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3- A MEMÓRIA SOCIAL

Como anteriormente relatado, o resgate do caráter psicossocial presente na

memória humana se desenvolve principalmente através das abordagens pioneiras do

sociólogo francês Maurice Halbwachs sobre a memória coletiva e, com uma

repercussão contemporânea mais modesta, às advindas do psicólogo britânico Frederick

C. Bartlett e do psicólogo russo L. S. Vygotsky (Sá, Vala & Moller, 1996).

Por essa ênfase original numa perspectiva de cunho sociológico, as pesquisas em

memória social realizadas na psicologia social correm o risco de receberem críticas

semelhantes àquelas recebidas pela teoria das representações sociais, formulação teórica

também de inspiração sociológica, quanto à possível exclusão do indivíduo do cenário

social (Gonzalez Rey, 1997).

Valencia, Páez, Basabe e Gonzales (1998) acreditam que com grande frequência

os termos memória coletiva e memória social são confundidos. Para esses autores, a

memória coletiva se refere a como os grupos sociais recordam, esquecem ou se

reapropiam do conhecimento do passado social, enquanto que a memória social se pode

conceber como a influência que certos fatores sociais têm sobre a memória individual.

Porém, a maioria dos autores que utilizam o termo memória social está na verdade

resgatando os conceitos originais de Halbwachs de memória coletiva, como Fentress e

Wickham (1992) dizem explicitamente fazer. Uma possível explicação é encontrada em

Sá e Vala (2000) ao sugerirem que o conceito de memória coletiva esteja passando pelo

mesmo processo que aquele empregado pelo psicólogo francês Serge Moscovici (1984)

para atualização do conceito durkheimiano de representações coletivas em termo de

representações sociais, estas muito mais sensíveis às condições atuais de produção,

circulação, apropriação e socialização do conhecimento do que aquelas. Aliás, segundo


Namer (1987), ao falar da “memória coletiva da sociedade, Halbwachs tinha a intenção

de transpor em termos de memória o que Durkheim indicou em termos de representação

coletiva” (p. 34). Um dos primeiros exemplos dessa aproximação conceitual entre

representações sociais e memória social é observado no trabalho de Páez, Insua e

Vergara (1992) que, ao estudar o fenômeno da Aids, concluem que “as representações

sociais da Aids, as atitudes envolvendo os homossexuais e o contato social entre eles

possuem uma significativa influência sobre a manutenção de suas memórias sociais”

(p.263).

Explorando as relações existentes entre memória e representações, Jedlowski

(1997) conceitua as memórias coletivas como "representações coletivas referentes ao

passado: a imagem do passado é produzida, conservada, elaborada e transmitida por um

grupo através das interações dos seus membros" (p.24). Na mesma direção, Emelyanova

(2002) defende que “a memória coletiva pode ser concebida tanto como um processo de

atualização das representações sociais do passado, quanto como um processo de

elaboração, de transformação ou de esquecimento destas representações sociais”

(p.140). Essas representações do passado, segundo Jedlowski (2001), são destinadas a

dar legitimidade às crenças da sociedade e para inspirar seus projetos, legitimando

assim as elites que os produzem. Quanto maior é a complexidade de uma sociedade,

maior é o numero das elites competindo para dominá-la; logo, mais o passado torna-se o

assunto de estratégias visando impor as representações que concordam com os

interesses dominantes.

Desta forma, como concluem De Rosa e Mormino (2002), tanto a memória

social quanto as representações sociais

permitem a interpretação do presente a partir de quadros de referência


ligados ao passado, mas também ancorados no presente (...). A elaboração e
a perpetuação das visões de mundo dependem simultaneamente do trabalho
da memória e da atividade cognitiva (p.124)
3.1 – A memória na filosofia de Henri Bergson.

No campo da filosofia, a principal contribuição ao estudo da memória foi dada

pelo filósofo francês Henri Bergson (1859-1941), que propunha uma abordagem da

memória como fenômeno individual, salientando seus aspectos subjetivos. Para Bergson

(2001), a memória corresponde aos aspectos imateriais da vida humana: matéria e

memória são pólos opostos, embora complementares. Tornou-se ainda clássica a divisão

por ele proposta da memória em dois campos ou modalidades:

a) Memória-hábito, relacionada com as necessidades cotidianas; é aquela onde o

sujeito responde aos estímulos do meio vasculhando, na memória, aquelas experiências

mais úteis a determinado momento. A memória-hábito nada mais é do que um

automatismo psíquico que o ser-humano adquire através da simples repetição de um ato,

ou seja, uma simples fixação mental conseguida na base da repetição. Um exemplo de

memória-hábito seria a internalização que ocorre nas pessoas com os passos necessários

para se dirigir um automóvel. Liga-se o carro, pisa-se na embreagem ou no freio ou no

acelerador, muda-se as machas, nem sempre com a atenção voltada para o movimento.

Para Bergson, isto ocorreria porque os passos já foram internalizados através da

memória-hábito, que transformaria um automatismo psíquico em automatismo físico.

b) Memória-recordação (mémoire-souvenir), extremamente seletiva, é a

responsável pela retenção de conhecimentos irrepetíveis (palavras e/ou fatos únicos)

pelo seu significado especial afetivo, valorativo ou de conhecimento. Essa seria o

motivo, segundo Bérgson, de muitas vezes não guardarmos na memória um fato inteiro

vivido por nós, mas apenas pequenos estratos desse fato.

A filosofia bergsoniana da memória defendeu a existência de uma área de saber

caracterizada pelos aspectos subjetivos e espirituais presentes nos homens. Estes


aspectos somente poderiam ser acessados através de uma linguagem especial

proporcionada pela metafísica, utilizando a intuição enquanto método filosófico.

A popularidade da perspectiva bergsoniana da memória, começou a sofrer abalos

com as críticas advindas da sociologia, especialmente as formuladas por Maurice

Halbwachs, contra o excessivo individualismo presente nas suas obras.

3.2 - A memória na sociologia de Maurice Halbwachs.

Nenhuma outra reflexão sobre a memória obteve tanta repercussão na

modernidade quanto a desenvolvida pelo sociólogo francês Maurice Halbwachs nas

suas obras Les cadres sociaux de la mémoire, de 1925 e La mémoire collective, obra

póstuma editada originalmente em 1950. Descendente de uma tradição francesa de

psicologia coletiva (ou sociologia psicológica, como se dizia na época), Halbwachs

realizou uma verdadeira síntese dos pontos de vista opostos de Durkheim e de Tarde,

famoso professor do Collège de France que criticava o antipsicologismo de Durkheim,

integrando o social na psicologia individual (Mucchieli e Pluet-Despatin, 2001).

A socialização, segundo Halbwachs, é feita de continuidades e descontinuidades,

de "memórias e de esquecimentos"; ela não se conceitua sob a forma de um mecanismo

social, mas como um processo de apropriação pelos grupos sociais da sua própria

existência. Por esta razão, a socialização supõe a presença da memória e isto suscita a

elaboração de uma teoria da socialização fundada sobre uma sociologia da memória.

