudo o
resto não o fosse mais. Resta que a eficácia Na gestão elitista e sanitária da crise que
da resposta à pandemia também tropeçou conhecemos, as organizações e os
nos métodos de resposta, nas suas respostas protocolos criados favoreceram uma decisão
operacionais, como destacado pelos investi- a curto prazo, de cima para baixo,
gadores em sociologia das organizações conflituosa... explicam. Por trás das suas
Henri Bergeron (@HenriBergeronSP), Olivier análises, os autores dedicam todo um
Borraz (@BorrazOlivier), Patrick Castel capítulo sobre como aprender com as crises,
(@PatrickCastel) e François Dedieu na sua como passar da procura das culpabilidades à
avaliação muito estimulante em "Covid-19: reforma das causas estruturais, apelando a
une crise organisationnelle" (Presses de criar uma espécie de observatório de crises
SciencesPo, 2019. Eles perguntaram-se: para retirar ensinamentos que não sejam
porque as situações de crise geram tamanha mais singulares - porque as crises não são -
criatividade organizacional, tornando os mas sistémicos. Ao denunciar com rigor o
planos elaborados com tanta atenção cadu- excesso de confiança, a saturação
cos antes de serem implementados? Porque desorganizada, a gestão de elite, a
essa proliferação aumenta os problemas de exuberante criatividade processual, o
coordenação que deveriam resolver? esgotamento decisório e contraditório... os
investigadores sublinham, no entanto, que
Para os investigadores, questionamos o peso estes defeitos continuam a ser o lote comum
das falhas ou dos méritos individuais e de todas as nossas organizações. O
negligenciamos as dimensões colectivas e "comando e controlo" autoritários raramente
organizacionais das decisões. Minimizamos produzem o que se espera deles. Acima de
os riscos e sinais, certamente porque as tudo, produzem desconfiança.

Desgovernar? | 49
O Estado da Internet 2021

Por fim, ao lê-los, pensa-se que a não


governança, a desorganização ou a produção
da ingovernabilidade... são talvez as várias
facetas de uma resposta a uma mesma
complexidade. Dessa perspectiva, a não
governança seria mais uma resposta
infra-estrutural às incertezas. Nesse
sentido, finalmente, a opacidade, a ruptura
democrática e a ausência de ética parecem
antes conter respostas para manter a
inactividade do mundo, um meio de reduzir,
mesmo na adversidade, o número de quem
pode governar? Não governar não é tanto um
meio de desinovar, como preconizava o
filósofo Alexandre Monnin (@aamonnz), mas
sim um meio de garantir a continuidade do
mundo. Desgovernar é mais um sintoma do
que um remédio. Desgovernar é certamente
tornar invisível toda a governança.
___________

Notas e actualizações disponíveis no texto


original.

Desgovernar? | 50
O Estado da Internet 2021

Adopção de carteiras digitais e de


smartphones vai descentralizar a Internet

Doug Antin, fundador e autor do The Sovereign Individual Weekly

O crescimento das carteiras digitais e da ubíqua Internet móvel global levarão à era
dourada da Web descentralizada. Como a Internet via satélite traz áreas pouco
desenvolvidas online, os primeiros produtos e serviços móveis terão uma rápida
adopção. E através do acesso móvel à Internet, a infra-estrutura digitalmente nativa e
descentralizada será a melhor opção para integração com as redes globais.

As áreas mais pobremente desenvolvidas têm demorado a adoptar a Internet. Mas, à


medida que essas pessoas ficam online, elas optam esmagadoramente por uma
infra-estrutura descentralizada. A descentralização fornece um meio de contornar a
deficiente infra-estrutura local, apoiar o acesso resistente à censura aos sistemas
globais e definir uma base clara e normalizada para o progresso futuro.

Eis como isso acontece e porque é importante.

O acesso global à Internet expande-se rapidamente

Em 2021, havia 8 mil milhões de pessoas no planeta. E quase metade, ou cerca de 4


mil milhões, dessas pessoas têm acesso à internet. É surpreendente considerar que
50% do mundo ainda não se consegue ligar de forma consistente à rede global da
humanidade.

Como é que isto pode ser?

Primeiro, os países menos desenvolvidos respondem pela maioria da população ainda


sem acesso. Em 2019, apenas 19% das pessoas nos países menos desenvolvidos tinha
acesso à Internet. Mas mesmo em países desenvolvidos, muitos locais têm
populações rurais significativas sem infra-estrutura de telecomunicações adequada.
O custo de construção de acesso fiável à infra-estrutura de telecomunicações nessas
áreas é uma barreira significativa ao acesso. E a falta de Internet pode afectar as
necessidades básicas, como a disponibilidade de serviços de tele-saúde, acesso
educativo e comércio electrónico.

| 51
O Estado da Internet 2021

Essa falta de acesso está finalmente a mudar serviços globais de Internet em qualquer
com a expansão de smartphones acessíveis lugar do planeta estabelecerá um padrão
e infra-estrutura de Internet via satélite. básico para serviços de conexão. Os utiliza-
dores esperam um nível mínimo de serviço e
Por exemplo, a SpaceX está a reduzir o custo recursos semelhantes ao Starlink como a
do lançamento espacial para a órbita terres- alternativa mínima viável. Isso significa que,
tre baixa (LEO). Com um custo eventual de se não gostarem do fornecedor de acesso à
1,5 milhões de dólares por lançamento do Internet (ISP) local, podem escolher a opção
Falcon 9 ou 10 dólares/kg. Em resultado global. E, à medida que esses grandes forne-
disso, o Starlink, uma infra-estrutura espa- cedores globais de Internet estabelecem
cial de Internet por satélite, pode fornecer conectividade com toda a população global,
acesso à Internet comparativamente acessí- surgirá um sub-produto interessante. As
vel pelos padrões actuais. Especialmente linguagens úteis do tráfego da Internet serão
para áreas tradicionalmente fora das regiões contratadas para normalizar as comunica-
acessíveis da infra-estrutura digital, como os ções universais.
países menos desenvolvidos.
Embora pareça extremo, isso já está a
Isto significa que os 50% restantes do mundo acontecer. As línguas usadas na Internet, de
provavelmente estarão online nesta década. facto, já estão em declínio.

Uma consequência de segunda Considere que das 6.500 línguas faladas no


ordem do crescimento no acesso à planeta, apenas 10 línguas respondem por
Internet 75% do tráfego da Internet. E 50% de todo o
tráfego da Web é dominado por apenas dois
À medida que a infra-estrutura da Web global idiomas, inglês e mandarim. Como a Internet
se expande para alcançar as populações via satélite fornece acesso às restantes 4 mil
carentes, mais pessoas ficarão online rapi- milhões de pessoas, as línguas úteis na
damente. Mas também significa que a intero- Internet serão reduzidas ainda mais. Isto é
perabilidade global se tornará normalizada porque os sistemas digitais gravitam em
no ponto de acesso à Internet. Ou seja: as torno de altos níveis de interoperabilidade e
formas como as pessoas acedem à Internet de estandardização. Queremos maximizar o
vão tornar-se uniformes e normalizadas. Os nosso acesso à maior rede humana. E
4 mil milhões de novos utilizadores da Inter- maximizamos a utilidade da Internet usando
net usarão o mesmo tipo de equipamento e apenas algumas linguagens comuns.
de software, terão uma compreensão dos
mesmos conjuntos de recursos e necessida- Usar alguns idiomas primários para as áreas
des semelhantes. de maior tráfego da Internet permite que mais
pessoas possam aceder a mais informações
A capacidade da Starlink em fornecer e serviços.

Adopção de carteiras digitais e de smartphones vai descentralizar a Internet | 52


O Estado da Internet 2021

A era digital - uma mentalidade optarão por versões digitais e compatíveis


móvel em primeiro com dispositivos móveis geralmente
adoptados por gerações mais jovens em
À medida que os restantes 4 mil milhões de países desenvolvidos.
pessoas ficarem online, eles adoptarão uma
mentalidade móvel em primeiro lugar. Saltando Como exemplo, os serviços bancários tradi-
gerações de hardware e de software antigos. cionais terão dificuldade em competir com a
neobanca e a revolução em andamento da
Já sabemos que, à medida que novos grupos carteira digital. Os exemplos incluem Paypal,
de pessoas ficam online, eles preferem AliPay, WeChat, Venmo, Cashapp e a cripto-
predominantemente hardware de Internet grafia. Popular com a Geração Z, Millennials,
móvel. Eles estão a escolher smartphones a conveniência e o acesso ao neobanking
como o seu método para interacção com a também proporcionará um grande valor para
Web. Um resultado directo da maior o novo grupo de pessoas que está a entrar na
acessibilidade dos smartphones e da era digital. Curiosamente, o neo-banking é
capacidade que fornecem para contornar a mais popular na Ásia e mostra uma utilidade
falta de infra-estrutura de telecomunicações. significativa nas áreas rurais.

Como mostram os dados, os serviços neo-


-bancários estão a ter um crescimento mas-
sivo e devem aumentar exponencialmente ao
longo da década de 2020.

Evolução das assinaturas móveis e fixas, 2005-2019

Crescimento explosivo das


carteiras digitais e da "neo-banca"

Muitas dessas pessoas estão online em


regiões com acesso limitado à infra-estrutura
Fontes:
moderna. Por causa disso, podemos esperar 1) https://t.co/YyZKeEftkr
que haja uma significativa procura crescente 2) https://t.co/wIz520nP5N
para contornar os serviços antigos, os "brick 3) https://t.co/R1nnaaXs8a
and mortar services ". Em vez disso, eles 4) https://t.co/a4LFbyKk3o

Adopção de carteiras digitais e de smartphones vai descentralizar a Internet | 53


O Estado da Internet 2021

E, em resultado disso, a infra-estrutura intermediários de confiança. Os intermediá-


bancária física está a morrer. rios tradicionais frequentemente não estão
disponíveis em comunidades distintas e
Aceder ao globalismo e escapar da remotas.
infra-estrutura local através da
descentralização Internet privada e globalizada por
satélite contorna a defunta
Assim, como é que tudo isso se traduz política governamental
exactamente numa era dourada da Internet
descentralizada? Mas apenas por se ter acesso à infra-estru-
tura descentralizada não significa que as
Conforme explicado antes, as populações pessoas a vão adoptar. Os motivos pelos
que se conectam nesta década irão, na sua quais os novos utilizadores escolhem por
grande maioria, optar por opções de Internet opções descentralizadas devem-se à privaci-
móvel. Isso deve-se em parte à falta de dade e aos desafios da orientação política. O
acesso à infra-estrutura tradicional e tipo de problemas característico do mundo
moderna. subdesenvolvido e em desenvolvimento.

E, à medida que essas pessoas ficam online,


elas procuram integrar-se rapidamente no
ecossistema económico global. Mas muitos
governos locais têm restrições e
infra-estrutura deficiente para apoiar o
acesso global. Nesses casos, as pessoas vão
adoptar de forma esmagadora as soluções
Web descentralizadas, como as carteiras
digitais, o neo-banking, bitcoins e outros
criptobens. Estes sistemas digitalmente
nativos suportam interoperabilidade global
sem depender de uma infra-estrutura
localizada.

As soluções da Web nativas digitalmente são


concebidas como soluções amigáveis para os
dispositivos móveis. Isso torna mais Como em Myanmar, quando os militares
provável que as pessoas recém-digitalizadas cortaram o acesso à Internet durante um
adoptem o seu uso. A descentralização golpe de Estado. Ou quando o "establishment"
permite o acesso a serviços fundamentais político cortou o acesso à Internet na
sem a necessidade de infra-estrutura física e Bielorrússia durante protestos. Como na

Adopção de carteiras digitais e de smartphones vai descentralizar a Internet | 54


O Estado da Internet 2021

Rússia, que planeia impedir o acesso ao Star- Esta ameaça de saída capacita as pessoas a
link e a fornecedores de Internet controlados fazerem as melhores escolhas para si
externamente. Ou como na China, onde a mesmas. Escolhas que de outra forma não
Internet é restrita pela Grande Firewall do lhes estavam disponíveis. Os governos,
governo. Nesses cenários, o acesso à infra- assim, serão forçados a adaptar as suas
-estrutura de Internet via satélite e sistemas políticas se os seus constituintes tiverem
Web descentralizados será preferido para a alternativas prontamente disponíveis.
era digital. Especificamente porque opera Novamente - neste cenário, os sistemas
fora do controlo do Estado. descentralizados permitem que as pessoas
contornem o controlo autoritário, forçando
Torna-se uma escolha simples e sem os governos a tomarem acções positivas.
cérebro. As pessoas nesses ambientes irão
optar por serviços digitais confiáveis e Adopção rápida da descentraliza-
resistentes à censura. Ao fazer isso, os ção nesta década
serviços descentralizados fornecem uma
base que reduz os riscos futuros e permite À medida que a adopção descentralizada
que os usuários tomem decisões orientadas continua em conjunto com a rápida adopção
para o futuro com confiança. global da Internet, ocorrerá um fenómeno
interessante. Juntamente com outros
Carteiras digitais resistentes à serviços digitalmente nativos e móveis, a
censura e a saída capacitada pela procura pelo 21 milhões de bitcoins
tecnologia aumentará drasticamente. Considere a
riqueza e a influência que possuir um bitcoin
Os serviços de Internet fora da infra-estrutu- inteiro proporcionará à medida que a
ra tradicional fornecem um "buffer" impor- procura aumenta para milhões de pessoas.
tante para pessoas que tradicionalmente [O total limitado de] 21 milhões de bitcoins
estão à mercê do controlo governamental. divididos igualmente entre uma população
Ele também fornece acesso à saída capacita- de 8 mil milhões de pessoas significariam
da pela tecnologia. Ou seja: um meio de criar que cada pessoa teria 0,002625.
uma vida online independente da localiza-
ção, que capacita os indivíduos a fugir de É improvável que a procura chegue a este
sistemas opressores. ponto. Mas é interessante considerar os
números de oferta e procura numa quantida-
Contando com carteiras digitais e suporte de de variável da adopção global. E nem sequer
infra-estrutura externa, os governos locais começa ou acaba com os bitcoins. Existem
são incapazes de confiscar os activos dos muitas maneiras novas e interessantes pelas
utilizadores. E estes ganham a capacidade quais os serviços descentralizados da Web
de levar facilmente os seus activos consigo estão a trazer mudanças positivas para o
quando fogem. mundo. Na próxima década, podemos esperar

Adopção de carteiras digitais e de smartphones vai descentralizar a Internet | 55


O Estado da Internet 2021

o surgimento de novos criptobens, concebi-


dos especificamente para apoiar comunida-
des com uma débil infra-estrutura física.

Se assumir que tudo o que eu disse é


verdade, 4 mil milhões de pessoas estarão
online na próxima década. E haverá um
aumento da procura por serviços e activos
móveis e descentralizados. Assim, é seguro
presumir que os activos digitais passarão
por uma era de ouro nos próximos anos
[mas] ainda se está muito no início da
implementação e adopção da Web
descentralizada.
___________

Referências disponíveis no texto original.

Adopção de carteiras digitais e de smartphones vai descentralizar a Internet | 56


O Estado da Internet 2021

Moderação descentralizada de conteúdos

Martin Kleppmann, investigador da University of Cambridge

Quem está a fazer um trabalho interessante na moderação descentralizada de


conteúdos?

Com Donald Trump suspenso do Twitter e do Facebook e a Parler afastada da AWS, há


uma discussão renovada sobre que tipo de discurso é aceitável online e como deve ser
forçado. Digo já que acredito que essas proibições foram justificadas. No entanto, elas
levantam questões que precisam de ser discutidas, especialmente dentro da
comunidade da tecnologia.

