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MANOLO FLORENTINO

im
p
De escravos,
forros e fujões
no Rio de
Janeiro imperial

MANOLO
FLORENTINO
é professor do
Departamento de História
da Universidade Federal
do Rio de Janeiro.

104
104 REVISTA
REVISTA USP,
USP, São
São Paulo,
Paulo, n.58,
n.58, p.
p. 104-115,
104-115, junho/agosto
junho/agosto 2003
2003
I
Fevereiro de 1848 findava quando as duas mulheres

im
chegaram ao derradeiro acordo. Nenhuma se atreveu a
colocar as coisas desse modo, mas no frigir dos ovos a
escrava Leonor Moçambique poria as mãos na tão sonhada
carta de liberdade logo que Vitoriana Rosa do Amor Divino
partisse desta para melhor. Até lá a africana continuaria
vendendo seus quitutes pelas ruas da Corte, vez por outra
lavando, quarando, engomando e passando para fora, de
tudo prestando contas à senhora.

Em março o ajuste foi registrado em cartório, ocasião em


que Vitoriana fez questão de deixar consignado no livro de

pé io
escrituras o motivo da manumissão: “a escrava provia o seu
sustento e o da casa com o seu jornal” (1). Vitoriana Rosa
do Amor Divino não era a única mulher pobre a ter uma
preta por arrimo, nem os registros de alforrias (2) são as
únicas fontes a atestá-lo. O traço muitas vezes corrosivo de
Jean Baptiste Debret capturou situação semelhante quando
em termos estritamente econômicos cessavam as diferen-
1 Livros de Registros de Notas
do Segundo Ofício do Rio de
ças entre senhores e escravos (cf. Figura 1) (3). Nada mais Janeiro, livro geral 79, p. 159
(Arquivo Nacional, RJ).
natural em uma sociedade em que mesmo os mais pobres 2 Alforria. s. f. liberdade que o

r
senhor dá ao escravo. Do ára-
almejavam distanciar-se do torpe mundo do trabalho – isto be alhorria.
3 Cf. Rodrigo Naves, “Debret, o
é, sonhavam viver às custas do trabalho alheio. Nada mais Neoclassicismo e a Escravi-
dão”, in Rodrigo Naves, A
comum em se tratando de uma cidade na qual os aluguéis e Forma Difícil. Ensaios Sobre
Arte Brasileira , São Paulo,
Ática, 1997, pp. 91 e sgs.
jornais obtidos com os escravos não raro se aproximavam do
4 Baseado em análise de inven-
tários post-mortem da cidade
que se lograva alcançar alugando casas, com a importante do Rio de Janeiro, Roberto
Guedes Ferreira, afirma que
diferença de que o retorno do investido em almas era mais “aluguéis e/ou jornais de es-
cravos às vezes não distavam
tanto dos aluguéis de casas tér-
rápido do que o capital aplicado em prédios urbanos (4). reas […] e que o retorno do
capital investido em escravos
Ilusória era no entanto a inversão da dependência con- seria mais rápido do que o in-
vestido em prédios urbanos”
(Na Pia Batismal: Família e
tida na circunstância de Leonor, e pouco demorou para que Compadrio entre Escravos na
Freguesia de São José do Rio
se soubesse quem realmente mandava. Ano e meio após de Janeiro (Primeira Metade do
Século XIX) , dissertação de
mestrado, Niterói, Departa-
consignar o registro da liberdade condicional da preta, Vito- mento de História da Universi-
dade Federal Fluminense,
riana Rosa do Amor Divino voltou ao notário para revogar 2000, pp. 131-8).