Esta sociologia da memória se situava no projeto da École française de sociologia, que

visava determinar as propriedades morfológicas específicas da vida social (Halbwachs,

2000). Assim resume Sabourin (1997):


A noção de memória social privilegiada por Halbwachs resolveria certos
problemas relativos a uma teoria da socialização. Para isto, a sociologia da
memória consiste em primeiro lugar colocar em questão os conceitos
conhecidos da memória (da filosofia, da psicologia, e da história) que,
através de seus referentes e processos identificados, reconduzem esta
dissociação hipertrofiando tanto a continuidade quanto a descontinuidade na
sua concepção da memória humana. (p.140)

A memória individual, para Halbwachs (1990; 1925/1994), poderia ser reduzida

e explicada através da memória coletiva. As memórias coletivas são as memórias de um

passado compartilhado que são mantidas pelos membros de um mesmo grupo, classe ou

nação e constituem-se em relações de poder entre grupos sociais. O efeito de verdade

que ela produz, sua eficácia social, é realizado pela introdução de um nível simbólico no

discurso sobre o passado e pela legitimação deste discurso pelas instâncias externas ao

grupo (Viaud, 2002).

As principais idéias associadas à noção de memória social ou coletiva podem ser

resumidas da seguinte forma:

a) Em primeiro lugar, toda a memória é social pelos seus conteúdos. Sempre

recordamos um mundo no qual existe a presença de outras pessoas. A memória de um

passado é uma memória de um passado intersubjetivo, compartilhado e recordado

conjuntamente. Ou seja, toda memória individual na sua gênese é social, pois para

lembrar de seu passado todo indivíduo ancora-se nas reminiscências e nas figuras dos

outros (Namer, 1987).

b) Em segundo lugar, a memória é social porque está apoiada nos “quadros

sociais de referência” (les cadres sociaux), como os rituais, as cerimônias, eventos

sociais, entre outros. Até o tempo é visto aqui, em primeiro lugar, como “um quadro

social que permite aos indivíduos e aos grupos sociais constituírem sua memória”

(Viaud, 2002, p.24). Nessa mesma linha, Bosi (1995) afirma que:
Halbwachs não vai estudar a memória, como tal, mas os “quadros sociais da
memória”. Nessa linha de pesquisa, as relações a serem determinadas já não
ficarão adstritas ao mundo da pessoa, mas perseguirão a realidade
interpessoal das instituições sociais. A memória do indivíduo depende do
seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a
igreja, com a profissão; enfim com os grupos de convívio e os grupos de
referência peculiares a esse indivíduo. (p.54)
c) Em terceiro lugar, a memória é social ou intersubjetiva porque se baseia,

principalmente, na linguagem e na comunicação linguística externa e interna existente

nos grupos, como comenta Fentress e Wickham (1992):

Halbwachs tinha por certo razão ao afirmar que os grupos sociais constróem
as suas próprias imagens do mundo estabelecendo uma versão acordada do
passado e ao sublinhar que estas versões se estabelecem graças à
comunicação, não por via das recordações pessoais. (p. 8).
Halbwachs via o funcionamento da memória dentro de um modelo bi-

dimensional, composto por uma função global e por uma função grupal. A principal

característica da função global é a nostalgia, aquele sentimento que parece caracterizar

as gerações quando exercem a atividade de “olhar para trás” e achar que antes era tudo

melhor, mais tranqüilo e mais fácil. É a chamada “idade de ouro”, quando as famílias

eram mais unidas e a vida social menos violenta (Bellelli e Amatulli, 1998; Laurens,

2002). A segunda função, a grupal, se relaciona com as necessidades e interesses atuais

dos grupos. A memória coletiva atuaria como uma reconstrução do passado, adaptando

a imagem dos fatos antigos às crenças e necessidades do presente (Schwartz, 1990;

Middleton e Edwards, 1990b). Ela também serviria para estabelecer a identidade grupal,

apresentando-se igualmente enquanto um instrumento político de reconhecimento,

permitindo introduzir relações de poder entre os grupos sociais (Viaud, 2002).

Halbwachs tentou também diferenciar a memória coletiva da memória histórica.

Para o autor, a história começa exatamente quando a memória coletiva se enfraquece

pela extinção do grupo (morte ou dispersão dos indivíduos) que existia como suporte,
tornando-se necessário preservar este conhecimento institucionalmente através de uma

narrativa escrita. De fato, segundo Halbwachs (1990), “em geral, a história não começa

até que termina a tradição, que é quando a memória social desaparece e se decompõe”

(p.68). Nesse mesmo sentido, observa Jodelet (1998):

A história se instala quando a memória se evapora, quando se rompe a


continuidade do corpo social que, até esse momento, unia as correntes de
pensamento homogêneas e viventes; quando se renovam de um período a
outro “os interesses em jogo”, “a direção das idéias”, “o modo de apreciação
dos homens e dos eventos”, as tradições e as projeções para o futuro.
Enquanto a memória coletiva é plural, a história se diz universal; enquanto
as memórias coletivas são um centro de tradições, a história mostra um
quadro dos acontecimentos, no qual os marcos são exteriores à vida dos
grupos e estabelecem uma ruptura entre aqueles que são atores da história e
aqueles que lêem ou aprendem esta história. (p. 351)

Esta distinção entre memória coletiva e memória histórica é resumida por

Halbwachs (1990) nos seguintes pontos: (a) a memória coletiva é uma corrente de

pensamento contínua, natural e ligada à vida de um grupo, enquanto a memória

histórica é uma corrente de pensamento artificial que obedece a uma esquematização

puramente didática; (b) a memória coletiva se situa dentro de um grupo, enquanto a

histórica existe fora dele; (c) os limites da memória coletiva são flexíveis, enquanto que

os da histórica são fixados; (d) a memória coletiva é ampla e diversa, enquanto a

histórica se apresenta de forma monocórdica, somente existe uma história, enquanto

podem coexistir várias memórias coletivas; (e) a memória coletiva se sustenta sobre

tradições e a histórica o faz sobre fatos e acontecimentos, (f) a memória coletiva é o

grupo visto de dentro, enquanto que a histórica é exatamente o grupo visto de fora.

Uma das principais aproximações entre os campos da história e da memória

social na atualidade é dada pelo conceito de “lugares de memória” proposto pelo

historiador francês Pierre Nora (1992; 1993). Para o autor, os lugares de memória são
instâncias nas quais “a memória é seletivamente encarnada, e que, pela vontade dos

homens ou o trabalho dos séculos, permanecem como os mais deslumbrantes símbolos:

festas, emblemas, monumentos e comemorações, como também dicionários e museus”

(Nora, 1992, p.24). Estudando a formação dos “lugares de memória” existentes em

torno das lendas da floresta da Brocéliande na Bretanha, Calvez (2002) propõe um

dinamismo maior ao conceito original, advogando que os lugares de memória de hoje

podem tornar-se os “lugares de amnésia” do amanhã, principalmente através de

processos coletivos de esquecimento social. Buscando uma aproximação conceitual com

a psicologia social, Bonardi e Galibert (2002) defendem:

a possibilidade de explorar a Memória dos lugares, de uma parte, como


espaço e tempo onde o individual e o coletivo, o privado e o social, tornam-
se um objeto sensível e heurístico de apreensão da realidade e de sua
construção, como inscrição da natureza no social. E a temática das
representações sociais parece constituir, nestes dois sentidos, um meio de
aproximação privilegiado (p. 232).

