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Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais

CONSELHO EDITORIAL
Cláudio Couto Terrão
Délia Mara Villani Monteiro
Élida Graziane Pinto
Elke Andrade Soares de Moura
Evandro Martins Guerra
Fernando Gonzaga Jayme
Flávia Lacerda Franco Melo Oliveira
José de Ribamar Caldas Furtado
Leandro Maciel do Nascimento
Licurgo Joseph Mourão de Oliveira
Lilian de Almeida Veloso Nunes Martins
Luis Emílio Pinheiro Naves
Sebastião Helvecio Ramos de Castro
Valdecir Fernandes Pascoal

FICHA CATALOGRÁFICA

Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais.


Ano 1, n. 1 (dez. 1983- ). Belo Horizonte: Tribunal de
Contas do Estado de Minas Gerais, 1983 -

Periodicidade irregular (1983-87)


Publicação interrompida (1988-92)
Periodicidade trimestral (1993-2016)
Periodicidade semestral (2017)

ISSN Impresso: 0102-1052 — ISSN Eletrônico: 2447-2697


DOI: 10. 18763 / revistatcemg

1 Tribunal de Contas — Minas Gerais — Periódicos.


2 Minas Gerais — Tribunal de Contas — Periódicos.

CDU 336.126.55(815.1)(05)

Publicação do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais


Escola de Contas e Capacitação Professor Pedro Aleixo
Coordenadoria de Pós-Graduação - (31) 3348-2142
Av. Raja Gabaglia, 1.315 - Luxemburgo
Belo Horizonte/MG - CEP: 30.380-435 | Brasil
Endereço eletrônico: revista@tce.mg.gov.br
Site: https://libano.tce.mg.gov.br/seer/index.php/TCEMG e www.tce.mg.gov.br.

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 1-168 jul./dez. 2020


EDITORIAL
Ana Marta Accoroni Gonçalves Araújo

CRÉDITO: ARQUIVO PESSOAL


Especialista em Direito Público pelo Centro Universitário
Newton Paiva (CNP), Belo Horizonte, MG, Brasil. Especialista
em Controle Externo pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais (PUC Minas), Belo Horizonte, MG, Brasil. Graduada
em Biblioteconomia pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil.
CV: http://lattes.cnpq.br/9829567401484575
E-mail: agonçalves@tce.mg.gov.br

O Programa de Pós-Graduação da Escola de Contas e Capacitação Professor Pedro Aleixo acaba de


disponibilizar a segunda edição de 2020 da Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais
(Revista do TCEMG). Esse fato é motivo de grande satisfação não somente para os envolvidos na sua
publicação e divulgação, como também para aqueles que atuam no controle externo, administram ou
têm interesse na forma como os recursos públicos são geridos.
A Coordenadoria de Biblioteca e Gestão de Informação (CBGI), unidade integrante da estrutura da
Escola de Contas e Capacitação Professor Pedro Aleixo, expressa o reconhecimento da Revista do
TCEMG como fonte de informação técnica e científica, sendo referência para o controle externo
brasileiro. Nesse ato, a divulgação desta nova edição faz parte do compromisso da CBGI de contribuir,
ainda que de forma indireta, por meio de atividades de gestão de informação para a efetividade do
trabalho de fiscalização e controle dos recursos públicos.
Nesse momento atípico, de incertezas e restrições devido à pandemia decorrente do covid-19, a
publicação da nova edição da Revista do TCEMG vai ao encontro de temas a serem enfrentados pelos
gestores públicos no novo cenário político, econômico e social.
Neste número – 2/2020 –, assuntos relevantes foram tratados em seis artigos doutrinários. No
primeiro, os autores Marcílio Barenco Corrêa de Mello e Gabriel Salgueiro abordam, sob a perspectiva
econômica do direito, a concessão de incentivos fiscais pelo Estado e a atuação dos entes federativos.
O segundo trabalho, de Cláudia Costa de Araújo Fusco, Flávia Alves Guimarães, Frederico Martins de
Paula Neto e Giovanna Bonfante é um estudo de caso, realizado no âmbito do Município de Belo
Horizonte, relativo à atuação de gestores públicos diretamente envolvidos nas ações emergenciais
de resposta à pandemia ocasionada pela covid-19. Os impactos das alterações da Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), no que concerne à fiscalização pelo TCEMG com relação aos
editais de concursos públicos, são problematizados por Gabriel Venturim de Souza Grossi, no terceiro
artigo. As inovações jurídicas trazidas pelo sistema de registro de preços nas licitações da União são
o destaque do quarto artigo, de autoria de Jose Kaerio França Lopes. A aplicação do instituto jurídico
da decadência no âmbito dos processos deliberados pelo TCEMG, o quinto artigo, tem a autoria de
Juliana Meireles de Mattos.
A evolução do direito constitucional, de forma a favorecer a interpretação das constituições, e a
importância da observância das normas e casos concretos são a temática do último trabalho desta
seção, do autor Lucas Antunes Leão.
Este número da Revista traz, ainda, na seção Estudo e Pesquisa, artigo do grupo de pesquisa da Escola
de Contas denominado Financiamento da educação pública básica sob a ótica do controle externo,
que versa sobre o controle externo exercido pelo Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais
(TCEMG) com relação aos fundos educacionais.
Na seção Pareceres e Decisões, destaca-se a Consulta n. 1.072.572, de relatoria do conselheiro Wanderley
Ávila, que considerou desnecessária a edição de lei, pela administração pública, para fins de obtenção
de termos de colaboração, de fomento e acordo de cooperação com entidades do terceiro setor. Por
fim, destaque foi atribuído ao parecer da procuradora Elke Andrade Soares de Moura no Incidente de
Uniformização de Jurisprudência n. 1.058.760, que aborda a divergência deentendimentos prolatados
neste Tribunal acerca do recurso cabível quanto às decisões interlocutórias incidentais que aplicam
multa-coerção.
Na expectativa de que esta edição da Revista do TCEMG possa contribuir como fonte de atualização e
formação para todos aqueles que atuam no controle externo.

Uma ótima leitura!

Ana Marta Accoroni Gonçalves Araújo e equipe da CBGI



VINCULAÇÃO INSTITUCIONAL
Programa de Pós-Graduação da Escola de Contas e Capacitação Professor Pedro Aleixo - TCEMG

CORPO EDITORIAL

EDITOR
EVANDRO MARTINS GUERRA
EQUIPE TÉCNICA
REGINA CÁSSIA NUNES DA SILVA
SOLANGE BÁRBARO BÁRRIOS
REVISÃO
CÉLIA ROSA
GILSON ESTEVES GUEDES FILHO
JÉSUS ARAÚJO VIEIRA
CAPA, PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO
ANDRÉ AUGUSTO COSTA ZOCRATO
ANDRÉ LUIZ DE OLIVEIRA JUNIOR
BRUNA GONTIJO PELLEGRINO
LÍVIA MARIA BARBOSA SALGADO
VIVIAN DE PAULA
IMPRESSÃO E ACABAMENTO
COMPANHIA DA COR STUDIO GRÁFICO LTDA.
CORPO DE PARECERISTAS

 Pós-doutores • David de Medeiros Leite - Universidade do Estado do


• Adriano da Silva Ribeiro - Universidad del Museo Rio Grande do Norte (UERN) RN/Brasil http://lattes.cnpq.
Social Argentino - UMSA. Argentina http://lattes.cnpq. br/5272937397803443
br/2662848014950489 • Diana Vaz de Lima - Universidade Brasília (UnB) DF/Brasil http://
• Alexandre Freire Pimentel - Universidade Católica de lattes.cnpq.br/1458221915017406
Pernambuco (Unicap) PE/Brasil  http://lattes.cnpq. • Diogo Ribeiro Ferreira -  Universidade Federal de Minas Gerais
br/6955582727797003 (UFMG) MG/Brasil  http://lattes.cnpq.br/6117168574722535
• Cynara Monteiro Mariano - Universidade Federal do Ceará (UFC) • Eduardo Ramalho Rabenhorst - Universidade Federal da Paraíba
CE/Brasil http://lattes.cnpq.br/2979911689500048 (UFPB) PB/Brasil http://lattes.cnpq.br/459416967015429
• Fátima de Souza Freire - Universidade Brasília (UnB) DF/ • Elcio Nacur Rezende - Escola Superior Dom Helder Câmara
Brasil http://lattes.cnpq.br/3833345142951348 (ESDHC) MG/Brasil http://lattes.cnpq.br/7242229058954148
• Fernando Horta Tavares - Pontifícia Universidade Católica • Fernão Justen de Oliveria - Centro Universitário Curitiba (Uni
de Minas Gerais (PUC Minas) MG/Brasil  http://lattes.cnpq. Curitiba) PR/Brasil http://lattes.cnpq.br/8502637060116601
br/8877829268616804 • Filipe Lôbo Gomes - Universidade Federal de Alagoas (Ufal)
• Fernando Facury Scaff - Universidade Federal do Pará (UFPA) PA/ AL/Brasil  http://lattes.cnpq.br/3497931129348069
Brasil http://lattes.cnpq.br/3214760192523948 • Francisco Luiz Cazeiro Lopreato - Universidade Estadual
• Gleison Mendonça Diniz - Universidade de Fortaleza (Unifor) CE/ de Campinas (Unicamp) SP/Brasil http://lattes.cnpq.
Brasil http://lattes.cnpq.br/3843823047506506 br/5601311221559092
• Maurin Almeida Falcão - Universidade Católica de Brasília (UCB) • Francisco Humberto Cunha Filho - Universidade
DF/Brasil http://lattes.cnpq.br/0316639131623918 de Fortaleza (Unifor) CE/Brasil http://lattes.cnpq.
• Ricardo Corrêa Gomes - Universidade Brasília (UnB) DF/ br/8382182774417592
Brasil http://lattes.cnpq.br/3539564256173485 • Fúlvia Helena de Gioia - Universidade Presbiteriana Mackenzie
• Rogério Montai de Lima - Universidade Federal de Rondônia (Mackenzie) SP/Brasil http://lattes.cnpq.br/9669358241407042
(Unir) RO/Brasil http://lattes.cnpq.br/5263815872817845 • Geovany Jessé Alexandre da Silva - Universidade
• Sérgio Henriques Zandona Freitas - Universidade Fumec MG/ Federal da Paraíba (UFPB) PB/Brasil http://lattes.cnpq.
Brasil http://lattes.cnpq.br/2720114652322968 br/2493373265851527
• Vinício Carrilho Martinez - Universidade Federal de Rondônia • Gisele Santos Fernandes Goés - Universidade Federal do Pará
(Unir) RO/Brasil http://lattes.cnpq.br/7916014556126573 (UFPA) PA/Brasil http://lattes.cnpq.br/1305423832262115
• Wilson de Jesus Bezerra de Almeida - Universidade Católica de • Heleno Taveira Torres - Universidade de São Paulo (USP) SP/
Brasília (UCB) DF/Brasil  http://lattes.cnpq.br/0782042857556146 Brasil http://lattes.cnpq.br/7207255268186335
Doutores • Igor Danilevicz - Universidade Federal do Rio Grande do Sul
• Abimael de Jesus Barros Costa – Universidade de Brasília (UnB) (UFRGS) RS/Brasil http://lattes.cnpq.br/4627969450903868
DF/Brasil http://lattes.cnpq.br/6524204350805774 • Igor Mauler Santiago - Faculdade de Direito de São
• Alexandre Santos Aragão - Universidade do Estado do Rio de Bernardo do Campo (FDSBC) SP/Brasil  http://lattes.cnpq.
Janeiro (UERJ) RJ/Brasil http://lattes.cnpq.br/1047632803069779 br/3868906452382268
• Álisson da Silva Costa - Pontifícia Universidade Católica • Jane Lucia Berwanger - Universidade Regional Integrada do
de Minas Gerais (PUC Minas) MG/Brasil  http://lattes.cnpq. Alto Uruguai e das Missões (URI) RS/Brasil  http://lattes.cnpq.
br/8996198201375905 br/0639219966970906
• Ana Carla Pinheiro Freitas - Universidade de Fortaleza (Unifor) • Joaquim Miranda Sarmento - Instituto Superior de Economia
CE/Brasil http://lattes.cnpq.br/1915477370767046 e Gestão (Iseg) / Universidade de Lisboa - Lisbon School of
• Ana Lucia Pretto Pereira - Centro Universitário Autônomo Economics and Management - Lisboa/Portugal  http://www.
do Brasil (Unibrasil) PR/Brasil  http://lattes.cnpq. idefe.pt/docentes/joaquim-miranda-sarmento/
br/1636566579454782 • Johnson Barbosa Nogueira - Universidade Federal da Bahia
• André Carlos Busanelli de Aquino - Universidade de São Paulo (UFBA) BA/Brasil http://lattes.cnpq.br/7437562307462367
(USP) SP/Brasil http://lattes.cnpq.br/2204782841421432 • José Alves Dantas - Universidade Brasília (UnB) DF/Brasil http://
• Antônio César Bochenek - Centro de Ensino Superior de lattes.cnpq.br/4292408391743938
Campos Gerais (Cescage) PR/Brasil http://lattes.cnpq. • José Eduardo Sabo Paes - Universidade Católica de Brasília (UCB)
br/0608852995858304 DF/Brasil http://lattes.cnpq.br/0616115870965757
• Antônio Souza Prudente - Universidade Católica de Brasília • José Francisco Siqueira Neto - Universidade Presbiteriana
(UCB) DF/Brasil  http://lattes.cnpq.br/1964086037522568 Mackenzie (Mackenzie) SP/Brasil http://lattes.cnpq.
• Arthur Mendes Lobo - Pontifícia Universidade Católica br/0281418007501711
de São Paulo (PUC-SP) SP/Brasil http://lattes.cnpq. • José Luiz Borges Horta - Universidade Federal de Minas Gerais
br/0567351441778271 (UFMG) MG/Brasil http://lattes.cnpq.br/3280349700985398
• Augusto César Barreto Rocha - Universidade Federal • José Osório do Nascimento Neto - Centro Universitário
do Amazonas (Ufam) Manus/AM  http://lattes.cnpq. Autônomo do Brasil (Unibrasil) PR/Brasil http://lattes.cnpq.
br/6306182798861780 br/1715929488515498
• Beatriz Souza Costa - Escola Superior Dom Helder Câmara • Julio Cesar de Aguiar - Universidade Católica de Brasília (UCB)
(ESDHC) MG/Brasil http://lattes.cnpq.br/2016298022505602 DF/Brasil http://lattes.cnpq.br/7152243130773982
• Benjamin Tabak - Universidade Católica de Brasília (UCB) DF/ • Julio Cesar Vellozo - Universidade Presbiteriana Mackenzie
Brasil http://lattes.cnpq.br/7238063563586831 (Mackenzie) SP/Brasil http://lattes.cnpq.br/7139153540254751
• Carlos Eduardo Koller - Centro Universitário Autônomo do Basil - • Juliano Sarmento Barra  - Ecole de Droit de la
PR/Brasil http://lattes.cnpq.br/5479594549010831 Sorbonne (ATER) Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne  Paris/
• César Augusto Tibúrcio Silva - Universidade de Brasília (UnB) DF/ França  http://lattes.cnpq.br/1588864419925169
Brasil http://lattes.cnpq.br/5727021339190342 • Lenir Santos - Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa) SP/
• Cláudia Ferreira da Cruz - Universidade Federal do Rio de Janeiro Brasil http://lattes.cnpq.br/7987900897964197
(UFRJ) RJ/Brasil http://lattes.cnpq.br/6673681613280038 • Luciana Silva Custódio - PUC Minas | Fundação Dom Cabral -
• Cristiana Maria Fortini Pinto e Silva - Universidade Federal MG/Brasil http://lattes.cnpq.br/8022006631194123
de Minas Gerais (UFMG) MG/Brasil http://lattes.cnpq. • Luciani Coimbra de Carvalho Universidade Federal de
br/3123980301720047 Mato Grosso do Sul (Fadir) – MS/Brasil http://lattes.cnpq.
br/5525412512514279
• Luiz Osório Moraes Panza - Universidade Positivo e • Cristiano Aparecido Quinaia - Centro Universitário de Bauru (Ceub)
Centro Universitário Curitiba - PR/Brasil http://lattes.cnpq. SP/Brasil http://lattes.cnpq.br/3355159770670260
br/8783297266297073 • Diego de Paiva Vasconcelos - Universidade Federal de Rondônia
• Marcel Cordeiro - Pontifíciia Universidade Católica de São Paulo (Unir) RO/Brasil http://lattes.cnpq.br/5892231067274303
(PUC-SP ) SP/Brasil http://lattes.cnpq.br/0404366231583234 • Edgard Gonçalves da Costa - Faculdade Novos Horizontes ( FNH)
• Marcelo Driemeyer Wilbert - Universidade de Brasilia (UnB) DF/ MG, Brasil http://lattes.cnpq.br/5575035885055610
Brasil http://lattes.cnpq.br/4572622060081340 • Ester Gammardella Rizzi - Universidade de São Paulo (USP) SP/
• Márcio Carvalho Faria - Universidade Estadual do Rio de Janeiro Brasil http://lattes.cnpq.br/4686914890612248
(UERJ) RJ/Brasil http://lattes.cnpq.br/2850225342832497 • Fernando Amorim da Silva - Universidade Federal de Santa Catarina
• Maria Stela Campos da Silva - Universidade Federal do Pará (UFSC) SC/Brasil http://lattes.cnpq.br/4271326412615606
(UFPA) PA/Brasil http://lattes.cnpq.br/6127087703635751 • Fernando Ferreira Calazans (Faculdade de Direito da UAN/Angola)
• Maria Tereza Fonseca Dias - Universidade Federal de Luanda/Angola http://lattes.cnpq.br/6304137576099093
Minas Gerais (UFMG) MG/Brasil  http://lattes.cnpq. • Filipi Assunção Oliveira - Universidade Federal de Minas Gerais
br/8213163806340232 (UFMG), MG, Brasil http://lattes.cnpq.br/3647672459608364
• Mario Aquino Alves - Fundação Getúlio Vargas (FGV) SP/ • Flávia de Araújo e Silva - Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil http://lattes.cnpq.br/7330675405562124 (UFMG) MG/Brasil http://lattes.cnpq.br/9604981002731747
• Milanez Milanez Silva de Souza - Universidade Federal • Fulvio Machado Faria – Universidade de São Paulo (USP) SP/Brasil
do Tocantins (UFT) TO/Brasil http://lattes.cnpq. http://lattes.cnpq.br/7265757365182370
br/6165080543247603 • Grégore Moreira de Moura - Universidade Federal de Minas Gerais
• Nestor Eduardo Araruna Santiago - Universidade de Fortaleza (UFMG) MG/Brasil http://lattes.cnpq.br/7998126684962603
(Unifor) CE/Brasil http://lattes.cnpq.br/4516474580462451 • Guilherme Aparecido da Rocha - Universidade de Marília (UNIMAR)
• Patrícia Verônica Nunes Carvalho Sobral de Souza - Universidade SP, Brasil http://lattes.cnpq.br/5444414523142287
Federal da Bahia (Ufba), Salvador, BA, Brasil http://lattes.cnpq. • Hugo Leonardo Menezes de Carvalho - Universidade Ceuma
br/7502386530836336 (Ceuma) MA/Brasil http://lattes.cnpq.br/0340098795739149
• Paula Alexandra Nazareth - Escola de Contas e Gestão do • Jair Eduardo Santana - PUC Minas  MG/Brasil http://lattes.cnpq.
Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (ECG/TCE-RJ) RJ/ br/7249642346424650
Brasil http://lattes.cnpq.br/7361445011158925 • Jéssika do Vale Silva Lopes - Universidade Federal de Viçosa (UFV)
• Pedro Henrique Pedrosa Nogueira - Universidade Federal de MG/Brasil http://lattes.cnpq.br/5439947910864250
Alagoas (Ufal) AL/Brasil http://lattes.cnpq.br/2653053464099196 • João Pedro Accioly Teixeira - Faculdade de Direito da Universidade
• Raquel Dias da Silveira Motta - Centro Universitário do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) RJ/Brasil  http://lattes.cnpq.
Autônomo do Brasil (Unibrasil) PR/Brasil http://lattes.cnpq. br/6362403936234256
br/8268196958112969 • João Protásio Farias Domingues de Vargas - Universidade
• Ricardo Rocha de Azevedo - Universidade de São Paulo (USP) Federal de Minas Gerais (UFMG) MG/Brasil http://lattes.cnpq.
SP/Brasil http://lattes.cnpq.br/8552819482890160 br/8924419363113871
• Roberto Correia da Silva Gomes Caldas - Pontíficia Universidade • Joseane Aparecida Corrêa - Instituto de Contas do TCE/SC (Icon)
Católica de São Paulo (PUC-SP) SP/Brasil http://lattes.cnpq. SC/Brasil http://lattes.cnpq.br/4807129652074153
br/9121479237887428 • Lílian Regina Gabriel Moreira Pires - Universidade Presbiteriana
• Rosane Beatriz Jachimovski Danilevicz – Pont.Univ. Católica Mackenzie (Mackenzie) SP/Brasil http://lattes.cnpq.
do Rio Grande do Sul (PUCRS) RS/Brasil http://lattes.cnpq. br/5993152037058748
br/7182145040458212 • Melissa Folmann - Pontifícia Universidade Católica do Paraná
• Sandra Regina Martini Vial - Universidade Unisinos (Unisinos) (PUC PR) PR/Brasil http://lattes.cnpq.br/6111699808278499
RS/Brasil http://lattes.cnpq.br/4080439371637715 • Michelle Asato Junqueira - Universidade Presbiteriana Mackenzie
• Sandro Trescastro Bergue - Universidade de Caxias do Sul (UCS) (Mackenzie) SP/Brasil  http://lattes.cnpq.br/8148413691442311
RS/Brasil http://lattes.cnpq.br/9146194825773097 • Natália Raquel Ribeiro Araújo - Escola de Contas e Capacitação
• Simone Letícia Severo e Sousa - Universidade José do Professor Pedro Aleixo do TCEMG  MG/Brasil http://lattes.cnpq.
Rosário Vellano (Unifenas) MG/Brasil http://lattes.cnpq. br/4101619944671236
br/1023163262710525 • Nyalle Barboza Matos - Universidade de Brasília (UnB) DF/
• Thaís Cíntia Cárnio - Universidade Presbiteriana Mackenzie - SP/ Brasil http://lattes.cnpq.br/0557160355187924
Brasil http://lattes.cnpq.br/3290557588746216 • Omar Chamon - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
• Vagner Antônio Marques - Pontifícia Universidade Católica SP ) SP/Brasil http://lattes.cnpq.br/5471246379221748
de Minas Gerais (PUC Minas) MG/Brasil http://lattes.cnpq. • Paloma Carpena de Assis - Universidade Estadual de Maringá  PR/
br/8704491263853222 Brasil http://lattes.cnpq.br/3952637837352801
• Valmir César Pozzetti - Universidade do Estado do Amazonas • Paulo Alcântara Saraiva Leão - Instituto Escola Superior de Contas
(UEA) - Universidade Federal do Amazonas (Ufam)  AM/ e Gestão Pública Ministro Plácido Castelo (IPC/TCE-CE) CE/
Brasil http://lattes.cnpq.br/5925686770459696 Brasil http://lattes.cnpq.br/6482355408591547
• Wagner Silveira Feloniuk - Universidade Federal do • Renan Medeiros de Oliveira - Universidade do Estado do Rio de
Rio Grande do Sul (UFRGS) RS/Brasil http://lattes.cnpq. Janeiro (UERJ) RJ/Brasil http://lattes.cnpq.br/6568819715133061
br/6823705328416667 • Simone Maria Gonçalves de Oliveira Ulian - Universidade Federal de
• Wilson Engelmann - Universidade Unisinos (Unisinos) RS/ Rondônia (Ufro) RO/Brasil http://lattes.cnpq.br/3393244288635921
Brasil http://lattes.cnpq.br/7143561813892945 • Teresa Cristina de Melo Costa - Universidade do Estado do Rio de
Mestres Janeiro (UERJ) RJ, Brasil http://lattes.cnpq.br/8707732841163423
• Alessandra Knoll - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) • Theodoro Vicente Agostinho - Pontifícia Universidade
SC/Brasil http://lattes.cnpq.br/0328177689419652 Católica de São Paulo (PUC-SP) SP/Brasil http://lattes.cnpq.
• Anne Emília Costa Carvalho - Universidade Federal do br/6162764737273311
Rio Grande do Norte (UFRN) RN/Brasil  http://lattes.cnpq. • Thiago Bernardo Borges - Instituto Brasileiro de Mercado
br/6803076056551170 de Capitais (Ibmec MG) MG/Brasil  http://lattes.cnpq.
• Antônio César Mello - Centro Universitário Luterano de Palmas e br/1576048646080968
da Faculdade Católica do Tocantins (Ceulp/Ulbra)  TO/Brasil http:// • Thiago Henrique Desenzi  - Universidade Federal do ABC (UFABC) –
lattes.cnpq.br/7715210743705511 SP/Brasil http://lattes.cnpq.br/8868174244015044
• Carina de Castro Quirino - Universidade do Estado do Rio de Janeiro • Thiago Magalhães Pires - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ) RJ/Brasil http://lattes.cnpq.br/9149282284826854 (UERJ) RJ/Brasil http://lattes.cnpq.br/2867900126671065
• César Augusto Carra - Instituição Toledo de Ensino, Bauru/SP/Brasil • Victor Godeiro de Medeiros Lima - Universidade Federal do
http://lattes.cnpq.br/2842062332626565 Rio Grande do Norte (UFRN) RN/Brasil http://lattes.cnpq.
br/4080265636939047
SUMÁRIO

DOUTRINA
A disruptura arrecadadora do erário: a concessão (in)discriminada de benefícios fiscais
Marcílio Barenco Corrêa de Mello e Gabriel Salgueiro.................................................................................. 12
Articulação municipal em resposta à pandemia da covid-19
Cláudia Costa de Araújo Fusco, Flávia Alves Guimarães, Frederico Martins de Paula Neto e
Giovanna Bonfante.....................................................................................................................................................30
A aplicação da Lei n. 13.655/2018 Pelo Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais:
diagnósticos e perspectivas acerca da análise de editais de concurso público
Gabriel Venturim de Souza Grossi.........................................................................................................................49
As inovações jurídicas trazidas pelo sistema de registro de preços nas licitações da
união
José Kaerio França Lopes..........................................................................................................................................66
A aplicação da decadência no controle externo: o estudo do instituto nos processos
analisados no TCEMG
Juliana Meireles de Mattos.......................................................................................................................................83
Fundamentos do direito constitucional contemporâneo: do constitucionalismo ao
neoconstitucionalismo e pós positivismo
Lucas Antunes Leão....................................................................................................................................................99

ESTUDO E PESQUISA
Controle externo exercido pelo Tribunal de Contas de Minas Gerais sobre os fundos
educacionais
Cristina Andrade Melo et al.....................................................................................................................................124

PARECERES E DECISÕES
Inexigência de lei específica para a consecução dos instrumentos legais de parcerias
previstos na Lei n. 13.019/2014
Consulta n. 1.072.572 | Relator: Conselheiro Wanderley Ávila..................................................................152
Recurso cabível diante das impugnações de decisões interlocutórias no curso
procedimental em que foi aplicada multa-coerção
Incidente de Uniformização de Jurisprudência n. 1.058.760 | Procuradora-Geral do Ministério
Público Junto ao Tribunal de Contas Elke Andrade Soares de Moura......................................................164
DOUTRINA
A DISRUPTURA ARRECADADORA DO ERÁRIO: A
CONCESSÃO (IN)DISCRIMINADA DE BENEFÍCIOS
FISCAIS
THE COLLECTIVE DISRUPTURE OF THE PUBLIC ERARY: THE (IN)
DISCRIMINATED GRANT OF FISCAL BENEFITS

Marcílio Barenco Corrêa de Mello

CRÉDITO: ARQUIVO TCEMG


Doutorando em Ciências Jurídicas Públicas (ênfase em
Direito Administrativo) pela Universidade do Minho,
Portugal. Mestre em Direito Constitucional pela
Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió, AL,
Brasil. Especialista em Direito Processual pelo Centro
Universitário Cesmac, Fejal, Maceió, AL, Brasil. Graduado
em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis
(UCP), Petrópolis, RJ, Brasil.
CV: http://lattes.cnpq.br/5121561727412615
E-mail: marcilio.barenco@mpc.mg.gov.br.

Gabriel Salgueiro

CRÉDITO: PLATAFORMA LATTES


Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), Brasil.
CV: http://lattes.cnpq.br/7209443898301473
E-mail: gabriel.salgueiro@tce.mg.gov.br

Resumo Abstract
Este artigo se propõe a examinar – a partir da This paper proposes to analyze, from the
análise econômica do direito – os incentivos Economic Analysis of Law, the tax incentives and
fiscais e as implicações decorrentes da prática de the implications arising from the practice of (in)
concessão (in)discriminada de benefícios fiscais. Na discriminate concession of tax benefits. In the
seção introdutória, expõem-se os desígnios teóricos introductory section, contemporary theoretical
contemporâneos para um Estado republicano — designs for a republican state are exposed, especially
mormente sob a ótica orçamentária —, e se trazem from a budgetary perspective, giving the reasons
as razões que impelem o tratamento sustentável that impel the sustainable and cautious treatment
e cauteloso das finanças públicas, propondo um of public finances. In the following section, a portrait

12 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 12-29 jul./dez. 2020


retrato da situação fiscal vivida pelas entidades of the fiscal situation experienced by subnational
subnacionais sob a ótica da análise econômica entities from the perspective of Law & Economics
do direito e harmonizando didaticamente os is proposed. Didactically harmonizing mainstream
entendimentos do convencional das áreas de understandings in the areas of Political Science and
ciência política e de economia para desenhar a tese Economics, the thesis is drawn that, given the fragility
de que, diante da fragilidade do desenvolvimento of national economic development, subnational
econômico nacional, os entes estatais distintos da entities are called upon to act, but they do so in an
União são chamados a atuar, mas assim o fazem de inefficient way, spending themselves public resources
forma pouco eficiente, dispendendo-se recursos – scarce and essential – with the (in)discriminate
públicos – escassos e essenciais – com a concessão concession of tax benefits – of an indirect public
(in)discriminada de benefícios fiscais – de natureza expenditure nature, in the concession – sometimes
de despesa pública indireta, na concessão – por obscure – invariably favorable to private agents with
vezes obscura – invariavelmente favorável a greater political contacts or as a result of political
agentes privados com maiores contatos políticos advantages, which distort the system of supply and
ou em decorrência de vantagens políticas, o que demand. As a proposal for control intervention,
distorce o sistema da oferta e da demanda. Como greater publicity measures are recommended in
proposta de intervenção do controle, preconizam- the granting of such benefits, recurrent assessment
se medidas de maior publicidade na concessão de of their socioeconomic-fiscal cost / benefit and the
tais benefícios, avaliação recorrente e controle de establishment of an indirect spending limit.
sua relação entre custo e benefício socioeconômico
fiscal e estabelecimento de um limite de gastos
indiretos.

Palavras-chave: análise econômica do direito; benefícios fiscais; gastos públicos indiretos; transparência
pública; controle da relação entre custo e benefício.
Keywords: law & economics; tax benefits; indirect public spending; public transparency; cost-benefit control.

1 INTRODUÇÃO
A concessão de benefícios fiscais e as implicações (não) arrecadadoras decorrentes da (in)
discriminada benesse creditícia tributária são variantes que atingem o planejamento orçamentário
financeiro dos entes estatais, havendo impactos estruturais que necessitam passar pela análise
econômica do direito.
A hodierna organização político-administrativa dos Estados republicanos deve ser conjugada com os
preceitos estruturantes das cartas políticas, que trazem ensimesmados os predicados de sociedade
politizada, sistema de governo temporal e mandatário (presidencialismo ou parlamentarismo) e
regime de governo democrata, todos volvidos aos objetivos fundamentais de bem-comum.
As ações governamentais na seara republicana devem se pautar por normas jurídicas erigidas sob
esses vieses, admitindo-se que as políticas públicas devam concretizar os objetivos traçados na carta
política, em especial a implementação dos direitos fundamentais.
No entanto, de todo direito assegurado pelo Estado decorre um custo orçamentário financeiro.
Os recursos públicos para fazerem face a esses compromissos estatais são hauridos do patrimônio

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 12-29 jul./dez. 2020 13


do particular (exação) e, portanto, são finitos, esgotáveis e cada vez mais escassos em tempos de
sucessivas crises e calamidades socioeconômicas que exigem pronto assistencialismo estatal.
Nesse sentir, a questão posta precisa perpassar pela análise jurídica e econômica, sobretudo pela
constatação da nova realidade social brasileira decorrente da estabilidade monetária após o advento
do Plano Real (1994), que trouxe inegável melhoria nos índices comunitários de baixa renda e de
extrema pobreza populacional.
Lado outro, essa realidade não se reflete quando tomados indicadores econômicos, numa
“sucessiva crise de endividamento dos entes estatais diferentes da União “aliada a orçamentos
deficitários, exportações nacionais com baixo valor agregado e seus reflexos nefastos na balança
comercial (PIB).
Por fim, a concessão (in)discriminada de benefícios fiscais sem a devida atenção à responsabilidade
fiscal e à boa gestão pública, trouxe aos entes estatais o comprometimento de suas capacidades
arrecadatórias a curto e médio prazos, com diminuição do lastro e fluxo de caixa para fazer face às
despesas correntes líquidas. O investimento, importante mola propulsora da economia de um país,
encontra-se “de joelhos” face à míngua de orçamentos deficitários dos principais entes federados -
União, estados membros e grande parte dos municípios.
Sob essas premissas da função de alocação de renúncias fiscais e da concessão de benefícios
creditícios a particulares, precisamos repensar o estabelecimento de filtros de controle, em que se
possam encaixar a rendição da necessidade de arrecadação em favor da indução de comportamentos
comprovadamente sadios ao bem-estar social (trabalho, emprego, renda, investimentos, dentre
outras), sem se descurar da sustentabilidade orçamentária dos próprios entes estatais que os
concedem.

2 OS CONTORNOS DO ESTADO REPUBLICANO CONTEMPORÂNEO


No hodierno ocidente, a ideia de Estado está intimamente relacionada - grosso modo - à de
organização política orientada à consecução do bem-estar da sociedade. Essa organização, de
tom notadamente patrimonialista, sucumbiu, pelo bem da história, aos primados da Revolução
Francesa e da Americana, que inauguraram a noção da subsunção total - do Estado e de todos seus
integrantes - à lei; noutros termos, desvelado com Estado de Direito (MENDES; BRANCO, 2017, p.
127-128).
O predicado “republicano” demanda mais atenção, cabendo aqui breve crítica. Diversos teóricos
temperam-no com valores afins I) à comunidade política, de acordo com Canotilho (200, apud Scaff,
2018, p. 119), II) ao presidencialismo (RUFFIA, 1988, apud SCAFF, 2018, p. 119) e III) à democracia
(ATALIBA, 2011, apud SCAFF, 2018, p. 119-120; SILVA, 2014, apud SCAFF, 2018, p. 120).
A juízo pragmático, as definições devem ser imiscíveis. Uma, porque são capazes de decorrer de
hibridismo (“republicanismo temperado com presidencialismo”: dois elementos passíveis de serem
compreendidos no conjunto). Duas, por decorrências lógicas próprias: I) ora confundem-se com os
elementos de um Estado soberano e de república; II) ora, na tomada como oposição à monarquia,
atrela-se, erroneamente, à noção republicana da vedação da vitaliciedade; ou, ainda, III) emaranha-se

14 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 12-29 jul./dez. 2020


república com democracia — termo que embora num Estado moderno seja complementar, não são
sinônimos perfeitos.1 2
Em tempos modernos, o direito se concretiza com ações governamentais interconectadas pelas então
denominadas políticas públicas. Assim, “não apenas uma norma deve ser analisada, mas seu conjunto
em relação às ações estatais coordenadas visando alcançar um objetivo específico convergente para
o bem comum” (SCAFF, 2018, p. 143).
Noutros termos, é dizer ser relevante ponderar o meio pelo qual as normas jurídicas se transformam
dentro de um contexto de ação republicana em ação governamental.
Admitindo que o governo de um Estado vá promover políticas públicas, convém saber a natureza das
prerrogativas que serão concretizadas.
Embora tomados como sinônimos, os direitos humanos diferem dos fundamentais: aqueles vinculados
ao direito natural impõem a validade para todos os humanos, a qualquer tempo, ao passo que esses
preceituam apenas os direitos humanos que foram em algum momento positivados, portanto,
inseridos em um ordenamento jurídico. (BONAVIDES, 2004, p. 560-564)
A teoria jurídica propõe a classificação dos direitos fundamentais de acordo com suas dimensões:
a primeira, afim ao Estado Liberal, propõe a liberdade como ação negativa do Estado — em ampla
gama —, conferindo aos seus sujeitos a capacidade de oposição ao poderio estatal; a segunda, ligada
à Constituição de Weimar e ao Estado Social, tem forte pretensão de ação positiva, adotando-os
com igualdade e em consecução aos direitos sociais; por fim, a terceira, contemporânea, escora-se
na fraternidade, mormente na defesa de direitos difusos. (BONAVIDES, 2004, p. 560-564; MENDES;
BRANCO, 2017, p. 128-130)
Irretocável, pois, é o conceito de Estado republicano trazido por Scaff (2018, p. 200):
[...] define-se como republicano o Estado que for juridicamente estruturado de modo
a permitir que o governo aja em prol do bem comum, aplicando à coisa pública uma
função social, em busca da efetivação dos direitos fundamentais, com respeito à lei. Essa
busca deve ocorrer de forma isonômica, através da ampliação das liberdades reais, em
busca de uma liberdade igual.

Vários dos vocábulos utilizados na definição acima são, em verdade, abertos. Alguns são ideias, então
condensadas em um único termo. Explicá-los, porém, foge ao âmbito da via estreita deste artigo. No
entanto, não há prejuízo em tomarmos o “núcleo duro” da definição.

Nos dizeres de Scaff (2018, p. 127): “O uso do conceito de república como sinônimo de democracia também se encontra fora
1

do escopo desta exposição. Trata-se de conceitos distintos, mas que devam necessariamente se complementar para que surja
efetivamente um Estado que seja ao mesmo tempo republicano e também democrático, como adiante será destacado. Isso indica,
por um lado, a necessidade de participação popular na determinação de seu destino – o que, lato sensu, caracteriza a democracia – e,
de outra banda, a necessidade de que a condução da coisa pública seja efetuada consoante o interesse geral, visando o bem comum
– itens que caracterizam a república”.
Ainda em Scaff (2018, p. 192): “A democracia se correlaciona com o desejo na obtenção de bens e melhor qualidade de vida, de
2

status, de poder; a república se correlaciona com a limitação dessa vontade, algo férreo que limita o desejo em prol do bem
comum, da governabilidade, da manutenção da sociedade”. Assim, ainda conforme, “a democracia é popular, está do lado da
sociedade, dos que podem obedecer a maior parte do tempo e podem desobedecer menos vezes – mas desejam o tempo todo; e
a república está do lado do poder, das instituições, expressando”.

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A atuação em prol do benefício da sociedade demanda resignação de interesses privados; assim,
não só o agente público individual fica obstado da prática de ações comissivas ou omissivas, mas
também todo um governo, cujos interesses e atos - não raramente - conflitam com os valores
constitucionais. Mais do que uma ação que encontre respaldo no direito positivo, o princípio
republicano demanda de todos, mormente dos agentes públicos, ação técnica e responsável
para com a sociedade. É nesse cenário de responsabilidade e eficácia das decisões que a análise
econômica do direito encontra terreno fértil.
Considerando, conforme Reale (1994), que seria incompleta a análise do direito que não levasse em
conta, simultaneamente, o fato, o valor e a norma, qualquer critério de justiça em prol do bem comum
deve levantar a questão acerca de determinado resultado e, por consequência, de determinada norma.
Nos termos de Gico Júnior (2010, p. 15-16):
[...] Enfim, precisamos não apenas de justificativas teóricas para a aferição da adequação
abstrata entre meios e fins, mas também de teorias superiores à mera intuição que nos
auxiliem em juízos de diagnóstico e prognose. Precisamos de teorias que permitam, em
algum grau, a avaliação mais acurada das prováveis consequências de uma decisão ou
política pública dentro do contexto legal, político, social, econômico e institucional em
que será implementada. Em suma, precisamos de uma teoria sobre o comportamento
humano.
[...]
Se a avaliação da adequação de determinada norma está intimamente ligada às
suas reais consequências sobre a sociedade (consequencialismo), a jus economia se
apresenta como uma interessante alternativa para esse tipo de investigação. Primeiro,
porque oferece um arcabouço teórico abrangente, claramente superior à intuição e ao
senso comum, capaz de iluminar questões em todas as searas jurídicas, inclusive em
áreas normalmente não associadas como suscetíveis a este tipo de análise. Segundo,
porque é um método de análise robusto o suficiente para o levantamento e teste de
hipóteses sobre o impacto de uma determinada norma (estrutura de incentivos) sobre o
comportamento humano, o que lhe atribui um caráter empírico ausente no paradigma
jurídico atual. E terceiro, porque é flexível o suficiente para adaptar-se a situações
fáticas específicas (adaptabilidade) e incorporar contribuições de outras searas (inter
e transdisciplinariedade), o que contribui para uma compreensão mais holística do
mundo e para o desenvolvimento de soluções mais eficazes para problemas sociais em
um mundo complexo e não-ergódigo.

O antecessor lógico de um mandamento de eficiência é a finitude dos insumos que compõem aquele
processo. Ilustrando-se o preceito, é dizer, então, que, ao determinar eficiência na administração
pública3, o constituinte originário reconheceu a limitação dos elementos que compõem a ação estatal
— no caso em análise, dos recursos financeiros cada vez mais escassos, em meio a demandas elevadas.
É na escassez, pois, que mais importa a análise econômica — e, felizmente, também é esse o cenário
no qual a metodologia mostra seus potenciais. Passa-se, então, à análise da questão orçamentária sob
a ótica jurídica e jus econômica.

Art. 37, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


3

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3 CENÁRIO ECONÔMICO, ORÇAMENTO E ESCASSEZ
Desde a implementação do Plano Real, a União e os outros entes estatais brasileiros mostraram
melhora dos índices sociais. Embora distante do ideal, foram vivenciados de forma sensível a redução
do índice de mortalidade infantil e os aumentos da expectativa de vida e de acesso a saneamento
básico. (ABRÃO; LISBOA; CARRASCO, 2017, p. 7-9)
O desempenho visível e sustentável, no entanto, não se reflete quando tomados os indicadores
econômicos.
Em uma abordagem quantitativa, extrai-se que, quando comparado com a América Latina e com
os demais países emergentes, o desempenho anêmico é notável: de 1994 a 2016, o crescimento
econômico acumulado do país foi da ordem de 31%, bem distante dos agregados de países da América
Latina e do Caribe (37%), dos membros da OCDE (42%), dos Estados Unidos (46%) e do grupo dos
mercados emergentes (152%). Frise-se, em tempo, que EUA e Europa sofreram a pior crise econômica
desde 1929 nesse mesmo período. (ABRÃO; LISBOA; CARRASCO, 2017, p. 7)
A abordagem qualitativa também impõe maior atenção. Conforme expõem De Negri e Cavalcante
(2014, p. 17-18), de um lado, as exportações nacionais fundaram em produtos com baixo valor
agregado: a exportação commodities, que compunha o grupo com menos de 37%, passou para mais
de 53%, entre 2000 e 2011.
Somando-as às exportações de petróleo, que tiveram alta de nove pontos percentuais no mesmo
período, mais de 65% da pauta de exportações brasileira, em 2011, era composta de produtos
primários.
Por outro lado, o crescimento da demanda doméstica também se mostra relevante não só pelo vulto,
mas também por ser intensamente dependente de incentivos estatais. Para além da expansão dos
programas sociais e da valorização do salário mínimo, verificaram-se também o aumento de crédito e
os incentivos contracíclicos após a crise mundial de 2008.
A sugestão trazida pelos cenários tratados encontra subsídio na literatura: a produtividade
brasileira vem-se mostrando reiteradamente fraca4 — o que, com o longo prazo, comprometeu o
desenvolvimento econômico. (ACEMOGLU, 2012; SALA-I-MARTÍN, 2015; VELOSO; MATOS; PERUCHETTI,
2019)
Evidentemente, o fraco desempenho recém narrado remete a questões sistêmicas: educação
deficitária (BARRO, 2013; OLIVEIRA; DE NEGRI, 2014, p. 315-316; ELLERY JÚNIOR, 2017), burocracia
e imprevisibilidade jurídica (ACEMOGLU, 2012; SALA-I-MARTÍN, 2015) e a perpetuação de práticas
institucionais ineficientes, que, no limite, influenciaram os eventos posteriores da história (NORTH,
2018), elementos esses substanciais para a ocorrência e a qualidade do desenvolvimento econômico.
Diante de um setor privado anêmico (voluntariamente ou não, como será demonstrado no tópico 2.3),
o Estado — que não raramente é o próprio indutor dessa ineficiência — é convidado a intervir. Uma
das formas encontradas para reduzir os custos de produção e incentivar novos negócios é a concessão
de benefícios fiscais.

4
MATION, 2014, p. 173-175, p. 185-197; BONELLI, 2014, p. 111-113, p. 120-125, p. 137-149; SQUEFF; DE NEGRI, 2014, p. 249-250, p.
253-257, p. 276-277)

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 12-29 jul./dez. 2020 17


3.1 O orçamento sob a lupa
A execução das atividades do Estado é fato complexo. Para gerar valor e prestar seus serviços, o Estado
já se mostrou dependente da requisição de bens e serviços de seus súditos, da colaboração gratuita
desses e do angariamento de espólios de guerra. Hoje, porém, vigora o regime de despesas públicas –
isto é, o pagamento em dinheiro dos bens e serviços necessários. (HARADA, 2018, p. 49-50)
A previsão de arrecadação de receitas e o planejamento das despesas compõem o constructo
denominado orçamento. Por força das previsões constitucionais5, a ficção jurídica toma forma de lei,
que passa, então, a dispor sobre a alocação dos recursos arrecadados e a estabelecer as despesas
públicas a serem realizadas.
Naturalmente, a arrecadação de fundos para o Estado se faz majoritariamente pela tributação; note-
se, por exemplo, os estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, dependem, respectivamente,
71.1%6 84.9%7 e 59.1%.8 9
Além da função arrecadatória (fiscal), o tributo também pode ser instituído com a finalidade de induzir
ou desestimular determinado comportamento de dado agente ou setor (expoente extrafiscal).10
A intervenção do Estado na economia deve almejar, em regra, ao menos uma das seguintes
atividades: I) promover ajustamentos na alocação de recursos quando ineficiente a ação pelo
mecanismo de ação privada (função alocativa); II) promover readequações na distribuição de renda,
reparando danos causados por falhas de mercado11 (função distributiva); ou, III) manter, de forma
prudencial, a estabilidade econômica (função estabilizadora). (MUSGRAVE, 1974, apud GIACOMONI,
2019, p. 50-54)
No âmbito da renúncia de receitas, a função é claramente alocativa: a necessidade de arrecadação
rende-se diante da função de induzir comportamentos pretensamente sadios ao bem social. Em tese,

5
Art. 165, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
6
Disponível em: http://www.fazenda.mg.gov.br/governo/contadoria_geral/lrf/17-2019/bimestre5/anexo1.pdf. Acesso em 15 mar.
2020.
7
Disponível em: https://portal.fazenda.sp.gov.br/acessoinformacao/Downloads/Relat%C3%B3rio-Resumido-Execu%C3%A7%C3%
A3o-Or%C3%A7ament%C3%A1ria/Balan%C3%A7o-Or%C3%A7ament%C3%A1rio-1_2-e-2_2/Relat%C3%B3rio%20Resumido%20
da%20Execu%C3%A7%C3%A3o%20Or%C3%A7ament%C3%A1ria%20-%206_bi_quadro_I_1-2019.pdf. Acesso em 15 mar. de
2020.
8
Disponível em: http://www.contabilidade.fazenda.rj.gov.br/contabilidade/content/conn/UCMServer/path/Contribution%20
Folders/contadoria/relatoriosContabeis/lrf/2019/1%c2%ba%20Bimestre%202019/Anexo%2001_1%c2%baBim_RREO_%202019_
MDF%209%c2%aaEd..pdf?lve. Acesso em 15 mar. 2020.
9
Igualmente relevante (e preocupante) é o grau de dependência, por parte dos entes subnacionais, de transferências. Cf. BRASIL.
Ministério da Economia. Secretaria Especial da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional. Boletim de Finanças dos Entes Subnacionais
2019. Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional, 2019. Disponível em: https://sisweb.tesouro.gov.br/apex/f?p=2501:9::::9:P9_ID_
PUBLICACAO:30407. Acesso em 15 mar. de 2020.
10
Em termos econômicos pode-se entender o tributo extrafiscal como a faceta jurídica do imposto pigouviano. Sobre este tipo de
imposto, valem as lições de Mankiw (2009), nas quais em vez de regulamentar o comportamento em resposta a uma externalidade,
o impacto das ações de uma pessoa sobre o bem-estar de outras, que não tomam parte da ação, levará o governo a usar políticas
baseadas no mercado para alinhar incentivos privados com eficiência social.
11
Na teoria econômica, a falha de mercado é a situação em que o sistema de mercado, por si só, falha em alocar os recursos de forma
eficiente – levando, em regra, a uma diminuição do bem-estar (MANKIW, 2009). Para exemplos, Cf. MENDES, Marcos. Por que o
governo deve interferir na economia? 2011. Disponível em: http://www.brasil-economia-governo.org.br/2011/03/24/por-que-o-
governo-deve-interferir-na-economia/. Acesso em: 12 mar. 2020.

18 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 12-29 jul./dez. 2020


a abdicação leva à diminuição de receita, e, por isso, passa a ser entendida como uma despesa pública
indireta – noutros termos, gasto tributário ou despesas fiscais. (SCAFF, 2018, p. 398-399)
Face ao princípio republicano e sua imposição de responsabilidade, seria consectário do decréscimo
de receita a diminuição; mas, aqui, a lógica não ousa se aproximar: o aumento de despesas se mostra
cada vez mais íngreme, principalmente para os entes subnacionais.
Além da insustentabilidade orçamentária, suficientemente perniciosa, porquanto compromete o
desempenho de todas as áreas (saúde, educação, segurança, etc.), as medidas de incentivo fiscal
distorcem o sistema de mercado, favorecendo produtores ineficientes que possuem contato com a
esfera decisória, tudo em detrimento de investimentos sociais e daqueles mais eficientes — que, em
regra, proveria à população de bens de maior qualidade a preços mais baixos (economicidade).

3.2 De armas a remédios — “manteiga a caviar”: o custo das decisões


A escalada dos gastos públicos tem sido vertiginosa, conforme se extrai do relatório do Gráfico 1,
elaborado por Tinoco (2018, p. 304-306), que apresenta os dados de resultado primário desde 2002
dos governos estaduais12, assim como os valores correntes segundo duas métricas distintas (acima de
linha e abaixo da linha13), tudo em proporção do produto interno bruto (PIB).
Gráfico 1 – Resultado primário dos governos estaduais (R$ bilhões correntes e percentual do PIB).

Fonte: Tinoco (2018)

Resultado primário é o saldo da diferença entre receita primária (aquela decorrente da atividade fiscal do governo) e a despesa
12

primária (relativa às atividades de política pública e manutenção do Estado, excluídas as despesas financeiras – como pagamento de
juros e empréstimos).
Por “acima da linha”, entenda-se como a diferença entre as receitas e as despesas do setor público. O termo “abaixo da linha”, noutro
13

turno, esboça a variação da dívida líquida total.

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 12-29 jul./dez. 2020 19


A despeito da questão estrutural, a recessão econômica vivida no biênio 2015-2016 amplificou os
problemas. Diante desse cenário de (in)sustentabilidade fiscal pouco sadio, medidas preocupantes
foram adotadas, tais como a interrupção de serviços públicos e atrasos ou parcelamentos de salários
e de aposentadorias. Vide, a exemplo, o público caso do Estado de Minas Gerais desde 2016.14
A situação recém narrada indica a razão pela qual a preocupação com uma trajetória fiscal
vertiginosa não é de teor meramente formal. Como explica a economia, os recursos são finitos
— ou escassos, em termo técnico. Assim, a despeito das determinações legais e judiciais, não é
possível materialmente atender completamente a todos os anseios sociais. (MANKIW, 2009, p. 3-4)
Não por menos, o legislador pátrio, ciente das premissas econômicas, determinou a eficiência nos
processos da administração. Nesta situação de escassez, os agentes precisam escolher entre quais
ações precisam adotar um objetivo em detrimento do outro.
Trade-off é a expressão que define uma situação de escolha conflitante, quando determinada ação
econômica acarreta, inevitavelmente, renúncia às demais opções — as quais, por não terem sido
escolhidas, também gerarão problema futuro. O exemplo clássico é o trade-off entre “armas e
manteiga”: quanto mais se investe na defesa nacional (armas) para nos proteger de agressores, menos
se pode gastar com bens de consumo (manteiga), visando à elevação do padrão de consumo interno
de um país. (MANKIW, 2009, p. 5)
Por óbvio, a simples existência de um trade-off não é suficiente para definir, de per si, quais as ações
devam ser tomadas. Não se deve abrir mão da proteção ambiental só porque essas regulamentações
diminuem o padrão de vida material presente; da mesma forma, não se deve ignorar o auxílio aos
hipossuficientes, só porque haveria distorções no mercado de trabalho. É imperioso reconhecer
os trade-offs, porquanto boas decisões somente são tomadas se todas as opções disponíveis sejam
compreendidas. (MANKIW, 2009, p. 5-6)
No Brasil das renúncias fiscais, das poucas receitas e muitas despesas, o trade-off é claro: subsídio
público às indústrias e industriais ou a consecução de políticas públicas (nessas estão as de saúde
pública aos mais necessitados). Se antes a analogia era entre armas e manteiga, pode-se dizer que
atualmente a analogia é entre subsídio estatal e caviar, identificados como remédios.
Diante de situações conflitantes é necessário comparar os custos e os benefícios de cada opção; essa
apreciação, contudo, pode ser consideravelmente difícil em alguns casos.
A literatura econômica ensina que, em realidades como a descrita, a saída se encontra na análise do
custo de oportunidade da escolha — isto é, da apreciação daquilo de que se abre mão ao eleger
determinada opção. No trade-off de despesas com benefícios fiscais ou serviços públicos, se o ganho
na escolha pelos incentivos ao mercado é a geração de renda — e, no limite, aumento de bem-estar
dos envolvidos no processo produtivo —, o custo da oportunidade pode esbarrar diretamente em
interesses mais difusos.
Convém repisar que a busca pela consecução dos direitos fundamentais, educação, saúde e
segurança tem um custo; portanto, dependerão de forma inexorável da arrecadação de tributos.
Holmes e Sunstein (1999, p.148) expõem como se segue, em tradução dos autores deste artigo.

Vide http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2016/10/parcelamento-do-salario-de-servidores-em-mg-vai-ate-fim-de-2016.html.
14

Acesso em 26 mar. 2020.

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Uma abordagem mais adequada aos direitos tem uma premissa incrivelmente simples: as liberdades
privadas têm custos públicos. Isso se aplica não apenas aos direitos à seguridade social, ao serviço
médico e programas de auxílio alimentar, mas também aos direitos à propriedade privada, à liberdade
de expressão, à imunidade a abusos policiais, à liberdade contratual, ao livre exercício da religião e, de
fato, a todo o conjunto de direitos da tradição americana
É nessa linha que Friedman (1975) publicou trabalho intitulado There’s no such thing as a free lunch (N.
T.: Não existe almoço grátis), indicando que não há, em uma situação de escassez e diversos interesses,
ação sem reação, ou, em termos técnicos, escolhas que não constituam trade-offs.
Scaff (2018, p. 292) também expõe acerca do assunto, como se segue.
O mesmo se pode dizer a respeito dos gastos públicos. Por exemplo, existem programas
sociais no Brasil, como o Bolsa Família, que geram determinado gasto público em
decorrência de normas preexistentes, que se constituem em uma política pública
para a redução da desigualdade, porém quanto será gasto nesse programa em face
dos demais gastos públicos? Qual sua correlação? Só a norma orçamentária permite
a visualização desse conjunto, bem como pode estabelecer uma correção de rotas,
destinando mais recursos para uma ou outra finalidade. Não se pode esquecer de que
os direitos sociais, dentre eles educação e saúde também disputam recursos entre si,
pois existe limitação do orçamento (reserva do economicamente possível) ...

Não raramente, os dilemas podem ser trágicos. A eleição de prioridades na consecução de políticas
públicas deve respeitar uma agenda política democrática. Frequentemente, surge tensão quando um
dos elementos sopesados é — ao menos — relativo às necessidades mais primitivas do homem, de
primeira ordem, tais como as fisiológicas, as de segurança e as de saúde (CALABRESI; BOBBIT, 1978).
Em termos hialinos: “é possível acabar com o analfabetismo ou erradicar as doenças endêmicas,
como dengue ou zika, mas é necessário decidir onde se deve realizar esse gasto, pois, no âmbito
orçamentário existe uma decisão política que prioriza sua realização” (SCAFF, 2018, p. 297).
Vide, por exemplo, a ascensão cada vez mais frequente dos termos “reserva do possível”. A expressão,
no contexto jurídico-orçamentário, pode ser entendida como uma limitação à realização de algum
direito - o qual, diante da impossibilidade de concretização absoluta, deve ser atendido na maior
medida possível.
Harmonizando os preceitos constitucionais, surge o conceito de orçamento republicano, dado por
Scaff (2018, p. 296-299), a seguir.
O orçamento republicano é aquele que arrecada mais de quem ganha mais ou
possui mais bens, e gasta mais com quem ganha menos ou possui menos bens, de
modo a permitir que sejam reduzidas as desigualdades sociais e reduzida a pobreza.
Esse conceito pode ser refraseado de diferentes formas, com o mesmo espírito: o
orçamento republicano é aquele que arrecada progressivamente mais dos ricos, e gasta
progressivamente mais com os pobres, a fim de cumprir os objetivos fundamentais
da Constituição. As possibilidades de refraseamento são inúmeras, respeitada a ideia
de que se deve arrecadar mais de quem ganha mais e gastar mais com os grupos
socialmente vulneráveis, a fim de lhes assegurar um mínimo de dignidade e isonomia
socioeconômicas. Tal preceito encontra-se em plena consonância com o princípio
jurídico republicano.
Não se trata de uma equação meramente financeira, mas jusfinanceira, pois mediada
por decisões políticas que, uma vez juridicizadas conforme os parâmetros normativos,
irão determinar de quem arrecadar e com quem gastar. [...]