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a alforria. Foi econômica nos motivos: “por tanto, a mesma sociedade que tornava
ingratidão [a escrava] deixou de cumprir o movediça a liberdade igualmente fazia da
[seu] dever; [é] indigna do benefício” (5). volta ao cativeiro, mais do que uma reali-
Até o momento encontrei exatas quatro dade, uma circunstância subjacente e re-
5 Livros de Registros de Notas do revogações de alforrias entre mais de 17.500 mota. Então: é possível que a escassez de
Terceiro Ofício do Rio de Janei-
ro, livro geral 9, p. 67v (Arqui- cartas de liberdade coletadas entre 1840 e anulações de liberdade remeta à força de
vo Nacional, RJ). 1871. A rarefação de anulações pode ser determinados padrões culturais que, preci-
6 Livros de Registros de Notas do tomada como signo do desuso a que seme- samente, tornavam pouco freqüente o re-
Segundo Ofício do Rio de Ja-
neiro, livro geral 69, p. 100v lhante estatuto foi circunscrito no decorrer torno à escravidão. Tratava-se de uma cul-
(Arquivo Nacional, RJ). da época moderna, ou ainda e primordial- tura da manumissão cuja sabedoria era esta:
7 A analogia óbvia é com as mente como expressão da eficiência com tornar virtual o que tecnicamente estava
reflexão que Marshall Sahlins
desenvolve sobre o papel da que senhores e escravos pactuavam a obten- carregado de legitimidade (7). Não surpre-
guerra em sociedades tribais
(cf. Las Sociedades Tribales,
ção da liberdade. De todo modo, a existên- enderia descobrir nessa cultura elementos
Barcelona, Editorial Labor, cia de uma única revogação bastaria para que, ausentes em outras regiões das Amé-
1984, pp. 11- 28).
indicar o quanto era legitimamente instável ricas, impediram vicejar no Brasil um Có-
8 O Code Noir francês é inven-
ção de Colbert, promulgada a liberdade ensejada pela lei escravocrata. digo Negro regulador das relações entre
por Luis XIV em 1685. Os Có- Em princípio – e na letra da lei –, os que senhores e escravos (8).
digos Negros hispano-america-
nos, por sua vez, são expres- alforriavam julgavam poder reescravizar, Óbvio, para aqueles que partilhavam da
sões do despotismo ilustrado
espanhol e surgiram na segun- e quem obtinha a liberdade acreditava po- cultura da manumissão – e é bom lembrar
da metade do século XVIII como der regressar ao cativeiro. O que não impe- que nem todos os atores sociais dela com-
meio de tornar mais rentáveis
as colônias insulares do Caribe. diu ao marquês de Jacarepaguá exigir, em partilham, incluídos aí não apenas senho-
Sobre eles, cf. Louis Sala-
Molins, Le Code Noir ou le
janeiro de 1840, que se consignasse no pró- res mas também muitos escravos –, o cati-
Calvaire de Canaan, Paris, prio livro em que ele condicionava a alforria veiro era em princípio uma condição tem-
PUF, 1988; e Manuel Lucena-
Salmoral, Los Códigos Negros de José Maria de Nação à prestação de ser- porária. E a liberdade também. Pois tudo se
de la América Española, Paris/ viços: “a liberdade cairá se não se conduzir passava como se, embora a escravidão
Madrid, Unesco/Universidad
de Alcalá, 1996. bem ou faltar com o respeito” (6). Entre- pudesse ter fim, fossem perenes os moti-