A reapropriação por Israel de Massada parece ser um exemplo da importância

dos lugares de memória nas tentativas de reconstrução do passado a serviço dos

interesses do presente, como nos apontam Pennebaker e Crow (2000). Massada,

formação rochosa presente em Israel, foi por séculos o palco quase mitológico de um

acontecimento marcante da identidade judaica. Massada foi o local do cerco pelos

romanos a um grupo de judeus que se recusavam a aceitar o jugo de Roma. Por

acreditarem na liberdade e na honra, preferiram o suicídio coletivo a se entregarem aos

romanos. Neste local, todos os anos depois do ressurgimento do Estado de Israel, os

recrutas do exército eram obrigados a fazer seu juramento de defender Israel de todos os

seus inimigos e se preciso dar a vida em troca desse ideal, como o fizeram seus

antepassados. Estudos recentes mostraram que diferente do que se transmitiu

transgeracionalmente, o levante de Massada foi basicamente formado pelos “Sciaari”,


um grupo de assassinos não-judeus. Atualmente, o juramento de Massada tem perdido

força simbólica junto aos israelenses.

Recentes estudos de memória social têm considerado o papel que os centenários

possuem na perpetuação, revisão ou criação de representações sociais de eventos

passados e de pessoas, bem como o impacto que as comemorações exercem sobre a

manutenção da memória social, agindo na reapresentação dos conteúdos factuais para

aqueles que não os viveram (Quinault, 1998; Sá e Oliveira, 2002; Sá, Oliveira e Prado,

2003; Naiff, Sá e Möller, 2003; Möller, Sá e Bezerra, 2003). Nora (1993) salienta o fato

de que as comemorações de centenários, seus múltiplos e submúltiplos são fenômenos

recentes na história da humanidade, iniciados com a comemoração de três centenários: o

da independência dos Estados Unidos da América em 1876, o da Revolução Francesa,

em 1889, e o do próprio século em 1900: isto é corroborado pelo trabalho de Hobsbawn

e Ranger (1984), que através do estudo das tradições nas sociedades ocidentais,

observaram o expressivo aumento das comemorações de centenários a partir do século

XIX, como uma forma de manipulação, através das elites, das imagens do passado até à

configuração de uma verdadeira “invenção das tradições”. Essas práticas sociais,

enquanto formas de permanência de um passado no presente de um grupo, são

igualmente avaliadas por Connerton (1989) em termos de uma memória da sociedade.

Mesmo com toda a atenuação do sociologismo radical de Durkheim presente em

sua teorização, a análise da memória em Halbwachs parece carecer de uma melhor

consideração do caráter psicológico – ou, mais propriamente, psicossocial – contido na

lembrança humana. Para tentar compensar esta lacuna, acompanharemos agora o resgate

que tem sido feito das idéias seminais sobre o caráter social da memória humana

presentes nas teorizações de dois psicólogos do começo do século passado: Frederick C.

Bartlett, na Grã-Bretanha, e L. S. Vygotsky, na antiga União Soviética.


3.3 – A memória na psicologia social de Frederick C. Bartlett.

Frederick C. Bartlett, psicólogo social fortemente influenciado pela escola

inglesa de antropologia, comungava com Halbwachs das idéias sobre os aspectos

construtivos da memória humana, expondo-as através de sua obra seminal

Remembering: a study in experimental and social psychology (Bartlett, 1932/ 1995).

Bartlett trabalhou no estudo do funcionamento individual da memória humana

introduzindo a noção de esquema (schema, no original), enquanto estruturação de uma

“memória de fatos”. Não existiriam memórias específicas guardadas na mente ou no

cérebro, mas apenas traços deixados pela experiência (esquemas) que se transformariam

toda vez que fossem ativados para produzir uma atividade concreta no curso de uma

ação em marcha. Desta forma, as memórias não seriam fixas, mas sim recriações do

passado que produziriam em nós um sentido de continuidade, um sentimento de ser

uma entidade com passado e com futuro (Rosa, Bellelli e Bakhurst, 2000). Logo, o

processo de recordar algo implica ter acesso a informações disponíveis como resultado

das atividades cerebrais, reconstruir o passado no presente, através de algum propósito

social e/ou psicológico particular a partir da lembrança coletiva de acontecimentos

pessoais e históricos.

Uma das características do enfoque de Bartlett era sua ênfase no valor afetivo,

emocional que as percepções e imagens produzem no indivíduo (Rosa, Bellelli e

Bakhust, 2000). Estes efeitos possuiriam uma importância de primeira ordem nas

recordações e também nos significados atribuídos às representações dos indivíduos,

sejam estas narrações verbais ou tenham uma natureza imagética, sejam frutos da

percepção atual ou do resultado da lembrança. Para Bartlett, as lembranças sempre


teriam elementos emocionais associados, de maneira que reunir objetos mediadores no

processo de recordação teria frequentemente como objetivo reviver um determinado

sentimento.

A principal contribuição de Bartlett ao estudo da memória social foi a

introdução da noção de processo de convencionalização social na atividade mnemônica

humana. A convencionalização social refere-se aos processos pelos quais um sistema

cultural ou um de seus elementos (um texto, uma imagem, uma idéia) é transformado

quando ele é transferido de um grupo para o outro, até tomar uma forma distinta, estável

e aceita pelo grupo receptor, em função de seu ajuste às técnicas e convenções

estabelecidas desde há muito tempo dentro do grupo. A lembrança vai se adaptando às

convenções (usos, costumes, valores, estereótipos) do grupo que as constitui. Como um

dos resultados da convencionalização, produzem-se esquecimentos que contribuem para

permitir que o recordado seja coerente com os estereótipos e com os valores locais

existentes.

Haveria três processos básicos, segundo Bartlett (1932/1995), relacionados ao

processo de convencionalização social:

a) Assimilação social, que se refere aos processos pelos quais os diferentes

aspectos ou detalhes do material transmitido são diretamente adotados se já

correspondem a um patrimônio do grupo;

b) Simplificação e elaboração, processo no qual os detalhes que se separam da

forma central da representação do objeto – e que não são mais importantes por sua

significação – são excluídos ou consideravelmente simplificados;

c) Construção social, último processo, pelo qual o material não só é assimilado

como novo elemento cultural, mas também torna-se elemento constitutivo do esquema
social do grupo, no qual adquire uma nova forma que lhe permite integrar novos

elementos.

O conceito de convencionalização apresentado por Bartlett, mostrado acima,

apresenta uma certa analogia com a sociogênese das representações sociais evidenciada

por Serge Moscovici na sua obra seminal A representação social da psicanálise: sua

imagem e seu público (1961/1979). Os processos de assimilação e construção social

seriam semelhantes à ancoragem, enquanto a simplificação e elaboração poderiam ser

relacionadas à objetivação (Jodelet, 1999).