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 12-29 jul./dez. 2020 21


Em uma sociedade marcada pela desigualdade socioeconômica, o impacto orçamentário
sobre a arrecadação deverá ser mais intenso, para ser possível ultrapassar tal situação.
E, a depender da vontade política para sua redução de forma mais rápida, tanto maior
deverá ser o volume a ser arrecadado, e em menor tempo. Isso só será possível se os
valores forem arrecadados de quem possui mais. E deverá haver ao mesmo tempo
políticas públicas voltadas ao gasto em prol da maior parte da população que não possui
riquezas, pois é assim que será reduzida a desigualdade. Não será gastando mais com
quem tem mais riquezas, ou arrecadando mais de quem menos possui, que ocorrerá
a redução das desigualdades; antes pelo contrário, ela será aprofundada, pois haverá
desequilíbrio entre as capacidades financeiras, contributiva e receptiva, gerando um
orçamento não republicano, centrípeto.

Impõe frisar, na mesma linha, que os sucessivos governos dos entes estatais diferentes da União não
vêm perseguindo uma dinâmica sustentável das despesas públicas, tampouco focada em consecução
de políticas públicas de cunho social.
Note-se, por exemplo, o Gráfico 2 a seguir, que expõe a despesa total com pessoal dos estados em
relação às respectivas receitas correntes líquidas no terceiro quadrimestre de 2019 (BRASIL, 2019):
Gráfico 2 – Despesa total com pessoal em relação às receitas correntes líquidas (RCL)

Fonte: Brasil (2019)

A opção pela concessão de benefícios fiscais pode não se dar de forma republicana, mas, sim,
oportunista, valendo-se da posição de destaque e da essencialidade, onde burocratas e políticos
podem editar regulações prejudiciais à própria sociedade, tão somente para auferirem benefícios
próprios, num sistema pernicioso que se retroalimenta, num verdadeiro ciclo vicioso.

22 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 12-29 jul./dez. 2020


3.3 Do Rent-seeking, da distorção de mercado e da ineficiência estatal
Embora as questões estruturais sejam relevantes (ver introdução da seção 3), há um relativo consenso
no estado da arte da literatura econômica nacional, quando tratamos de ineficiência estatal: as
condições políticas e institucionais são relevantes para o desempenho de determinada nação.
Olson (1984, 2015) entende que, em uma sociedade dinâmica e pluralizada, grupos com poucos
membros possuem maiores facilidades para organização, tudo quando tomados em contraponto com
organizações maiores. Ao cabo, estariam presentes na sociedade — simultaneamente — pequenos
grupos muito bem organizados e financeiramente paramentados, grandes grupos com interesses
difusos com pouca aderência ao interesse público geral.
Esses grupos agiriam em benefício próprio, ainda que houvesse diminuição do bem-estar geral, isso
porque o índice negativo na média seria custeado por outros grupos, que não os próprios beneficiados.
Falamos assim de vícios públicos, em benefícios privados.
A tese de Olson produziu — direta ou indiretamente — linhas memoráveis. A despeito de divergências
das escolas de pensamento, teóricos como Tullock (1967), Barro (1973) e Posner (1975) advogaram
pela parcialidade do Estado na ação de grupos de interesses: agentes governamentais ofertariam
regulação benéfica a determinados grupos, desde que interesses particulares daquelas autoridades
(apoio eleitoral, por exemplo) fossem atendidos.15
A busca por um agente ou grupo pelo aumento da renda particular, sem que haja o aumento da
riqueza total é denominada rent-seeking.
A teoria de Tullock (1967), posteriormente incrementada por Krueger (1974) propõe que a concessão
de benefícios fiscais, realizada pelas autoridades governamentais, a determinados grupos, geraria
perda de bem-estar social duplamente verificável, embora de difícil quantificação.
A primeira é a que versaria sobre o preço absoluto do produto oferecido pelo captor, na medida em
que os privilégios concedidos (benefícios fiscais ou outras benesses de produção fossem subsidiadas
pelos cofres públicos. A segunda é a de ineficiência produtiva, na qual os recursos investidos em
lobbying, por exemplo, poderiam ter sido direcionados para pesquisa e desenvolvimento de produtos
ofertados pelo captor.
A constatação de rent-seeking e a mensuração do prejuízo dele decorrente são desafios que permeiam
a teoria econômica. No entanto, aplica-se-lhe a dinâmica no tema do presente artigo, no qual a relação
é direta de grupos de interesse politicamente organizados e financeiramente poderosos, que buscam
ter seus interesses atingidos às custas do erário. Não é por menos que Stiglitz (2015, apud SCAFF, 2018,
p. 401) expõe o que se segue.
Se o governo quer ocultar o volume de subvenções que concede às empresas, oferece
a elas isenções fiscais.
Oculto o volume de subvenções às administrações regionais e locais realizando “gasto
fiscal” em forma de deduções no imposto sobre a renda da maioria dos impostos
regionais e locais e isenções fiscais dos juros obtidos pela posse de bônus regionais e
locais.

Neste sentido, por exemplo, são as sugestões de Wu et al. (2011) e Lazzarini (2010).
15

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Ao cabo, esse ecossistema dependente denominado “capitalismo de compadrio”, cria restrições à
concorrência pública e premia a empresa privada que possui maiores conexões políticas — e, não
necessariamente, a mais eficiente.
No Brasil, o uso de relações para explorar oportunidades de mercado ou influenciar decisões de
interesse às custas do Estado, foi denominada por Lazzarini (2010) como “capitalismo de laços”. Lisboa
e Latif (2013, p. 23-34) e Mendes (2014), em movimento semelhante, lançam foco no protagonismo
de setores organizados na formulação da agenda política e econômica do país, constantemente na
busca por maiores benefícios — seja para implementação seja para oposição para remoção posterior
de proteções e incentivos fiscais —, sob o argumento de colapso da economia.
A despeito de todo o narrado, é possível atenuar a incidência de comportamentos nocivos acerca do
tema em questão. A seguir, uma proposta de agenda de atuação.

4 PROPOSTAS DE INTERVENÇÃO
Não há receita simples para a superação de deficiências econômicas. São questões que permeiam o
estudo da economia do setor público, por exemplo, quando – e como – o governo deve intervir na
economia? Qual é o efeito dessa intervenção nos resultados econômicos? Por que os governos optam
por intervir da maneira que fazem? (GRUBER, 2016, p. 219).
Na mesma linha, as sugestões metodológicas de Poterba (2011, p. 453-454), em tradução dos autores
deste artigo, a seguir.
[...]
Primeiro, quanta receita é perdida devido a cada despesa tributária? As estimativas
de receita devem reconhecer possíveis respostas comportamentais que podem estar
associadas a alterações nas provisões para imposto de renda. Segundo, quais são os
custos de eficiência de determinadas despesas tributárias? As estimativas dos custos
de eficiência associados às despesas tributárias atuais podem ajudar a orientar os
formuladores de políticas, pois se concentram em disposições específicas de despesas
tributárias. Por fim, quem se beneficia das políticas atuais de despesa tributária e quem
seria afetado negativamente por uma expansão da base de imposto de renda que
eliminasse ou reduzisse as despesas tributárias atuais?

O controle da ação estatal, de imediato, deve ser feito sob a ótica democrática. No entanto,
é imprescindível que os tomadores de decisão estejam munidos de informações técnicas
suficientemente capazes para fundamentarem as melhores decisões. Holmes e Sunstein (1999, p. 152-
153) abordam o tema, como se vê a seguir na tradução dos autores deste artigo.
Classificar direitos como bens públicos onerosos não significa encorajar analistas
políticos - ligados a quadros de contadores - a resolverem unilateralmente a questão
de quais direitos os cidadãos devem ou não gozar, de forma insensível. Pelo contrário,
a inevitabilidade dos trade-offs nos lembra a necessidade de controle democrático e
até de “virtude cívica”, isto é, de um escrutínio cuidadoso dos contribuintes quanto às
alocações orçamentárias na área de proteção e aplicação de direitos. Desnecessário
dizer que é muito mais fácil exigir responsabilidade democrática em tais assuntos do
que alcançá-la.
Especialistas bem treinados e competentes têm um papel a desempenhar, aqui e em
outros lugares. São indispensáveis para
​​ descobrir, interpretar e traduzir em linguagem

24 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 12-29 jul./dez. 2020


facilmente inteligível as informações muitas vezes complexas, necessárias em consultas
públicas importantes e tomada de decisão sobre direitos.
Mas os especialistas não devem estar no topo. Onde juízos de valor disputáveis estão
​​
envolvidos, a tomada de decisões deve ocorrer de forma aberta e democrática. Como os
direitos resultam de escolhas estratégicas acerca da melhor forma de implantar recursos
públicos, há boas razões democráticas pelas quais as decisões sobre quais direitos
proteger, e em que grau, devem ser tomadas da maneira mais aberta possível, por um
cidadão o mais bem informado possível, para a quem oficiais políticos, incluindo juízes,
devem direcionar seus raciocínios e justificativas.

A consideração metodológica realizada cabe reconhecer que, a despeito de movimentos como as


Emendas Constitucionais n. 03/1993 e n. 95/2016, bem como a Lei Complementar federal n. 101/2000
(Lei de Responsabilidade Fiscal), com a inclusão de instrumentos na Lei de Diretrizes Orçamentárias
da União, são indispensáveis mecanismos concretos e perenes para revisão e mensuração de gastos
tributários. (GUIMARÃES, 2020)
De fato, o controle dos benefícios fiscais demanda maior capacidade gerencial e de mensuração, tudo
quando comparado com a mera avaliação de despesas públicas; é mais fácil aferir e controlar o que sai
do que aquilo que deixou de ingressar. (BURMAN, 2003, p. 613-615)
Lisboa e Latif (2013, p. 3-4, p. 15, p. 23-25) apontam que a falta de transparência e da avaliação de
resultados contribuem para a concentração de benefícios em detrimento da coletividade. A opção
mais acertada é, sem dúvida, a das avaliações de viabilidade e de relação entre custo e benefício
baseadas em evidências, orientadas para implementação da política de resultados.
Transparência dos benefícios concedidos, criação de modelos de decisão e avaliação no nível
“micro”, com a derivação de proposições testáveis, são ações que visam materializar a inteligência de
dispositivos como os artigos 1º e 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal; portanto, devem sempre ser
adotados pelos formuladores de políticas públicas.16
Mutatis mutandis, defende-se uma apreciação análoga às análises de impacto regulatório (AIR)
vigentes no âmbito do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) brasileiro.
É a abordagem baseada em dados que pode constituir entendimentos, os quais, embora
contraintuitivos, sejam escorreitos em dado grau de verificabilidade. Note-se, por exemplo, o trabalho
de Garret (1998, apud CARVALHO, 2011, p. 53-64), que expõe a preferência de grupos de interesse por
benefícios fiscais quando significativas as restrições das despesas públicas discricionárias.
Além da divulgação de gastos tributários e a busca pela avaliação de relação entre custo e benefício,
medidas como o estabelecimento de um limite máximo de gasto tributário também sugerem boa
eficácia. (BURMAN, 2012, p. 4, p. 11-15, p. 24-28; FELDSTEIN, 2015, in passim)

Para apreciação pormenorizada de como se estruturar uma análise de custo-benefício na área tributária: Cf. CHEN, Duanjie. The
16

Framework for Assessing Tax Incentives: A Cost- Benefit Analysis Approach. Nova York: Workshop On Tax Incentives And Base
Protection, 2015. Disponível em: https://www.un.org/esa/ffd/wp-content/uploads/2015/04/2015TIBP_PaperChen.pdf. Acesso em:
19 mar. 2020.

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 12-29 jul./dez. 2020 25


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Enquanto os princípios republicanos pugnam pela direção de um Estado equânime, tecnicamente
robusto e sustentável em longo prazo, a democracia se consolida em agenda de ação. Esses valores
devem ser materializados e, ao cabo, independentemente da orientação adotada, ganharão
tecnicidade e relevância necessárias para alcance de uma situação de equilíbrio.
Os dados transparentes devem ser dotados de imprescindibilidade que lhes seja característica,
permitindo-se maior controle (externo) na concessão de benefícios fiscais e direitos creditícios
estatais que devam ficar envoltos pelo verdadeiro interesse público, permeados sempre pela relação
entre o custo e o benefício socioeconômico e fiscal em que se autorize mitigar temporariamente a
arrecadação estatal regular para o desenvolvimento regional ou setorial.
As recessões econômicas recorrentes põem em xeque a sustentabilidade orçamental do próprio
Estado, agravadas pelo atual estado de calamidade em matéria de saúde pública, que exige a presença
de mais Estado para amparo imediato dos membros comunitários (hipossuficientes ou não), assim
como a manutenção das atividades econômicas produtivas exercidas por particulares.
Abrir mão de arrecadação fiscal regular, em tempos de brusca queda de receitas públicas, aliado ao
orçamento já deficitário e ao alto índice de endividamento dos entes estatais, que já se encontravam
em grave situação de insustentabilidade fiscal antes mesmo da calamidade pandêmica (covid-19), nos
dá o norte de tempos ainda mais difíceis em todos os aspectos socioeconômico e fiscais.
A trajetória fiscal vertiginosa acachapada pela falta de planejamento de gastos públicos
(emergenciais), desautoriza, neste momento, o alargamento de despesas públicas indiretas
(concessão de benefícios fiscais e creditícios) sem a demonstração cabal de um plano de gestão
pública responsável, tudo sob a ótica da análise econômica do direito.
A disrupção arrecadadora impingida ao já combalido erário público brasileiro merece atenção, para
que não se permita ou se repita, num futuro próximo, o estado de coisas inconstitucional em matéria
de direitos fundamentais, por absoluta falta de disponibilidade orçamental, lastrada, sobretudo, no
recorrente termo da “reserva do possível” que compromete diretamente a esperança do lídimo direito
ao futuro das próximas gerações.
Cada vez mais o custo (análise econômica) na oportunidade da escolha de políticas públicas
brasileiras deve ser requisito objetivo para permissão de renúncia na arrecadação estatal, levando-
se em conta, para transposição concessiva, critérios normativos realísticos de matizes econômicos
fiscais, de geração de renda (regional, local ou setorial) e elevação do bem-estar social daqueles que
participam diretamente do processo produtivo envolvido, tudo num cenário pronto de situação de
escassez de recursos públicos, com demandas assistencialistas crescentes em interesses focados na
preservação e implementação de direitos fundamentais.

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VELOSO, Fernanda ; MATOS, Silvia ; PERUCHETTI, Paulo. Produtividade do trabalho: o motor do
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2012.

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 12-29 jul./dez. 2020 29


ARTICULAÇÃO MUNICIPAL EM RESPOSTA À
PANDEMIA DA COVID-19
MUNICIPAL ARTICULATION IN RESPONSE TO THE COVID-19
PANDEMIC

Cláudia Costa de Araújo Fusco

CRÉDITO: ARQUIVO PESSOAL


Especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais (PUC Minas), Belo Horizonte, MG, Brasil. Especialista
em Direito Processual pela Universidade Sul de Santa Catarina
(UNISUL), Tubarão, SC, Brasil. Graduada em Direito pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil.
CV: http://lattes.cnpq.br/1421055718552620
E-mail: caucaraujo@yahoo.com.br

Flávia Alves Guimarães

CRÉDITO: PLATAFORMA LATTES


Especialista em Cidadania e Direitos Humanos no Contesto das
Políticas Públicas pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais (PUC Minas), Belo Horizonte, MG, Brasil. Graduada em
Administração Pública pela Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte,
MG, Brasil
CV:  http://lattes.cnpq.br/8165669035811702
E-mail: flaviaalguima@gmail.com

Frederico Martins de Paula Neto

CRÉDITO: ARQUIVO PESSOAL


Especialista em Segurança Pública pela Academia de Polícia Militar
de Minas Gerais, APM, Belo Horizonte, MG, Brasil. Especialista em
Estudos de Criminalidade pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil. Graduado em Direito pela UFMG,
Belo Horizonte, MG, Brasil. Graduado em Ciências Militares com
ênfase em Defesa Social pela Academia de Polícia Militar de Minas
Gerais (APM), Belo Horizonte, MG, Brasil.
CV:  http://lattes.cnpq.br/3834914322542943
E-mail: : paraomartins@gmail.com

Giovanna Bonfante
CRÉDITO: PLATAFORMA LATTES

Especialista em Direito Público pela Universidade Candido Mendes


(UCAM), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Especialista em Direito do Trabalho
e Previdenciário pela Universidade Gama Filho (UGF), Rio de Janeiro,
RJ, Brasil. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito Professor
Milton Campos (FDMC), Belo Horizonte, MG, Brasil.
CV:  http://lattes.cnpq.br/7163287006715276
E-mail: gigia1001@hotmail.com

30 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 30-48 jul./dez. 2020


Resumo Abstract
A emergência desencadeada pela pandemia The crisis triggered by the Covid-19 pandemic has
da Covid-19 tornou-se uma crise sanitária sem become an unprecedented health calamity, leading
precedentes, levando setores governamentais e government and private sectors to recommend
privados a recomendar estratégias de afastamento strategies for social exclusion with impacts on
social com impactos para a gestão e para a própria management and on the implementation of public
execução de políticas públicas. Para se adequar policies. To adapt to this new reality imposed, local
à nova realidade imposta, as administrações administrations had to adopt a series of measures
municipais tiveram de adotar uma série de medidas in order to ensure the continuity of the provision
com o intuito de assegurar a continuidade da of essential services to society. The present case
prestação de serviços essenciais à sociedade de study is based on interviews with public managers
forma segura. O presente estudo de caso baseia-se involved in actions to respond to the pandemic in a
em entrevistas de gestores públicos diretamente Brazilian state’s capital, within the theoretical lens of
envolvidos nas ações de resposta à pandemia em a contextual-processual view, in which the context,
uma capital brasileira, dentro das lentes teóricas content and process were identified, considering
de uma visão contextual processualista, em the Belo Horizonte City municipal administration
que se identificaram o contexto, o conteúdo e as ‘internal context’, the intersetorial action, the
os processos relacionados, considerando como reframing of strategic objectives and the changes in
contexto interno a Prefeitura Municipal de Belo work dynamics in response to the crisis of the new
Horizonte; como conteúdo, a atuação “intersetorial”, coronavirus as ‘content’, and the public policies of
a “ressignicação” dos objetivos estratégicos e as the finalistic and the operational sectors, as well as
alterações nas dinâmicas de trabalho em resposta the performance of internal and external control
à crise do novo coronavírus e, como processos, as bodies as ‘processes’. This paper won´t probably be
políticas públicas da área finalística e as da área able to indicate paths, but perhaps it will enable
meio, bem como a atuação de órgãos de controle and stimulate some discussion about administrative
municipal e de controle externo. O debate exposto processes in times of crisis, enabling a reflection on
não terá o condão de indicar caminhos, mas strategic changes, without losing sight of the social,
talvez possibilite e estimule a discussão sobre os historical and political construction that characterize,
processos administrativos em tempos de crise, as well as the specificities of each area of government
de forma que se possa refletir sobre mudanças e activity, which certainly shaped the response of
estratégias, sem perder de vista a construção social, each organization depending on its size, structure
histórica e política que as caracterizam, bem como and strategy. Under the terms of the 3rd article of
as especificidades de cada área de atuação que, por Ordinance 206/2018-CAPES, this work was carried
certo, moldaram a resposta de cada organização a out with the support of the Coordination of Higher
depender de seu tamanho, estrutura e estratégia. Education Personnel (CAPES).
Nos termos do art. 3º da Portaria 206/2018-CAPES,
este trabalho foi realizado com apoio da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES).

Palavras-chave: gestão pública; pandemia; mudança organizacional.


Keywords: public management; pandemic; organizational change.

1 INTRODUÇÃO
Com origens identificadas em dezembro de 2019 na China, uma nova cepa de coronavírus passou
a assolar diversas nações em 2020, levando a Organização Mundial da Saúde (OMS) a reagir com a
declaração de emergência de saúde pública de interesse internacional, ainda em 30/1/2020, e com

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 30-48 jul./dez. 2020 31


a classificação da situação como pandemia, em 11/3/2020. A designação Covid-19, em acrônimo
desenvolvido a partir da expressão “Coronavirus Disease 2019” passou a ser utilizada seguindo as
práticas da Organização Mundial de Saúde (OMS), evitando a ligação da doença a uma determinada
área geográfica, animal ou grupo étnico.
A Covid-19 se tornou rapidamente uma crise sanitária sem precedentes, que passou a pressionar todo
o sistema de saúde nacional, levando setores governamentais e privados a recomendar estratégias de
afastamento social, gerando impactos para a gestão e para a própria execução de políticas públicas.
Para se adequar à nova realidade imposta pela pandemia, a administração pública brasileira teve que
adotar uma série de medidas com o intuito de assegurar a continuidade da prestação de serviços
essenciais para a sociedade de forma que fosse segura para os servidores públicos.
Este artigo tem como objetivo apresentar uma análise dos principais impactos na gestão pública
municipal, considerando políticas públicas de área finalística e de área meio, bem como a atuação de
órgãos de controle interno e externo, em resposta à crise do novo coronavírus.
Optou-se pela análise dos dados relativos a uma capital estadual de médio a grande porte em relação
ao Brasil, de forma que se procedeu a um estudo baseado em entrevistas exploratórias junto a três
gestores do nível estratégico do poder executivo de Belo Horizonte ligados à assistência social e à
gestão de pessoas, bem como aos órgãos de controle. Entende-se que o debate aqui exposto não
terá o condão de indicar caminhos, mas talvez possibilite e estimule a discussão sobre os processos
administrativos em tempos de crise.

2 CONTEXTUALIZAÇÃO
Com uma rápida taxa de transmissão entre humanos quando comparada a outros vírus respiratórios1
e com uma taxa de mortalidade que, senão tão elevada quanto a de outras cepas do coronavírus2,
mostrou-se inaceitável dentro dos atuais padrões das sociedades democráticas modernas; o surto da
Covid-19 foi rapidamente classificado por epidemiologistas como grave, dados os possíveis resultados
causados, caso não fossem tomadas sérias medidas pelos governos e pelas sociedades civis.
No Brasil, o primeiro registro de contaminação pelo coronavírus ocorreu em 26/2/2020. No final de
julho, o total de casos confirmados chegava a 2.200.000 com cerca de 82.000 vítimas fatais, indicando
uma taxa de 39,4 mortes para cada grupo de 100.000 habitantes. A doença já havia atingido cerca de
5.378 municípios brasileiros ou, aproximadamente, 96% das cidades do país (BRASIL, 2020).
No Estado de Minas Gerais, a doença tem-se apresentado de forma heterogênea entre os 853
municípios, já podendo ser identificados no momento da redação deste artigo alguns pontos de maior
incidência da doença, geralmente em áreas metropolitanas com alto adensamento populacional,
como os centros regionais de Uberlândia, Ipatinga e a capital, Belo Horizonte. Em 22/7/2020, o Estado
de Minas somava mais de 98.000 pacientes, dos quais 71.000 declarados recuperados (MINAS GERAIS,
2020b).

LIU et al., 2020; FRASER et al., 2009 ; KUCHARSKI ; ALTHAUS, 2015)


1

2
MALLAPATY, 2020; SHABIR, 2020)

32 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 30-48 jul./dez. 2020


Em que pese o número oficial de óbitos encontrar-se na casa das 2.000 pessoas em todo o Estado,
alguns estudos iniciais apontam haver indícios de grande ocorrência de notificação a menor, em
especial quando avaliados os dados da Covid-19 em conjunto com os registros de acometimento por
síndrome respiratória aguda grave (SRAG), que, em alguns cenários, apresenta aumento de 683% no
número de hospitalizações por SRAG em comparação ao mesmo período de 2019. No mesmo sentido,
quando comparada à média de óbitos por SRAG em Minas Gerais nos anos de 2017 a 2019, com os
dados do ano de 2020, nota-se incremento de 648,61% no número de mortes, somadas a um aumento
de 5,36% no total de óbitos por pneumonia e de 5,72% naqueles causados por insuficiência respiratória.
A própria Secretaria de Saúde mineira se pronunciou em nota oficial a respeito, confirmando que
existiria, em maio de 2020, suspeita de menor notificação de dez para cada caso confirmado (ALVES et
al., 2020; MINAS GERAIS, 2020a, 2020b).
O primeiro caso de Covid-19 no Estado de Minas Gerais não foi detectado no Município de Belo
Horizonte; contudo, a capital concentrou o maior quantitativo de pacientes confirmados e de óbitos
no Estado desde os estágios iniciais da emergência sanitária. Nos meses de março e abril, os números
oficiais indicavam uma situação mais controlada que em outras capitais de médio porte do Brasil, em
especial dos estados do Norte e Nordeste. No entanto, a partir da segunda quinzena de junho, houve
uma rápida aceleração nos casos de contaminação da região metropolitana, o que fez com que o
número de óbitos acumulados do Município mais que quadruplicasse entre 22/6/2020, quando havia
96 mortes confirmadas, e em 22/7/2020, quando o Município contava com 399 óbitos (BRASIL, 2020).
Segundo Snyder et al. (2016), a escolha da capital do Estado se deu quando considerada a expressiva
vulnerabilidade a doenças contagiosas das populações residentes em áreas altamente povoadas e
com bolsões de pobreza, o que indica que maior vulnerabilidade social pode afetar, negativamente, a
implementação de políticas públicas na contenção da Covid-19 (AHMED et al., 2020).

3 MUDANÇA ORGANIZACIONAL EM TEMPOS DA PANDEMIA COVID-19


Vive-se um momento histórico em que o planeta atravessa de forma conjunta uma crise sem
precedentes, que se mostra como a maior de uma geração e, certamente, uma das maiores de que
se tenha registro na área da saúde pública. Dessa forma, o que se ressalta, no momento, é que não
existem problemas próprios da área da administração ou mesmo da administração pública. O que
existe são problemas sociais gritantes que exigem abordagens interdisciplinares que extrapolam a
abrangência da administração, com propostas de solução para problemas reais e com condão de
efetivamente tocar a vida das pessoas, tanto no sentido lato, entendido aqui como o seu curso diário
rotineiro, como no sentido estrito, ou seja, na sua própria existência (PAIXÃO; BARBOSA; SALES, 2020;
STARKEY; MADAN, 2001).
As contribuições teóricas relacionadas nesta seção visam refletir sobre mudanças em larga escala, como
as trazidas pela pandemia Covid-19, sem perder de vista a construção social que as caracterizam, bem
como as especificidades de cada localidade que, por certo, moldaram a resposta de cada organização
a depender de seu tamanho, estrutura e estratégia (MARIZ, 2007).
Considerando que as mudanças atingem, de maneira mais profunda, o contexto das organizações
que as implementam de forma rápida, como se faz necessário para adaptação às demandas impostas

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 30-48 jul./dez. 2020 33


pela pandemia da Covid-19, e que mudanças rápidas geralmente partem dos núcleos concentradores
de poder, há grande possibilidade de resistências, seja pela falta de envolvimento ou da correta
apreciação da opinião da força de trabalho, seja pela fraqueza da liderança, seja pela incoerência do
processo, seja pela falta de legitimidade institucional da organização (PETTIGREW; WHIPP, 1991).
A mudança estratégica nas organizações é fator comumente mencionado em teorias no campo
dos estudos organizacionais, quase sempre como algo de importância crescente nas análises do
setor. Frases que remetem a ambientes mais dinâmicos e a organizações que precisam se adaptar
rapidamente a essa dinamicidade são frequentes, apesar da dificuldade que ainda existe até mesmo
em se conceituar e tipificar a mudança (NEIVA; PAZ, 2007).
Mudança pode ser considerada como qualquer modificação nos componentes organizacionais, seja
fruto de ações deliberadas, planejadas e previamente estruturadas, com respostas mais ou menos
moduladas, seja resultado de ações emergentes em respostas contingentes a alterações internas ou
externas à própria organização (LIMA; BRESSAN, 2003; PAZ; NEIVA; GARCIA, 2004).
Como principais modelos explicativos de mudança, Burke e Litwin (1992) descrevem a mudança
ocorrida a partir da alteração da cultura ou da missão, enquanto Greenwood e Hinings (1996) focam
sua análise nos processos de mudança, relacionando-os aos impactos de insatisfação de interesses
individuais. Considerando que a organização, seus valores e sua cultura geralmente são marcados
pela alteração de uma configuração em outra pela ação política, com alternação sucessiva de estados
de configuração e estabilidade, a mudança estratégica pode ser caracterizada pela distribuição e,
acima de tudo, pelo uso do poder (PAZ; TAMAYO, 2004).
Considerando a mudança organizacional com enfoque nas dinâmicas de poder, seria possível
identificar, nas organizações, dois tipos de ações que se combinariam para originar a mudança, entre
as quais as ações de exploração, relacionadas à experimentação de novas alternativas e às ações de
explotação, que se referem ao refinamento da estratégia existente (BURNS; STALKER, 1994 ; MARCH,
1999).
Para Quinn e Voyer (2001), esse processo fragmentado, evolucionário e intuitivo, que abarca decisões
internas e eventos externos, estaria estruturado metodologicamente de maneira a correlacionar
variáveis diferentes, envolvendo o contexto, o conteúdo e o processo da mudança.
O contexto oferta indícios sobre o porquê da mudança, em suas origens no ambiente interno ou
externo; o conteúdo explica o objeto da mudança e onde se encontram as ações de exploração e
explotação; e o processo expõe a forma como se dá a mudança em seu caráter dinâmico e temporal
(PETTIGREW, 1987; MINTZBERG; WESTLEY, 1992).
Tais ciclos temporais, iniciados com uma modificação e concluídos em um equilíbrio mais adaptado,
se entremeariam entre períodos mais ou menos longos de estabilidade3, que seriam rompidos por
intenção gerencial ou por pressões ambientais e institucionais, em respostas estratégicas (ASTLEY;
VAN DE VEN, 1983).
Se por contexto entende-se o conjunto de contingências internas e externas, com as quais a

(SCHEIN, 1982)
3

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organização deve lidar; por conteúdo, os cenários construídos com avaliações, hipóteses, metas
e resultados esperados; e, por processo, o modelo de ação escolhido, passando pela formulação e
pela implementação das ações de resposta, a mudança estratégica se enquadraria em um sistema
tripartite, que enxerga o processo decisório como uma das funções mais importantes na mudança,
que depende muito da liderança exercida por gerentes alocados para a coordenação da operação.
Nessa linha de pensamento, em que pese prever a possibilidade de mudanças oriundas do corpo de
funcionários, as principais decisões, por serem mais políticas do que técnicas, são oriundas da alta
direção da organização e emanam para os setores executores (PETTIGREW, 1992).
Em razão das limitações impostas neste trabalho, não se abordarão, de maneira mais aprofundada,
as questões sobre a resistência à mudança, mesmo porque seria necessário avançar para além da
visão tradicional de que toda mudança traz consigo resistência (HERNANDEZ; CALDAS, 2001; SILVA;
VERGARA, 2003; GREY, 2004).
Reconhece-se, todavia, que a resposta aos estímulos para mudança em organizações públicas
dependerá muito da forma como os envolvidos se veem atingidos por ela, havendo uma noção
generalizada de que servidores públicos, até mesmo como fruto de um ethos, que visa à estabilidade
pessoal e profissional, tendem a demonstrar níveis de resistência elevados.
Nessa seara, contrapõem-se os argumentos: os que levam ao entendimento de que haja uma
propensão individual a adotar comportamentos resistentes4 e outros que verificam um cenário com
alto potencial de aceitação da mudança ou, pelo menos, um estado inicial de neutralidade em relação
à mudança por parte de servidores públicos. (MARQUES; BORGES; ALMADA, 2016).
De todo modo, é possível identificar componentes cognitivos, afetivos e comportamentais na
resposta à mudança, vistos como lados distintos que se relacionam e evidenciam aspectos diferentes
do processo mental do comportamento resistente.
O componente cognitivo se relacionaria com as avaliações do indivíduo, o afetivo com as emoções
e o comportamental com o plano de ação executado5, o que indicaria que o processo de mudança
exigiria ações relativas aos recursos humanos, tanto no envolvimento desses com a construção de
soluções, evitando processos completamente top-down6, como na desconstrução das práticas
anteriores à tomada da decisão no desenvolvimento daquilo que pode ser identificado como um
“desaprendizado” da cultura organizacional (PETTIGREW, 1971).

4 PROCEDIMENTO METODOLÓGICO
Já há muito se discute a necessidade de alterar o foco dos estudos sociais para uma produção
literária que consiga não só apresentar contribuições epistemológicas ao tema, mas também que
possa apresentar pesquisas com relevância para a sociedade e, acima de tudo, propostas de soluções
práticas para problemas reais.

(PETTIGREW; WHIPP, 1991; HERNANDEZ; CALDAS, 2001)


4

(PIDERIT, 2000)
5

(HEYDEN et al., 2017)


6

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 30-48 jul./dez. 2020 35


No momento em que surge uma crise inesperada e que, apesar de não ter motivações ou causas
inéditas nos seus aspectos formacionais, teve efeitos totalmente novos em uma sociedade da
informação muitíssimo conectada, certamente é necessário que os estudos apresentem não só
uma avaliação profunda e recoberta por método, mas que também consiga atingir os destinatários
finais da produção científica, ou seja, a sociedade. Isso se torna ainda mais importante no campo da
administração pública, no qual as propostas discutidas no meio acadêmico podem-se transformar
em políticas públicas que, por natureza, afetam toda a vida comunitária.
O estudo nessa área deve-se pautar, portanto, pelo caráter multidisciplinar e relacional, amparado na
construção de respostas e não apenas de perguntas, na busca de soluções com embasamento não
apenas teórico, mas também empírico e na difusão facilitada e dinâmica da informação (GIBBONS et
al., 2010).
Dentro dessa proposta, seguiu-se um modelo de conhecimento que procura aliar neste artigo a
exploração de um tema de importância e relevância prática, com a busca por respostas contingenciais,
em uma forma de ciência que se torne ação social. Nesse sentido, embora a pesquisa mantenha o rigor
científico, espera-se que se legitime socialmente pela clareza dos argumentos e aplicabilidade das
propostas, que mantêm uma relevância conceitual e instrumental (NICOLAI; SEIDL, 2010).
Para tanto, elaborou-se o presente estudo de caso (ou estudos de casos, a depender da forma como se
encare), baseado em entrevistas de gestores públicos diretamente envolvidos nas ações de resposta
à pandemia da Covid-19 empreendida pela administração pública municipal de Belo Horizonte. O
método da entrevista, que por definição envolve uma percepção simultânea da realidade realizada
por duas pessoas, o entrevistador e o entrevistado, segundo Richardson (1999), toma novo significado
devido às próprias restrições de interação que o isolamento social impõe.
Se observada como técnica visando à obtenção de informações que permitam conhecer a opinião,
a visão, a influência dos valores pessoais e os sentimentos do entrevistado a influenciarem seu
comportamento em face do objeto de pesquisa, de acordo com Ribeiro (2008), certamente a melhor
entrevista não seria a realizada de forma remota.
Ainda assim, como a realidade premente tende a impactar o processo de coleta de dados, algumas
estratégias foram utilizadas. Trata-se de aproveitamento de conexões profissionais já existentes para
facilitar a criação de laços, a demonstração da capacidade de enlace ao conteúdo apresentado pelo
entrevistado em suas impressões e preocupações admitidas nas respostas iniciais e a correta expressão
de respeito e consideração pela importância do entrevistado e sua contribuição. Assim, tornou-se
viável a realização de entrevistas como um método para coletar dados narrativos ricos sobre assuntos
sensíveis (DRABBLE et al., 2015; FIELDING; LEE; BLANK, 2016).
A escolha do meio virtual para entrevista, dentre as diversas possibilidades que a modernidade
traz, poderia envolver chamadas telefônicas por voz, ou o envio de mensagens de texto ou voz por
meio de serviço de mensagens curtas por telefonia (SMS na sigla em inglês), ou em aplicativos de
conexão como WhatsApp ou Facebook Messenger. Outro caminho, o escolhido, são reuniões marcadas
e realizadas por meio de aplicativos disponíveis e popularmente conhecidos como Microsoft Zoom
ou Google Meet. Tal opção se deu para que os respondentes tivessem a possibilidade de participar da
entrevista no momento e local mais convenientes (CHAUDHURI, 2020).

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Apesar de ter a especial qualidade de possibilitar entrevistas entre pessoas geograficamente
afastadas por distância ilimitada, reconhece-se, em todo caso, que esse método exige o uso de
serviços de internet de alta velocidade por ambas as partes, conforme revela Deakin e Wakefield
(2014). No entanto, como previamente discutido com todos os entrevistados, não houve óbice,
de maneira que todo o processo se deu online, sem contato próximo entre entrevistado e
entrevistador.
De acordo com Lakatos (2003), optou-se pela forma de entrevistas abertas, visando à compreensão
de especificidades e opiniões na medida em que se obtivesse o maior número possível de
informações sobre o tema da pesquisa, segundo a visão do entrevistado, e para obter um maior
detalhamento do assunto em questão (MINAYO, 1993).
As perguntas não foram previamente estruturadas e informadas, apesar de os convites incluírem o
assunto geral e os principais aspectos de interesse dos pesquisadores sobre o tópico visado (BOURDIEU,
1999; ZIMMERMANN; SILVA, 2014).
Antes das entrevistas, procedeu-se a um levantamento documental para aquisição de conceitos e
dados que permitissem o entendimento inicial do problema objeto da pesquisa. Em complemento,
foram utilizadas as pesquisas bibliográfica e documental com objetivo de potencializar o conhecimento
científico que embasasse a investigação, de forma a criar um repositório teórico que permitisse ir além
das respostas dos entrevistados (GODOY, 1995).
Partindo-se do pressuposto de que há uma dificuldade de articulação nas práticas e nos padrões de
pesquisa científica em administração, quando se combinam a intenção dedutiva com reconhecimento
de padrões indutivos posteriores, este estudo tem como escopo teórico basilar, para análise da
realidade verificada por meio desta coleta de dados, as lentes teóricas de uma visão processual, em
que se identificaram o contexto, o conteúdo ou os processos relacionados. Nessa estrutura, este
estudo se fixa nas relações entre contexto, conteúdo e processo ao mesmo tempo em que lança olhar
sob a tendência humanizadora que a mudança poderá tomar (PETTIGREW, 2012).
Considerando as premissas expostas, fixou-se como delimitação da pesquisa o âmbito municipal e,
dentro dele, o conteúdo de três áreas específicas. Para fins do artigo, considerou-se contexto o poder
executivo de Belo Horizonte, tanto no âmbito interno como externo. Considera-se como processos,
cada um dos pontos que serão discutidos na apresentação dos resultados, em especial a atuação
entre setores, a nova significação dos objetivos estratégicos e as alterações nas dinâmicas de trabalho
(PETTIGREW, 1987, 2012).
A justificativa da escolha das instituições analisadas se deu com objetivo de tentar avaliar os impactos
das alterações produzidas pela pandemia na administração pública em uma de suas funções mais
importantes: o ciclo de políticas públicas, contemplando as etapas de planejamento, desenho,
execução, monitoramento e avaliação.
Mantendo a ênfase no nível municipal da administração, foram incluídas instituições de duas áreas de
execução de políticas públicas que foram extremamente afetadas pela pandemia (a assistência social
e a gestão de pessoas), ao mesmo tempo em que se buscou a experiência de mecanismos de controle,
que tem sido extremamente demandado em razão da situação.

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 30-48 jul./dez. 2020 37


Assim, além de terem sido entrevistados três gestores do nível estratégico na administração pública
de Belo Horizonte, que estiveram diretamente envolvidos no assessoramento, planejamento ou
implantação de mudanças efetivadas no Município; também foram ouvidos gestores dos órgãos de
controle interno e externo.
Dessa forma, espera-se, a partir da revisão teórica sobre a mudança organizacional e da análise das
experiências relatadas pela administração municipal, construir uma amostra do impacto da pandemia
na construção de políticas públicas na área fim e na área meio de um município de grande porte,
juntamente com seus mecanismos de controle interno e externo e, com isso, delimitar as distintas
respostas da administração municipal em tempos de crise.

5 MOBILIZAÇÃO DO SETOR PÚBLICO MUNICIPAL SOB DISTINTAS ÓTICAS


Esta seção se destina à apresentação das distintas óticas da gestão da mudança estratégica
em Belo Horizonte, construídas a partir da mobilização do setor público para se adaptar à crise
ocasionada pela Covid-19. Com o avanço do cenário da pandemia, o Município de Belo Horizonte
publicou, em 17 de março, o Decreto n. 17.297/2020, que declarou situação anormal, caracterizada
como situação de emergência em saúde pública, em razão da necessidade de ações para conter a
propagação de infecção viral, bem como de preservar a saúde da população contra o coronavírus.
Na mesma data, foi publicado o Decreto n. 17.298/2020, que estabelece medidas temporárias de
prevenção ao contágio e de enfrentamento e contingenciamento no poder executivo municipal.
A referida norma interrompeu as atividades dos serviços considerados não essenciais, a partir
do dia 19 de março, prevendo a possibilidade de regulamentação do trabalho remoto. Após
caminhar em uma etapa inicial denominada como fase de controle, que teve início em 18 de
março e perdurou até 25 de maio, houve o início de um processo de reabertura gradual, que,
contudo, foi suspenso em 29 de junho. (BELO HORIZONTE, 2020a, 2020b, 2020c).
Não cabe a este estudo detalhar em profundidade o contexto prévio à pandemia Covid-19, mas
alguns apontamentos são importantes para a compreensão do desenvolvimento de políticas públicas
em Belo Horizonte. Considerando a abordagem histórica, política e cultural proposta por Pettigrew e
Whipp (1991), o “contexto” permite ao pesquisador buscar respostas quanto ao “porquê” e ao “quando”
das contingências internas e externas com as quais a organização deve lidar.
Com relação ao “contexto interno”, os recursos, as capacidades, a cultura organizacional e as políticas
são variáveis de análise7 que têm menção nas entrevistas realizadas com representantes dos três
órgãos avaliados sobre as mudanças identificadas a partir da declaração de situação anormal.
Para fins deste trabalho, consideraram-se como contexto interno da mudança as ações em
desenvolvimento pela Administração, em especial nas áreas de controle interno, gestão de pessoas e
política social. Essa última é compreendida como a área que abrange as ações relacionadas à promoção
da assistência social, da segurança alimentar e da cidadania. Ressalta-se que as três áreas já estavam
passando por processos de mudanças estratégicas.
A Controladoria-Geral do Município (CTGM), instituição central do controle interno do Poder Executivo,

7
(PETTIGREW; WHIPP,1991)

38 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 30-48 jul./dez. 2020


é órgão autônomo e subordinado diretamente ao prefeito, que tem como competência promover a
defesa do patrimônio público, o controle interno, a auditoria pública, a correição, a prevenção e o
combate à corrupção, o incremento da transparência da gestão e o acesso à informação no âmbito
da administração pública municipal, nos termos dos artigos 58 e 61 da Lei Municipal n. 11.065, de
1º/8/2017.
Recentemente, o órgão teve seu Plano Estratégico Institucional 2020-2023 aprovado. O referido
plano estabelece como visão do órgão “ser reconhecido como órgão de excelência na indução do
aprimoramento da gestão pública e da qualidade do gasto, auxiliando o gestor na tomada de decisão
com foco na obtenção de resultados para a sociedade” (BELO HORIZONTE, 2020c).
Em busca do alcance dessa visão, a CTGM vem desenvolvendo uma série de ações e reformulações
para dar novo significado ao seu papel, interna e externamente. Nesse sentido, o representante do
órgão entrevistado ressaltou que mais do que detectar, apontar erros e recomendar suas correções, o
controle interno deve agregar valor à gestão, deve contribuir para a melhoria da qualidade do gasto
público.
A Secretaria Municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania (Smasac) tem por
competência planejar, coordenar e executar as políticas públicas de assistência social, de segurança
alimentar e nutricional sustentável e de garantia de direitos e de cidadania no Município. Trata-se de
um conjunto de políticas públicas diversas em suas finalidades, com históricos distintos, mas reunidas
sob as mesmas diretrizes estratégicas desde a reforma administrativa promovida pela Lei Municipal n.
11.065, de 1º/8/2017.
Em janeiro de 2019, o órgão deu início ao Planejamento Estratégico SMASAC 2019-2020, estabelecendo
como sua própria visão “ser referência nacional em inovação, qualidade da gestão e execução de
políticas públicas, por meio do aprimoramento de processos, serviços, programas, projetos e benefícios
já existentes e da ampliação das ofertas prioritárias” (BELO HORIZONTE, 2019).
A visão foi desdobrada em dois temas estratégicos (aprimoramento da gestão e ampliação das ofertas
prioritárias), que, por sua vez, foram detalhados em resultados esperados concretizados em metas
de programas da área finalística e da área meio da secretaria. A Subsecretaria de Gestão de Pessoas
(Sugesp), subordinada à Secretaria Municipal de Planejamento, Orçamento e Gestão, tem como
competência atuar na gestão de pessoas visando ao desenvolvimento humano e organizacional do
poder executivo, por intermédio da coordenação, regulamentação e avaliação da política de recursos
humanos, conforme estabelecido no artigo 13 do Decreto n. 16.682, de 31/8/2017 (BELO HORIZONTE,
2017b).
Na entrevista realizada, foi evidenciado que o órgão vem passando por um processo profundo de
mudança nos últimos três anos e meio e que 2020 seria o último ano da transformação de uma
gestão de recursos humanos executada em papel para uma gestão de recursos humanos totalmente
automatizada.
No que diz respeito ao contexto externo, os impactos da pandemia Covid-19 são percebidos em
escala global, mas é necessário considerar as especificidades locais que influenciam na mudança
(MARIZ, 2007). Assim, o Município de Belo Horizonte adotou um conjunto de medidas frente à

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pandemia, bem como características econômicas, políticas e sociais, que exercem influência na
forma como as mudanças vêm se desenvolvendo nas áreas analisadas. Destaca-se, nesse contexto,
a relação do Município com o controle externo, em especial com o Tribunal de Contas do Estado
de Minas Gerais (TCEMG) e com a Ação Integrada da Rede de Controle e Combate à Corrupção de
Minas Gerais (Arcco).
Especificamente no que concerne ao controle externo exercido pelo TCEMG junto à esfera
municipal, missão constitucionalmente estabelecida para o órgão, ficou esclarecido, por meio da
entrevista e da pesquisa documental realizadas, que as unidades do órgão passaram a priorizar
ações pedagógicas, com o objetivo de prestar orientação aos municípios. Desse modo, houve a
criação do sítio eletrônico Covid-19, por meio do qual todos os municípios podem fazer perguntas
e esclarecer dúvidas, com respostas on-line e as questões mais complexas são respondidas por
meio de notas técnicas. Foi destacado, ainda, pelo entrevistado, o incremento de parcerias
interinstitucionais, bem como a importância de os órgãos de controle adotarem, nesse momento,
uma postura menos austera, realizando, na aplicação das normas, uma interpretação finalística, e,
não, uma interpretação literal da lei. Nesse sentido, nota-se que o TCEMG, como um dos elementos
que compõem a dimensão contexto externo, ao adotar uma postura com viés mais pedagógico e
que priorize uma interpretação finalística dos atos, acaba por criar um ambiente mais propício à
adoção de ações tempestivas da parte do Município para enfrentamento da pandemia.
Ainda tratando do contexto externo, cumpre ressaltar o trabalho que vem sendo desenvolvido
pela Rede Arcco, da qual fazem parte o TCEMG e a CTGM. A Arcco foi constituída em 2009 como
espaço colegiado permanente composto por órgãos e entidades de controle que atuam perante
as administrações públicas estadual e municipais em todo o Estado de Minas Gerais. No contexto
recente, causado pela pandemia, a rede uniu esforços e tem atuado de forma cooperativa e articulada
no que se refere às ações de controle, cada órgão componente na esfera de suas competências, mas
contribuindo para que não haja repetições de trabalho e que as informações sejam compartilhadas
de forma mais eficiente.
Em entrevista, foi destacado que, na rede, os órgãos participantes levantaram uma série de
informações referentes aos fornecedores contratados pelo Estado e pelos municípios mineiros e,
mediante cruzamentos de dados, foi possível construir uma trilha automatizada que indica riscos
desses fornecedores e direciona a atuação dos órgãos de controle. O fato de a CTGM fazer parte da
rede tem propiciado uma atuação concomitante do controle interno na correção de eventuais atos
com suspeita de irregularidade.
Desse modo, tal como verificado em relação ao TCEMG, também esse elemento que integra o contexto
externo acaba por criar um ambiente que traz mais segurança ao executivo municipal na tomada de
decisões para o enfrentamento da pandemia.
O conteúdo das mudanças organizacionais contempla as transformações e as ações, as reações e as
interações decorrentes delas. Trata-se do resultado de um processo de legitimação política e cultural
que envolve diversos atores — nos termos de Pettigrew e Whipp (1991) — e as ações de exploração e
explotação mencionadas por March (1999).
Percebe-se nas entrevistas realizadas uma série de reflexões sobre aspectos não apenas das dimensões
do contexto e do conteúdo, mas também quanto à dimensão do processo, ou seja, da forma como a

40 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 30-48 jul./dez. 2020


mobilização dos órgãos para se adaptar à crise vivenciada provocou mudanças e acelerou processos
em andamento nos órgãos analisados.
Destaca-se, inicialmente, a questão relacionada à gestão de pessoas. No caso da Sugesp, trata-se de
aspecto que assume relação com a gestão interna do órgão e com orientações para as demais áreas
da Administração, o que fica evidente na entrevista. No contexto da pandemia, foi preciso inovar e
adotar medidas internas à subsecretaria, mas também foi necessário pensar em uma política para
todo o conjunto de servidores do Município. A mudança foi considerada abrupta e exigiu um processo
de inovação, motivado por fatores externos, sem uma etapa prévia de planejamento. Em razão da
automatização que vem sendo desenvolvida nos últimos anos, o entrevistado avaliou que foi possível
implementar o trabalho remoto para grande parte das atividades, serviços e processos do órgão.
Especificamente sobre a implementação do trabalho remoto de forma geral no município, o gestor
da Sugesp iniciou sua fala, afirmando que o tema, na administração pública brasileira, até então, era
uma questão controversa, especialmente no poder executivo. Relatou que já existiam, Município,
projetos pilotos de trabalho remoto em andamento para um número reduzido de servidores e
em órgãos isolados. A situação de anormalidade acabou por provocar a realização de um grande
projeto piloto coletivo em grande parte dos órgãos municipais. Identifica-se, a partir desse relato,
que os projetos pilotos foram parte de um planejamento estratégico da Sugesp e, portanto, ações
de exploração, ou seja, de experimentação de novas iniciativas. A situação atual, por outro lado,
caracteriza a explotação, o refinamento da estratégia existente (MARCH, 1999).
Na percepção do entrevistado, a experiência tem possibilitado a todos os gestores avaliarem se o
trabalho remoto é possível ou não em sua unidade, bem como os fatores de sucesso e de fracasso.
Destacou-se que, no poder executivo municipal, existem áreas em que não é viável em razão da própria
natureza dos serviços prestados aos cidadãos; contudo, tem-se verificado que muitas atividades
administrativas, fiscalizadoras e jurídicas são plenamente compatíveis com esse tipo de trabalho. A
crise causada pela pandemia deu início a estudos para a regulamentação do trabalho remoto e de
sua continuidade após o término da situação de emergência. Segundo o entrevistado, a partir dos
estudos realizados até o momento, já se concluiu que, para a sua efetividade é necessário que ele
seja de interesse do servidor e da administração. Para o servidor, é preciso que haja condições para
o desenvolvimento das atividades e, para a administração, é preciso que haja manutenção ou ganho
de produtividade. Destacaram-se alguns fatores importantes para o sucesso do trabalho remoto,
como uma atuação permanente do gestor, que tem papel fundamental nesse processo, tanto para
a manutenção da integração da equipe, quanto para cuidados com a saúde mental do servidor, que
passa a ter menos contato com outras pessoas. Regras claras em relação a horários, produtividade
e funcionamento foram mencionadas como imprescindíveis. A fala do entrevistado vai ao encontro
da ideia de que as atitudes dos gestores são determinantes para o envolvimento dos empregados
e para o sucesso da implantação da mudança, considerando o processo cognitivo dos indivíduos
(DAMANPOUR, 1991).
A implementação do trabalho remoto pela CTGM também foi destacada pelo entrevistado como um
processo que foi acelerado, uma vez que já havia um projeto piloto em andamento. Para ele, essa foi
uma mudança significativa que, na sua visão, será continuada.

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Na Smasac, o trabalho remoto não pôde ser integralmente implementado, uma vez que há um
conjunto de atividades finalísticas essenciais prestadas diretamente ao cidadão. Dessa forma, foi
apontada na entrevista a necessidade de desenvolvimento de novas tecnologias de trabalho. Cada
serviço prestado foi avaliado e foram identificados aqueles cuja oferta poderia ser adequada para
prestação não presencial, aqueles que deveriam necessariamente ser presenciais e aqueles que
deveriam ficar suspensos. O acolhimento social assistencial, por exemplo, não pode ser feito de forma
remota. No entanto, foi possível criar uma metodologia de diálogo com as famílias vulneráveis para
fortalecimento de vínculos. A revisão de metodologias e processos de atendimentos, sem prejudicar
a oferta e atentando à saúde do servidor público envolvido e a simplificação de processos também
foram apontadas na entrevista.
Tanto o entrevistado da Sugesp quanto o da CTGM ressaltaram que não perceberam resistência
por parte dos servidores quanto ao trabalho remoto. Entende-se que há limitação na avaliação da
resistência, uma vez que a situação é recente e ocorreu de forma abrupta. Possivelmente, no pós-
pandemia, as resistências poderão ser identificadas e avaliadas.
A partir das entrevistas foi possível identificar, também, um processo de articulação entre setores
em todas as áreas avaliadas. Aliás, ressalta-se, que esse processo entre setores é inerente à
atuação dos três órgãos, que se relacionam, internamente, com outras unidades do Município e,
externamente, com outras instituições e, especialmente com a Smasac e com a sociedade. No que
toca à possibilidade de relações entre os setores, o entrevistado da Smasac pontuou a importância
das ações em conjunto com a Secretaria Municipal de Saúde e, a respeito da forma como a mudança
tem-se dado naquele órgão, o entrevistado afirmou ter enfrentado a necessidade de criar respostas
rápidas que fugiam à rotina, pontuando positivamente a expertise das equipes técnicas com um
corpo de servidores e gestores comprometidos que assumiram rapidamente o desenho de novos
procedimentos administrativos e políticas públicas.
O entrevistado mencionou que houve a necessidade de mobilização de recursos e capacidades da
equipe, especialmente para respostas quanto à garantia de segurança alimentar das famílias em
situação de vulnerabilidade e à substituição da alimentação escolar de crianças e adolescentes da
rede municipal de ensino. A atuação de setores da administração e de agentes externos, como a mídia
e a liderança do chefe do executivo são apontadas pelo entrevistado como fatores que possibilitaram
as respostas rápidas. Como exemplo das ações que “fugiam à rotina”, ou seja, não contempladas no
planejamento estratégico do órgão foi mencionada a concessão de quase 800 mil cestas básicas para
as famílias de alunos da rede municipal de ensino e para famílias em situação de vulnerabilidade,
totalizando um aporte de R$55 milhões de reais.
As ações emergenciais adotadas não contemplam apenas as alterações de estratégias de segurança
alimentar, mas também os serviços de assistência social preconizados na Política Nacional de
Assistência Social (Pnas) e desenvolvidos na esfera municipal. A atuação institucional demandou
alterações rápidas, como a criação de um serviço específico de acolhimento para população em
situação de rua com sintomas de Covid-19 e a atenção aos novos cuidados necessários em instituições
de longa permanência de idosos.
Por isso, o processo e o conteúdo da mudança estratégica na Smasac face à Covid-19, na percepção
do entrevistado, envolveram a criação de estratégias e respostas rápidas, a revisão do planejamento
estratégico com reorganização das ações e prioridades e a implementação de inovações, englobando

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revisão do orçamento, dos objetivos e das metas.
Na CTGM, o entrevistado asseverou que momentos de crise são uma grande oportunidade para os
órgãos de controle, em especial para as unidades centrais de controle interno, que podem demonstrar
o seu valor e a sua importância para uma boa gestão dos recursos públicos. Foi destacado que a CTGM
tem atuado em várias frentes com o objetivo de contribuir com a gestão das políticas públicas que
se tornaram urgentes, visto que os gestores que estão à frente da condução dessas políticas públicas
precisam tomar decisões rápidas.
O momento exigiu flexibilização dos procedimentos administrativos, o que, para o entrevistado, foi
muito importante, já que momentos excepcionais exigem respostas excepcionais; contudo, essa
flexibilização também impõe um incremento da fiscalização que se pode dar de diversas formas. Para
o entrevistado, é fundamental um aumento da transparência, especialmente porque grande parte
das aquisições tem sido realizada por meio de dispensa de licitação. Assim, o controle interno tem
contribuído para esse incremento da transparência, inclusive para fomentar o controle social.
A CTGM também tem acompanhado as aquisições e as contratações realizadas pelo Município e
possui uma equipe dedicada a avaliar os riscos dos fornecedores contratados, em tempo hábil, por
meio de um diagnóstico desses fornecedores, considerando diversos fatores de risco. Esses riscos e as
respectivas sugestões de ações de mitigação são encaminhados para todos os órgãos da administração
municipal, um dos trabalhos que conta com o apoio da Arcco.
Foi destacada, também, a atividade de consultoria desempenhada pela CTGM. O entrevistado
explicou que a CTGM tem sido demandada, prévia ou concomitantemente à atuação do gestor, para
realizar uma avaliação da conformidade da sua ação, contribuindo para que ele tome uma melhor
decisão. Auditorias para avaliar algumas contratações realizadas pelo município foram instauradas,
considerando as informações obtidas por meio de notícias divulgadas pela imprensa ou por
manifestações encaminhadas pela própria sociedade por meio dos canais da ouvidoria.
No que se refere especificamente à atividade de ouvidoria, foi possível observar um aumento
significativo no volume de manifestações recebidas pelo Município, principalmente denúncias
relacionadas ao funcionamento irregular de estabelecimentos. O entrevistado contextualizou que foi
necessário que a equipe se adequasse ao trabalho remoto e se dedicasse a avaliar essas demandas
de forma tempestiva e integrada com os demais órgãos do Município. Concluiu que o trabalho é
contínuo e diuturno e que, nesse momento de crise, tem sido possível demonstrar como o controle
interno, mais do que um problema, pode ser uma solução, as de modo a conferir novos significados às
declarações estratégicas do órgão e a acelerar a implementação de processos que buscam o alcance
da sua visão.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi possível notar que a administração pública municipal apresenta respostas em tempos de crise
que reforçam o modelo de administração historicamente institucionalizado em cada órgão, seja mais
burocrático, seja inovador. Por outro lado, considerando a aversão à incerteza típica de qualquer
instituição, pública ou privada, e a necessidade de respostas rápidas imposta pela pandemia, verifica-

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se um grande grau de mimetismo nas ações imediatas de resposta.
Considerando que não há no horizonte solução definitiva para a atual situação, não há, também,
condição de apresentação de uma conclusão definitiva sobre a adequação das medidas tomadas.
Tanto os órgãos de execução de políticas públicas (área finalística e área meio), quanto os órgãos de
controle (interno e externo) tiveram que se adequar às mudanças impostas pela pandemia, marcada
por fatores exógenos agudos que exigiram medidas quase sempre determinadas em um sistema top-
down, ou seja, emanando da alta administração. Nesse sentido, o momento evidencia as decisões
de cunho político que orientarão os setores executores, como previsto no modelo consagrado por
Pettigrew.
Muitas das mudanças promovidas parecem estar sujeitas à continuidade com o fim da situação de
emergência. A automatização de processos e a possibilidade de trabalho remoto de maneira ampla,
por exemplo, podem trazer reflexos positivos, tanto na economia de recursos públicos, como em uma
melhora na qualidade da prestação do serviço.
O conteúdo da mudança provocada pela pandemia nas três áreas analisadas, brevemente relatado
e entendido como o conjunto das transformações, ações, reações e interações, levou à identificação
de iniciativas de atuação entre setores. Trata-se de alteração significativa impulsionada pela tomada
de decisão tempestiva, fato não corriqueiro na administração pública, geralmente cartorial ou, no
mínimo, protocolar.
Verificou-se, ainda, o fortalecimento dos controles internos para evitar que a flexibilidade em época
de emergência levasse a faltas éticas, ao mesmo tempo em que o próprio sistema de controle optou
por posturas mais educativas e menos punitivas, em entendimento de que a situação atual seria
totalmente inusitada.
Na área da gestão de pessoas, o desafio identificado foi manter os servidores em isolamento social,
trabalhando em suas casas dentro de padrões aceitáveis de saúde física e mental. Por outro lado,
algumas questões como a responsabilidade do Estado pelo fornecimento de acesso à internet aos
servidores em regime de trabalho remoto, bem como o provimento de melhores equipamentos
computacionais e até mobiliário ergonômico não se tornou objeto da discussão ora apresentada.
A possibilidade de implantação de rotinas com certa flexibilização dos processos legais, processuais
e até orçamentários pode ser apontada como oportunidade surgida em tempo de crise. No mesmo
sentido, há possibilidade de se dar novo significado à estratégia dos órgãos de controle que, sem abrir
mão do seu papel fiscalizador, podem contribuir para a boa governança e para o aprimoramento do
desempenho da gestão.
Em igual medida, a seleção do portfólio de serviços a ser mantido de modo presencial e a
institucionalização da mudança por meio de simplificação de processos, alocação adequada de
recursos e as novas formas de organização de trabalho podem ser marcas a serem deixadas para a
posteridade, permitindo que uma análise no futuro reconheça que a administração pública soube
lidar positivamente com a crise de maneira inesperada.
Como contribuições para o campo de estudos da administração pública, essas descobertas podem-
se aliar às demais pesquisas, ainda seminais, sobre os impactos da pandemia na sociedade. Mais

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especificamente, o estudo pode somar ao repositório ainda pouco desenvolvido de trabalhos sobre a
gestão pública em época de calamidades.
Como limitações, é necessário reconhecer que as escolhas metodológicas e as características da
pesquisa fazem com que os resultados não possam ser generalizados de per si. Ainda assim, acredita-
se que os resultados obtidos permitem a construção de observações com médio alcance que podem,
de fato, refletir a realidade de outras capitais de médio ou grande porte no Brasil. Além disso, não
foram abordadas de maneira aprofundada as questões da resistência à mudança entre os diversos
agentes ou nos procedimntos avaliados.
Conclui-se, ainda, que estudos acerca dos impactos da pandemia na execução de políticas públicas
devem continuar recebendo destaque no meio científico durante os próximos meses, senão anos.
Enfatizar a importância de textos que tragam uma visão complementar dessas primeiras impressões
torna-se, portanto, essencial, motivo pelo qual sugerem-se estudos futuros sobre o tema com maior
abrangência e qualidade metodológica.