FIGURA 1
J-B. Debret,
Família Pobre
em sua Casa,
in Viagem
Pitoresca,
1834-39

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REVISTA USP,
USP, São
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vos que lhe teriam dado origem, razão pela Linneu, inscreveu em definitivo o homem 9 David Brion Davis, O Problema
da Escravidão na Cultura Oci-
qual era necessariamente provisória a pró- no reino animal, mas de modo igualmente
dental, Rio de Janeiro, Civiliza-
pria liberdade conquistada. A inferiorida- racializador. Seus seis tipos de sapiens ção Brasileira, 2001, p. 85.
de fundadora do escravo tornava provisio- multicores instauraram uma hierarquia 10 Cf. José Murilo Carvalho, “Es-
cravidão e Razão Nacional”,
nal mesmo a eventual manumissão, idéia natural na qual o africano (Afer niger), de in Pontos e Bordados, Belo
presente tanto no pensamento clássico pele negra e acetinada, com cabelos cres- Horizonte, Editora da UFMG,
1999, p. 36.
quanto no cristianismo. pos e negros, de nariz achatado e lábios
11 Cf. Charles Ralph Boxer, O Im-
Platão – lembra David Brion Davis – túmidos, o ar fleugmático e relaxado, a pério Marítimo Português, 1415-
acreditava que a perpétua inferioridade do natureza indolente e negligente, e o hábito 1825, São Paulo, Companhia
das Letras, 2002, p. 276.
escravo se expressava através da natureza de ser governado pelo capricho de seus
12 José Murilo de Carvalho, op. cit.,
hereditária do status servil. E que até “o senhores jamais seriam compensados pela p. 43. Para detalhes, cf. Ronaldo
Vainfas, Ideologia e Escravidão.
forro estava obrigado a servir a seu primei- engenhosidade e astúcia das quais tam- Os Letrados e a Sociedade
ro senhor, não havendo garantias que evi- bém era provido. Estava o negro, pois, con- Escravista no Brasil Colonial,
Petrópolis, Vozes, 1986, segun-
tassem que seu ser fosse novamente redu- denado não apenas a diferir-se mas tam- da parte. Vainfas lembra, com
razão, que a maldição de Cam
zido à escravidão” (9). Para a cristandade a bém a ver-se inferiorizado diante do euro- já surgia como justificativa do
escravidão relacionava-se ao pecado origi- peu (Europaeus albus), branco, de cabelo cativeiro negro em Leão, o Afri-
cano (1550) e em Ambrósio Fer-
nal, embora não sem ambigüidades. No louro ou castanho, olhos azuis e aparência nandes Brandão (1618). Res-
âmbito colonial ibérico, muitos letrados delicada, sangüíneo e musculoso, perspi- salto que o mesmo já se dava
durante a etapa “africana” da
(sobretudo jesuítas) foram a esse respeito caz e inventivo, coberto por vestes ade- expansão portuguesa, de modo
explícito em Gomes Eanes da
precisos: ao fazer fluir nos homens os ape- quadas e governado por leis (14). Zurara (Crônica de Guiné, Bar-
tites inerentes à sua condição, a queda do celos, Livraria Civilização,
1973, p. 85), escrita em mea-
Paraíso gerou a guerra da qual derivara o dos do século XV, e implícito em
Duarte Pacheco Pereira
cativeiro legítimo – isto é, a escravização
do prisioneiro a quem se poupava da morte II (Esmeraldo de Situ Orbis, Lisboa,
Academia Portuguesa de Histó-
ria, 1988, p. 22), este dos
(servatus) (10). primórdios do século XVI. É pos-
Os fundamentos da sempiterna inferio- Os termos em que em abril de 1849 foi sível que o grande ícone do pen-