Como muitos já apontaram, Twitter, Facebook e Amazon são empresas livres para
fazer cumprir os seus termos de serviço da maneira que entenderem, dentro dos
limites da lei aplicável (por exemplo, legislação anti-discriminação). No entanto,
devemos também perceber que quase todas os media sociais, os espaços públicos do
reino digital, são na verdade espaços de propriedade privada sujeitos aos termos de
serviço de uma empresa. Actualmente, não existe um espaço alternativo viável e não
corporativo para o qual todos possamos nos mudar. Para o bem ou para o mal, Mark
Zuckerberg, Jack Dorsey e Jeff Bezos (e os seus subordinados) são, por enquanto, os
árbitros do que pode e não pode ser dito online.

Esta situação chama a atenção para a comunidade Web descentralizada, um


ponto-chave para um amplo conjunto de projectos que visam reduzir o grau de
controlo corporativo centralizado na esfera digital. Isso inclui redes sociais
auto-hospedadas/federadas, como o Mastodon e a Diaspora, redes sociais
ponto-a-ponto ("peer-to-peer"), como a Scuttlebutt, e diversos projectos de blockchain.
Os objectivos e tecnicismos exactos desses projectos não são importantes para este
texto. Vou começar por focar um objectivo de design em particular que é mencionado
por muitos projectos descentralizados da Web, e que é a resistência à censura.

Resistência à censura

Quando pensamos em censura, pensamos em Estados totalitários exercendo um

| 57
O Estado da Internet 2021

controlo violento sobre a sua população, A dificuldade da moderação de


esmagando a dissidência e sufocando a conteúdos
imprensa. Contra esse adversário, as
tecnologias que oferecem resistência à Se quisermos declarar alguns tipos de
censura parecem um passo positivo, uma conteúdo como inaceitáveis, precisamos de
vez que promovem a liberdade individual e um processo para distinguir entre materiais
os direitos humanos. aceitáveis e inaceitáveis. Mas isso é difícil.
Onde se traça a linha entre o cepticismo
No entanto, muitas vezes o adversário não é saudável e a teoria da conspiração
um Estado totalitário, mas outros prejudicial? Entre a sátira saudável, usando
utilizadores. Resistência à censura significa o exagero para efeito cómico, e a
que qualquer um pode dizer qualquer coisa, desinformação prejudicial? Entre desacordo
sem sofrer consequências. E, infelizmente, legítimo e assédio? Entre o mal-entendido
há muitas pessoas por aí que dizem e fazem honesto e a deturpação maliciosa?
coisas horríveis. Portanto, assim que uma
rede social resistente à censura se torna Com tudo isto, alguns casos estarão muito
suficientemente popular, espero vê-la claramente de um lado ou do outro da linha
preenchida com mensagens de spammers, divisória, mas haverá sempre uma grande
neonazis e pornógrafos infantis (ou qualquer área cinzenta de casos que não são claros e
outro tipo de conteúdo que você considere matéria para interpretação subjectiva. “Sei
desprezível). A liberdade de uma pessoa da quando vejo” é difícil generalizar numa regra
violência é a censura de outra e, portanto, que pode ser aplicada objectiva e
um sistema que enfatiza a resistência à consistentemente; e sem objectividade e
censura inevitavelmente convidará à consistência, a moderação pode facilmente
violência contra algumas pessoas. degenerar numa situação em que um grupo
de pessoas impõe as suas opiniões a todos,
Temo que muitos projectos descentralizados gostem ou não.
da Web sejam concebidos para resistir à cen-
sura, não tanto por quererem deliberada- Num serviço que é utilizado em todo o
mente tornar-se centros para neonazis mas mundo, haverá diferenças culturais sobre o
por uma espécie de crença utópica ingénua que é considerado aceitável ou não. Talvez
de que mais discurso é sempre melhor. Mas uma cultura seja sensível à nudez e tolerante
acho que aprendemos na última década que com representações de violência, enquanto
esse não é o caso. Se quisermos tecnologias outra cultura seja liberal quanto à nudez e
que ajudem a construir o tipo de sociedade sensível à violência. O terrorista de uma
em que desejamos viver, certos tipos de com- pessoa é o lutador pela liberdade de outra.
portamento abusivo devem ser restringidos. Não existe um padrão único e globalmente
Portanto, a moderação de conteúdos é neces- aceite do que é ou não considerado aceitável.
sária. No entanto, é possível chegar a um acordo.

Moderação descentralizada de conteúdos | 58


O Estado da Internet 2021

Por exemplo, os editores da Wikipedia conse- muito poder nas mãos de um pequeno
guem chegar a um consenso sobre o que número de administradores desses
deve e o que não deve ser incluído nos arti- servidores. Se estas redes sociais se
gos da Wikipedia, mesmo aqueles sobre tornarem mais populares, espero que esses
assuntos controversos. Não vou dizer que efeitos sejam amplificados.
esse processo é perfeito: os editores da Wiki-
pedia são predominantemente brancos, Filtro de bolha
homens e da esfera cultural anglo-america-
na, pelo que é provável que haja algum envie- Uma forma de media social é o chat privado
samento nas suas decisões editoriais. Não para pequenos grupos, conforme fornecido,
participei desta comunidade mas presumo por exemplo, pelo WhatsApp, Signal ou
que o processo de chegar a um acordo às mesmo o e-mail. Neste caso, quando se
vezes é confuso e não deixará todos felizes. coloca uma mensagem para um grupo, as
únicas pessoas que podem vê-la são os
Além disso, por ser uma enciclopédia, a membros desse grupo. Neste cenário, não é
Wikipedia concentra-se em factos necessária muita moderação de conteúdo: os
amplamente aceites com base em provas. membros do grupo podem expulsar outros
Tentar moderar os media sociais da mesma membros se disserem coisas consideradas
forma que a Wikipedia iria torná-los tristes, inaceitáveis. Se um grupo diz coisas que
sem espaço para sátira, comédia, arte outro grupo considera questionáveis, não há
experimental ou muitas outras coisas que os problema, porque os dois grupos não podem
tornam interessantes e humanos. No ver as conversas um do outro de qualquer
entanto, a Wikipedia é um exemplo maneira. Se um utilizador estiver assedian-
interessante de moderação de conteúdo do outro, a vítima pode bloquear o assedia-
descentralizada que não é controlada por dor. Assim, grupos privados são comparati-
uma entidade privada. vamente fáceis de lidar.

Outro exemplo são as redes sociais A situação é mais difícil com as redes sociais
federadas, como o Mastodon ou a Diaspora. que são públicas (qualquer pessoa pode ler)
Aqui, cada administrador de servidor e abertas (qualquer pessoa pode entrar na
individual tem autoridade para definir as conversa) ou quando os grupos são muito
regras para os utilizadores do seu servidor grandes. O Twitter é um exemplo desse
mas não têm controlo sobre a actividade modelo (e o Facebook até certo ponto, depen-
noutros servidores (a não ser para bloquear dendo das suas configurações de privacida-
totalmente outro servidor). Apesar da de). Quando qualquer pessoa pode escrever
arquitectura descentralizada, há uma uma mensagem que você verá (por exemplo,
tendência para a centralização (10% das uma resposta a algo que você postou publi-
instâncias do Mastodon respondem por camente), a porta abre-se para o assédio e o
quase metade dos utilizadores), deixando abuso.

Moderação descentralizada de conteúdos | 59


O Estado da Internet 2021

Uma resposta pode ser recuar para os quê, como quando se bloqueia utilizadores, é
nossos filtros de bolha ("bubble filter"). Por uma parte importante para reduzir os danos
exemplo, pode-se dizer que o utilizador vê nas redes sociais, mas por si só não é
apenas mensagens postadas pelos seus suficiente. Também é necessário manter
amigos imediatos e amigos de amigos. Tenho padrões mínimos sobre o que pode ser
quase a certeza que não tenho neonazis publicado, por exemplo, exigindo uma base
entre os meus amigos directos, e provavel- de civilidade e veracidade.
mente também não na minha rede em segun-
do grau, pelo que uma tal regra me poderia Moderação democrática de
proteger de um certo tipo de conteúdo extre- conteúdo
mista, pelo menos.
Argumentei anteriormente não existir um
Também é possível que os utilizadores padrão universal de aceitabilidade de conte-
colaborem na criação de filtros. Por exemplo, údo e, no entanto, devemos de alguma forma
o ggautoblocker era uma ferramenta para manter o padrão do discurso elevado o sufi-
bloquear contas abusivas no Twitter durante ciente para que não se torne intolerável para
o GamerGate, uma campanha de assédio os envolvidos e para minimizar os danos,
misógino de 2014 que prenunciou a ascensão normalmente de assédio, radicalização e
do "alt-right" e do trumpismo. Na ausência de incitamento à violência. Como podemos
moderação central pelo Twitter, as vítimas resolver essa contradição? Deixar o poder
deste assédio podem usar esta ferramenta nas mãos de um pequeno número de CEO de
para bloquear automaticamente um grande empresas de tecnologia, ou de qualquer
número de utilizadores prejudiciais para que outro grupo pequeno e não eleito de pessoas,
não tenham de ver mensagens abusivas. não parece uma boa solução a longo prazo.

Obviamente, embora essa filtragem evite que Uma solução puramente técnica também não
se tenham de ver coisas que não se gosta, existe, uma vez que o código não pode fazer
esta não impede que o conteúdo questioná- julgamentos de valor sobre que tipo de com-
vel exista. Além disso, outras pessoas podem portamento é aceitável. Parece que algum
ter o tipo oposto de filtro de bolha em que tipo de processo democrático é a única solu-
vêem muito conteúdo extremista, levando-as ção viável de longo prazo, talvez apoiada por
a se radicalizarem. Filtros personalizados alguns mecanismos tecnológicos, como inte-
também nos impedem de ver opiniões alter- ligência artificial/aprendizagem de máquina
nativas (válidas) que ajudariam a ampliar a para sinalizar material potencialmente abu-
nossa visão do mundo e a permitir uma sivo. Mas como seria este processo demo-
melhor compreensão mútua dos diferentes crático?
grupos na sociedade.
A moderação não deve ser tão pesada a
Assim, a filtragem subjectiva de quem vê o ponto de abafar o desacordo legítimo. O

Moderação descentralizada de conteúdos | 60


O Estado da Internet 2021

desacordo nem sempre precisa ser educado; coisas, é um trabalho horrível. Quem iria
na verdade, o policiamento pelo tom não querer fazer isto? Por outro lado, 15.000 é um
deve ser um meio de silenciar reclamações número minúsculo em comparação com a
legítimas. Por outro lado, a crítica agressiva contagem de utilizadores do Facebook. Em
pode rapidamente virar para o reino do vez de concentrar todo o trabalho de
assédio e pode não estar claro quando moderação de conteúdo num número
exactamente foi cruzada essa linha. Às comparativamente pequeno de
vezes, pode ser apropriado ter em moderadores, talvez cada utilizador devesse
consideração as relações de poder entre as fazer uma restrição na moderação de vez em
pessoas envolvidas e manter os privilegiados quando como parte das suas condições de
e poderosos num padrão mais elevado do uso de um serviço. Existem precedentes
que os oprimidos e desfavorecidos, dado que para esse tipo de coisa: em vários países,
ao contrário o sistema pode acabar indivíduos podem ser chamados como
reforçando os desequilíbrios existentes. Mas membros de um júri para ajudar a decidir
não existem regras rígidas e rápidas, e muito casos criminais; e os investigadores são
depende do contexto e da formação das regularmente solicitados a rever artigos
pessoas envolvidas. escritos pelos seus pares. Essas coisas
também não são muito divertidas, mas são
Este exemplo indica que o processo de feitas pelo bem do sistema cívico do qual
moderação precisa de incorporar princípios todos nós beneficiamos.
e valores éticos. Uma maneira de fazer isso
seria ter um conselho de supervisores de Moderadores com visões políticas
moderação eleito pela base de utilizadores. divergentes podem discordar sobre se
No seu manifesto, os candidatos a este determinado conteúdo é aceitável ou não.
conselho podem articular os princípios e Em casos de discordância, outras pessoas
valores que trarão para o trabalho. podem ser chamadas, permitindo que a
Candidatos diferentes podem escolher questão seja resolvida através do debate. Se
representar pessoas com visões de mundo não se chegar a nenhum acordo, o assunto
diferentes, como conservadores e liberais. pode ser encaminhado ao conselho eleito,
Ter um conjunto diversificado de opiniões e que tem a palavra final e usa a experiência
culturas representadas em tal conselho para definir directrizes para moderação
legitimaria a sua autoridade e melhoraria a futura.
qualidade da sua tomada de decisão. Com o
tempo, talvez até partidos e facções possam Implicações para as tecnologias
surgir, o que considero um sucesso descentralizadas
democrático.
Nas redes sociais descentralizadas, acredito
O Facebook emprega cerca de 15.000 que, em última análise, devem ser os
moderadores de conteúdo e, vistas bem as próprios utilizadores que decidem o que é

Moderação descentralizada de conteúdos | 61


O Estado da Internet 2021

aceitável ou não. Essa governança terá que ditatoriais, devemos trabalhar em prol de
ocorrer por meio de algum processo humano princípios éticos, controlo democrático e
de debate e deliberação, embora ferramentas responsabilidade.
técnicas e algum grau de automação possam ___________
ser capazes de apoiar o processo e torná-lo
mais eficiente. Em vez de resistir à censura Referências disponíveis no texto original.
simplista ou dar aos administradores poderes

O Estado da Internet 2021 | 00


O Estado da Internet 2021

Shhhh... Combatendo a cacofonia de


conteúdos com bibliotecários

Joan Donovan, directora de investigação no Harvard’s Shorenstein Center

Investigação recente sobre a desinformação e o novo coronavírus sugere que as


notícias que uma pessoa consome são predictivas de como ela avalia os riscos do
Covid-19 para a sua saúde e a sua comunidade. Esta afirmação pode soar como senso
comum, mas tem implicações mais sérias quando se começa a desvendar as
diferenças nas informações disponíveis sobre o Covid-19.

No Shorenstein Center da Harvard Kennedy School, o Technology and Social Change


Research Project analisa como a manipulação e desinformação dos media afecta
comunidades e instituições sociais específicas. Embora o conteúdo apresentado por
qualquer campanha de desinformação em particular seja importante, a fim de
analisar e compreender o impacto da desinformação, deve-se estudar o ecossistema
de informação maior - a totalidade das notícias, entretenimento, media social e outras
fontes disponíveis para uma comunidade e a infra-estrutura que a suporta. Como as
respostas confusas e frequentemente contraditórias à pandemia de Covid-19 em
diferentes áreas do mundo mostraram, elevados níveis de desinformação não
verificada e não mitigada podem afectar comportamentos individuais e de grupo a
uma velocidade surpreendente. Qualquer esforço conjunto para corrigir esse
problema pode exigir uma re-avaliação fundamental de como os utilizadores acedem
às informações online e de como as plataformas as gerem, bem como melhorias
ousadas em como a sociedade civil e outros actores de interesse público se envolvem
com os cidadãos nos espaços digitais.