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A APLICAÇÃO DA LEI N. 13.655/2018 PELO
TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE MINAS
GERAIS: DIAGNÓSTICOS E PERSPECTIVAS ACERCA
DA ANÁLISE DE EDITAIS DE CONCURSO PÚBLICO
THE APPLICATION OF LAW N. 13.655/20 18 BY THE AUDIT COURT
OF THE STATE OF MINAS GERAIS: DIAGNOSES AND PROSPECTS
ABOUT ANALYSIS OF PUBLIC TENDER NOTICES

Gabriel Venturim de Souza Grossi

CRÉDITO: PLATAFORMA LATTES


Especialista em Direito Administrativo pela LFG, Belo Horizonte,
MG, Brasil, e em Finanças Públicas pela Escola de Contas e
Capacitação Professor Pedro Aleixo, Belo Horizonte, MG, Brasil.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil.
CV:  http://lattes.cnpq.br/3043502666353545
E-mail: gabriel.grossi@tce.mg.gov.br

Resumo Abstract
A Lei n. 13.655/2018 realizou importante alteração The Law No. 13.655/2018, an important change
na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro was made in the Law of Introduction to the Rules of
(LINDB), visando valorizar a segurança jurídica, Brazilian Law (LINDB), aiming at enhancing legal
sobretudo no direito público. Na fiscalização certainty, especially in public law. In the supervision
realizada pelo Tribunal de Contas do Estado de carried out by the Audit Court of the State of Minas
Minas Gerais (TCEMG) sobre os editais de concurso Gerais (TCEMG) on public tender notices, the new
público, o novo normativo tem sido invocado standard has been invoked as a basis for votes,
como fundamento votos, acórdãos, pareceres e judgments, opinions and technical reports. In some
relatórios técnicos. Em alguns casos, a aplicação da cases, the application of Law No. 13.655/2018 is
Lei n. 13.655/2018 é realizada de forma ponderada carried out in a thoughtful and relevant manner. In
e pertinente. Em outros, entretanto, os novos others, nevertheless, the new articles added to the
artigos acrescidos à LINDB são invocados de forma LINDB are invoked in a possibly hasty or untimely
possivelmente precipitada ou inoportuna, apesar manner, despite the intention of safeguarding the
do intuito de resguardar a segurança jurídica dos legal certainty of the participants of the relations in
partícipes das relações em questão, mormente a question, especially those of the TCEMG jurisdiction.
dos jurisdicionados do TCEMG.

Palavras-chave: Lei n. 13.655/2019; Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro; segurança jurídica;
tribunais de contas; edital de concurso público.
Keywords: law no. 13.655/2018; law of introduction to the rules of brazilian law; legal certainty; audit courts;
public tender notice.

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1 INTRODUÇÃO
Promulgada em 2018, a Lei n. 13.655 promoveu o acréscimo de dez novos artigos à Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), pretendendo fomentar a segurança jurídica e a eficiência na
criação e na aplicação do direito público. Trata-se de alteração normativa de acentuada relevância,
com importantes consequências sobre a atividade de controle da administração pública. Transcorridos
dois anos da vigência do novo normativo, o cenário é propício para reflexões acerca de seus acertos
e desacertos, bem como de seu real impacto na interpretação e na aplicação do direito público,
mormente no que concerne à atividade de controle externo.
Visando compreender, de modo aprofundado, as principais implicações da Lei n. 13.655/2018 sobre
sua atuação, o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCEMG) instituiu, por meio de sua escola,
grupo de pesquisas e estudos sobre a nova legislação, formalizando, assim, um espaço institucional
de debates e produção de conteúdo. Ademais, foi desenvolvida a trilha de aprendizagem “Principais
aspectos da Lei n. 13.655/2018”, moderno projeto voltado à capacitação dos servidores do Tribunal, que
prestigia a autonomia e as individualidades dos agentes no processo de construção do conhecimento.
Nesse cenário, este trabalho concentra-se, a título de recorte metodológico, no estudo da aplicação
da Lei n. 13.655/2018 realizada pelo TCEMG, análise que será realizada a partir, sobretudo, de acórdãos
dessa Corte de Contas e de pareceres do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas do Estado de
Minas Gerais. A fim de permitir que essa incursão se realize com a profundidade devida, impõe-se bem
delimitar, também, o escopo da abordagem.
Nesse sentido, esta pesquisa debruça-se sobre o controle realizado pelo TCEMG, especificamente
diante dos editais de concurso público, recorte que, além de inserir-se na rotina de trabalho do
subscritor deste artigo, vai ao encontro, igualmente, da linha de pesquisa “funções, competências e
procedimentos dos tribunais de contas”, estabelecida pela Portaria n. 7/2017 para o Programa de Pós-
Graduação da Escola de Contas e Capacitação Professor Pedro Aleixo. O controle dos mencionados
instrumentos convocatórios constitui relevante atividade fiscalizadora, destinada a garantir a lisura
dos procedimentos de seleção de pessoal efetuada pela administração e a observância dos princípios
constitucionais, especialmente o da impessoalidade (art. 37, caput, da Carta Magna).
O referido recorte possibilita o trânsito por diversos e importantes dispositivos da nova lei, que
têm sido utilizados como fundamento de votos e acórdãos. Além disso, permite a contraposição de
entendimentos divergentes e oferece respaldo à discussão de inovações controversas trazidas pela
Lei n. 13.655/2018.
Dessa forma, este estudo adotará uma metodologia inicialmente empírica, estruturada a partir de
acórdãos e pareceres do TCEMG. Paralelamente, será realizada revisão da literatura acerca da matéria,
com a apresentação e a análise dos pontos de vista em confronto, de modo a viabilizar a construção
dialética de posicionamento crítico e fundamentado a respeito do tema em estudo.
Após a introdução, não se pode deixar de ressaltar o especial relevo de que se reveste o tema no
atual cenário de crise financeira por que passa o País, em que os entes federados não dispõem de
recursos suficientes para atender a todas as necessidades da população. Nesse ambiente de escassez
de recursos, ganham especial importância as ações de controle governamental e aperfeiçoamento
do setor público, destinadas a garantir a escorreita gestão da coisa pública e a prevenir fraudes e
irregularidades, contexto para o qual este estudo pretende ofertar contribuições.

50 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 49-65 jul./dez. 2020


2 CONTEXTUALIZAÇÃO
Neste capítulo, destinado à apresentação histórica da LINDB, será feita, inicialmente, breve incursão ao
contexto de promulgação do referido normativo.
Editado em 1942, o Decreto-Lei n. 4.657 disciplina a aplicação das normas jurídicas brasileiras e, até
o final de 2010, denominava-se “Lei de Introdução ao Código Civil” (LICC), refletindo uma época em
que a lei civil era o eixo vetorial do sistema jurídico pátrio. Por meio da Lei n. 12.376/2010, alterou-se a
ementa do referido decreto-lei, que passou a corresponder à Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro (LINDB)1.
Trata-se de um conjunto de normas sobre direito, isto é, um plexo de regras destinadas a regular a
validade, a vigência, a eficácia, a interpretação, a aplicação e a revogação de outras normas, versando,
por exemplo, sobre irretroatividade, ultra-atividade e efeito repristinatório. Além disso, delimita
conceitos importantes, como o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido (art. 6º).
Com origem na França, o ato normativo destinava-se, inicialmente, a orientar a aplicação do Código
Civil de 1916, por isso intitulando-se Lei de Introdução ao Código Civil (LICC); contudo, é fato
incontroverso que o decreto-lei em questão ostenta, desde sua edição, um alcance normativo mais
vasto e profundo, na medida em que traçava diretrizes fundamentais não apenas para o direito civil ou
para o direito privado, mas também para diversos outros ramos da dogmática jurídica.
Visando consolidar esse entendimento já cristalino a respeito do normativo, operou-se, em 2012,
alteração de sua ementa – e, consequentemente, de sua denominação usual – para LINDB. Sem
qualquer alteração no conteúdo do decreto-lei, a alteração legislativa realizada foi, por alguns,
considerada inócua, por supostamente pressupor que uma mera mudança de nomenclatura seria
capaz de interferir na essência do comando normativo. Por outro lado, a Lei n. 12.376/2012 cuidou de
oferecer ao Decreto-Lei n. 4.657/1942 um vocativo mais condizente com seu conteúdo, adequação
que, se desprovida de efeitos concretos substanciais, também não pode ser considerada prejudicial.
Na sequência desse breve histórico, passou-se a identificar, mais modernamente, que a regulação
então trazida pela LINDB não enfrentava situações carecedoras de atenção, como a insegurança
jurídica crescente, a expansão da compreensão tradicional da legalidade, a pluralidade de fontes
normativas e a complexidade da produção de atos normativos de hierarquia inferior à da lei,
sobretudo no âmbito do direito público. (MARQUES NETO; FREITAS, 2019, p. 7-10)
Com o fito de ofertar tratamento mais adequado a essas questões, foi promulgada, em 2018, a Lei
n. 13.655, acrescentando dez novos artigos à LINDB2. Conforme expresso em sua própria ementa, a
Lei n. 13.655/2018 pretende fomentar a segurança jurídica e a eficiência na criação e na aplicação
do direito público3.
Com a nova redação, a LINDB passou a regular, de forma expressa e específica, importantes aspectos
atinentes à função controladora, na qual se inserem os controles interno, externo e social. Neste

1
Artigo 1º da Lei n. 12.376/2012: “Esta Lei altera a ementa do Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942, ampliando o seu campo
de aplicação”.
2
O projeto de lei pretendia a inclusão de 11 artigos, porém aquele que seria o artigo 25 da LINDB foi objeto de veto presidencial.
3
Ementa da Lei n. 13.655/2018: Inclui no Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro), disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público.

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trabalho, foi considerado aquele exercido pelo Poder Legislativo, com o auxílio dos tribunais de
contas, nos termos do caput do artigo 71 da Constituição da República de 1988, aplicável, por
simetria (art. 75, caput), aos tribunais de contas dos estados e dos municípios, conforme se vê nos
artigos 71 e 75, transcritos a seguir.
Art. 71 - O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio
do Tribunal de Contas da União [...].
Art. 75 - As normas estabelecidas nesta seção aplicam-se, no que couber, à organização,
composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal,
bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios.

Estabeleceram-se parâmetros e diretrizes, por exemplo, para a interpretação de normas sobre


gestão pública (art. 22, caput), a aplicação de sanções a agentes públicos (art. 22, §§ 2º e 3º)
responsabilização desses em razão de suas decisões e opiniões técnicas (art. 28).
Como normalmente se dá com reformas legislativas de relevo, tal qual o advento do Código de
Processo Civil de 2015, a alteração da LINDB tem ensejado, desde a tramitação do projeto de lei
que a viabilizou4, inúmeros debates, sobretudo na seara acadêmica e no setor público. Atualmente,
transcorrido pouco mais de um ano da plena vigência da Lei n. 13.655/20185, o cenário é bastante
propício para reflexões acerca dos acertos e dos desacertos da nova legislação, bem como de seu real
impacto na interpretação e na aplicação do direito público, mormente no contexto da atividade de
controle externo.
Recentemente, novos elementos foram acrescidos às discussões, tendo em vista a edição do Decreto
federal n. 9.830, de 10/7/2019, que regulamentou o disposto nos artigos 20 a 30 da nova LINDB.
Ademais, na mesma semana, o Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA) realizou seminário
docente em que se discutiram os impactos da Lei n. 13.655/2018 sobre o referido ramo do direito,
oportunidade em que foram aprovados 21 enunciados concernentes à interpretação da LINDB e a sua
relação com o direito administrativo.
Diante desse histórico e, sobretudo, das recentes inovações indicadas, discorre-se especificamente
sobre a Lei n. 13.655/2018 e suas consequências para o direito público. Nesse sentido, serão abordados
o contexto jurídico em que se originou a nova lei, os principais elementos do novo normativo e os
principais debates que se instalaram e têm-se fortalecido desde antes da promulgação do texto.

3 A LEI N. 13.655/2018 E O DIREITO PÚBLICO


Conforme se destacou, o Decreto-Lei n. 4.657/1942 foi editado na vigência e sob a influência do Código
Civil de Beviláqua, cujos pilares eram as figuras da família, da propriedade e da relação contratual6.
Mesmo com a alteração de nomenclatura realizada pela Lei n. 12.376/2010, a LINDB teria seguido
fortemente atrelada ao direito privado, além de restringir-se a problemas de interpretação do século
passado.

Projeto de Lei do Senado n. 3.489/2015, posteriormente convertido no Projeto de Lei n. 7.448/2017.


4

Ao contrário dos demais artigos, que tiveram vigência imediata a partir da publicação, em 26/4/2018, o artigo 29 entrou em vigor
5

somente após decorridos 180 dias da publicação, ou seja, em outubro de 2018.


MARQUES NETO; FREITAS, 2019 p. 7.
6

52 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 49-65 jul./dez. 2020


Visando discutir essas questões sob a perspectiva do direito público e refletir sobre uma nova
estrutura orgânica para a administração pública, o Ministério do Planejamento criou, em 2007,
comissão de juristas composta por professores especialistas em direito administrativo e coordenada
pela professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro7. A partir dos diagnósticos e das ideias trabalhadas no
âmbito dessa comissão, bem como no ambiente acadêmico do Grupo Público da Fundação Getúlio
Vargas (FGV) Direito SP8 e da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP)9, foi divulgada, em 2013, a
proposta normativa que viria a originar a Lei n. 13.655/2018.
O referido anteprojeto foi apresentado em artigo intitulado “Uma nova lei para aumentar a qualidade
jurídica das decisões públicas e de seu controle”, de autoria dos professores Carlos Ari Sundfeld e
Floriano de Azevedo Marques Neto (2013), considerados os principais precursores da nova lei.
Neste trabalho, os principias problemas identificados pelos autores Duque e Ramos (2019, p. 22) foram
os seguintes.
O alto grau de indeterminação de grande parte das normas públicas; a relativa incerteza,
inerente ao Direito, quanto ao verdadeiro conteúdo de cada norma; a tendência à
superficialidade na formação do juízo sobre complexas questões jurídico-públicas; [...];
a instabilidade dos atos jurídicos públicos, pelo risco potencial de invalidação posterior,
nas várias instâncias de controle; os efeitos negativos indiretos da exigência de que as
decisões e controles venham de processos (que demoram, custam e podem postergar o
cumprimento de obrigações); o modo autoritário como, na quase totalidade dos casos,
são concebidas e editadas normas pela Administração Pública.

Em função de tais excessos e distorções, foram apresentadas, no anteprojeto, algumas medidas com
base nas seguintes diretrizes expostas pelos professores Marcelo Schenk Duque e Rafael Ramos (2019.
p. 23-24).
É preciso combater a tendência à superficialidade na formação do juízo sobre questões
jurídico-públicas pela adoção do paradigma de que as autoridades não podem
tomar decisões desconectadas do mundo real; de que elas têm o dever de medir as
consequências, de considerar alternativas, de analisar a necessidade e a adequação
das soluções cogitadas, de pesar os obstáculos e as circunstâncias da vida prática etc.
Além disso, em nome da segurança jurídica, é preciso impedir que, por via de simples
interpretação de normas totalmente indeterminadas, as autoridades instituam, sem um
regime adequado de transição, deveres e proibições específicas para sujeitos certos,
modificando situações jurídicas com efeitos em relação ao passado.
[...]. É preciso impedir que pessoas sejam pessoalmente responsabilizadas apenas por
não terem adivinhado, à época, a futura orientação das autoridades finais de controle.
O risco de, em virtude de incertezas jurídicas ou mudanças de orientação, ocorrer
responsabilização ou perda patrimonial para o gestor ou para os particulares paralisa
e distorce a atividade decisória. É preciso melhorar a proteção das pessoas envolvidas
nessas situações.
A outorga às autoridades de poderes para buscar soluções negociadas com particulares,
em procedimentos passíveis de controle, é positiva para que se alcance um índice mais
elevado de cumprimento das obrigações, para diminuir incertezas e para eliminar ou
abreviar conflitos.

7
Comissão de Juristas constituída pela Portaria n. 426, de 6/12/2007, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
8
Sob a supervisão do professor Carlos Ari Sundfeld, o Grupo Público desenvolve pesquisas e propõe inovações no direito público,
contribuindo para a mudança cultural na gestão pública brasileira.
9
Também presidida pelo professor Carlos Ari Sundfeld, é uma entidade científica não governamental e sem fins lucrativos, ativa
desde 1993, voltada ao estudo e à inovação do direito público.

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 49-65 jul./dez. 2020 53


[...]. Os regulamentos administrativos são, na atualidade, os maiores responsáveis pelo
surgimento de novas normas, sendo imenso seu impacto na definição dos direitos,
deveres e proibições. [...]. A edição de regulamentos em qualquer matéria [...] deve
envolver consulta pública, para que a autoridade responsável tenha conhecimento,
de modo organizado e democrático, dos problemas, ponderações e sugestões dos
interessados que quiserem participar.

Em 2015, o anteprojeto elaborado pelos professores recebeu apoio decisivo do senador Antônio
Anastasia, também professor de direito administrativo, responsável por apresentá-lo ao parlamento
sob a forma do Projeto de Lei do Senado n. 349/2015. Após sua aprovação no Senado Federal, o
referido projeto de lei tramitou na Câmara dos Deputados sob o n. 7.448/2017, tendo sido, ao final,
sancionado pelo presidente da República, porém com vetos.
Nos termos de sua ementa, a Lei n. 13.655/2018 inclui, no Decreto-Lei n. 4.657/1942, “disposições sobre
segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público”. A respeito do propósito da
legislação em comento, o professor Carlos Ari Sundfeld (2019, p.10) registra que, “quando me pedem
uma palavra breve sobre a nova LINDB e o direito administrativo, explico que seu objetivo profundo é
superar a simplificação, a legalidade do senso comum”.
De modo mais aprofundado, observa-se, a partir de comentários elaborados pelos professores
Floriano de Azevedo Marques Neto e Rafael Véras de Freitas (2019, p. 7-10), que os artigos
acrescentados à LINDB têm como objetivo explícito “reforçar a segurança jurídica num quadro de
incerteza e de mudança permanente”, estando balizados em três fatores, a saber: I) a ampliação do
sentido da legalidade e a pluralidade de fontes normativas; II) a complexidade da regulação, que faria
as prescrições serem mais abertas e menos precisas; e III) a multiplicação dos polos legitimados para
aplicação do direito.
A partir desses balizamentos, torna-se possível compreender o conteúdo adotado pela Lei n.
13.655/2018 para a segurança jurídica, como se pode perceber pelo seguinte enunciado de Marques
Neto e Freitas (2019. p. 18).
E aí chegamos aos três vetores da segurança jurídica. A segurança jurídica
tem uma vertente da estabilidade, na medida em que dá perenidade aos atos
jurídicos e aos efeitos deles decorrentes, mesmo quando houver câmbios nas
normas ou no entendimento que se faz delas. Tem um vetor de previsibilidade,
protraindo mudanças bruscas, surpresas, armadilhas. E, por fim, tem um vetor
de proporcionalidade (e de ponderabilidade), na medida em que a aplicação
do Direito não pode nem ser irracional, nem desproporcional. É, exatamente,
nesses três sentidos que a Lei nº 13.655/18 veio reforçar a aplicação da
segurança jurídica no âmbito do Direito Público.

Assentada, portanto, nesses pilares e objetivos – os quais, ressalte-se, foram aqui expostos, nesse
momento inicial, a partir do ponto de vista dos responsáveis pela concepção da lei –, a Lei n.
13.655/2018, que aborda aspectos como a proteção à confiança legítima (artigos 21, 23, 24 e 30), a
consideração da realidade fática dos gestores e das consequências práticas das decisões (artigos 20
e 22), o consensualismo na solução de conflitos (artigo 26) e a responsabilização de agentes públicos
(artigo 28). No entanto, apesar de não haver dúvidas sobre a importância dos objetivos pretendidos
com a nova lei, o tratamento dado aos elementos supramencionados tem suscitado renhidos debates,
desde a tramitação dos projetos de lei.

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Com precisão, os professores Marcelo Schenk Duque e Rafael Ramos (2019, p. 14) apontam que o
normativo, objeto deste estudo, pode ser considerado “uma das inovações jurídicas mais complexas
dos últimos tempos”. Em obra destinada a discutir se a Lei n. 13.655/2018 “logrará êxito em contribuir
para diminuir a insegurança jurídica no nosso país ou se será apenas mais uma lei, entre tantas,
carregada de eficácia cosmética”, os autores sustentam que qualquer alteração no Decreto-Lei n.
4.657/1942 atrai grandes responsabilidades, por se tratar de norma de prestigiada tradição jurídica e
destinada, justamente, a regulamentar a interpretação e a aplicação de outras normas.
Em vista dessa acentuada relevância, torna-se evidente que alterações da LINDB requerem amplo
debate legislativo, com abertura à participação da sociedade e dos setores interessados. Nesse ponto,
reside a primeira polêmica em torno da Lei n. 13.655/2018. Seus defensores sustentam que “o projeto
tramitou, por mais de três anos, no Congresso, com audiências públicas e debates”10, tendo recebido
“amplo apoio de economistas, juristas, administradores públicos e formadores de opinião dos mais
variados matizes”11.
Destaca-se, nesse sentido, o estudo “Segurança jurídica e qualidade das decisões públicas: desafios
de uma sociedade democrática”, coordenado por Flávio Henrique Unes Pereira, professor e assessor
do Senador Antônio Anastasia, relator do Projeto de Lei n. 349/2015. Nessa obra – que, segundo seu
coordenador12, teria sido amplamente divulgada nos órgãos de controle, em especial nos tribunais de
contas –, buscou-se analisar e apresentar aos interessados, ainda durante a tramitação do projeto de
lei que originou a Lei n. 13.655/2018, o conteúdo e os fundamentos de cada novo artigo proposto13.
Em sentido diametralmente oposto14, denuncia-se o suposto “déficit de legitimidade democrática
da Lei n. 13.655/2018”, em razão de os órgãos de controle não terem sido chamados a participar
de nenhum dos debates sobre o PL n. 7.448/2017, seja antes, seja após sua chegada ao Congresso
Nacional. Além disso, teria ocorrido apenas uma audiência no Senado Federal, a qual teria contado
com a participação de apenas dois representantes do Poder Executivo e um dos municípios. Já na
Câmara dos Deputados, não teria ocorrido sequer uma única audiência, tendo o projeto sido aprovado
somente nas comissões, em caráter conclusivo, sem passar pelo Plenário.
Fora do âmbito legislativo, merece destaque, também, o debate estabelecido entre a academia,15
os órgãos e as associações ligadas ao controle, sobretudo entre a SBDP e a Consultoria Jurídica do
Tribunal de Contas da União (TCU). Inicialmente, a mencionada consultoria produziu documento
intitulado “Análise preliminar do PL n. 7.448/2017”, no qual apontou os pontos críticos do projeto
que mereciam, a seu ver, ser vetados pelo presidente da República. Em defesa do projeto de lei, a
SBDP elaborou “Parecer-resposta à análise preliminar realizada pela Consultoria Jurídica do TCU”,

Afirmação feita pelos autores do PL n. 7.448/2018 no Parecer-Resposta à Análise Preliminar Realizada pela Consultoria Jurídica do
10

TCU.
idem.
11

PEREIRA, 2019.
12

PEREIRA, 2015.
13

OLIVEIRA, 2018, p. 25.


14

A professora Irene Patrícia Nohara considera que, no âmbito acadêmico, não teria havido debate satisfatório sobre o PLS n. 349/2015
15

e o PL n. 7.448/2017, reputando parcas e insuficientes as oportunidades em que o tema foi discutido. Manifestação expressa na
mesma mesa de debates indicada na nota de rodapé n. 25, da qual também fez o conselheiro substituto do TCEMG Licurgo Mourão.

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assinado pelos dois autores do projeto de lei e por mais 16 juristas. A título de réplica, a Consultoria
Jurídica do TCU exarou novo parecer, no qual examinou os argumentos trazidos pelo citado “parecer-
resposta”.
Ainda nesse contexto, a proposta legislativa foi objeto de diversas outras manifestações – favoráveis
e contrárias à sanção presidencial do projeto de lei –, das quais merecem destaque as seguintes
manifestações:
(i) a Nota Técnica do Ministério Público Federal (MPF); (ii) a Nota Técnica do Conselho
Nacional de Procuradores-Gerais de Contas (CNPGC) e a da Associação Nacional do
Ministério Público de Contas (AMPCON); (iii) a Nota Técnica da Associação dos Membros
dos Tribunais de Contas do Brasil (ATRICON) e a da Associação Nacional dos Ministros e
dos Conselheiros Substitutos dos Tribunais de Contas (AUDICON); (iv) a Carta Aberta da
Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil
(ANTC) e a da Associação de Auditoria de Controle Externo do Tribunal de Contas da
União (AUD-TCU); (v) a Nota Técnica da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça
do Trabalho (ANAMATRA); e (vi) a Nota Técnica do Colégio Nacional de Presidentes de
Tribunais de Contas.

Os debates iniciados durante a tramitação dos projetos de lei não só se mantiveram após a
promulgação da Lei n. 13.655/2018, como se intensificaram e alcançaram outras arenas, como
o Poder Judiciário. Prova disso é a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 6.146, proposta
em 22/5/2019 pela Anamatra, em face dos artigos 20 a 23 da LINDB. Em suma, a entidade de
classe aponta a necessidade de conferir aos mencionados dispositivos interpretação conforme a
Constituição da República, “para observaram os princípios da separação de poderes (art. 2º) e do
contraditório (art. 5º, LV), sob pena de invalidade”16.
No bojo da referida ADI, peticionou o Centro de Estudos de Direito Administrativo, Ambiental e
Urbanístico (CEDAU), requerendo seu ingresso na ação como amicus curiae, enquanto o Conselho
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) não só requereu sua participação na ação, como
também já apresentou suas razões. Na ocasião, o CFOAB impugnou, preliminarmente, a legitimidade
ativa da Anamatra para a propositura da ADI e, no mérito, manifestou-se pela improcedência da ação,
em razão da constitucionalidade das normas atacadas, que buscariam aprimorar a ação decisória
estatal. Desde 23/8/2019 e até o momento de conclusão do presente artigo, os autos da ADI n. 6146
encontram-se conclusos, aguardando despacho do relator, ministro Celso de Mello.
Apresentados, os principais embates atinentes à Lei n. 13.655/2018, cabe adentrar no estudo de
dispositivos específicos da lei, tendo por base, como já mencionado, o controle realizado pelo TCEMG
sobre os editais de concurso público.

4 A APLICAÇÃO DA LEI N. 13.655/2018 NOS PROCESSOS DE EDITAL DE


CONCURSO PÚBLICO
Inicialmente, importa destacar que a fiscalização dos editais de concurso público insere-se, em um
contexto mais amplo, no controle da legalidade dos atos de admissão, missão constitucionalmente
atribuída aos tribunais de contas pelo artigo 71, III, da Constituição da República e pelo artigo 76, V, da
Constituição do Estado de Minas Gerais, conforme se segue.

Conforme extraído da primeira página da petição inicial da ADI n. 6164, obtida no site do Supremo Tribunal Federal (STF).
16

56 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 49-65 jul./dez. 2020


Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio
do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:
[...]
III – apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer
título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas
pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão,
bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as
melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório.
Art. 76. O controle externo, a cargo da Assembleia Legislativa, será exercido com o auxílio
do Tribunal de Contas, ao qual compete:
[...]
V – apreciar, para o fim de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a
qualquer título, pelas administrações direta e indireta, excluídas as nomeações para
cargo de provimento em comissão ou para função de confiança.

Diante da competência exposta, segundo a professora Luciana Moraes Sardinha Pinto (2007), é
possível observar que o legislador constituinte privilegiou, de forma inegável, o controle externo,
concedendo aos tribunais de contas uma posição de destaque no auxílio do Poder Legislativo. Nesse
contexto, destaca Sardinha Pinto (2007, pp. 8-19) o que se segue.
A partir da Constituição Federal de 1988 e da Constituição Estadual de 1989, o Tribunal
de Contas do Estado de Minas Gerais teve de adaptar-se à nova ordem institucional,
surgindo, como consequência, sua nova Lei Orgânica – a Lei Complementar n. 33, de
28/06/94 – e o novo Regimento Interno – Resolução n. 10, de 03/07/96.

Nesse cenário, de considerável ampliação das atribuições dos tribunais de contas e de atualização
dos normativos internos aplicáveis, a atual Lei Orgânica do TCEMG (Lei Complementar Estadual n.
102/2008) consagrou, como atividade fiscalizadora inerente ao controle a fiscalização sobre os atos
de admissão e a análise dos editais de concurso público: “Art. 3º – Compete ao Tribunal de Contas: [...]
XXXI – fiscalizar os procedimentos de seleção de pessoal, de modo especial os editais de concurso
público e as atas de julgamento”.
O exame prévio dos editais de concurso público constitui medida de caráter preventivo, destinada
a zelar pela adequada oferta e pelo regular provimento dos cargos e empregos públicos. Assim,
considerando que os vínculos estabelecidos entre a administração e seus servidores perduram,
normalmente, por longo período de tempo e que, conforme amplamente sabido, a maior parte dos
gastos públicos concentra-se nas despesas com pessoal17, o controle dos editais de concurso público
reveste-se de especial relevância, oferecendo significativa contribuição para a profícua gestão dos
recursos públicos.
No contexto da mencionada fiscalização, a Lei n. 13.655/2018 tem sido invocada por conselheiros,
conselheiros substitutos, procuradores e pela unidade técnica do TCEMG como fundamento em
votos, acórdãos, pareceres e relatórios técnicos. Além disso, a limitação da análise dos impactos da
nova LINDB ao escopo dos editais de concurso público também se justifica por se tratar de recorte que
permite o trânsito por diversos dispositivos e institutos do novel normativo.
Feito esse breve introito, passa-se à análise do artigo 21, que dispõe como se segue.

Nas esferas estadual e municipal, o limite estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n.101/2000) para as
17

despesas com pessoal é de 60% da receita corrente líquida do ente, conforme artigo 19, II e III.

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 49-65 jul./dez. 2020 57


Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a
invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de
modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.
Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso,
indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime
e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus
ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.

A respeito desse dispositivo, destacam-se dois acórdãos prolatados pela Segunda Câmara do TCEMG.
No primeiro deles, em razão de o concurso público examinado já se encontrar encerrado no momento
da prolação do acórdão, invocou-se o parágrafo único do artigo 21 para salientar a impossibilidade
de imposição de ônus ou perdas anormais ou excessivas e a inviabilidade da realização de correções
no edital naquele momento, mesmo tendo sido identificadas irregularidades no instrumento
convocatório, devendo-se considerar, ainda, que eventual anulação do certame poderia ser mais
prejudicial ao interesse público que a manutenção do referido ato. Assim, caberia perquirir somente
acerca do eventual cabimento de multa ao gestor responsável.
Diante de tal circunstância, entendo perfeitamente aplicável ao presente caso o disposto
no art. 21, parágrafo único, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, com as
alterações promovidas pela Lei n. 13.655/2018. Segundo tal dispositivo, a decisão que
nas esferas administrativa, controladora ou judicial decretar a invalidação de ato, ajuste,
contrato, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas
consequências jurídicas, bem como, quando for o caso, indicar as condições para que
a regularização ocorra de modo proporcional e equânime, sem prejuízo aos interesses
gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das
peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.
Sabendo do encerramento do concurso regido pelo Edital n. 02/2016, entendo ser
inviável determinar a realização de correções no instrumento convocatório neste
momento. Como não há indícios de danos concretos ao Município ou aos candidatos
do concurso, eventual anulação do certame seria mais prejudicial ao interesse público
do que a manutenção do ato. Nesse sentido, há que perquirir, somente, sobre as
inconsistências verificadas e o eventual cabimento de multa ao gestor responsável18.

Diante do aludido caso concreto, cumpre observar, primeiramente, que tanto o caput como o
parágrafo único do artigo 21 referem-se – especificamente e de modo bastante claro – às hipóteses
de decisões pela invalidação de atos, o que não ocorre no julgado em comento. Com efeito, conforme
Marques Neto (2019, p. 43), “a norma contida no artigo 21 cinge-se às decisões que invalidam ato,
contrato, processo ou norma”. Dessa forma, verifica-se que a norma em questão foi conduzida a um
campo de aplicação que excede seu escopo. Para além da constatação dessa circunstância, deve-se
ressaltar que a ampliação realizada é, ainda, injustificada.
Isso se dá porque a imposição – por uma decisão judicial, administrativa ou controladora – de ônus ou
perdas anormais ou excessivas aos sujeitos envolvidos já era conduta rechaçada pelo ordenamento
jurídico antes mesmo da Lei n. 13.655/2018. Nesse sentido, destaca-se o princípio da razoabilidade, o
qual, embora não expresso no texto constitucional, é considerado como decorrência direta do princípio
do devido processo legal19 e se encontra positivado no caput do artigo 2º da Lei n. 9.784/1999. Com
precisão, Daniela Zago Gonçalves da Cunda (2019, p.10), conselheira substituta do Tribunal de Contas
Edital de Concurso Público n. 980580, Prefeitura Municipal de Mar de Espanha, Segunda Câmara, sessão realizada em 9/5/2019.
18

BORTOLETO, 201, p. 54.


19

58 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 49-65 jul./dez. 2020


do Estado do Rio Grande do Sul (TCERS), sustenta que os parâmetros para a estruturação do “dever
de regularização” contido no parágrafo único do artigo 21 coincidem com os da proporcionalidade:
a regularização deverá ser “adequada” à finalidade de restauração da legalidade; deverá ser
“necessária”, ou seja, exigir o menor sacrifício em comparação com as possibilidades equivalentes;
e ser “proporcional em sentido estrito”, isto é, contemplar a análise de custos e benefícios e sopesar
externalidades positivas e negativas.
Ademais, o agora vetusto artigo 5º da própria LINDB, ao impor o atendimento – no momento de
aplicação da lei – aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, já endereçava os
mesmos objetivos ora veiculados pelo parágrafo único do artigo 21, sendo essa uma das circunstâncias
que revela a “desnecessidade” do dispositivo20. Dessa forma, a respeito do primeiro caso analisado,
observa-se que a aplicação da Lei n. 13.655/2018 deu-se de forma possivelmente inoportuna.
Em sentido semelhante, na apreciação do Edital de Concurso Público n. 1.031.213, o dispositivo
sob exame também foi aplicado fora de um contexto decisório referente à invalidação de atos
administrativos, como se pode ver a seguir 21:
Em relação à não previsão de formas de entrega do laudo médico pelos candidatos,
embora reconheça a irregularidade da falta de regulamentação, acolho a justificativa do
gestor, já que, embora não tenha sido expressamente prevista no edital a possibilidade
de apresentação de laudo, a municipalidade admitiu os referidos documentos dos
candidatos que os apresentaram. Não se justifica nesse caso a aplicação de sanção
ao prefeito, com fundamento, principalmente, no art. 21, parágrafo único, da Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro, modificada pela Lei n. 13.655/2018. Pelas
razões expostas, considero justificado o apontamento.

No caso em tela, o relator apontou que, após os exames da unidade técnica e do Ministério Público
junto ao Tribunal de Contas, tinha-se por procedente o apontamento referente à ausência de previsão,
no edital, das formas de entrega do laudo médico a ser feita pelos candidatos. Diante, então, dessa
circunstância, valeu-se o relator do apontado dispositivo para, embora reconhecendo a irregularidade
da situação, acolher a justificativa apontada pelo gestor e afastar a aplicação de sanção.
Após o voto do relator, foi inaugurada divergência, e proferido “voto-vista”, o qual, embora aprovado,
não modificou os fundamentos daquele em relação ao excerto apresentado. Dessa forma, percebe-se,
uma vez mais, que, embora o entendimento final adotado mostre-se adequado às circunstâncias do
caso concreto, mesma qualificação não pode ser atribuída ao abrigo buscado no artigo 21 da LINDB,
o qual, conforme exposto, direciona-se às decisões de invalidação.
Outro dispositivo da LINDB que tem sido aplicado no controle dos editais de concurso público e que
merece detida análise é o artigo 22, que prescreve o seguinte.
Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os
obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu
cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.
§ 1º. Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste,
processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que
houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.

OLIVEIRA, 2018, p. 52.


20

Edital de Concurso Público n. 1031213, Prefeitura Municipal de Camanducaia, Segunda Câmara, sessão realizada em 18/6/2019.
21

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 49-65 jul./dez. 2020 59


§ 2º. Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração
cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias
agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente.
§ 3º. As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais
sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato.

Em relação ao normativo ora transcrito, insta relevar, inicialmente, o Edital de Concurso Público
n. 1.007.738, em que se debateu, entre outros pontos, a exigência do edital de prova prática para os
cargos de motorista. A despeito do entendimento da unidade técnica e do Ministério Público, que
consideraram razoável a referida exigência, o colegiado competente reputou a previsão de prova
prática irrazoável e reveladora de potencial invasão da competência estadual, já que não caberia aos
municípios executar funções relativas à formação e à avaliação de condutores.
Lado outro, por considerar a inexistência de indícios de prejuízos concretos aos candidatos submetidos
ao exame, já que não constam dos autos quaisquer impugnações ao resultado da prova, deixou-se de
aplicar multa ao gestor, fundamentando-se tal opção no artigo 22 da LINDB, “na medida em que [esse
dispositivo] veda a aplicação das normas legais em desconexão com os fatos concretos que ensejaram
a atuação do controle”22.
A respeito do entendimento exarado no acórdão exposto, verifica-se que poderia ter sido indicada,
de modo mais específico, qual seção – caput ou parágrafo – do artigo 22 de fato fundamentou o
afastamento da sanção no caso concreto, uma vez que o dispositivo em comento congrega distintos
comandos normativos. De toda forma, é possível inferir que a “conexão com os fatos concretos”
mencionada no acórdão corresponda ao disposto no caput e no primeiro parágrafo do artigo, que
pregam a consideração dos obstáculos e das dificuldades reais do gestor, bem como das exigências
das políticas públicas e das circunstâncias práticas que haviam condicionado sua ação. Todos esses
aspectos e circunstâncias não foram, no entanto, bem explicitados no acórdão, que não apresenta,
de modo claro, as premissas fáticas que permitam a subsunção do caso aos ditames do artigo 22 da
LINDB.
Ainda com relação ao caso sob exame, é pertinente realizar análise comparativa com o já abordado
Edital de Concurso Público n. 980.580, em que se aplicou o artigo 21 da LINDB. Naqueles autos,
conforme já se indicou, a Lei n. 13.655/2018 foi invocada para fundamentar I) o descabimento da
determinação de correção do edital e da anulação do certame e II) o cabimento da aplicação de multa,
uma vez que o concurso já havia se encerrado e não havia indícios de danos ao interesse público ou
aos candidatos. Já no Edital de Concurso Público n. 1.007.738, essas mesmas circunstâncias – concurso
encerrado e ausência de prejuízo aos candidatos e ao interesse público – ensejaram, com base também
na LINDB, o afastamento inclusive da aplicação de multa ao gestor.
A aplicação de entendimentos distintos a casos semelhantes é ainda mais nítida quando o Edital de
Concurso Público n. 1.007.738 é comparado com o Edital n. 969.353, que também se debruçou sobre
a previsão de prova prática para o cargo de motorista. Nos primeiros autos, conforme já exposto,
invocou-se o artigo 22 da LINDB para, em conjunto com os elementos do caso concreto, afastar-se a
aplicação de multa. Já nos autos n. 969.353, em que se analisou idêntica matéria, foi aplicada multa

Edital de Concurso Público n. 1.007.738, Prefeitura Municipal de Paraguaçu, Primeira Câmara, sessão realizada em 6/8/2019.
22

60 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 49-65 jul./dez. 2020


ao gestor responsável, tendo o artigo 21 da Lei de Introdução respaldado somente a decisão de não
invalidar o certame e de não determinar a realização de correções, como se pode ver a seguir.
A conduta de prever prova prática para o cargo de motorista é grave e enseja a aplicação
de multa ao gestor. Por outro lado, uma vez já realizadas as provas e homologado o
concurso, há quase três anos, não se vislumbra a possibilidade de, nesse momento,
promover-se correções no edital com vistas a extirpar a previsão ilegal. Destaca-se ainda
que não constam nos autos evidências de prejuízos concretos aos candidatos em razão
da exigência desarrazoada. A providência de anulação das provas do concurso relativas
ao cargo de motorista, com a consequente desconstituição dos atos decorrentes
(homologação do concurso, nomeação e posse dos candidatos aprovados), mostra-se
potencialmente mais danosa ao interesse público.
Nesse sentido, com fundamento no art. 85, inciso II, da Lei Orgânica, aplico multa ao
prefeito Humberto Fernando Campelo Reis. Por outro lado, com esteio no art. 21 da
LINDB deixo de determinar as demais consequências do reconhecimento da nulidade
da cláusula editalícia que previu a realização de provas práticas para o cargo de
motorista, haja vista o risco de as repercussões da invalidação despontarem como a
solução mais prejudicial aos interesses do Município e dos candidatos aprovados, diante
das circunstâncias do caso concreto23.

A aplicação de entendimentos distintos a casos semelhantes, com amparo na mesma lei, evidencia
que a aplicação do novo normativo, ao menos na seara dos editais de concurso público, é – apesar dos
esforços que têm sido empreendidos pelo Tribunal no sentido de fomentar seu estudo e sua adequada
compreensão – ainda incipiente, havendo espaço para seu aprimoramento.
A aplicação da Lei n. 13.655/2018 tem espaço, também, na análise do Edital de Concurso Público
n. 1.047.654, em que se discutiu a concessão de isenção do pagamento da taxa de inscrição24. Na
oportunidade, prevaleceu o entendimento de que a demonstração, a ser realizada pelo candidato, da
ausência de recursos suficientes para arcar com a taxa de inscrição sem prejuízo do sustento próprio
ou de sua família pode ser feita por qualquer meio legalmente admitido.
Não obstante o reconhecimento de que as restrições trazidas pelo edital contrariam o entendimento
já elucidado, considerou-se, na ocasião, que a avançada tramitação do concurso e a citação do gestor
em data posterior à data de encerramento das inscrições inviabilizaram a promoção, em tempo hábil,
das correções que seriam necessárias, razão pela qual essas correções não foram determinadas no
acórdão. Nesse caso, ao contrário do julgado anterior, indicou-se, com precisão, a aplicação do § 1º
do artigo 22 da LINDB, destacando-se, no exame sobre a regularidade do edital, uma circunstância
prática que inviabilizaria a determinação, na decisão, de correções no edital, conforme se pode ver a
seguir.
Em que pese a irregularidade constatada, a Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro (LINDB), modificada pela Lei n. 13.655/2018, prevê que em decisão sobre
regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma
administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto,
limitado ou condicionado a ação do agente (Art. 22, §1). No caso em análise, ficou
demonstrada a inviabilidade de o prefeito promover as correções pretendidas, face à
avançada tramitação do concurso e à citação posterior à data do encerramento das
inscrições.

Edital de Concurso Público n. 969.353, Prefeitura Municipal de Jequitibá, Segunda Câmara, sessão realizada em 4/4/2019.
23

Edital de Concurso Público n. 1.047.654, Prefeitura Municipal de Conceição do Pará, Segunda Câmara, sessão realizada em 25/4/2019.
24

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 49-65 jul./dez. 2020 61


Pelas razões expostas, tendo em vista a inexistência de pendências passíveis de
aplicação de multa, e diante da inocorrência de danos aos candidatos do concurso
ou ao erário, julgo regular o Edital n. 01/2018 e determino a extinção dos autos, com
resolução do mérito, nos termos do art. 71, §2º, da Lei Orgânica deste Tribunal de Contas
(Lei Complementar Estadual n. 102/2008).

Prosseguindo na análise, importa destacar também, o artigo 24 da nova lei, que buscou salvaguardar
a segurança jurídica de cidadãos e jurisdicionados diante de atos decisórios, tendo em vista,
sobretudo, a noção de ato jurídico perfeito e a necessidade de se conferirem mais estabilidade,
previsibilidade e proporcionalidade às relações estabelecidas no direito público,25 conforme se vê
no artigo 24 a seguir.
Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade
de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver
completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com
base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações
plenamente constituídas.
Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações
contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou
administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de
amplo conhecimento público.

A aplicação desse dispositivo na fiscalização dos concursos públicos pode ser visualizada, dessa
vez, não em um acórdão do TCEMG, mas em um parecer do Ministério Público, emitido nos autos
do Edital de Concurso Público n. 1.024.589. O edital em questão, referente ao concurso da Polícia
Militar do Estado de Minas Gerais (PMMG), previa a devolução da taxa de inscrição nas hipóteses de
cancelamento ou suspensão do processo seletivo. Em seu relatório, a unidade técnica considerou que
a referida devolução deveria ser possível, também, em caso de alteração da data das provas ou de
pagamento em duplicidade ou extemporâneo.
Mesmo reconhecendo a pertinência da observação feita pela unidade técnica, o salientou que
as hipóteses de devolução da taxa de inscrição estão de acordo com o disposto na Lei estadual n.
13.801/2000, cujos artigos foram colacionados àqueles autos. Em face dessa circunstância e do
disposto no caput do artigo 24 da LINDB, a manifestação ministerial destacou, com razão, que “o
controle externo deve se pautar nos limites estabelecidos na legislação vigente, imprimindo-se maior
segurança jurídica à atuação da Administração”26.
Considerando que uma das formas mais efetivas de se prestigiar a segurança jurídica está no
cumprimento das leis e da Constituição27, observa-se, no caso em estudo, que o edital em questão
foi, na condição de ato administrativo, adequadamente preservado no ponto discutido (restituição da
taxa de inscrição), porquanto praticado em consonância com a norma de regência. Aplicar, nesse caso,
entendimento que alarga o comando normativo consubstanciaria ofensa ao princípio da segurança
jurídica, tendo em vista que o jurisdicionado amparou-se, precisamente, no texto da Lei n. 13.801/2000,
tendo, inclusive, feito referência expressa a essa lei no texto do edital.

MARQUES NETO; FREITAS, 2019, p. 89.


25

Edital de Concurso Público n. 1.024.589, Polícia Militar do Estado de Minas Gerais, data do parecer: 21/6/2018.
26

CÂMARA, 201, p. 115.


27

62 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 49-65 jul./dez. 2020


A partir dos estudos de casos realizados, foi possível identificar, com clareza, as significativas incertezas
ainda existentes em torno da nova LINDB. Torna-se relevante, assim, a necessária e árdua busca por
equilíbrio e ponderação na interpretação e na aplicação do novel normativo.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Da análise realizada, depreende-se que a aplicação da Lei n. 13.655/ 2018, realizada pelos tribunais
de contas, efetuou-se pouco mais de um ano após sua promulgação ainda incipiente, embora se
tenham identificado variados acórdãos que fundamentam suas conclusões em dispositivos da nova
lei. Conforme se observou, em alguns casos, a citada lei é aplicada de forma ponderada e pertinente,
subsidiando a adoção de medidas concretas mais adequadas e coerentes com os fatos apreciados.
Em outros, no entanto, os novos artigos acrescidos à LINDB são invocados de forma possivelmente
precipitada ou inoportuna, apesar do intuito de se resguardar a segurança jurídica dos partícipes das
relações em questão, mormente a dos jurisdicionados do TCEMG.
Diante do cenário identificado, não se pode perder de vista que a Lei n. 13.655/2018 decorre de um
contexto em que, supostamente, estaria ocorrendo certo excesso praticado pelos órgãos de controle,
o que inibiria a atuação decisória dos gestores, circunstância que ficou conhecida como o “apagão
das canetas” ou a “secura das canetas”. Visando resguardar a segurança jurídica dos jurisdicionados, a
nova LINDB consagrou diversas exigências aos órgãos de controle, as quais, no entanto, mostraram-se
excessivas em alguns casos, oferecendo, assim, entraves à importante atuação de órgãos responsáveis
por fiscalizar a boa gestão da coisa pública e por propiciar o ressarcimento de significativas quantias
indevidamente desviadas dos cofres públicos.
Em suma, nesse contexto, deve-se buscar compatibilizar, por meio de uma interpretação sistêmica, o
atendimento à Lei n. 13.655/2018 com o atendimento, também, a outras normas legais e constitucionais
do direito brasileiro, como aquelas que consagram as relevantes atribuições dos órgãos de controle
– em especial dos tribunais de contas – e aquelas que impõem o ressarcimento em caso de dano ao
erário.

REFERÊNCIAS
BORTOLETO, Leandro. Direito Administrativo. 6. ed. rev. atual. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2017.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Brasília:
Senado, 1988.
BRASIL. Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito
Brasileiro. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 9 set. 1942.
BRASIL. Lei Complementar n. 101, de 4 de maio de 2000. Estabelece normas de finanças públicas
voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências. Diário Oficial da União,
Brasília, 5 de maio de 2000.
BRASIL. Lei n. 12.376, de 30 de dezembro de 2010. Altera a ementa do Decreto-Lei no 4.657, de 4 de
setembro de 1942. Diário Oficial da União, Brasília, 31 de dezembro de 2010.

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 49-65 jul./dez. 2020 63


BRASIL. Lei n. 13.655, de 25 de abril de 2018. Inclui no Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942
(Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), disposições sobre segurança jurídica e eficiência
na criação e na aplicação do direito público. Diário Oficial da União, Brasília, 26 de abril de 2018.
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AS INOVAÇÕES JURÍDICAS TRAZIDAS PELO SISTEMA
DE REGISTRO DE PREÇOS NAS LICITAÇÕES
DA UNIÃO
THE LEGAL INNOVATIONS BROUGHT BY THE PRICE REGISTRATION
SYSTEM IN THE UNION BIDS

José Kaerio França Lopes

CRÉDITO: ARQUIVO PESSOAL


Especialista em Direito Administrativo pela Universidade
Cândido Mendes (Ucam), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Especializando em Direito Tributário pela Faculdade
UniBF, Paraíso do Norte, PR, Brasil. Bacharel em Direito
pela Faculdade Luciano Feijão (FLF), Sobral, CE, Brasil.
CV:  http://lattes.cnpq.br/2913447306557477
E-mail: jose.franca@tce.mg.gov.br

Resumo Abstract
O objetivo deste estudo é apresentar as The basic concern of this study is to present the innovations
inovações trazidas pelo sistema de registro de brought about by the price registration system in public
preços nas licitações públicas, com ênfase no tenders, with emphasis on Federal Decree no. 7,892 /
Decreto Federal n. 7.892/2013, haja vista que 13, given that the Union is always the first federative
a União é sempre o primeiro ente federativo a entity to regulate the theme, serving as a model for the
regular o tema, servindo de modelo para os regulations to be edited by states and municipalities. The
regulamentos a serem editados pelos estados e study was always drawn up drawing a parallel with the
municípios. Neste estudo, traçou-se um paralelo common bidding procedure, that is, presenting only the
com o procedimento comum da licitação, ou differences in the price registration system in relation to
seja, apresentando apenas as diferenças do the traditional way of bidding. In addition, this article,
sistema de registro de preços em relação à forma in addition to analyzing the basis and legal relevance of
tradicional de licitar. O artigo, além de analisar o price registration in federal bids formalized by means of
fundamento e a relevância jurídica do registro electronic trading, also comments on the effectiveness or
de preços nas licitações federais formalizadas otherwise of this special procedure, on the perspective of
por meio de pregão eletrônico, tece comentários price reduction for the Administration and legal certainty
acerca da eficácia ou da falta de eficácia desse in the signed relationship, given that risk is a determining
procedimento especial, sob a ótica de redução factor in the formulation of supplier prices. Thus,
de preços para a administração e a segurança considering the contributions of several authors, this
jurídica na relação firmada, haja vista que o risco article will discuss all the peculiarities of the price register,
é fator determinante para formulação de preços always concluding whether or not there is economic and
do fornecedor. legal viability in this procedure.

Palavras-chave: registro de preços; adesão de ata; cadastro de reserva.


Keywords: price record; minutes’ aveto; booking register.

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1 INTRODUÇÃO
Este trabalho visa abordar os impactos e as inovações criados pelo sistema de registro de preços (SRP)
nas licitações federais, em especial após a publicação do Decreto Federal n. 9.488/2018, tratando das
principais diferenças deste instrumento jurídico com relação à forma tradicional de licitar.
A importância da análise do registro de preços sobre o enfoque das contratações federais se dá em
razão de a União ser o ente federativo vanguardista na regulamentação desse instituto jurídico,
sempre inovando em seus decretos regulamentadores sobre o assunto bem como tornando tais
regulamentos moldes para a criação dos decretos estaduais e municipais que vierem a existir.
Outro aspecto importante a ser salientado trata-se da análise sobre uma possível inconstitucionalidade
dos decretos federais, haja vista que, para alguns doutrinadores, a figura do órgão não participante
e da adesão à ata de registro de preços (ARP) inova no ordenamento jurídico, fazendo com que o
Executivo, por meio de decreto regulamentar, usurpe a competência do Legislativo, o qual deveria
tratar a matéria por meio de lei.
Também cabe apresentar estudos sobre a relação entre o registro de preços e o princípio da
adjudicação compulsória, ou seja, se há no caso mitigação ou violação de tal princípio previsto na Lei
n. 8.666/1993.
Outro aspecto a ser tratado é cotejar o SRP com a forma tradicional de licitar, abordando em especial
os contornos jurídicos das inovações trazidas pela União, por exemplo, a ata cadastro de reserva.
Embora tragam mais agilidade e dinâmica ao licitar, tais inovações carecem de maiores estudos,
principalmente para conceder maior segurança jurídica e transparência nas suas relações.
Destarte, este estudo mostra-se relevante ao passo que o SRP modulou bastante a forma de licitar, ao
trazer mais agilidade e menos burocracia nas contratações públicas.
Ora, atualmente o número de licitações SRP deixou de ser exceção para tornar-se a regra, conforme
os dados a seguir.
Gráfico 1 — Quantidade de processos, valor das compras homologadas, média e mediana de preços
de todos os pregões federais, SRP ou não, para aquisição de materiais

Fonte: BRASIL. Painel de Preços. Disponível em: http://paineldeprecos.planejamento.gov.br/analise-materiais. Acesso em: 7


out. 2019.