samento cristão escravista do Se-
ridade do negro eram ressaltados pelos escrita uma carta de liberdade podem aju- tecentos seja Manoel Ribeiro Ro-
cha, para quem o escravo era
exegetas de Santo Agostinho, mas também dar a avançar na discussão. Nela, Sebastião um homem com pleno direito à
pelas vulgatas da Bíblia, sobretudo a tradu- Pires Ferreira libertava Isabel Benguela liberdade. Ribeiro Rocha, por
vezes ridicularizado como mero
ção latina feita em parte por São Jerônimo mediante uma única condição: sofista, incorpora em seu mode-
lo justificador a) a ilegitimidade
no século IV, declarada de uso comum pelo da propriedade escrava; b) um
Concílio de Trento. Logo os etíopes – isto “que [Isabel] não viva nesta Corte nem na tempo determinado para o fim
do cativeiro; c) a natureza pe-
é, os “caras queimadas” – passaram a ser Província do Rio de Janeiro, podendo em dagógica (não apenas cristã) do
associados aos descendentes de Cã, o filho qualquer outra parte do Brasil estabelecer cativeiro, levada ao extremo.
Esse autor precisa ser levado
de Noé que fora amaldiçoado pelo pai por sua residência e usar e gozar de si como lhe mais a sério pois como secular
expressava, como não se encon-
haver zombado de sua nudez, razão pela aprouver; no caso porém de que seja en- tra em Vieira, Benci ou Azeredo
qual deveriam servir aos descendentes de contrada nesta Corte ou [em] qualquer [ou- Coutinho, uma mentalidade
mais próxima da do homem lei-
Sem e Jafet (os asiáticos e os europeus, tro] lugar da província, ficará esta liberda- go comum. Participa de seu mo-
delo de cultura da manumissão
respectivamente). Não eram poucos, além de de nenhum efeito, e a mesma [escrava] grande parte das cartas de
disso, os que acreditavam descenderem os voltará à minha posse e domínio […]” (15). alforria que tenho coletado para
o Rio de Janeiro entre 1840 e
negros de Caim, o qual havia sido amaldi- 1871, as quais enfatizam a
çoado pelo próprio Deus (11). Marcados O acordo desvela como poucas fontes natureza pedagógica do cati-
veiro e a necessidade de se le-
assim pelo vício (penitus in vitio demersi os elementos em jogo no ato de alforriar, gar dinheiro para o forrado
começar a nova vida, além de
sunt), os negros encontravam na escravi- permitindo uma primeira apreciação ao minorarem a inferioridade do es-
zação a saída natural para ao menos minorá- conteúdo da liberdade conservadora em cravo, estabelecerem um tempo
para a duração do cativeiro e
lo (12). A inferioridade tinha cor (preta) e jogo. Obtido por mérito, acordo ou com- afirmarem enfaticamente ser a
redenção possível – cf. Manoel
estatuto jurídico (escravo), não demoran- pra, um documento legal consignava a Ribeiro Rocha, Etíope Resgata-
do muito para estas noções tornarem-se transferência da propriedade escrava do do, Empenhado, Sustentado,
Corrigido, Instruído e Libertado
plenamente intercambiáveis (13). senhor para o próprio cativo que, assim, (Discurso sobre a Libertação dos
A viragem ideológica representada se resgatava. O mesmo no entanto não Escravos no Brasil de 1758), edi-
tado por Paulo Suess, Petrópolis,
pelo Systema naturae (1735), de Carl ocorria com o domínio senhorial, que a Vozes, 1992.