O que acontece quando há muita informação sobre um determinado assunto sem uma
visão rigorosa do que é verificável e do que é falso? A Organização Mundial da Saúde
classificou a superabundância de informações como uma “infodemia”, onde é cada
vez mais difícil encontrar informações oportunas, relevantes e locais no meio de uma
torrente de conteúdos, parte ou grande parte dela propositalmente falsa. Maus
actores, de propagandistas políticos a operações comerciais que vendem “curas”
médicas falsas e equipamentos de proteção pessoal falsificados, atingem os
desavisados pesquisadores de informações à procura de desinfectante para as mãos,
máscaras N95 e suplementos de reforço imunológico. As empresas de busca e de

| 63
O Estado da Internet 2021

media sociais continuam incapazes de sepa- provas podem ser citadas para provar ou
rar conteúdo oficial, produtos legítimos e refutar um evento que nunca aconteceu?
serviços reais dos predadores. A infodémica Consequentemente, o impulso para desmas-
Covid-19 sobrecarregou a Internet com carar ou esclarecer as informações médicas
novos sites, textos, contas e anúncios, quase erradas levou a uma cacofonia de conteúdo,
todos prometendo demais e entregando de em que a verdade e a mentira se misturam
forma insuficiente nas suas áreas. Há muito em consultas de pesquisas que devolvem
tempo que a fraude online é um problema artigos, textos e vídeos com base na popula-
mas, na actual pandemia, a escala e a audá- ridade e noutros sinais comportamentais.
cia dessas fraudes são realmente enormes. Enquanto as empresas de tecnologia lutam
com a presença da desinformação, elas
Bens e serviços à parte, a infodemia dificultou voltaram-se para monitorizar sinais de
encontrar até mesmo informações básicas "comportamento inautêntico coordenado"
sobre o novo coronavírus, Covid-19, e as (um conceito cunhado pelo Facebook) porque
medidas que os indivíduos devem tomar para avaliar a veracidade do conteúdo é um negó-
se protegerem e aos outros. Em circunstân- cio complicado, especialmente quando se
cias normais, pode-se pesquisar informações trata de política e de notícias.
junto de pares ou colegas de trabalho, mas a
necessidade de distanciamento social relegou Nos últimos anos, as plataformas não consi-
a maioria das pessoas para fóruns online e deraram a desinformação médica como políti-
outras áreas da Internet, onde a conspiração ca. Alguns, como o Pinterest, estavam dispos-
e a desinformação médica prosperam. Conte- tos a remover informações incorrectas sobre
údos conspirativos, de "click-bait", com temas as vacinas, mas isso foi deixado para as políti-
como os abaixo referidos, existem em todas cas de uma plataforma específica. No entanto,
as principais plataformas de media social: as empresas de tecnologia descobriram que a
saúde da população é um assunto profunda-
“Covid-19 é uma conspiração para destruir o mente político. Praticamente qualquer soció-
governo dos EUA” logo concordaria que a saúde é política por
outros meios, citando as graves desigualda-
“Covid-19 é uma conspiração democrata para des no acesso à saúde (juntamente com a má
destruir Trump” gestão de recursos por parte dos políticos) e o
lento cuidado exigido pela ciência no desen-
“Covid-19 é uma reacção física às torres 5G” volvimento de terapêuticas. Neste momento,
porém, o acesso desigual à informação atra-
“Covid-19 é o controlo da população através palhou os esforços para distinguir a verdade
de vacinas com microchips” da falsidade online. As descobertas científi-
cas são cada vez mais divulgadas por meio de
É difícil provar que uma afirmação é falsa comunicados de imprensa pelas grandes
quando é completamente inventada. Que corporações farmacêuticas globais, onde a

Shhhh... Combatendo a cacofonia de conteúdos com bibliotecários | 64


O Estado da Internet 2021

competição para apressar uma vacina é infodémico: grupos antivacinação que


exacerbada pela retórica política que mini- começaram a usar plataformas de media
miza os riscos da Covid-19. Sem transparên- social para recrutar novos adeptos,
cia nos dados, jornalistas e investigadores empresas de media social que introduziram
enfrentam barreiras significativas na verifi- algoritmos de recomendação que tornaram a
cação de informações que já estão a ganhar desinformação médica mais fácil de
popularidade nas redes sociais, o que deixa o descobrir, influenciadores que começaram a
público em desvantagem na busca pelo empurrar pontos de vista anticientíficos para
conhecimento. Acontece que informações os seus assinantes e seguidores, e políticos
inúteis são baratas de produzir e lucrativas; que viram uma oportunidade de aumentar a
o conhecimento, ao contrário, é tanto caro sua base e alcance apelando a uma retórica
como não tão interessante. anti-científica. Os efeitos internacionais
dessas tendências eram claros antes da
A desinformação médica online é um proble- pandemia de Covid-19: a desinformação
ma sério hoje, mas nem sempre foi assim. também inibiu a resposta ao surto de Ebola
Numa edição de 1999 do Journal of Public de 2018, e o cepticismo vacínico e outros
Health Medicine, o Dr. Vince Abbott advertiu: aspectos da actual infodemia estão a
“A [Internet] não deve ser considerada uma desafiar as autoridades de saúde pública em
fonte fiável de informação em assuntos sobre todo o mundo.
os quais se sabe pouco. Isso é especialmente
verdadeiro para informações médicas, pois... O lançamento da vacina contra o HPV
muito do que um utilizador típico pode (papilomavírus humano) durante a crescente
encontrar será impreciso ou tendencioso”. popularidade da media social mostrou um
No entanto, as vozes impositivas das notícias exemplo dos efeitos prejudiciais da
ou das revistas académicas acharam difícil desinformação médica sobre um público
competir nos amplos espaços abertos do vulnerável. Em 2014, uma pequena cidade na
Internet, que permitiu a auto-proclamados Colômbia viu uma onda de hospitalizações
especialistas divulgarem as suas ideias em após vídeos de jovens meninas a terem
grande escala, sem guardiões, verificadores convulsões serem partilhados nas redes
de factos ou necessidade de credibilidade e sociais, supostamente mostrando os efeitos
de autoridade. Esta lenta mudança cultural colaterais da imunização contra o HPV. Uma
das fontes tradicionais de media abriu cami- investigação concluiu que os sintomas
nho para que informações inúteis inundas- físicos dos hospitalizados não eram
sem o ecossistema de informações. atribuíveis à vacina, mas resultavam de
reacções psicogénicas ligadas ao medo e à
Mesmo essas tendências preocupantes não ansiedade sobre a desinformação dessa
se tornaram um problema global até vacina. Quando o presidente colombiano
atingirem massa crítica. Uma confluência de Juan Manuel Santos deu uma conferência de
factores levou ao presente momento imprensa colectiva para dissipar os

Shhhh... Combatendo a cacofonia de conteúdos com bibliotecários | 65


O Estado da Internet 2021

rumores, a sua negação de qualquer ligação não deviam usar o seu limitado financiamen-
entre a vacina e as supostas reações a ela to para conduzir a glorificada moderação de
irritou os moradores locais da aldeia, que conteúdos para empresas avaliadas em
ficaram ainda mais desconfiados da vacina. biliões. O cenário da investigação em desin-
Este episódio sugere que a desinformação formação está a começar a replicar os
médica pode ser sentida profundamente e mesmos padrões de financiamento que
causa danos duradouros à confiança do agora coloca as universidades nos bolsos das
público na medicina e no governo. empresas farmacêuticas, onde a pesquisa é
onerada por empresas que procuram prote-
Como resultado da actual pandemia, médi- ger as suas reputações. Os campos de estu-
cos e investigadores de saúde pública estão dos críticos da Internet e da tecnologia de
a ecoar o apelo dos investigadores da desin- interesse público terão que crescer para a
formação para encontrar uma maneira de ocasião e criar formas de investigação que
partilhar dados de media social protegidos dependam menos dos dados das plataformas
por privacidade, a fim de apoiar pesquisas para determinar como as pessoas realmente
em andamento sobre desinformação e hesi- lidam com a desinformação diariamente.
tação vacinal. No entanto, as colaborações
anteriores entre o Facebook e investigadores Também precisamos de um corpus de
de ciências sociais falharam por uma infini- pesquisa para investigar como organizações
dade de razões: algumas técnicas, a maioria da sociedade civil, profissionais de saúde e
político. O principal obstáculo à privacidade governos (não os políticos) podem proteger a
ainda permanece. No entanto, sem políticas integridade das comunidades online e
mandatórias para auditar as empresas de desenvolver estratégias de comunicação
plataformas de media social e penalizações ousadas que se elevam acima da cacofonia da
reais pela distribuição de desinformação desinformação. Como seria se esses actores
médica perigosa, não pode haver solução se esforçassem para corrigir a desinformação
para a desinformação não verificada, mesmo dentro de uma hora após ela ganhar força
quando pode ter consequências de vida ou de online? Como seria uma operação de
morte para o público. Os apelos à transpa- desmistificação distribuída se, por exemplo,
rência também são desadequados sem apli- fosse organizada em torno de locais, eventos
cação; as empresas têm todos os incentivos e questões específicas? Essa abordagem
para manter o que sabem e o que escolhem abriria o caminho para as empresas de
ocultar, escondido do escrutínio público. tecnologia mudarem e abraçarem as
obrigações de interesse público?
O financiamento para investigação sobre a
desinformação também precisa de se Finalmente, não há comunicação sem desin-
concentrar em mecanismos que protejam as formação. Haverá um atraso em confrontar
comunidades e criem responsabilidades. perigosas informações incorrectas sobre
Investigadores universitários, especialmente, saúde e alguns problemas persistirão

Shhhh... Combatendo a cacofonia de conteúdos com bibliotecários | 66


O Estado da Internet 2021

mesmo quando todas as intervenções forem


esgotadas. E ainda assim, em todas as ques-
tões que rotineiramente atrai os desinforma-
dores, essas empresas podem fazer mais
para curar conteúdos e privilegiar sistemati-
camente vozes fiáveis e responsáveis em vez
de conteúdo inflamatório, divisivo e sensa-
cional. As empresas de media social podem
enfrentar o desafio contratando milhares de
bibliotecários para construir um modelo de
curadoria de conteúdo que não dependa
tanto da moderação reactiva. Esta mudança
religaria fundamentalmente o nosso ecossis-
tema de informação, mas é talvez a melhor
solução para o nosso digital ecossistema.
___________

Referências disponíveis no texto original.

Shhhh... Combatendo a cacofonia de conteúdos com bibliotecários | 67


O Estado da Internet 2021

| 68
O Estado da Internet 2021

Iria notar se as notícias falsas mudassem


o seu comportamento?

Zach Bastick, European School of Political and Social Sciences, Lille Catholic University

Destaques

- Notícias falsas ("fake news") e desinformação podem modificar disfarçadamente o


comportamento dos indivíduos
- Pode fazer isso manipulando atitudes e emoções implícitas
- Os métodos de mitigação actuais não evitam a modificação do comportamento.
- É urgente enfrentar esta ameaça à democracia e à autonomia individual

Resumo

Uma crescente literatura está a surgir sobre a credibilidade e a disseminação da


desinformação, como notícias falsas, nas redes sociais. No entanto, pouco se sabe
sobre o grau em que actores mal-intencionados podem usar os media sociais para
afectar disfarçadamente o comportamento com desinformação. Uma experiência
aleatória controlada em laboratório foi levada a cabo com 233 alunos universitários
para investigar os efeitos comportamentais das notícias falsas. Verificou-se que
mesmo uma curta exposição (menos de 5 minutos) a notícias falsas foi capaz de
modificar significativamente o comportamento inconsciente dos indivíduos. Este texto
fornece uma prova inicial de que notícias falsas podem ser usadas para modificar
secretamente o comportamento, argumenta que as abordagens actuais para mitigar
as notícias falsas e a desinformação em geral são insuficientes para proteger os
utilizadores dos media sociais desta ameaça e destaca as suas implicações para a
democracia. Isto demonstra a necessidade de um esforço inter-sectorial urgente para
investigar, proteger e mitigar os riscos da modificação de comportamento encoberta,
generalizada e descentralizada nas redes sociais online.

Introdução

As plataformas online medeiam cada vez mais o discurso público. Os seus algoritmos
ajudam os cidadãos a integrar grupos sociais, a organizar através do ruído do discurso
público e a ficar a par de eventos actuais relevantes. No entanto, esses algoritmos

| 69
O Estado da Internet 2021

também permitem bolhas de filtro que mostrar artigos sobre tópicos sensíveis que
correm o risco de distorcer a realidade, incluem a política em "newsfeeds" das plata-
suprimindo visões contrárias e fragmentan- formas [digitais]. Identificar notícias falsas
do a esfera pública. Nesse contexto, a virali- pode ser desafiante, até porque a intenção de
dade costuma combinar-se com a ambigui- enganar pode ser difícil de diferenciar do
dade, produzindo cascatas de informações retrato genuíno de uma perspectiva contro-
onde os utilizadores partilham informações versa. No entanto, este texto concentra-se na
com poucas garantias de rigor. A dissemina- desinformação e usa o exemplo específico
ção orgânica da desinformação online é das notícias falsas e, como tal, pressupõe um
ampliada por interesses privados em busca conteúdo criado deliberadamente com a
de recompensas políticas ou financeiras, que intenção de enganar.
visam micro-indivíduos vulneráveis como
sementes para disseminar ainda mais a A noção de que a desinformação online pode
desinformação. Em grande escala, a disse- produzir mudanças de comportamento no
minação e a criação de informações intencio- mundo real ganhou atenção pública com o
nalmente falsas, conhecidas como desinfor- escândalo da Cambridge Analytica em 2018,
mação, podem impactar a sociedade, distor- em que dados de 87 milhões de utilizadores
cer os mercados e, em última instância, sub- do Facebook foram secretamente recolhidos
verter a democracia. Esse risco sistémico e usados para publicidade política no
pressupõe que a desinformação pode gerar referendo do Brexit e na eleição presidencial
efeitos que, mesmo que pequenos ao nível de 2016 nos EUA. Em 2019, o Mueller Report
individual, agregam-se o suficiente para citou explicitamente o Facebook e o Twitter
produzir resultados em larga escala. Embora como tendo sido usados por agentes russos
as tentativas concertadas de manipular a para espalhar desinformação para interferir
opinião pública por meio da desinformação nas eleições nos EUA e incitar a violência no
predominem em todo o mundo, há menos mundo real. A desinformação sobre a teoria
evidências sobre a capacidade da desinfor- da conspiração do Pizzagate foi atribuída
mação online em manipular directa e disfar- como a causa do tiroteio em 2016 numa
çadamente o comportamento. pizzaria em Washington D.C., e especula-se
que a desinformação nos votos por correio e
Embora tanto a "misinformation" quanto a a teoria da conspiração dos QAnon tenha
"disinformation" se refiram a formas de infor- impactado a eleição presidencial de 2020 nos
mação factualmente imprecisa, a "disinfor- EUA. Da mesma forma, afirma-se que a
mation" envolve a intenção de enganar. As desinformação sobre a pandemia do
notícias falsas são um veículo particular- coronavírus possa ter reduzido o uso de
mente potente de desinformação - aquele máscara e o distanciamento social.
que se disfarça de artigo jornalístico e, como
tal, usurpa a credibilidade do jornalismo, a No entanto, ainda não é claro até que ponto a
oportunidade do conteúdo e a capacidade de desinformação pode modificar o comporta-