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 66-82 jul./dez. 2020 67


Gráfico 2 — Quantidade de processos, valor das compras homologadas, média e mediana de preços
de todos os pregões federais, apenas SRP, para aquisição de materiais

Fonte: BRASIL. Painel de Preços. Disponível em: http://paineldeprecos.planejamento.gov.br/analise-materiais. Acesso em: 7


out. 2019.

Gráfico 3 — Quantidade de processos, valor das compras homologadas, média e mediana de preços
de todos os pregões federais, SRP ou não, para contratação de serviços

Fonte: BRASIL. Painel de Preços. Disponível em: http://paineldeprecos.planejamento.gov.br/analise-servicos. Acesso em: 7


out. 2019.

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Gráfico 4 - Quantidade de processos, valor das compras homologadas, média e mediana de preços
de todos os pregões federais, apenas SRP, para contratação de serviços

Fonte: BRASIL. Painel de Preços. Disponível em: http://paineldeprecos.planejamento.gov.br/analise-servicos. Acesso em: 7


out. 2019.

As informações anteriores são referentes a todas as licitações federais na modalidade pregão


eletrônico. Daí, ao se cotejar o valor total de compras homologadas via pregões, seja SRP ou não,
com aquele homologado apenas por pregão SRP, percebeu-se que, para compra de materiais, o SRP
representa 97% de todo o orçamento homologado em pregões; já no caso de prestação de serviços, o
SRP permeia o percentual de 34%.
Seguindo esse raciocínio e com base nos dados apresentados nos gráficos, verificou-se que atualmente
existe uma alta adesão dos órgãos e dos agentes públicos ao sistema de registro de preços nas
licitações, principalmente quando se trata de aquisições de bens, relevando, assim, a maciça gama
de dinheiro açambarcada pelos procedimentos licitatórios envolvendo esse sistema, o que expõe a
importância de realizar maiores estudos sobre o tema.

2 DESENVOLVIMENTO
Preliminarmente, cabe esclarecer certos questionamentos sobre o tema, quais sejam: o que é sistema
de registro de preços, como e quando se aplica e quais os diplomas legais o fundamentam.
Sobre o conceito de SRP, cabe destacar as definições jurídicas apresentadas por doutrinadores, como
se a seguir.
1 Sistema de Registro de Preços (SRP): informa o decreto que se trata de um conjunto
de procedimentos para registro formal de preços relativos à prestação de serviços e
aquisição de bens, para contratações futuras.
Já esposamos que o SRP não é uma licitação, mas sim um mecanismo para sua
implantação.

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 66-82 jul./dez. 2020 69


Trata-se, no dizer da norma, de um conjunto de procedimentos.
Diríamos que se consubstancia num procedimento, residindo nele a licitação
(concorrência ou pregão). (BITTENCOURT, 2019, p. 46)
2 O Sistema de Registro de Preços é um procedimento auxiliar, inovador, arrojado e
corajoso, pois traz nova roupagem ao processo de licitação pública inserindo um rol
de vantagens, que vão desde a obrigatoriedade de planejamento das compras, como
a possibilidade de economicidade, em vários aspectos, não só na aquisição do bem ou
serviço, mas na economia processual. (FURTADO et al, 2019b. P. 324)

Analisando os conceitos retro apresentados, percebe-se que o sistema de registro de preço não é
modalidade licitatória, mas sim um procedimento administrativo que se acopla a uma modalidade de
licitação, pregão ou concorrência, de forma a relativizar o procedimento tradicional, com o intento de
dar maior celeridade e eficiência às contratações públicas.
O SRP inova a forma de licitar, trazendo à gestão pública regras e procedimentos muito similares ao
modelo produtivo japonês just in time (JIT1).
As hipóteses de cabimento do SRP, ou seja, quando é permitida sua utilização, encontram-se previstas
no art. 3° do Decreto Federal n. 7.892/2013.
Art. 3º O Sistema de Registro de Preços poderá ser adotado nas seguintes hipóteses:
I - quando, pelas características do bem ou serviço, houver necessidade de contratações
frequentes;
II - quando for conveniente a aquisição de bens com previsão de entregas parceladas ou
contratação de serviços remunerados por unidade de medida ou em regime de tarefa;
III - quando for conveniente a aquisição de bens ou a contratação de serviços para
atendimento a mais de um órgão ou entidade, ou a programas de governo; ou
IV - quando, pela natureza do objeto, não for possível definir previamente o quantitativo
a ser demandado pela Administração.

A hipótese do inciso III visa proporcionar melhores resultados econômicos, estratégicos e operacionais,
pois objetiva aumentar o vulto da licitação e, consequentemente, o poder de negociação da
administração, além de garantir padronização e logística mais eficientes durante a execução contratual.
Basicamente, invocar-se-á tal inciso quando o órgão público realizar contratações compartilhadas
com outros órgãos (inciso III), ou seja, quando um órgão licitar sua demanda acrescida da demanda
de outros órgãos públicos, podendo esses estarem vinculados a ele ou não.
No entanto, utilizar-se-ão as demais hipóteses quando o órgão fizer uso do modelo JIT, em outras
palavras, visa evitar estoques, seja porque não tem como quantificar exatamente a necessidade do
órgão (inciso IV); seja porque a necessidade do bem ou serviço é contínua, repetindo-se ao longo do
tempo (inciso I); seja quando a obtenção dos bens ou serviços ocorrer de acordo com o surgimento
da demanda (inciso II).
Como já dito, o SRP refere-se a procedimentos acoplados a uma modalidade licitatória; portanto,
partindo-se desse pressuposto, cabe elencar quais são esses procedimentos, estabelecendo um
comparativo com a forma tradicional de licitar.

[...] o conceito de JIT se expandiu, e hoje é uma filosofia gerencial que procura não apenas eliminar os desperdícios, mas também
1

colocar o componente certo, no lugar certo e na hora certa. As partes são produzidas em tempo de atenderem às necessidades
de produção, ao contrário da abordagem tradicional de produzir para caso as partes sejam necessárias. O JIT leva a estoques bem
menores, custos mais baixos e melhor qualidade do que os sistemas convencionais. (ROSSETI et al, 2008. p. 2).

70 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 66-82 jul./dez. 2020


A primeira diferença é que o registro de preços traz uma relativização do princípio da adjudicação
compulsória2. Existe uma leve sutileza nesse aspecto, pois, na licitação tradicional, na qual figura a
adjudicação compulsória, o adjudicatário tem mera expectativa de direito na contratação; não
obstante, uma vez a administração decidindo por contratar o objeto licitado, nasce ao adjudicatário
direito adquirido em figurar como parte contratada no ajuste pretendido, sendo vedado ao órgão
público realizar nova licitação ou contratar outra empresa.
Noutra esteira, o SRP tem uma tratativa diferente: uma vez concluída a licitação com esse tipo de
procedimento, o adjudicatário também possui, de início, apenas mera expectativa de direito; contudo,
se a administração decidir por contratar o objeto licitado, o adjudicatário não terá direito adquirido,
mas, sim, apenas o direito de preferência, ou seja, o órgão público pode realizar uma nova licitação
ou contratar um outro fornecedor vencedor de outro procedimento, desde que os valores sejam mais
vantajosos para a administração, pois, caso não seja, aí sim deverá contratar o adjudicatário do SRP
inicial.
A existência de preços registrados não obriga a Administração a firmar as contratações
que deles poderão advir, ficando-lhe facultada a utilização de outros meios, respeitada
a legislação relativa a licitações; contudo, é assegurado ao beneficiário do registro
preferência em igualdade de condições. (BRASIL, 2010. P. 245)

Outra peculiaridade do SRP é a possibilidade de aquisição parcial dos quantitativos licitados. Ora, se o
intento do registro de preços é criar um modelo produtivo just in time nas contratações públicas, seria
ilógico exigir que a administração ficasse obrigada a adquirir o quantitativo integral registrado na ata.
Numa licitação tradicional, como já mencionado, vigora o princípio da adjudicação compulsória,
ou seja, a administração não é obrigada a contratar; todavia, caso faça o contrato, vincular-se-á ao
fornecedor vencedor da licitação e, consequentemente, deverá também contratar o quantitativo total
licitado, salvo fato superveniente que impossibilite o feito.
Veja a seguir o que assevera Jacoby Fernandes (2015, p. 91-93 ):
Lamentavelmente, porém, o Governo vem provocando verdadeiro contingenciamento
do orçamento, liberando cotas trimestrais, e sempre no final do exercício as maiores
cifras, de modo que o gestor acaba devolvendo ao erário cifras que eram efetivamente
necessárias ao bom andamento do serviço, apenas por impossibilidade de concretizar
em curto espaço de tempo, o longo percurso burocrático da licitação.
[...]
Com a adoção do Sistema de Registro de Preços, a Administração deixa a proposta mais
vantajosa previamente selecionada, ficando no aguardo da aprovação dos recursos
orçamentários e financeiros.
Não há necessidade de que o órgão tenha prévia dotação orçamentária, porque o
Sistema de Registro de Preços, ao contrário da licitação convencional, não obriga a
Administração Pública, em face à expressa disposição legal nesse sentido, como visto no
subtítulo 1.1.4. do capítulo 1 deste título.
No sistema convencional de licitação, a Administração tem que ter prévia dotação
orçamentária, porque há um compromisso que só em caráter excepcional pode ser
revogado e anulado.

É importante destacar que o adjudicatário não tem direito adquirido à celebração do contrato, mas mera expectativa de direito. Isso
2

se dá porque, mesmo após a adjudicação, a administração não é obrigada a celebrar o contrato, cabendo-lhe avaliar a conveniência
e oportunidade da contratação.
Se, entretanto, houver celebração do contrato com preterição da ordem classificatória, é nula a contratação (art. 50 da Lei n.
8.666/1993), passando o adjudicatário a ter direito adquirido de figurar no contrato. (MAZZA, 2013, p. 331).

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 66-82 jul./dez. 2020 71


Como decorrência lógica dessa faculdade em contratar o quantitativo integral da ata, tem-se que no
SRP é prescindível indicar previamente os recursos orçamentários previstos da despesa, até porque
a filosofia desse procedimento é formalizar apenas um catálogo de preços, cuja aquisição ocorre de
acordo com o surgimento da demanda. Portanto, seria ilógico exigir que a administração apresentasse
previamente uma estimativa orçamentária, se o órgão não sabia nem se utilizaria os quantitativos da
ata3.
Também por decorrência lógica desse modelo just in time, tem-se uma diferenciação em relação
ao procedimento tradicional no tocante ao prazo de vinculação do licitante ofertante da proposta.
Ressalta-se, a seguir, a redação da Lei n. 8.666/1993, a qual disciplina o tema nas licitações tradicionais.
Art. 64.  A Administração convocará regularmente o interessado para assinar o termo
de contrato, aceitar ou retirar o instrumento equivalente, dentro do prazo e condições
estabelecidos, sob pena de decair o direito à contratação, sem prejuízo das sanções
previstas no art. 81 desta Lei.
[...]
§ 3o  Decorridos 60 (sessenta) dias da data da entrega das propostas, sem convocação
para a contratação, ficam os licitantes liberados dos compromissos assumidos.

Outrossim, ainda sobre esse assunto, segue também o disposto na Lei n.10.520/2002. “Art. 6º O prazo
de validade das propostas será de 60 dias, se outro não estiver fixado no edital.”
Em contrapartida, note o que versa o Decreto Federal n. 7.892/2013.
Art. 12. O prazo de validade da ata de registro de preços não será superior a doze meses,
incluídas eventuais prorrogações, conforme o inciso III do § 3º do art. 15 da Lei nº 8.666,
de 1993.
§ 1º É vedado efetuar acréscimos nos quantitativos fixados pela ata de registro de preços,
inclusive o acréscimo de que trata o § 1º do art. 65 da Lei nº 8.666, de 1993.
§ 2º A vigência dos contratos decorrentes do Sistema de Registro de Preços será definida
nos instrumentos convocatórios, observado o disposto no  art. 57 da Lei nº 8.666, de
1993.
§ 3º Os contratos decorrentes do Sistema de Registro de Preços poderão ser alterados,
observado o disposto no art. 65 da Lei nº 8.666, de 1993.
§ 4º O contrato decorrente do Sistema de Registro de Preços deverá ser assinado no
prazo de validade da ata de registro de preços.

Em síntese, há três situações distintas. Na primeira, a Lei n. 8.666/1993, que se aplica a todas as
licitações tradicionais — salvo pregão —, disciplina que o licitante somente se vincula a sua proposta
no prazo de 60 dias.
Na segunda, tem-se a Lei n. 10.520/2002, que permite que a administração, no caso de pregões
tradicionais, estipule discricionariamente o prazo da proposta, aplicando-se o prazo de 60 dias no
caso de omissão do edital.

Apenas é prescindível apresentar a dotação orçamentária previamente ao licitar, e não ao longo de toda contratação, ou seja, para
3

licitar por meio de SRP, não necessita da dotação orçamentária; contudo, para contratar, a administração está obrigada a indicar tais
recursos orçamentários. Nesse sentido, ressalta-se o posicionamento do TCEMG no Acórdão n. 932692 — 1ª Câmara, com destaque
para o seguinte excerto do voto. “Por não gerar compromisso de contratação, na licitação para registro de preços não é necessário
indicar a dotação orçamentária, que somente será exigida para a formalização do contrato ou outro instrumento hábil.”

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Já na terceira situação, o Decreto Federal n. 7.892/2013 permite ao poder público determinar o
prazo de validade da proposta, a qual se formalizará em ata específica, desde que não seja tal prazo
superior a 12 meses4.
Ademais, destaquem-se ainda algumas observações importantes acerca do decreto recém citado. O
normativo permite prorrogar inúmeras vezes a vigência da ata de registro de preços; contudo, essas
prorrogações somente serão autorizadas desde que a vigência inicial da ata somada com todas as
prorrogações não ultrapassem o lapso temporal de 12 meses.
Expõe-se ainda que é vedado ao órgão acrescentar aos quantitativos constantes na ata de registro de
preços, mesmo que utilize os fundamentos e percentuais do art. 65 da Lei n. 8.666/1993.
Não obstante, uma vez formalizado o contrato, tal vedação contida na ata é afastada com relação ao
contrato, ou seja, o órgão pode formalizar aditivo alterando as obrigações do contrato, mas não na ata.
Como exposto, o SRP permite realizar contratações compartilhadas entre os órgãos públicos, inclusive
entre entes políticos diferentes, por meio de uma fase preliminar denominada intenção de registro de
preços (IRP).
A fase de IRP consiste em: o órgão que realiza a licitação, denominado órgão gerenciador, divulga sua
relação de itens que deseja licitar, enquanto isso os outros órgãos públicos interessados, denominados
órgãos participantes, adicionam sua demanda aos itens divulgados pelo órgão gerenciador.
Para melhor visualização, imagine-se que um órgão “A” queira licitar 200 resmas de papel e 100
caixas de caneta, daí o órgão “B” adiciona 100 resmas de papel e 50 caixas de caneta e o órgão “C” 70
resmas de papel apenas. Destarte, o órgão “A” licitará 370 resmas de papel e 150 caixas de caneta,
permitindo, assim, reduzir os custos unitários dos itens, em razão de economia de escala.
Veja, a seguir, o que a doutrina disciplina sobre o assunto
O Decreto nº 7.892/2013, de forma inovadora, criou e regulamentou o instituto da
Intenção de Registro de Preços – IRP, ferramenta já existente no portal Comprasnet. Como
será visto, a finalidade do IRP é informar aos demais órgãos públicos a intenção de um
dos órgãos do governo de realizar o registro de preços somando a demanda de todos os
outros órgãos públicos que tiverem interesse em participar do registro de preços.
Aplicando corretamente o IRP, haverá maior transparência nas contratações públicas e
redução do esforço da licitação (JACOBY FERNANDES, 2015, p. 100).

Embora parte da doutrina considere uma enorme vantagem do SRP, em especial pelo ganho de
escala dada pelo IRP, decorrente do enorme quantitativo licitado, outros doutrinadores defendem o
inverso, ou seja, que tal procedimento de contratação gera perda de economia de escala. Destacam-
se os argumentos de Justen Filho (2014, p. 258) acerca do tema, a seguir.
Na realidade da atividade econômica, o preço unitário numa venda de dez mil unidades
não é idêntico àquele numa operação de um milhão de unidades. E isso porque o
custo unitário de dez mil unidades é muito superior ao custo unitário de um milhão de
unidades.

Para Jacoby Fernandes (2015, p. 77), embora a lei verse sobre vigência da ata, e não especifique validade da proposta, assim como
4

fazem os demais normativos, o entendimento doutrinário é que o legislador confundiu os institutos jurídicos, tratando-os como
sinônimos.

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 66-82 jul./dez. 2020 73


Mas o preço ofertado pelo licitante numa licitação de SRP deve ser honrado em face
de qualquer quantitativo solicitado e mesmo que não haja a contratação do montante
integral previsto. Portanto, o licitante se encontrará no dilema de ofertar ou um preço
unitário mais reduzido calculado em face do quantitativo total previsto ou um preço
médio (que seja suficiente para reduzir o seu prejuízo caso haja contratações em
quantitativos mais reduzidos). Usualmente, o licitante opta pela segunda alternativa.

Justen Filho argumenta que licitar maior quantidade de itens não necessariamente significa economia
de escala per si. Isso se dá porque o SRP permite ao órgão adquirir quantitativo inferior ao licitado,
ou seja, gera uma obscuridade para o fornecedor de quanto será efetivamente contratado, evitando,
assim, que ele mergulhe no preço por medo de cotar seus custos com base em uma demanda que não
se concretizará na realidade.
Realmente é temerário o fornecedor basear-se unicamente nos quantitativos licitados no momento
da formulação da proposta; não obstante, com o devido planejamento na fase interna da licitação, é
possível superar essa insegurança jurídica e permitir efetiva redução nos custos da licitação SRP.
Podem ser citadas como medidas de planejamento para minimizar a insegurança jurídica: anexar
ao edital histórico de consumo; estipular quantitativos mínimos de tiragem do objeto; não permitir
a participação ou criar lote específico para os órgãos participantes, geograficamente distantes;
estabelecer percentual mínimo de aquisição dos itens registrados na ata, dentre outros mecanismos
de planejamento.
Além da figura do órgão gerenciador e do participante, o referido decreto federal também criou a
figura do órgão não participante.
Órgão não participante é aquele que não participa das fases interna e externa da licitação, seja
como órgão participante, seja como órgão gerenciador, mas acaba aderindo e contratando algum
quantitativo dos itens constantes na ata de registro de preços, por meio de um procedimento
administrativo denominado adesão à ata de registro de preços, ou, como é popularmente conhecido,
“carona”.
Segundo o dispositivo, desde que devidamente justificada a vantagem, a ARP, durante
sua vigência, poderá ser utilizada por qualquer órgão ou entidade da Administração
federal que não tenha participado do certame licitatório, mediante anuência do Órgão
Gerenciador, sendo facultada aos órgãos ou entidades municipais, distritais ou estaduais
a adesão a atas da Administração Pública federal (§9º do art. 22).
A prática popularizou-se no âmbito das ligações através da denominação “carona”,
ou seja, a participação daqueles que, não tendo compartilhado da competição (não
constando, em decorrência, da ata), consultam o Órgão Gerenciador, solicitando o uso
da ARP (BITTENCOURT, 2019, p. 51).

Note-se a diferença entre os atores envolvidos na SRP: primeiro há o órgão gerenciador que realiza
a licitação e divulga seus quantitativos, no caso da União pelo portal SIASG-NET, daí os órgãos
participantes cadastram suas demandas, as quais são unificadas pelo gerenciador, que pratica os
demais atos processuais.
Uma vez concluída a licitação, cada órgão fica responsável por empenhar, gerenciar e executar seus
quantitativos separadamente.

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Nesse diapasão, o órgão não participante visualiza a ARP e pede autorização ao gerenciador para
efetuar uma “carona” nela; caso autorize, aquele empenha, gerencia e executa os quantitativos
autorizados.
Embora seja um processo relativamente simples, a “carona” traz consigo várias discussões jurídicas,
cabendo tecer comentários sobre cada uma delas.
O primeiro ponto a se abordar é que o fornecedor vencedor da ARP não é vinculado a fornecer seus
quantitativos ao não participante; portanto, cabe consultar o fornecedor para saber se aceita também
ampliar sua oferta ao “caroneiro”.
Ao realizar a “carona”, os quantitativos contidos neste procedimento não interferem nos quantitativos
dos demais órgãos, ou seja, numa licitação de 100 canetas, sendo 50 para o gerenciador e 50 para os
participantes, caso o “caroneiro” formalize adesão de 40 canetas, é como se aumentasse os quantitativos
da ARP para 140 canetas, de forma que tanto os participantes como o gerenciador poderiam, cada um,
ainda adquirir as 50 canetas.
Segundo Furtado (2015a), o Decreto Federal n. 3.391/2001, primeiro normativo que regulou o SRP,
trazia apenas uma única limitação acerca do “carona”, qual seja, cada órgão não participante não
poderia aderir mais de cem por cento de quantitativos registrados na ARP.
O doutrinador citado ainda expõe que essa flexibilidade exacerbada da adesão fragilizava bastante a
competitividade dos certames, pois poderia o fornecedor combinar quantitativos previamente com
outros órgãos para garantir sua economia de escala e ganhar todas as licitações.
Nessa situação, foi, conforme assevera o autor citado, necessário que o Tribunal de Contas da União
interferisse e determinasse ao Ministério do Planejamento que reavaliasse a figura do “carona”, de
forma a estabelecer limites sobre sua utilização.
Diante disso, houve alteração do regulamento do SRP, passando a viger o Decreto n. 7.892/2013,
que permaneceu com a primeira limitação, e criou uma segunda, a qual asseverava que o total
de quantitativos aderido por todos os órgãos interessados não poderia superar o quíntuplo dos
quantitativos contidos na ARP.
Retomando o exemplo anterior das canetas, sob a égide do primeiro decreto, poderia haver inúmeras
adesões, desde que cada uma delas não superasse individualmente o limite de 100 canetas. Com a
nova redação regulamentar, esse primeiro limite se manteve; todavia, definiu-se outro: o número total
de adesões não poderá superar o quíntuplo do registrado, ou seja, quando o gerenciador perceber
que já foram aderidas 500 canetas, esse fica impossibilitado de conceder novas autorizações.
Em 2018, houve alteração no decreto vigente, trazida pelo Decreto Federal n. 9.488/2018, que alterou
os quantitativos impostos pelos limites. Destarte, com a nova redação o órgão não participante
somente pode aderir até 50% do total registrado na ARP, e o total de adesões não pode superar o
dobro dos quantitativos da ata.
Utilizando-se ainda do exemplo das canetas, cada órgão não participante somente poderá aderir até
50 canetas, devendo o total de adesões não superar o número de 200 exemplares.

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Outro ponto a se destacar do referido decreto federal é que é vedado ao ente de maior abrangência
aderir à ata do de menor área de atuação, não sendo a recíproca verdadeira, ou seja, a União não pode
aderir às ARPs dos estados e municípios, não obstante, poderão os municípios e estados aderirem às
ARPs da União.
Ainda sobre o tema, muitos doutrinadores acreditam que o instituto jurídico do “carona” deveria
ser normatizado por lei, e, não, regulamento; portanto, segundo eles, o decreto federal seria
inconstitucional.
Inicialmente, cabe destacar que a própria Lei n. 8.666/1993 permite flexibilizar a normatização do SRP
via decreto, como se vê no texto legal que se segue.
Art. 15. As compras, sempre que possível, deverão:
[...].
§ 3o O sistema de registro de preços será regulamentado por decreto, atendidas as
peculiaridades regionais, observadas as seguintes condições:
I - seleção feita mediante concorrência;
II - estipulação prévia do sistema de controle e atualização dos preços registrados;
III - validade do registro não superior a um ano. (BRASIL, 1993.

Por sua vez, ressalta-se, a seguir, o que pensam alguns doutrinadores acerca da flexibilização normativa
para regular o “carona”.
Quem poderia, em tese, criar a carona é o Poder Legislativo, por meio de Lei, em
obediência ao princípio da legalidade. O carona jamais poderia ter sido criado, como
malgrado foi, pelo Presidente da República, por mero regulamento administrativo.
No Estado Democrático de Direito não se deve governar por decreto, mas por lei,
conforme preceitua o princípio da legalidade, festejado de modo contundente e
irrefutável pela Constituição Federal. (NIEBURH, 2006, p. 15)
[...] o inciso XXI do art. 37 da CF ficou aberta e escancaradamente violentado, pois esses
órgãos ou entidades, que no curso da execução de uma Ata de Registro de Preços, podem
adquirir os bens ou serviços licitados pelo órgão gestor e pelos outros convidados a
participar, em última análise, estão adquirindo bens ou serviços sem ter participado de
qualquer licitação. Eis aí a figura do “carona”, como a doutrina já apelidou esses órgãos
ou entidades que, por essa via, compram bens ou contratam serviços sem licitação, o
que é frontalmente contra o disposto no inciso XXI do art. 37 da CF. (MUKAI, 2007, p. 96)
[...] a Constituição Federal define os limites desse procedimento, mas em nenhum
momento obriga a vinculação de cada contrato a uma só licitação, ou, ao revés, de
uma licitação para cada contrato. Essa perspectiva procedimental fica ao alcance de
formatações de modelos: no primeiro, é possível conceber mais de uma licitação para
um só contrato, como na prática se vislumbra com o instituto da pré-qualificação em
que a seleção dos licitantes segue os moldes da concorrência, para só depois licitar-
se o objeto, entre os pré-qualificados; no segundo, a figura do carona em registro de
preços ou a utilização de licitação por mais de um órgão, como permite o art. 112 da Lei
8.666/1993. Desse modo é juridicamente possível estender a proposta mais vantajosa
conquistada pela Administração Pública como amparo a outros contratos. (JACOBY
FERNANDES, 2009, p. 673)

Veja a divergência doutrinária, pois, para alguns doutrinadores, o “carona” cria novas relações
jurídicas, ou seja, cria deveres e obrigações não previstos inicialmente pela lei.

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Destarte, o decreto não apenas estaria regulamentando a lei, mas também usurpando sua competência,
ao passo em que inova o ordenamento jurídico.
Por outro prisma, há quem pense o contrário, como é o caso do doutrinador Jacoby Fernandes, que
defende não haver inconstitucionalidade do referido decreto, haja vista que o “carona” trata de um
procedimento que apenas permite a um órgão utilizar registro de preços de outro órgão, não criando
novas modalidades de licitação.
Acredita-se ser mais assertivo o posicionamento de Jacoby Fernandes, por dois motivos.
Primeiro, se o embasamento de que o “carona” é inconstitucional é porque ele cria relações jurídicas, e
poderia somente a lei fazê-lo. Então, seria todo o decreto inconstitucional, pois também cria relações
jurídicas ao gerenciador e aos participantes, podendo citar a obrigatoriedade em divulgar a licitação, a
obrigação do gerenciador em autorizar ou negar em prazo estabelecido, a inserção dos quantitativos
cadastrados pelos participantes; entre outros.
Segundo, o decreto não extrapola os limites da lei, pois ela autoriza que aquele normatize o assunto
do procedimento do registro de preços. Sendo assim, somente seria inconstitucional o regulamento
em questão caso versasse sobre modalidade de licitação, tipo de licitação, condutas do fornecedor
e membros do setor de licitações, impugnações, recursos e outros assuntos relacionados ao
procedimento da condução da sessão pública.
Ainda sobre o “carona", salienta-se sobre dois questionamentos importantíssimos adotados pelo TCU,
a fim de resguardar o interesse público e evitar a ocorrência de fraudes nas adesões de atas oriundas
de licitações que tiverem seus itens agrupados em lotes.
O primeiro questionamento seria: órgão não participante pode aderir a um ou alguns itens específicos
quando a licitação se deu por lotes?
No Acórdão n. 1.893/2017 – Plenário5, relator Bruno Dantas, a Corte de Contas da União entendeu ser
proibido o aderente adjudicar alguns itens do lote licitado, quando o fornecedor não tiver fornecido o
menor preço para cada item individualmente.
Ilustrando o caso, cita-se uma licitação de um lote único formado pela união de dois itens: o primeiro
refere-se à aquisição de quatro mesas de escritório, já o segundo trata da compra de 12 poltronas.
Nesse exemplo, durante a sessão pública, o fornecedor “A” apresentou lance de R$ 300,00 para cada
mesa, ou seja, R$ 1.200,00 para o item 1; já para o item 2 apresentou valor de unitário de R$ 100,00,
totalizando R$ 1.200,00.
Por sua vez, o fornecedor “B” ofertou lance de R$ 500,00 para cada mesa, ou seja, R$ 2.000,00 para o
item 1; já para o item 2 apresentou valor de unitário de R$ 90,00, totalizando R$ 1.080,00.
Como a licitação é por lote, a adjudicação se dá pelo menor preço comparando os itens agrupados
como se só um fosse; portanto, “A” venceu com uma proposta de R$ 2.400,00, enquanto “B” ficou em
segundo com uma proposta de R$ 3.080,00.

5
Enunciado do Acórdão: “É indevida a utilização da ata de registro de preços por quaisquer interessados - incluindo o próprio
gerenciador, os órgãos participantes e eventuais caronas, caso tenha sido prevista a adesão para órgãos não participantes - para
aquisição separada de itens de objeto adjudicado por preço global de lote ou grupo para os quais o fornecedor convocado para
assinar a ata não tenha apresentado o menor preço na licitação”.

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Diante dessa situação, o que o TCU veda é que um órgão não participante venha aderir apenas ao
item 2 do fornecedor “A”, pois nesse caso poderia dar azo a um jogo de planilhas, pois um licitante
mergulharia no preço de um item para vencer o lote e depois compensaria a perda fornecendo
inúmeras adesões dos outros itens, cujo preço não decaiu.
Então o TCU entendeu que os órgãos participantes, não participantes e gerenciador devem manter
a proporcionalidade do quantitativo do lote ou grupo, caso queira empenhar item que o fornecedor
vencedor não apresentou menor preço.
Frisa-se que se o interesse da adesão for apenas do item que o fornecedor efetivamente apresentou o
menor preço individualmente, no exemplo anterior é o caso de se aderir apenas à mesa de escritório,
sem poltronas. Destarte, não será necessário resguardar a proporcionalidade do grupo, porquanto o
preço do fornecedor para aquele item é realmente o mais barato.
O segundo questionamento, que foi apresentado por meio de consulta formulada pela Câmara
dos Deputados, indagou se seria possível, no caso de fornecedor vencedor do lote, mas que não
apresentou menor proposta para item específico, aderir apenas a esse item, contratando a empresa
que apresentou melhor proposta, independentemente de ela não ter sido a vencedora do lote.
Fazendo uso do exemplo das mesas de escritório e das poltronas, a indagação feita pela Câmara
dos Deputados é se poderia aderir apenas às poltronas, mas ao invés de formalizar o contrato com
a empresa “A”, poderia sê-lo feito com “B”, haja vista que, para aquele item específico, “B” apresentou
menor preço.
O Acórdão n. 1.347/2018 – Plenário6, relator Bruno Dantas, foi no sentido de vedar tal ajuste, pois o SRP
permite a contratação dos fornecedores mais bem classificados na ata, não se permitindo contratação
avulsa.
A última inovação trazida pelo SRP é a formação da ata cadastro de reserva de registro de preços.
Segue o texto normativo do Decreto Federal n. 7.892/13, após a alteração realizada em 2018.
Art. 11. Após a homologação da licitação, o registro de preços observará, entre outras,
as seguintes condições: [...]
II - será incluído, na respectiva ata na forma de anexo, o registro dos licitantes que
aceitarem cotar os bens ou serviços com preços iguais aos do licitante vencedor na
sequência da classificação do certame, excluído o percentual referente à margem de
preferência, quando o objeto não atender aos requisitos previstos no art. 3º da Lei nº
8.666, de 1993; [...].
§ 1º O registro a que se refere o inciso II do caput tem por objetivo a formação de cadastro
de reserva no caso de impossibilidade de atendimento pelo primeiro colocado da ata,
nas hipóteses previstas nos arts. 20 e 21.
§ 2º Se houver mais de um licitante na situação de que trata o inciso II do caput, serão
classificados segundo a ordem da última proposta apresentada durante a fase
competitiva.

Enunciado do Acórdão: “No sistema de registro de preços com critério de adjudicação pelo menor preço global por grupo (lote)
6

de itens, não é admissível aquisição junto a empresa que apresentou a melhor proposta para determinado item, mas que não
foi vencedora do respectivo grupo, uma vez que a licitação para registro de preços objetiva a convocação dos fornecedores mais
bem classificados para assinar as atas, sendo possível, única e exclusivamente, contratação com as empresas vencedoras para
fornecimento dos itens nelas registrados.”

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§ 3º A habilitação dos fornecedores que comporão o cadastro de reserva a que se refere
o inciso II do caput será efetuada, na hipótese prevista no parágrafo único do art. 13 e
quando houver necessidade de contratação de fornecedor remanescente, nas hipóteses
previstas nos arts. 20 e 21.

§ 4º O anexo que trata o inciso II do caput consiste na ata de realização da sessão pública


do pregão ou da concorrência, que conterá a informação dos licitantes que aceitarem
cotar os bens ou serviços com preços iguais ao do licitante vencedor do certame.

Num concurso público existem os concursados para cargos de provimento efetivo e os pertencentes
ao cadastro de reserva, que somente serão nomeados caso surjam novas vagas. Nesse caso, aplica-se a
mesma lógica, isto é, o fornecedor pertencente ao cadastro de reserva, em regra, não será contratado;
contudo, poderá acontecer sua contratação, caso haja “surgimento de vaga”, ou seja, se porventura o
licitante vencedor tiver sido excluído da ata.
Para isso, assim que concluir a licitação SRP, a Administração convocará os demais licitantes para
saberem se possuem o interesse em ingressar na ata como cadastro de reserva. Havendo aceitação
dos fornecedores, esses deverão cotar seus preços em valor igual ao do fornecedor vencedor da ata,
ou seja, para participar do cadastro deverão fazer o mesmo preço do primeiro colocado.
A formação de cadastro de reserva não se refere a uma nova ata, com prazos, quantidades ou valores
diferentes, mas apenas a um complemento da ata inicial, a qual somente será acionada se o fornecedor
contratado não honrar sua proposta.
Destarte, uma vez acionada a licitante pertencente ao cadastro, ela será contratada para o remanescente
dos itens da ata, permanecendo inalterada a vigência da ARP, ou seja, não se reiniciam o prazo da ata
nem os quantitativos a serem contratados.
O decreto é bastante sucinto ao normatizar o tema, o que acarreta diversos questionamentos
procedimentais e jurídicos.
É imperioso questionar acerca da habilitação da licitante pertencente ao cadastro de reserva.
O art. 11, § 3°, do Decreto Federal n. 7.892/2013 assevera que a empresa do cadastro de reserva somente
terá seus documentos de habilitação analisados no momento da contratação. Esse dispositivo, segundo
Reolon (2014), em que pese ter o escopo de desburocratizar e agilizar o procedimento licitatório, não
permite fechar os olhos para que essa postergação, em tese, fere a isonomia da licitação, haja vista
que o licitante pode regularizar sua situação empresarial no interstício compreendido entre a sessão
pública e o momento de sua convocação para ser contratado.
No entanto, não há na prática essa lesão à isonomia, pois o licitante vencedor tem o direito adquirido
da preferência da contratação, enquanto o cadastro de reserva, mera expectativa de direito; logo, é
razoável que se exijam os documentos de habilitação quando for convocado, pois é o momento em
que se materializa seu direito de preferência em ser contratado, caso a administração ainda utilize a
referida ata.
Embora silente a legislação, acredita-se que, por meio de analogia, também se estende o mesmo
entendimento acerca da habilitação da empresa convocada no cadastro de reserva para os casos de
análise de amostra.

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Reolon (2014) acrescenta que a Administração deve ter cuidado ao formalizar o contrato com
empresa do cadastro de reserva, devendo verificar se ela possui algum tipo de punição que
acarrete rescisão contratual. Segundo o autor, ao formalizar o ajuste, deve-se analisar a existência
de eventuais punições, seus efeitos e alcance, a fim de analisar se há algum impedimento legal para
prosseguimento do feito.
Azevedo (2016) comenta que o licitante que queira ingressar no cadastro de reserva tem que ter muito
cuidado para não cair numa armadilha. O raciocínio do autor é de que, numa licitação, principalmente
SRP, a quantidade é um fator importante para determinar preço, daí, no momento da contratação, a
empresa pertencente ao cadastro de reserva somente irá fornecer o remanescente da ata. Logo, é bem
possível que esse quantitativo restante não seja capaz de amortizar os custos e possibilitar auferir o
lucro estimado na proposta, a qual foi calculada levando em conta o quantitativo total da ata.
Nesse diapasão, mesmo que o preço se torne inexequível em razão do diminuto remanescente
contratual, a empresa do cadastro de reserva está obrigada a fornecer os itens da ARP, uma vez
acionada.
A preocupação do autor é real, tanto que são plenamente visíveis as poucas discussões doutrinárias
acerca do tema.
Em se tratando de serviços continuados, é possível verificar que o instituto é mais eficaz, haja vista que
a ARP e o contrato são autônomos entre si. Destarte, se a empresa do cadastro de reserva é acionada,
o prazo de vigência da ata não se renova, devendo manter-se o prazo original; todavia, por se tratar
de prestação de serviços, a vigência do contrato, por ser independente, poderá correr normalmente,
inclusive podendo ser aditivada, se for o caso.
Imagine uma licitação SRP para serviço de manutenção de veículos por um ano; nesse cenário,
aciona-se o cadastro de reserva após o transcurso de dez meses da vigência da ata. Já que o contrato
é autônomo, a licitante é contratada pelos dois meses restantes, podendo, em razão de ser o serviço
continuado, formalizar prorrogações contratuais até 60 meses, assim como preconiza o art. 57, II, da
Lei n. 8.666/1993.
Já no tocante à aquisição de bens, o cadastro de reserva somente passa a ser interessante ao fornecedor
se, uma vez acionado, sua vinculação à formação do ajuste for obrigatória apenas se houver um
remanescente mínimo previsto no edital, o qual, uma vez extrapolado, passa a tornar facultativa a
obrigação do fornecimento do remanescente.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, conclui-se que o SRP trouxe inúmeros instrumentos inovadores às licitações,
principalmente reduzindo o excesso de burocracia e o engessamento da máquina pública.
É imperioso destacar que a inserção do just in time e a faculdade em adquirir os itens da ata fizeram
do SRP um modelo extremamente interessante à administração pública, tanto que, atualmente, esse
procedimento já representa quase 100% de todo o montante licitado pela União, por pregão, para
aquisição de bens, e 34%, quando se trata de serviços.
Embora o SRP implemente muitas inovações, tem-se ainda a necessidade de se criar uma lei, stricto

80 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 66-82 jul./dez. 2020


sensu, que normatize, de forma mais robusta e aprofundada, o tema, principalmente para garantir que
haja segurança jurídica na relação firmada entre o órgão público e o particular, haja vista que quanto
menor o risco, mais fácil é para o fornecedor poder reduzir seus preços.
Havendo maior normatização sobre o tema e o planejamento na hora de se elaborar o edital, é
plenamente perceptível que o SRP se torne um procedimento licitatório bastante célere e lucrativo,
permitindo maior integração e flexibilidade entre os órgãos públicos, sendo cada vez mais escassa a
utilização de licitação no modelo tradicional.

REFERÊNCIAS
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licitações. Revista Controle. Belo Horizonte, ano 14, n. 1, jan./jun. 2016. Disponível em: DOI: https://
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A APLICAÇÃO DA DECADÊNCIA NO CONTROLE
EXTERNO: O ESTUDO DO INSTITUTO NOS
PROCESSOS ANALISADOS NO TCEMG
IMPLEMENTATION OF DECADENCE IN EXTERNAL CONTROL: THE
STUDY OF THE INSTITUTE IN THE PROCESSES ANALYZED IN TCEMG

Juliana Meireles de Mattos

CRÉDITO: ARQUIVO PESSOAL


Especialista em Finanças Públicas pela Escola de Contas e
Capacitação Professor Pedro Aleixo, Belo Horiazonte, MG,
Brasil. Graduada em Direito pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil.
CV:  http://lattes.cnpq.br/7934767741598551
E-mail: jumeirelesm@gmail.com

Resumo Abstract
Este trabalho se baseia no estudo da decadência, This paper is based on the study of decadence, from the
sob a perspectiva do controle externo, em especial perspective of external control and the performance
da atuação dos tribunais de contas no período of the Courts of Auditors after the Constitution of the
pós Constituição da República de 1988. O enfoque Republic of 1988. The main focus of this article is to
principal deste artigo é o aprofundamento do tema deepen the theme of the institute and its application
do instituto e sua aplicação feita pelos tribunais in Brazilian Courts of Auditors, adopting the Court of
de contas brasileiros, adotando-se o Tribunal de Auditors of the State of Minas Gerais as the focus of
Contas do Estado de Minas Gerais (TCEMG) como the investigation.
foco da investigação.

Palavras-chave: decadência; tribunal de contas; segurança jurídica; controle externo.


Keywords: decadence; audit office; legal security; external control.

1 INTRODUÇÃO
A segurança jurídica consiste em princípio do direito positivo que, embora não tratado de forma
expressa no texto da Constituição da República de 1988 (CR/88), tem fundamental importância para
a concretização do Estado Democrático de Direito brasileiro. Consubstancia-se, sob a forma objetiva,
em proteção a direito adquirido e, no viés subjetivo, como proteção à confiança depositada no Estado
em sua atuação perante a sociedade.
Como forma de garantia da segurança jurídica, foram introduzidos no ordenamento brasileiro os
institutos da prescrição e da decadência. Tanto a prescrição quanto a decadência garantem que certa
condição jurídica se perpetue após decorrido determinado lapso temporal, uma vez que se fundam

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na inércia do titular durante certo tempo. Diferenciam-se na medida em que a prescrição consiste
na perda da pretensão do direito após certo decurso de tempo, enquanto com a decadência, há a
extinção do direito.
Embora, como já aludido, ambos os institutos sejam garantidores da segurança jurídica, este estudo
— realizado como Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização em Finanças Públicas pela Escola
de Contas e Capacitação Professor Antônio Aleixo — dará enfoque sobre a decadência e sobre a sua
aplicação a ser feita pelo Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCEMG).
À vista da amplitude do tema da segurança jurídica e da aplicação do instituto da decadência, utiliza-
se, para fins de recorte metodológico, a análise do tema no âmbito do TCU, concentrando-se esforços
no que o TCEMG tem decidido recentemente para, ao final, realizar um paralelo entre a forma com que
o tema é abordado na Corte de Contas mineira e o modo de aplicação do instituto pelo Tribunal de
Contas da União (TCU).
Conquanto existam normas que regulamentem o tema no TCEMG, divergências têm crescido entre
os conselheiros quando da aplicação do instituto, em especial acerca do marco temporal para início
da contagem do prazo decadencial, o que suscita a necessidade de estudo sobre o tema e — quem
sabe? — traçar caminhos interessantes para edição de novos precedentes. Essa é a motivação central
para realização deste estudo, efetivado a partir da leitura de textos da doutrina, das normas vigentes
e dos precedentes extraídos de julgados do TCU e do TCEMG.
Desse modo, para concretização do estudo será adotada a metodologia empírica, utilizando-se
precedentes extraídos de julgados do STF, do TCU e do TCEMG, à medida em que será feita revisão de
doutrina sobre a matéria, consolidando-se estudo crítico sobre o tema central, qual seja, a decadência
e sua aplicação no âmbito do TCEMG.

2 CONTEXTUALIZAÇÃO
2.1 A missão constitucional dos Tribunais de Contas
Consoante exposto no primeiro capítulo, para o bom desenvolvimento do tema adotado como cerne
deste trabalho, qual seja, o instituto da decadência e sua aplicação a ser feita pelos tribunais de contas,
entende-se necessário, inicialmente, realizar uma breve conceituação do controle externo, além de se
esclarecer sua importância sob a perspectiva da atuação dos tribunais de contas, em especial após a
redemocratização ocorrida em 1988.
A figura do tribunal de contas surgiu no Brasil ainda no século XIX, mais precisamente em 1890, quando
Rui Barbosa, por meio do Decreto n. 966-A, criou-o com a função de órgão fiscalizador. Durante o
passar dos anos, inúmeras constituições da República dispuseram sobre as atribuições do tribunal de
contas.
A Constituição da República brasileira de 1988 (CR/1988) previu expressamente em seu artigo 70 a
necessidade de realizar-se controle externo, a ser exercido, primordialmente, no âmbito federal, pelo
Congresso Nacional, para  “fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial
da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade,
economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas.”

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No artigo seguinte, aponta o Tribunal de Contas da União como órgão do controle externo, a quem
atribui diversas competências enumeradas nos incisos de I a XI, dentre elas, a de “apreciar, para fins de
registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal”. Sobre essa competência, recai a decadência,
foco deste trabalho. Importante salientar que o papel atribuído aos tribunais de contas não implica
subordinação à Casa Legislativa titular do controle externo, pelo contrário, como bem conceituou
(RASO, 1997, p. 8-19), quando tratou do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, afirmando o
seguinte.
[...] órgão público de controle externo, investido de poder jurisdicional, próprio e
privativo, em todo o território do Estado, sobre matéria de sua competência. Exerce
função fiscalizadora junto a todos os que manipulam bens ou valores públicos, quer da
administração direta ou indireta de órgãos de qualquer dos Poderes ou de entidade da
administração indireta.

Dado o princípio da simetria entre os entes da federação, é estabelecido no artigo 75 que são aplicadas
as mesmas normas aos tribunais de contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos tribunais
e conselhos de contas dos municípios.
No que se refere ao Estado de Minas Gerais e ao TCEMG, a subseção VI da Constituição Estadual1 trata
do tema “Da Fiscalização e dos Controles”, sendo composta pelos artigos 73 a 82. O controle externo,
atribuído à Assembleia Legislativa – com o auxílio do TCEMG – é previsto nos artigos 74 e 76, enquanto
a estruturação, a composição e as competências do TCEMG estão dispostas nos artigos 76 a 81 da
norma maior estadual.
Ainda na Constituição estadual, encontra-se a previsão, no artigo 76, §7°, de que cabe ao TCEMG a
observância dos institutos da prescrição e da decadência, nos termos da legislação em vigor, in verbis.
Art. 76 – O controle externo, a cargo da Assembleia Legislativa, será exercido com o
auxílio do Tribunal de Contas, ao qual compete:
[...].
§ 7º – O Tribunal de Contas, no exercício de suas competências, observará os institutos da
prescrição e da decadência, nos termos da legislação em vigor. (Parágrafo acrescentado
pelo art. 1º da Emenda à Constituição nº 78, de 5/10/2007.) (Vide art. 118 da Lei
Complementar nº 102, de 17/1/2008.)

Realizadas as breves considerações acerca da missão constitucional dos tribunais de contas, passa-se
ao estudo do instituto da decadência e sua aplicação no âmbito administrativo.

3 A DECADÊNCIA NO ÂMBITO ADMINISTRATIVO


Consoante exposto no tópico anterior, aos tribunais de contas são atribuídas missões constitucionais
e, dentre elas, se encontra a de garantir a segurança jurídica de seus jurisdicionados quando do curso
dos processos de suas competências. Um dos institutos em que se pautam os tribunais de contas para
efetivação da segurança jurídica é a decadência.
O estudo sobre o tema da aplicação da decadência no âmbito administrativo, em particular a feita
pelos tribunais de contas, possui significativa relevância para concretização do Estado Democrático
1
ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Constituição do Estado de Minas Gerais de 1989. Disponível em: https://
www.almg.gov.br/export/sites/default/consulte/legislacao/Downloads/pdfs/ConstituicaoEstadual.pdf Acesso em: 13 jun. 2019.

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de Direito, por se tratar de questão garantidora da segurança jurídica na relação entre Estado e seus
jurisdicionados, ou até mesmo entre os diversos órgãos e entidades da administração pública, pois
assegura que, após determinado curso de tempo, não se fará mais possível a alteração de status quo
adquirido ou conquistado pelo sujeito de direito.
Assim é conceituada a decadência pela doutrina clássica, nas seguintes palavras (AMORIM FILHO,
1960).
[...] quando a lei, visando à paz social, entende de fixar prazos para o exercício de alguns
direitos potestativos (seja exercício por meio de simples declaração de vontade, como
o direito de preempção ou preferência; seja exercício por meio de ação, como o direito
de promover a anulação do casamento), o decurso do prazo sem o exercício do direito
implica na extinção deste, pois, a não ser assim, não haveria razão para a fixação do
prazo. Tal consequência (a extinção do direito) tem uma explicação perfeitamente
lógica: É que (ao contrário do que ocorre com os direitos suscetíveis de lesão) nos
direitos potestativos subordinados a prazo o que causa intranqüilidade social não é,
propriamente, a existência da pretensão (pois deles não se irradiam pretensões) nem a
existência da ação, mas a existência do direito, tanto que há direitos desta classe ligados
a prazo, embora não sejam exercitáveis por meio de ação. O que intranqüiliza não é a
possibilidade de ser exercitada a pretensão ou proposta a ação, mas a possibilidade de
ser exercido o direito. Assim, tolher a eficácia da ação, e deixar o direito sobreviver (como
ocorre na prescrição), de nada adiantaria, pois a situação de intranqüilidade continuaria
de pé. Infere-se, daí, que quando a lei fixa prazo para o exercício de um direito potestativo,
o que ela tem em vista, em primeiro lugar, é a extinção desse direito, e não a extinção
da ação. Essa também se extingue, mas por via indireta, como consequência da extinção
do direito.

Nesse sentido, o instituto da decadência visa à efetivação do princípio fundamental da segurança


jurídica, implícito na Constituição da República de 1988, uma vez que consiste na perda, tida por
seu titular, de certo direito potestativo de revisar ou anular determinado ato que lhe compete, após
decurso de certo tempo legalmente definido. No âmbito federal, o instituto é tratado pela Lei n.
9.784/1999, que regula os processos administrativos da administração pública federal, no artigo 54. O
tema pode ser visto nas palavras de Costa (COSTA, 2017), a seguir.
No âmbito do exercício do poder de autotutela da Administração Pública, a decadência
opera-se em favor do sujeito particular que está subordinado à gestão de algum
órgão ou ente público, por meio da extinção do direito de revisão e de anulação dos
atos administrativos que o favoreçam. Após o decurso do prazo legalmente previsto, o
indivíduo passa ter consolidada a situação fática gerada pelos efeitos concretos do ato
emanado do Estado.

Destaca-se que foi reconhecida existência de repercussão geral no “Tema 445 – Incidência do prazo
decadencial previsto no artigo 54 da Lei 9.784/1999 para a Administração anular ato de concessão de
aposentadoria”, o qual se encontra pendente de julgamento do Supremo Tribunal Federal no Recurso
Extraordinário n. 636.553/RS, conforme se segue.
Recurso extraordinário. 2. Servidor público. Aposentadoria. 3. Anulação do ato pelo TCU.
Discussão sobre a incidência do prazo decadencial de 5 anos, previsto na Lei 9.784/99,
para a Administração anular seus atos, quando eivados de ilegalidade. Súmula 473
do STF. Observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa. Repercussão
geral reconhecida. (RE 636553 RG, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, julgado em
23/06/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-050 DIVULG 08-03-2012 PUBLIC 09-03-2012
REPUBLICAÇÃO: DJe-123 DIVULG 22-06-2012 PUBLIC 25-06-2012 )

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Até novembro de 2019, o termo final da elaboração deste estudo, o julgamento se encontrava
suspenso após proferidos os votos dos Ministros Gilmar Mendes (relator) e Alexandre de Morais,
ambos posicionados pelo parcial provimento ao recurso extraordinário.
No âmbito dos tribunais de contas, o instituto da decadência é aplicado, primordialmente, aos
processos que envolvem atos de pessoal, cuja competência para apreciação é dada pelo artigo 71, III,
da CR/1988; todavia, a sua aplicação não encontra unanimidade entre as decisões das cortes de contas.
A forma de sua aplicação feita pelos tribunais de contas brasileiros não é convergente ou pacífica. 

4 A APLICAÇÃO DA DECADÊNCIA NO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO


Consoante já exposto, a decadência é aplicada no âmbito federal por força do artigo 54 da Lei n.
9.784/1999, que a seguir dispõe, in verbis.
Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram
efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que
foram praticados, salvo comprovada má-fé.
§ 1º No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da
percepção do primeiro pagamento.
§ 2º Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade
administrativa que importe impugnação à validade do ato.

Da leitura do texto da lei, entende-se que é possibilitado à Administração anular seus atos praticados
que produzam efeitos favoráveis a quem se destinam no prazo decadencial de cinco anos. Ademais,
analisando o parágrafo primeiro da referida norma, conclui-se que a contagem do prazo decadencial
se iniciaria a partir do primeiro pagamento quando se tratar de ato administrativo que gere efeito
patrimonial contínuo, como é o caso da concessão de aposentadoria, reforma ou pensão e de admissão
de pessoal. Nesse sentido, a título de exemplo, começaria a correr o prazo decadencial quando o
aposentando recebesse o primeiro provento de seu benefício concedido pela administração.
Na corte de contas da União, a aplicação da decadência é regulamentada não só pelo artigo 54 da
citada lei federal, mas também pelo artigo 260 do Regimento Interno daquele órgão, que registra o
seguinte.
Art. 260. Para o exercício da competência atribuída ao Tribunal, nos termos do inciso III
do art. 71 da Constituição Federal, a autoridade administrativa responsável por ato de
admissão de pessoal ou de concessão de aposentadoria, reforma ou pensão, a que se
refere o artigo anterior, submeterá os dados e informações necessários ao respectivo
órgão de controle interno, que deverá emitir parecer sobre a legalidade dos referidos
atos e torná-los disponíveis à apreciação do Tribunal, na forma estabelecida em ato
normativo.
§ 1º O Tribunal determinará o registro dos atos que considerar legais e recusará o registro
dos atos considerados ilegais.
§ 2º O acórdão que considerar legal o ato e determinar o seu registro não faz coisa
julgada administrativa e poderá ser revisto de ofício pelo Tribunal, com a oitiva do
Ministério Público e do beneficiário do ato, dentro do prazo de cinco anos da apreciação,
se verificado que o ato viola a ordem jurídica, ou a qualquer tempo, no caso de
comprovada má-fé.

Para o STF, os atos concessórios de benefícios, como a concessão de aposentadoria, são de natureza
complexa e só se aperfeiçoam a partir do registro feito pelo Tribunal de Contas, disciplinado no artigo

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71, III, da CR/88. Por tal razão, foi fixado na Suprema Corte o entendimento de que o prazo decadencial
somente teria vigência a partir do registro, quando se configuraria um ato perfeito, que passaria a
existir no mundo jurídico, conforme se vê a seguir.
O ato de aposentadoria configura ato administrativo complexo, aperfeiçoando-se
somente com o registro perante o Tribunal de Contas. Submetido à condição resolutiva,
não se operam os efeitos da decadência antes da vontade final da Administração. (MS
24.997, Relator Ministro Eros Grau, DJ de 01/04/05)
Após cinco anos da apreciação da concessão inicial de aposentadoria, não pode o
TCU, ao examinar posterior ato de alteração, considerar o benefício ilegal em face de
irregularidade já existente e não identificada no momento da primeira decisão, uma vez
que, transcorrido o prazo de cinco anos, decai o direito de o Tribunal rever a decisão que
considerou legal o ato e determinou seu registro, ressalvada a hipótese de comprovada
má-fé (art. 54 da Lei 9.784/1999 c/c art. 260, § 2º, do Regimento Interno do TCU) (Acórdão
15075/2018 - Primeira Câmara. Data da sessão: 27/11/2018. Relator BRUNO DANTAS)

No TCU, é entendimento pacificado o de que os atos de aposentadoria se configuram como atos


administrativos complexos, de modo que somente se aperfeiçoariam após o registro a ser feito pelo
Tribunal de Contas, na mesma linha adotada pelo STF. Nesse sentido, a contagem do prazo decadencial
teria início somente a partir do momento em que houvesse o registro do ato feito pelo órgão de
contas, e não quando da percepção da vantagem decorrente do direito tutelado pela administração,
em dissonância ao disposto no retro mencionado artigo 54. É isso que se extrai da Súmula TCU 278, a
seguir.
Súmula TCU 278: Os atos de aposentadoria, reforma e pensão têm natureza jurídica de
atos complexos, razão pela qual os prazos decadenciais a que se referem o § 2º do art.
260 do Regimento Interno e o art. 54 da Lei nº 9.784/99 começam a fluir a partir do
momento em que se aperfeiçoam com a decisão do TCU que os considera legais ou
ilegais, respectivamente.