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13 Cf. Didier Lahon, O Negro no
Coração do Império, Lisboa, carta de manumissão tornava apenas vir- casa, salientando-se nisto especialmente as
Secretariado Coordenador dos tual – isto é, passível de a qualquer mo- mulheres” (17).
Programas de Educação
Multicultural – Ministério da mento volver-se real devido à existência
Educação, 1999, passim.
do estatuto jurídico da reescravização. Eis Antes dele o inglês James George Semple
14 Cf. Léon Poliakov, O Mito Aria-
no , São Paulo, Perspectiva,
o fundamento para que muitas alforrias se Lisle morou no Rio de Janeiro entre novem-
1074, p. 137. Em Carlos Au- transformassem, na prática, em mecanis- bro de 1797 e fevereiro de 1798, sob o go-
gusto Taunay (Manual do Agri-
cultor Brasileiro, organização de mos de contínua produção de patronagem. verno do conde de Rezende. Foi o tempo
Rafale de Bivar Marquese, São
Paulo, Companhia das Letras,
A perenidade do domínio senhorial su- suficiente para perceber o quanto era ex-
2001, pp. 52-3), cujo livro foi gere mais uma vez que, no universo da pressiva a quantidade de escravos que com-
lançado no Rio de Janeiro em
1839, pode-se ler: “A inferiori- cultura da manumissão, o africano escra- pravam a liberdade com o pecúlio morige-
dade física e intelectual da raça vizado ou liberto estava marcado por uma radamente acumulado (“muitos deles, de-
negra, classificada por todos os
fisiologistas como a última das inferioridade inata que nem a liberdade pois de alguns anos de trabalho, conseguem
raças humanas, a reduz natural-
mente, uma vez que tenha con- podia esconjurar. Prova-o, além da pos- comprar a sua liberdade”) (18). Observador
tato e relações com outras ra- sibilidade de retorno ao cativeiro, a ins- atento, igualmente chamou-lhe a atenção o
ças. E especialmente a branca,
ao lugar ínfimo, e ofícios ele- tauração pelo Estado imperial de uma evi- fato de as milícias da cidade serem compos-
mentares da sociedade. Debal-
de procuram-se exemplos de dente diferenciação entre os forros e seus tas por três regimentos, um de soldados bran-
negros cuja inteligência e pro- descendentes no tocante à possibilidade cos, outro de negros e outro mais de mula-
duções admiram. O geral deles
não nos parece suscetível senão de eventualmente interferir na reprodu- tos. Os soldados mulatos possuíam “ótima
do grau de desenvolvimento
mental a que chegaram os bran- ção do status quo. A Constituição de 1824 aparência” e eram proprietários:
cos na idade de quinze a distinguia os cidadãos no campo político
dezesseis anos. A curiosidade,
a imprevisão, as efervescências por meio de suas posses, criando o “cida- “Digno de nota é o fato de a milícia de mu-
motivadas por paixões, a impa-
ciência de todo o jugo e inabi-
dão passivo” (sem renda para poder vo- latos ser composta exclusivamente por
lidade para se regrarem a si mes- tar), o “cidadão ativo votante” (com ren- homens de posse, homens que podem arcar
mos; a vaidade, o furor de se
divertir, o ódio ao trabalho, que da para votar os membros do colégio de com os custos do seu fardamento, o qual é
assinalam geralmente a adoles- eleitores), e o “cidadão ativo eleitor e
cência dos europeus, marcam
azul-claro, ornado com faixas vermelhas e
todos os períodos da vida dos elegível”, que votava e podia ser eleito. passamanes prateados. No todo o seu as-
pretos, que se podem chamar
homens-crianças e que carecem A esse nível chegavam apenas os nasci- pecto é bastante agradável” (19).
viver sob uma perpétua tutela: é dos livres, o que excluía os libertos, res-
pois indispensável conservá-los,
uma vez que o mal da sua intro- tritos desse modo apenas às duas primei- Não demorou para que Lisle estendesse
dução existe, em um estado de
escravidão, ou próximo à escra- ras categorias (se não fossem africanos, ao regimento de negros a boa impressão
vidão; porém, esta funesta obri- estrangeiros por definição) (16). Prova- obtida junto à soldadesca mulata. Refletin-
gação dá os seus péssimos fru-
tos, e o primeiro golpe de vista o igualmente um traço recorrente nos do sobre a origem de semelhante configu-
nos costumes, moralidade e
educação desengana o obser- escritos dos europeus que visitaram o ração, concluiu:
vador e o convence de que a Brasil, como o zoólogo e naturalista de
escravidão não é um mal para
eles, sim para os seus senho- Strallsund (Alemanha), Hermann Bur- “A razão pela qual os regimentos de cor
res”. São aqui evidentes os ecos
de Linneu e da vertente
meister, que aqui viveu entre setembro são mais alinhados do que o regimento bran-
poligenista da Ilustração, cujo de 1850 e princípios de 1852. Logo ao co é a seguinte: enquanto este é formado
ícone é Voltaire.
desembarcar no porto do Rio de Janeiro por homens pobres e ricos, aqueles são
15 Livros de Registros de Notas do
Segundo Ofício do Rio de Ja- Burmeister observou: compostos somente por indivíduos que
neiro, livro geral 80, p. 363v
(Arquivo Nacional, RJ).
compraram a sua liberdade e que, graças a
“os homens de cor mais abastados e livres uma superior capacidade de trabalho, pro-
16 Cf. Hebe Maria Mattos, Escra-
vidão e Cidadania no Brasil vivem como o homem branco, procurando grediram mais rapidamente do que os ou-
Monárquico, Rio de Janeiro,
Jorge Zahar, 2000, pp. 20-1. destacar-se ainda mais do que este pela tros” (20).
17 Hermann Burmeister, Viagem ao elegância e apuro do traje […] Todos se
Brasil, Belo Horizonte/São Pau- esforçam em imitar, o quanto possível, a Trabalho, mercado e liberdade. Quan-
lo, Itatiaia/Edusp, 1980, p. 71
moda européia, e nesta camada da popula- do James George Semple Lisle visitou o
18 Apud Jean Marcel Carvalho
França, Visões do Rio de Janei- ção não se vê, igualmente, nenhum traje Rio de Janeiro os preços dos cativos ainda
ro Colonial (1531-1800), Rio
de Janeiro, Eduerj/José
típico do país. Os objetos mais ambiciona- não haviam explodido, como na época de
Olympio, 1999, p. 250. dos por eles são as jóias de valor, ouro e Burmeister. Eis por que muitos consegui-
19 Idem, ibidem, p. 251. diamantes, e tudo que possuem neste gêne- am comprar a liberdade, para logo trans-
20 Idem, ibidem. ro carregam no corpo, mesmo quando em formar a qualidade e trato da vestimenta