Como consequência da contribuição de Bartlett para o estudo da memória,

surgiu a possibilidade de uma interpretação social de sua construção. A obra de Barttlet

foi resgatada na psicologia social moderna através das duas reedições de sua obra

Remembering (originalmente publicado em 1932, e reeditada em 1964 e 1995). Para

Johnson (2001), pode-se identificar pelo menos três períodos no resgate das idéias

originais de Bartlett: (a) entre a década de 1940 e 1950, período dedicado à replicação

do trabalho empírico e à conseqüente extensão e modificação das teorias originais

presentes em Remebering; (b) uma segunda onda iniciada pela obra do psicólogo

americano Ulric Neisser (1982), caracterizada pela ênfase cognitiva no campo de estudo

da memória, através de trabalhos que procuravam transpor os conceitos originais, como

o de esquema, para o modelo de processamento de informação e a conseqüente

representação da memória em termos de estruturas computacionais; (c) uma terceira

onda, que ainda estaria em curso, representada pelos artigos publicados nos últimos 10

anos, depois da reedição de Remembering em 1995.

Pelo menos três linhas de pesquisa principais contribuíram para o surgimento e

continuidade desta “terceira onda”: (1) o modelo de redes neurais da memória,

desenvolvido pelos pesquisadores das neurociências, em especial pelos teóricos do


processamento de informação distribuído paralelamente; (2) os estudos das memórias

relativas aos períodos traumáticos da história, em especial as memórias de guerras; (3) a

ênfase vygotskiana nos aspectos culturais e sociais da cognição, facilitada pela explosão

das idéias de Vygotsky no Ocidente na década de 1980 (Van der Veer, 2001).

3.4- A memória na psicologia sócio-cultural de L. S. Vygotsky

A obra do psicólogo russo Lev Semenovich Vygotsky notabilizou-se por tentar,

nas suas teorizações e experimentos, integrar numa mesma perspectiva o homem como

corpo e mente, ser biológico e ser social e enquanto membro da espécie humana e

participante de um processo histórico (Oliveira, 1995). Sua abordagem estava baseada

em três grandes postulados, como sintetizado por Van der Verr e Valsiner (1996):

a) As funções psicológicas têm um suporte biológico, pois são produtos da atividade

cerebral;

b) O funcionamento psicológico fundamenta-se nas relações sociais entre o indivíduo e

o mundo exterior, que se desenvolvem através de um processo histórico;

c) A relação do homem com o mundo a sua volta é basicamente uma relação mediada

por símbolos.

Para Vygotsky, a psicologia torna-se-ia cientifica não através do emprego de

métodos reducionistas, mas através de metodologias apropriadas ao caráter específico

da mediação semiótica. Os sistemas de mediação que formariam as bases fundamentais

do funcionamento mental humano seriam criações culturais e, como tais, produtos da

história social preservados nas atividades humanas.


Vygotsky (1984) também dividiu os processos psicológicos em elementares,

compartilhados com os outros animais, e superiores, típicos do ser humano e que

envolveriam a ação intencional, o pensamento e a linguagem. Segundo o autor

supracitado,

Se incluirmos essa história das funções psicológicas superiores como um


fator de desenvolvimento psicológico, certamente chegaremos a uma nova
concepção sobre o próprio processo geral de desenvolvimento. Podem
distinguir, dentro de um processo geral de desenvolvimento, duas linhas
qualitativamente diferentes de desenvolvimento, diferindo quanto à sua
origem: de um lado, os processos elementares, que são de origem biológica;
de outro, as funções psicológicas superiores, de origem sócio-cultural. A
história do comportamento da criança nasce do entrelaçamento dessas duas
linhas.1 (p.61)

Com relação ao estudo da memória humana, Vygotsky (1984) acreditava que,

mesmo nos estágios mais primitivos do desenvolvimento social, ela poderia ser dividida

em dois tipos básicos: uma memória natural e uma memória mediada.

a) Memória “natural” – Vygotsky relaciona este tipo de memória com a percepção

sensorial e a atenção involuntária, semelhante à existente nos outros tipos de animais,

surgindo como influência direta, não mediada, de estímulos externos sobre os

indivíduos, que, estruturalmente, caracterizar-se-ia pelo imediatismo do processo e pelo

registro não-voluntário de experiências. Assim, na presença de um estímulo X qualquer,

haveria uma resposta Y e se bem sucedida, esta informação poderia vir a ser utilizada

em um momento posterior, mesmo na ausência de X.

Vygotsky considerou esta forma de comportamento mnemônico predominante

em povos iletrados. Entretanto, mesmo nesses povos que não dominavam a escrita,

Vygotsky também observou que a memória natural não era a única encontrada.

Observações de diferentes estratégias mnemônicas, como a utilização de entalhes de

1
Grifo do autor.
madeira ou nós, mostraram ao autor que “mesmo nos estágios mais primitivos do

desenvolvimento histórico os seres humanos foram além dos limites das funções

psicológicas impostas pela natureza, evoluindo para uma organização nova,

culturalmente elaborada, de seu comportamento” (Vygotsky, 1984, p.52).

Estes auxiliares mnemônicos seriam responsáveis por expandir as operações

envolvidas no ato de lembrar para além das dimensões biológicas do sistema nervoso

central, permitindo assim incorporar ao aparato biológico estímulos artificiais

denominados signos. A utilização destes signos, mesmo os mais arcaicos, já seria

produto das condições específicas do desenvolvimento social dadas pelo processo de

mediação.

b) Memória mediada – Este tipo de memória incluiria a ação voluntária dos

indivíduos no sentido de apoiar-se em elementos mediadores, signos e instrumentos,

que os ajudassem a lembrar-se de conteúdos específicos. Segundo Vygotsky (1931) “a

principal essência da memória humana é que os homens ativam suas lembranças com a

ajuda de signos” (apud Barkhurst, 1990, p. 210). Estes elementos mediadores surgem

para substituir o processo de estímulo-resposta característico da memória natural, porém

a utilização de signos como mediadores mnemônicos não se dá de forma igual em toda

a espécie humana.

Segundo experimentos realizados por seus colaboradores (Vygotsky, 1984),

conforme o homem vai se desenvolvendo ocorre uma internalização dos signos

mediadores da memória. O "eu" não é um espectador passivo do espetáculo da mente,

mas sim um intérprete ativo, e a interpretação implica necessariamente em habilidades

narrativas e de classificação que são forjadas e sustentadas socialmente. Deste modo, os

objetos da mente estão, em um sentido significativo, corroborados pelas ferramentas

culturais existentes, e toda a memória está imbuída de socialização (Bakhurst, 2000).