Iria notar se as notícias falsas mudassem o seu comportamento? | 70


O Estado da Internet 2021

mento na prática. Primeiro, governos e moderação de conteúdo. Evidências experi-


académicos temem normalmente uma influ- mentais descobriram que as plataformas
ência indevida em comportamentos comple- podem manipular as emoções dos seus utili-
xos, como votar, mas raramente consideram zadores, e os estudiosos teorizam que as
comportamentos ou capacidades mais bási- plataformas podem "hiper-empurrar" os
cas, como as velocidades de dactilografar ou indivíduos para comportamentos previsí-
da atenção. Isto pode evoluir para comporta- veis. Quando esses estímulos comportamen-
mentos mais complexos ou acumular-se em tais são direccionados, eles podem decidir
resultados socialmente significativos em resultados sociais de reduzida margem,
escala. Em segundo lugar, a desinformação é como em eleições. Além disso, a democrati-
vista predominantemente como uma ameaça zação da inteligência artificial (IA) permite
aos processos racionais de dar sentido e de uma desinformação cada vez mais eficaz -
tomada de decisão, mas raramente como levantando especulações de que falsifica-
uma ameaça aos processos inconscientes ções profundas, por exemplo, podem ser
subjacentes ao comportamento. Entende-se capazes de implantar falsas memórias e
que as emoções podem afectar inconsciente- manipular indivíduos para acções nefastas.
mente o comportamento e uma literatura Consequentemente, sem uma compreensão
emergente sobre cognição implícita afirma diferenciada dos efeitos cognitivos da desin-
que mantemos atitudes implícitas que podem formação, a gama de possibilidades contra
afectar o nosso comportamento. Aqui, exami- as quais a sociedade se deve proteger torna-
no as mudanças básicas no comportamento -se insuperável.
que podem ser atribuídas a influências sobre
essas associações emocionais e a atitudes A perspectiva de distopias motivadas pela
implícitas - isto é, o impacto inconsciente da desinformação destaca a necessidade urgen-
desinformação sobre o comportamento. te de compreender a capacidade da desinfor-
mação online para modificar comportamen-
A necessidade de entender como a desinfor- tos individuais e canalizar resultados
mação pode modificar o comportamento é sociais. No entanto, há uma escassez de
acentuada pelas plataformas online. Isso estudos sobre a capacidade da desinforma-
permite que qualquer pessoa, de indivíduos a ção para modificar o comportamento, princi-
estados-nação, distribua desinformação com palmente fora da percepção consciente. Este
o objectivo de modificar o comportamento de artigo tem como objectivo fornecer provas
outras pessoas. A concentração da atenção iniciais dessa capacidade. Reportam-se os
do utilizador por um pequeno grupo de plata- resultados de uma experiência aleatória con-
formas também sugere que essas próprias trolada que testa se a curta exposição a notí-
plataformas podem modificar o comporta- cias falsas pode modificar o comportamento
mento, e isso merece atenção pelas mesmas inconsciente dos participantes - em particu-
razões subjacentes ao escrutínio contempo- lar, isola a capacidade das notícias falsas de
râneo sobre governança algorítmica e influenciar inconscientemente os resultados

Iria notar se as notícias falsas mudassem o seu comportamento? | 71


O Estado da Internet 2021

dos participantes envolvidos num "Finger natureza elusiva e efémera do seu assunto.
Tapping Test", um teste neuropsicológico Pode-se esperar que o estilo e o formato das
padrão da função cognitiva e motora. Este notícias falsas evoluam rapidamente em
artigo tem como objectivo iniciar uma resposta aos mecanismos de detecção,
agenda de investigação que explore a capaci- mudanças no "zeitgeist" e avanços na tecnolo-
dade da desinformação digital para modifi- gia. A tendência para elucidar estilos que são
car o comportamento e que investigue meca- comuns a exemplos de notícias falsas corre o
nismos para proteger o público desta risco de ignorar formas emergentes e mais
ameaça. [...] discretas de notícias falsas. Ao contrário de
definir notícias falsas como um género, este
Discussão artigo sugere defini-las como um meio com
restrições sócio-tecnológicas. Consequente-
Este estudo também destaca as limitações mente, os artigos de notícias falsas neste
do esforço da investigação contemporânea estudo não foram concebidos para correspon-
no combate às notícias falsas. Em primeiro der a um estilo específico de artigo, mas sim
lugar, os produtores de notícias falsas podem para serem eficazes ao máximo dentro das
contornar os mecanismos de detecção, restrições de um artigo de notícias falsas -
levando a estratégias defensivas continua- especificamente, (a) sendo uma notícia fabri-
mente reactivas dos profissionais, com uso cada que (b) é partilhada nas redes sociais e
intensivo de recursos e atrasos. Isto, por sua (c) lida num ecrã (d) num curto espaço de
vez, implica que os indivíduos continuarão a tempo. A investigação futura tem a possibili-
ser expostos a notícias falsas. Também con- dade de definir mais formalmente as restri-
fere uma maior responsabilidade editorial às ções normativas das notícias falsas e de
plataformas que controlam o discurso públi- outras formas de desinformação (como "deep
co, que são cada vez mais pressionadas a fakes", "tweets" enganadores e imagens mani-
moderar, filtrar ou excluir conteúdo - aumen- puladas). Pesquisas futuras sobre manipula-
tando as preocupações com a liberdade de ção comportamental encoberta por meio da
expressão e a censura. Em segundo lugar, desinformação devem examinar o funciona-
definir o padrão de "verdade" pelo qual as mento e a eficácia de outras técnicas de
notícias são julgadas como "falsas" é norma- manipulação dentro das restrições sócio-tec-
tivamente redutor, pois força a selecção nológicas da desinformação (como diferentes
entre perspectivas opostas que emergem de tipos de emoção, mensagens encobertas,
diferentes escolas de epistemologia. Tercei- reforço social e repetição). Uma agenda da
ro, a detecção nem sempre é possível. Este é investigação em comportamento encoberto e
particularmente o caso onde a manipulação desinformação deve explorar a questão: até
comportamental é inserida e dissimilada que ponto as técnicas de manipulação podem
entre conteúdo online legítimo. [...] ser efectivamente incorporadas no "medium"
da desinformação e como podemos proteger-
O estudo das notícias falsas é desafiado pela -nos contra essa ameaça?

Iria notar se as notícias falsas mudassem o seu comportamento? | 72


O Estado da Internet 2021

Limitações de que a curta exposição à desinformação


(como é típico online) pode ter efeitos mode-
Os resultados detectados nesta amostra de rados no comportamento individual incons-
alunos universitários podem não ser ciente, levanta preocupações imediatas para
consistentes na população geral ou noutros plataformas, legisladores e utilizadores de
sub-grupos. Ler um texto de tratamento num media social. Essas descobertas devem ser
laboratório académico pode produzir interpretadas dentro do ambiente de um
resultados diferentes do que ler uma notícia laboratório e em exposição única. Os efeitos
falsa num ambiente mais íntimo. O uso de do mundo real que pressupõem conteúdo
um computador portátil fornecido pela psicometricamente optimizado, públicos
universidade pode produzir efeitos micro-direccionados e exposição repetida
diferentes do que um smartphone familiar ou podem ser maiores. Margens estreitas dos
um computador pessoal. Confiança, câmaras processos de tomada de decisão, como elei-
de eco, bolhas de filtro, exposição adicional, ções, implicam que pequenos efeitos do
podem afectar os resultados. Os estímulos tratamento podem ter grandes implicações
nesta experiência foram deliberadamente sociais. Isso também é verdadeiro para
não-políticos para protecção contra uma riscos exponenciais, como é evidenciado
prévia exposição. Pode-se esperar que a pelos grandes efeitos globais de algumas
desinformação política seja influenciada por infecções iniciais durante a pandemia de
outros processos cognitivos, como Covid-19.
lembranças da memória, efeitos ao contrário
e enviesamento por confirmação. O conteúdo Estas descobertas levantam profundas preo-
de auto-selecção, como ler uma manchete cupações para o futuro da sociedade e da
antes de decidir clicar numa hiperligação política. A desinformação corre o risco de
para um artigo de notícias falsas, ou a distorcer as visões do mundo dos indivíduos
exposição a manchetes produzidas por e prejudicar o seu comportamento. A desin-
algoritmos de "feeds" de notícias, também formação deliberadamente produzida e
podem ter efeitos. [...] direccionada para a modificação do compor-
tamento amplifica esses riscos, ao introduzir
Conclusão incentivos e optimização. A democratização
da IA e dos meios de produção de desinfor-
Apesar das enormes ameaças e dos altos mação amplificam ainda mais esses riscos,
riscos de modificação de comportamento por além das plataformas, para todo o ecossiste-
meio de notícias falsas, há uma escassez de ma de utilizadores e conteúdos de media
estudos controlados sobre os efeitos directos social. Os efeitos comportamentais da desin-
das notícias falsas sobre o comportamento. formação não são óbvios pelos meios actuais
Este estudo fornece novas evidências sobre a de análise de conteúdo ou verificação de
capacidade da desinformação para mudar o factos, e tal desinformação é, consequente-
comportamento inconsciente. A sua descoberta mente, difícil de detectar. Embora os efeitos

Iria notar se as notícias falsas mudassem o seu comportamento? | 73


O Estado da Internet 2021

comportamentais da desinformação possam mia individual e a auto-determinação colec-


ser observados empiricamente, refinados e tiva. Estes esforços não se devem apenas
previstos por criadores de conteúdo malicio- limitar às notícias falsas, sua disseminação e
so, os processos de manipulação e as suas detecção, mas deve-se considerar que os
consequências completas podem não ser indivíduos provavelmente serão expostos a
necessariamente totalmente compreendidos modificações de comportamento cada vez
pelos próprios criadores da desinformação. mais indetectáveis a partir de uma variedade
Os esforços contínuos de actores maliciosos de conteúdo online e, portanto, precisam de
para contornarem os mecanismos de detec- ser protegidos.
ção da desinformação implicam que deve- ___________
mos aceitar a existência de desinformação
nas redes sociais e ter a mente aberta sobre As referências e a totalidade do estudo estão
disponíveis no texto original.
as formas e efeitos da desinformação.

A autonomia individual é assumida tanto


como um princípio normativo das democra-
cias liberais quanto como um pré-requisito
funcional dos sistemas de tomada de decisão
colectiva (como eleições e referendos). Os
resultados deste estudo e o contexto circun-
dante sugerem que há uma necessidade
urgente de (1) investigar mais profundamen-
te os mecanismos pelos quais a desinforma-
ção pode manipular o comportamento
inconsciente, (2) determinar o tamanho do
mundo real e a duração desses efeitos, (3)
encontrar métodos para detectar e prevenir
esses riscos, e (4) desenvolver planos de
contingência ou sistemas mais fortes para a
tomada de decisão distribuída e democrata.
Como tal, a era da desinformação destacou
riscos renovados em sistemas distribuídos
de governança. Também criou uma necessi-
dade urgente e oportunidade de colaboração
interdisciplinar (envolvendo pelo menos
cientistas políticos, académicos dos media e
psicólogos) e esforços inter-sectoriais
(incluindo académicos, legisladores, cida-
dãos e plataformas) para proteger a autono-

Iria notar se as notícias falsas mudassem o seu comportamento? | 74


O Estado da Internet 2021

Jornalismo digital e regulação:


propriedade e controlo
Victor Pickard, professor de Media Policy and Political Economy na Annenberg School for Communication,
University of Pennsylvania

Questões críticas sobre a propriedade, controlo e regulamentação das instituições de


media recebem geralmente uma atenção insuficiente nos estudos do jornalismo
digital. Muitos factores contribuem para essa negligência, incluindo a posição
marginalizada das abordagens político-económicas da media no campo mais amplo
das comunicações, bem como a natureza muitas vezes invisível das políticas de media
e outros factores estruturais que moldam as práticas e instituições jornalísticas. Essa
supervisão também é sintomática de um discurso tecnocêntrico mais amplo que
imagina a paisagem da media digital como um terreno selvagem de inovação
disruptiva com pouca supervisão governamental. De acordo com tais narrativas, essa
paisagem tende a criar um espaço mais justo e aberto para produtores e
consumidores de notícias, que é deixado livre pelo Estado. Apesar de tais suposições
libertárias, este texto foca questões estruturais - particularmente ligadas à política de
media - que surgem perante o futuro digital do jornalismo.

Pode-se começar por perguntar porque jornalistas e académicos do jornalismo se


deveriam preocupar com a política de media. Esta pergunta parece provocadora
porque muitas vezes presume-se que jornalismo e política são dois campos completa-
mente separados. Não há nenhuma razão natural para que “política de jornalismo”
seja uma frase e um conceito incomum (Pickard, 2017b). Essa estranheza fala da
bifurcação ímpar entre o estudo do conteúdo e das práticas do jornalismo e o estudo
das estruturas maiores que moldam as suas instituições. Isso reflecte parcialmente a
mitologia popular de que o governo nunca esteve envolvido com o jornalismo. Mas a
história diz-nos o contrário. Desde os primeiros debates sobre o sistema postal até à
fundação de cada novo meio, do telégrafo à Internet, a política governamental foi
sempre central para o jornalismo e instituições de media. Para questões tão diversas
como direitos de autor, gestão de espectro de transmissão, regulamentações de inte-
resse público e aplicação (ou falta delas) de restrições à propriedade de media e leis
anti-concorrência, a política desempenha um papel fundamental em como os siste-
mas de media são concebidos, detidos e operados. Fingir o contrário é profundamente
enganador. Isso desencoraja o envolvimento público em debates sobre política mediá-
tica e ajuda a reificar os sistemas de media que favorecem desproporcionalmente os

| 75
O Estado da Internet 2021

interesses empresariais (Pickard, 2015a). Na estruturais frequentemente esquecidas que


verdade, a relação da política de media com têm profundas implicações para o futuro do
o jornalismo é, sem dúvida, uma preocupa- jornalismo digital. Dado o foco da minha
ção maior agora do que nunca. O estabeleci- investigação, muito do que se segue é extraí-
mento de novas leis e políticas que tratam da do de um estudo de caso em andamento do
propriedade intelectual, privacidade e gover- jornalismo americano, mas essa análise
nança da Internet lançará a base para o também tem implicações para o estado do
futuro digital do jornalismo. jornalismo e dos estudos de jornalismo inter-
nacional. Com isso em mente, a análise divi-
Dada esta história e os debates políticos a de-se em seis secções, focadas respectiva-
acontecer, podemos concluir: o governo está mente em: a nova paisagem da media ameri-
sempre envolvido - muitas vezes para bene- cana, a crise do jornalismo americano, alter-
fício das grandes empresas de media. nativas para o modelo de receitas de publici-
Portanto, a verdadeira questão é como o dade, discurso económico e regulatório
governo se deve envolver. A análise neste sobre o jornalismo, novas áreas de preocu-
texto pressupõe que várias intervenções do pação regulatória e porque a propriedade
governo afectam directa ou indirectamente o dos media interessa para o jornalismo. Antes
jornalismo - das leis de proteção às leis de passar para uma discussão sobre regula-
tributárias - mas chamo a atenção específica mentação e política da media, apresento
para várias áreas-chave. Indo das questões uma visão geral das questões relacionadas
de propriedade à regulamentação de conteú- com a propriedade e controlo do novo cená-
do e infra-estrutura dos media, esses deba- rio da media americana. O texto conclui com
tes políticos mostram como o futuro do uma breve discussão sobre porque a
jornalismo está inextricavelmente ligado a propriedade dos media é importante e quais
questões do fornecimento de banda larga, da as políticas que podem ser desenvolvidas
"linha vermelha" digital, questões de direitos para ajudar a democratizar o controlo das
autorais e uma proliferação de notícias instituições jornalísticas.
falsas e falsas publicidade, para citar algu-
mas questões regulatórias. Embora a transi- O cenário da nova media
ção digital do jornalismo tenha, em muitos americana
casos, reduzido as barreiras de entrada e
aparentemente aumentado a escolha do utili- A media comercial em todo o mundo partilha
zador (para aqueles com acesso à Internet), muitos atributos mas, como um todo, o
também permitiu a discriminação de preços, sistema de media dos EUA está numa
o "click-bait", as notícias falsas, a vigilância categoria própria. Isso é verdade por três
corporativa e estatal em massa e muitos razões gerais. Primeiro, em muitos sectores,
outros perigos potenciais. o sistema de media dos EUA é dominado por
um punhado de corporações. Em segundo
Este texto examina uma série de questões lugar, o sistema de media americano é