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em forte signo de distância em relação a busca dar conta dos perfis etário-sexuais
um cativeiro já abandonado por meio de da população escrava da Corte, dos fugiti-
trabalho duro e metódico. Não é necessário vos que apareciam nos anúncios de fugas
ser historiador para capturar na tentativa de do Jornal do Commercio, e dos africanos
emprestar a si, por meio do cuidado na apa- que desembarcavam no porto do Rio de
rência, um certo ar de dignidade, um pa- Janeiro, tudo isso em uma época em que o
drão afeito particularmente àqueles que, de tráfico atlântico alcançou seu auge. Se, por
algum modo, assumem a inferioridade im- um lado, fica claro o impacto do tráfico
posta pelo entorno (21). sobre a população cativa urbana (quase 80%
de africanidade e amplo predomínio de
homens adultos), por outro se indica igual-
mente o peso dos recém-chegados entre os
III fujões, cujos contingentes encontravam-se
inflados sobretudo por boçais do sexo mas-
Talvez nunca consigamos saber os culino entre 12 e 18 anos de idade.
motivos que levaram Sebastião Pires Esses dados indicam poder ser correta a
Ferreira a emprestar à manumissão de Isa- idéia de que nas Américas a freqüência de
bel Benguela o evidente tom de desterro – fugas e de formação de quilombos mante-
isto é, a converter em pena a liberdade em nha uma relação diretamente proporcional
princípio almejada pela escrava e por ou- aos níveis de africanidade da população
tros cativos. Contudo, os termos da carta de escrava (23). Contudo, é perfeitamente
alforria de Isabel apontam para outros con- plausível que o fundamento de semelhante
teúdos da noção de liberdade conservadora correlação radique menos em uma etérea
que, imaginava-se, poderia ser desfrutada resistência escrava ao cativeiro do que no
por um ex-escravo. No dia-a-dia tal noção impacto inicial do desarraigo, da solidão e
se relacionava à possibilidade de movimen- da subtração da linguagem que na África
tar-se espacialmente, de usar e gozar de seu servia à estruturação do mundo. Nessa es-
corpo e dos frutos de seu trabalho, preser- pécie de estado de seasoning cultural tal- 21 Com sua peculiar acidez, e a
vando de um modo ou de outro o domínio vez estivessem fujões como o angolano liberdade própria do ofício de
jornalista, há muito Mencken
senhorial. Assim definida, a liberdade se Gongi, ferido no pé direito e que “ainda observou: “O escravo está
sempre cônscio da sua escra-
confundia com a possibilidade de, em graus carrega o nome de sua terra”; João Cassan- vidão, e faz constantes e de-
diversos, dispor de si. ge,12 anos, “bastante esperto porém buçal sesperadas tentativas de
mitigá-la ou livrar-se dela de
Sem nenhuma garantia de êxito, a gran- por ter 5 ou 6 meses deste país”; Rita uma vez. Às vezes, busca este
alívio em atividades externas
de maioria buscava dispor de si na lida Cabinda, “que não sabe dizer o nome de que prometem dar-lhe a sensa-
impetuosa ou manemolente, associando a sua senhora por ter sido comprada a pou- ção de dignidade e importân-
cia que o seu trabalho diário
“liberdade” a pequenas conquistas tenden- co”; Antônio Moçambique, de 16 anos, que lhe nega; outras vezes, tenta
tes a alargar sua autonomia na escravidão. “não sabe dizer o nome de seu senhor”; ou emprestar uma falsa aparência
de dignidade a este próprio
É claro, alcançar essas pequenas conquis- ainda Santos e Vasco, os quais “apenas trabalho” (cf. Henry Louis
Mencken, O Livro dos Insultos
tas demandava tempo, o tempo de aculturar- principiam no português” (24). de H. L. Mencken, seleção,
se, de vivenciar na carne e na alma a peda- Aos que o tempo permitia passarem da tradução e prefácio de Ruy
Castro, São Paulo, Companhia
gogia que aos poucos transformava o cati- condição de simples cativos à de escravos das Letras, 1988, p. 138).
vo (isto é, o prisioneiro) em escravo. Aos cabia legitimamente almejar maior auto- 22 Cf. o caso de Muhammad
nomia no cativeiro, ou mesmo a liberdade Baquaqua, in Paul Lovejoy; Robin
que não lograssem realizar semelhante tra-
Law (eds.), The Biography of
vessia restava o cativeiro inconforme ou a conservadora implícita a uma carta de Mahommah Gardo Baquaqua,
New Jersey, Markus Wiener
fuga sem quartel que, com sorte, podia re- alforria. Creio que no espaço urbano o li- Publishers, 2001.
dundar no viver em quilombos, em regres- mite da autonomia na escravidão pode ser 23 Cf. Richard Price (comp.), So-
sar à África ou até mesmo em reiterar o exemplificado por meio dos inúmeros es- ciedades Cimarronas, México
DF, Siglo XXI, 1981, p. 33.
périplo pelo Novo Mundo, ainda que na cravos ao ganho que, com a complacência
24 Cf. Jornal do Commercio de
condição de livre (22). senhorial, prestavam conta dos jornais a 28 de janeiro de 1850, 13
A incompletude dessa travessia é um espaços longos (uma semana, quinze dias de abril de 1830, 29 de ja-
neiro de 1840 e 15 de abril
dos aspectos insinuados pela Tabela 1, que ou um mês) e “moravam sobre si” – isto é, de 1830.