Esta teorização propõe que: (a) em primeiro lugar, a memória é uma função

psicológica essencialmente social nas suas origens; (b) em segundo lugar, as memórias

são estados constituídos socialmente; e (c) em terceiro lugar, certas formas de atividades

coletivas representam uma forma de memória social essencial para a continuidade da

vida mental de cada indivíduo (Barkhurst, 1990). Em síntese, o caráter distintivo da

memória humana, para Vygotsky, é que ela é mediada através de significados

simbólicos que são fenômenos culturais. A criança humana apenas adquire as funções

mentais superiores da memória quando se apropria dos significados culturais

compartilhados pelos membros adultos da sua comunidade.

Vygotsky também desenvolveu uma visão distintiva da mediação simbólica,

pela qual introduziu uma concepção das bases sociais da memória, na qual possuir uma

"memória lógica" envolveria muito mais uma sensitividade para o uso instrumental de

artefatos culturais do que requereria a habilidade de ocupar-se de práticas específicas,

sociais na origem, de produção e interpretação das formas narrativas presentes no mais

poderoso dos sistemas simbólicos de esquecimento social, a linguagem natural. Isto

mostraria, como observa Bakhurst (1990), que nenhuma forma de memória adulta pode

ser tornada inteligível sem referências essenciais aos conceitos de sociedade,

comunidade e cultura.

Sintetizando, para Vygotsky, nos processos psicológicos elementares alguma coisa é

lembrada pelo sujeito, enquanto nos processos psicológicos superiores as pessoas

lembram de alguma coisa, fato este que ilustraria o caráter ativo da memória mediada.

Mostrando uma correlação entre o seu pensamento e as teorizações atuais que

defendem que o ser humano cria lugares específicos (museus, monumentos) para que a

memória seja mantida, “os lugares de memória” (Nora, 1992), Vygotsky (1984)

escreve:
A verdadeira essência da memória humana está no fato de os seres humanos
serem capazes de lembrar ativamente com a ajuda de signos. Poder-se-ia
dizer que a característica básica do comportamento humano em geral é que
os próprios homens influenciam sua relação com o ambiente e, através desse
ambiente, pessoalmente modificam seu comportamento, colocando-o sob
seu controle. Tem sido dito que a verdadeira essência da civilização consiste
na construção propositada de monumentos de forma a não esquecer fatos
históricos. Em ambos os casos, do nó e do monumento, temos manifestações
do aspecto mais fundamental e característico que distingue a memória
humana da memória dos animais. (p.68).
4- ALGUMAS ABORDAGENS CONTEMPORÂNEAS NO

ESTUDO DA MEMÓRIA COLETIVA/SOCIAL.

Dentro do marco teórico iniciado por Halbwachs, a sociologia da memória tem

se desenvolvido essencialmente em três direções: (a) o estudo dos aspectos sociais da

memória individual; (b) a exploração das representações culturais da memória (história

social da memória); e (c) análise da problemática da memória coletiva (Jedlowki, 2000).

Nesta mesma direção, Páez, Basabe e Gonzales (1998) afirmam que os

principais estudos a respeito da memória social têm se concentrado nas seguintes linhas

principais:

a) Descrever como se constrói o passado social ou como ele é reconstruído em

função das necessidades e atitudes do presente, especificamente quando se definem as

identidades nacionais e sociais. Nesta visão "construtivista" da memória, o passado é

visto como parte de uma realidade na qual os psicossociólogos se acostumaram a

considerar como uma "construção social" (Berger e Luckman, 1997).

b) Analisar os fatores que influem em que determinados acontecimentos sociais

retenham-se ou se percam dentro da memória social. Os acontecimentos são mais

prováveis de serem recordados se são comemorados, se produzem um grande impacto

emocional, se foram relevantes pessoalmente e se aconteceram durante a vida do

indivíduo, principalmente entre a adolescência e os primeiros anos da vida adulta.

c) Analisar quais são os fatores que fazem com que acontecimentos coletivos

traumáticos, que não são comemorados, algumas vezes até negados institucionalmente,

se mantenham como aspectos importantes da memória social. A estes acontecimentos,


Pennebaker e Basanick (1998) denominaram de "acontecimentos silenciados". As

repressões políticas e as catástrofes políticas coletivas (ditaduras) que existiram na

América Latina e no sul da Europa, Espanha e Portugal, seriam exemplos adequados de

estudos neste tema.

Entendendo que “de forma geral, a questão da memória coletiva é a necessidade

de cada sociedade preservar sua própria herança cultural e passá-la de geração a

geração” (Jedlowski, 1997, p. 23), a transmissão intergeracional, ou seja, as formas

pelas quais as sociedades mantém a memória de um acontecimento através das diversas

gerações, ganha relevância. Entre os principais meios pelos quais a memória é

preservada através das gerações, temos a família, a escola, e os meios de comunicação

de massa. Dentro deste contexto, a família parece ocupar a primazia na transmissão

intergeracional e segundo Jodelet (1999), “a importância do contexto familiar como

instância mediadora da memória foi mostrada pelas pesquisas efetuadas tanto no

domínio da sociologia, quanto da psicologia” (p.133).

4.1 - A transmissão intergeracional da memória.

Alguns trabalhos têm enfatizado a base geracional presente no fenômeno da

memória social (Conway, 1998; Schuman, Belli e Bischoping, 1998), porém entender

este processo requer uma análise mais cuidadosa do próprio conceito de geração,

originalmente restrito nas ciências humanas aos seus aspectos biológicos e

cronológicos. Na tentativa de superar este reducionismo, segundo Olick (1999), os

autores contemporâneos têm proposto um resgate das idéias originais do sociólogo

húngaro Karl Mannheim, cuja tradição na sociologia do conhecimento tem redefinido as

gerações não como períodos objetivos, mas como coortes definidas subjetivamente.
Na sua obra clássica de 1952, “O problema sociológico das gerações”,

Mannheim (1982) refuta o reducionismo biológico presente no conceito de geração,

afirmando que:

O fenômeno sociológico das gerações está baseado, em última análise, no


ritmo biológico de nascimento e morte. Mas estar baseado num fator não
significa necessariamente ser deduzível dele, ou estar implicado nele. Se um
fenômeno está baseado em outro, ele não poderia existir sem o outro;
entretanto, ele possui certas características peculiares a si próprio,
características de modo algum emprestadas do fenômeno básico. Não fosse
pela existência de interação social entre seres humanos, pela existência de
uma estrutura social definida, e pela história estar baseada em um tipo
particular de continuidade, a geração não existiria como um fenômeno de
localização social; existiria apenas nascimento, envelhecimento e morte. O
problema sociológico das gerações, portanto, começa nesse ponto onde é
descoberta a relevância sociológica dos fatores biológicos. Começando com
o próprio fenômeno elementar, precisamos antes de tudo tentar compreender
a geração como um tipo particular de situação social (p. 72).

Desta forma, Mannheim afirma que o fenômeno social das gerações não

representa apenas um tipo particular de identidade de situação, abrangendo grupos

etários relacionados, incrustados em um processo histórico-social. Como observa

Perivolaropoulou (1994), pelo simples fato da existência das “gerações”, a nossa

sociedade se caracterizaria pelos seguintes fenômenos: (a) novos participantes do

processo cultural estão surgindo, enquanto antigos participantes daquele processo estão

desaparecendo; (b) os membros de qualquer uma das gerações apenas podem participar

de uma seção temporalmente limitada do processo histórico; e (c) é necessário a

transmissão contínua da herança cultural acumulada.