Jornalismo digital e regulação: propriedade e controlo | 76


O Estado da Internet 2021

apenas ligeiramente regulamentado por ameaçando cortar ainda mais o financiamen-


protecções de interesse público. Protecções to da media pública (Pickard, 2017a). Sem a
anteriores, como a "Fairness Doctrine" - que media pública, não há rede de segurança se
exigia que as emissoras cobrissem questões o mercado deixar de apoiar o jornalismo.
importantes e controversas e o fizessem de Para dar um exemplo de onde existe uma
maneira equilibrada - foram revogadas há rede de segurança, a BBC designou 150
muito tempo (Pickard, 2015a). Em terceiro, o “repórteres da democracia” para organiza-
sistema de media americano é amplamente ções de notícias britânicas em todo o país
comercial, com algumas alternativas para se concentrarem no jornalismo local
públicas fracas, como a rádio e a televisão (Plunkett, 2016).
públicas. Muitos países enfrentam um ou
dois desses desafios, mas raramente os três A crise estrutural decorrente da falta de
ao mesmo tempo. Este excepcionalismo da financiamento para o jornalismo de serviço
media americana torna-se um estudo de público é muitas vezes mascarada pelo que
caso interessante, onde os investigadores parece ser uma explosão de veículos de
podem observar os efeitos do comercialismo media digital. Nos últimos anos, os padrões
em grande parte não mitigado nas práticas básicos de propriedade no sector da media
jornalísticas. comercial mudaram de forma visível, com
uma nova safra de "startups" digitais criando
Para demonstrar o terceiro ponto sobre o raízes no cenário dos media. Superficial-
estado de empobrecimento do sistema da mente, esse aparecimento parece sugerir
media pública americana (os números deri- uma maior abundância de opções de media.
vam de Benson & Powers, 2011): o governo No entanto, esse brilho de diversidade mas-
dos EUA aloca cerca de 1,35 dólares por cara uma uniformidade subjacente, especial-
pessoa por ano para a media pública. Ao mente em termos de propriedade e controlo
adicionar mais subsídios locais e estaduais, da media. Vários académicos e jornalistas
chega-se a menos de 4 dólares por cida- apontaram que a media está a concentrar e a
dão/ano para financiar a media pública. A replicar padrões antigos e relações de poder.
NHK do Japão recebe aproximadamente 54 Um relatório da Bloomberg observou que
dólares por cidadão todos os anos, enquanto muitos recém-chegados, como Vox Media,
a BBC recebe mais de 90 dólares. Os países Vice Media e BuzzFeed, pertencem ou são
do norte da Europa, como Dinamarca e suportados por empresas de media legadas
Finlândia, gastam muito mais de 100 dóla- que essas startups estavam supostamente a
res/ano por pessoa. Em comparação, os EUA substituir (Molla & Ovide, 2016).
são uma excepção global entre as principais
democracias, pelo pouco que gastam na sua Cada vez mais, os antigos gigantes dos
media pública. [Antecipava-se que isso media e das telecomunicações como a AT&T,
podia] piorar com a administração Trump e Verizon, Disney, Comcast, Time Warner e
com muitos congressistas republicanos outros estão a investir centenas de milhares

Jornalismo digital e regulação: propriedade e controlo | 77


O Estado da Internet 2021

de dólares nesses novos meios de empresas públicas com accionistas, o seu


comunicação ou a comprá-los rapidamente. valor aumentava, o que, por sua vez, incenti-
Dean Starkman (2016) mostra de forma vava os proprietários a vender as suas
convincente que, longe de descentralizar o acções de controlo para cadeias de jornais
poder da media, na realidade as grandes para obter elevados lucros. Uma das maiores
empresas de media estão simplesmente a redes, a Gannett, é dona do USA Today e de
ficar muito maiores na nossa era digital mais de 100 outros jornais diários (Benson &
através de contínuas fusões e aquisições. Pickard, 2017).
Várias megafusões, como aquelas entre
AT&T e Time Warner, estão nos estágios Em geral, os jornais de capital aberto enfren-
finais de escrutínio regulatório. Além disso, tam pressões comerciais mais severas.
os estudos há muito mostram que o tráfego Enquanto uma empresa privada pode tirar a
online e a atenção do público são dominados ênfase dos imperativos de lucro, uma empre-
por actores incumbentes dos media, o que sa de capital aberto é legalmente obrigada a
desafia a noção de que o cenário da media maximizar o valor para o accionista. Privile-
digital abriu espaços para novas vozes e giar os lucros pode encorajar compromissos
pontos de vista (Hindman, 2008). nos padrões profissionais, preocupações
democráticas e um empenho com as comuni-
Num sentido mais geral, a indústria jornalís- dades locais. Alguns jornais conseguiram
tica americana viu um tumulto dramático nas diminuir essas pressões comerciais através
últimas décadas, e especialmente nos de diferentes estruturas de propriedade. Por
últimos anos. Enquanto o número geral de exemplo, no The New York Times havia uma
jornais diários nos Estados Unidos permane- estrutura de propriedade de acções em dois
ceu relativamente estável durante décadas, níveis, onde a família Ochs-Sulzberger con-
de 1.760 jornais em 1955 para 1.676 em 1985 seguia manter algum grau de controlo, e no
(Williams e Pickard, 2016), o número de The Washington Post os Grahams continua-
jornais independentes caiu quase 50% ram a controlar as acções com direito a voto
durante esses anos, à medida que grandes após abrir o capital em 1971. Ao criar salva-
cadeias foram alvos de uma onda de aquisi- guardas que protegem as organizações de
ções (Neiva, 1996). Desde, pelo menos, o final notícias das pressões comerciais directas, a
do século XIX, a maioria das principais revis- propriedade privada pode potencialmente
tas e jornais dos EUA têm sido propriedade libertar as organizações de notícias das
ou controlada por indivíduos ou famílias pressões de Wall Street. Idealmente, essas
ricas. Entre os anos 1970 e o início dos anos estruturas de mitigação podem permitir que
2000, no entanto, as empresas de media os editores absorvam perdas de curto prazo
tornaram-se cada vez mais sociedades anó- e evitem medidas de corte de custos, possi-
nimas de capital aberto que frequentemente velmente para ganhos de longo prazo ou por
se expandiram para grandes redes. À medida um compromisso com o jornalismo de servi-
que os jornais familiares se tornaram ço público (Benson & Pickard, 2017).

Jornalismo digital e regulação: propriedade e controlo | 78


O Estado da Internet 2021

No entanto, a propriedade privada sucumbe específicos de falhanços do mercado


muitas vezes às mesmas pressões das (Pickard, 2014).
empresas de capital aberto. Um exemplo
dessa tendência é uma das formas de A crise do jornalismo americano
propriedade de media privada que mais
cresce actualmente: a empresa de investi- Na última década, esse período de altos
mento. Esta estrutura de propriedade costu- lucros teve um fim dramático, à medida que
ma estar ligada a agressivas empresas de as receitas da publicidade dos jornais
"private equity" focadas no lucro, como os diminuiu rapidamente e o seu modelo de
"hedge funds". Os maiores grupos de investi- negócio fundamental colapsou. Mais
mento incluem New Media/Gatehouse, que especificamente, à medida que leitores e
possui 125 jornais diários e é agora maior anunciantes continuaram a migrar para a
que a Gannett; Digital First Media, que Web, onde os anúncios digitais pagam uma
possui 62 jornais diários; e Tronc/Tribune, fracção minúscula do que os anúncios
dona do Chicago Tribune, do Los Angeles impressos tradicionais em papel rendem, é
Times e de 17 outros jornais diários (núme- improvável que esses lucros regressem. A
ros de Benson & Pickard, 2017). receita da publicidade digital que está a ser
gerada vai principalmente para empresas
À medida que a imprensa se tornou uma monopolistas da Internet como Google e
indústria lucrativa na década de 1980, ela Facebook, que recebem cerca de 85% de cada
também se concentrou cada vez mais com as dólar gasto em publicidade. A indústria
cadeias de jornais a comprarem-se umas às jornalística perdeu dezenas de milhões de
outras em busca de maiores lucros (Soloski, dólares em receitas anuais de publicidade
2013; Williams & Pickard, 2016). Nas décadas desde 2000. As receitas da publicidade
de 1980 e 1990, a maioria das grandes digital que está a ser gerada é em grande
empresas jornalísticas tinha margens de parte desviada para as plataformas e
lucro superiores a 20% (Picard, 2008) e as motores de busca que hospedam
receitas de publicidade continuaram a subir hiperligações para o conteúdo de notícias e
continuamente na década de 2000 (Picard, estão cada vez mais a tornar-se o primeiro
2002). Até cerca de 2005, as empresas ponto de contacto do consumidor para
jornalísticas estavam entre os negócios mais aceder ao conteúdo noticioso dos media.
lucrativos, mantendo margens de lucro de 20
a 30% (Pickard, 2017c). Também digno de Apesar do crescimento nas receitas dos
nota foi que, ao contrário de qualquer outra anúncios digitais nos últimos anos, ele não
indústria jornalística no mundo, os jornais tem sido suficiente para compensar as
americanos dependiam das receitas de enormes perdas com a publicidade
publicidade para 80% da sua facturação tradicional. Relatórios anuais do Pew
agregada (Benson, 2013). Isso deixou-os Research Center destacam essas tendências.
particularmente vulneráveis a tipos Um estudo do Pew de 2012 descobriu que,

Jornalismo digital e regulação: propriedade e controlo | 79


O Estado da Internet 2021

desde 2003, quedas de até 50% nas receitas pelos principais jornais metropolitanos,
da publicidade impressa excederam em como o Cleveland Plain Dealer e o New
muito qualquer ganho na receita digital Orleans Times-Picayune (Pickard, 2015a).
online em mais de dez para um (Edmonds et Nos próximos anos, as receitas, os empregos
al., 2012). O declínio da indústria da e a circulação provavelmente continuarão a
imprensa também é exemplificado por um diminuir. Apesar de um “Trump Bump”
aumento no encerramento de jornais, pós-eleitoral nas assinaturas de muitos
especialmente nas poucas cidades com dois editores, a saúde financeira geral da
jornais restantes. Por exemplo, o Rocky indústria jornalística americana irá
Mountain News com 150 anos fechou e o provavelmente piorar.
Seattle Post-Intelligencer só ficou online em
2009, despedindo quase todos os Estes factores estruturais - um excesso de
funcionários. confiança na publicidade, poucas políticas
para corrigir os excessos comerciais e
Embora os encerramentos com grande praticamente nenhuma rede de segurança
visibilidade tenham recebido uma maior pública - combinam-se todos para criar um
atenção, a crise do jornalismo afectou todos sistema de media de notícias nos Estados
os jornais, especialmente os grandes jornais Unidos que está sujeito a pressões
metropolitanos que têm dificuldade em comerciais não mitigadas. Isso leva a
fornecer cobertura noticiosa exclusiva e vulnerabilidades e preconceitos específicos
estão a perder a circulação paga mais que criaram a tempestade perfeita para uma
rapidamente do que os principais jornais crise estrutural do jornalismo.
nacionais, os de menor circulação em
cidades médias e os jornais comunitários O antigo modelo de receitas com 150 anos
(Edmonds et al., 2013). Essas quedas levam a para os jornais comerciais parece estar sem
um aumento nas falências de jornais. Entre conserto. Mas como essa relação económica
os 100 principais jornais do país, 22 jornais existe há muito tempo, muitas vezes é
entraram com pedidos de re-estruturação considerada a ordem natural das coisas e os
entre 2005 e 2015 (Williams e Pickard, 2016). modelos alternativos estão além da
Além da re-estruturação através de imaginação.
falências, muitos jornais cortaram custos
agressivamente com despedimentos em À medida que as organizações de notícias
massa. A American Society of News Editors cortam custos e procura receitas cada vez
estimou que, de 2005 a 2015, houve um menores, as organizações de notícias
declínio de cerca de 39% no número de também são pressionadas a fazer mais com
trabalhadores da indústria dos notícias. menos. As tensões associadas a essas medi-
Outros sinais da contínua e crescente falta das de austeridade traduzem-se em menos
de investimento na produção de notícias empregos, com salários mais baixos e menos
incluem a redução das entregas ao domicílio benefícios. Além dessa crescente causalidade

Jornalismo digital e regulação: propriedade e controlo | 80


O Estado da Internet 2021

e da precariedade geral do trabalho jornalís- variação dessa abordagem é o “modelo de


tico, uma preocupação que se destaca é a membro”, que depende do pagamento dos
perda de determinados tipos de jornalismo membros para gerar receita. Até agora, este
de serviço público. Eles são, por vezes, cha- modelo teve um registo misto (Williams &
mados de “desertos de notícias” (Stites, Pickard, 2015). No mínimo, a receita das
2011), especialmente aos níveis estadual e "paywalls" não substituiu as enormes perdas
local, onde áreas geográficas inteiras e de receitas de publicidade. E uma análise
temas específicos não são tratados. Alex descobriu que a maioria dos jornais
Williams descobriu que esses desertos afec- importantes nos EUA continua a depender de
tam desproporcionalmente as comunidades outras fontes de receita fora das "paywalls"
de cor e os bairros sócio-económicos de (Stulberg, 2017).
menores rendimentos, o que ele chama de
“redlining das notícias” (Williams, 2018), no Um segundo modelo pode ser chamado de
qual as lacunas nas notícias são mapeadas modelo de jornalismo cidadão / "crowdsour-
nas desigualdades económicas e raciais. cing" / "crowdfunding". A melhor articulação
desse modelo até agora é por Cage (2016),
No entanto, a imprensa, especialmente a que argumenta que uma forma institucionali-
indústria dos jornais, mesmo estando zada de "crowdsourcing" é um meio necessá-
sitiada, continua a ser a principal fonte de rio de apoio. No entanto, existem poucos
reportagem original nos Estados Unidos. A modelos de sucesso até agora. Alguns propo-
busca contínua por novos modelos de nentes desse modelo presumem que as insti-
negócios lucrativos iludiu até mesmo as tuições profissionais são desnecessárias,
startups mais empreendedoras. No entanto, mas essa visão desvaneceu-se junto com
mesmo que não seja mais lucrativo, os alguns dos primeiros discursos utópicos em
imperativos democráticos ditam que o torno das promessas democráticas da Inter-
jornalismo deve ser apoiado, o que net. Um modelo mais comum que começou a
necessariamente abre uma discussão para ganhar impulso nos últimos anos é o modelo
alternativas não mercantis. bilionário benevolente/sem fins lucrati-
vos/apoiado por uma fundação. Saindo dessa
Alternativas ao modelo de receitas abordagem, vários empreendimentos sem
da publicidade fins lucrativos empolgantes surgiram à
medida que o modelo comercial colapsava.
A maioria das alternativas ao modelo Por exemplo, o ProPublica costuma ser visto
dependente da publicidade para o jornalismo como o melhor exemplo desse modelo, mas
enquadra-se em quatro categorias. À medida outra experiência promissora em reporta-
que caem as receitas da publicidade, o gem investigativa contundente é o The Inter-
primeiro e mais comum modelo comercial cept, lançado por Glenn Greenwald, Laura
são as "paywalls" digitais ou as assinaturas Poitras e Jeremy Scahill. O The Intercept é o
online (Pickard & Williams, 2014). Uma primeiro projecto da First Look Media, uma

