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Uma Outra Face do “Déficit de Democracia” na Economia Brasileira1

Nos anos de 1990 foi posta em prática uma política de combate à inflação que derrubou a
inflação muito intensa e rápidamente. A versão mais difundida quanto a esse “sucesso” se
devia a uma “âncora”cambial” ou “monetária”.

Puro engano!

Na verdade, a “mãe de todas as âncoras” desse esforço de estabilização de preços (“Plano


Real”) é uma super-abrangente “âncora institucional”, ou seja, o “segredo” dessa política
econômica foi a de ser toda ela instrumentada por copiosa2 emissão de peculiares leis
chamadas “Medidas Provisórias”, MPs. Tal mecanismo foi trazido do parlamentarismo
europeu e copiado nas regras constitucionais do presidencialismo brasileiro (Artigo 62 da
Constituição), sem que se antecipassem consequências perversas, tais como a forte
detrioração do sistema constitucional da separação de Poderes.

A Figura I anexa oferece a visão fundamental desse fato.

Entendamos melhor essa ocorrência.

A mancha preta na Figura I descreve a trajetória da variável MP/L*, isto é, a quantidade


mensal de MPs medida em unidades da quantidade média de legislação autônomamente3
produzida pelo Congresso Nacional, no período de Janeiro de 1995 a Dezembro de 20004. O

1
Este texto complementa “Portas Giratória & Déficit de Democracia”, em 21.10.2017, publicado neste
portal.
2
Entre Julho de 1993 (surgimento da primeira fase dessa política, o “Plano de Ação Imediata” (P.A.I) e
Setembro de 2001 – quando o já mencionado Artigo 62 foi alterado – a quantidade emitida de MPs
chega a 5.666, ou seja, 94,5% do tota emitido de MPs desde o início em que essa forma de legislar foi
introduzida na economia brasileira, em meados de 1988. Ou ainda, entre Julho de 1994 – criação do
novo padrão monetário, o real – e Setembro de 2001, 5.456 e 94,5%, respectivamente. Portanto, não
cabe dúvida ser essa a época áurea de uso de MPs, como formato significativo da legislação econômica
no Brasil.
3
A quantidade de leis aprovadas no Congresso Nacional já descontadas as leis que se originaram de MPs
(“leis de conversão”) e eventualmente as de revogação de MPs.
4
O fenômeno das MPs muda de regime de formação em 11.9.2001, por meio da EC 32 que alterou a
redação do Artigo 62 da Constituição.
denominador é tomado pela média da quantidade de leis observada por todo o período de
Janeiro de 1995 a Dezembro de 2000, como forma de neutralizar a conhecida sazonalidade da
produção legislativa (J.V. MONTEIRO, “As Regras do Jogo: O Plano Real, 1997-2000”, FGV
Editora, 2002, 3ª.Edição: p.287, rodapé 9).

Assim sendo, a Figura I mostra uma intensa e sustentada transferência de poder decisório dos
políticos para a alta gerência econômica do Executivo Federal, ou seja, os representates eleitos
cedem agenda de decisão aos burocratas que participam do jogo de política econômica
(J.V.MONTEIRO, “Como Funciona o Governo: Escolhas Públicas na Democracia Representativa”,
FGV Editor, 2ª. Reimpressão, 2009; “Governo e Crise: Escolhas Públicas no Brasil e no Mundo,
2007-2011”, FGV Editora, Dezembro de 2011, 1ª. Edição) – e que não detêm qualquer relação
direta como os cidadãos-eleitores. Portanto, esse é um custo social associado a essa política
econômica – que não foi até aqui aferido – na dimensão de desconectar, de fato, o sistema
constitucional de separação de Poderes.

Após essa época áurea dos anos de 1990, os efeitos perversos das MPs sobre o sistema de
separação de Poderes deixam de ser estonteantemente quantitativos para se tornarem
primeiramente qualitativos, uma vez que a emissão de MPs passa a ter o poder de paralizar as
decisões legislativas do Congresso Nacional – o “trancamento de pauta”, no dialeto de Brasilia.

Correntemente, os efeitos quantitativos são bem mais modestos do que nos anos de 1990,
embora nem de longe sejam desprezíveis. Como evidência, note o leitor que, entre 2011 e
2016, a quantidade média emitida de MPs nesse período de seis anos equivale a 26,2% do
total de leis autonomamente aprovadas pelo Congresso Nacional.

Somados ao espetáculo que temos assistido recentemente de “direcionamentos” explícitos de


comportamentos de deputados e senadores pela cúpula do Executivo Federal pode-se
facilmente notar que as políticas econômicas têm sido engendradas e operadas no Brasil, sob
um enorme e muito peculiar “déficit de democracia”.

E pior! Ninguém leva isso em conta: seja na construção de raciocínios acadêmicos nos modelos
macroeconômicos, e nem mesmo quando os políticos e Governo se envolvem com uma
proposta de “reforma política”!

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