E é nesse sentido que a Corte de Contas da União tem decidido nos processos sobre os quais incide a
decadência, como se vê nas decisões cujos excertos são trazidos a seguir.
Os atos de admissão, concessão de aposentadoria, reforma e pensão são considerados
atos complexos, não cabendo a incidência do instituto da  decadência  enquanto
não examinados pelo TCU. (Acórdão 4573/2013 - Segunda Câmara. Data da sessão:
06/08/2013. Relator JOSÉ JORGE)
Não incide a decadência administrativa, prevista na Lei 9.784/1999, nos processos por
meio dos quais o TCU exerce sua competência constitucional de apreciação da legalidade
dos atos de aposentadoria, reforma ou pensão, que, por sua natureza complexa, somente
se aperfeiçoam após seu registro pelo Tribunal. (Acórdão 2132/2014-Primeira Câmara |
Relator: JOSÉ MUCIO MONTEIRO)
O prazo para anulação de aposentadoria começa a fluir a partir do momento em que
ela se aperfeiçoa, com o respectivo registro pelo TCU. Assim, ainda que se admita a
aplicabilidade da Lei n. 9.784/1999 às atividades de controle externo, o prazo decadencial
estabelecido pelo seu art. 54 não constitui um impedimento à apreciação contemplada
pelo art. 71, inciso III, da Constituição Federal. (Acórdão 4446/2008-Segunda Câmara |
Relator: UBIRATAN AGUIAR)

Uma incongruência nesse posicionamento consiste no fato de o ato de aposentadoria surtir efeitos
quando da publicação de sua concessão, recebendo o beneficiário, a partir daí, os proventos
correspondentes. Nessa perspectiva, o registro do ato não seria condição de sua existência, mas
apenas forma de exercício do controle externo, para verificação da conformidade com a norma.

88 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 83-98 jul./dez. 2020


A Corte de Contas federal também aplica a tese firmada pelo STF quanto a não incidir a decadência
quando o ato é inconstitucional, conforme julgado recente, a seguir.
Não incide a decadência quando se trata de acumulação inconstitucional de cargos,
empregos ou funções públicas, devendo os órgãos e as entidades da Administração
Pública Federal regularizarem esse tipo de situação mesmo quando o ato de admissão
ou concessão já tenha sido registrado pelo TCU, independentemente do tempo
transcorrido. (Acórdão 1707/2019. Plenário. Data da sessão 24/07/2019. Relator BRUNO
DANTAS)

A aplicação da decadência para atos administrativos não passíveis de registro foi tratada na consulta
respondida pelo TCU em 29/8/2012, apresentada pelo, à época, Ministro de Estado das Comunicações
nos seguintes termos: “Aplicando-se o art. 54 da Lei n° 9.784/99, qual o termo inicial do prazo
decadencial para a Administração anular os seus atos eivados de vícios, no exercício da autotutela,
nos procedimentos licitatórios de radiodifusão”, a qual foi solucionada da seguinte forma.
O termo inicial do prazo estabelecido no art. 54 da Lei 9.784/1999 para a Administração
anular ato praticado em procedimento licitatório é a data da realização desse ato. Caso,
porém, haja interposição de recurso contra tal ato, o termo inicial passa a ser a data da
decisão desse recurso. (Acórdão 2318/2012-Plenário. Data da sessão 29/08/2012. Relator
José Jorge)
O termo inicial da decadência administrativa é a data em que o ato foi praticado e não
a data de início da produção dos efeitos do ato. (Acórdão 2747/2014-Plenário. Data da
sessão. 15/10/2014. Relator BENJAMIN ZYMLER)

Feitas as considerações sobre a atuação do Tribunal de Contas da União, passa-se à análise da forma
com que o mesmo instituto é abordado no Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais.

5 A APLICAÇÃO DA DECADÊNCIA NO TCEMG


Este capítulo visa elucidar a aplicação da decadência no âmbito do Tribunal de Contas do Estado de
Minas Gerais. Para tanto, far-se-á a análise das normas que tratam da decadência nesse órgão para,
então, aprofundar nos julgados proferidos pelo TCEMG, como método de aferição de sua aplicação.

5.1 Normas que tratam da decadência no TCEMG


No Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, o instituto da decadência foi introduzido por meio da
Súmula TC n. 105 - publicada em 6/9/2007 - e, posteriormente, acrescido à Lei Orgânica do Tribunal (Lei
Complementar n. 102/2008), a qual sofreu alterações com o advento da Lei Complementar n. 120/2011
(que revogou o artigo 118, o qual previa que “O Tribunal, no exercício de suas competências, observará
os institutos da prescrição e da decadência, nos termos da legislação em vigor” e incluiu o artigo 110-
H, versando sobre a aplicação do tema sobre os atos de pessoal) e da Lei Complementar n. 133/2014
(a qual inseriu o artigo 118-A, que também disciplina atualmente a matéria). O assunto é tratado
no capítulo XV do Regimento interno da Corte, a partir do artigo 182-A, incluídos pela Resolução
n. 17/2014, de 8/10/2014. “Art. 182-A. A prescrição e a decadência são institutos de ordem pública,
alcançando as ações de fiscalização do Tribunal. (Incluído pelo art. 1º da Resolução nº 17/2014, de
8/10/2014)”

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No parágrafo único do mesmo artigo é ditada a forma de aplicação dos institutos nos processos da
Corte de Contas, que se pode dar “de ofício pelo Relator ou mediante provocação do Ministério Público
junto ao Tribunal ou requerimento do responsável ou interessado”.
É disposto no artigo 110-H da Lei Complementar n. 102/2008, Lei Orgânica do TCEMG, o previsto a
seguir.
Art. 110-H. Salvo disposição legal em contrário, não se aplicam à decadência as normas
que interrompem ou suspendem a prescrição.
Parágrafo único. Nas aposentadorias, reformas e pensões concedidas há mais de cinco
anos, bem como nas admissões ocorridas há mais de cinco anos, contados da data de
entrada do servidor em exercício, o Tribunal de Contas determinará o registro dos atos
que a administração já não puder anular, salvo comprovada má-fé.

A mesma previsão foi também inserida no Regimento Interno daquele órgão de contas2, no artigo
182-I, pela Resolução n. 17/2014.  
Destaca-se que a Súmula n. 105, decorrente do Incidente de Uniformização de Jurisprudência n.
72.4637 julgado pelo TCEMG, em sessão plenária datada de 13/6/2007, pautou-se na já tratada Lei
Federal n. 9.784/1999, em seu artigo 54, e na norma estadual correspondente, qual seja, o artigo 65 da
Lei Estadual n. 14.184/2002, que dispõe o seguinte, in verbis.
Art. 65 – O dever da administração de anular ato de que decorram efeitos favoráveis
para o destinatário decai em cinco anos contados da data em que foi praticado, salvo
comprovada má-fé.
§ 1º – Considera-se exercido o dever de anular ato sempre que a Administração adotar
medida que importe discordância dele.
§ 2º – No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência será contado da
percepção do primeiro pagamento.

Analisando conjuntamente as retrocitadas normas, constata-se que à Corte estadual de Contas


compete registrar os atos de pessoal que a administração já não puder anular, passados mais de cinco
anos desde a ocorrência, salvo os casos em que for constatada má-fé. Também tem sido utilizada a
tese do STF de que a decadência não se aplica sobre atos manifestamente inconstitucionais, como foi
julgado no Processo Administrativo n. 650082, na sessão datada de 12/9/2019:
À vista do entendimento consolidado no âmbito do Supremo Tribunal Federal,
embora decorrido o prazo decadencial previsto no art. 110-H, parágrafo único, da Lei
Complementar n. 102/2008, com a redação dada pela Lei Complementar n. 120/2011,
e no art. 182-I, parágrafo único, do Regimento Interno do Tribunal, não se opera a
decadência sobre atos manifestamente inconstitucionais.

Consoante consta do Capítulo IV do Regimento Interno TCEMG, o art. 256 dispõe o seguinte.
Art. 256. O Tribunal apreciará, para fins de registro, mediante procedimentos de
fiscalização ou processo específico, conforme ato normativo próprio, a legalidade
dos atos de: I - admissão de pessoal, a qualquer título, por órgão ou entidade das
administrações direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo
poder público, no âmbito estadual e municipal, excluídas as nomeações para cargo de
provimento em comissão; II - concessão de aposentadoria, reforma e pensão, bem como
as melhorias posteriores que tenham alterado o fundamento legal do ato concessório.

TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Resolução n. 12/2008, de 17/1/2008.


2

90 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 83-98 jul./dez. 2020


O Regimento Interno prevê, também, as hipóteses quanto à deliberação dos atos de pessoal, sobre os
quais incide o prazo decadencial, conforme já apresentado, como se pode ver a seguir.
Art. 258. O Relator concederá prazo de até 60 dias para complementação da instrução
processual, apresentação de justificativas ou adequação do ato às exigências legais.
§ 1º Após a instrução do processo, o Órgão Colegiado competente ou o Relator, nos
termos do art. 32, parágrafo único, deste Regimento:
I - determinará o registro do ato:
a) quando não houver infração à norma legal ou regulamentar;
b) quando constatada falta ou impropriedade de caráter formal de que não resulte dano
ao erário;
c) quando constatada a decadência,
II - denegará o registro, se houver ilegalidade no ato, e determinará ao responsável a
adoção de medidas regularizadoras, em até 15 (quinze) dias, as quais deverão ser
comunicadas ao Tribunal no mesmo prazo.

Da leitura da norma recém colacionada, extrai-se que compete aos julgadores dos atos analisarem os
atos de pessoal à luz da legalidade, registrando-os pela regularidade total, pela regularidade parcial
cuja falta ou impropriedade seja de caráter formal e não tenha gerado dano ao erário, ou, verificado
o transcurso do prazo decadencial, com fundamento nas alíneas “a”, “b”, e “c”, respectivamente, do
apontado no artigo 258, inciso “I”.

5.2 Análise de como tem sido aplicada a decadência nos processos


do TCEMG
Abordadas, no tópico retro, as normas que tratam do tema da decadência no TCEMG, passa-se à
análise dos julgados proferidos por esse órgão sobre o tema, para elucidar a forma com que tem sido
aplicada a decadência nos processos do Tribunal de Contas mineiro.
Não obstante, como foi demonstrado, a Lei Orgânica do TCEMG e o Regimento Interno do Órgão
- RITCEMG - tratarem da aplicação do instituto da decadência de forma expressa, os membros da Corte
de Contas mineira têm apresentado interpretações diversas sobre o instituto quando de sua aplicação
prática nos processos de aposentadoria, pensão ou reforma, bem como nos atinentes à admissão de
pessoal. Da proposta de voto apresentada no processo de Aposentadoria n. 823.855,3 a seguir pode-se
ver o posicionamento. 
para se proceder à aplicação da decadência é necessário não só que ocorra o transcurso
temporal de cinco anos entre a data da concessão da aposentadoria e da sua
apreciação pelo Tribunal, mas também que o registro do Tribunal recaia sobre atos que
a Administração já não puder anular, salvo comprovada má-fé, que sejam ampliativos
de direitos a teor do art. 54 da Lei de Processo Administrativo Federal e do art. 65 do
congênere diploma mineiro
[...].
Observa-se que para se proceder à aplicação da decadência é necessário não só que
ocorra o transcurso temporal de cinco anos entre a data da concessão da pensão e da sua
apreciação pelo Tribunal, mas também que o registro do Tribunal recaia sobre atos que
a Administração já não puder anular, salvo comprovada má-fé, que sejam ampliativos
de direitos, a teor do art. 54 da Lei de Processo Administrativo Federal e do art. 65 do
congênere diploma mineiro [...].

Processo de Aposentadoria n. 82.3855. 10ª Sessão Ordinária da Segunda Câmara, 4/4/2019.


3

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 83-98 jul./dez. 2020 91


Percebe-se, pois, que tais dispositivos legais não projetam a decadência sobre o ato
administrativo hígido. (decisão proferida na sessão da Segunda Câmara do dia 6/9/2018,
nos autos de n. 854.116)

Destaca-se que ficou consignado na proposta de voto apresentada que “a decadência [...] somente se
aplica como impedimento à invalidação pela administração pública de atos anuláveis ampliativos por
ela atingidos”.
Sob tal viés, alguns conselheiros têm optado pelo afastamento do instituto quando o ato administrativo
se mostra regular, conforme análise da unidade técnica correspondente. Nesse sentido foram os
julgamentos dos processos de Aposentadoria n. 9807074 e de Pensão n. 9317815.
Na sessão da Primeira Câmara datada de 7/11/2018, constou-se pronunciamento no julgamento da
Aposentadoria n. 7385186, quanto à aplicação do instituto da decadência na corte de contas mineira
nos seguintes termos.
[...] os atos de pessoal sujeitos a registro nesta Casa se enquadram, na classificação dos
atos administrativos, como sendo de natureza complexa, somente se aperfeiçoando
com o registro pelo Tribunal de Contas. Por esse motivo, perfilho o entendimento de
que o prazo decadencial relativo às concessões de aposentadorias, reformas e pensões
somente tem início a partir do registro pelo Tribunal de Contas competente.

Evidencia-se que o entendimento consubstanciado no Tribunal de Contas da União foi ressalvado


no pronunciamento em questão, mas, à luz do princípio da colegialidade, as normas do Tribunal
de Contas mineiro permaneceram sendo majoritariamente adotadas. Destaca-se que a aplicação
da decadência tem sido afastada quando constatada legalidade do ato concessório, aplicando-a
somente na existência de vícios apontados pela Unidade Técnica, que auxilia na instrução processual,
consoante é possível verificar nos processos de Reforma n.  10571577 e Aposentadoria n. 1063487.
O posicionamento adotado é o de que o registro do ato com fundamento em sua legalidade seria
mais favorável ao beneficiário, pois, após registrado, impossibilitaria a anulação, a ser feita pela
administração concedente, conforme é possível extrair da decisão proferida pelo TCEMG, na Reforma
n. 1061875, julgada na sessão da Primeira Câmara datada de 9/7/2019, como se vê a seguir.
[...] entendo que o reconhecimento da decadência não pode condicionar a atribuição
constitucional deste Tribunal para a análise da regularidade dos atos sujeitos a registro,
tendo em vista que o limite imposto legalmente, consubstanciado no instituto da
decadência, direciona-se ao poder de autotutela da própria administração concedente.
Assim, não sendo constatada ilegalidade após a devida análise do ato, afasta-se a
possibilidade de anulação pela administração, o que propicia a determinação de registro
pelo atendimento às disposições legais.
Feitas essas considerações, uma vez verificada nos autos a regularidade do ato sujeito
a registro, fica exaurida de fundamento a aplicação da decadência. Ademais, reputo
que a determinação do registro pelo atendimento às disposições legais mostra-se mais
benéfica ao interessado, por se coadunar com os atributos da presunção de legalidade,
legitimidade e veracidade de que gozam os atos administrativos. Muito embora o
entendimento pelo reconhecimento da decadência venha sendo adotado em diversos
julgados deste Tribunal, em consonância com a fundamentação disposta pelo eminente

Aposentadoria n. 980.707. Data da sessão: 19/2/2019. Data do trânsito em julgado: 6/5/2019.


4

Pensão n. 931781. Primeira Câmara. Data da sessão: 14/5/2019. Data do trânsito em julgado: 13/8/2019.
5

Aposentadoria n. 738.518. Data da sessão: 7/11/2018. Data do trânsito em julgado: 30/7/2019.


6

Reforma n. 1057157. Primeira Câmara. Data da sessão: 28/5/2019. Data do trânsito em julgado: 13/8/2019.
7

92 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 83-98 jul./dez. 2020


Conselheiro Substituto Victor Meyer, entendo ser mais favorável realizar o registro pela
legalidade e proponho que seja afastada a aplicação da decadência.

Também nesse sentido foi a decisão prolatada no processo de Aposentadoria n. 10196998, como se
vê a seguir.
Em que pese o posicionamento do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas,
entendo que o ato deve ser registrado, nos termos da alínea “a” do inciso I do § 1º do
artigo 258 da Resolução nº12/2008 desta Corte, uma vez que o processo se encontra
regular, tendo sido preenchidos os requisitos constitucionais e legais da presente
aposentadoria.

No mesmo sentido o julgado nos autos da Aposentadoria n. 1004848, in verbis a seguir.


Em que pese seja a decadência, em regra, examinada como prejudicial de mérito,
entendo que, excepcionalmente, no caso da decadência dos atos sujeitos a registro, é
preferível efetuar o registro pela legalidade, sempre que possível.
Isso porque a previsão da decadência na Lei Orgânica deste Tribunal é de
constitucionalidade discutível, pois destoa do entendimento do STF a respeito da
natureza do ato de aposentadoria, reforma ou pensão, no sentido de que são atos
complexos, que somente se aperfeiçoam com o registro. Segundo esse entendimento,
pacificado no Supremo há mais de dez anos (MS 25090/DF, 25192/DF e 25697/DF, todos
do Pleno), o prazo da decadência para o exercício da autotutela pela Administração
somente deve começar a contar a partir do registro, e não da concessão.
Sendo assim, não se verificando ilegalidade no ato de aposentadoria, reforma ou pensão,
entendo que o registro deve ser feito pela legalidade, e não pela decadência, a fim de
conferir mais estabilidade ao ato de registro e mais segurança jurídica ao jurisdicionado.
(TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Processo Aposentadoria n.
1004848. Segunda Câmara. Sessão: 8/8/2019. Trânsito em julgado: 4/11/2019)

Além de corroborar a tese de que o registro do ato com base em sua legalidade - e não com
fundamento na decadência - é mais favorável ao beneficiário do ato, o último julgado demonstra
a utilização de posicionamento conforme entendimento firmado pelo STF e também pelo TCU, no
sentido de que os atos de aposentadoria, reforma ou pensão seriam de natureza complexa, de modo
que a decadência somente seria contada a partir do registro feito pelo tribunal de contas respectivo,
conforme já explanado alhures.
Destaca-se que, no citado processo de Aposentadoria n. 1004848, o relator foi vencido em seu
entendimento, pelos seguintes fundamentos apresentados no voto divergente, in verbis.
Acolho a proposta de voto do Relator pelo registro do ato concessório, mas mantendo
coerência com que o venho defendendo, divirjo quanto ao fundamento legal do registro,
uma vez que, em face do decurso de mais de cinco anos desde a data da concessão do
benefício, entendo cabível a aplicação da decadência. Diante disso, voto pelo registro
do ato concessório, com fundamento no disposto no art. 110 H, parágrafo único, da Lei
Orgânica, c/c 258, § 1º, inciso 1º, alínea “c”, regimental.

Tal entendimento tem sido reforçado em julgados recentes, conforme é demonstrado na sessão da
Segunda Câmara datada de 23/5/2019, retorno de vista do processo de Aposentadoria n. 823.855, no
qual foi consignado o seguinte.
[...] a Lei Orgânica estabelece, como únicos pressupostos para a aplicação do instituto da
decadência, o decurso do prazo de cinco anos e a inexistência de má-fé, de modo que,

8
Aposentadoria n. 1019699. Primeira Câmara. 39ª Sessão Ordinária — 18/12/2018. Trânsito em julgado: 27/2/2019

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 83-98 jul./dez. 2020 93


transcorrido o mencionado lapso temporal desde a concessão do benefício, é necessário
verificar tão somente se o ato submetido a registro foi realizado com má-fé. Ou seja,
ausente esse elemento subjetivo que macula o ato de forma insanável, o ato deve ser
registrado pela decadência, seja ele hígido ou contaminado por algum vício.
[...]
A meu ver, a Lei Orgânica estabelece, como únicos pressupostos para a aplicação do
instituto da decadência, o decurso do prazo de cinco anos e a inexistência de má-fé, de
modo que, transcorrido o mencionado lapso temporal desde a concessão do benefício,
é necessário verificar tão somente se o ato submetido a registro foi realizado com má-
fé. Ou seja, ausente esse elemento subjetivo que macula o ato de forma insanável, o
ato deve ser registrado pela decadência, seja ele hígido ou contaminado por algum
vício. (Retorno de Vista. Processo de Aposentadoria n. 823855. Segunda Câmara. Sessão
23/5/2019)

No juízo exposto, a decadência é questão a ser decidida preliminarmente e, caso reconhecida de


plano, o processo merece ser extinto, com resolução de mérito, sem a análise do mérito propriamente
dita. É aduzido, ainda, que “a literalidade na interpretação do dispositivo que trata da decadência no
âmbito desta corte gera uma lógica transversa com sérios efeitos práticos”, uma vez que se inverteria a
lógica do sistema ao verificar a regularidade do ato concessório para, somente então, ser afastada ou
aplicada a decadência. Tal entendimento tem sido majoritário na Segunda Câmara da Corte.
De acordo com a inteligência exposta, a decadência deveria ser aplicada para processos em que não
incorra a presença de inconsistências, mas também naqueles que possuam vícios, mas que não foram
cometidos de má-fé - hipótese única que é prevista na norma da Casa para afastar-se a aplicação do
instituto.
Sob esse raciocínio, passado o prazo decadencial, não é necessária a análise do mérito da questão,
cabendo a aplicação da decadência de plano, em prejudicial de mérito, consoante já aludido. Se assim
não o for, criam-se duas categorias de análise. A primeira seria aquela em que a unidade técnica,
responsável pelo relatório de caráter técnico nos processos do TCEMG, verifica o decurso do prazo
decadencial, mas, diante da ausência de irregularidades no processo, opina pelo registro do ato da
administração com base na regularidade constatada, ou seja, fundamentado no artigo 258, inciso I,
alínea “a”, do Regimento Interno. A segunda seria configurada quando incorrer o período decadencial
e se encontrarem presentes certos vícios formais no ato administrativo não ensejadores de dano ao
erário (os descritos na alínea “b” do art. 258, I, do RITCEMG), de modo que a unidade técnica findaria
seu parecer opinando pelo registro com base no art. 258, inciso I, alínea “c”. O que se infere é que a
decadência, sob esse viés, só seria passível de aplicação quando eivado de vícios formais o processo.
Sob tal perspectiva, não haveria o alcance da segurança jurídica, a qual se faz existente no instituto.
A decadência serve aos administrados como meio de garantia de que a administração não poderá
mais alterar os atos sobre os quais o instituto recaiu. Quando o Tribunal de Contas, no cumprimento
do seu dever constitucional de registrar os atos descritos do art. 71, III, da CR/1988, afasta a aplicação
da decadência para reconhecer a regularidade do ato, está também afastando a segurança jurídica do
jurisdicionado, na medida em que, constatada posterior irregularidade formal, a situação reconhecida
poderá ser revista; enquanto, se aplicada a decadência, não haveria mais que se rever o ato.
Na decisão prolatada no retorno de vista do processo de aposentadoria n. 823.855 ficou consignado
o que se vê a seguir.
Nesse cenário, a literalidade na interpretação do dispositivo que trata da decadência no
âmbito desta Corte gera uma lógica transversa com sérios efeitos práticos.

94 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 83-98 jul./dez. 2020


O primeiro deles seria a obrigatoriedade de se realizar o exame da questão de fundo,
o próprio mérito do processo, antes da análise a respeito da ocorrência ou não da
decadência, invertendo, pois, toda a lógica sistêmica. Um outro efeito que vislumbro,
também grave, é que, caso prevaleça tal interpretação, estar-se-ia criando duas categorias
de registro, quais sejam: 1) o registro pela regularidade, após cinco anos, em que o
Tribunal demonstra que sua inação não prejudicou a sociedade, já que o ato era regular;
2) o registro pela decadência, uma espécie de segunda categoria de registro, mediante
o qual se expõe que aquele ato não deveria ser registrado se tivesse sido apreciado em
tempo hábil. Ou seja, aquele ato estaria sendo reconhecido como ilegal e passível de
denegação em caso de atuação tempestiva, ficando presumida a sua incompatibilidade
com o ordenamento jurídico. Em face desses argumentos, entendo não ser cabível a
interpretação conferida à norma no sentido de que ela imporia ao julgador a apreciação
do mérito antes de questão prévia (preliminar ou prejudicial) (Retorno de Vista. Processo
de Aposentadoria n. 823855. Segunda Câmara. Sessão 23/5/2019)

Não obstante as divergências já apontadas, tem sido suscitado em julgados do TCEMG que a
contagem do prazo decadencial somente se iniciaria a partir da publicação do ato pelo responsável,
oportunidade na qual o órgão de controle passa a ter ciência do fato. Sobre o tema, ficou disposto na
proposta de voto apresentada no processo de aposentadoria n. 891.982 o seguinte.
[...] tendo em vista que já transcorreram mais de cinco anos desde a concessão da
aposentadoria, bem como da data de publicação do respectivo ato, que reputo
ser o marco inicial para a contagem do prazo decadencial, em consonância com o
entendimento do Conselheiro José Alves Viana no Processo de Aposentadoria n. 1045455,
ressalto que não ficou comprovada a existência de má-fé. Desse modo, entendo que
a concessão do benefício foi alcançada pela decadência, consoante manifestação do
Ministério Público de Contas, o que possibilita o registro do ato. (TRIBUNAL DE CONTAS
DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Processo Aposentadoria n. 891982. Primeira Câmara. 18º
Sessão Ordinária – 28/5/2019. Trânsito em julgado: 13/8/2019)

Consoante apontado na decisão, o entendimento de que o marco inicial para contagem do prazo
decadencial seja a data da publicação do ato, vem sendo defendido, conforme se constata da
leitura da decisão do processo de Aposentadoria n. 10029739, e o referenciado na fundamentação do
voto apresentado na 35ª sessão ordinária da Segunda Câmara, em 6/12/2018, nos autos do processo
de aposentadoria n.1003078, que relata o seguinte.
Impende, ainda, registrar que a Administração Pública é regida pelo princípio
constitucional da publicidade, que é condição de eficácia do ato administrativo. Assim,
entendo que o instituto da decadência deve ser aplicado ao processo de aposentadoria,
reforma ou pensão concedida há mais de cinco anos, contados a partir do primeiro dia
útil seguinte ao da publicação do ato concessório.
A propósito, embora o art. 4º da Instrução Normativa nº 03, de 2011, apresente rol de
eventos como marcos iniciais a partir dos quais será considerada a concessão efetiva
do benefício, pareceres do Órgão Ministerial demonstram que a data da publicação
do ato de concessão deve ser considerada como termo inicial da contagem do prazo
decadencial. É o que se observa, v.g., no Processo nº 1.009.694 e no Processo nº 889.954.
Talvez não seja demais lembrar que tal entendimento já foi adotado por este Tribunal,
consoante dispõe o inciso I do art. 1º da Ordem de Serviço nº 06, de 2007, revogada pela
Ordem de Serviço nº 03, de 2008.
A meu sentir, essa exegese é a que mais condiz com a Constituição da República (caput
do art. 37), mais especificamente com o direito constitucional de acesso do cidadão à
informação pública, direito que, hoje, se encontra regulamentado pela Lei nº 12.527, de
2011, conhecida como Lei de Acesso à Informação.

9
Aposentadoria n. 1002973. Segunda Câmara. Sessão: 13/12/2018. Trânsito em Julgado: 7/3/2019.

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Destaca-se que, embora não mais vigente, a apontada Ordem de Serviço n. 6, de 2007, revogada pela
Ordem de Serviço n. 3, de 2008, dispunha o que se segue, no então artigo 1º.
Art. 1º- Deverá ser aplicado o instituto da decadência aos seguintes processos que se
encontram na Diretoria de Análise de Atos de Admissão, Aposentadoria, Reforma e
Pensão:
I- aposentadorias, reformas e pensões concedidas há mais de cinco anos, contados a
partir da data da publicação do ato concessório;
[...].

À luz do direito administrativo e do direito constitucional, o ato administrativo só se torna eficaz e


existente após sua publicação, dado o preceito constante do art. 37 da CR/88. Nesse sentido, entende-
se por acertada a tese de que a decadência começaria a fluir a partir da data de publicação do ato
administrativo, consoante vem sendo recentemente defendido por alguns membros da Corte de
Contas mineira.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ficou demonstrado que a aplicação do instituto da decadência é bastante divergente entre o TCU e
o TCEMG. Sobre a questão do marco temporal para aplicação do instituto da decadência, divergem
o Tribunal de Contas da União e o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais - ao menos, o
entendimento majoritário - uma vez que, para o órgão federal, os atos de pessoal são de natureza
complexa e somente se concretizam a partir do registro pelo TCEMG, considerado marco inicial para
contagem do prazo decadencial.
Já no Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, o entendimento majoritário é o de que o
prazo começa a ser contado a partir da data da concessão de aposentadoria, pensão ou reforma,
ou de ingresso do servidore no quadro de pessoal da administração. Embora majoritário esse
entendimento no TCEMG de que o marco para o curso do prazo decadencial seja a concessão do
benefício, divergências têm sido suscitadas para que se julgue em consonância com o que pregam
o STF e o TCU, e para que seja adotada a data da publicação do ato realizado pela administração
pública.
Ademais, constata-se que, embora existam normas que disponham de forma expressa sobre a
aplicação do instituto no TCEMG, divergências têm aumentado e gerado discussões produtivas nas
sessões das câmaras, em especial da Segunda Câmara, acerca do tema.
Verifica-se a necessidade de uniformização de entendimento no TCEMG acerca da aplicação da
decadência nos processos julgados, para que o instituto garantidor da segurança jurídica sirva,
de fato, para o qual foi proposto. Para tanto, consoante dispõe o Regimento Interno da Casa, nos
artigos 223 a 225, incidente de uniformização de jurisprudência poderia ser arguído por conselheiro,
conselheiro substituto, membro do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas, responsável ou
interessado, de modo a ser votada exegese que dirima a questão divergente e dê segurança aos
jurisdicionados quanto aos julgados da Casa que versem sobre decadência.

96 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 83-98 jul./dez. 2020


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98 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 83-98 jul./dez. 2020


FUNDAMENTOS DO DIREITO CONSTITUCIONAL
CONTEMPORÂNEO: DO CONSTITUCIONALISMO AO
NEOCONSTITUCIONALISMO E PÓS POSITIVISMO
FUNDAMENTALS OF CONTEMPORARY CONSTITUTIONAL LAW:
FROM CONSTITUTIONALISM TO NEOCONSTITUTIONALISM AND
POST-POSITIVISM

Lucas Antunes Leão

CRÉDITO: ARQUIVO PESSOAL


Especialista em Finanças Públicas pela Escola de Contas
e Capacitação Professor Pedro Aleixo, Belo Horizonte,
MG, Brasil. Especialista em Segurança Pública e Atividade
Policial pela Faculdade Arnaldo, Belo Horizonte, MG,
Brasil. Bacharel em Direito pela Universidade Fumec, Belo
Horizonte, MG, Brasil.
CV: http://lattes.cnpq.br/6136431201465552
E-mail: lucas.leao@tce.mg.gov.br

Resumo Abstract
Este trabalho destaca a evolução do direito This work highlights the evolution of Constitutional
constitucional como um vetor interpretativo Law as an interpretative vector to Contemporary Law.
ao direito contemporâneo. Pontua It points out general and propedeutical considerations
considerações gerais e propedêuticas acerca about constitutionalism to evolve into notions about
do constitucionalismo para, posteriormente, post-positivism and neo-constitutionalism. It also
evoluir em noções sobre o pós-positivismo discusses some characteristics of constitutions, their
e o “neoconstitucionalismo”. Disserta sobre classifications and nuances about the applicability
algumas características das constituições, suas of their norms in order to understand the essence of
classificações e nuances acerca da aplicabilidade constitutions. Emphasizes the need to intensify the
de suas normas, visando melhor compreender a debate, at a global and national level, considering the
essência das constituições. Destaca a necessária importance of the study of basic and fundamental
intensificação do debate, em âmbito global e notions, in order to warn the legal system and the
nacional, ponderando sobre a importância do community about the danger of encrusting remnants
estudo de noções nevrálgicas e basilares no afã de of absolutism in non-observance of constitutional
alertar ao sistema jurídico e à coletividade sobre norms, especially when is based on a legalistic
o perigo de encrustar resquícios de absolutismo interpretation, without observing the generality and
na inobservância das normas constitucionais, complexity of the norms, in each concrete case. Was
mormente quando se pauta em uma interpretação used the method of dialectical approach, comparing
legalista, sem observar a generalidade e a ideas and logical arguments, through an exploratory
complexidade das normas e de cada caso concreto. research whose data collection had fulcrum in a
Recorreu-se ao método de abordagem dialético, bibliographical survey of indirect documentation.
comparando ideias e argumentos lógicos, por
meio de uma pesquisa exploratória cuja coleta de
dados teve fulcro em levantamento bibliográfico de
documentação indireta.

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Palavras-chave: direito constitucional; constitucionalismo; neoconstitucionalismo; pós-positivismo;
interpretação constitucional.
Keywords: constitutional right; constitucionalismo; neo-constitucionalism; post-positivism;
constitucional interpretation.

1 INTRODUÇÃO
Este artigo abordará a evolução do direito constitucional e apresentará relevantes considerações
acerca desse ramo do direito. Evidenciará noveis facetas interpretativas e os desafios que o
universo jurídico encontra em relação à interpretação, aplicabilidade e efetividade das cláusulas
constitucionais. Para tanto, discorreu sobre o avanço do constitucionalismo, até chegar em
movimentos contemporâneos, a exemplo do pós-positivismo e do neoconstitucionalismo.
Destacará aspectos fundamentais das principais correntes filosóficas e teóricas que dissertam sobre
esses institutos.
Buscará demonstrar, por meio de noções classificatórias e propedêuticas, além de linhas teóricas,
que cada constituição, apesar das diversas peculiaridades, possui um objetivo semelhante (que
é guindar e estruturar a atuação do governo e de seus governados, por meio de princípios e
normas vetoriais, além de estabelecer direitos fundamentais que devem ser respeitados); ou seja,
evidenciará qual é a substância mister do documento constitucional, em consonância com as novas
formas de interpretação, oriundas do pós-guerra, guindadas no princípio da dignidade humana.
O que se pretende é otimizar o debate acerca da interpretação constitucional visando adequar
as normas constitucionais à realidade social, fazendo com que os governados e os governantes
tenham a possibilidade de serem satisfeitos e o pleno entendimento do jaez constitucional e dos
direitos fundamentais, aproximando o universo fático à ideia de justiça.
A generalidade dos princípios em relação às regras e à dialética da Constituição levantam hipóteses
que podem ser favoráveis ou desfavoráveis ao direito individual e coletivo dos integrantes de uma
comunidade. Como exemplo de alinhamento com as essências constitucionais contemporâneas,
sublimam-se hipóteses favoráveis, dentre as quais destacam-se a garantia dos direitos fundamentais
e dos vetores constitucionais. Por outro lado, em contraste com o “modo de ser” das leis maiores,
sobrelevam-se hipóteses negativas encrustadas nos desvios de atuação dos intérpretes no pós-
positivismo e no neoconstitucionalismo (ou constitucionalismo contemporâneo), quais sejam:
ativismo judicial; ausência de legitimidade democrática aos juízes em sua discricionariedade,
quando abusiva; inexistência de critérios para a ponderação etc. O artigo apresentará linhas que
visam robustecer a hermenêutica e evidenciar soluções práticas, ou, em um segundo momento,
provocar o universo científico (acadêmico ou jurídico) a intensificar o debate nesses pontos.
Para tanto, no referente à metodologia, recorreu-se ao método de abordagem dialético, comparando
ideias e argumentos lógicos, por meio de uma pesquisa exploratória cuja coleta de dados teve fulcro
em levantamento bibliográfico de documentação indireta. Com efeito, trata-se de uma pesquisa
qualitativa.

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2 DIREITO CONSTITUCIONAL, CONSTITUCIONALISMO E CONSTITUIÇÃO:
CONSIDERAÇÕES GERAS
A partir dos ensinamentos de José Afonso da Silva1 observa-se que o direito constitucional é uma
espécie do direito público, distinguindo-se dos demais ramos pela especificidade de seu objeto e
pela natureza peculiar dos princípios que o informam. É configurado como um direito público
fundamental, considerando que preconiza à organização, o funcionamento do Estado, bem como à
articulação de elementos embrionários e o estabelecimento de supedâneos da estrutura política. Pelo
fato de repousar harmonia e a vida do grupo ao estabelecer equilíbrio entre os elementos, o direito
constitucional adquire uma roupagem central, derivando os demais ramos do direito.
Na perspectiva de Marcelo Novelino2, o direito constitucional se diferencia dos outros ramos do direito
levando em conta as suas peculiaridades, o seu grau hierárquico elevado, a classe de suas normas
e as condições de sua validade e capacidade de se imporem perante a realidade social. Nesse viés,
as normas constitucionais possuem caráter vinculante e supremo, sendo, no entanto, verdadeiras
condicionantes à forma e ao conteúdo dos atos elaborados pelos poderes públicos, sob pena de
invalidação.
Apesar desse caráter ramificado (oriundo do direito público fundamental), Pedro Lenza3 alerta que
em uma concepção moderna, o direito é entendido como sendo uno, indivisível e indecomponível.
Logo, o direito deve ser compreendido como um grande sistema, que se harmoniza no conjunto, por
meio do diálogo das fontes. Nesse sentido, observou que há forte influência do direito constitucional
sobre o direito privado, mormente guindada pelo princípio da dignidade-humana (matriz de todos os
direitos fundamentais – art. 1ª, III, da CR/88), superando, portanto, a existência de dicotomia entre o
direito público e o direito privado e corroborando a tese de unicidade do direito.
Em consonância, Luís Roberto Barroso4 recrudesce que a ordem jurídica é um sistema lógico,
composto por elementos que se articulam com harmonia. Barroso ensina ainda que o direito,
entendido como técnica de disciplina da vida coletiva, colima, de forma precípua, o regimento
de comportamentos em função de valores cuja preservação se julgou conveniente. Além dessas
normas de comportamentos que geram direitos e obrigações, coexistem normas de organização e
programáticas de um Estado. Marcelo Novelino5 aponta que o direito constitucional é o seu próprio
garantidor e, por esse motivo, necessita de uma configuração que assegure, mediante a independência
e harmonia entre os poderes, a natural observância de suas normas pelos componentes (poderes)
constituídos. Por oportuno, Konrad Hesse6 disserta que existe nas constituições um conjunto de
princípios concretos e elementos que são supedâneos do ordenamento jurídico comunitário,
guindando a atuação estatal.

AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009. p. 34.
1

NOVELINO, Marcelo. Curso de direito constitucional. 11. ed. rev., ampl. E atual. – Salvador: Ed. Juspodivm, 2016. p.35.
2

3 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 23ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 61.
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora.
4

7ª ed. ver. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 9 e p. 112.


NOVELINO, Marcelo. Op. cit. p.35.
5

HESSE, Konrad. Constitución y derecho constitucional. Manual de derecho constitucional. 2 ed. Madri: Marcial Pons. 2001.
6

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Conforme leciona Bernardo Gonçalves Fernandes, face a pluralidade semântica do termo
‘constituição’, cumpre, neste momento, à guisa de conduzir o entendimento das diversas nuances
constitucionais contemporâneas, recrudescer os seguintes aspectos conceituais: a) sempre existiu
uma constituição (lato sensu), seja onde for; b) ela identifica um grupo de indivíduos, ou seja, atribui
identidade a um povo; c) a Constituição organiza a sociedade hierarquicamente; d) “possui regras
preestabelecidas e naturalizadas a partir de um processo construtivo que permitiu, inclusive e
sobretudo, desenvolver organização social e especialização de poder”7.
Em consonância, Ferdinand Lassale8 dita que todo país tem, necessariamente, uma Constituição
efetiva e real considerando que não seria possível imaginar um Estado onde não existam os fatores
determinantes reais do poder, quaisquer sejam eles. Lenio Luiz Streck9 aponta que o Estado Moderno,
derivado da sedimentação da forma do Estado Medieval, nasce sem Constituição (strictu sensu),
adquirindo, portanto, uma roupagem absolutista. Justamente esse absolutismo que irá permitir
a dialética e criar condições que possibilitem formas de controle do poder, com mecanismos de
contenção ao poder do príncipe.
A junção dos elementos expostos, repisam como é a forma de existência e o ‘modo de ser’ dos Estados.
As comunidades, sociedades ou Estados existem porque foram constituídos e, como consequência
lógica, eles têm uma Constituição. Entretanto, a concepção de constituição como o ‘modo de ser’ do
Estado é definida sociologicamente como uma Constituição material (real). Porém, segundo Bernardo
Gonçalves Fernandes10 essa visão de Constituição só demonstra que a reprodução social de diferentes
comunidades criadas (constituídas) historicamente com suas peculiaridades e aspectos de poder, as
diferenciaram de outras comunidades. José Afonso da Silva11 corrobora ao afirmar que a Constituição,
após perpassar por acepções analógicas, remansa na premissa de que é o simples ‘modo de ser’ do
Estado, a lei fundamental de um Estado, a organização de elementos essenciais ao seu funcionamento.
De acordo com a exegese de Bernardo Gonçalves Fernandes12, há, como consequência, a insurgência
da ordem constitucional formal onde passou-se a adotar a Constituição material como estritamente
jurídica, nos moldes modernos (constitucionalismo moderno), alhures, portanto, ao conceito
estritamente sociológico. Passou-se a entendê-la como “o conjunto de normas juridicamente
instituidoras de uma comunidade (tipicamente constitutivas do Estado e da Sociedade)”13. Para Lenio
Luiz Streck14 o constitucionalismo é um movimento que visa limitar o poder político e tal limitação,
portanto, adquire diferentes matizes que atingiram o ápice no final da Segunda Guerra Mundial, com
a noção de constituição dirigente e do Estado Democrático de Direito.

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 10. ed. Salvador: Juspodium, 2018. p. 29-30.
7

LASSALE, Ferdinand. O que é uma constituição? CL EDIJUR. Leme/SP. 2014. p. 37.


8

São exemplos os casos da Inglaterra no século XVII, a França Revolucionária, no fim do século XVIII, bem como a Declaração de
9

Independência das colônias americanas, que originou a Constituição de 1787. STRECK. Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional. 5. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2018. p. 1.
10
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Op. cit. p. 31.
11
AFONSO DA SILVA, José. Op. cit. p. 37.
12
Para Kildare Gonçalves de Carvalho o conceito sociológico é aquele que remete a um movimento social que dá sustentação à
limitação do poder, inviabilizando o absolutismo. CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional: teoria do Estado e da
Constituição. Direito constitucional positivo. 12 ed. p. 211.
13
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Op. cit p. 31-32.
14
STRECK. Lenio Luiz. Op. cit. p. 1.

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Marcelo Novelino15 pontua que o constitucionalismo (lato sensu) é a designação da existência de
uma Constituição nos Estados, qualquer que seja o contexto histórico ou político. Afirma que todo
Estado, por mais absolutista que fosse (seja), sempre teve uma norma que legitimava o poder, seja
ela expressa ou tácita. Nesse sentido, portanto, o movimento do constitucionalismo se mistura
com o conceito das constituições. Já o sentido estrito do termo (constitucionalismo) alia as notórias
premissas desenvolvidas por Kant e Montesquieu, quais sejam, respectivamente: a garantia de direitos
e a separação dos poderes.
A partir daí Nicola Matteucci16 pondera que o constitucionalismo é uma técnica jurídica de liberdade
garantidora dos direitos fundamentais em face do poder estatal. Nesse mesmo sentido é o
entendimento de Dirley da Cunha Júnior17 ao versar que o constitucionalismo despontou em âmbito
cosmopolita como uma corrente política e filosófica, guindadas em ideais libertários que reivindicavam
um modelo de organização política, mormente fundada no respeito dos direitos dos governados e na
limitação dos poderes dos governantes.
Leciona Bernardo Gonçalves Fernandes18 que o constitucionalismo (moderno) é entendido como um
movimento que carrega objetivos que, de forma insofismável, irão constituir (fundar) uma nova ordem,
sem precedentes na história da constituição das sociedades. Para Pedro Lenza19, é nessa fase moderna
que predominam as constituições escritas, servindo de instrumentos para conter o arbítrio oriundo de
qualquer poder. Ou seja, a constituição é a raiz para um efetivo controle de poder. Ferdinand Lassale20
ensina que a constituição escrita tem a missão de estabelecer, documentalmente, em uma folha de
papel, a totalidade das instituições e princípios do governo vigente, devendo ter por base, somente os
fatores reais e efetivos do poder que naquele país regem.
Karl Lowestein21, por sua guisa, pondera que o constitucionalismo é o movimento que conduz a
busca do homem político em limitar o poder absolutista, bem como um esforço que direciona o
estabelecimento de valores espirituais, morais e éticos. Sob a ótica de Fernandes22, o constitucionalismo,
possui como objetivos à limitação do poder com a necessária organização e estruturação do Estado
(daí surge a teoria da separação dos poderes), a consecução e o reconhecimento de direitos e garantias
fundamentais (preliminarmente, com a afirmação em termos da: igualdade, liberdade e propriedade).
É, portanto, uma forma de controle e direcionamento à fundação e à legitimação do poder político
(contrastando ao poder absoluto) e afirmando a constitucionalização das liberdades individuais. Ainda
para Fernandes, o constitucionalismo moderno, capitaneado no conceito ocidental de Constituição,
desenvolveu-se com os momentos constitucionais históricos, dentre eles: Magna Carta de 1215;

15
NOVELINO, Marcelo. Op. cit. p.35-36.
16
MATTEUCI, Nicola. Constitucionalismo. Dicionário de política. 13.ª ed. Norberto Bobbio, Nicola Matteuci, Gianfranco Pasquini (org.).
Brasília: UnB, v. 1. 1998.
17
CUNHA JÚNIOR. Dirley da. Curso de direito constitucional. 11ª ed. rev. ampl. atual. – Salvador: Juspodivm, 2017. p. 29.
18
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Op. cit. p. 33.
19
LENZA, Pedro. Op. cit. p. 67.
20
LASSALE, Ferdinand. Op. cit. p. 41.
21
LOWESTEIN, Karl. Teoria de la Constitucion. 2. ed. Barcelona: Ariel.
22
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Op. cit. p. 33-35.

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Petition of Rights, de 1628; Habeas Corpus Act de 1679; Bill of Rights de 1689. Dirley da Cunha Júnior23
extrapola e cita correntes iluministas lideradas por opositores aos governos absolutistas, a saber: John
Locke (1632-1704), Montesquieu (1689-1755), Rousseau (1712-1778) e Kant (1724-1804).
Na perspectiva de Bernardo Gonçalves Fernandes24, tais elementos históricos sedimentaram
“dimensões estruturantes” de um constitucionalismo ocidental. Por conseguinte, a Constituição deixou
de ser um ‘modo de ser’ da comunidade (como ela simplesmente é) e se tornou o ‘ato constitutivo’
(criador, fundante) da (nova) comunidade que remonta a ordenação, em termos jurídico-políticos do
Estado e declara um conjunto de direitos e garantias fundamentais, além de organizar o poder político
(de modo limitador e moderador).
Friedrich Muller25 ensina que o diploma constitucional é a positivação do poder constituinte do povo
(expressão de linguagem que, quando inserta no diploma constitucional, torna-se um texto escrito).
Disserta que a Constituição é, de forma genérica, “o texto central mediador na sociedade política:
para dominar e deixar-se dominar, para explorar e deixar-se explorar, para o status quo e para seus
procedimentos/limites da sua alteração”.
Otto Bachof26 delimita o conceito de Constituição em dois sentidos, quais sejam: formal (escrita)
e material. A primeira é a lei formal, estritamente qualificada mediante o conteúdo global das
disposições escritas da Constituição. Por outro lado, a constituição material consiste no conjunto das
normas jurídicas que versam sobre a estrutura, atribuições e competências dos órgãos supremos do
Estado, suas instituições fundamentais, bem como delimitando a posição do cidadão no Estado.
A despeito das noções já elencadas, a título informativo e paradigmático, em 1803, a Suprema
Corte Americana decidiu pela primeira vez um embate entre norma Constitucional e legislação
infraconstitucional27. Na hipótese, ainda pelo cotejo das lições de Bernardo Gonçalves Fernandes, o Chief
Justice Marshall afirmou que o judiciário deve defender a Constituição em todos as lides que envolvam
conflitos entre normas infraconstitucionais (produzidas pelo legislador ordinário) e constitucionais,
devendo estas sempre prevalecer em detrimento daquelas. Na sequência lógica, pontua que esta
defesa do judiciário consistiria na maneira (com base na doutrina de checks and balances28) pela qual,
o judiciário possuía o dever de controlar a atuação dos outros poderes (legislativo e executivo) face os
ataques à Constituição americana.
A partir daí, são extraídos dois axiomas, a saber: a) a Constituição é dotada de legalidade e prevalece
sobre todo o ordenamento ordinário; b) os conflitos serão defendidos (em regra) pelo poder judiciário
(controle de constitucionalidade).

CUNHA JÚNIOR. Dirley da. Op. cit. p. 29.


23

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Op. cit. p. 33-35.


24

MULLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o poder constituinte do povo. Trad. Peter Naumman. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
25

2004. p. 20 e p. 80
BACHOFF, Otto. Normas Constitucionais infraconstitucionais? Trad. José Manuel M. Cardoso da Costa. Portugal: Livraria Almedina
26

1994. p. 39.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Op. cit. p. 37.
27

Freios e contrapesos
28

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Para corroborar, na ótica de Ferdinand Lassale29, é unânime entre os povos que a Constituição “deve
ser qualquer coisa de mais sagrado, de mais firme e de mais imóvel que uma lei comum”. Aponta
que a constituição não é uma lei comum, e sim uma lei fundamental do Estado. Com efeito, Bruce
Ackerman30 leciona que a Constituição é dotada de imperativos profundos, que comungam a luta
pelo poder e pela legitimidade.
Nesse sentido, Luís Roberto Barroso31 aponta que o direito, como um sistema lógico e harmonioso,
não tolera antinomias (conflito entre normas) e um dos critérios utilizados como solução é o critério
hierárquico. Nesse aspecto, a Constituição se sobreleva como uma norma superior à norma ordinária.
Para o critério hierárquico, portanto, se a norma constitucional e a norma infraconstitucional se
contrastarem, a Constituição deve prevalecer.

3 CLASSIFICAÇÃO DAS CONSTITUIÇÕES


Segundo leciona José Afonso da Silva32, no que tange às classificações, não há um entendimento
unânime na doutrina. Por seu turno, adota a seguinte classificação das cartas constitucionais: a) quanto
ao conteúdo: materiais ou formais; b) quanto à forma: escritas ou não escritas; c) quanto ao modo de
elaboração: dogmáticas ou históricas; d) quanto à origem: populares (democráticas) ou outorgadas; e,
por fim, e) quanto à estabilidade: rígidas; flexíveis ou semirrígidas.
Como bem adverte Pedro Lenza33, as classificações dependem de critérios escolhidos pelos
doutrinadores, sendo uma árdua tarefa afirmar que uma classificação é mais acertada (adequada) do
que a outra. Nesse sentido, Dirley da Cunha Júnior34 destaca que as Constituições nem sempre irão se
apresentar com exímia semelhança, havendo, portanto, peculiaridades plurais em cada uma.
Sob a pertinente ótica de Bernardo Gonçalves Fernandes35, como será evidenciado, infere-se que a
Constituição Brasileira de 1988 é, quanto ao conteúdo, formal; quanto à estabilidade, rígida; quanto à
forma, escrita; quanto à origem, é promulgada; quanto ao modo de elaboração, é dogmática; quanto à
extensão, analítica; quanto à ideologia, eclética; quanto ao sistema, principiológica; e, por fim, quanto
à finalidade, é dirigente.

3.1 Quanto ao conteúdo (material x formal)


Em linhas propedêuticas Marcelo Novelino36 destaca que essa classificação leva em conta a distinção
do conteúdo das normas constitucionais, se elas são formais ou materiais.

LASSALE, Ferdinand. Op. cit. p. 15.


29

ACKERMAN, Bruce. Transformação do direito constitucional: nós, o povo soberano. Luiz Moreira, coordenador e supervisor; Julia
30

Sichieri Moura e Mauro Raposo de Mello, tradutores. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 501.
BARROSO, Luís Roberto. Op. cit. p. 9.
31

AFONSO DA SILVA, José. Op. cit. p. 40.


32

LENZA, Pedro. Op. cit. p. 109.


33

CUNHA JÚNIOR. Dirley da. Op. cit. p. 103.


34

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Op. cit. p. 37 e p. 53.


35

NOVELINO, Marcelo. Op. cit. p. 96.


36

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Na linha de José Afonso da Silva37, a constituição material em sentido amplo é a que identifica-
se com a organização total do Estado, com o respectivo regime político. Em sentido estrito, há a
designação de normas constitucionais escritas ou costumeiras que são insertas ou não em um
documento escrito, com o afã de regular a estrutura do Estado, a organização de seus órgãos e os
direitos fundamentais.
Para Bernardo Gonçalves Fernandes38, a Constituição classifica-se também, quanto ao conteúdo,
em formal ou material. A primeira é a que é dotada de supremacia em relação as outras normas do
ordenamento jurídico de um determinado Estado. São incluídos mecanismos na Constituição que
preconizam que ela só poderá ser modificada por procedimentos especiais, na medida em que normas
ordinárias não a modificam e, se contrariarem a carta constitucional, serão declaradas incompatíveis
com o ordenamento. Aponta que as constituições materiais, são aquelas, escritas ou não, em uma
folha de papel ou documento constitucional contendo as normas tipicamente constitutivas do
Estado e da sociedade. Em outras linhas, versa que são as normas que servem de supedâneo (base)
ao núcleo ideológico constitutivo do Estado e da sociedade. Tais matérias, com a sublimação do
constitucionalismo moderno, têm sido definidas como: Organização e estruturação do Estado e
Direitos e Garantias Fundamentais.
Na perspectiva de Dirley da Cunha Júnior39 a Constituição material remansa na coletânea de
normas tácitas ou expressas (escritas ou não) que irão regular pontos estruturais de um Estado
e organizacionais do poder, bem como prever garantias fundamentais. Irá tratar de matérias
essencialmente constitucionais. Por outro lado, as constituições formais podem versar sobre assuntos
alhures à essência constitucional

3.2 Quanto à estabilidade


Para introduzir uma lógica a essa classificação das constituições quanto à estabilidade, Marcelo
Novelino40 explica que o critério utilizado é a consistência das normas constitucionais, analisadas
levando em consideração a complexidade do processo de sua alteração quando comparado ao
processo legislativo ordinário.
Em síntese dos ditames de José Afonso da Silva41, as constituições podem ser classificadas quanto à
estabilidade em rígidas, flexíveis ou semirrígidas. As primeiras somente são alteráveis por processos,
solenidades e exigências formais específicas, com maior dificuldade e critérios do que as leis ordinárias
ou complementares. As segundas, podem ser livremente modificadas pelo legislador, em semelhança
ao processo de modificação das leis ordinárias ou complementares. Por fim, as constituições
semirrígidas são aquelas que contêm uma parcela rígida e outra parcela fixa, uma espécie de conceito
misto entre as rígidas e as flexíveis.

AFONSO DA SILVA, José. Op. cit. p. 40-41.


37

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Op. cit. p. 38.


38

CUNHA JÚNIOR. Dirley da. Op. cit. p. 104.


39

NOVELINO, Marcelo. Op. cit. p. 96.


40

AFONSO DA SILVA, José. Op. cit. p. 40-42.


41

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Em outra perspectiva terminativa, Dirley da Cunha Junior42 pondera que as constituições, classificadas
quanto à estabilidade, podem ser distribuídas em: a) imutáveis; b) fixa; c) rígida; d) flexível; e, por
fim e) semirrígida. Então, de acordo com seus ensinamentos: as constituições imutáveis não podem
ser alteradas. A constituição fixa somente se altera pelo próprio poder constituinte originário,
implicando em uma nova ordem constitucional. A constituição rígida possui diferentes processos
de alteração entre leis constitucionais e ordinárias (estas últimas, mais fáceis de serem alteradas). A
constituição flexível, possui o mesmo procedimento de alteração do que as legislações ordinárias
ou complementares. E, por fim, a constituição semi-flexível compreende nuances mistas entre a
constituição rígida e a constituição flexível.
Ainda quanto à estabilidade da Constituição Bernardo Gonçalves Fernandes43, amplia essa
classificação estabelecida por José Afonso da Silva e Dirley da Cunha Júnior e a classifica
em: a) rígida; b) flexível; c) semirrígida; d) fixa; e) imutável; f ) transitoriamente flexível e g)
transitoriamente imutável. Segundo ele, a constituição rígida, é a que necessita de procedimentos
especiais, mais difíceis e específicos para sua modificação. Por constituição flexível, remansa o
entendimento de que é aquela que não requer procedimentos especiais para sua modificação
e pode ser modificada por procedimentos comuns, semelhantes aos que modificam as normas
ordinárias (um exemplo é a Constituição inglesa). A constituição semirrígida, a seu turno, consiste
naquela que tem em seu corpo, uma parte rígida e outra flexível. A Constituição fixa, por sua
guisa, é aquela que é modificada somente pelo poder constituinte originário. Possuem a alcunha
de constituições silenciosas, pelo fato de não preverem procedimentos especiais que autorizem
a sua modificação. Já aquelas que não preveem nenhum tipo de processo de modificação em
seu texto são as chamadas constituições graníticas ou imutáveis. Algo raro, ou até inexistente,
em tempos hodiernos, ao passo que, “estariam fadadas ao insucesso”. Não obstante, leciona que
existem também as constituições que são transitoriamente flexíveis e as que são transitoriamente
imutáveis. Estas, durante determinado período, não podem ser alteradas (ex. Constituição do
Império de 1824 - Brasil), ao passo que aquelas, até determinada data, poderão ser emendadas
por procedimentos comuns.
Pedro Lenza44 enumera a classificação quanto à alterabilidade (estabilidade) de forma semelhante
ao entendimento de Bernardo Gonçalves Fernandes, entretanto, adiciona uma espécie, qual seja: as
constituições super-rígidas. É o caso da Constituição Brasileira, por exemplo, que possui cláusulas
pétreas e imutáveis45 (art. 60, §4º). Dirley da Cunha46, diverge dessa termologia ao considerar que
a rigidez é a qualidade do que é alterável, não sendo, portanto, compatível com a imutabilidade.
Considera que as cláusulas pétreas devem ficar fora do conceito de rigidez.

CUNHA JÚNIOR. Dirley da. Op. cit. p. 103.


42

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Op. cit. p. 39-40.


43

LENZA, Pedro. Op. cit p. 117.