Jornalismo digital e regulação: propriedade e controlo | 81


O Estado da Internet 2021

organização sem fins lucrativos 501 (c) 3 cimento nos fluxos de receitas da filantropia
fundada pelo fundador do eBay, Pierre Omi- e de investimento de capital ainda represen-
dyar, que prometeu centenas de milhões de tam apenas 1% do apoio financeiro para as
dólares para garantir independência edito- notícias (Pew Research Center, 2014). Manter
rial e autonomia em vez de depender dos realmente a media de serviço público no
caprichos de anunciantes e investidores. longo prazo exigirá medidas mais abrangen-
tes que procurem resgatar o dever cívico do
Outro empreendimento empolgante foi jornalismo da captura comercial.
lançado no início de 2016, quando o
proprietário da Philadelphia Media Network O modelo menos discutido é a opção de
(PMN), que consiste em dois jornais e um site media público, que conta com alguma forma
de notícias de Filadélfia, doou o PMN ao de subsídio público. O argumento para
recém-criado Institute for Journalism in New subsidiar o jornalismo de serviço público
Media, uma organização sem fins lucrativos teve uma breve oportunidade discursiva
com uma dotação de 20 milhões de dólares. entre 2009 e 2011, quando uma série de
Essa estrutura única, que é tecnicamente relatórios relacionados com o jornalismo
uma “corporação de benefício público”, foram publicados para apoio à preservação
preserva a influência editorial do PMN, do jornalismo de serviço público (Pickard,
permitindo-lhe manter o seu próprio Stearns e Aaron, 2009; Downie e Schudson,
conselho de directores independente, ao 2009; Knight Foundation, 2009; Federal Trade
mesmo tempo que permite ao Institute Commission, 2010). No entanto, os pedidos
solicitar subsídios para obter fundos. Por ser de intervenção do Estado logo caíram em
um modelo híbrido (a sua estrutura de desgraça com o regresso dos "liberais
propriedade não tem fins lucrativos, mas as nervosos" (Pickard, 2015b), cuja evasão em
suas redações são administradas com fins abordar as falhas do mercado (Pickard,
lucrativos), pode ser protegido de algumas 2014a) é exemplificada pelo principal
pressões comerciais. relatório da Federal Communication
Commission "Information Needs of
Estas experiências sinalizam que o jornalis- Communities ”(Waldman, 2011). Este
mo é algo que pode não ser economicamente relatório diagnosticou com precisão os
sustentável se depender apenas das forças problemas estruturais subjacentes à crise do
do mercado. No entanto, as sociedades jornalismo mas descartou de imediato
democráticas ainda exigem jornalismo de qualquer papel significativo para o governo
serviço público, independentemente dos na procura de soluções estruturais. No
lucros. Infelizmente, embora os empreendi- entanto, os argumentos a favor dos subsídios
mentos sem fins lucrativos apresentem não são menos relevantes agora do que eram
alternativas potenciais, eles provavelmente então, e o debate em torno da sua
não são soluções sistémicas para uma crise implantação, infelizmente, foi encerrado
estrutural. A investigação mostra que o cres- prematuramente. Existem muitos exemplos

Jornalismo digital e regulação: propriedade e controlo | 82


O Estado da Internet 2021

internacionais e históricos de modelos de mágica, os subsídios podem reduzir as


subsidiação bem-sucedidos. pressões do mercado para permitir que as
instituições de media se tornem mais
Começando com o sistema postal, o governo concorrentes e responsáveis perante
dos EUA há muito subsidia os media diversas comunidades, reduzindo as
noticiosos. Além dos subsídios postais e pressões distorcidas do mercado e ajudando
impressos, esta media foi subsidiada pela a restaurar a missão de serviço público do
entrega do espectro de transmissão, bem jornalismo. Além de subsidiar alternativas
como uma série de subsídios indirectos. Até jornalísticas públicas, as intervenções
o nascimento da Internet foi possível por políticas com foco no lado da infra-estrutura
uma alocação massiva de subsídios públicos. da disseminação da media de notícias
No entanto, o subsídio mais proeminente, podem procurar controlar os monopólios dos
embora indirecto e sem finalidade de serviço fornecedores de serviços de Internet. Isso
público, sempre foi a publicidade. E esse exigiria aplicar protecções de interesse
subsídio é apenas uma fracção do que era público, como a neutralidade da rede, e
antes. Fora do contexto americano, subsídios incentivar a concorrência, permitindo às
de media bem-sucedidos são muito mais comunidades oferecer os seus próprios
comuns (Pickard, 2011; Kammer, 2016; serviços de banda larga.
Murschetz, 2014).
Discurso económico e regulatório
Embora tais intervenções não sejam sobre jornalismo
soluções certas para tudo o que aflige o
jornalismo, as reformas de políticas Olhar para os discursos que definem a nossa
destinadas especificamente a reduzir as compreensão do jornalismo pode revelar
pressões do mercado sobre as instituições muito. Nos últimos anos, assistimos à
de media poderiam permitir que elas se prevalência de “narrativas de crise”. O
focassem mais em reportagens com pontos relatório "State of the News Media" (2016) do
de vista opostos e mais responsáveis por Pew Research Center foi terrível. Afirmou
diversas comunidades. Re-inventar o que 2015 foi o pior ano para os jornais desde
jornalismo pode envolver subsídios para um a Grande Recessão. Depois de mostrar que a
sistema de media pública alargado, circulação diária, as receitas de publicidade
incentivos fiscais para encorajar a transição e as pessoas nas redacções diminuíram
de instituições de media em dificuldades significativamente, o relatório concluiu:
para um status de baixo lucro ou sem fins “este declínio acelerado sugere que a
lucrativos e esforços de investigação e indústria pode ter passado do ponto sem
desenvolvimento patrocinados pelo governo retorno" (Barthel, 2016). Vindo do venerável
para novos modelos digitais, incluindo Pew Research Center, essa conclusão fala
híbridos público/privado (Pickard, 2015a: por si. Se esse colapso iminente for verdade,
212-231). Embora não sejam uma solução é um problema social sério, digno de uma

Jornalismo digital e regulação: propriedade e controlo | 83


O Estado da Internet 2021

conversa nacional. Mas até então, nenhuma No nosso contexto actual, a falta de uma
discussão desse tipo ocorreu e não houve resposta política à crise do jornalismo até
virtualmente nenhuma resposta de política agora pode ser atribuída a vários impedi-
pública. mentos discursivos. Em primeiro e acima de
tudo, é o fundamentalismo de mercado que
Parte dessa inacção pode ser rastreada até se infiltrou nas categorias principais de
às batalhas políticas na década de 1940 como pensamos e falamos sobre jornalismo.
(Pickard, 2015), que resultaram num Essa estrutura levou a certas suposições que
contrato social entre o estado, o público e as continuam a despolitizar a concepção das
instituições de media que chamo de “Acordo instituições, práticas e políticas jornalísti-
Pós-guerra para a Media Americana”. Esse cas. Em primeiro, o estado do jornalismo
acordo foi definido por três características: entendido como oferta e procura trata as
auto-regulação, responsabilidade social notícias como uma simples mercadoria com-
definida pela indústria e uma compreensão prada e vendida no mercado, não como um
negativa da Primeira Emenda - negativa no serviço público vital. A implicação é que, se o
sentido da "liberdade negativa" de Isaiah jornalismo não é lucrativo para editores e
Berlin, que enfatiza uma "liberdade de" proprietários de media, devemos deixá-lo
individualista libertária, como na liberdade definhar. É claro que a oferta e a procura no
dos proprietários de media em relação à mercado livre irrestrito nem sempre reflec-
regulamentação governamental, por tem avaliações precisas do valor social. E,
oposição à mais positiva para o público em muitos casos, ainda existe uma procura
“liberdade para” um diversificado sistema de por notícias, mas o mercado não a assegura.
media (Berlin, 1969). Isso manteve em
funcionamento um sistema de media Uma segunda suposição é que o colapso
comercial com pouca supervisão pública ou institucional do jornalismo está para lá do
governamental e poucos desafios da media nosso controlo, algo que acontece connosco,
não comercial. Esta enquadramento como um desastre natural ou um acto de
permanece amplamente o paradigma Deus. Analistas como Clay Shirky têm uma
dominante para a actual política de media visão Schumpeteriana de que vivemos um
americana - um arranjo ideológico que momento revolucionário de destruição cria-
chamo de “libertarianismo corporativo” tiva, em que novas alternativas vão emergir
(Pickard, 2015a). Isso pressupõe que o organicamente (2011). Temos simplesmente
governo tem um reduzido papel legítimo de que esperar que algo novo surja organica-
intervenção nos mercados de media, o que, mente. Embora esse argumento seja sedutor
como observado no início do texto, é uma - aparentemente radical no seu incentivo à
fantasia libertária, uma vez que o governo substituição de instituições obsoletas por
está sempre presente - geralmente apenas modelos inovadores -, ele pressupõe que o
de formas que beneficiam os proprietários mercado deve ser o árbitro final sobre que
de media. tipo de jornalismo devemos receber. Além

Jornalismo digital e regulação: propriedade e controlo | 84


O Estado da Internet 2021

disso, ignora a natureza profundamente também produzem tremendas externalida-


institucional e social do jornalismo, que não des positivas (benefícios que se acumulam
deve crescer ou falhar de acordo com as para as partes fora da transacção económica
forças do mercado. directa). A sociedade requer esses bens, mas
os indivíduos normalmente subestimam (são
Uma terceira suposição é que as forças do incapazes ou não querem pagar por) esses
mercado e as novas tecnologias se combi- bens, levando à sua subprodução e “falha
nam para nos guiar para fora desta situação: sistémica do mercado” (Pickard, 2014a).
paradoxalmente, embora a Internet seja
frequentemente vista como a única causa da Esta categoria de falha do mercado merece
crise do jornalismo (em vez da dependência uma maior atenção. Muitos estudiosos con-
excessiva do modelo de receitas da publici- cluem a sua análise invocando os bens públi-
dade), as tecnologias digitais também costu- cos, mas devemos alargar o argumento para
mam ser consideradas as únicas salvadoras destacar as falhas estruturais que justificam
do jornalismo. Sem dúvida, as novas tecnolo- - na verdade, necessitam de - intervenção
gias e os seus recursos podem ajudar, mas política nos mercados de media. "Falha de
esses esforços precisam de ser orientados mercado" refere-se geralmente à incapacida-
por políticas públicas sólidas e contribuições de do mercado de alocar com eficiência bens
públicas. Além disso, as normas profissio- e serviços importantes. O modelo comercial
nais e outros factores culturais podem con- tradicional negligenciava o facto de que a
tribuir muito para garantir que o bom jorna- notícia era uma espécie de subproduto da
lismo persista. Mas colocar a nossa fé intei- transação entre anunciantes e proprietários
ramente no mercado para fornecer os meios de media (Pickard, 2015a, p.214). Os anun-
de comunicação que a nossa democracia ciantes nunca se importaram realmente se
exige sempre foi, especialmente agora, uma as suas receitas financiavam agências
proposta arriscada. estrangeiras ou boas notícias locais; eles
procuravam mercados. A própria publicida-
Como uma espécie de antídoto para esse de era uma espécie de subsídio. O livro de
fundamentalismo de mercado, existem Jay Hamilton, Democracy’s Detectives
várias razões político-económicas para o (2016), mostra como a reportagem de investi-
apoio não mercantil ao jornalismo. Por exem- gação sempre foi muito cara para as organi-
plo, notícias e informações podem ser trata- zações de notícias, mas traz muitos benefí-
das como bens públicos. Como os bens públi- cios para a sociedade como um todo.
cos não são rivais (o consumo de uma pessoa
não prejudica o de outra) nem restritos (difí- Novas áreas de preocupação
cil de prevenir "free riders"), eles diferem de regulatória
outras mercadorias, dentro de uma econo-
mia capitalista. Muitos bens públicos, como As lacunas na pesquisa académica acompa-
o ar puro, parques e até o conhecimento, nham geralmente os crescentes dilemas

Jornalismo digital e regulação: propriedade e controlo | 85


O Estado da Internet 2021

regulatórios. Uma série de tendências piores culpados em expor os leitores a anun-


problemáticas crescentes que o jornalismo ciantes terceirizados e corretores de dados
digital enfrenta são dignas de supervisão online, com uma média de 19 terceiros envol-
regulatória, variando da implantação de vidos em comparação com uma média geral
banda larga ao aumento da publicidade des- em sites não noticiosos de 8 terceiros. Num
controlada. Um exemplo do último é a prolife- bom dia, o New York Times pode submeter os
ração de conteúdo patrocinado ou publicida- leitores a 44 "third parties" sem que os leito-
de nativa (Ferrer-Conill e Karlsson, neste res saibam (Libert & Pickard, 2015). Muitos
volume). Frequentemente apresentada como desses sites podem ser inócuos, mas alguns
notícia, essa forma de publicidade varia de geralmente não são, e há muito pouca super-
um "infomercial" bastante inócuo a uma visão. A crescente prevalência de bloqueado-
variedade mais problemática de propaganda res de anúncios ("ad-blockers") está a mudar
corporativa. As preocupações éticas sobre um pouco esses valores mas continua a ser
desinformação, confiança pública e respon- um problema persistente que precisa de
sabilidade social são válidas, especialmente discussão pública e possivelmente de super-
à medida que essa forma de publicidade se visão regulatória.
torna mais omnipresente online. Maior
transparência é sempre uma boa medida, Outra área de preocupação digna de nota é o
mas algum grau de engano é frequentemente crescente poder dos monopólios da Internet.
inerente a essa prática. A publicidade de A política de propriedade dos media, que
marca ou nativa obscurece a distinção entre pode parecer estranha na era digital de hoje,
notícias e publicidade, geralmente designada ainda é uma grande preocupação para os
por letras pequenas que dizem patrocinada jornalistas. Seja considerando novos mono-
por uma determinada empresa. Estudos pólios de media digital como Comcast e Veri-
mostram consistentemente que os leitores zon ou jornais antigos, as políticas estrutu-
não percebem a distinção e são essencial- rais que permitem que as empresas de
mente enganados (Sass, 2015). A determina- media se fundam e adquiram novas proprie-
ção de quais padrões seriam verdadeiramen- dades podem ter consequências dramáticas
te apropriados para uma sociedade demo- para o jornalismo. Por exemplo, quando os
crática deve ser aberta ao debate público. meios de comunicação se combinam e se
conglomeram, perdem-se geralmente
Como as organizações de notícias em dificul- empregos no jornalismo. As principais
dades dependem cada vez mais de formas fusões de media estão actualmente penden-
enganosas e invasivas de publicidade, outra tes nos EUA, como as fusões da AT&T e Time
área de preocupação é a publicidade com- Warner e da Sinclair e Tribune, cuja aprova-
portamental online, que depende de uma ção teria um efeito potencialmente profundo
forma eticamente duvidosa de rastreamento no jornalismo americano [ambas foram con-
comportamental. Um estudo mostra que as cretizadas]. E os monopólios das platafor-
organizações de notícias estão entre os mas como Facebook e Google também têm