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TABELA 1

Distribuição (%), por idade, sexo e naturalidade da população escrava (1825-35),


dos escravos fugidos (1830-1840) e dos boçais (1822-33) da cidade do Rio de Janeiro

Escravos em inventários (1825-35)


Africanos Crioulos
M F M F
0-14 anos 4,3 2,6 7,1 6,1
15-40 anos 39,4 19,3 3,2 4,4
+40 anos 9,1 3,4 0,8 0,3

Escravos fugidos (1830-40)


Africanos Crioulos
M F M F
0-14 anos 18,7 5,5 2,3 0
15-40 anos 50,3 10,9 6,8 1,4
+40 anos 2,7 0 1,4 0

Boçais (1822-33)
Africanos –
M F – –
0-14 anos 14,5 5,9 - -
15-40 anos 61,2 17,8 - -
+40 anos 0,3 0,3 - -

25 Cf. Deneílson Sousa Brito, Mo- Fonte: Inventários Post-Mortem, Arquivo Nacional (1825-35), Jornal do Commercio (1830 e 1840) e códice 425
radias Escravas no Rio de Janei-
ro no Século XIX, Rio de Janeiro,
do Arquivo Nacional (1822-33).
Departamento de História da
UFRJ, 2002, pp. 26-30. De
acordo com Karasch, “ […] alugavam ou mesmo eram proprietários de De fato, muitos escravos da cidade do
muitos negros de ganho, cujos
donos confiavam neles, tinham habitações separadas das casas e prédios Rio de Janeiro logravam extrair de seus
permissão para alugar suas pró-
prias casas e viver separados urbanos nos quais viviam os seus senhores. senhores a possibilidade de viver em habi-
dos donos, desde que continu- É possível que tais arranjos envolvessem tações próprias, sendo caso clássico o do
assem a pagar a porcentagem
exigida de sua féria diária. Ou- principalmente senhores pobres, para os escravo Henrique, citado por vários estu-
tros podiam viver à parte, des-
de que cumprissem as tarefas
quais a ausência dos escravos podia signi- dos. Tratava-se de um escravo de ganho
diárias na casa do seu senhor” ficar redução de custos de manutenção. Do que, além de ser proprietário de um “zungu”
(Mary C. Karasch, A Vida dos
Escravos no Rio de Janeiro, ponto de vista dos escravos, as vantagens (no caso, um cortiço) na Rua do Lavradio,
1808-1850, São Paulo, Com- da moradia autônoma eram evidentes: pri- era ele próprio dono de uma escrava (26).
panhia das Letras 2000, p.
186). vacidade (sobretudo no que tange aos con- Sobre cativos como Henrique um projeto a
26 Cf. por exemplo Jupiracy tatos entre escravos e livres pobres), me- ser aditado às posturas municipais de 11 de
Affonso Rego Rossato, Sob os
Olhos da Lei: o Escravo Urba-
lhores condições de vida, liberdade de mo- setembro de 1838 especificava:
no na Legislação Municipal na vimento, disporem melhor de seu tempo –
Cidade do Rio de Janeiro
(1830-1838), Niterói, Depar- tanto em termos de lazer quanto no que se “Fica proibido aos senhores de escravos
tamento de História da Univer- refere à racionalização do trabalho –, den- consentirem que eles morem sobre si, a pre-
sidade Federal Fluminense,
2002, p. 118. tre outras (25). texto de quitandarem ou por qualquer ou-

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tro: os transgressores serão punidos com 5 ções sociais não necessariamente apagasse
a 15 dias de prisão e multa de 10 a 30.000 os rastros da dependência pretérita. Era essa
réis e os escravos serão castigados com 100 a liberdade buscada mediante cartas de
açoites e trarão, por um ano, ferro ao pes- alforria. Tratava-se de um anseio em prin-
coço, penas estas que serão dobradas ha- cípio geral, mas cuja obtenção era mais
vendo reincidência” (27). premente para certos espíritos do que para
outros. O regresso à África, por exemplo,
Quase um quarto de século depois, en- pode ter sido a obsessão que manteve viva
tretanto, continuava a ser comum escravos Felícia Maria até que fosse autorizada a
viverem em moradias por sua própria con- embarcar rumo a Angola, em meados de
ta, desfrutando de ampla autonomia espa- 1829. Pode-se imaginá-la, entre alegre e
cial. É o que enviesadamente mostra o ofí- ansiosa, a abordar o navio no qual teria
cio da polícia enviado à Câmara Municipal início a travessia em tudo oposta ao passa-
da Corte em 19 de março de 1860: do, carregando colada ao corpo a carta de
liberdade assinada por Silvestre Manoel, o
“Ilmo. Snrs, existe nessa cidade um grande mais valioso de seus ralos bens (31).
número de casas alugadas diretamente a Outras circunstâncias da vida tornavam
escravos, ou a pessoas livres, que parcial- urgente a obtenção de uma carta de liberda-
mente a sublocam a escravos. Os males re- de – como quando o escravo formava famí-
sultantes de uma tal prática são notórios, lia ou estabelecia descendência, por exem-
ninguém ignorando que essas casas, além plo. Talvez por não havê-la conseguido é
de serem valhacoutos de escravos fugidos que a preta Rosa, uma fornida quiçamã de
e malfeitores, e mesmo ratoneiros livres, 40 anos, fugiu da casa de número 103 da
tornam-se verdadeiras espeluncas, onde Rua Larga de São Joaquim, levando consi-
predominavam o vício baixo de mil formas go tão-somente uma caixa de roupas e, no
diferentes. Urgente seria, pois, reprimir ventre, uma criança de cinco meses (32).
severamente tal abuso, proibindo-se alu- Caso oposto ao de Rosa Cabinda, alforriada
gar, ou sublocar qualquer casa, ou parte em 1841, juntamente com a filha, Angéli-
dela a escravos, ainda mesmo munidos de ca. Francisco Ferreira de Assis obteve por
autorização do seu senhor” (28). elas 800 mil réis, das mãos do preto mina
Guilherme João – presumivelmente o pai
Exemplos como esses mostram terem de Angélica –, que de imediato recebeu 27 Cf. Códice 6-1-28, Arquivo
Geral da Cidade do Rio de
razão os historiadores que, longe de Rosa em casamento (33). Janeiro, reproduzido por
absolutizar a resistência escrava, nela des- Rossato (op. cit., anexo 5).