Com a emergência contínua de novos participantes no processo cultural, a

criação e a acumulação cultural dificilmente são realizadas pelos mesmos indivíduos,

como observa Mannheim (1982):


Assim, o aparecimento contínuo de novos seres humanos certamente resulta
em alguma perda de possessões culturais acumuladas; mas, por outro lado
(...) ele facilita a reavaliação do nosso inventário e nos ensina tanto a
esquecer o que já não é mais útil como a almejar o que ainda não foi
conquistado. Para a sociedade continuar a existir, a recordação social é tão
importante quanto o esquecimento (p. 76).

Esta aproximação com a visão atual de memória social é melhor explicitada na

maneira pela qual Mannheim considera que a experiência passada pode ser incorporada

ao presente através de “modelos conscientemente reconhecidos”, pelos quais os homens

amoldam suas condutas. Como exemplo, o autor cita a influência que a Revolução

Francesa teve sobre a maioria dos modelos revolucionários subsequentes, que tentaram

na sua formação amoldar-se àquela, observação esta compartilhada por Connerton

(1993). Mannheim também acredita que a memória pode ser subdividida em: (a)

memórias adquiridas pessoalmente, cujas recordações são fruto de experiências reais

vividas pelo indivíduo; e (b) memórias apropriadas, fruto da transmissão cultural entre

os indivíduos.

O fato de que indivíduos sejam contemporâneos não garante por si só uma

“similaridade de situação”; o que realmente cria esta situação comum são eles estarem

numa posição para experimentar os mesmos acontecimentos e dados. Segundo o autor,

“não é difícil perceber porque a mera contemporaneidade cronológica não pode, por si

própria, produzir uma situação de geração comum” (Mannheim, 1982, p.80). E,

prosseguindo, “ninguém afirmaria que havia uma similaridade de situação entre os

jovens da China e da Alemanha de 1800” (p.81). A contemporaneidade torna-se

significante sociologicamente apenas quando envolve também a participação nas

mesmas circunstâncias históricas e sociais (Domingues, 2002).

Associada à noção vista acima, Mannheim propõe a de “geração enquanto

realidade”, que envolveria uma dimensão a mais que a mera existência numa localidade
marcada histórica e socialmente, e que seria a "participação no destino comum" dessa

unidade histórica e social. O conceito de similaridade de situação de uma geração

comporta dois critérios: um mais abrangente, a participação na mesma comunidade

histórica; e um mais particular, a localidade física. Se era verdade que os jovens alemães

de 1800 não compartilhavam a mesma situação de geração com os jovens chineses,

também era verdade que havia enormes diferenças entre os jovens alemães urbanos e os

jovens alemães camponeses. Em outras palavras, esses dois últimos grupos, por não

compartilharem entre eles a mesma participação no destino comum, não podiam ser

considerados integrantes da estrutura mais molecular presente num fenômeno

geracional: a unidade de geração. Para Mannheim (1982),

a unidade de geração representa um vínculo muito mais concreto que a


geração real enquanto tal. Pode-se dizer que os jovens que experienciam os
mesmos problemas históricos concretos fazem parte da mesma geração real,
e os que elaboram o material de suas experiências comuns através de
diferentes modos específicos, constituem unidades de geração separadas.
(p.87)
Podemos resumidamente afirmar que para Mannheim as gerações possuem uma

situação social que as caracteriza como únicas. Esta situação social surgiria das

experiências compartilhadas pelos seus membros. Os eventos públicos que afetam uma

geração, as experiências culturais compartilhadas, as formas comuns de responder ao

mundo, os problemas existenciais comuns e o conhecimento conceitual compartilhado,

são todos experiências sociais que dão forma a gerações particulares (Fields, 1994).

Neste raciocínio, os dados mentais são de importância sociológica, não somente pelos

seus conteúdos reais, mas também porque eles fazem com que os indivíduos os

compartilhem para formar um grupo, tendo assim uma função socializadora. As pessoas

que compartilham um contexto sócio-cultural e que tomam da experiência um

conhecimento de tipo similar formam um grupo social, denominado de “unidade

geracional” ou “coorte”. Os membros de uma unidade geracional participariam de um


“destino comum” formado através do encontro de forças históricas e sociais, que

afetariam uma geração específica (Weill e Cohen, 1994).

Neste sentido, segundo Olick (1999, p.339), as “gerações e memórias são

constituídas mutuamente, não por causa de algumas características objetivas da

estrutura social e cultural, mas por causa das similaridades resultantes na memória

individual dos eventos históricos”. Os efeitos intergeracionais dessa memória

ocorreriam através de duas hipóteses básicas, segundo Schuman, Belli e Bischoping

(1998):

a) Versão linear simples, que afirma que há uma transmissão informal do

conhecimento entre as gerações; por exemplo, os filhos podem ouvir sobre um

determinado fato o que falam seus pais e avós. Neste contexto, o conhecimento dos

fatos deveria decrescer de maneira gradual e não precipitada entre coortes.

b) Versão curvilínea complexa, que advoga que a adolescência e os primeiros

anos de vida adulta proporcionariam uma abertura especial aos fatos mais importantes,

sendo que aqueles sujeitos que já tivessem passado esta fase quando um fato

acontecesse teriam uma menor lembrança deste fato do que aqueles que eram jovens

naquele instante. Apesar de Mannheim ter mencionado um intervalo de idade específico

como crucial, é pouco provável que se possa aplicar algo tão preciso na atualidade. O

intervalo também pode variar dependendo do tipo de acontecimento; os fatos

traumáticos, por exemplo, podem ter maior impacto em idades mais jovens do que

aqueles constituídos de conteúdos abstratos.

É necessário que os problemas existenciais histórico-sociais enfrentados pelos

membros individuais de uma unidade conduzam à elaboração de planos e metas

similares entre eles; “os tipos de experiências compartilhadas e uma ênfase em certas

áreas do conhecimento mediam a indicação/localização social de uma geração, porém


este poderoso efeito da memória não pode, unicamente por si mesmo, definir uma

unidade geracional” (Conway, 1998, p.60). São estas metas e planos comuns que

formariam o “destino comum” de uma unidade geracional. Essa caracterização também

apoia a idéia de criação de unidades diferentes dentro da mesma geração.

4.2 - A memória social de acontecimentos políticos traumáticos.

A investigação das conseqüências da vivência de fatos traumáticos sempre

esteve ligada ao desenvolvimento dos saberes psicológicos. Segundo Iguartua e Paez

(1998), a herança que uma guerra, um período de exceção política, um aprisionamento

político, um clima de censura no ar, etc, deixam numa população sempre serão alvos de

tentativas de compreensão das suas vicissitudes. Como a experiência traumática tem a

capacidade de renascer sempre que o sujeito acessa seu passado no presente, entender os

mecanismos envolvidos neste processo de rememoração torna-se essencial para

compreender as causas do sofrimento individual/social (Marques, Paez e Serra, 1998).