44

Traz à baila a ressalva de que o STF tem se posicionado no sentido da possiblidade de alterar algumas dessas cláusulas, desde que a
45

reforma não vise abolir preceitos ali resguardados e em respeito aos princípios de razoabilidade e ponderação.
CUNHA JÚNIOR. Dirley da. Op. cit. p. 105.
46

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 99-122 jul./dez. 2020 107


3.3 Quanto à forma
Segundo Marcelo Novelino47 a classificação quanto à forma adota um critério de distinção em relação
à maneira como são exteriorizadas as normas constitucionais. José Afonso da Silva48 ensina que a
Constituição escrita é aquela que é codificada e sistematizada em um texto único, elaborado de
forma reflexiva pelo poder constituinte, destacando todas as normas fundamentais e estruturantes
do Estado, organizacionais dos poderes, o modo e os limites de atuação, bem como os direitos
fundamentais políticos, individuais, coletivos, econômicos e sociais. Ao revés, a constituição não
escrita, é aquela cujas normas não são consignadas em um documento único e solene, baseada
principalmente em costumes, jurisprudências e em documentos constitucionais esparsos (é o caso
da Constituição inglesa).
Em breves linhas, para Bernardo Gonçalves Fernandes, a classificação quanto à forma49, divide as
constituições em duas espécies, a saber: escritas e não escritas. Esta, é elaborada e produzida em
documentos esparsos no decorrer do tempo, paulatinamente desenvolvidos, de forma histórica,
oriundos de um longo e contínuo processo de sedimentação e consolidação constitucional. Aquela,
por sua vez, é elaborada de forma escrita, sistemática, em um documento único, feita em uma
oportunidade única, por um só poder, convenção ou assembleia constituinte.
Em consonância, Dirley da Cunha Junior50 aponta que a Constituição escrita é aquela na qual as normas
são documentadas em um único instrumento legislativo (texto único e solene), elaborado de forma
racional (dialética), com força constitucional. No que tange às constituições não escritas, aponta a
ressalva de que não existe constituição inteiramente costumeira, pois sempre existirão normas escritas
que compõem seu conteúdo. Cita o exemplo da influência que documentos51 esparsos exerceram na
Constituição inglesa.
Importante destacar, conforme coaduna Pedro Lenza52, que no Brasil existem textos escritos com
natureza de Constituição, são os casos, por exemplo, dos tratados e convenções internacionais que
versem sobre direitos humanos e sejam aprovados, em votação bicameral, em dois turnos, por três
quintos dos votos dos respectivos membros de cada Casa do Congresso Nacional (art. 5º, § 3º, CR/88).
Após esses trâmites, passam a valer com o status de emendas constitucionais. Nesse sentido, Lenza
defende a tímida ideia de uma constituição legal, sendo ela escrita e esparsa.

3.4 Quanto ao modo de elaboração


Marcelo Novelino53 ensina que esse critério pondera o modo de nascimento da constituição, ou seja,
como ela surgiu.

NOVELINO, Marcelo. Op. cit. p. 93.


47

AFONSO DA SILVA, José. Op. cit. p. 40-41.


48

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Op. cit. p. 40.


49

CUNHA JÚNIOR. Dirley da. Op. cit. p. 105.


50

Como a Magna Carta (1251), Petition of Rights (1628), Habeas Corpus Act (1679), Bill of Rights (1689) etc.
51

LENZA, Pedro. Op. cit. p. 113.


52

NOVELINO, Marcelo. Op. cit. p. 95.


53

108 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 99-122 jul./dez. 2020


Na perspectiva de José Afonso da Silva54, as constituições, quanto ao modo de elaboração, podem
ser classificadas em dogmáticas ou históricas. A constituição dogmática tem o seu conceito conexo
ao conceito de constituição escrita e, na mesma linha, a constituição histórica tem o conceito conexo
com a constituição não escrita. A constituição dogmática sempre será escrita, prevendo os dogmas
ou ideias fundamentais do direito e da teoria política sedimentadas no momento. Por outro lado, a
constituição histórica é aquela que resulta de uma lenta formação histórica englobando costumes,
tradições, fatos sócio-políticos, que se enveredam como normas fundamentais de organização de um
Estado.
Bernardo Gonçalves Fernandes55 recrudesce que as constituições dogmáticas são escritas e
sistematizadas em um documento constitucional que apresenta ideias dominantes (dogmas) em
uma certa sociedade num determinado contexto histórico. Já as históricas, são elaboradas “de forma
esparsa (com documentos e costumes desenvolvidos) no decorrer do tempo, sendo fruto de um
contínuo processo de construção e sedimentação do devir histórico”.
Também nesse sentido é o entendimento de Pedro Lenza56 e Dirley da Cunha Junior57, ao afirmarem
que as constituições dogmáticas serão sempre escritas, consubstanciando dogmas estruturais e
fundamentais do Estado. Em contraponto, versa que as constituições históricas passam por um longo
e contínuo processo de formação e reúnem tradições e história de um povo.

3.5 Quanto à origem


Sob a ótica de Marcelo Novelino58, é sabido que essa classificação das constituições em relação à origem,
remete a ideia de quais são as forças responsáveis pelo surgimento dos documentos constitucionais.
Na exegese de José Afonso da Silva59 as constituições quanto à origem podem ser populares
(democráticas) ou outorgadas. As primeiras são aquelas oriundas de um órgão constituinte composto
por representantes populares, devidamente eleitos. Já as constituições outorgadas são aquelas
elaboradas e estabelecidas sem a participação popular, aquelas que são impostas pelo governante à
comunidade. Cita ainda a possibilidade de uma constituição cesarista, como uma terceira espécie de
classificação quanto à origem, trata-se, basicamente, de um plebiscito popular referente ao projeto
elaborado por um Imperador (Ex. Napoleão na França) ou ditador (plebiscito de Pinochet no Chile).
Bernardo Gonçalves Fernandes60 comunga essa classificação das constituições quanto à origem e
também divide-as em três espécies, quais sejam: a) promulgadas; b) outorgadas e; c) cesaristas. Para
ele a constituição promulgada é dotada de legitimidade popular, pelo fato de o povo participar do
processo de elaboração, ainda que por meio de seus representantes. Ao revés, a constituição que
não é possui essa legitimidade popular, na medida em que o povo não participa de seu processo

AFONSO DA SILVA, José. Op. cit. p. 40-42.


54

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Op. cit. p. 41.


55

LENZA, Pedro. Op. cit p. 115.


56

CUNHA JÚNIOR. Dirley da. Op. cit. p. 110.


57

NOVELINO, Marcelo. Op. cit. p. 94.


58

AFONSO DA SILVA, José. Op. cit. p. 40-41.


59

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Op. cit. p. 41.


60

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de construção, nem mesmo de forma indireta, é a chamada Constituição Outorgada, Autocrática ou
Ditatorial. Já a Constituição Cesarista, por seu turno, é feita sem a participação popular, mas é submetida
a referendum (plebiscito) para que o povo se manifeste sobre a aceitação (ou não) do documento.
Além destas três definições, Pedro Lenza61 e Dirley da Cunha Júnior62 ampliam esse rol ao aferir uma
quarta espécie de constituições, classificadas quanto à origem, a saber: constituições pactuadas ou
dualistas. São aquelas que surgem com um pacto, quando o poder constituinte originário se concentra
em mãos diversas. Um exemplo é a Magna Carta de 1215, pela qual os barões ingleses obrigaram João
Sem Terra a jurar. Exprime um compromisso instável de duas forças políticas rivais.

3.6 Quanto à extensão (sintéticas x analíticas)


Conforme ensinamento de Pedro Lenza63 as constituições podem ser classificadas quanto à extensão,
em analíticas e sintéticas. Em suma, as constituições sintéticas são aquelas enxutas, que não descem
a minúcias, que veiculam apenas os princípios fundamentais e estruturais do Estado. Por esse motivo
são duradouras64 e imputam uma relevante dose de atividade interpretativa e adequação à Suprema
Corte. Paulo Bonavides65 aponta que as constituições sucintas (sintéticas) aferem maior estabilidade
do arcabouço constitucional além de maior flexibilidade adaptativa a situações noveis e imprevisíveis
no processo de desenvolvimento de um povo. As constituições analíticas, por outro lado, continuando
o ensinamento de Pedro Lenza, são aquelas que abordam a totalidade dos assuntos fundamentais
segundo entendimento dos representantes do povo. Essas, por seu turno, destacam as minúcias e
estabelecem regras.
Em consonância, Bernardo Gonçalves Fernandes66, a exemplo de Marcelo Novelino67, também afirma
que referente à classificação quanto à extensão, as constituições dividem-se em analíticas e sintéticas.
Aquela é elaborada de forma extensa, detalhada, pormenorizada, extrapolando matérias estritamente
constitucionais (tipicamente constitutivas do Estado e da sociedade) - acaba, estabelecendo
princípios e regras, e não apenas princípios. Ao revés, a constituição sintética é elaborada de forma
sucinta estabelecendo os princípios fundamentais referentes à organização do Estado e da sociedade,
cuidando em seu bojo, de matérias estritamente constitucionais típicas – é uma constituição
principiológica.
Segue o entendimento de Dirley da Cunha Júnior68 que, por seu turno, afirma que um exemplo
admirável de constituição sintética (concisa) é a Constituição dos EUA (1787), que possui apenas sete
artigos e vinte e sete emendas. Por outro lado, um exemplo de constituição analítica, extensa e que
disciplina longa e minuciosamente todas as peculiaridades relevantes (ao poder constituinte) é a
CR/88.

LENZA, Pedro. Op. cit p. 111.


61

CUNHA JÚNIOR. Dirley da. Op. cit. p. 106.


62

LENZA, Pedro. Op. cit. p. 113.


63

Um exemplo é a Constituição Americana, que está em vigor há mais de 200 anos.


64

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 21ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 91.
65

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Op. cit. p. 41.


66

NOVELINO, Marcelo. Op. cit. p. 97-98.


67

CUNHA JÚNIOR. Dirley da. Op. cit. p. 108.


68

110 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 99-122 jul./dez. 2020


3.7 Quanto à ideologia/dogmática
Na perspectiva de Marcelo Novelino69 o critério de classificação das constituições quanto à dogmática
é a distinção da natureza filosófico-ideológica das normas nelas contidas.
Para autores como Bernardo Gonçalves Fernandes70 e Dirley da Cunha Júnior71, a classificação quanto
à ideologia/dogmática consubstancia as seguintes espécies, nesse sentido, a saber: constituições
ortodoxas e constituições ecléticas. As primeiras, são aquelas que preveem um tipo único de ideologia
no corpo de seu texto. Já a constituição eclética, por sua guisa, traz previsão em seu texto de ideologia
plurais, agrupando mais de um viés ideológico.
Conforme ensina Pedro Lenza72, um exemplo de constituição ortodoxa, que consagra apenas uma
ideologia, é a soviética de 1977 (extinta) e as diversas constituições da China Marxista. Por outro lado,
a constituição eclética, formada por ideologias conciliatórias, encontra exemplos na brasileira de 1988
e na da Índia de 1949.

3.8 Quanto ao sistema e a sistemática


Na perspectiva de Pedro Lenza73, na classificação quanto à sistemática das constituições, essas
podem ser divididas em reduzidas (unitárias) e variadas. As constituições reduzidas, basicamente, são
materializadas em um só código. Ao revés, as constituições variadas podem ser encontradas em vários
textos e documentos esparsos.
Além dessas duas espécies, diferenciando apenas em viés terminológico, Lenza, a exemplo de
Marcelo Novelino74, enumera que as constituições podem ser classificadas quanto à sistemática em
codificadas e legais. As primeiras, correspondem ao conceito das reduzidas, ao passo que as segundas
correspondem ao conceito das constituições variadas.
Sob a ótica de Bernardo Gonçalves Fernandes, a classificação quanto ao sistema, divide às constituições
em principiológicas e constituições preceituais75. A Constituição principiológica, consiste naquela que
possui predominância dos princípios (ainda que nela existam regras) considerados como verdadeiras
normas constitucionais de alto grau de abstração e generalidade. Sem embargo, tem-se como
exemplo à Constituição Brasileira de 1988 (CR/88), que é entendida, trabalhada e interpretada pelo
neoconstitucionalismo (melhor explicado adiante) como principiológica. Noutro giro, a constituição
preceitual, embora possa conter princípios em seu bojo, predominam-se as regras com um baixo grau
de abstração e um alto grau de determinabilidade76.

NOVELINO, Marcelo. Op. cit. p. 99.


69

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Op. cit. p. 42.


70

CUNHA JÚNIOR. Dirley da. Op. cit. p. 110.


71

LENZA, Pedro. Op. cit. p. 118.


72

LENZA, Pedro. Op. cit. p. 117.


73

NOVELINO, Marcelo. Op. cit. p. 94.


74

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Op. cit. p. 43.


75

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Op. cit. p. 44.


76

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Também quanto ao sistema, Lenza77 recrudesce o entendimento de Fernandes e aponta para a mesma
divisão terminológica: principiológicas e preceituais. Reforçando, na primeira, predomina os princípios,
providos de alto grau de abstração e consagradores de valores. Ao revés, na segunda, prevalecem as
regras, revestidas de pouco grau de abstração e alto grau de determinabilidade.

3.9 Quanto à finalidade


De maneira introdutória, Marcelo Novelino78 pontua que essa classificação das constituições quanto
à finalidade dizem respeito e analisam a função que a Constituição desempenha dentro do sistema
jurídico como um instrumento de organização do Estado e da sociedade.
Essa classificação, conforme recrudesce Bernardo Gonçalves Fernandes, a exemplo de Novelino,
divide a constituição em três espécies: garantia, balanço ou dirigentes79. Em breves linhas, a
"constituição garantia" possui um viés histórico e colima garantir direitos assegurados face
arbitrariedades do Poder Público. É uma constituição típica do liberalismo, caracterizado pelo
abstencionismo e sua atuação negativa, notadamente na premissa de não interferência. A
"constituição balanço" pretende trabalhar o presente. Um exemplo típico são os regimes
socialistas (constituições de cunho marxista). Demais disso, intenta explicitar características atuais
da sociedade, parametrizando preceitos à luz da realidade econômica, política e social existente.
Por fim, a "constituição dirigente“, que tem um viés de futuro” e preconiza a predefinição de uma
pauta de vida para a sociedade, estabelecendo uma ordem concreta de valores para o Estado e
para a sociedade.
Dirley da Cunha Junior80 recrudesce que a finalidade maior da constituição garantia é basicamente
garantir as liberdades públicas contra a arbitrariedade estatal. Por outro lado, a constituição dirigente
evidenciou o descenso do liberalismo e a evolução do intervencionismo estatal, consubstanciado no
Estado Social.
Nesse diapasão, Pedro Lenza81, em que pese aferir uma terminologia diversa à constituição garantia
(liberais ou negativas) recrudesce a tese ao reproduzir a ideia de que as constituições liberais (garantia)
são o triunfo de correntes burguesas, encrustadas nos ideais liberalistas. Surge, no entanto, a hipótese
de constituições negativas ou absenteístas. Quanto às constituições sociais (dirigentes) observa-se o
oposto, qual seja: a necessidade de atuação positiva do Estado.

3.10 Classificação Ontológica (ou essencialista) das constituições de


Karl Löewestein
Karl Löewenstein82 classifica as constituições da seguinte forma: constituições normativas, nominais
e semânticas. As constituições normativas, encontram adequação entre o texto constitucional e
seu conteúdo normativo, bem como à realidade social. Nas constituições nominais, em paradoxo

LENZA, Pedro. Op. cit. p. 120.


77

NOVELINO, Marcelo. Op. cit. p. 98.


78

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Op. cit. p. 44.


79

CUNHA JÚNIOR. Dirley da. Op. cit. p. 106.


80

LENZA, Pedro. Op. cit. p. 122.


81

LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la constitución, Barcelona: Ariel, 1965. p. 216-223.


82

112 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 99-122 jul./dez. 2020


às normativas, não se evidencia a adequação do conteúdo normativo da constituição e a realidade
social. Já as constituições semânticas83, remansam na legitimação de práticas autoritárias de poderes.
Segundo Marcelo Novelino84, o critério utilizado por Löewenstein é a análise da concordância das
normativas constitucionais em virtude da realidade do processo do poder, partindo da premissa
que a constituição é o instrumento que materializa o que os detentores e os destinatários do poder
fazem dela. Para Bernardo Gonçalves Fernandes85, esta classificação colima estudar a essência das
constituições. Em outras palavras, o que as diferencia de qualquer outro objeto ou ente. Imperioso,
portanto, uma análise de adequação do texto constitucional à realidade social.
Pedro Lenza86 corrobora que em uma análise que parte das constituições normativas às semânticas,
o autoritarismo sobreleva-se em detrimento do Estado Democrático de Direito e da democracia, ao
passo que, na análise inversa, o autoritarismo se sucumbe.

4 PÓS-POSITIVISMO E NEOCONSTITUCIONALISMO
A insigne lavra de Luís Roberto Barroso87 pontua que o pós-positivismo consiste na “designação
provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores,
princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional e a teoria dos direitos
fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana”. Sobrelevam-se os princípios a
um status normativo dentro desse ambiente de proximidade entre o Direito e a Ética. Além disso, são
ideias essenciais a ponderação de valores e a teoria da argumentação88.
Marcelo Novelino89 ensina que o pós-positivismo, termo empregado desde a década de 1990, refere-
se a uma via intermediária entre o jusnaturalismo e o juspositivismo, pautada, fundamentalmente,
na normatividade dos princípios, na centralidade da dialética jurídica e na defesa da conexão entre
direito e moral. Ainda sob essa perspectiva, o pós-positivismo possui três acepções, quais sejam: a)
metodológica; b) ideológica e, por fim; c) teórica.
A primeira acepção do pós-positivismo, como metodologia, alia a teoria jurídica a prescrição (aquilo
que deve ser – elemento volitivo) e a descrição (aquilo que é – elemento cognoscitivo), no intuito
de aferir critérios satisfatórios voltados para a resolução prática de problemas jurídicos complexos. O
direito assume, portanto, praticidade e funcionalidade ao reduzir incertezas do direito, fornecendo

Nos ditames de Karl Lowenstein a realidade ontológica de uma constituição semântica: “no es sino la formalización de la existente
83

situación del poder político em beneficio exclusivo de los detentores del poder fácticos que disponem del aparato coactivo del Estado”.
Teoria de la constitución. p. 216-222.
NOVELINO, Marcelo. Op. cit. p. 102.
84

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Op. cit. p. 50.


85

LENZA, Pedro. Op. cit. p. 119.


86

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora.
87

7ª ed. ver. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 351-352.


Nas palavras de Barroso: “A teoria da argumentação tornou-se elemento decisivo da interpretação constitucional, nos casos em que
88

a solução de um determinado problema não se encontra previamente estabelecida pelo ordenamento, dependendo de valorações
subjetivas a serem feitas à vista do caso concreto.” BARROSO, Luís Roberto. Op. cit. p. 386.
NOVELINO, Marcelo. Op. cit. p. 57.
89

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 99-122 jul./dez. 2020 113


vetores para a solução dos casos difíceis90. A segunda acepção (ideológica), ainda sob a exegese
de Marcelo Novelino91, o pós-positivismo ético, é uma premissa que busca abandonar o ceticismo
referente à justiça material e relativizar o princípio da segurança jurídica, em casos extremos, em
nome da justiça. Nesse sentido, Robert Alexy92 sopesa que “a primazia do decretado e do eficaz sobre o
correto bate em um limite, quando a contradição de uma lei positiva com a justiça obtém uma ‘medida
insuportável’”. O discurso e o direito são essenciais à sobrevivência mútua desses elementos, para
aferir realidade ao discurso e legitimidade ao direito, direcionando-se para o Estado Constitucional
Democrático, ao passo que a teoria do discurso imputa ao ordenamento dois supedâneos básicos
quais sejam: direitos fundamentais e democracia. Ao disseminar o argumento do princípio leciona que
deve haver uma distinção entre regras e princípios, considerando que os princípios traduzem um
dever ideal, diferentemente do dever definitivo incutido nas regras. As regras devem ser aplicadas
por subsunção, já os princípios devem ser ponderados para serem levados do dever ideal ao dever
real definitivo.
Menelick de Carvalho Netto93 pondera que a generalidade e abstração das normas (regras e
princípios) constitucionais, é um grande problema para a doutrina e para os intérpretes. Assim,
é fundamental que a atuação judicial leve em conta quase a totalidade dos casos como sendo
casos complexos (difícil), uma vez que normas gerais nem sempre se aplicam a todos os casos, mas
somente aos que são capazes de reger sem resquícios de injustiça. Logo, em uma análise conjunta
às teorias aqui apresentadas, a ponderação deve ser feita de forma intensa em cada caso pelos
poderes judiciais quando provocados, visando extirpar a injustiça.
Com efeito, no que tange à última acepção do pós-positivismo, a acepção teórica, Paulo Bonavides94
destaca que os princípios gerais do direito foram alçados ao cume do ordenamento jurídico, com
status de “pedestal normativo sobre o qual se assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas
constitucionais”. Marcelo Novelino95 recrudesce que no plano da teoria da interpretação, evidenciada a
ausência dos elementos hermenêuticos tradicionais necessários à resolução dos casos difíceis, é dado
maior ênfase à dialética interpretativa constitucional, até mesmo com a criação de novos métodos
que colimam a justiça. O pós-positivismo é, portanto, o marco filosófico do dinamismo do direito e do
constitucionalismo.
Conforme explica Luís Roberto Barroso96, com a evolução do direito constitucional, as premissas
ideológicas fundantes do sistema de interpretação tradicional tornaram-se obsoletas, gerando

Segundo Luís Roberto Barroso, os casos difíceis são aqueles que, devido a variadas razões, não possuem uma solução abstrata
90

prevista no ordenamento. Esses casos exigem uma construção artesanal decisória, mediante uma dialética mais acentuada,
que justifique e legitime o papel judicante. BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional brasileiro: contribuições para a
construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 38
NOVELINO, Marcelo. Op. cit. p. 58.
91

ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p.32-33.
92

CARVALHO NETTO, Menelick de. A hermenêutica constitucional e os desafios postos dos direitos fundamentais. In: SAMPAIO, José
93

Adércio Leite (coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p.143-163.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 1996.
94

NOVELINO, Marcelo. Op. cit. p. 59.


95

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalizacao do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil.
96

Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 65, n. 4, p.20-50, 2007. p. 30-32.

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a necessidade de uma nova metódica disruptiva para desfalecer o sistema tradicional e aferir uma
satisfação interpretativa integral. Evidenciou um gap no papel da norma ao verificar que os problemas
jurídicos nem sempre encontram solução no relato abstrato do texto normativo. Nesse sentido, a
resposta somente é produzida em conformidade e adequação à constituição quando analisada à luz
do problema.
Com efeito, ainda na linha de Barroso97, os princípios se sobrelevaram com normatividade e
distinção qualitativa, marcando um dos símbolos do pós-positivismo. Disserta que os princípios
se diferem das regras por consagrarem valores ou indicarem fins públicos, a serem realizados por
meios diversos. Ao revés, as normas consagram comandos descritivos de condutas específicas.
Nesse ínterim, a definição de alguns princípios remete ao intérprete um elevado grau de
discricionariedade, em contraste com a vinculação da aplicação das regras ao seu conteúdo
expresso.
É evidente que existirão hipóteses em que as normas constitucionais irão colidir, portanto, ainda
seguindo o raciocínio de Barroso98, “As Constituições modernas são documentos dialéticos, que
consagram bens jurídicos que se contrapõem”. Haverá choques entre o desenvolvimento e a
proteção do meio ambiente, a vida e ao direito de legítima defesa etc. O neoconstitucionalismo,
portanto, se preza a identificar o conjunto amplo de dinamismo ocorrido no Estado e no direito
constitucional99. Demais disso, como consequência, evidenciou-se uma profunda interferência do
direito constitucional no universo do direito em sentido amplo. A dialética é universal e retrata
um movimento pendular entre constitucionalismo e democracia. Nesse sentido, sobreleva-se
o poder judiciário como o responsável por resguardar o processo democrático e promover os
valores constitucionais, em cada caso concreto, superando o déficit de legitimidade institucional.
Faz a ressalva, portanto, que o judiciário não deve atuar de forma abusiva, desqualificando sua
própria atuação, ao exercer preferências políticas em detrimento dos princípios constitucionais.
Na perspectiva de Lenio Luiz Streck100, a ponderação se transformou no grande problema e um
obstáculo ao neoconstitucionalismo em virtude do ativismo judicial em um contexto nacional
contemporâneo, ao escolher elementos que não são democráticos, como a discricionariedade
judicial.

BARROSO, Luís Roberto. Op. cit. p. 30-33.


97

BARROSO, Luís Roberto. Op. cit. p. 32.


98

Nas palavras de Barroso: “em meio às quais podem ser assinalados, como marco histórico, a formação do Estado constitucional
99

de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; como marco filosófico, o pós-positivismo, com a
central idade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e como marco teórico, o conjunto de mudanças que
incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da
interpretação constitucional”. BARROSO, Luís Roberto. Op. cit. p. 32.
Segundo Marcelo Novelino (op. cit. p. 59) o termo neoconstitucionalismo foi cunhado por Suzanna Pozzolo, em 1997, no XVIII
Congresso Mundial de Filosofia Jurídica e Social, realizado na Argentinam e ganhou projeção a partir das coletâneas organizadas
por Miguel Carbonell.
100
STRECK. Lenio Luiz. Contra o neoconstitucionalismo. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de
Direito Constitucional. Curitiba, 2011, vol. 3, n. 4, Jan-Jun. p. 9-27. p. 22.

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Lenio Luiz Streck101 destaca que o termo neoconstitucionalismo é fruto de uma plêiade de autores
e posturas teóricas, que nem sempre podem ser aglutinadas no mesmo sentido. Ainda na linha
de Streck, para a ciência americana, são os processos de redemocratização ocorridas em vários
países; para a teoria do direito, são correntes filosóficas102 advindas pós-guerras, favoráveis a uma
nova perspectiva de interpretação e aplicação do direito. Para esse autor, é mais adequado referir-
se ao movimento como um constitucionalismo contemporâneo do que o neoconstitucionalismo.
Permeia-se, portanto, a criação de um direito democraticamente produzido, sob a égide de uma
constituição normativa (princípios e regras) e integridade de jurisdição.
Conforme ensina Dirley da Cunha Júnior103, o neoconstitucionalismo surgiu de correntes europeias, em
meados do século XX, sobretudo voltado a reconhecer a supremacia material e axiológica das normas
constitucionais (dotadas de força normativa e expansiva) e condicionar a validade e a compreensão
do direito, bem como estabelecer deveres. Criou, dessa forma, o Estado Constitucional de Direito em
detrimento do Estado Legislativo de Direito (onde a lei e o princípio da legalidade eram as únicas
fontes de legitimação do direito - consubstanciado no testemunho de barbáries como o genocídio
cometido pelo governo socialista alemão, entre 1939 e 1945). Retrata que o neoconstitucionalismo
representa uma reação às atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial e tem gerado
o dinamismo jurídico que define um novo direito constitucional, essencialmente fundado na
valorização do princípio da dignidade da pessoa humana. Subordina-se, portanto, a própria
legalidade à Constituição, englobando diversos fatores nas condições de validade de uma norma,
mormente pelo contraste de seus significados e os valores constitucionais. Houve uma mudança no
sentido de superar a visão formal e procedimentalista e sobrelevar a vertente substancial do direito
preocupada na concretização de valores constitucionais.
Segundo a ótica de Pedro Lenza104, no neoconstitucionalismo colima-se a junção ao
constitucionalismo da ideia de limitação ao poder político e, sobretudo, a busca pela eficácia e
efetividade da Constituição, diante da expectativa de concretização dos direitos fundamentais.
Destaca, ainda, algumas características desse movimento, a saber: a) positivação e concretização
de direitos fundamentais; b) onipresença dos princípios e regras; c) inovações hermenêuticas; d)
densificação da normatividade estatal; e) desenvolvimento de uma justiça distributiva.
Com efeito, Susanna Pozzolo105, precursora do termo neoconstitucionalismo, recrudesce que a novel
metódica de interpretação constitucional é defendida, no âmbito da filosofia do direito, de modo
peculiar, apenas a título informativo, por autores como Ronald Dworkin, Robert Alexy etc. Em suma, o
novo constitucionalismo, ainda na perspectiva desta autora, resume-se na busca pelas respostas dos
seguintes conflitos: a) princípios x normas; b) ponderação x subsunção; c) constituição x independência
do legislador; e, por fim, d) juízes x liberdade do legislador.

101
STRECK. Lenio Luiz. Contra o neoconstitucionalismo. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de
Direito Constitucional. Curitiba, 2011, vol. 3, n. 4, Jan-Jun. p. 9-27. p. 10.
102
Cita como exemplo Ronald Dworkin e Robert Alexy.
103
CUNHA JÚNIOR. Dirley da. Op. cit. p. 34-35.
104
LENZA, Pedro. Op. cit. p. 70.
105
POZZOLO, Susanna. Neoconstitucionalismo y Especificidad de la Interpretación Constitucional. In: DOXA, Cuadernos de Filosofia del
Derecho. Espanha: Alicante. n. 21 – II, 1998, p. 339-353. Disponível em: <http://rua.ua.es/dspace/bitstream/10045/10369/1/doxa21-
2_25.pdf>. Acesso em 8.7.2019.

116 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 99-122 jul./dez. 2020


Marcelo Novelino106 explica que existem algumas diferenças entre o pós-positivismo e o
neoconstitucionalismo, ao passo que o primeiro visa desempenhar o papel universal de uma
autêntica teoria geral do direito. O neoconstitucionalismo, por seu turno, possui uma pretensão mais
específica, que visa dar cabo às questões englobadas em um nicho organizacional político e jurídico
(Estado Constitucional Democrático) que envolvam as disposições constitucionais. Sem embargo,
Eduardo Ribeiro Moreira107 recrudesce que, face ao dinamismo do direito e das relações comunitárias,
o neoconstitucionalismo não é uma proposta eterna e universal, ao contrário das concepções
juspositivistas que perfazem um aspecto geral e global de abordagem nas relações jurídicas.

5 APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS (COOLEY X


CRISAFULLI)
Na perspectiva de Dirley da Cunha Júnior108 a Constituição é um conjunto de normas (regras + princípios)
jurídicas dotadas de suficiência para regular a integralidade dos fenômenos da vida política e social,
não se tratando, portanto, de um conjunto fechado. Em consonância segue o entendimento de José
Joaquim Gomes Canotilho109 ao afirmar que as constituições devem ser traduzidas na disponibilidade
e na capacidade de aprendizagem visando captar o dinamismo dos fatos, da verdade e da justiça.
Ainda para Dirley da Cunha Júnior110, normas constitucionais são todas as disposições inseridas na
Constituição, ou ao menos reconhecida por ela, qualquer que seja o seu conteúdo. Para Ruy Barbosa111
todas as normas presentes em uma constituição devem ter força imperativa de regras, guindadas pela
soberania nacional, dentro de um contexto de Estado Constitucional Democrático.
Essencial, para melhor elucidar a toada do presente tópico, tecer linhas sobre as duas teorias basilares
da classificação pátria112. Importante frisar que não se trata de uma análise das constituições e sim das
normas ali presentes.
A primeira, teoria americana, desenvolvida, sobretudo, por Thomas Cooley113 no séc. XIX, segundo
Bernardo Gonçalves Fernandes114, é a precursora das teorias sistematizadas que surgiram no mundo
a despeito da aplicabilidade das normas constitucionais. Possui como aspecto central a divisão das
normas constitucionais em executáveis e autoexecutáveis. Assim, as normas que são autoaplicáveis
são aptas a gerar efeitos jurídicos independentemente do legislador ordinário. Por outro lado, as
normas que não são dotadas de autoexecutoriedade se completam com a vontade do legislador
ordinário ao passo que não teriam meios necessários para a viabilização dos direitos preconizados.

106
NOVELINO, Marcelo. Op. cit. p. 59.
107
MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Neoconstitucionalismo: a invasão da Constituição. São Paulo: Método, 2008. [?]
108
CUNHA JÚNIOR. Dirley da. Op. cit. p. 34-35.
109
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª Ed. Coimbra: Almedina, 1997. [?]
110
Nesse sentido tece uma crítica em relação a distinção entre normas constitucionais materiais e normas constitucionais formais.
CUNHA JÚNIOR. Dirley da. Op. cit. p. 132.
111
BARBOSA, Ruy. Comentários à Constituição Federal Brasileira. v. 2. São Paulo: Saraiva, 1933. p. 475.
112
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Op. cit. p. 103-104.
113
COOLEY, Thomas M. A treatise on the constitutional limitations which rest upon the power of the States of the American Union, Boston,
1903. p. [?]
114
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Op. cit. p. 104.

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 99-122 jul./dez. 2020 117


A outra teoria, italiana, capitaneada, sobretudo, por Vezio Crisafulli115, surgiu no século XX, e salienta a
importância das intituladas normas programáticas, que, a seu turno, não eram cotejadas em relação
ao seu papel na teoria americana. Contudo, “com a doutrina desenvolvida no Brasil por José Afonso da
Silva o debate ganhara novos ares com a definição explícita de que em uma Constituição não teríamos
normas não autoaplicáveis e, portanto, sem aplicabilidade”116. Com efeito, o cerne dessa teoria será
que todas as normas constitucionais são dotadas de aplicabilidade e eficácia jurídica117.
Assim, ainda segundo Bernardo Gonçalves Fernandes, com raiz na teoria italiana, a teoria de
aplicação das normas desenvolvida a partir da década de 70 do século passado, no Brasil, defende
que se todas as normas constitucionais têm aplicabilidade, esta seria desenvolvida em graus,
ou seja, teria uma escala de aplicabilidade. Para José Afonso da Silva118, deve-se levar em conta,
portanto, que uma norma só é aplicável se revestida de vigência (faz a norma existir juridicamente
após promulgação e publicação), validade (vigor, força vinculante da norma) e eficácia (produção
de efeitos jurídicos).
Demais disso, para a teoria ora ventilada119, e compadecendo da linha de entendimento de autores
como José Afonso da Silva120, Pedro Lenza121 e Marcelo Novelino122, as normas constitucionais, no
quesito eficácia jurídica, classificam-se em: a) normas constitucionais de eficácia plena; b) normas
constitucionais de eficácia contida e, por fim; c) normas constitucionais de eficácia limitada.
Pedro Lenza123 explica que as normas constitucionais de eficácia plena estão aptas a produzir todos os
seus efeitos a partir do momento em que entram em vigor, de forma independente, aproximando-se do
que a teoria americana denomina de normas autoaplicáveis (self-executing). As normas constitucionais
de eficácia contida estão aptas a produzir efeitos a partir do momento que entram em vigor, mas com
a ressalva que não será de forma integral, com a abrangência reduzida. Há uma restrição à eficácia e
à aplicabilidade. Um exemplo é a conjugação do art. 5, XIII da CR/88 que permite o livre exercício de
qualquer profissão, desde que atendidas as qualificações profissionais estabelecidas por lei, com a

115
CRISAFALLI, Vezio. La constituzione e le sue disposizioni di principio. 1952. p. [?]
116
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Op. cit. p. 105.
117
Nesse sentido, Bernardo Gonçalves Fernandes destaca que as normas constitucionais conterão no mínimo dois efeitos, a saber:
positivos e negativos. Os efeitos positivos, consistem em um efeito proativo baseado na revogação do ordenamento anterior,
que se contrarie a nova norma constitucional. Quanto aos efeitos negativos, se originam ao passo que é relativamente vedado
ao legislador ordinário produzir normas infraconstitucionais contrárias a ela (caso seja produzida, será retirada pelo controle de
constitucionalidade). FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Op. cit. p. 105.
118
AFONSO DA SILVA, José. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3ª Ed. rev. amp. atual., São Paulo: Malheiros, 1998. p. 52.
119
Ainda para Bernardo Gonçalves Fernandes, as normas constitucionais de eficácia plena “reúnem todos os elementos necessários para
a produção de todos os efeitos jurídicos. São dotadas de uma aplicabilidade imediata, direta”. Versa que as normas constitucionais
de eficácia contida “nascem com eficácia plena, reúnem todos os elementos necessários para a produção de todos os efeitos
jurídicos imediatos, mas terão seu âmbito de eficácia restringido, reduzido ou contido pelo legislador infraconstitucional (ordinário)”.
As normas constitucionais de eficácia limitada “são as únicas que, definitivamente, não são bastantes em si. Nesses termos, elas
não reúnem todos os elementos necessários para a produção de todos os efeitos jurídicos. São normas que têm aplicabilidade
apenas indireta e mediata”. Por oportuno, continua sopesando que, para que produza todos os efeitos jurídicos, será necessária a
regulamentação dessas normas. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Op. cit. p. 105.
120
AFONSO DA SILVA, José. Op. cit. p. 52.
121
LENZA, Pedro. Op. cit. p. 233.
122
NOVELINO, Marcelo. Op. cit. p. 105-107.
123
LENZA, Pedro. Op. cit. p. 233.

118 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 99-122 jul./dez. 2020


lei (Estatuto da OAB) que exige a aprovação no exame de ordem para o exercício da advocacia. Por
fim, as normas constitucionais de eficácia limitada são aquelas que, no momento de sua entrada
em vigor, não estão aptas a produzir efeitos, necessitando de uma norma regulamentadora
infraconstitucional a servir como balizadora. Lenza ainda destaca a sua concordância com José
Afonso da Silva e Vezio Crisafulli, em detrimento da teoria americana preconizada por Cooley ao
afirmar que aqui, a norma constitucional de eficácia contida produz um efeito mínimo, qual seja:
vincular o legislador infraconstitucional às diretrizes preconizadas na Constituição.
Em outra senda, Luís Roberto Barroso124 classifica à aplicabilidade das normas em três espécies, a
saber: a) normas constitucionais de organização; b) normas constitucionais definidoras de direitos
e; c) normas constitucionais programáticas. As primeiras, são vetores impostos aos poderes do
Estado e seus agentes, que, como consequência, podem repercutir ou impactar na esfera dos
indivíduos. Definem competências e criam órgãos estruturais do Estado constitucional democrático
e, ainda, preconiza nuances relativas a revisão e alteração da Constituição. As segundas (normas
constitucionais definidoras de direitos), são as normas que criam direitos subjetivos e, por fim, as
normas constitucionais programáticas indicam fins e princípios (ou programas de ação) colimados
para e pelos Poderes Públicos.
Por fim, Dirley da Cunha Júnior125 leciona que as normas constitucionais são criadas para serem
aplicadas e, em analogia, preconiza que “o Direito existe para realizar-se”.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desde tempos remotos, a doutrina relata que as comunidades foram constituídas. E se foram
constituídas, obviamente, possuem uma constituição vetorial que estabelece parâmetros de
comportamento aos governantes e governados. Seja ela escrita ou não. A forma de interpretar e formar
as constituições evoluiu, notadamente após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando evidenciou-se
a necessidade de uma análise garantista aos direitos fundamentais, que se coadune com a supremacia
constitucional, além da sublimação dos princípios ao caráter de pedestal normativo.
Nesse sentido, o constitucionalismo se dinamizou ao pós-positivismo e ao neoconstitucionalismo (mais
específico que o pós-positivismo), anexando ao direito valores, princípios e regras, consubstanciando
uma nova hermenêutica constitucional, fundada, sobretudo, na concretização da dignidade da
pessoa humana e na aproximação do Direito à Ética. Além disso, são ideias essenciais à concretização
dos paradigmas constitucionais (normas, princípios) a ponderação (diferentemente das regras, que
são interpretadas por subsunção) de valores e a teoria da argumentação. Assim, o direito passa a
ser entendido como um fim para que se evite uma medida insuportável, em prol da justiça, direitos
fundamentais e democracia, mediante a intensa atividade dialética, em face da generalidade e da
abstração das normas.
Logo, incumbe ao universo jurídico, científico e acadêmico o mergulho nessas questões, de modo a
dirimir soluções práticas e efetivas, evidenciando parâmetros de ponderação e aspectos de controle

124
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. p. 84-106.
125
CUNHA JÚNIOR. Dirley da. Op. cit. p. 135.

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 99-122 jul./dez. 2020 119


da atividade judicial, evitando que o sistema judicial, em sua legítima discricionariedade, extirpe o
caráter democrático da Constituição e atue de forma abusiva para atender seus interesses políticos.
Nesse sentido, é preciso evitar que a ponderação das normas seja feita ao arbítrio amplo e livre do juiz
e, para isso, é necessário o estabelecimento de critérios e padrões de análises das fontes normativas
aceitas pela Constituição, para evitar a insegurança jurídica e a aleatoriedade das decisões, bem como
a análise do ordenamento como um todo harmonioso, nunca em desfavor da dignidade da pessoa
humana.
Por outro lado, é insofismável que a nova forma de interpretar e aplicar as normas constitucionais
trazem benesses, sobretudo, ao imputar um elevado grau de ceticismo ao caráter das regras, que,
por sua vez, não possuem mais um caráter absoluto. O viés legalista foi relativizado face a dialética e
harmonia das normas constitucionais, não havendo que se falar em antinomia e sim em aplicação do
melhor conjunto de normas que se adequam a cada caso concreto.
A Constituição possui caráter supralegal e, notadamente sob influência da teoria italiana de Vezio
Crisafulli, a perspectiva da totalidade dos insignes doutrinadores aludidos é de que ela foi criada
para ser cumprida, não se admitindo reclinação em contrário. Ao homem-médio, registra-se o alerta
de conhecimento ou, até mesmo, adequação a esse novo sistema de interpretação e aplicação das
normas constitucionais, de modo que não se sucumba por resquícios de absolutismo em situações
cotidianas.

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122 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 99-122 jul./dez. 2020


ESTUDO E
PESQUISA
CONTROLE EXTERNO EXERCIDO PELO TRIBUNAL
DE CONTAS DE MINAS GERAIS SOBRE OS FUNDOS
EDUCACIONAIS

Coordenadora do grupo de pesquisa:

CRÉDITO: ARQUIVO TCEMG


Cristina Andrade Melo
Mestre em Direito Administrativo pela UFMG,
Belo Horizonte/MG Brasil. Bacharel em Direito
pela Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte/MG. Procuradora do Ministério Público
junto ao Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. 
E-mail: Cristina.melo@mpc.mg.gov.br
CV: http://lattes.cnpq.br/7379485895245365

Pesquisadores
Ana Elisa de Oliveira (Especialista em Contabilidade e Finanças Públicas e em Controle Externo pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas). Andressa Santos Seixas (Especializando em
Finanças Públicas pela Escola de Contas e Capacitação Professor Pedro Aleixo). Fabrícia de Oliveira Silva
(Especializando em Gestão de Programas e Projetos Sociais pelo Centro Universitário de Belo Horizonte,
Uni BH, Minas Gerais). Maíra Cardoso Ribeiro (Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas
– Fumec.. Especialista em Direito Público e Políticas Públicas pela Faculdade de Direito de Itaúna MG) Naila
Garcia Mourthé (Especialista em Língua Espanhola e em Orientação Educacional pela PUC Minas). Regina
Célia Vieira Kelles (Especialista em Linguagem, Tecnologia e Ensino pela Universidade Federal de Minas
Gerais). Ryan Brwnner Lima Pereira (Especialista em Direito Público: Controle de Contas, Transparência e
Responsabilidade e em Controle Externo da Gestão Pública Contemporânea pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais). Sérgio Sadi Maksud (Graduado em Ciências Econômicas e Direito. Especialista
em Administração Financeira, Controle Externo e Controle Externo da Gestão Pública) Stela Maris Pimenta
Ribeiro (Graduada em Ciências Contábeis pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais).
Colaboradores
Gustavo Neves de Lacerda (Graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais).
Leticia Carvalho Coelho Pinheiro Brandão (Graduanda em Direito pela Faculdades Milton Campos).

124 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 124-150 jul./dez. 2020


Resumo Abstract
Este artigo pretende discutir o papel do This paper aims to discuss the role of the Minas Gerais
Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais State’s Court of Auditors (TCEMG) regarding the public
(TCEMG) no controle externo dos instrumentos auditing of the instruments that provide funding for
de financiamento da educação pública básica the public elementary education system in the State of
no Estado de Minas Gerais, com foco no mais Minas Gerais, focusing on the most important among
importante desses instrumentos: o Fundo de these instruments: the “Fund for the Maintenance
Manutenção do Desenvolvimento da Educação and Development of Elementary Education and
Básica e de Valorização dos Profissionais da for the Recognition of Education Professionals”
Educação (Fundeb). A princípio, o artigo parte de (Fundeb). At first, the paper is introduced by the
um breve histórico dos fundos educacionais, que se depiction of a brief history of the public educational
inicia com a implantação do Fundo de Manutenção funds in Brazil, that starts with the creation of the
e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e “Fund for the Maintenance and Development of
de Valorização do Magistério (Fundef ) e culmina Primary Education and for the Recognition of the
no surgimento do Fundeb, hoje uma fonte Teaching Profession” (Fundef), culminating on the
permanente de financiamento da educação básica emergence of the Fundeb, today a permanent source
por força da Emenda Constitucional n. 108/2020. of funding for basic education under Constitutional
Tendo em vista o propósito principal do artigo, o Amendment no. 108/2020. For the main purpose of
trabalho prossegue com a análise da fiscalização the article, the study proceeds with the analysis of the
sobre os fundos educacionais mineiros (Fundef auditing procedures through which the Minas Gerais
e Fundeb), que é exercida pela Corte de Contas State’s Court of Auditors oversees both the state and
mineira. Este estudo é conduzido mediante o local government management of the educational
exame das principais ferramentas fiscalizatórias funds’ resources (Fundef and Fundeb), including
e da metodologia utilizadas pelo TCEMG nessa the procedures concerning the relations between
tarefa, tanto em âmbito municipal, quanto em the Court of Auditors and the institutions of Internal
âmbito estadual, inclusive no que toca à relação and Social Control. At the end, the paper discusses
entre o controle externo e os controles interno e the results of that analysis – emphasizing the flaws
social. Ao fim, o artigo discute os resultados dessa and major difficulties on the auditing procedures
análise – em que destaca as falhas e as dificuldades that concerns the management of the educational
na fiscalização da gestão dos recursos dos fundos funds’ (specially the Fundeb) resources – and adopts a
educacionais (em especial do Fundeb) – e adota suggestive approach by issuing recommendations to
uma abordagem propositiva, por meio da qual faz improve the auditing performance of the Minas Gerais
proposições para o aprimoramento da atuação do State’s Court of Auditors over the management of the
referido tribunal na tarefa de fiscalizar a correta Fundeb.
aplicação desses recursos.

Palavras-chave: educação; fundos educacionais; Fundeb; controle externo; Tribunal de Contas do


Estado de Minas Gerais
Keywords: education; educational funds; Fundeb; auditing procedures; Minas Gerais State’s Court of Auditors.

1 INTRODUÇÃO
A Constituição da República de 1988 (CR/88), desde a origem, prevê a educação como um direito
fundamental dos cidadãos e dever do Estado e da família. Com as alterações promovidas por emendas
constitucionais ao longo dos anos, percebe-se um contínuo processo de aquisição evolutiva na tutela
estatal do direito fundamental à educação, de forma que, atualmente, a educação básica, que inclui

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 124-150 jul./dez. 2020 125


a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, é obrigatória e gratuita, devendo ser
implementada progressivamente, nos termos do Plano Nacional de Educação (PNE), com apoio
técnico e financeiro da União, ou seja, todas as crianças com idade entre 4 e 17 anos, sem prejuízo dos
que não tiveram acesso à escola na idade adequada, têm o direito à educação gratuita assegurado na
Constituição da República (CR/88).
Tratando-se a educação de direito social, comumente denominado direito de segunda geração ou
dimensão, reclama prestação positiva por parte do poder público para garantir a sua fruição pelos
cidadãos e, consequentemente, uma política pública robusta de financiamento para assegurar a
efetividade. Afinal de contas, um direito só existe de fato quando tem um custo orçamentário. No
Brasil, a educação básica é financiada, basicamente, por três pilares definidos na CR/88.
O primeiro pilar consiste na vinculação da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente
de transferências de, no mínimo, 25% para estados, municípios e Distrito Federal e 18% para a União
na manutenção e desenvolvimento do ensino (art. 212). É tamanha a importância desse direito que a
vinculação para a finalidade prevista no art. 212 é uma exceção ao princípio da não afetação da receita
de impostos previsto no art. 167, IV, da CR/88.
O segundo pilar é o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização
dos Profissionais da Educação (Fundeb), que funciona como uma espécie de subvinculação: parte
dos recursos que os estados, o Distrito Federal e os municípios aos quais se refere o art. 212 foram
reservados para formação de um fundo de natureza contábil para serem aplicados na educação básica,
de maneira redistributiva, com objetivo de dotar o financiamento da política pública educacional de
maior equidade. O fundo era previsto no art. 60 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias
(ADCT) da CR/88, com validade até 31 de dezembro de 2020. A partir de 2021, começa a valer o
novo Fundeb, previsto no corpo da Constituição (art. 212-A), por força da Emenda Constitucional n.
108/2020.
Por último, a contribuição social do salário-educação recolhida pelas empresas, na forma da lei,
prevista no art. 212, § 5º, como fonte adicional de financiamento da educação.
Dito isso, todas essas receitas somadas representaram, no ano de 2018, segundo nota técnica da
Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca) e da Campanha Nacional
pelo Direito à Educação, 252 bilhões de reais e serviram para financiar, aproximadamente, 142 mil
escolas públicas de educação básica, 40 milhões de alunos e 2 milhões de professores (Censo Escolar/
INEP 2018), números que, por si só, demonstram a magnitude da política pública em questão.
Este artigo, fruto de grupo de pesquisa vinculado à Escola de Contas e Capacitação Professor Pedro
Aleixo, do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCEMG), pretende abordar o papel da Corte
de Contas mineira no controle externo do financiamento da educação pública básica no Estado de
Minas Gerais, sobretudo com enfoque no seu principal instrumento, o Fundeb. Trata-se de verba
vinculada à finalidade da educação pública e representa um fluxo importante de recursos públicos,
cujo controle é sujeito à jurisdição do TCEMG.

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2 HISTÓRICO DOS FUNDOS CONTÁBEIS EDUCACIONAIS NA
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988
A história do financiamento da política educacional no país é fortemente marcada pela intermitência.
Conforme destaca o professor Jamil Cury (2006), a sociedade foi alarmada para a importância dessa
política a partir dos resultados intoleráveis apresentados pelas estatísticas da educação, fruto de
um processo histórico educacional eminentemente seletivo e elitista, somado à descontinuidade
administrativa nas políticas educacionais dos governos.
Acompanhando os processos de amadurecimento da democracia e a evolução federativa, constata-
se que, durante todo o século XX, a educação no Brasil oscilou em termos de estabelecimento de um
mecanismo de financiamento solucionador de seus grandes desafios: a erradicação do analfabetismo,
a universalização da oferta de vagas e a garantia da qualidade do ensino.
Desde a Constituição de 1934, as soluções implantadas que tiveram maior impacto na educação foram
baseadas na subvinculação dos impostos, garantindo não apenas a fonte específica de arrecadação,
mas também estabelecendo os mínimos constitucionais de aplicação para os entes responsáveis. A
partir de 1988, conforme preconizado pelo art. 212 da Constituição da República, passou-se a dispor
que “A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a
proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino”.
Foram instituídas, a cada esfera de governo, responsabilidades e prioridades. A lei determinou à União,
aos estados e aos municípios a responsabilidade sobre o ensino superior, o ensino médio, o ensino
fundamental e a educação infantil.
A descentralização da política de educação foi o caminho encontrado pelo Brasil para a distribuição
de receitas entre os níveis delegados. A política pretendia a redução das desigualdades, por meio da
compilação e da redistribuição dos recursos, de acordo com as competências atribuídas e o número
de alunos atendidos em cada rede, sistematizada por meio da criação de fundos contábeis estaduais.
Para tanto, a Emenda Constitucional n. 14/1996 criou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento
do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef ), instrumento que estipulava o valor
mínimo a ser gasto por aluno; a vinculação de 15% das receitas de impostos dos estados e municípios
para a educação; o gasto mínimo de 60% do fundo com remuneração dos professores do ensino
fundamental em efetivo exercício no magistério (art. 60, §5º, ADCT) e demais gastos com ações de
manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental.
• Tais configurações trazidas pelo pacto federativo ajudaram a consolidar o regime de colaboração.
Cury (2006) também aponta que o sucesso do pacto federativo é fator importante para o resultado
das políticas educacionais, pois um sistema fiscal e financeiro, ao efetivar os grandes princípios e
as normas gerais da educação, fortalece a colaboração entre os entes federados, o que implica a
obtenção de bons resultados para a sociedade.
• A implantação do Fundef demandou o incremento das ações de fiscalização no uso dos recursos
da educação, emergindo, com isso, a necessidade de criação de novos mecanismos de controle
por parte dos tribunais de contas, dos conselhos de acompanhamento da política educacional,
dos controles internos e da sociedade.

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Apesar de não ser o único meio de financiamento da educação, o fundo contribuiu para o aumento
da oferta de vagas e para a garantia de recursos, principalmente para a habilitação de docentes e
para o pagamento de suas remunerações. Entretanto, por seu caráter provisório e, principalmente,
por não contemplar importantes segmentos da educação, o Fundef não foi capaz de suprir as imensas
demandas, historicamente, constituídas. Como leciona Martins (2010.): “Com o fim do Fundef, em
2006, e realizado o balanço de suas virtudes e insuficiências, abriu-se uma janela de oportunidade
para a adoção de política que organizasse o financiamento de todas as etapas da educação básica, já
que aquele se limitara ao ensino fundamental”.
O fim do Fundef culminou em sua substituição por um novo instrumento ampliado. A Emenda
Constitucional n. 53/2006 criou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e
de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), passando a vigorar a partir de 2007. Além
de ampliar a estrutura de captação e de redistribuição de recursos, tanto com relação ao percentual
(passando de 15% para 20%), quanto ao acréscimo de outros impostos na base de cálculo, o mecanismo
apresentou como principal avanço a ampliação da cobertura, abarcando desde a educação infantil até
o ensino médio, além de considerar as matrículas da rede conveniada, conforme previsto na Lei n.
11.494/2007. Ademais, para favorecer a redução da defasagem entre os fundos de cada estado, foi
constitucionalizado o aporte de 10% de contribuição mínima pela União.
O Fundeb manteve a obrigatoriedade da utilização de, pelo menos, 60% dos recursos arrecadados
para pagamento da remuneração de todos os profissionais do magistério da educação básica da
rede pública, em efetivo exercício, e o restante para aplicação nas demais ações de manutenção e
desenvolvimento da educação básica pública.
A ideia do fundo é tornar equitativa a distribuição de recursos para a educação, tendo em vista as
distorções arrecadatórias existentes entre os entes da Federação. Nesse sentido, diversos estudos
comprovam a eficácia da instituição do mencionado fundo, como relatado, a seguir, por Abreu (2018):
Várias análises técnicas demonstram os resultados positivos do Fundeb, tanto no efeito
redistributivo intraestadual quanto na redução das desigualdades entre os Estados em
decorrência da complementação da União.
Segundo estudo do Inep/MEC1 sobre o valor aluno ano (VAA) do Fundo nas UFs,
a diferença entre o VAA do Maranhão (o menor do país) e o de São Paulo (UF com
maior VAA entre as UFs com mais matrículas) diminuiu entre os anos de 2007 e 2014,
tanto para os valores sem a complementação da União quanto para os valores com a
complementação da União.
Estudo técnico da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira (Conof ) da
Câmara dos Deputados2 analisou a redistribuição dos recursos promovida pelo Fundeb
considerando todas as receitas vinculadas à educação (5% das receitas integrantes do
Fundo, 25% das receitas de impostos não integrantes do Fundeb, salário-educação
e transferências dos programas universais da União), cujo parâmetro comparativo
é expresso pelo valor total por aluno ano (VAA total). O estudo demonstra que, sem
o Fundeb, os valores máximo e mínimo em cada UF variam de 375% a 4.035%. Com
o Fundeb, as disparidades intraestaduais reduzem-se à variação de 24% a 411%. Nos
Estados beneficiados com a complementação da União ao Fundeb, a variação entre o
menor e o maior VAA total diminui de 92,9% sem a complementação para 7,6% com a
complementação.

Efeito supletivo do Fundeb via complementação da União: análise das receitas e dos valores anuais por aluno efetivos (2007 a 2014),
1

Inep/MEC, 2015.
Estudo Técnico 24/2017, de Claudio Riyudi Tanno, da Conof/CD.
2

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Conforme preconiza a lei n. 11.494/2007, em seu art. 3º, os fundos, no âmbito de cada Estado e do
Distrito Federal, são compostos por 20% das seguintes fontes de receita: (i) Imposto de Transmissão
Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITCMD); (ii) parcela pertencente aos estados do
Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS); (iii) parcela pertencente aos municípios
do ICMS (25%); (iv) parcela pertencente aos estados do Imposto sobre a Propriedade de Veículos
Automotores (IPVA); (v) parcela pertencente aos municípios do IPVA (50%); (vi) parcela pertencente
aos municípios do Imposto Territorial Rural (ITR), 50% ; (vii) parcelas pertencentes aos estados
sobre o Imposto sobre Renda e proventos de qualquer natureza (IR) e o Imposto sobre Produtos
Industrializados (IPI) devida ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (FPE); (viii)
parcelas pertencentes aos municípios sobre o Imposto sobre Renda e proventos de qualquer natureza
(IR) e o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) devida ao Fundo de Participação dos Municípios
(FPM); (ix) parcela pertencente aos Estados do IPI proporcional às exportações (IPI) exportação (10%);
(x) receitas da dívida ativa tributária relativa aos impostos mencionados bem como juros e multas
eventualmente incidentes; (xi) recursos relativos às desonerações de exportações de que trata a Lei
Complementar n. 97/1996 – Lei Kandir; (xii) complementação da União.
Apesar da variedade de fontes de receitas na formação do fundo, a Auditoria Operacional TC
018.856/2019-5, realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), revelou a dependência do Fundeb,
primordialmente sobre quatro fontes, com expressivo destaque para o ICMS, seguido pelo FPM e FPE
e pela complementação da União, que, juntas, representaram 93% do total de recursos, conforme é
demonstrado pelo Gráfico 1, a seguir:
Gráfico 1 – Fontes de receitas efetivas do Funfeb de 2009 a 2018

Fonte: Auditoria Operacional TC n. 18.856/2019-5, TCU, 2019.