Jornalismo digital e regulação: propriedade e controlo | 86


O Estado da Internet 2021

um profundo poder sobre o futuro do jorna- controlo das infra-estruturas digitais. Por
lismo. exemplo, faltando protecções de neutralida-
de da rede - uma possibilidade distinta,
Uma última área de preocupação envolve as dadas as recentes mudanças na FCC de Ajit
principais políticas da Internet. Embora as Pai por Donald Trump para enfraquecer a
questões relativas às condutas e aos neutralidade da rede - uma Internet "cabla-
conteúdos de media sejam muitas vezes da" pode transformar-se num ambiente
tratadas separadamente, as questões de hostil para todos os criadores de media,
política da Internet, como a falta de acesso desde jornalistas profissionais da imprensa
de qualidade à Internet, são fundamentais até aos "bloggers" amadores que não podem
para o crescimento do jornalismo. O acesso pagar taxas exorbitantes a fornecedores de
precário à Internet, por exemplo, é um serviços de Internet e que são, consequente-
problema de infra-estrutura com sérias mente, relegados para as “faixas lentas”
implicações para o futuro dos media, mas digitais e colocados essencialmente num
raramente é abordado nos estudos de gueto online. Essas desigualdades não são
jornalismo. O “digital divide” (ou exclusão acidentais nem inevitáveis; elas resultam de
digital) nos EUA significa que quase um políticas explícitas que acomodam os merca-
quinto de todos os lares americanos ainda dos oligopolísticos e os interesses corporati-
carece de Internet de banda larga (Federal vos de forma mais geral (McChesney, 2013).
Communications Commission, 2015). Mesmo Por impactarem directamente no fluxo de
para aqueles com acesso, os serviços notícias dos media online, essas questões
costumam ser inferiores e caros em políticas devem ser uma preocupação cen-
comparação com outras democracias. Esse tral para os estudos de jornalismo.
problema poderia ser atenuado de alguma
forma permitindo às comunidades Por que a política de media é
oferecerem os seus próprios serviços de importante para o jornalismo
banda larga, e o fornecimento de subsídios à
Internet para americanos de baixos Olhando para o futuro, precisamos de uma
rendimentos expandiria o acesso e facilitaria visão clara dos problemas estruturais que o
o fluxo dos media online. jornalismo enfrenta. Isso implica não apenas
a compreensão de que as questões de
Problemas relacionados com o acesso aos propriedade e controlo dos media são
media digitais também vêm à tona no debate centrais para o futuro do jornalismo, mas
sobre a neutralidade da rede, que revela o também requer a compreensão de que o
artifício das divisões entre jornalismo e polí- governo terá que assumir um papel mais
tica. Além disso, como sabemos que o futuro activo. Isso é especialmente desafiante nos
do jornalismo é em grande parte digital, Estados Unidos, onde durante muitos anos
deveríamos estar a falar mais sobre as políti- um paradigma “libertário corporativo”
cas de Internet que ditam a propriedade e o dominou os debates políticos e o absolutismo

Jornalismo digital e regulação: propriedade e controlo | 87


O Estado da Internet 2021

da Primeira Emenda impediu a intervenção comerciais que lutam para chegar ao status
do governo a favor das instituições de organização com reduzidos fins lucrativos
noticiosas. No entanto, os académicos e sem fins lucrativos para que recebam
podem desempenhar um papel importante contribuições de filantropos e de fundações.
para esclarecer o que está em jogo e quais as Muitos observadores argumentam há muito
intervenções políticas necessárias para que, em última análise, precisamos de um
garantir um sistema viável para o jornalismo grande fundo centralizado de media pública
de serviço público. que possa alocar recursos sem amarras para
apoiar os tipos de jornalismo de serviço
Voltando à ideia de subsídios aos media, público que o mercado nunca vai sustentar
embora não seja provável que aconteça ao (Pickard, 2015a). Os reformadores britânicos
nível federal tão cedo, o nível local pode ser estão a pressionar por um projecto de lei que
promissor. Por exemplo, campanhas recen- forçaria a Google e o Facebook a destinar 1%
tes têm procurado alocar dinheiro arrecada- das suas receitas a esse fundo (Greenslade,
do por estações de televisão públicas com o 2016). Existem métodos criativos para gerar
leilão de espectro para um fundo para jorna- este dinheiro; o que falta é imaginação e
lismo local. Os EUA também poderiam vontade política para os implementar.
alavancar a infra-estrutura pública já exis-
tente. Uma possibilidade é transformar os As reformas estruturais são extremamente
correios em centros de media comunitários difíceis até reformularmos o debate sobre o
locais. Além de fornecer acesso público à jornalismo e o puxemos da sua estrutura
Internet, esses espaços podem ajudar a faci- fundamentalista de mercado. Este debate
litar as reportagens locais através de vários deve envolver todos, incluindo jornalistas,
meios de comunicação - incluindo impres- mas também tecnólogos e defensores
sos, plataformas digitais e estações de rádio públicos. Deve abordar o futuro do
de baixa potência. O Urbana-Champaign jornalismo como um problema para toda a
Independent Media Center lançou um sociedade. Precisamos de regressar aos
modelo similar há mais de uma década, fundamentos normativos do que o jornalismo
quando conseguiu dinheiro para comprar o deve fazer numa democracia, com ênfase no
posto de correios do centro da cidade para a jornalismo local e a abertura para meios de
criação de media comunitária e outros apoio não baseados no mercado. Essa
projectos progressivos (Pickard, 2015a). discussão deve incluir um debate sobre as
responsabilidades sociais dos monopólios de
Também podemos olhar para modelos plataformas de media como o Facebook, à
históricos. Um modelo que merece mais medida que se torna cada vez mais uma
atenção foi uma experiência com jornais importante fonte de notícias. Mark
municipais subsidiados no início dos anos Zuckerberg recusou-se até a reconhecer que
1900 (Pickard, 2011). Outra ideia é ajustar as o Facebook é algo mais do que uma empresa
leis tributárias para facilitar que os jornais de tecnologia (Ingram, 2016).

Jornalismo digital e regulação: propriedade e controlo | 88


O Estado da Internet 2021

Com tanta esperança a ser depositada na https://theconversation.com/the-slippery-slope-of-th


sociedade civil - especialmente na imprensa e-oligarchy-media-model-81931.
- para servir como uma espécie de força de Benson, R. e Powers, M. (2011) Public Media and
compensação contra o excesso do governo, Political Independence: Lessons for the Future of
agora pode ser uma oportunidade real para Journalism from Around the World. Washington, DC:
fortalecer o jornalismo de serviço público. Free Press.
Académicos do jornalismo têm um papel Berlin, I. (1969). ‘Two Concepts of Liberty’ in Four
importante a desempenhar na redefinição da Essays on Liberty. Oxford: Oxford University Press.
ética do jornalismo e das responsabilidades
sociais dos media de notícias para a era Cage, J. (2016) Saving the Media. Cambridge:
Harvard University Press.
digital. Tendo isso em mente, a relação da
política de media com o jornalismo deve ser Greenslade, R. (2016, 8 de Novembro) “Make Google
uma preocupação maior agora do que nunca. and Facebook Pay for Public Service Reporting”. The
Leis e políticas que tratam de propriedade Guardian,
https://www.theguardian.com/media/greenslade/201
intelectual, privacidade e neutralidade da 6/nov/08/make-google-and-facebook-pay-for-public-s
rede estabelecerão a base para o futuro ervice-reporting.
digital do jornalismo. A política é um
contrato social para todos nós - para a Hamilton, J. (2016). Democracy’s Detective: The
Economics of Investigative Journalism, Cambridge:
imprensa, para o governo e para o público. Harvard University Press.
Se os jornalistas não se viram para a política
de media, a política de media pode virar-se Hindman, M. (2008). The Myth of Digital Democracy.
para eles. Princeton: Princeton University Press.
__________ Ingram, M. (2016). "Sorry Mark Zuckerberg, but
Facebook is definitely a media company". Fortune, 30
Referências de Agosto,
http://fortune.com/2016/08/30/facebook-media-comp
Ali, C. (2016) “The Merits of Merit Goods: Local any/
Journalism and Public Policy in a Time of Austerity”,
Journal of Information Policy 6, 105–128. Kammer, A. (2016). “A Welfare Perspective on Nordic
Media Subsidies”, Journal of Media Business Studies
Barthel, M. (2016, June 15) “5 Key Takeaways About 13(3), 140–152.
the State of the News Media in 2016”. Pew Research
Center, McChesney, R. e Nichols, J. (2010) The death and life
http://www.pewresearch.org/fact-tank/2016/06/15/st of American journalism: The media revolution that
ate-of-the-news-media-2016-key-takeaways/ will begin the world again. New York, NY: Nation
Books.
Benson, R. (2013) Shaping Immigration News: A
French-American Comparison. New York: Cambridge McChesney, R. and Pickard, V. (2011) Will the last
University Press. reporter please turn out the lights: The collapse of
journalism and what can be done to fix it. New York:
Benson, R. e Pickard, V. (2017) “The slippery slope of The New Press.
the oligarchy media model”. The Conversation, 11 de - (2017) News Media as Political Institutions. In K.
Agosto, Kenski, & K. Hall Jamieson, (Eds.), Handbook of

Jornalismo digital e regulação: propriedade e controlo | 89


O Estado da Internet 2021

Political Communication Theories. Oxford: Oxford (2): 82-97.


University Press, 263-274. - (2017a) “A Social Democratic Vision of Media:
Toward a Radical Pre-history of Public Broadcasting”,
Molla, R. and Ovide, S. (2016) “New Media Shares Old Journal of Radio and Audio Media 24 (2), 200-212.
Media’s Roof”, Bloomberg, 23 de Maio. - (2017b) “Rediscovering the News: Journalism
Studies’ Three Blind Spots”, em P. Boczkowski e C.W.
Murschetz, P. (2014) State Aid for Newspapers - Anderson (Eds.), Remaking Digital News, Cambridge:
Theories, Cases, Actions, Berlin: Springer-Verlag. The MIT Press.
- (2017c) “Structural Collapse: The American
Neiva, E.M. (1996) “Chain Building: The Consolidation Journalism Crisis and the Search for a Sustainable
of the American Newspaper Industry, 1953–1980”, Future”, em Peter Berglez, Ulrika Olausson and Mart
Business History Review 70(01): 1–42. Ots (Eds.), What Is Sustainable Journalism?
Integrating the Environmental, Social, and Economic
Pew Research Center’s Project for Excellence in Challenges of Journalism, New York: Peter Lang,
Journalism (2010, 11 de Janeiro). "The Study of the 351-366.
News Ecosystem of One American City",
http://www.journalism.org/analysis_report/how_new Pickard, V. Stearns, J. and Aaron, C. (2009) Saving the
s_happens. news: Toward a national journalism strategy.
Washington, DC: Free Press.
Picard, R. (2002) “US Newspapers Ad Revenue Shows
Consistent Growth”, Newspaper Research Journal Pickard, V. and A. Williams (2014) “Salvation or folly?
23(4): 21–33. The perils and promises of digital paywalls”, Digital
- (2008) “Shifts in Newspaper Advertising Journalism 2(2), 195-213.
Expenditures and their Implications for the Future of
Newspapers”, Journalism Studies 9(5): 704–716. Plunkett, J. (2016, May 11) “BBC to Fund 150 Local
- (2010) Value Creation and the Future of News News Journalists”, The Guardian,
Organizations: Why and How Journalism Must http://www.theguardian.com/media/2016/may/11/bbc
Change to Remain Relevant in the Twenty-First -to-fund-150-local-news-journalists.
Century. Lisbon: Media XXI.
- (2011) The Economics and Financing of Media Sass, E. (2015). Consumers Can’t Tell Native Ads
Companies (2nd ed.). New York: Fordham University From Editorial Content, MediaPost, 31 de Dezembro,
Press. https://www.mediapost.com/publications/article/265
Pickard, V. (2011) “Can government support the 789/consumers-cant-tell-native-ads-from-editorial-co
press? Historicizing and internationalizing a policy n.html
approach to the journalism crisis”, The
Communication Review 14(2), 73-95. Shirky, C. (2011). Newspapers and Thinking the
- (2014a) “The great evasion: Confronting market Unthinkable, em Will the last reporter please turn out
failure in American media policy”, Critical Studies in the lights: The collapse of journalism and what can
Media Communication 31(2), 153-159. be done to fix it. New York: The New Press, 38-44.
- (2014b) Wither(ing) Journalism. Public Culture.
http://www.publicbooks.org/nonfiction/withering-jour Soloski, J. (2013). “Collapse of the US newspaper
nalism industry: Goodwill, leverage and bankruptcy”,
- (2015a) America’s Battle for Media Democracy: The Journalism 14(3), 309-329.
Triumph of Corporate Libertarianism and the Future
of Media Reform. New York: Cambridge University Starkman, D. (2016). "The Ever-Expanding Media
Press. Giants", Traffic Magazine, 28 de Setembro.
- (2015b) “The return of the nervous liberals: Market
fundamentalism, policy failure, and recurring Stites, T. (2011). “Layoffs and Cutbacks Lead to a
journalism crises”, The Communication Review 18 New World of News Deserts”, NiemanLab,

Jornalismo digital e regulação: propriedade e controlo | 90


O Estado da Internet 2021

http://www.niemanlab.org/2011/12/tom-stites-layoffs
-and-cutbacks-lead-to-a-new-world-of-news-deserts/

Stulberg, A. (2017). “In paywall age, free content


remains king for newspaper sites”, Columbia
Journalism Review, 22 de Setembro,
https://www.cjr.org/business_of_news/newspaper-pa
ywalls.php.

Waldman, S. (2011). The information needs of


communities: the changing media landscape in a
broadband age. Washington, DC: Federal
Communications Commission,
https://www.fcc.gov/infoneedsreport.

Williams, A. e Pickard, V. (2016). “The Costs of Risky


Business: What Happens When Newspapers Become
the Playthings of Billionaires?” Association for
Education in Journalism and Mass Communication,
MN.

Jornalismo digital e regulação: propriedade e controlo | 91


O Estado da Internet 2021

Proposta de um serviço de Internet: a


"homepage" da eternidade

Neil J. A. Sloane, presidente da OEIS Foundation

Resumo

Este artigo descreve um possível serviço de Internet que algumas organizações


importantes, como a Harvard University, AT&T, o Institute of Electrical and Electronic
Engineers, a American Mathematical Society, a American Medical Association ou
mesmo o Vaticano, podem oferecer: uma página inicial "para sempre". Essa "página
perpétua" ou "página da eternidade" ou "página do e-memorial" seria uma "home page"
que a organização ajudaria o cliente a configurar, com a garantia de que duraria
(digamos) 500 anos, ou até a organização deixar de existir. Ela listaria todas as coisas
pelas quais o cliente gostaria de ser lembrado (realizações, família, etc.). Conforme a
população dos Estados Unidos envelhece, esse serviço deve tornar-se muito popular.
Afinal, quase todos querem ser recordados na posteridade.

Detalhes

O nome para este serviço deve ser escolhido com cuidado e, claro, registado. "Serviço
da eternidade", "Página perpétua", "Página da eternidade", "Página do E-memorial",
"Página eterna" são algumas possibilidades. Usarei "Página perpétua" neste artigo.
A primeira versão deste texto foi escrita em Dezembro de 1996, embora a ideia da
"página inicial perpétua" me tenha ocorrido pela primeira vez em Janeiro de 1996. Não
é de surpreender que outras pessoas tenham ideias semelhantes, e pode haver alguns
serviços comerciais que fornecem lápides electrónicas disponíveis mesmo agora. Mas
a minha visão é que esse serviço seria oferecido por uma grande organização ou
instituto, que já existe há muito tempo e tem alguma hipótese de existir daqui a 500
anos. E não estou a pensar em lápides, mas em "homepages".