Quando os fatos traumáticos são de origem política, como os aludidos acima,

normalmente as consequências extrapolam o limite individual, através de traços

compartilhados socialmente. É dentro deste universo que alguns pesquisadores da

memória social têm procurado explorar as características da dualidade

lembrança/esquecimento que assola uma população traumatizada, pois se a memória

somente se encontra nos indivíduos, os processos distributivos da lembrança possuem

efeitos e funções no nível social. Assim, podemos afirmar que as memórias sociais de

catástrofes políticas são memórias distribuídas socialmente (Paez, Basabe e Gonzales,

1998).
Entre as primeiras contribuições ao estudo dos fatos traumáticos no moderno

campo da memória social, estão as daqueles que procuram analisar o fenômeno das

memórias “flash”, ou do original flashbulb memories (Brown e Kulik, 1982; Bellelli,

Curci, Leone e Stasolla, 1997). O mecanismo de construção das memórias “flash”

ocorre quando o sujeito é submetido a eventos com forte impacto emocional. Este

impacto atuaria similarmente a um “flash” de máquina fotográfica, cristalizando aquele

momento na memória dos sujeitos como uma imagem fotográfica, o que permitiria

assim a reconstrução daquele instante com precisão inusual para as atividades

mnemônicas. Estudos mostraram que os sujeitos que viveram fatos traumáticos

conseguiram descrever com clareza e minúcias de detalhes o que estavam fazendo

quando J. F. Kennedy foi assassinado em Dallas, quando os japoneses atacaram Pearl

Harbor, etc. Enquanto ilustração, este autor lembra-se claramente o que estava fazendo

quando Ayrton Senna, piloto de fórmula 1 e grande ídolo esportivo brasileiro, morreu

acidentado na Itália.

Em contrário à hipótese sobre o caráter especial das memórias “flash”, Bellelli,

Curci e Leone (2000) discordam da característica de exatidão que normalmente é

atribuída aos seus conteúdos, propondo que é muito mais a elaboração sucessiva de um

evento e, em particular, sua repetição o que explicaria a formação das memórias “flash”,

como resultado de uma atividade amplamente reconstrutiva, na qual a lembrança

experimenta transformações importantes. Assim, o que se poderia considerar como

característico das memórias “flash” seria sua função de ligação de pontos de referência

na memória autobiográfica e de conexão entre a história pessoal do sujeito e a época em

que os fatos ocorreram (Neisser, 1982; Finkenauer, 1997).

O caráter social das memórias flash é defendido por Finkenauer, Gisle e Luminet

(2000) que afirmam que, se,


por um lado, as memórias ”flash” são individuais porque consistem na
memória que a gente tem de seu contexto pessoal de descobrimento; por
outro, são memórias sociais em pelo menos dois sentidos: Primeiro,
implicam uma memória compartilhada coletivamente da notícia factual em
si. Segundo, acredita-se que as trocas interpessoais possuem um importante
papel na manutenção e consolidação das memórias “flash”. (p.160)

Desta maneira, temos a possibilidade de compreender as transformações sociais

das memórias individuais através da comunicação interpessoal (Rimé e Christophe,

1998) e através dos processos de recordação coletivamente construídos (Middleton e

Edwards, 1990c).

Aplicando estas "trocas sociais" às emoções, Rimé e Christophe (1998)

defendem que as experiências emocionais tendem a ser compartilhadas socialmente.

Existem evidências empíricas que mostram que, quando os indivíduos vivem uma forte

emoção, passam a posteriormente falar dela repetidamente às pessoas localizadas ao seu

redor. Este falar repetidamente sobre um assunto dramático teria a função não apenas de

assimilação de elementos desejados, como também de esquecimento de outras partes do

acontecimento. Logo, o "falar pode cumprir a função de reestruturar o evento de forma

que permita uma resolução cultural do trauma emocional, que na falta de mudanças

culturais importantes, torna possível que se esqueça o fato acontecido" (Pennebaker e

Crow, 2000, p.240).

Os pesquisadores atuais da memória social têm buscado também resgatar as

idéias seminais de Mannheim na hipótese da existência de uma idade crítica para a

aquisição e a manutenção de memórias acerca do mundo mais amplo: a adolescência e o

começo da vida adulta. Como exemplo, podemos citar as pesquisas que, estudando o

impacto que fatos traumáticos ocorridos no século passado tiveram na população dos

Estados Unidos da América - o assassinato do presidente americano J. F. Kennedy em

Dallas, a depressão econômica de 1929, as guerras do Vietnam e da Coréia, o


assassinato do ativista dos direitos humanos Martin Luther King, etc. - observaram a

existência de um lapso de tempo de aproximadamente 20 anos entre a ocorrência do fato

traumático e a construção de monumentos em sua memória (Pennebaker & Basanick,

1997; Pennebaker & Crow, 2000). Tentando entender melhor este fenômeno, três

hipóteses básicas foram sugeridas:

a) A hipótese do período crítico:

Recentes trabalhos (Schuman e Scott, 1989; Pennebaker e Basanick, 1998;

Schuman, Belli e Bischoping, 1998) focalizaram a intensidade com que eventos

históricos que impactaram a história americana no século passado são recordados pelos

indivíduos. Os resultados apontaram para o fato de que acontecimentos vividos pelos

indivíduos quando estes se encontavam na idade compreendida entre a adolescência e os

primeiros anos de vida adulta são mais fácil e intensamente evocados do que aqueles

que ocorreram em outras épocas da sua vida. Pesquisas realizadas no campo da

memória autobiográfica também sugerem que as pessoas tendem a recordar

espontaneamente as memórias que se formaram entre essas idades (Conway, 1990;

1991; 1995; Conway e Pleydell-Pearce, 2000). Em uma revisão de estudos próprios e de

outros autores, Rubin, Wetzlel e Nebes (1986) descreveram resultados advindos de

experiências sobre a memória de indivíduos com idades compreendidas entre os 50 e os

70 anos. Nesses estudos, pedia-se aos sujeitos para relatarem uma série de memórias

como resposta a vários fatos indicados. As respostas mostraram que em primeiro lugar

surgiram as memórias que haviam se formado quando os sujeitos tinham entre 11 e 20

anos e, em segundo lugar, as que haviam se originado quando eles tinham entre 21 e 30

anos de idade.

O debate sobre o porquê da existência de um período crítico na idade para a

produção de lembranças importantes na memória ainda está em desenvolvimento. Os


autores supracitados comungam da hipótese de ser este período da vida o da formação

da identidade social e das primeiras relações intimas, além de ser um tempo de grandes

variações emocionais e fisiológicas, sendo cada uma dessas dimensões importantes para

a formação da memória. Interessantemente, a importância deste período de vida também

é destacada por Erik Erikson (1976), que defendia que entre as idades de 12 a 19 anos a

principal tarefa de desenvolvimento seria a de elaborar e adotar uma identidade única e

que ao redor de seus 20 anos, os jovens procurariam desenvolver fortes amizades e

estabelecer relações íntimas com os outros. Para Erikson, após esse período de vida, a

maior parte das relações ganhariam um caráter mais individualista.

b) A hipótese do recurso geracional.