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 124-150 jul./dez. 2020 129


O fundo, previsto para cessar em 2020, foi amplamente discutido pelas várias esferas envolvidas com
o objetivo de elaborar propostas para a ampliação e a consolidação do financiamento, de modo
permanente, como alertara o professor Pinto (2014), a seguir:
O Fundeb gerou uma situação de dependência extrema para boa parte desses entes, de
tal forma que o seu fim, previsto para 2020, representaria o caos na oferta da educação
básica no Brasil. Cabe então, e desde já, o início da construção de um sistema permanente
de financiamento desse nível de ensino que integre União, estados e municípios.

Nesse arcabouço foi aprovada a Emenda Constitucional n. 108/2020, que garantiu a perenidade e o
aprimoramento desse instrumento para o financiamento da educação. Além disso, o texto aprovado
trouxe um grande avanço em relação à ampliação da participação da União no fundo, com a definição
de alcançar, até 2026, uma complementação de 23%, enquanto no fundo anterior essa faixa era fixada
em 10%. Outra definição importante trazida pela referida emenda foi a determinação do investimento
mínimo de 70% dos recursos do fundo no pagamento de remuneração aos profissionais da educação,
percentual que na regra anterior era de 60%.
Esse caráter “multinível” é um dos grandes desafios da política educacional, no que tange ao
financiamento. No que diz respeito à fiscalização dos fundos contábeis, à aplicação dos recursos, à
complexidade de agentes e recursos envolvidos no sistema, a tarefa torna-se hercúlea.
Nesse sentido, os tribunais de contas da União, dos estados e dos municípios, incumbidos de julgar
a boa e regular aplicação dos recursos públicos, têm importante papel para que tal financiamento
se concretize, com eficiência, eficácia e efetividade, garantindo-se, também, que todas as partes
cumpram suas responsabilidades. Desde as análises dos extratos específicos das transferências
realizadas pela União para os estados até as movimentações realizadas pelos gestores dos estados
para os municípios, os tribunais têm a tarefa de fiscalizar o percurso dos recursos, bem como a sua
aplicação nas devidas áreas, conforme as determinações legais.
Mais desafiadora ainda é a atuação do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCEMG), que
opera em um estado com o maior número de municípios no país (853) e que concentra mais de
12.000 escolas públicas no atendimento de mais de três milhões e meio de alunos3. Neste artigo,
serão evidenciadas as principais ações de fiscalização desenvolvidas pelo TCEMG nos fundos (Fundef
e Fundeb), com o objetivo de elencar possíveis propostas de aprimoramento do controle externo para
a política da educação.

3 ATOS NORMATIVOS DO TCEMG SOBRE OS FUNDOS EDUCACIONAIS


O revogado art. 5º da Lei n. 9.424/1996, que regulamentou o Fundef, fazia menção ao controle
exercido pelo conselho de acompanhamento e fiscalização dos recursos e aos órgãos responsáveis
pelo controle interno e externo, conforme se vê a seguir:
Art. 5º: Os registros contábeis e os demonstrativos gerenciais, mensais e atualizados,
relativos aos recursos repassados, ou recebidos, à conta do Fundo a que se refere

Dados extraídos do Censo Escolar 2019, Resumo Técnico do Estado de Minas Gerais, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos
3

e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Disponível em: http://portal.inep.gov.br/documents/186968/484154/Resumo+T%


C3%A9cnico+do+Estado+de+Minas+Gerais+-+Censo+da+Educa%C3%A7%C3%A3o+B%C3%A1sica+2019/a9ed935e-067e-4799-
a027-9fb067c54f94?version=1.0. Acesso em: 12 ago. 2020.

130 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 124-150 jul./dez. 2020


o art. 1º, ficarão permanentemente, à disposição dos conselhos responsáveis pelo
acompanhamento e fiscalização, no âmbito do Estado, do Distrito Federal ou dos
Municípios, e dos órgãos federais, estaduais e municipais de controle interno e externo.

Por sua vez, a Lei n. 11.494/2007, que regulamentou o art. 60 do ADCT da CR/88, aprimorou a redação
do revogado dispositivo legal no seu art. 25 e determinou expressamente que a fiscalização e o
controle, especialmente em relação à aplicação da totalidade dos recursos dos fundos, serão exercidos
pelos Tribunais de Contas segundo a sua jurisdição, como se registra a seguir:
Art. 25.  Os registros contábeis e os demonstrativos gerenciais mensais, atualizados,
relativos aos recursos repassados e recebidos à conta dos Fundos assim como os
referentes às despesas realizadas ficarão permanentemente à disposição dos conselhos
responsáveis, bem como dos órgãos federais, estaduais e municipais de controle interno
e externo, e ser-lhes-á dada ampla publicidade, inclusive por meio eletrônico. [...]
Art. 26.  A fiscalização e o controle referentes ao cumprimento do disposto no art. 212 da
Constituição Federal e do disposto nesta Lei, especialmente em relação à aplicação da
totalidade dos recursos dos Fundos, serão exercidos:
I - pelo órgão de controle interno no âmbito da União e pelos órgãos de controle interno
no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
II - pelos Tribunais de Contas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, junto aos
respectivos entes governamentais sob suas jurisdições;
III - pelo Tribunal de Contas da União, no que tange às atribuições a cargo dos órgãos
federais, especialmente em relação à complementação da União.

A lei ainda dispõe que compete aos tribunais de contas a regulamentação dos procedimentos de
prestação de contas dos recursos dos fundos, como se vê no artigo 27, parágrafo único:
Art. 27. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios prestarão contas dos recursos dos
Fundos conforme os procedimentos adotados pelos Tribunais de Contas competentes,
observada a regulamentação aplicável.
Parágrafo único.  As prestações de contas serão instruídas com parecer do conselho
responsável, que deverá ser apresentado ao Poder Executivo respectivo em até 30
(trinta) dias antes do vencimento do prazo para a apresentação da prestação de contas
prevista no caput deste artigo.

Portanto, os estados, o Distrito Federal e os municípios devem prestar contas dos recursos públicos
que compõem o fundo ao Tribunal de Contas competente, instruída com parecer do conselho do
Fundeb, obedecido o disposto em atos normativos editados por cada tribunal.
No âmbito do Estado de Minas Gerais, o TCEMG tem editado diversas instruções normativas, desde a
vigência do Fundef, que estabelecem orientações aos gestores na aplicação dos recursos vinculados
à educação, incluindo as verbas dos fundos, com base na legislação vigente (Lei n. 9.424/1996 e,
posteriormente, Lei n. 11.494/2007), bem como na contabilização das receitas e das despesas e na
guarda de documentos para as eventuais ações de fiscalização in loco pela Corte de Contas.
Portanto, para além da orientação dos gestores na aplicação e na gestão dos recursos vinculados
à educação, as instruções normativas dispõem acerca dos documentos necessários em caso de
eventual auditoria ou inspeção do Tribunal de Contas, tendo em vista que as informações contábeis,
orçamentárias e financeiras relativas à educação são autodeclaradas pelo gestor, via sistemas
informatizados.
Com relação ao Fundef foram editadas pelo TCEMG as seguintes instruções: (i) Instrução Normativa

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 124-150 jul./dez. 2020 131


(IN) n. 2/1997, utilizada para análise das contas de 1998; (ii) IN n. 2/2002 e (iii) IN n. 8/2004, as quais
determinavam aos gestores que encaminhassem ao Tribunal demonstrativo da aplicação trimestral
de recursos na Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE). E já sob a vigência do Fundeb, as
seguintes instruções: (i) IN n. 3/2007; (ii) IN n. 06/2007 e (iii) IN n. 13/2008. Esta última, atualmente
vigente, com alterações promovidas pelas IN n. 1/2010, n. 9/2011 e n. 5/2012.
Nesse panorama normativo, merece destaque o fato de o TCEMG ser um dos únicos do país que possui
instrução normativa que veda expressamente o cômputo dos gastos com inativos e pensionistas na
composição do índice das despesas com manutenção e desenvolvimento do ensino. Essa interpretação,
que se coaduna com o espírito da Lei n. 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) e
a Lei n. 11.494/2007 (Fundeb): “Instrução Normativa TCEMG N. 9/2011: Art. 1º: Acrescenta dispositivos
à Instrução Normativa n. 13, de 3/12/2008: Art. 6º [...] § 1º Não serão considerados, na composição do
índice de aplicação no ensino, os gastos com inativos e pensionistas da área da educação”
Embora não seja seguida por todos os tribunais de contas do país, a interpretação,4 no sentido da
exclusão de inativos e pensionistas dos gastos com educação, está em consonância com a orientação
da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
(FNDE). Recentemente o entendimento foi reiterado pelo Pleno do TCEMG no julgamento do
Acompanhamento n. 1.088.916, oportunidade em que foi proferida medida cautelar para a imediata
correção da contabilização no Relatório Resumido da Execução Orçamentária (RREO) por parte do
Estado de Minas Gerais. O acórdão, a seguir, foi assim ementado:
ACOMPANHAMENTO. GESTÃO ESTADUAL. ÍNDICE CONSTITUCIONAL. MDE. CÔMPUTO
DAS DESPESAS. INCLUSÃO DE INATIVOS. IRREGULARIDADE GRAVE. MEDIDADE
CAUTELAR. CORREÇÃO.
Constatada a inclusão indevida de inativos e pensionistas no cômputo do índice
constitucional de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino – MDE, irregularidade de
natureza grave, impõe-se, por meio de controle cautelar, a imediata orientação para
os ajustes necessários à adequada contabilização. Relator: Conselheiro Cláudio Terrão.
Julgamento: 29/07/2020.

A maior polêmica com relação às despesas do fundo parece ter sido finalmente resolvida com a
promulgação da Emenda Constitucional n. 108/2020, que passou a vedar expressamente o uso dos
recursos vinculados à educação – tanto os impostos como a contribuição social do Salário-Educação
– para pagamento de aposentadorias e de pensões (acréscimo do § 7º ao art. 212).
Igualmente, ressalte-se que o art. 2º da Instrução Normativa n. 5/2012, ao vedar o cômputo de restos
a pagar sem disponibilidade financeira nos gastos com educação, atende aos artigos 8º e 50 da Lei
de Responsabilidade Fiscal (LRF), Lei Complementar n. 101/2000, quanto à vinculação de tais recursos
à sua destinação específica, evitando, ainda, a apuração de despesas fictícias na manutenção e
desenvolvimento do ensino para fins de cumprimento do percentual de 25% estabelecido pelo art.
212 da CR/1988. Assim, determina o art. 2º da Instrução Normativa n. 5/2012, a seguir:
Instrução Normativa TCEMG N. 5/2012:

4
O art. 70 da Lei Federal n. 9.394/1996 admite como despesa de manutenção e desenvolvimento do ensino apenas aquelas
relacionadas à “remuneração” e aperfeiçoamento do pessoal docente e demais profissionais da educação, excluindo, implicitamente,
os proventos e pensões. Segundo o Manual de Demonstrativos Fiscais, as despesas com inativos e pensionistas devem ser
classificadas como despesas de Previdência Social.

132 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 124-150 jul./dez. 2020


Art. 2º - O artigo 5.º da Instrução Normativa n.13/2008 passa a vigorar com o acréscimo
dos §§ 4º ao 6º:
§ 4º - Para efeito de cálculo dos recursos mínimos a serem aplicados na manutenção e
desenvolvimento do ensino, serão consideradas:
I - as despesas empenhadas, liquidadas e pagas no exercício; e
II - as despesas empenhadas, liquidadas ou não, inscritas em restos a pagar até o limite
das disponibilidades de caixa ao final do exercício.
§ 5º Os recursos oriundos da disponibilidade de caixa vinculada aos restos a pagar
considerados para fins de apuração do índice, na forma do inciso II do parágrafo anterior,
e posteriormente cancelados ou prescritos, deverão ser, necessariamente, aplicados na
manutenção e desenvolvimento do ensino.
[...]

Registre-se ainda que o art. 13, § 2º, da Instrução Normativa n. 13/2008 regulamentou o parágrafo
único do art. 27 da Lei n. 11.494/2007 ao prever os prazos de apresentação do parecer do conselho do
Fundeb ao Poder Executivo, parte integrante das contas de governo prestadas anualmente, conforme
se vê a seguir:
Art. 3º da IN n. 05/2012: O §2º do artigo 13 da Instrução Normativa nº13/2008 passa a
vigorar com a seguinte redação:
§2º: O Conselho responsável pelo acompanhamento e controle social do FUNDEB deverá
elaborar parecer circunstanciado de toda movimentação dos recursos recebidos e sua
aplicação, o qual será apresentado ao Poder Executivo Estadual, até o dia 1º de fevereiro
e ao Poder Executivo Municipal até o dia 1º de março, do exercício seguinte, e será
parte integrante das contas de governo anualmente prestadas pelos chefes do Poder
Executivo, tendo por finalidade subsidiar as ações de controle do Tribunal de Contas.

Devido a realidades e complexidades diferentes, a fiscalização dos recursos dos fundos educacionais
pelo TCEMG segue a lógica da divisão de seus órgãos internos, de acordo com o âmbito: municipal ou
estadual.

4 O CONTROLE DOS FUNDOS NO ÂMBITO MUNICIPAL


4.1 Inspeções ordinárias realizadas pelo TCEMG
Estabelecidas as orientações normativas para utilização dos recursos advindos do fundo educacional,
o TCEMG passou a inserir no escopo de suas inspeções ordinárias a fiscalização dos recursos oriundos
dos fundos educacionais, inicialmente o Fundef.
De acordo com os relatórios de atividades anuais disponibilizados pelo Tribunal a partir do exercício
de 20015, observou-se a realização de 795 inspeções ordinárias em prefeituras entre 2001 a 2007 com
abordagem do Fundef, conforme Tabela 1 a seguir:

Disponíveis no Portal da Transparência do TCEMG. Segundo o art. 4º da LC n. 102/2008, compete privativamente ao Tribunal: [...]
5

IX – enviar à Assembleia Legislativa, trimestral e anualmente, relatório das suas atividades, para fins do disposto no art. 120 desta lei
complementar.

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 124-150 jul./dez. 2020 133


Tabela 1 — Número de inspeções com abordagem do Fundef

Número de inspeções com abordagemdo


Ano
Fundef
2001 92
2002 82
2003 174
2004 -
20056 -
2006 447
2007 -
Total 795
Fonte: Tribunal de Contas, 2001 a 2007.

Nesse período, as inspeções constituíram importante instrumento de fiscalização das receitas e das
despesas dos recursos do fundo, tendo em vista que, nas prestações de contas de governo municipais,
a análise do Fundef era bastante restrita.
Tomando como parâmetro o ano de 2006 para uma análise pormenorizada, a metodologia das
inspeções ordinárias realizadas consistiu-se no confronto dos dados autodeclarados pelo gestor, via
Sistema Informatizado de Apoio ao Controle Externo (SIACE-PCA), com documentos solicitados in
loco, especialmente quanto aos tópicos: (i) conciliação da conta corrente do Fundef com os extratos
bancários, o relatório contábil das contas de receita que integram o referido fundo, os avisos de
débito e crédito e o relatório de contribuição ao Fundef; (ii) inscrição de despesas em restos a pagar e
correspondente disponibilidade financeira.
Segundo o relatório de atividades anuais, em 2006 foram realizadas 447 inspeções ordinárias em
municípios mineiros. Esse número, contudo, não foi confirmado após amplas pesquisas no Sistema
de Gestão e Administração de Processos (SGAP), que apontou o número de 394 inspeções ordinárias
em municípios mineiros com fiscalização do Fundef em seu escopo realizadas em 2006 e referentes
ao exercício de 2005. Feita uma análise dos acórdãos contendo o julgamento final dessas inspeções,
chegou-se aos seguintes números, demonstrados, a seguir, na Tabela 2:

6
No ano de 2005, das 432 inspeções ordinárias, um dos temas abordados foi a análise das despesas da educação no geral, sem a
menção do Fundef.

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Tabela 2 — Acórdãos das inspeções ordinárias 2006 (referentes ao exercício 2005)

Acórdãos das inspeções ordinárias 2006 (referentes ao exercício 2005)


Procedência com aplicação de multa (envolvendo Fundef ) 33 8,38%
Procedência com recomendação (envolvendo Fundef ) 37 9,39%
Procedência com aplicação de multa (não referente ao Fundef ) 05 1,27%
Procedência com recomendações (não referente ao Fundef ) 06 1,52%
Extinção do processo por prescrição da pretensão punitiva 313 79,44%
Total de acórdãos analisados 394 100%
Fonte: Sistema de Gestão e Administração de Processos (SGAP), TCEMG, 2006.

Como se observa da compilação acima, o julgamento final das inspeções ordinárias de 2006 se
alongou no tempo e acabou por ocasionar a prescrição da pretensão punitiva do Tribunal de grande
parte delas, não gerando, assim, benefício para o controle do fundo educacional, à exceção de alguma
conduta que possa ter sido corrigida na gestão local após a presença dos técnicos nas dependências
da prefeitura e emissão do relatório de inspeção, o que, entretanto, não é passível de mensuração.
Com relação ao Fundeb, foi apurado pelo relatório de atividades anuais divulgado pelo TCEMG,
conforme Tabela 3, o seguinte:
Tabela — 3 Número de inspeções com abordagem do Fundeb

Ano Número de inspeções com abordagemdo Fundeb


2008 811
2009 -
2010 -
2011 -
2012 -
2013 -
2014 -
2015 -
2016 -
2017 -
2018 -
2019 5
Total 816
Fonte: TCEMG, 2008 -2019

As inspeções realizadas em 2008 referem-se ao exercício de 2007 – primeiro ano de existência do novo
Fundo, agora ampliado em relação ao anterior – tendo sido analisados, dentre outros itens, a aplicação
de recursos com educação, incluindo o Fundeb.
Esse número, contudo, também não foi confirmado após amplas pesquisas no SGAP, que apontou
o número de 648 inspeções ordinárias em municípios mineiros com fiscalização do Fundeb em seu
escopo no exercício de 2007.

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A metodologia das inspeções ordinárias realizadas no ano de 2008 consistia no confronto dos dados
autodeclarados pelo gestor, via SIACE-PCA, com documentos solicitados in loco, especialmente
quanto aos tópicos: (i) conciliação da conta corrente do Fundeb com os extratos bancários, o
relatório contábil das contas de receita que integram o referido fundo, os avisos de débito e crédito e
o relatório de contribuição ao fundeb; (ii) inscrição de despesas em restos a pagar e correspondente
disponibilidade financeira; (iii) aplicação mínima de 60% na remuneração dos profissionais do
magistério na educação básica em efetivo exercício na rede pública (art. 22 da Lei n. 11.494/2007)
, em confronto com o valor registrado no Anexo III do SIACE -PCA/2007; (iv) aplicação do saldo de
recursos oriundos do Fundeb, que não foram aplicados no exercício anterior, nos termos do art. 21,
§ 2º da Lei n. 11.494/2007.
Realizada uma análise dos acórdãos contendo o julgamento final dessas inspeções, observa-se que as
inspeções realizadas no ano de 2008 tiveram um desfecho melhor que aquelas do ano de 2006, como
se vê nos seguintes números demonstrados na Tabela 4:
Tabela 4 — Acórdãos das inspeções ordinárias 2008 (referentes ao exercício 2007)

Acórdãos das inspeções ordinárias 2008 (referentes ao exercício 2007)


Procedência com aplicação de multa (envolvendo Fundeb) 182 28,09%
Procedência com recomendação (envolvendo Fundeb) 242 37,35%
Procedência com aplicação de multa (não referente ao Fundeb) 64 9,88%
Procedência com recomendações (não referente ao Fundeb) 3 0,46%
Extinção do processo por prescrição da pretensão punitiva 112 17,28%
Extinção do processo por falecimento do gestor 10 1,54%
Regularidade (envolvendo Fundeb) 31 4,78%
Regularidade (não envolvendo Fundeb) 3 0,46%
Arquivamento 1 0,15%
Total de acórdãos analisados 648 100%
Fonte: TCEMG, 2008

Entre os exercícios de 2009 a 2018 não constam informações acerca de inspeções ordinárias municipais
que englobassem fiscalização do fundo educacional nos Relatórios de Atividades do TCEMG de cada
exercício.
Em 2019, impulsionado pelo programa estruturador da gestão 2017/2018 “Na Ponta do Lápis”, o
TCEMG voltou a realizar fiscalização sobre os fundos educacionais, conforme se extrai do relatório
de atividades do terceiro trimestre de 2019. Foram realizadas auditorias de conformidade em cinco
municípios (Itamarandiba, Paraisópolis, Jordânia, Confins e Patos de Minas), tendo por objeto e
finalidade examinar a regularidade da origem e a aplicação dos recursos do Fundeb, recebidos pelo
município nos exercícios de 2017 e 2018, verificar a regularidade da nomeação e da atuação dos
membros do Conselho do Fundeb nesse período, assim como analisar a aplicação dos recursos dos
precatórios judiciais, pagos pela União, decorrente de complementação dos recursos do Fundef. Os
relatórios das auditorias já foram realizados, mas os processos ainda estavam em tramitação no âmbito
do Tribunal até a finalização deste estudo.

136 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 124-150 jul./dez. 2020


4.2 Prestações de contas de governo do chefe do Executivo
Até o ano de 2009, observa-se que havia fiscalização formal da aplicação dos recursos dos fundos
educacionais nas prestações de contas anuais do chefe do Executivo (prefeitos), as denominadas
“contas de governo”, em que o Tribunal de Contas analisa as contas em uma perspectiva de macrogestão
e emite um parecer prévio ao final, que é enviado ao Poder Legislativo para julgamento.
A análise das referidas contas partia dos relatórios gerados pelo SIACE – PCA. Por este sistema os
municípios enviavam ao TCEMG sua execução orçamentária, financeira e patrimonial. Por meio dos
Anexos III – Demonstrativo dos Recursos Recebidos e sua Aplicação e III-A Recursos do Fundeb do
Exercício Anterior Aplicados no Exercício - analisavam-se os seguintes pontos: (i) comparativo do valor
de contribuição do município ao Fundeb (valor retido) e recurso recebido por meio de transferências;
(ii) montante que o município deixou de aplicar dos recursos recebidos do Fundeb e o apurado no
saldo da conta bancária; (iii) aplicação dos 60% dos recursos com remuneração de profissionais do
magistério, nos termos do art. 22 da Lei n. 11.494/2007; (iv) se a prestação de contas municipal foi
instruída com o parecer do Conselho do Fundeb, segundo o disposto no art. 27 da Lei n. 11.494/2007.
O valor que era retido das receitas dos municípios (20% para a contribuição do Fundeb) é considerado
automaticamente para o cômputo dos 25% de aplicação na manutenção e desenvolvimento do
ensino exigido no art. 212 da Constituição da República.
Contudo, a Resolução TCEMG n. 4/2009, publicada em 27/5/2009, instituiu o “Projeto de Otimização
das Ações Referentes à Análise e Processamento das Prestações de Contas Anuais” e, em 1/3/2010, foi
publicada a Ordem de Serviço n. 7/2010, que fixou os procedimentos internos a serem adotados no
exame das prestações de contas anuais apresentadas pelos chefes do Poder Executivo municipal dos
exercícios de 2000 a 2009. O seu art. 1º dispunha o seguinte:
Art. 1º: A análise técnica e o reexame dos processos de prestação de contas apresentadas
pelos Chefes dos Poderes Executivos, referentes aos exercícios de 2009 e anteriores,
deverão observar, para fins de emissão de parecer prévio o seguinte escopo:
I – o cumprimento dos índices constitucionais relativos às Ações e Serviços Públicos
de Saúde e à Manutenção e Desenvolvimento do Ensino, excluindo os índices legais
referentes ao Fundef/Fundeb.

Tendo em vista que a análise dos índices legais referentes aos fundos educacionais ficou excluída, os
pareceres prévios emitidos pelo Tribunal a partir de 2010, nos processos de prestações de governos
municipais referentes ao exercício de 2000 em diante, passaram a seguir um escopo previamente
definido e absolutamente enxuto, a ponto de o controle da aplicação das ações de manutenção e
desenvolvimento do ensino se restringir, exclusivamente, ao cumprimento do índice constitucional.
Desde então, as informações orçamentárias e financeiras, remetidas pelos gestores à Corte de
Contas por meio dos sistemas informatizados, relativas aos recursos vinculados ao Fundef/Fundeb
não constituem parte do escopo a ser analisado nas prestações de contas de governos municipais;
portanto, na análise dessas contas atualmente, o percentual de 20% das receitas dos impostos que
compõem a cesta do Fundeb - que é retido para a contribuição municipal do fundo - é considerado
global e automaticamente no percentual mínimo de 25%, que deve ser aplicado na manutenção e
desenvolvimento do ensino, sem que haja análise específica sobre ele.

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 124-150 jul./dez. 2020 137


4.3 Informações autodeclaradas pelo gestor no sistema informatizado
do TCEMG
Na atualidade, os dados orçamentários e financeiros do município, incluindo aqueles afetos ao Fundeb,
são autodeclarados pelo gestor, mensalmente, no Sistema Informatizado de Contas dos Municípios
(SICOM)7. O sistema é um importante pilar na fiscalização do fundo na medida em que, com fulcro
nas informações prestadas pelos gestores, é possível verificar e fiscalizar os recursos retidos para a
composição do fundo, os recebidos e a utilização dos recursos públicos.
O Sicom permite um controle mais efetivo das receitas e despesas públicas, já que disponibiliza o
acompanhamento da execução orçamentária, sendo possível em seus relatórios aferir até mesmo o
pagamento de cada despesa executada, segundo uma codificação básica para receita, despesa, fontes
de recursos e vinculações atreladas a cada fonte de recurso.
Nesse ponto, a Corte de Contas mineira vem recomendando aos jurisdicionados que padronizem suas
demonstrações contábeis, adotando corretamente as fontes de recursos dos empenhos (fontes 118
e 119 – vinculadas ao Fundeb)8 e dos pagamentos, observando o plano de contas aplicado ao setor
público e as orientações do manual de contabilidade aplicado ao setor público. Como bem observado
por NETO (2019) a seguir:
As características multigovernamentais dos recursos destinados ao Fundeb com a
necessidade de proporcionar melhor classificação e transparência das etapas de
movimentação dos recursos entre os entes da federação, contribuem sobremaneira no
controle das respectivas aplicações.
É algo precioso e que necessita ser apregoado e sedimentado a partir de normatização
que auxilie os profissionais da contabilidade neste processo, padronizar procedimentos
para consolidação das contas públicas e apresentar entendimentos gerais sobre os
procedimentos contábeis nos três níveis de governo.
Por fim, seguindo-se os procedimentos relacionados à contabilidade pública, não há
dúvida de que existe uma probabilidade bem maior das demonstrações contábeis,
consolidadas e padronizadas com base no Plano de Contas aplicado ao setor público
constituir um instrumento eficiente de orientação aos gestores nos três níveis de governo,
mediante consolidação de conceitos, regras e procedimentos de reconhecimento e
apropriação contábil nas operações típicas do setor público, destacando o Fundeb.

Por meio da alimentação do acompanhamento mensal do SICOM são geradas informações


orçamentárias e financeiras do Fundeb demonstradas na base de dados utilizada para análise
da prestação de contas de governo (PCA). Como mencionado no item anterior, para apuração
do percentual mínimo em manutenção e desenvolvimento do ensino exigido pelo art. 212 da
Constituição, o valor que é retido para a contribuição ao Fundeb de acordo com a Lei n. 11.494/2007
é considerado automaticamente como valor aplicado e compõe os 25%.
Informações autodeclaradas são apresentadas também no relatório resumido da execução
orçamentária (RREO)9, contendo os seguintes dados: (i) os recursos recebidos e os rendimentos
de aplicação financeira; (ii) a aplicação de recursos na educação básica por função, subfunção,

Resolução n. 07, de 27/04/2011, IN. n. 10 de 14/12/2011 – TCEMG


7

Fontes 118: Transferência do Fundeb para Aplicação na Remuneração dos Profissionais do Magistério em Efetivo Exercício na
8

Educação Básica. Fonte 119: Transferências do Fundeb para Aplicação em Outras Despesas da Educação Básica.

9 Segundo o disposto no § 3º, art. 165 da CR/88 e no art. 72 da LDB (Lei n. 9.394/1996).

138 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 124-150 jul./dez. 2020


programa e fonte de recurso; (iii) os valores inscritos em restos a pagar; (iv) a disponibilidade de
caixa; (v) os gastos com profissionais do magistério na educação básica em efetivo exercício e
(vi) o cumprimento do disposto no art. 21, § 2º da Lei n. 11.494/2007, segundo o qual até 5% dos
recursos recebidos à conta dos Fundos, inclusive relativos à complementação da União, poderão ser
utilizados no 1º trimestre do exercício imediatamente subsequente, mediante abertura de crédito
adicional.
Contudo, as informações relativas ao Fundeb já mencionadas são utilizadas apenas para fins de
emissão de certidão pelo Tribunal de Contas mineiro, visando à celebração de convênios pelos
municípios.
5 O CONTROLE DOS FUNDOS NO ÂMBITO ESTADUAL

5.1 Prestações de contas de governo do chefe do Executivo


Para fins de compreensão sobre como era a fiscalização dos fundos educacionais no âmbito do Estado
e considerando as formas e os escopos não padronizados referentes à coleta e à análise de dados já
realizadas pelo Tribunal ao longo da existência dos fundos, bem como a insuficiência de informações
parametrizadas e organizadas em sistemas de armazenamento de dados, optou-se pela avaliação das
contas do governador dos exercícios de 2005 e 2012, sendo o primeiro correspondente à avaliação
durante a existência do Fundef e o segundo, já após o surgimento do Fundeb.
Iniciando pelo controle exercido pelo Tribunal durante o período de existência do Fundef, observa-se,
a partir da apreciação das contas do governador do exercício de 2005 (Balanço Geral n. 710.796), que
a fiscalização do fundo abarcou, primeiramente, a observância acerca do cumprimento ou não do
mínimo legal gasto com os profissionais do magistério.
Ultrapassada essa etapa, também foi objeto de apreciação a quantia que o Estado repassou para o
fundo e aquela que ele efetivamente recebeu de volta para o custeio de suas despesas. No entanto,
naquela ocasião, ainda estava em discussão se a perda do ente estatal com o fundo seria ou não
considerada como despesa de educação.
No tocante ao tema educação como um todo, é possível observar que o TCEMG, já em 2005,
realizava uma análise separada da temática, de modo a observar o cumprimento dos limites legais e
constitucionais existentes. Na ocasião, também foram evidenciados os programas/projetos priorizados
no período.
Partindo para análise do relatório elaborado pela Coordenadoria de Avaliação da Macrogestão
Governamental do Estado (Camge) acerca das contas de governo referentes ao exercício de 2012,
observa-se que há menção ao Fundeb, inicialmente, com o intuito de salientar que a maior parte das
ações educacionais eram custeadas com o uso dos recursos do fundo.
Além disso, foram analisadas informações extraídas do Sistema de Administração Financeira do Estado
de Minas Gerais (Siafi) referentes à execução orçamentária dos programas do governo nessa temática,
inclusive por região do estado. Na ocasião, evidenciou-se a presença de uma análise contábil do total
das receitas e das despesas executadas.

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 124-150 jul./dez. 2020 139


O relatório analisado traz em seu conteúdo tópico específico sobre as despesas com manutenção e
desenvolvimento do ensino. É possível observar as fontes dos recursos que compõem a educação e as
unidades orçamentárias que receberam esses recursos. No que diz respeito ao Fundeb, a análise pelo
órgão técnico das contas de governo aborda a utilização dos recursos do fundo de forma apartada,
havendo, assim, tópico específico para o assunto.
Na ocasião, foram analisados os valores recebidos e repassados pelo Estado conforme informações
extraídas do Siafi, tendo sido observada a chamada “perda do fundo”, considerada como despesa
no cálculo do índice legal de aplicação no ensino. No exercício de 2012 foi verificado que o Estado
repassou ao fundo, aproximadamente, R$ 5,898 bilhões e recebeu, aproximadamente, R$ 5,325 bilhões
do total dos recursos da sua composição, tendo sido observado que o governo recebeu cerca de R$
572,395 milhões a menos do que havia contribuído.
Após isso, procedeu-se à verificação do percentual mínimo legal de gasto com os profissionais
do magistério da educação básica em efetivo exercício. Naquela ocasião, o Estado havia gasto,
aproximadamente, R$ 3,834 bilhões com a remuneração dos profissionais do magistério da educação
básica, o que correspondeu a 71,55% da receita total do Fundeb, que foi de, aproximadamente, R$
5,359 bilhões no período.
Atualmente, no âmbito do TCEMG, a Coordenadoria da Fiscalização e Avaliação da Macrogestão
Governamental do Estado (CFAMGE) é o setor responsável por elaborar o relatório sobre a macrogestão
e as contas do governador do Estado de Minas Gerais. Diante da necessidade de retratar o controle
hoje exercido pelo TCEMG no que diz respeito aos recursos do Fundeb, optou-se por avaliar as análises
feitas pela unidade técnica sobre as contas do governador dos exercícios de 2017 e 2018, tendo em
vista serem as análises elaboradas mais recentemente.
Analisando o relatório elaborado pelo órgão técnico referente ao exercício do ano de 2017, observa-
se a presença de tópico específico, destinado à avaliação dos recursos vinculados por determinação
constitucional ou legal, havendo destaque para o tema educação. No tocante ao financiamento da
educação, é feita uma análise sobre a utilização dos recursos do Fundeb, fundo vinculado às três
esferas de governo, e que possui o Banco do Brasil como agente financeiro no âmbito do Estado de
Minas Gerais.
Para a avaliação do cumprimento do mínimo constitucional, o Tribunal observa, na elaboração do
relatório técnico, o parecer conclusivo emitido pelo Conselho de Acompanhamento e Controle Social
do Fundeb (Consfundeb/MG) acerca da movimentação dos recursos recebidos e de sua aplicação,
conforme disposto no artigo 13, §2º da Instrução Normativa n. 13/2008, encaminhado pelo Poder
Executivo junto com a prestação de contas estadual10. Além do parecer do conselho, também é
considerado o relatório elaborado pelo controle interno.
No que diz respeito ao Fundeb, conforme disposto no artigo 22 da Lei n. 11.494/2007, pelo menos 60%
dos recursos do fundo devem ser destinados ao custeio dos profissionais do magistério da educação
básica em efetivo exercício. De modo a verificar o cumprimento ou não desse percentual, o Tribunal

Registre-se que o parecer dos conselhos municipais do Fundeb não são objeto de análise pelo órgão técnico nas prestações de
10

contas de governo municipais.

140 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 124-150 jul./dez. 2020


de Contas utiliza as informações disponíveis tanto no Armazém de Informações – Siafi, como no RREO
do 6º bimestre. É feito o cruzamento das informações disponíveis, o que possibilita a identificação de
possíveis divergências.
Para apuração da base de cálculo do mínimo constitucional a ser aplicado em educação, conforme
evidencia o artigo 212 da CR/88, são utilizadas informações extraídas do RREO do último bimestre.
O referido documento traz como valores a serem considerados como base de cálculo os seguintes:
a) receitas de impostos (ICMS, ITCD, IPVA e IRRF); b) receitas de transferências constitucionais e legais
(FPE, desoneração LC 87-96, IPI exportação e IOF-Ouro); e c) dedução de transferências constitucionais
aos municípios.
A partir da obtenção do valor referente à base de cálculo é possível determinar o valor mínimo que
deve ser aplicado pelo Estado em educação, que corresponde a 25% da base de cálculo.
Com relação à apuração das despesas com Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE), essas
informações são também extraídas do RREO do 6º bimestre, tendo o Estado utilizado para o cálculo,
no exercício de 2017, as seguintes subfunções: 122 – administração geral; 128 – formação de recursos
humanos; 243 – assistência à criança e ao adolescente; 244 – assistência comunitária; 361 – ensino
fundamental; 362 – ensino médio; 363 – ensino profissional; 364 – ensino superior; 365 – educação
infantil; 366 – educação de jovens e adultos; 367 – educação especial; 368 – educação básica; 392 –
difusão cultural; 451 – infraestrutura urbana; 573 – difusão do conhecimento cientifico e tecnológico;
782 – transporte rodoviário; 813 – lazer; 122 – administração geral da função saúde; e 302 – assistência
hospitalar ambulatorial da função saúde. Com relação às subfunções 122 e 302, os valores foram
excluídos do cômputo com saúde e incluídos como MDE, pois estariam relacionados com as despesas
do Hospital Universitário da Unimontes.
No tocante a esse ponto, importante destacar que o TCEMG, em sua análise, considerou incorreta
a inclusão das ações de assistência social, como seria o caso da subfunção 244, tendo em vista o
que se encontra disposto nos artigos 70 e 71, incisos II e IV, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB). Além disso, também considerou como incorreta a inclusão de despesas com cultura
e lazer, subfunções 392 e 813, respectivamente. A despesa com subfunção 243 foi considerada como
MDE, após esclarecimentos prestados pelo Estado, em virtude de ser utilizada para a manutenção da
Fundação Helena Antipoff, que oferta cursos de educação básica e profissional, e da Fundação Caio
Martins, que passou a funcionar como polo de educação integral.
Outro aspecto que é considerado como despesa com MDE é a “perda” com o Fundeb, verificada por
meio do contraponto feito entre os recursos que são repassados pelo Estado ao fundo e aqueles que
são efetivamente recebidos. A diferença obtida a partir desse cálculo é considerada como despesa no
cálculo do índice legal de aplicação do ensino.
Além da utilização do RREO, o TCEMG também faz uso em sua análise do Relatório de Gestão Fiscal (RGF),
que é capaz de evidenciar a disponibilidade de caixa do Poder Executivo. A partir dessa informação,
é possível identificar os restos a pagar não processados relativos à manutenção e desenvolvimento
do ensino, que podem ser retirados do cômputo do índice constitucional da educação, em virtude da
ausência de disponibilidade financeira suficiente no exercício seguinte.

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 124-150 jul./dez. 2020 141


O relatório sobre a macrogestão e as contas do governador do Estado do exercício de 2018 trouxe
novos apontamentos sobre a composição e a utilização dos recursos do Fundeb, capazes de evidenciar
um avanço do Tribunal na fiscalização do fundo.
Um dos pontos que merece destaque diz respeito ao valor do ICMS destinado como receita para
composição do fundo. A equipe técnica considerou irregular a exclusão do valor correspondente
ao Fundo de Combate à Pobreza, haja vista que o artigo 212 da CR/88 não traz excepcionalidade a
respeito da receita resultante de impostos, com exceção das transferências constitucionais que os
estados estão obrigados.
Outro aspecto considerado no relatório do exercício de 2018 diz respeito à contabilização como MDE
dos restos a pagar não processados. Foi ressaltado que os referidos restos a pagar apenas podem ser
computados, quando existir disponibilidade de caixa vinculada à educação suficiente para custeá-los.
Contudo, não foi esse o entendimento do Pleno do TCEMG por ocasião da emissão de parecer prévio
pela aprovação com ressalvas das contas de governo, no bojo do Processo n. 1066559, Balanço Geral
do Estado, que manteve, a partir dos precedentes relativos aos exercícios de 2015 a 2017, o cômputo
dos restos a pagar não processados para a apuração da aplicação com manutenção e desenvolvimento
do Ensino.

5.2 Prestação de contas de gestão da Secretaria de Estado de


Educação (SEE/MG)
O Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais procede à análise e ao julgamento das prestações de
contas das unidades jurisdicionadas da administração direta e indireta estadual. Ocorre que, conforme
previsto no artigo 3º da Instrução Normativa n. 14/2011, anualmente é feita a definição das unidades
jurisdicionadas que terão processos de contas anuais constituídos para fins de julgamento. No que diz
respeito às unidades que tiveram suas contas anuais do exercício de 2017 analisadas pelo Tribunal,
importante mencionar a existência da Decisão Normativa n. 1/2018, que trouxe, em seu artigo 2º,
inciso I, a Secretaria de Estado de Educação (SEE) como objeto de fiscalização.
No ano de 2017, a prestação de contas da SEE gerou o Processo n. 1040741, com decisão publicada
em 5/11/2019, tendo o TCEMG decidido pela regularidade das contas com ressalva, sob o aspecto
formal. A partir da análise do relatório técnico elaborado pelo TCEMG, é possível observar que o foco
do controle externo no âmbito da prestação de contas do exercício de 2017 da referida secretaria
recaiu sobre a conformidade dos aspectos contábeis.
Inicialmente, o exame técnico faz o comparativo, de modo geral, entre a receita autorizada e a despesa
realizada. Após isso, são analisados os projetos e as atividades colocados em prática pelo órgão, por
meio da verificação das metas estabelecidas e aquilo que foi efetivamente executado.
No que diz respeito às fontes dos recursos utilizados para custear as despesas do exercício de 2017,
constatou-se a utilização de recursos do Fundeb no valor de R$ 7.682.674.370,07. No entanto, o
Tribunal, na prestação de contas da secretaria, não analisa, separada e detalhadamente, a utilização
dos recursos do fundo. Ao final, o relatório técnico apontou falhas relacionadas com a administração
dos bens móveis da secretaria e possível terceirização de mão de obra. No julgamento, a Corte de

142 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 124-150 jul./dez. 2020


Contas reconheceu a existência de falhas na administração dos bens e, com relação à terceirização de
mão de obra, considerou pertinente incluir o fato na matriz de risco para fiscalizações futuras a serem
realizadas na secretaria, haja vista que a prestação de contas seria restrita aos aspectos contábeis.
Em cumprimento ao Plano Anual de Auditorias do Tribunal, a Diretoria de Controle Externo do
Estado realizou, em 2019/2020, fiscalização, na modalidade levantamento, com o objetivo de coletar
informações sobre o funcionamento e a gestão do Fundeb no âmbito do Estado de Minas Gerais.
O referido levantamento gerou Documento autuado sob o n. 6252511/2020, tendo como principal
encaminhamento o processo de Representação autuado sob o n. 1092377.

5.3. Auditoria de Conformidade sobre a retenção dos repasses do


Fundeb
O TCEMG realizou, em 2018, uma auditoria de conformidade cujo objetivo foi apurar a retenção ou o
atraso no repasse, pelo governo estadual, das parcelas de ICMS e IPVA, pertencentes aos municípios,
por força constitucional, mas cujo recolhimento é de competência do Estado, bem como investigar os
motivos dessa retenção ou atraso, apurar os seus valores, verificar a situação no momento da inspeção
e avaliar a real situação financeira do Estado.
A referida auditoria foi realizada em decorrência de representação protocolizada no TCEMG pela
Associação Mineira de Municípios (AMM), Processo n. 1.031.613, em face do Estado de Minas Gerais,
na qual acusa a falta ou o atraso no repasse das parcelas municipais de ICMS e de IPVA.
O período abrangido pela auditoria compreendeu o exercício de 2017 a março de 2018, posteriormente
estendendo-se a 22 de maio de 2018 (ICMS) e até 09 de maio de 2018 (IPVA).
A equipe de auditores do TCEMG constatou que o Estado de Minas Gerais, no período auditado, reteve
e repassou com atraso parcelas de IPVA e ICMS, pertencentes aos municípios. Em abril de 2018 foi
observado que o Estado não mais devia os repasses referentes ao principal de ICMS atrasado, mas
somente valores a pagar de atualização monetária e juros de mora. Já em relação ao IPVA, o saldo
devedor era composto de principal, atualização e juros, e a quitação estava sendo feita inicialmente
aos municípios com menores valores a receber. Em maio de 2018, conforme informações da SEF/
MG, foi constatada a quitação do principal de IPVA. Restava, portanto, no referido mês, saldo (não
repassado) de atualização e juros de IPVA, como no caso do ICMS.
Considerando a operacionalização dos repasses, constatou-se que o banco centralizador da
arrecadação tributária estadual, Banco do Brasil, recebe arquivos com os valores a repassar, elaborados
pela SEF, não possuindo sistema automatizado para realizar as transferências aos Municípios. A partir
de 20/09/2016 ocorreu a transferência do poder decisório do processo de repasse dos referidos
recursos, da Superintendência Central de Administração Financeira – SCAF, área técnica da SEF,
para o Secretário de Estado de Fazenda. E, após 27/11/2017, o processo de autorização para fins
de sua operacionalização extrapolou o âmbito da SEF, ficando submetido ao crivo do Comitê de
Acompanhamento do Fluxo Financeiro, criado pelo Decreto Estadual n. 47.296/2017.
A argumentação de que os atrasos ou não repasses ocorreram em função de crise econômica
e financeira não foi aceita pela equipe de auditoria por não possuir o devido amparo legal, não
justificando as retenções, conforme exposto e detalhado no relatório da referida auditoria.

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A Constituição da República prevê no art. 60, inciso II do ADCT, os recursos que farão parte da formação
do Fundeb, incluindo-se em sua composição 20% da arrecadação do ICMS e do IPVA, conforme
também exposto no art. 3º, incisos II e III da Lei n. 11.494/2007.
Ainda de acordo com os artigos 16 e 17 da lei supracitada, verifica-se que os valores que compõem o
fundo devem ser repassados automaticamente para a conta mantida pela instituição financeira, Banco
do Brasil S.A. ou Caixa Econômica Federal, que ficará responsável por distribuir os valores devidos aos
estados, ao Distrito Federal e aos municípios.
A partir do relatório de auditoria anteriormente mencionado, observa-se que o Banco do Brasil não
estava realizando automaticamente a transferência dos recursos aos municípios, dependendo a
liberação de autorização emitida pelo Comitê de Acompanhamento do Fluxo Financeiro, criado pelo
Decreto Estadual n. 47.296/2017.
A demanda relativa ao não repasse dos valores referentes ao ICMS e IPVA para o Fundeb chegou ao
Poder Judiciário, tendo o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais se manifestado do seguinte
modo:
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO - OBRIGAÇÃO DE FAZER - IPVA - REPASSE DE
VALORES AOS MUNICÍPIOS PELO ESTADO - FUNDEB - RETENÇÃO INDEVIDA. - Comprovado
o atraso no repasse de verbas ao FUNDEB pelo Estado de Minas Gerais ao ente municipal
e, considerando que esses recursos são destinados a assegurar o desenvolvimento da
educação, deve o ente estadual ser compelido a regularizar o pagamento dos repasses
do FUNDEB, nos prazos previstos no art. 17, §7º, da Lei 11.494/2007 c/c art. 69, §5º, da Lei
9.394/96. (TJMG - Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.18.098299-3/001, Relator(a): Des.(a)
Elias Camilo , 3ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 14/03/0019, publicação da súmula em
15/03/2019)
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO - REPARTIÇÃO CONSTITUCIONAL DE RECEITAS
TRIBUTÁRIAS - FUNDEB - RETENÇÃO, PELO ESTADO, DA COTA RESPECTIVA - TUTELA
DE URGÊNCIA - REQUISITOS - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. O Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais
da Educação - FUNDEB é financiado pelos valores que pertencem aos Municípios
relativos ao recolhimento de IPVA e ICMS pelo Estado, sendo vedada a retenção ou
qualquer restrição à entrega de tais recursos, ressalvadas excepcionais hipóteses
constitucionalmente previstas. 2. A retenção dos repasses, na medida em que deixa de
entregar ao Município e ao FUNDEB a sua participação nas receitas arrecadadas dentro do
prazo legal, injustificadamente, viola o pacto federativo, comprometendo a autonomia
financeira do Município e a prestação da educação básica aos munícipes, serviço público
de inigualável importância; situação que autoriza a concessão da tutela de urgência para
determinar a regularização das obrigações vincendas. (TJMG - Agravo de Instrumento-
Cv 1.0000.18.132166-2/001, Relator(a): Des.(a) Edilson Olímpio Fernandes , 6ª CÂMARA
CÍVEL, julgamento em 02/04/2019, publicação da súmula em 10/04/2019 - grifei)
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER COM PEDIDO DE
TUTELA ANTECIPADA - FUNDEB - REPASSE DE VALORES DO IPVA E ICMS AOS MUNICÍPIOS
PELO ESTADO - RETENÇÃO INDEVIDA - DECISÃO MANTIDA. -Demonstrado o atraso na
transferência dos valores retidos a título de ICMS e IPVA para o FUNDEB pelo Estado de
Minas Gerais, impõe-se a manutenção da decisão que determinou ao agravante proceder
ao ente municipal os repasses dos referidos valores, no prazo estipulado nos art. 69, §
5° da lei n° 9.394/1996. (TJMG - Agravo de Instrumento-Cv Nº 1.0000.19.033615-6/001,
Relator(a): Desa. Yeda Athias, julgamento em 16/07/2019, publicação em 24/07/2019)

Diante do exposto, observa-se a irregularidade envolvida no atraso do repasse dos recursos que
compõem o Fundeb, prática essa não amparada pela legislação pátria. Além disso, a referida situação
chama a atenção para atuação dos tribunais de contas, tendo em vista a sua competência para

144 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 124-150 jul./dez. 2020


fiscalizar os recursos do Fundeb (art. 26, inciso II e art. 27 da Lei n. 11.494/2007). No âmbito do TCEMG
ainda não há um pronunciamento definitivo a respeito do atraso ou não repasse de valores ao Fundeb
pelo Estado, estando o processo nº 1.031.613 em tramitação.
O atraso no repasse dos recursos do Fundeb pelo Estado de Minas Gerais trouxe reflexos para os
municípios no que diz respeito à captação de recursos para conseguir arcar com as despesas na área
de educação. Muitos municípios tiveram que utilizar recursos de fonte própria para pagar as despesas
empenhadas com os recursos do Fundeb.
O Tribunal apreciou essa situação, por meio da Consulta n. 104771011, e optou, na ocasião, por
flexibilizar a contabilização das verbas do Fundeb, permitindo que o valor recebido das parcelas em
atraso fosse destinado para a conta de origem dos recursos de outras fontes utilizadas para o custeio
das despesas que deveriam ter sido custeadas pelo Fundeb, por se tratar de uma situação atípica,
proveniente de um cenário econômico/financeiro não devidamente equilibrado.

6 O SUPORTE AO CONTROLE INTERNO E SOCIAL


Além do controle repressivo sobre os fundos educacionais exercido por meio dos instrumentos de
fiscalização relatados ao longo deste artigo, o TCEMG também exerce importante função no controle
preventivo e pedagógico, além do suporte ao controle interno e social, sobretudo após 2017, ano em
que o Tribunal, por meio do programa “Na Ponta do Lápis”, intensificou ações fiscalizatórias e iniciou
um processo de aproximação dos jurisdicionados e cidadãos à Corte de Contas na área de educação.
Especificamente quanto aos recursos do Fundeb, a Escola de Contas tem promovido capacitações
contínuas para os conselheiros ligados à área da educação, como, por exemplo, os conselheiros que
atuam no Consfundeb, de modo a que o controle social tenha informação e capacidade para exercer
sua relevante função12.
Igualmente se observa o incentivo ao fortalecimento do controle interno dos municípios. Desde a
edição da Instrução Normativa TCEMG n. 4 de 14/12/2016, o relatório do órgão do controle interno
passou a integrar as prestações de contas do chefe do Executivo municipal. Assim, o controlador
interno passou a ter que se pronunciar sobre a regularidade ou não dos atos de governo, inclusive
aqueles que dizem respeito os recursos voltados à manutenção e desenvolvimento do ensino.
Conforme o disposto no art. 26 da Lei n. 11.494/2007, os controles internos são partícipes da rede
fiscalizatória e colaborativa que deve se formar para o acompanhamento dos recursos do fundo. Essas
ações de fortalecimento dos controles interno e social e o entrosamento dos órgãos fiscalizadores são

CONSULTA. MUNICÍPIO. RECURSO DO FUNDEB EM ATRASO PELO ESTADO DE MINAS GERAIS. EXCEPCIONALIDADE DA SITUAÇÃO.1.
11

Diante da excepcional situação vivida pelo Estado de Minas Gerais, é possível que o Município, desde que esteja devidamente
justificado, transfira as verbas do FUNDEB recebidas em atraso do Estado de Minas Gerais para a conta de origem dos recursos de
outras fontes que foram desprovidas para pagamento de despesas que deveriam ter sido geridas com os recursos do FUNDEB,
vedada a utilização de recursos vinculados a convênios. 2. A reposição dos recursos do FUNDEB para as contas de origem do
município que foram desprovidas deve ocorrer no exercício financeiro em que ocorrer a transferência dos recursos em atraso pelo
Estado de Minas Gerais. (TCEMG, Consulta n. 1047710, Relator: Conselheiro Mauri Torres, publicação 19/12/2018).
A Escola de Contas e Capacitação Professor Pedro Aleixo realiza anualmente o Encontro Mineiro de Conselheiros de Educação,
12

evento no qual são debatidos temas relevantes para atuação do controle social na educação como: financiamento, prestação de
contas, monitoramento dos planos de educação, entre outros. O objetivo principal é contribuir para a formação de membros dos
conselhos de educação, fortalecendo-os na perspectiva de consolidar a gestão democrática da educação. A esses agentes também
são ofertadas palestras de capacitação, desde 2017, dentro dos Encontros Técnicos realizados pela Escola de Contas nos municípios
do interior de Minas Gerais

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 124-150 jul./dez. 2020 145


de extrema importância para a eficácia na fiscalização dos recursos do Fundeb, como bem lembrado
por MARTINS (2009) no estudo intitulado “O controle social na fiscalização da aplicação dos recursos
do FUNDEB”:
Para uma maior eficácia da fiscalização é importante um bom entrosamento dos diversos
controles, não só no sentido de uniformização dos procedimentos, mas também na troca
de informações, constituindo uma verdadeira rede de fiscalização, que conte inclusive
com órgãos que não participem da função de controle, mas que podem ter informações
valiosas, como é o caso das juntas comerciais, dada a alta incidência de notas fiscais
frias e “empresas fantasmas” como destacou o relatório da citada subcomissão de análise
das irregularidades do Fundef, que funcionou na Câmara entre 2000 e 2001. Afinal, o
estabelecimento de uma fiscalização em rede constitui o reconhecimento de que o
regime de colaboração também alcança a esfera do controle.
A própria legislação procura induzir o entrosamento. Dessa forma:
- Art. 74, caput, da Constituição Federal determina que os poderes mantenham de forma
integrada sistemas de controle interno, que ao tomarem conhecimento de qualquer
irregularidade dela darão ciência ao TCU e respectivos Tribunais de Contas, sob pena de
responsabilidade solidária;
- A Lei n. 8.942/92, Lei de Improbidade Administrativa, prevê que em caso de representação
do cidadão a autoridade administrativa para a instrução de investigação destinada a
apurar ato de improbidade, a comissão processante designada para apurar o fato deve
dar conhecimento de sua instauração ao Ministério Público e ao Tribunal de Contas que
poderão designar representantes para acompanhar o processo administrativo (art. 15,
caput e parágrafo único);
- A Lei do Fundeb admite expressamente a possibilidade de litisconsórcio facultativo
entre o Ministério Público dos Estados e da União - o que permite a ação conjunta para
fiscalizar os recursos da educação (art. 29, § 2º da Lei n. 11.494/07).

Aliás, a intercomunicação entre instituições de controle e a atuação integrada dos órgãos constituem
modalidade moderna de controle, juntamente com o termo de ajustamento de gestão, as auditorias
operacionais e as audiências públicas, que auxiliam o gestor na retomada de rumos da política pública,
de modo a torná-la mais efetiva à população.

7 CONCLUSÃO E PROPOSIÇÕES PARA O APRIMORAMENTO DO


CONTROLE
Desde o surgimento dos fundos educacionais em 1996, com a criação do FUNDEF, o TCEMG vem
fiscalizando e controlando a aplicação dos recursos públicos que representam parcela importante
dos orçamentos municipais e estadual, sobretudo por meio das prestações de contas do chefe do
Executivo e das inspeções ordinárias.
Dada a importância que a política pública de educação representa para o Estado de Minas, não só em
valores financeiros, mas sobretudo pela capacidade de transformação da realidade social por meio do
desenvolvimento humano que o processo educacional representa, entende-se que os mecanismos de
controle do Fundeb precisam estar em constante atualização e evolução.
Pensar sobre as melhorias dos processos de controle tornou-se crucial após a aprovação da Emenda
Constitucional n. 108/2020, que tornou o Fundeb uma política pública permanente de financiamento
da educação (não mais adstrita aos atos de disposições constitucionais transitórias) e com previsão de
mais recursos, com a elevação da contribuição da União de 10% a 23% até 2026, diretamente às redes
de ensino mais carentes, o que certamente contemplará municípios mineiros.