A "Página perpétua" pode incluir coisas como:


- fotografias de casas, barcos, pinturas, outros bens preciosos
- listas de prémios, realizações
- textos escritos, desenhos, canções e até romances inéditos (o espaço em disco é
barato)

| 92
O Estado da Internet 2021

- hiperligações para páginas perpétuas da armazenamento e, desde que pague uma


família (incluindo antepassados!) e amigos pequena taxa mensal, poderá continuar a
modificá-la. Assim que parar de pagar essa
Esta é a possibilidade do cliente escrever a mensalidade (porque morreu ou mudou para
sua própria página de obituário do New York um fornecedor diferente, por exemplo), man-
Times, ou "cápsula do tempo". (Muitas teremos a versão mais recente para sempre.
pessoas não percebem que, excepto por um
punhado de obituários importantes, cada Parte da oferta seria uma garantia de que
item de obituário no New York Times tem que quando a Internet for substituída por algum
ser comprado por cerca de 40 dólares por outro serviço daqui a alguns anos, todas as
linha - isso pode ser uma experiência "Páginas perpétuas" serão automaticamente
humilhante para o parente mais próximo. convertidas para o novo meio.
Preparar uma "Página perpétua" com
antecedência para os enfermos e idosos É importante que a organização que oferece
pode ser terapêutico e reconfortante para a o serviço já exista há muito tempo e tenha
família.) uma boa hipótese de ainda existir daqui a
500 anos. As organizações antes menciona-
Deve haver uma quantidade generosa de das no Resumo certamente satisfazem essas
espaço em disco disponível para cada página condições e é fácil pensar noutras. Esse
- um mínimo de 10 megabytes (MB), para serviço não seria muito convincente se fosse
permitir a inclusão de várias fotografias. (A oferecido por algum minúsculo fornecedor
maioria dos fornecedores de Internet não local de serviços de Internet.
disponibiliza actualmente espaço em disco
suficiente). Como o meu colega Andrew Odly- Esta é a primeira vez na história que tal
zko apontou na sua discussão sobre o futuro coisa é possível.
das revistas académicas, o custo do espaço
em disco está a baixar tão rapidamente que é A propósito, o New York Times de sábado, 7
provável que o custo de prestar um serviço de Dezembro de 1996, descreve (na página
perpetuamente não será muito mais caro do D2) uma patente, US 5,517.791, para um novo
que prestá-lo durante um ano. desenho de lápide que pode incorporar a
história da vida de uma pessoa - incluindo
A organização ajudaria o cliente a configurar fotografias. Portanto, ideias como a que estou
a página inicial e forneceria instruções sobre a propondo "andam por aí".
como mantê-la. Um "help desk" seria parte
do serviço. Como se pode verificar visitando cemitérios em
Nova Jersey, as lápides raramente são legíveis
Uma forma de estruturar a oferta pode depois de terem passado cem anos. Um dos
passar por dizer aos clientes: por uma taxa anúncios do serviço proposto poderia mostrar
única de X dólares, forneceremos Y MB de uma família vasculhando um cemitério cheio

Proposta de um serviço de Internet: a "homepage" da eternidade | 93


O Estado da Internet 2021

de lápides lisas pelo desgaste, à procura da a imagem mostra poeira circulando em torno
sepultura perdida de um antepassado. Além de uma ruína apropriada:
disso, à medida que a população mundial
continua a explodir, os cemitérios vão Eu conheci um viajante de uma terra antiga
tornar-se cada vez mais irrelevantes. Que disse: Duas pernas de pedra vastas e sem
tronco
O serviço de "Página perpétua" atrairia Estão no deserto... Perto delas, na areia,
especialmente clientes com alguma idade. Meio enterrado, está um rosto despedaçado,
Existem várias maneiras pelas quais os cuja carranca,
anúncios podem apontar a futilidade de E lábio enrugado, e zombaria de comando frio,
tentativas anteriores para se ser lembrado, Diz que o seu escultor bem lê essas paixões
mesmo por líderes mundiais. Por exemplo, Que ainda sobrevivem, estampados nessas
um anúncio poderia mostrar uma réplica do coisas sem vida,
Mausoléu original de Halicarnasso, após o A mão que zombou deles e o coração que
qual todos os mausoléus posteriores foram alimentou:
nomeados. (ver The Oxford History of the E no pedestal aparecem estas palavras:
Classical World, ed. J. Boardman et al., "Meu nome é Ozymandias, rei dos reis:
Oxford, 1993, p. 150.) Olhai as minhas obras, ó poderosos, e
desesperai!"
Uma das Sete Maravilhas do Mundo, foi Nada além disso permanece. Rodear a
construído no ano 353 para o Rei Mausolo de decadência
Caria pela sua esposa. Já não existe. "Mas se Daquele naufrágio colossal, sem limites e vazio
o Rei Mausolo tivesse tido uma página As areias solitárias e planas se estendem para
perpétua, ainda poderíamos ler sobre as muito longe.
suas vitórias hoje..."
Também dará a todos os poetas e escritores
Uma forma alternativa em que a "Página não publicados, pintores e músicos não
perpétua" pode ser usada é por familiares e reconhecidos, cientistas cujas teorias são
amigos após a morte de um ente querido, rejeitadas, a oportunidade de ter os seus
criando um memorial permanente para o trabalhos imortalizados.
falecido. A página precisaria de ter um
guardião autorizado para filtrar material Outro anúncio poderia ter Jessye Norman
impróprio. Uma certa quantidade de espaço cantando a comovente e inesquecível ária
permanente seria adquirida, para a qual as "Remember Me" de "Dido and Aeneas" de
partes interessadas poderiam contribuir da Henry Purcell. (O título formal é "Thy hand
maneira que desejassem. Belinda - when I am laid in Earth" [Philips CD
434 161-2].)
Outro anúncio poderia ter uma voz lendo o
poema "Ozymandias" de P. B. Shelley, enquanto

Proposta de um serviço de Internet: a "homepage" da eternidade | 94


O Estado da Internet 2021

"Chatbots" que ressuscitam os mortos:


uma tecnologia "perturbadora"

Edina Harbinja, Marisa McVey (Aston University) e Lilian Edwards (Newcastle University)

Foi recentemente revelado que a Microsoft patenteou em 2017 um chatbot que, se


criado, ressuscitaria digitalmente os mortos. Usando inteligência artificial (IA) e
aprendizagem de máquina, o chatbot proposto traria a nossa persona digital de volta
à vida para conversar com a nossa família e amigos. Quando pressionados sobre a
tecnologia, os representantes da Microsoft admitiram que o chatbot era “perturbador”
e que actualmente não havia planos para colocá-lo em produção.

Ainda assim, parece que as ferramentas técnicas e os dados pessoais estão


disponíveis para tornar possíveis as reencarnações digitais. Os chatbots de IA já
passaram no "Teste de Turing", o que significa que eles enganaram outros humanos
fazendo-os pensar que também são humanos. Entretanto, a maioria das pessoas no
mundo moderno deixa agora para trás dados suficientes para ensinar programas de
IA sobre as nossas idiossincrasias de conversação. Duplos digitais convincentes
podem estar ao virar da esquina.

Mas actualmente não existem leis que regulem a reencarnação digital. O seu direito à
privacidade dos dados após a sua morte está longe de ser imutável e, actualmente,
não há como optar por não ser ressuscitado digitalmente. Essa ambiguidade legal
deixa espaço para empresas privadas fazerem chatbots com os seus dados após a sua
morte.

A nossa investigação examinou a questão legal surpreendentemente complexa sobre


o que acontece com os seus dados após morrer. Actualmente, e na ausência de
legislação específica, não é claro quem pode ter o poder máximo para reiniciar a sua
persona digital após o seu corpo físico ter ido descansar.

O chatbot da Microsoft usaria as suas mensagens electrónicas para criar uma


reencarnação digital à sua semelhança após falecer. Esse tipo de chatbot usaria a
aprendizagem por máquina para responder às mensagens de texto da mesma forma
que você o faria se estivesse vivo. Se deixar para trás bons dados de voz, eles também
podem ser usados para criar uma sua semelhança vocal - alguém com quem os

| 95
O Estado da Internet 2021

parentes podem falar, através de um telefone por plataformas online privadas, como o
ou de um robô humanóide. Facebook e a Google. Este controlo é baseado
nos termos de serviço que assinamos
A Microsoft não é a única empresa a ter quando criamos perfis nessas plataformas.
demonstrado interesse na ressurreição digi- Esses termos protegem fortemente a
tal. A empresa de IA Eternime desenvolveu privacidade dos mortos.
um chatbot de IA que recolhe informações -
incluindo geolocalização, movimentos, acti- Por exemplo, em 2005, a Yahoo! recusou-se a
vidades, fotos e dados do Facebook - que fornecer detalhes de login da conta de e-mail
permite aos utilizadores criarem um avatar para a família sobrevivente de um fuzileiro
de si mesmos para viver depois de morre- naval dos EUA morto no Iraque. A empresa
rem. Pode ser apenas uma questão de tempo argumentou que os seus termos de serviço
até que as famílias tenham a opção de reani- foram concebidos para proteger a
mar parentes mortos usando tecnologias de privacidade do marinheiro. Um juiz acabou
IA, como a da Eternime. por ordenar que a empresa fornecesse à
família um CD contendo cópias dos e-mails,
Se chatbots e hologramas de alguém num abrindo um precedente legal.
túmulo se tornarem comuns, precisaremos
de elaborar novas leis para os governar. Algumas iniciativas, como o Inactive Account
Afinal, parece uma violação do direito à Manager da Google e o Legacy Contact do
privacidade ressuscitar digitalmente alguém Facebook, tentaram resolver o problema dos
cujo corpo está sob uma lápide onde se lê dados "post mortem". Eles permitem que
“descanse em paz”. utilizadores vivos tomem algumas decisões
sobre o que acontece com os seus conjuntos
Corpos em binário de dados após morrerem, ajudando a evitar
batalhas judiciais feias sobre os dados de
As leis nacionais são inconsistentes sobre pessoas mortas no futuro. Mas essas medi-
como os dados pessoais serão usados após a das não substituem as leis.
sua morte. Na UE, a lei sobre a privacidade
de dados protege apenas os direitos das Um caminho para uma melhor legislação de
pessoas vivas. Isso deixa espaço para os dados "post mortem" é seguir o exemplo da
Estados membros decidirem como proteger doação de órgãos. A lei de "opt out" da doação
os dados dos mortos. Alguns, como a de órgãos no Reino Unido é particularmente
Estónia, França, Itália e Letónia, legislaram relevante, pois trata os órgãos dos mortos
sobre os dados "post mortem". Isso não como doados, a menos que a pessoa tenha
ocorreu no Reino Unido. especificado o contrário quando estava viva.
O mesmo esquema de exclusão [idêntico ao
Para complicar ainda mais as coisas, os português] pode ser aplicado aos dados "post
nossos dados são controlados principalmente mortem".

"Chatbots" que ressuscitam os mortos: uma tecnologia "perturbadora" | 96


O Estado da Internet 2021

Este modelo pode ajudar-nos a respeitar a


privacidade dos mortos e os desejos dos
seus herdeiros, ao mesmo tempo que consi-
dera os benefícios que podem surgir com os
dados doados: que os doadores de dados
podem ajudar a salvar vidas, tal como fazem
os doadores de órgãos.

No futuro, as empresas privadas podem


oferecer aos membros da família uma esco-
lha angustiante: abandonar o seu ente queri-
do à morte ou, em alternativa, pagar para
revivê-lo digitalmente. O chatbot da Micro-
soft pode ser muito perturbador para aceitar
actualmente, mas é um exemplo do que está
para vir. Está na altura de escrevermos as
leis para governar essa tecnologia.
___________

Referências disponíveis no texto original.

"Chatbots" que ressuscitam os mortos: uma tecnologia "perturbadora" | 97


O Estado da Internet 2021

O Estado da Internet em Portugal

Digital 2021 (DataReportal, We Are Social, Hootsuite), COST (NetBlocks)

| 98
O Estado da Internet 2021

O Estado da Internet em Portugal | 99


O Estado da Internet 2021

O Estado da Internet em Portugal | 100


O Estado da Internet 2021

O Estado da Internet em Portugal | 101


O Estado da Internet 2021

Custo (em dólares) de um dia de "shutdown" da Internet em Portugal

O Estado da Internet em Portugal | 102


O Estado da Internet 2021

Créditos

Imagem da capa
Barrett Lyon/The Opte Project, sob licença CC BY-NC 4.0
http://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/

2) A verdadeira novidade da ARPANET


Publicado originalmente em Two-Bit History, reproduzido sob licença CC BY-SA 4.0
https://twobithistory.org/2021/02/07/arpanet.html
https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/

3) Uma visão do futuro dos nossos dados


Publicado originalmente na Noema Magazine, reproduzido com autorização do autor
https://www.noemamag.com/a-view-of-the-future-of-our-data/

Imagem: Tendências nas buscas


Fonte: Advanced Web Ranking
https://www.advancedwebranking.com/search-demand/

4) Privacidade não é propriedade


Publicado originalmente na pluralistic.net, reproduzido sob licença CC BY-SA 4.0
https://pluralistic.net/2021/02/26/meaningful-zombies/#luxury-goods
https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/

5) Desfinanciar a Big Tech, refinanciar a comunidade


Publicado originalmente na Tech Otherwise, reproduzido com autorização do The Tech Otherwise Collective.
https://doi.org/10.21428/93b2c832.e0100a3f

6) Desgovernar?
Publicado originalmente na Internetactu.net, reproduzido com autorização do autor.
https://www.internetactu.net/2021/01/06/degouverner/

7) Adopção de carteiras digitais e de smartphones vai descentralizar a Internet


Publicado originalmente em The Sovereign Individual Weekly, reproduzido com autorização do autor.
https://dougantin.com/digital-wallets-smartphone-adoption-will-decentralize-the-internet/

Imagem: "Nearly half of the world is still offline"


Fonte: Internet Health Report (Mozilla)
https://2020.internethealthreport.org

8) Moderação descentralizada de conteúdos


Publicado originalmente no blogue Martin Kleppmann, reproduzido sob licença CC BY 3.0.
https://martin.kleppmann.com/2021/01/13/decentralised-content-moderation.html
https://creativecommons.org/licenses/by/3.0/

Imagem: "The world's Top 50 Websites"


Fonte: Visual Capitalist
https://www.visualcapitalist.com/the-50-most-visited-websites-in-the-world/

9) Shhhh... Combatendo a cacofonia de conteúdos com bibliotecários


Publicado originalmente em "COVID-19 and the Information Space: Boosting the Democratic Response", reproduzido com
autorização da autora.
https://www.ned.org/wp-content/uploads/2021/01/Combating-Cacophony-Content-Librarians-Donovan.pdf

Imagem: "Social Media: When Was Each Platform Generating Its Peak Buzz on Google"
Fonte: Chartr
https://www.chartr.co/

| 103
O Estado da Internet 2021

Créditos

10) Iria notar se as notícias falsas mudassem o seu comportamento?


Publicado originalmente na Computers in Human Behavior, adaptado sob licença CC BY 4.0.
https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0747563220303800
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

11) Jornalismo digital e regulação: propriedade e controlo


Publicado originalmente em "The Routledge Handbook of Developments in Digital Journalism Studies" (2018), reproduzido
com autorização do autor.
https://www.asc.upenn.edu/people/faculty/victor-pickard-phd

12) Proposta de um serviço de Internet: a "homepage" da eternidade


Publicado originalmente no site pessoal (em Dezembro de 1996, revisto em 11 de Novembro de 1997), reproduzido com
autorização do autor.
http://neilsloane.com/doc/eternal.html

13) "Chatbots" que ressuscitam os mortos: uma tecnologia "perturbadora"


Publicado originalmente na The Conversation, reproduzido sob licença CC BY 4.0.
https://theconversation.com/chatbots-that-resurrect-the-dead-legal-experts-weigh-in-on-disturbing-technology-155436
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

14) O estado da Internet em Portugal


Imagens: Digital 2021: Portugal
Fonte: DataReportal, We Are Social, Hootsuite
https://datareportal.com/reports/digital-2021-portugal
Imagem: Custo (em dólares) de um dia de "shutdown" da Internet em Portugal
Fonte: NetBlocks
https://netblocks.org/cost/

| 104

Você também pode gostar