Aliada à hipótese do período crítico, há a hipótese de que os acontecimentos se

comemoram quando as pessoas têm os recursos econômicos e o poder social ou político

para fazê-lo. Se a hipótese do período crítico está correta, as pessoas que possivelmente

mais teriam a preocupação de construir monumentos e de recordar um dado

acontecimento seriam as pessoas mais jovens da sociedade. Porém, quando da

ocorrência do evento, este grupo não possui a influência econômica ou política para

erguer esses monumentos. Aproximadamente 25 anos depois, quando esta unidade

geracional afetada tem em média 40 anos, é que possuiria os recursos para finalmente

“olhar para trás” e construir seus “lugares de memória”.

c) A hipótese da distância psicológica.

Esta hipótese afirma que “imediatamente depois de uma experiência traumática,

os indivíduos tendem a distanciar-se do acontecimento, pois qualquer tipo de lembrança

do trauma pode aumentar a ansiedade e o mal-estar” (Pennebaker e Basanick, 1998).

Este fenômeno ajudaria a entender o porquê das pessoas que viveram situações
traumáticas evitarem a construção de monumentos, pois a sua existência acabaria

contribuindo para o prolongamento do sofrimento causado originalmente pelo evento

traumático.

d) A hipótese da comemoração dos fatos políticos.

Somando-se às outras três hipóteses, Iguartua e Paez (1998) e Beristais, Paez e

Gonzales (2000) defendem que uma repressão sociopolítica costuma deixar de atuar

depois de um período entre 20 e 30 anos. Ao fim deste período a grande maioria dos

responsáveis diretos pela repressão, guerra, etc, em outras palavras, pelo aparato de

Estado, terão desaparecido social ou biologicamente. Esta hipótese ganha relevância

quando se analisa a memória advinda de regimes ditatoriais e de exceção.

Uma outra contribuição à memória de acontecimentos traumáticos e à sua

transmissão intergeracional pode ser encontrada nos estudos desenvolvidos na

psicologia clínica acerca das causas e modos de transmissão da “desordem do estresse

pós-traumático” (Posttraumatic Stress Disorder – PTSD). A PTSD costuma ser

considerada como uma conseqüência psicológica a eventos considerados traumáticos e

que normalmente envolvem risco de vida ou da integridade física. Normalmente é

caracterizada quando da identificação de um possível estressor traumático, pela

observação de um processo de reminiscência do trauma pelo sujeito, de

comportamentos de afastamento e de esquiva, e hiperatenção, manifestada muitas vezes

por períodos insones, ou sono agitado.

Em seus estudos sobre as vítimas de aprisionamento por motivos políticos na

antiga Alemanha Oriental, Ehlers, Maercker e Boss (2000) concluem que a PTSD é uma

desordem comumente observada em sujeitos submetidos a perseguições e torturas

físicas/psicológicas decorrentes de sua opção política. Resultados semelhantes foram


encontrados nos trabalhos de Basoglu, Parker, Ozmen, Vasdemir, Sahin, Ceyhanli,

Incescu e Sarimurat (1996), que estudaram quais as seqüelas psicológicas que repetidas

sessões de tortura haviam deixado em prisioneiros políticos na Turquia. Foram

selecionados 110 sujeitos aprisionados por motivos políticos, subdivididos em dois

grupos: 55 que se declaravam como tendo sido submetidos a sessões de tortura; e 55

que afirmavam não terem sofrido agressões físicas na prisão. Com o auxílio da técnica

de diferencial semântico, os resultados encontrados mostraram que os sujeitos que

haviam sido submetidos às torturas apresentavam escores de PTSD maiores que o grupo

dos não torturados. Mostrando relação intrínseca com a identidade social dos sujeitos,

os resultados também apontaram que, entre os torturados, aqueles que se identificavam

como ativistas políticos possuíam escores menores de PTSD, e do total dos aprisionados

que se declaravam como tendo atividade política, os torturados possuíam uma avaliação

mais positiva deles próprios como ativistas políticos do que aqueles que não haviam

sido torturados.

Analisando a presença de PTSD em sobreviventes judeus do Holocausto na 2ª

Guerra Mundial, Baranowsky, Young, Johnson-Douglas, Williams-Keeler e McCarrey

(1998) e Suedfeld (2000) apontaram para uma possível transmissão intergeracional da

memória da experiência traumática. Mesmo não vivendo como seus pais os horrores do

Holocausto, seus descendentes pareciam sofrer de um tipo de exposição secundária ao

trauma. Algumas ilações podem ser retiradas dos trabalhos acima para tentar entender o

porquê desse tipo de transmissão intergeracional de fatos traumáticos:

a) A transmissão da experiência de um fato traumático vivida pelos sobreviventes

manifesta-se como uma entidade única nos seus descendentes. Esta traumatização de

segunda ordem é denominada de “traumatização empática”. “Esses descendentes, a


segunda geração do trauma, acabam por trazer uma ferida sem a cicatriz” (Baranowsky

et al, 1998, p.249).

b) Os conteúdos traumáticos dos sobreviventes do Holocausto foram transmitidos

aos seus filhos através de duas estratégias comunicacionais: (a) uma tentativa de

naturalizar o assunto, falando sobre o holocausto, seus horrores, suas perdas de amigos,

parentes, etc; ou (b) através de um silêncio absoluto dentro do universo familiar, de um

acordo implícito pelo qual o tema do holocausto torna-se um “tabu”, com proibições

implícitas/explícitas de se falar a respeito, esperando ocorrer naturalmente um processo

de “esquecimento social”. Como conseqüência, a memória do holocausto e suas “feridas

dolorosas” permanecem mais cristalizadas.

c) A transmissão intergeracional da memória do Holocausto também poderia ocorrer

através da transferência da instabilidade emocional dos pais aos seus filhos. Por esta

conclusão, as crianças acabariam internalizando o estresse de seus pais e a desconfiança

social decorrente do trauma original.

d) Os resultados apontam também para uma forte correlação entre gênero e

transmissão intergeracional de memórias traumáticas. As meninas seriam mais

suscetíveis a sofrerem efeitos de uma traumatização secundária do que os meninos,

menos abertos e vulneráveis a este fenômeno.

e) Finalmente, parece que os pais sobreviventes de situações traumáticas procuram

ensinar estratégias de sobrevivência aos seus filhos, na eventualidade de que estes

possam, no futuro, ser submetidos a eventos semelhantes. Assim, inadvertidamente,

acabam transmitindo sua própria experiência traumática aos seus descendentes.

Corroborando esta hipótese, Solomon, Kotler e Mikulincer (1998) e Solomon (1990)

relataram que os soldados israelenses filhos de sobreviventes do Holocausto, quando


submetidos a situações de grande estresse, como em combates, exibiam sintomatologia

similar à de seus pais, portadores de PTSD.

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