146 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 124-150 jul./dez. 2020


Há muito o que se avançar na fiscalização realizada pelo Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais
sobre os recursos do Fundeb, a começar pela padronização de diretrizes internamente a respeito
das despesas de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino. A presente pesquisa observou algumas
diferenças internas na fiscalização desses recursos a depender de seu âmbito (municipal ou estadual),
em função de diferentes entendimentos adotados pelas diretorias competentes. Como por exemplo,
no âmbito municipal, o valor da receita de impostos que é retido e direcionado ao fundo (20%, segundo
a Lei n. 11.494/2007) é considerado automaticamente como “valor aplicado” na educação e compõe
o percentual mínimo de 25% (art. 212, CR/88). Já no âmbito estadual, para calcular o percentual do
ensino, a unidade técnica responsável considera também a chamada “perda com o Fundeb” como
montante dos gastos com MDE. A “perda com o Fundeb” é representada pela diferença entre o valor
que é repassado e recebido do fundo, ocasião em que o ente federado recebe uma quantia menor do
que aquela que repassou.
A forma utilizada para fiscalização estadual está em consonância com orientação do Manual de
Demonstrativos Fiscais aplicado à União, estados, Distrito Federal e municípios elaborado pela
Secretaria do Tesouro Nacional, conforme análise feita pelo grupo de pesquisa, fundamentada nos
relatórios sobre a macrogestão e as contas do governo elaborados pela unidade técnica do TCEMG
referentes aos exercícios de 2012, 2017 e 2018, ocasiões em que foi feita a utilização, respectivamente,
da 4ª, 7ª e 8ª edições do referido manual.
A 9ª edição do manual, válido a partir do exercício financeiro de 2019, traz em seu conteúdo o
Demonstrativo das Receitas e Despesas com MDE para a análise de sua aplicação. A referida orientação
contábil preconiza que, para apuração do cálculo de aplicação na manutenção e desenvolvimento
do ensino sobre a receita líquida de impostos são consideradas as despesas da educação infantil e
do ensino fundamental, conforme art. 70 da Lei n. 9.394/1996, custeadas com a receita de impostos
e recursos do Fundeb, o valor repassado ao município, deduzidos: (i) o resultado líquido das
transferências do Fundeb, ou seja, as receitas recebidas do Fundeb deduzidas as receitas retidas
destinadas para a formação do fundo (se o valor que foi retido para o fundo for maior do que o valor
que retorna ao município este montante será somado às despesas e se o valor for menor ele será
deduzido); (ii) as despesas custeadas com a complementação do Fundeb no exercício; (iii) as despesas
custeadas com o superávit financeiro do exercício anterior do Fundeb; (iv) as despesas custeadas
com o superávit financeiro do exercício anterior de outros recursos de impostos; (v) os restos a pagar
inscritos no exercício sem disponibilidade financeira de recursos de impostos vinculados ao ensino; (vi)
o cancelamento, no exercício, de restos a pagar inscritos com disponibilidade financeira de recursos
de impostos vinculados ao ensino. Do valor líquido apurado é calculado o percentual de aplicação
sobre a receita corrente líquida.
No âmbito municipal, o cálculo das despesas com educação não segue as orientações do referido
Manual de Demonstrativo Fiscal. As despesas da educação infantil e do ensino fundamental, conforme
art. 70 da Lei n. 9.394/1996, custeadas com a receita de impostos municipais, são somadas às receitas
retidas para formação do fundo e aos restos a pagar inscritos no exercício com disponibilidade
financeira. Do valor apurado é calculado o percentual de aplicação sobre a receita corrente líquida.
A divergência de entendimentos já foi observada internamente, havendo uma proposição da Diretoria
de Controle Externo dos Municípios para que a análise das despesas com MDE na apreciação das
contas municipais a partir de exercício de 2020, seja feita nos termos das orientações constantes do

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 124-150 jul./dez. 2020 147


Manual de Demonstrativos Fiscais, o que o grupo de pesquisa corrobora e registra como sua primeira
proposição.
Percebeu-se também uma discreta evolução ao longo do tempo no controle exercido pelo TCEMG no
que diz respeito à análise das contas do governo do Estado. Aspectos que antes não eram apontados
como irregularidades passaram a ser evidenciados nos relatórios, como seria o caso, por exemplo,
da discussão a respeito da exclusão dos recursos do Fundo de Combate à Pobreza do cálculo da
composição do Fundeb. Contudo, o controle não foi suficiente para detectar de forma concomitante
os atrasos e retenções do ICMS (que compõem grande parte dos recursos do Fundeb) que ocorreram
entre o final do ano de 2017 e o início de 2019 no âmbito do Estado de Minas Gerais.
Portanto, a segunda proposição diz respeito ao controle financeiro do fundo, tanto no âmbito estadual
quanto no municipal. Conforme dispõe o art. 17 da Lei n. 11.494/2007, os recursos do fundo devem
ser movimentados em contas bancárias específicas, com a identificação da origem e do destino dos
lançamentos. As contas específicas podem ser abertas no Banco do Brasil (BB) ou Caixa Econômica
Federal (CEF). Contudo, atualmente, o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais não possui acesso
direto aos extratos das movimentações bancárias, o que dificulta, e até torna precária, a fiscalização
sobre esses recursos. Por isso, propõe-se que o TCEMG firme convênio nesse sentido com as instituições
financeiras competentes para que possa ter acesso direto aos extratos das movimentações bancárias.
A disponibilização desses documentos permitiria que as contas fossem auditadas, se necessário, com
a circularização adequada das informações obtidas pelo Tribunal durante a sua atuação, permitindo,
assim, a realização de um controle mais efetivo pelo órgão.
Inclusive, em questionário encaminhado pelo grupo de pesquisa com o objetivo de adquirir
informações acerca do controle externo exercido no Fundeb por outros tribunais de contas brasileiros,
foi informado que os seguintes tribunais já realizam o controle da conta bancária do fundo: TCU, TCEPI,
TCEPB, TCEAP e TCEAC.
Como terceira proposição, a auditoria financeira de dados que vai ao encontro da conclusão do
levantamento realizado pelo TCEMG (Representação n. 1.092.377).
No âmbito municipal, como quarta proposição, observa-se que o Sicom disponibiliza muitas
informações e dados orçamentários e financeiros relevantes que não são utilizados pelo Tribunal
em ações fiscalizatórias efetivas, sejam elas preventivas ou repressivas. Como exemplo, utilizando-
se de recursos da tecnologia da informação, seria interessante a criação de mecanismos de “alertas
mensais eletrônicos” aos conselheiros municipais, prefeitos e controladores internos relativos ao
descumprimento da composição da despesa do Fundeb e contabilização dos recursos do fundo em
elementos de despesa e fontes de recursos diversas das fontes 118 (transferências do Fundeb para
aplicação na remuneração dos profissionais do magistério em efetivo exercício na educação básica) e
119 (transferências do Fundeb em outras despesas da educação básica). Seria uma forma de fortalecer
e municiar os outros dois controles (social e interno) de informação concomitantemente aos fatos, o
que permitiria uma eventual intervenção em tempo hábil. O exercício em rede das ações de controle
resultaria em maior celeridade no diagnóstico de eventuais irregularidades na utilização dos recursos
do fundo e o redirecionamento da gestão.

148 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 124-150 jul./dez. 2020


Quanto aos conselhos do Fundeb, tem-se observado que a norma não está sendo cumprida a contento,
tanto por parte dos gestores quanto por parte dos conselheiros, que, por vezes, até desconhecem essa
prerrogativa. Por isso, se apresenta, como quinta proposição, que o TCEMG, por meio de instrução
normativa, reforce a obrigatoriedade da disponibilização de demonstrativos da movimentação
financeira do fundo, da formação e distribuição de recursos, resumo das receitas e despesas e folha
de pagamento. Esses demonstrativos poderiam passar a integrar o parecer circunstanciado do fundo
que compõe as prestações de contas anuais, conforme determina o art. 13, §2º da IN n. 13/2008, com
redação dada pelo art. 3º, §2º da IN n. 05/2012.
Ainda, como sexta proposição, o grupo responsável pela pesquisa considera imprescindível a análise
dos recursos destinados ao Fundeb e sua aplicação nas prestações de contas de governo, com base
nas informações enviadas via Sicom pelo próprio gestor. Na referida base de dados é possível verificar
os recursos retidos para a composição do fundo, os recursos recebidos e sua aplicação. O parecer
circunstanciado do Fundeb deveria compor esse exame, e o relatório do órgão do controle interno
deveria abordar a execução orçamentária e financeira do fundo. Diante de irregularidades na gestão
dos recursos do fundo, os gestores responsáveis, ordenadores de despesa, prefeito municipal ou
secretário de educação, responderiam por meio de procedimento específico de prestação de contas,
pois configuram-se atos de gestão nos termos dos art. 49, inc. IX e art. 71, inc. II da CR/88.
Como sétima proposição, dada a importância do incentivo ao controle social e ao controle interno,
revela-se imprescindível que a Escola de Contas continue promovendo cursos de capacitação contínua
direcionados aos conselheiros do Fundeb e controladores internos com as seguintes propostas.
PROPOSTAS
1 Uniformização de entendimentos entre as diretorias internas do TCEMG
2 Convênios com instituição financeira para acesso aos extratos bancários diretamente
3 Auditoria financeira
4 Alertas mensais eletrônicos
Demonstrativos e relatórios gerenciais sobre o recebimento e emprego dos recursos do
5
fundo ao conselho
6 Análise dos recursos do Fundeb nas prestações de contas de governo
7 Manutenção da capacitação contínua pela Escola de Contas

Por fim, vale lembrar que esse conjunto de proposições deve ser lido conjuntamente com as
conclusões do levantamento que deu origem à Representação n. 1092377 (item 5.2). Espera-se que
tanto a pesquisa desenvolvida no âmbito da Escola de Contas e Capacitação Professor Pedro Aleixo
do TCEMG como o trabalho de levantamento realizado pela Diretoria de Controle Externo do Estado
possam servir de diagnóstico e direcionamento de rumos para a fiscalização empreendida pelo
Tribunal sobre os recursos do Fundeb, sobretudo com o reconhecimento da importância do fundo
no cenário de financiamento da educação pública básica no Brasil ratificado pela promulgação da
Emenda Constitucional n. 108/2020, que reclama a devida e crescente atuação dos órgãos de controle.

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 124-150 jul./dez. 2020 149


REFERÊNCIAS
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agenda para o país. Maria Helena Guimarães de Castro; CALLAU, Raphael (Coordenadores)
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no Brasil. Acórdão n. 1.656/2019, relator ministro Walton Alencar Rodrigues, plenário, sessão
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150 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 124-150 jul./dez. 2020


PARECERES
E DECISÕES
CONSULTA N. 1.072.572

CRÉDITO: ARQUIVO TCEMG


RELATOR: CONSELHEIRO WANDERLEY ÁVILA

INEXIGÊNCIA DE LEI ESPECÍFICA PARA A


CONSECUÇÃO DOS INSTRUMENTOS LEGAIS DE
PARCERIAS PREVISTOS NA LEI N. 13.019/2014

CONSULTA. ENTIDADE ASSOCIATIVA DE MUNICÍPIO. TERCEIRO SETOR. MARCO REGULATÓRIO DAS


ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL. EXIGÊNCIA DE LEI ESPECÍFICA. FALTA DE NECESSARIEDADE.
INSTRUÇÃO NORMATIVA DO TCEMG. AFASTADA.
1 A Lei n. 13.019/2014 estabelece o regime jurídico de parcerias entre a administração pública e as
organizações da sociedade civil (OSC), envolvendo ou não transferências de recursos financeiros, em
regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, além de
definir diretrizes para a política de fomento, de colaboração e de cooperação.
2 Não é necessário que a administração pública, no intuito de firmar termo de colaboração, termo de
fomento ou acordo de cooperação, submeta o projeto à apreciação legislativa para garantir sua validade,
sendo, porém, indispensável a previsão ou a indicação da disponibilidade orçamentária como condição
para realização da parceria, e sem prejuízo de previsão na Lei Orçamentária Anual, tendo em vista o
disposto no art. 167, inciso I, da Constituição da República.
3 O termo de colaboração, o termo de fomento e o acordo de cooperação, introduzidos pela Lei
n. 13.019/2014, são figuras que não se assemelham às subvenções e auxílios aos quais a IN 8/2003 faz
referência. Nesse sentido, entendo por afastar a aplicação do art. 4º da IN 8/2003 às parcerias públicas
sociais, uma vez que tal artigo traz exigência que contraria as disposições daquela lei.

I RELATÓRIO
Trata-se de consulta eletrônica, submetida a este Tribunal em 20/8/2019 pelo Sr. José Antônio do
Nascimento, prefeito de Tiradentes e presidente da Associação dos Municípios da Microrregião dos
Campos das Vertentes, no período de 15/1/2019 a 15/1/2020.
O consulente realizou a seguinte indagação, literalmente. “Com a entrada em vigor da Lei 13.019/2014,
ainda há necessidade de lei especifica para repasse de recursos às Organizações da Sociedade Civil no
desenvolvimento de parcerias com o Poder Público, conforme o disposto no art. 4º da IN 8/2003?”
Preenchendo o campo opcional destinado à fundamentação da pergunta, o consultando acrescentou
o seguinte. “Tal assunto foi abordado na Consulta n. 952.073, entretanto, não foi respondida por este
Tribunal uma vez que à época não estava em vigor a Lei 13.019/14.”
Observando o cumprimento dos pressupostos previstos no art. 210-B, §1°, I a IV, da Resolução
n. 12/2008 – Regimento Interno do Tribunal de Contas (RITCEMG) –, encaminhei os autos à
Coordenadoria de Sistematização de Deliberações e Jurisprudência que, em seu estudo, constatou
que a matéria ainda não foi enfrentada nos exatos termos suscitados pelo consulente.

152 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 152-163 jul./dez. 2020


Após a manifestação da unidade técnica, vieram conclusos os autos.
É o relatório, no essencial.

II FUNDAMENTAÇÃO
1 Admissibilidade
Em juízo de admissibilidade, compreendo que foram observados os pressupostos previstos no art.
210-B, §1°, I a V, do Regimento Interno desta Corte de Contas. Observo, ainda, que o consulente, a teor
do disposto no art. 210, X, do diploma regimental, é parte legítima, e a matéria versada foi formulada
em tese, e é da alçada deste Tribunal.
Assim sendo, conheço da presente consulta, para respondê-la em tese.

2 Mérito
Indaga o consulente se há necessidade, no âmbito da Lei n. 13.019/2014, de edição de lei específica
para que se promova o repasse de recursos para as organizações da sociedade civil (OSC) quando da
formalização da parceria.
Releva destacar que este Tribunal ainda não se manifestou, em parecer conclusivo, sobre o
questionamento em tela. A discussão, in casu, sobre a necessidade de edição de lei específica para
a efetivação de parceria pública social foi levantada na Consulta n. 951.417, recebida por esta Casa
em 26/3/2015, da qual fui relator. No entanto, a mencionada consulta não teve seu mérito julgado,
uma vez que, na época, a Lei n. 13.019/2014 ainda não havia entrado em vigor e já naquele tempo
foi objeto de fundamentais e significativas alterações legislativas, o que não só impactaria a essência
da própria indagação do consulente, como também comprometeria qualquer decisão definitiva a ser
pronunciada por esta Corte de Contas.
Ao fim, não tendo sido conhecida a dita consulta, ainda está em aberto o pronunciamento do
TCEMG a respeito da obrigatoriedade de edição de lei específica para consecução de parceria entre a
administração pública e as OSC, à luz da Lei n. 13.019/2014.
Ressalto, além disso, que o consulente esclarece que já havia, em outra oportunidade, apresentado
esse mesmo questionamento a esta Corte de Contas (Consulta n. 952.073), mas que na época a Lei n.
13.019/2014 também ainda não estava em vigor, não tendo sido a questão apreciada pela Casa. Em
consulta ao Sistema de Gestão e Administração de Processos (SGAP), verifiquei que aquela consulta,
de relatoria da conselheira Adriene Andrade, chegou a ser pautada e admitida pelo Pleno, mas foi
retirada de pauta em 18/5/2016.
Neste caso, mostra-se oportuno, de início, fazer uma retomada sistemática a respeito da Lei n.
13.019/2014, elucidando o contexto de edição da norma, aclarando seu objeto, recortando seus
instrumentos e explanando os propósitos do delineado legislativo proposto. Posteriormente, de
forma a especificar a questão central tratada nessa Consulta, responder-se-á: seria necessária a edição
de lei específica para que se promovam parcerias com OSCs?

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2.1 Terceiro setor e a Lei n. 13.019/2014
O terceiro setor é um importante elemento para a consecução de objetivos sociais pelo Estado.
Composto por entidades privadas sem fins lucrativos, o terceiro setor, em suas diversas formas, atua
em atividades próximas daquelas desempenhadas pelo Estado sem, contudo, integrar a estrutura da
administração pública.
A atuação do terceiro setor surge da insuficiência da atuação do Estado no desempenho dos serviços
públicos indispensáveis para concretização dos direitos sociais, especialmente nas áreas de saúde,
educação, assistência social, etc. Se por um lado o Estado é titular do serviço público e a iniciativa
privada está voltada para atividade econômica lucrativa, o terceiro setor é resultado da organização
da sociedade civil com o intuito de prestar serviço público não integrante das atividades privativas da
administração pública, desprovido do propósito de lucro.
No âmbito social, diversas são as entidades privadas que desenvolvem métodos alternativos e de
eficiência para suprir e colaborar para o desenvolvimento social do país. É certo ainda, quanto às
parcerias sociais, ser dever do Estado reconhecer e apoiar as entidades privadas de solidariedade
social ou de fins públicos, como expressamente acentuam os artigos 199, §1º; 204, I; 205; 213; 215
e 227, §1º, todos da Constituição da República. Assim, o relacionamento entre o poder público e o
terceiro setor deve ser vislumbrado com proeminência, em seus diferentes contornos – sendo umas
dessas formas, a parceria pública social.
O termo “parceria”possui acepção ampla, sendo um conceito jurídico funcional: a tônica é a prossecução
de um valor comum aos parceiros, e, não, o atendimento de um interesse exclusivo de uma das partes.
Para Maria Sylvia Di Pietro (2015, p. 22), em sua obra ”Parcerias na Administração Pública: concessão,
permissão, franquia, terceirização, Parceria Público-Privada e outras formas”, o “vocábulo parceria é
utilizado para designar todas as formas de sociedade que, sem formar uma nova pessoa jurídica, são
organizadas entre os setores público e privado, para a consecução de fins de interesse público”.
Vale ressaltar que as parcerias se têm destacado como um instrumento de desenvolvimento e
contribuição para a execução dos deveres públicos de forma associada, já que aliam a inovação e a
especialização do setor privado às necessidades plurais da sociedade quanto à atuação administrativa.
A Lei n. 13.019/2014, conhecida como novo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil
(Mrosc), estabelece o regime jurídico de parcerias entre a Administração Pública e as OSC, envolvendo
ou não transferências de recursos financeiros, em regime de mútua cooperação, para a consecução de
finalidades de interesse público e recíproco, além de definir diretrizes para a política de fomento, de
colaboração e de cooperação.
A própria lei traz o conceito de parceria, em seu artigo 2º, inciso III, in verbis.
Art. 2º
[...]
III- parceria: conjunto de direitos, responsabilidades e obrigações decorrentes de relação
jurídica estabelecida formalmente entre a administração pública e organizações da
sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de
interesse público e recíproco, mediante a execução de atividade ou de projeto expressos
em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação [...].

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Reconhecendo a especificidade das entidades privadas sem fins lucrativos, a Lei n. 13.019/2014
estabelece, em seus artigos 5º e 6º, um conjunto de princípios e diretrizes para as parcerias realizadas
entre o Poder Público e as organizações não governamentais.
O professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Paulo Modesto, em reflexão sobre as parcerias
públicas sociais (PPS), explicita de forma pontual e tangível:
O fomento social no Brasil ainda se ressente de uma cultura autoritária, segundo a qual o
Poder Público sempre se apresenta como o intérprete preferencial do interesse coletivo,
a voz determinante de todos os termos essenciais do vínculo, cabendo aos particulares
que com ele se relacionem a simples obediência, mesmo em face de parceria sem fins
econômicos. Porém, parceria é conceito que não rima bem com subordinação e arbítrio,
indeterminação e insegurança, porquanto pressupõe uma cultura de colaboração e
reciprocidade, definição equilibrada de deveres complementares entre os partícipes,
raiz profunda para autênticas formas de colaboração.

Fruto de um processo de reconhecimento e valorização da sociedade civil organizada, o Mrosc


consolida a relevância dos atores sem fins lucrativos que atuam com objetivos voltados à promoção
de atividades de relevância pública e social. A norma geral buscou fortalecer a relação entre a
administração e as organizações da sociedade civil, prevendo mais segurança jurídica ao trabalho
realizado pelas organizações e mais transparência na destinação dos recursos públicos.
A referida lei traz, em seu art. 2º, inciso I, a listagem de entidades que se podem qualificar como
organização da sociedade civil. Destaca-se que nem toda parceria é regida pela Lei n. 13.019/2014,
estando excluídos do âmbito de incidência os casos descritos no art. 3º, que foram anteriormente
normatizados em legislações específicas, já que essas trouxeram requisitos especiais para tais parcerias.
Assim, no que se refere ao vínculo jurídico de cada uma das organizações do terceiro setor com a
administração pública, há de se recordar que, com as organizações sociais (OS) são celebrados os
contratos de gestão (Lei n. 9.637/1998); com as organizações da sociedade civil de interesse público
(Oscips) celebram-se termos de parceria (Lei n. 9.790/1999) e, agora, poderão ser firmados com as
organizações da sociedade civil (OSCs) três tipos de ajuste: o termo de colaboração, o termo de
fomento e o acordo de cooperação (Lei n. 13.019/2014).
Cada um desses três tipos de ajustes será utilizado a depender das características da parceria firmada:
sempre que envolver transferência de recursos, utilizar-se-á ou o termo de colaboração, quando a
iniciativa ocorrer por parte da administração ou o termo de fomento, se a disposição vier da sociedade
civil; e eleger-se-á o acordo de cooperação quando não envolver a transferência de recursos financeiros,
independentemente de quem seja a iniciativa.
Em todas as modalidades trazidas pela Lei n. 13.019/2014, observa-se cooperação mútua entre os
parceiros, buscando a consecução de finalidades de interesse público. Ainda, é válido frisar que,
segundo abalizada doutrina, poderão ser firmadas sem prejuízo dos contratos de gestão e dos termos
de parceria celebrados, respectivamente, com OS e Oscips.
Vislumbram-se, destarte, com a edição do Mrosc, pretensões de ampliar liberdade de organização,
afastar ingerências e garantir poderio decisório aos particulares, uma vez que se engajem em parceria
pública social nos moldes da nova legislação. Em um cenário de maior paridade entre os entes

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públicos e privados na consecução de objetivos comuns de interesse público, instituiu-se um modelo
de parceria direcionado à formação de laços de mútua cooperação com o terceiro setor.
É a partir dessa lógica gerencial que se deve lançar mão da interpretação jurídica para compreender
as disposições legais a respeito dessa nova sistemática de parcerias entre a administração pública e as
organizações da sociedade civil. Desse modo, faz-se necessário situar a norma no conjunto do sistema
jurídico, indagando acerca das condições de meio e de momento da elaboração da norma jurídica,
bem como de causas pretéritas da solução dada pelo legislador, tendo em mente o fim que a norma
jurídica tenciona servir ou tutelar.
O artigo 84-C da citada lei enumera os objetivos que deverão ser priorizados ao se formar as parcerias
públicas sociais, como a promoção da assistência social, da cultura, da educação, da saúde, da
conservação do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável.
No intuito de evitar atos de corrupção e garantir condições operacionais para um trabalho eficiente,
o Marco Regulatório exige o chamamento público para escolher, sob a simplificação típica do pregão,
a organização mais vantajosa às necessidades da população; podendo, porém, não ocorrer, nas
situações previstas no artigo 30 da referida Lei.
Importante ressaltar que a Lei n. 13.019/2014 exige, para a celebração e a formalização do termo
de colaboração e do termo de fomento, além do chamamento público, a adoção das seguintes
providências a serem tomadas pela administração pública, conforme art. 35:
• indicação da prévia dotação orçamentária;
• demonstração de que os objetivos e finalidades institucionais e a capacidade técnica e operacional
da organização da sociedade civil foram avaliados e são compatíveis com o objeto;
• aprovação do plano de trabalho;
• emissão de parecer de órgão técnico da administração pública sobre o mérito da proposta e outros
aspectos técnicos relacionados com a execução do plano de trabalho (exemplos: viabilidade da
execução, meios de execução, cronograma etc.);
• emissão de parecer do órgão de assessoria jurídica da administração pública acerca da possibilidade
jurídica de celebração da parceria, observados os requisitos expostos naquele preceito legal.
Ora, de pronto verifica-se não haver qualquer previsão na redação da Lei n. 13.019/2014 sobre a
necessidade de edição de lei específica para que se realizem as parcerias públicas sociais nela previstas.
Interessante ressaltar que o Decreto n. 47.132/2017 de Minas Gerais, que regulamenta a Lei n.
13.019/2014 em nível estadual, também não faz qualquer menção à necessidade de lei específica para
que se firmem os termos de parceria – ou seja, não é tida como um requisito obrigatório.
Por outro lado, evidente que a legislação pertinente exige, para a deflagração de parceria na forma de
termo de fomento ou de termo de cooperação, a previsão ou indicação dos recursos orçamentários
suficientes para tanto (art. 35 da Lei n. 13.019/2014 e artigo 40 do Decreto n. 47.132/2017 MG) - a nova
legislação veio atender e adequar-se aos comandos da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei n. 101/2000),
da Lei de Transparência (Lei n. 131/2009) e da Lei de Acesso à Informação (Lei n. 12.527/2001) bem
como do Decreto Federal n. 7.724/2012.

156 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 152-163 jul./dez. 2020


Ao determinar a indispensável previsão ou indicação da disponibilidade orçamentária como condição
para realização da parceria, teve o legislador o intento de evitar que os objetos contratados não
viessem a ser sequer iniciados ou, então, concluídos, por insuficiência de recursos para tanto, levando
a administração a revogar a parceria, comprometendo o desenvolvimento das ações e projetos e, em
última análise, a satisfação ao interesse público.
Com efeito, a Constituição da República, em seu art. 167, inciso I, impõe a necessidade de previsão, na
lei orçamentária anual (LOA), dos programas ou projetos que se pretende executar. Iniciar programas
ou projetos não inclusos no orçamento significa realizar gastos sem prévio planejamento, o que
seria um indício de má gestão dos recursos públicos. No que diz respeito à concessão de parcerias
públicas sociais, não poderia ser diferente. A exigência constitucional de inclusão desses projetos na
lei orçamentária deve ser cumprida, sob pena de ilegalidade.
Sobre a questão, inclusive, na obra Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Marçal
Justen Filho (2008, p. 137) é categórico ao afirmar o que se segue.
[...] qualquer contratação que importe dispêndio de recursos públicos depende da
previsão de recursos orçamentários. Assim se impõe em decorrência do princípio
constitucional de que todas as despesas deverão estar previstas no orçamento (art. 167,
incs. I e II), somente podendo ser assumidos compromissos e deveres com fundamento
na existência de receita prevista.

Trata-se, pois, de um imperativo lógico decorrente dos princípios da legalidade, da eficiência e da


moralidade administrativa, que compelem o Poder Público a adotar práticas de planejamento
administrativo e boa gestão dos recursos do erário.
Ainda a respeito da previsão de dotação orçamentária, o Mrosc, em seu art. 24, § 1º, indica que será
necessário que o edital de chamamento público especifique, no mínimo, entre outros pontos, “a
programação orçamentária que autoriza e viabiliza a celebração da parceria”.
No contexto de desburocratização promovido pela Mrosc, a lei determina que, nas relações de parceria
com OSC, a “administração pública deverá adotar procedimentos claros, objetivos e simplificados que
orientem os interessados e facilitem o acesso direto aos seus órgãos e instâncias decisórias” (artigo
23), além de tomar “como premissas a simplificação e a racionalização dos procedimentos” (artigo 63,
§1º).
Ante a explanação realizada, verifica-se que a exigência da Lei n. 13.019/2014 se limita à prévia
dotação orçamentária, ou seja, a inclusão da despesa da parceria social na LOA. Logo, estaria suprida a
necessidade de lei específica para promoção regular de parceria junto ao terceiro setor.
Por conseguinte, não seria razoável requerer dos administradores públicos a promoção de medidas
não previstas na lei como [sendo] exigências para a regular e boa aplicação dos recursos destinados
à parceria firmada. O legislador de 2014 foi expresso ao definir os requisitos obrigatórios para a
promoção das parcerias públicas sociais, não sendo cabível uma interpretação mais rigorosa daquela
categoricamente desenvolvida na lógica inteiriça do Mrosc.
Assim, especificamente a respeito do questionamento levantado na presente consulta, verifica-
se prontamente que a legislação in casu não traz qualquer menção à necessidade de edição de lei

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específica para a consecução das parcerias públicas sociais. Em outras palavras, não é necessário que
a administração pública, no intuito de firmar termo de colaboração, termo de fomento ou acordo de
cooperação, submeta o projeto à apreciação legislativa para garantir sua validade. A consecução desses
acordos está voltada à esfera da discricionariedade do Poder Executivo, que as firmará consoante as
suas diretrizes de políticas públicas.
Noutro giro, para responder de forma completa e elucidativa à indagação proposta, apoia-se em uma
noção sistemática de que a norma aqui analisada não poderá ser vislumbrada por si, mas incorporada
a um ordenamento jurídico e levando em consideração a finalidade de sua edição, acatando novos
significados e modernizações propostas pelo legislador.
Sob esse ângulo de compreensão, infere-se que o questionamento do consulente poderia ter origem
em uma apreciação voltada a outros instrumentos legais do ordenamento. No entanto, é plausível
antecipar que confusão oriunda de uma aparente contradição frontal entre a redação da Lei n.
13.019/2014 e da Lei n. 4.320/1964, que tratam de concessões de recursos públicos de forma díspar
deve ser afastada.

2. 2 Lei n. 4.320/1964 e a noção de subvenção social


A Lei Complementar n. 4.320/1964, que estatui Normas Gerais de Direito Financeiro para elaboração
e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal,
funciona como norma geral imediatamente inferior à Constituição que institui uma das formas de
repasse de recursos realizado pelo Estado ao terceiro setor: a subvenção social.
Segundo explica Afonso Gomes Aguiar (2004, p. 195) em seu livro Direito Financeiro: a Lei n. 4.320
– comentada ao alcance de todos, “subvenções são repasses de recursos realizados a título de
colaboração financeira que ocorrem entre as entidades públicas ou privadas, com o objetivo de ajudar
no pagamento de suas despesas classificáveis entre despesas de custeio”.
Despesas de custeio, por sua vez, equivalem às dotações orçamentárias que se destinam a arcar com
gastos de manutenção de serviços públicos já existentes ou criados, ou com manutenção de serviços
prestados por entidades privadas sem finalidade lucrativa.
As subvenções se dividem em sociais e econômicas. As subvenções sociais, atual objeto em análise,
equivalem às transferências de recursos financeiros realizadas por uma entidade pública ou privada
em proveito de outras entidades públicas ou privadas que prestem serviços de natureza social,
educacional ou médica, sem finalidade lucrativa, de cuja transferência não resulte contraprestação
direta em bens ou serviços a favor da entidade transferidora dos recursos.
A Lei n. 4.320/1964, em seu artigo 12, § 3º, conceitua subvenções como “as transferências destinadas
a cobrir despesas de custeio das entidades beneficiadas” e classifica, assim, como sociais, aquelas
que delimitam que tais verbas poderão ser destinadas a atividades culturais ou assistenciais, sem
finalidade lucrativa (inciso I). Adiante, nos artigos 16 e 17, repisa serem as subvenções de cunho social
as destinadas à prestação de serviços essenciais de assistência social, médica ou educacional.
Além dos requisitos mencionados nos dispositivos legais constantes na Lei n. 4.320/1964, a Lei
de Responsabilidade Fiscal, em seu artigo 26, estabeleceu outras condições para a concessão de

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subvenções sociais, quais sejam, autorização em lei específica, atendimento das condições previstas
na lei de diretrizes orçamentárias e existência de dotação orçamentária. Veja!
Art. 26. A destinação de recursos para, direta ou indiretamente, cobrir necessidades de
pessoas físicas ou déficits de pessoas jurídicas deverá ser autorizada por lei específica,
atender às condições estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias e estar prevista no
orçamento ou em seus créditos adicionais.
[...]
§ 2º Compreende-se incluída a concessão de empréstimos, financiamentos e
refinanciamentos, inclusive as respectivas prorrogações e a composição de dívidas, a
concessão de subvenções e a participação em constituição ou aumento de capital.

Face a tríplice exigência elencada no artigo 26 da Lei de Responsabilidade Fiscal, Flávio Toledo Jr. e
Sérgio Ciquera Rossi (2002, p. 182) abordam, na obra Lei de Responsabilidade Fiscal comentada artigo
por artigo, as subvenções da seguinte forma transcrita.
No caso de auxílio ou subvenção, a ajuda estatal atentará, sempre, para essa tríplice
exigência: 1) sujeitar-se às condições pactuadas na lei de diretrizes orçamentárias, que,
a título de exemplo, podem assentar-se na certificação da entidade junto ao respectivo
Conselho Municipal, na prestação de contas a cada seis meses e no atendimento de
famílias com renda inferior a dois salários mínimos (art. 4º, I, f ); 2) estar autorizada em lei
específica, de iniciativa do Poder Executivo, na qual compareça o nome da instituição e
o valor do repasse; 3) dispor de genérica autorização orçamentária, quer na lei de meios,
quer nas que aprovam créditos adicionais.
Nesse contexto, o parlamentar envolver-se-á no processo que define critérios para
auxiliar pessoas físicas e jurídicas e, depois, avalizará qual o asilo, o orfanato, o albergue
a beneficiar-se do dinheiro público. Assim, não mais se justificam autorizações restritas a
genéricas dotações orçamentárias.

É exatamente nesse ponto que subsiste a aparente, e irreal, incompatibilidade entre os requisitos
impostos pela Lei n. 4.320/1964 e a nova Lei n. 13.019/2014: enquanto aquela exige que se edite uma
lei específica para a concessão de subsídios sociais ao terceiro setor, esta deixa tal requisito de lado
quando o assunto é firmar parceria pública social com entidades integrantes do terceiro setor.
Importante verificar que a falta de estipulação do requisito “edição de lei específica” não se trata de
“esquecimento” por parte do legislador – se lançarmos mão da lógica de interpretação sistemática
lógica histórica, compreendendo a intenção desburocratizante e de afastamento de ingerências
públicas sobre as parceiras públicas sociais. É possível constatar que esse silêncio tem caráter
constitutivo e confirmativo da lógica inovadora abordada na lei mais recente.
A diferenciação entre “subvenções sociais” e “termos de fomento e termos de colaboração”, sendo
esses propostos dentro da lógica de parceria pública social da Lei n. 13.019/2014, é de relevante
importância na presente consulta.
Enquanto as subvenções têm um caráter supletivo, imerso em uma lógica assistencialista de socorro,
amparo ou auxílio, não só ao terceiro setor, mas a diversas entidades, as parcerias públicas sociais
(por meio dos termos de colaboração e de fomento) trazem uma razão de coadjuvação, cooperação
mútua ou coparticipação. Isso quer dizer que se verifica que as subvenções, de maneira diferente das
parcerias, não buscam a consecução de interesse públicos em geral, mas tratam de um dever genérico
do Estado de socorrer e auxiliar as pessoas físicas ou jurídicas.

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 152-163 jul./dez. 2020 159


Além disso, cabe ressaltar que, de maneira diferente das subvenções sociais, que correspondem a
fomento sem estipulação de contraprestação, as parcerias firmadas com as organizações da sociedade
civil por meio de termo de colaboração e termo de fomento dependem da elaboração de um plano de
trabalho que será pactuado em regime de mútua cooperação, como se verifica no artigo 1º, a seguir.
Art. 1º Esta Lei institui normas gerais para as parcerias entre a administração pública e
organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução
de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou
de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de
colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação.

Isso quer dizer que, para que se repassem tais recursos, deverá ser executada contraprestação pactuada
no termo da parceria na forma de plano de trabalho. Esse plano de trabalho conterá objetivos, metas
físicas, custos, modo de execução, além de parâmetros de avaliação – tudo conforme o artigo 22 da
Lei n. 13.019/2014.
Nesse sentido, pode-se concluir que a subvenção social poderá ser utilizada para fomentar com
dinheiro público a atividade de uma entidade privada sem fins lucrativos, enquanto a parceria,
pautada no interesse público e no interesse recíproco entre as partes, poderá ser usada para atingir
um fim determinado no plano de trabalho, no qual as despesas de custeio serão delineadas.
Em relação a tal questão, esta Corte de Contas, na Consulta n. 898.575, concluiu que “as subvenções
se destinam a suplementar os recursos empregados pelas entidades filantrópicas na realização de
ações de cunho social ou assistencial, não se destinando tal repasse à contraprestação dos serviços
prestados à administração pública por entidades privadas”.
Veja-se que a Lei n. 4.3201964 restringiu a destinação das subvenções sociais apenas para as despesas
de custeio da entidade beneficiária. Ou seja, as subvenções devem ter por objeto, exclusivamente, a
manutenção de serviços anteriormente criados ou a realização de obras de conservação e adaptação
de bens imóveis, conforme prevê o art. 12, §§1º e 3º, da própria lei.
Tendo isso em mente, este Tribunal, em diversas oportunidades, manifestou-se sobre o que poderia
ser custeado com recursos de subvenções sociais, a saber: realização de cursos de capacitação de
jovens aprendizes (Consulta n. 898.575), despesas com hospital particular filantrópico (Consulta n.
716.941) e despesas com rescisão de contratos de trabalho de empregados integrantes dos quadros
da entidade subvencionada (Consulta n. 887.867), etc.
Nessa linha, o Tribunal também editou as Súmulas n. 19 e n. 43 com os seguintes enunciados:
Súmula nº 19 – O procedimento do qual resulte celebração de convênio referente
à concessão de subvenção deve estar instruído, para fins de controle externo, com
documentação apta a comprovar o atendimento às normas da Lei Complementar n.º
101/00, da Lei n.º 4.320/64 e das Instruções Normativas deste Tribunal e também com a
prova de efetivo funcionamento da entidade beneficiada.
Súmula n° 43 – A concessão pelo Município de subvenção social – fundamentalmente
para assistência social, médica e educacional – só se legitima quando houver
disponibilidade de recursos orçamentários próprios ou decorrentes de crédito adicional
e for determinada em lei específica.

160 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 152-163 jul./dez. 2020


Todas essas previsões, como fica evidente, buscam regularizar a situação da prestação de contas das
entidades, de direito público ou privado, que receberem valores a título de subvenção da Administração
Pública. Sua finalidade não encontra convergência com o texto legislativo do MROSC.
Sobeja, assim, afastada qualquer pretensão de se igualar o instituto das subvenções às parcerias
públicas sociais. Há de se verificar que as exigências legais para a concretização de cada uma das
figuras são diversas, tendo em vista, principalmente, suas funções díspares.

2. 3 Instrução normativa e a legislação vigente


O consulente, complementando seu questionamento, faz referência à Instrução Normativa n. 8 editada
por esse Tribunal em 2003, que estabelece, entre outras exigências, a necessidade de que qualquer
concessão de subvenção, auxílio e transferência de recursos a pessoas físicas e jurídicas seja prevista
não só na lei de diretrizes orçamentárias e lei orçamentária anual, mas também em lei específica. In
verbis:
Art. 4º - A concessão de subvenções, auxílios e transferências de recursos a pessoas físicas
e jurídicas deverá atender às condições estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias,
estar prevista na lei orçamentária anual e em lei específica, com a identificação dos
favorecidos e respectivos valores, sem prejuízo da assinatura de termo de convênio,
acordo, ajuste ou instrumento congênere e de sua devida prestação de contas.

De pronto, verifica-se contradição entre tal previsão e a disposição legal trazida pela Lei n. 13.019/2014.
Sobre tal situação, importante fazer alguns apontamentos.
A edição de instruções normativas (INs) feita pelo TCEMG, que encontra respaldo no inciso XXIX do art.
3º do RITCEMG, se dá no intuito de regularizar e especificar questões de sua competência, quando se
tratar de matéria que envolva os jurisdicionados do Tribunal.
As INs são provimentos administrativos cuja normatividade está diretamente subordinada aos atos
de natureza primária. Quer dizer, constituem espécies jurídicas de caráter secundário, cuja validade e
eficácia resultam, imediatamente, de sua estrita observância dos limites impostos pelas leis, tratados,
convenções internacionais, ou decretos presidenciais, aos quais se vinculam por um claro nexo de
acessoriedade e de dependência. Assim, tais instrumentos normativos jamais poderão inovar o
ordenamento jurídico, devendo guardar consonância com as leis.
No caso da IN 8/2003, buscou-se estabelecer normas de fiscalização contábil, financeira, orçamentária,
operacional e patrimonial para os processos que tramitam no Tribunal de Contas do Estado envolvendo
as administrações direta e indireta dos municípios. Dentre as previsões, como já citado, está a exigência
de certas condições para a concessão de recursos públicos por aqueles entes para pessoas físicas e
jurídicas, que é realizada por meio de instrumentos: subvenções, auxílios e transferências.
Como toda produção normativa, a IN 8/2003 tomou forma em função do ordenamento jurídico
vigente no momento histórico em que foi editada, isto é, o ato administrativo buscou regularizar o
procedimento do Tribunal para o exercício do controle externo sobre a concessão de recursos públicos
por meio daqueles instrumentos legais previstos à época.
Ao determinar, em seu art. 4º, que as concessões de recursos públicos deveriam estar previstas em
lei específica, fica claro que essa Corte de Contas tinha em mente as ferramentas jurídicas daquele

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tempo, muito ligadas à recém editada Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), de 2000 – que se
tornou uma importante ferramenta gerencial a serviço da administração pública. A LRF contribuiu
para o aprimoramento do controle social sobre a gestão fiscal ao promover maior transparência
e qualidade das informações e exigir uma ação fiscalizadora mais efetiva e contínua dos tribunais
de contas.
Do ano de 2003 até o momento atual, várias mudanças sociais – como não poderia deixar de
ser – ocorreram, o que reflete diretamente no campo jurídico. Atualizações no desempenho da
Administração Pública, do Poder Legislativo e do Poder Judiciário, bem como do órgão de controle,
são consequência lógica dessas modificações sociais.
A Lei n. 13.019/2014 é exemplo de tipo de inovação legislativa, que trouxe uma nova lógica para
a consecução de acordos entre a Administração Pública e o terceiro setor. O MROSC, como já
mencionado, é fruto de um processo de reconhecimento e valorização da sociedade civil organizada.
Buscou-se consolidar a relevância dos atores sem fins lucrativos que operam com objetivos voltados
à promoção de atividades de relevância pública e social, fortalecendo a relação entre a administração
e as organizações da sociedade civil e prevendo mais segurança jurídica ao trabalho realizado pelas
organizações, além de maior transparência na destinação dos recursos públicos.
A citada Lei trouxe instrumentos de concessão de recursos públicos antes não existentes no
ordenamento jurídico brasileiro. O termo de colaboração, termo de fomento e acordo de cooperação
são figuras que não se assemelham às subvenções e auxílios aos quais a IN 8/2003 faz referência.
Ressalte-se, ainda, que a nova legislação veio atender e adequar-se aos comandos da Lei de
Responsabilidade Fiscal n. 101/2000, da Lei de Transparência n. 131/2009, da Lei de Acesso à
Informação n. 12.527/2001 e do Decreto Federal n. 7.724/2012, mas trazendo previsões voltadas à
consecução de objetivos atuais.
Retomando a argumentação já desenvolvida no ponto anterior, a Lei n. 13.019/2014 traz de forma
explícita as exigências formais que devem ser promovidas para que se firmem as parcerias públicas
sociais. Dentre essas exigências não há qualquer referência à necessidade de se editar lei específica que
autorize a consecução da parceira. Trata-se de um silêncio com força constitutiva – uma clara escolha
política do legislador para garantir mais liberdade e evitar ingerências e burocracias assoberbadas
sobre a organização das OSC em sua atuação paralela ao Estado.
Se fosse considerado que a IN 8/2003 deveria ser aplicada às parcerias públicas sociais, isto implicaria no
reconhecimento de que o ato administrativo cria direito novo, promovendo inovação no ordenamento
jurídico, já que traz exigência sem lastro legal em norma primária, o que não é viável ou legal.
Nesse sentido, entendo por afastar a aplicação do art. 4º da IN 8/2003, o que vem reforçar a tese já
defendida ao longo desta Consulta, para assim, considerar desnecessária ou não obrigatória a edição
de lei específica para constituição de parcerias pública sociais nos termos da Lei n. 13.019/2014.
Derradeiramente, ressalto que afastar a aplicação parcial da IN 8/2003 às organizações da sociedade civil
que firmarem termo de colaboração, termo de fomento ou acordo de cooperação com a administração
pública não significa dizer que aquelas não precisarão atentar às normas de responsabilidade fiscal ou
prestar contas ao TCEMG.

162 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 152-163 jul./dez. 2020


III CONCLUSÃO
Por todo exposto, diante das indagações do Consulente que foram conhecidas, concluo, em tese que:
1 Não é necessária a edição de lei específica para a consecução dos instrumentos legais de parcerias
previstos na Lei n. 13.019/2014, quais sejam, os termos de fomento, termos de colaboração e acordos
de cooperação entre a administração pública e as entidades do terceiro setor.
2 A exigência de edição de lei específica, prevista no art. 4º da Instrução Normativa n. 8/2003 deste
Tribunal, não abrange as parcerias pública sociais da Lei n. 13.019/2014.
É o parecer.
CONSELHEIRO WANDERLEY ÁVILA
Relator

A Consulta em epígrafe foi respondida pelo Tribunal Pleno na sessão do dia 26/8/2020, presidida pelo
conselheiro Mauri Torres. Votaram o conselheiro Sebastião Helvecio, o conselheiro Cláudio Couto Terrão, o
conselheiro José Alves Viana, o conselheiro Durval Ângelo e o conselheiro presidente Mauri Torres.

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 152-163 jul./dez. 2020 163


INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA N. 1.058.760

CRÉDITO: ARQUIVO TCEMG


PROCURADORA-GERAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO JUNTO AO TRIBUNAL
DE CONTAS ELKE ANDRADE SOARES DE MOURA

RECURSO CABÍVEL DIANTE DAS IMPUGNAÇÕES


DE DECISÕES INTERLOCUTÓRIAS NO CURSO
PROCEDIMENTAL EM QUE FOI APLICADA
MULTA-COERÇÃO

Excelentíssimo Senhor Relator,

I RELATÓRIO
Trata-se de Incidente de Uniformização de Jurisprudência suscitado pelo conselheiro José Alves Viana
nos autos do Recurso Ordinário n. 986.966, em que foi apresentada divergência de entendimentos
proferidos nesta Corte de Contas quanto ao recurso cabível diante das impugnações de decisões
interlocutórias no curso procedimental em que foi aplicada multa-coerção.
Conclusos, o conselheiro presidente, a fl. 5, acolheu o presente incidente, bem como determinou o
sobrestamento da tramitação dos processos que versassem sobre matéria similar.
Os autos foram distribuídos ao conselheiro Sebastião Helvecio, que ordenou, a fl. 7, a remessa dos
autos a este Parquet para manifestação, nos termos regimentais.
É o relatório, no essencial.

II FUNDAMENTAÇÃO
No caso em testilha, a controvérsia levantada veio a lume nos autos do Recurso Ordinário n. 986.966,
interposto pelo Sr. Osmando Pereira da Silva em face da decisão proferida pela 2ª Câmara dessa Corte
de Contas.
Na oportunidade, o conselheiro José Alves Viana apresentou divergência jurisprudencial, a fls.
1 a 4, quanto ao recurso cabível diante das decisões interlocutórias em que foi aplicada multa
por descumprimento de determinações deste Tribunal, conforme se infere nas diversas decisões
colacionadas cujos conteúdos evidenciam o desacordo de posicionamento entre os colegiados desta
Corte.
Por repercutir na dinâmica processual deste Tribunal de Contas, o relator destacou a necessidade
do estabelecimento de consenso sobre a matéria, a fim de que sejam resguardados os princípios da
segurança jurídica e eficiência.
Impende destacar que estão presentes os requisitos regimentais para o devido processamento do
Incidente de Uniformização, conforme se infere na leitura do artigo 223 do Regimento Interno desta
Corte de Contas, que ora transcreve-se para melhor elucidação.

164 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 164-168 jul./dez. 2020


Art. 223. Poderá ser arguido por Conselheiro, Auditor, Procurador do Ministério
Público junto ao Tribunal, responsável ou interessado, incidente de uniformização de
jurisprudência, quando verificada divergência em deliberações originárias do Tribunal
Pleno ou das Câmaras.

O Incidente de Uniformização de Jurisprudência também encontra previsão expressa na Lei


Complementar estadual n. 102/2008, notadamente no artigo 74 que assevera
Art. 74. Verificada a existência de decisões divergentes, poderá ser arguido incidente
de uniformização de jurisprudência por Conselheiro, Auditor, Procurador do Ministério
Público junto ao Tribunal, responsável ou interessado, nos termos do Regimento
Interno.

No mesmo sentido, o art. 926 do Código de Processo Civil dispõe, in verbis:


Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra
e coerente.

Tais comandos visam assegurar isonomia, segurança jurídica e confiabilidade no âmbito das
decisões desta Corte, tendo uma jurisprudência coesa e uniforme, atenta às peculiaridades de cada
caso, garantindo, assim, maior celeridade da solução dos litígios, excluindo os efeitos maléficos das
divergências jurisprudenciais.
Outra não é a lição de Daniel Amorim Assumpção Neves1:
A harmonização dos julgados é essencial para um Estado Democrático de Direito.
Tratar as mesmas situações fáticas com a mesma solução jurídica preserva o princípio
da isonomia. Além do que a segurança no posicionamento das cortes evita discussões
longas e inúteis, permitindo que todos se comportem conforme o Direito. Como ensina
a melhor doutrina, a uniformização de jurisprudência atende à segurança jurídica,
à previsibilidade, à estabilidade, ao desestímulo à litigância excessiva, à confiança à
igualdade perante a jurisdição, à coerência, ao respeito à hierarquia, à imparcialidade,
ao favorecimento de acordos, à economia processual (de processos e de despesas) e à
maior eficiência.

No mesmo sentido, são os ensinamentos de Luiz Guilherme MarinonI e Sérgio Cruz Arenhart2
transcritos a seguir.
É cabível o presente incidente sempre que se verificar, em qualquer julgamento proferido
pelo tribunal (por meio de seus órgãos), em recurso ou ação originária, divergência a
respeito da interpretação do direito. Tal divergência pode ser interna, quando existente
entre os membros do colegiado que têm a atribuição de julgar o caso concreto, ou seja,
quando a tese jurídica (interpretação sobre alguma questão jurídica), esboçada por um
dos julgadores, é distinta e antagônica àquela apresentada por outro dos juízes que dá
composição ao quórum de votação do caso concreto; ou pode também ser externa,
isto é, relativa a julgamento proferido por outro órgão do próprio tribunal (câmara,
grupo de câmaras ou câmaras reunidas, no âmbito estadual, ou ainda turma e seção,
na esfera federal), caso em que a comparação da hermenêutica dada a certa regra, no
julgamento a que se procede, com a dada em outra situação idêntica reflete a variação de
entendimento, a exigir que o tribunal se pronuncie a propósito de qual é a interpretação
efetivamente válida. A divergência externa há de ser verificada entre a orientação

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil Comentado. 3ª ed. Juspodivm, 2018, p. 1.546.
1

MARIONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil V.2 – Processo de Conhecimento. 12. ed. Revista dos
2

Tribunais, 2014, p. 607.

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 164-168 jul./dez. 2020 165


que se esboça no julgamento do caso concreto e outra anteriormente dada por outro
órgão do tribunal, não sendo viável admitir-se o incidente apenas porque existem, no
tribunal, em diversos órgãos, orientações divergentes sobre a mesma questão jurídica.
De qualquer forma, a divergência deve ser atual, ou seja, existir ainda no seio da Corte
– não se prestando a invocação de tese já superada, ou esposada por juízes que já não
mais integram a composição do tribunal, para calcular a divergência -, e efetiva, ou seja,
realmente existente entre interpretações veiculadas no tribunal, estrutura desta Corte.

Vale salientar que a segurança jurídica é um valor fundamental no ordenamento jurídico, devendo
ser pautada na certeza, isonomia e estabilidade, trazendo benefícios a toda a sociedade, posto que
a presença de decisões divergentes para situações idênticas ou semelhantes acaba por revelar uma
ordem jurídica incoerente.
O cerne da questão discutida no presente incidente refere-se ao recurso cabível para impugnar multa-
coerção aplicada incidentalmente no processo em trâmite nessa Corte.
No caso em tela, o recorrente utilizou-se do recurso ordinário, em vez do agravo, para impugnar a
decisão proferida pela Segunda Câmara, nos autos da Denúncia n. 859.153, que ensejou a aplicação de
multa no valor de R$ 5.000,00, em razão do descumprimento de determinação do relator no tocante
à ausência de esclarecimentos e documentos relativos à concorrência n. 1/2012, tendo o seu pedido
sido recepcionado pelo conselheiro relator.
A doutrina de Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini3, ensina que:
(...) decisão interlocutória é todo pronunciamento com conteúdo decisório proferido
no curso do procedimento, que não encerra a fase cognitiva nem o processo de
execução. É um conceito atingido por exclusão: se o pronunciamento decisório encerra
a fase cognitiva ou a execução, tem-se sentença; se não encerra a fase cognitiva nem a
execução, mas não tem conteúdo decisório, é despacho de mero expediente. Todo o
resto é decisão interlocutória.

Percebe-se que a decisão recorrida foi proferida no curso do processo, não tendo ocasionado o
encerramento da fase cognitiva ou executória, possuindo assim natureza interlocutória, conforme
preceitua o §2° do art. 203 do Código de Processo Civil, in verbis.
Art. 203. Os pronunciamentos do juiz consistirão em sentenças, decisões interlocutórias
e despachos.
§ 1º  Ressalvadas as disposições expressas dos procedimentos especiais, sentença é o
pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à
fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução.
§ 2º Decisão interlocutória é todo pronunciamento judicial de natureza decisória que
não se enquadre no § 1º.

O art. 104 da Lei Complementar estadual n. 102/2008, assim como o art. 337 da Resolução n. 12/2008
preveem que o recurso cabível em face das decisões interlocutórias é o agravo, cumprindo transcrever
os referidos dispositivos legais a seguir.
Art. 104. Das decisões interlocutórias e terminativas caberá agravo formulado uma só
vez, por escrito, no prazo de dez dias contado da data da ciência da decisão, na forma
estabelecida no Regimento Interno.

WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. Cognição Jurisdicional - Processo Comum de
3

Conhecimento e Tutela Provisória. V.2. 17. Ed. Revista dos Tribunais, 2018, p. 551.

166 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 164-168 jul./dez. 2020


Art. 337. Das decisões interlocutórias e terminativas proferidas pelo Tribunal Pleno,
pelas Câmaras ou pelo Relator, caberá agravo, salvo das decisões que não conhecem
das consultas.

Portanto, o recurso ordinário proposto pelo recorrente não seria o meio legítimo para combater a
decisão recorrida.
Esta Corte de Contas já teve oportunidade de se pronunciar sobre a matéria, nos autos do Recurso
Ordinário n. 980.535, em Sessão Plenária, de 13/6/2018, in litteris.
[...]
Por seu turno, em face das decisões interlocutórias e terminativas proferidas pelo
Tribunal Pleno, pelas Câmaras ou pelo relator, salvo daquelas que não conhecem das
consultas, o recurso cabível é o agravo, à luz do disposto no art. 104 da Lei Orgânica
c/c art. 337 do Regimento Interno. Por interlocutória entende-se a decisão pela qual o
relator ou o Tribunal decide questão incidental, antes de pronunciar-se quanto ao mérito
do processo (art. 71, § 1º, da Lei Orgânica), ao passo que terminativa é a decisão pela
qual o Tribunal ordena o trancamento das contas que forem consideradas iliquidáveis,
ou determina o seu arquivamento pela ausência de pressupostos de constituição e de
desenvolvimento válido e regular do processo, ou por racionalização administrativa e
economia processual (art. 71, § 3º, da Lei Orgânica).
[...]
A controvérsia que ora se examina, porém, reforça-se, diz respeito à natureza jurídica
das decisões que aplicam multa na fase instrutória de processos de controle, por
descumprimento de diligência ou determinação, e ao recurso com elas compatível.
[...]
Acontece que, relatando o presente conflito de competência – cuja decisão, aliás,
fatalmente dará cabo ao conflito constante do Processo nº 965.707 – e após debruçar-me
sobre a matéria, convenci-me de que em ambos os casos as decisões recorridas possuem
natureza interlocutória, a desafiarem, portanto, a interposição de agravo. Isso porque
tanto no caso dos presentes autos quanto no caso do Recurso Ordinário nº 965.707
o que se observa, analisando os processos como um todo, é que as multas aplicadas
pelo Tribunal não decorreram da análise do mérito dos respectivos autos principais.
Em verdade, as sanções aplicadas e posteriormente recorridas fundamentaram-se
em diligências e determinações supostamente descumpridas no curso da instrução
processual.
Em outras palavras, pode-se dizer que as multas cominadas aos recorrentes tiveram
origem em questões incidentais, acessórias, que surgiram no curso dos processos e
que foram deliberadas de maneira apartada às respectivas questões principais. Tanto
que, em nenhum dos casos, a decisão que culminou na aplicação de multa pôs fim ao
processo. Ao contrário, no caso destes autos, a Segunda Câmara, no mesmo ato, renovou
a diligência suspostamente descumprida, com fixação de prazo de 60 (sessenta) dias,
para complementação da instrução processual e ulterior análise de mérito (a qual, diga-
se de passagem, ainda não foi efetivada).
[...]

Nesse contexto, revendo meu posicionamento, entendo que a interpretação que melhor
se harmoniza com as disposições legais e regimentais aplicáveis à matéria no âmbito
desta Casa é a de que as decisões que aplicam multa na fase instrutória de processos
de controle, tal como ocorrido in casu, possuem natureza interlocutória, impugnáveis,
portanto, via agravo, nos termos previstos no art. 104 da Lei Orgânica c/c art. 337 do
Regimento Interno.
[...]

R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 164-168 jul./dez. 2020 167


Por oportuno, para fins de uniformização do tratamento conferido a casos similares, voto
para que seja firmado o entendimento no sentido de que das decisões proferidas neste
Tribunal de natureza semelhante à dos presentes caberá agravo, nos termos previstos
no art. 104 da Lei Orgânica c/c art. 337 do Regimento Interno.
Destarte, resta incontroverso que o agravo é o recurso cabível para impugnar as
decisões proferidas no curso procedimental (interlocutórias) em que foi aplicada
multa-coerção.

III CONCLUSÃO
Em face do exposto, opina este Ministério Público de Contas pelo entendimento uniformizador no
sentido de que o recurso cabível é o agravo, com espeque no art. 104 da Lei Complementar estadual
n. 102/2008 c/c o art. 337 da Resolução n. 12/2008.
É o parecer.
Belo Horizonte, 2 de abril de 2019.

Elke Andrade Soares de Moura


Procuradora-Geral do Ministério Público de Contas

Parecer emitido pelo Ministério Público junto ao Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais no Incidente
de Uniformização de Jurisprudência n. 1.058.760 apreciado pelo Tribunal Pleno, na sessão do dia 24/6/2020,
presidida pelo conselheiro Mauri Torres. Votaram o conselheiro Cláudio Couto Terrão, o conselheiro Durval
Ângelo, o conselheiro Wanderley Ávila e o conselheiro presidente Mauri Torres. Vencidos o conselheiro
relator Sebastião Helvecio e o conselheiro José Alves Viana.

168 R. TCEMG Belo Horizonte v. 38 n. 2 p. 164-168 jul./dez. 2020

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