cobrem sentidos múltiplos, alguns apenas 28 Cf. Códice Escravos 3,3,37,


Arquivo Geral da Cidade do
reivindicativos, outros claramente absor-
víveis (29). Tal pode ter sido o caso protago-
IV Rio de Janeiro, citado por Brito
(op. cit., p. 29).

nizado por Roberto, cujas intenções não 29 Cf. por exemplo João José Reis;
Eduardo Silva, Negociação e
eram tão inassimiláveis assim. Afinal, des- Diversos são os meios de se obter a liber- Conflito, São Paulo, Compa-
nhia das Letras, 1989.
de que sumira, quatro dias antes do anún- dade conservadora característica da
30 Jornal do Commercio de 13
cio de sua fuga ser estampado no Jornal do manumissão. Diversos e sobretudo qualita- de março de 1850.
Commercio, Roberto não fazia muita ques- tivamente distintos, aspecto algo negligen- 31 Arquivo Nacional (RJ), códice
tão de se esconder, tendo sido visto a ciado pela historiografia brasileira. Assim, 424, vol. 3, p. 51.

perambular por bairros tão díspares como ao teorizar sobre os móveis das flutuações 32 Jornal do Commercio de 23
de outubro de 1850.
Laranjeiras, São Cristóvão e Catete (30). das alforrias brasileiras, Manuela Carneiro
33 Livros de Registros de Notas
Mas o dispor de si podia se alargar até da Cunha escreveu: “Já foi assinalada a maior do Segundo Ofício do Rio de
traduzir-se na transferência jurídica da pro- incidência de alforrias em épocas de recessão Janeiro, livro geral 70, p. 70
(Arquivo Nacional, RJ).
priedade do senhor para o próprio escravo. econômica, quando o mercado não absorvia
34 Manuela Carneiro da Cunha,
Ato revogável até 1871, implicava que o escravos ou estes se tornavam um peso. Negros, Estrangeiros (os Escra-
infeliz deixasse de ser escravo, embora no Alforriá-los mediante pecúnia era uma ma- vos Libertos e sua Volta à Áfri-
ca), São Paulo, Brasiliense,
plano mais geral das práticas e representa- neira de reaver um capital” (34). 1988, p. 49.

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Há aqui, quando menos, traços de um e que entre ambos houvesse, em princípio,
modelo. Em primeiro lugar, implicitamen- certa confluência em fases de crise.
te se assume a natureza estrutural das As reflexões de Carneiro da Cunha são
manumissões no Brasil – isto é, a sua reite- razoavelmente antigas. Dentre vários méri-
ração temporal, embora flutuante, ao lon- tos, ensejaram diversas pesquisas sobre as
go de toda a época da escravidão. Não se práticas de alforrias e as noções de liberdade
trata de aspecto de menor importância: na manejadas por senhores e escravos, algu-
Virgínia de 1691, por exemplo, chegou-se mas hoje definitivamente incluídas entre os
a proibir toda manumissão privada, a me- clássicos sobre o tema (37). Outras, em opo-
nos que o senhor deportasse o forro para sição ao modelo insinuado, atestam a exis-
fora da colônia; mulher branca que ali pa- tência de correlação positiva entre conjun-
risse filho mulato era pesadamente multa- turas econômicas favoráveis e a frequência
da, ou serva virava por cinco anos (os fi- de alforrias, como em Sabará e em Mariana
lhos, por trinta) – uma situação inimagi- na primeira metade do século XVIII, perío-
nável em qualquer época de nossa história do áureo das manumissões e igualmente
(35). De fato, os estudiosos concordam em auge da economia mineradora (38).
que a sociedade escravista brasileira Creio no entanto que a disseminação
alforriava como nunca se viu em outras das pesquisas sobre o tema, ao incorporar
partes das Américas (36). outras áreas e períodos, tornará o caso mi-
O trecho acima indica também que, neiro a típica exceção reiteradora da regra.
embora reiterativas no tempo, as freqüên- Veja-se por exemplo a evolução das taxas
cias de manumissões obedeceriam a tendên- de manumissão na cidade do Rio de Janei-
cias inversamente proporcionais às sucessi- ro entre fins do Setecentos e meados do
vas fases da economia escravista: maior in- Oitocentos. Se na década de 1790, época
cidência em fases B (de recessão), menor de relativa estabilidade econômica, a mé-
em fases A (de expansão econômica). dia anual de alforrias registradas no pri-
Logicamente falando, não é difícil compre- meiro ofício de notas correspondia a 0,7%
ender as alegações para a diminuição das da população escrava, tal porcentagem al-
alforrias em fases A – o aumento da de- cançou apenas 0,3% por volta de 1840,
manda por braços não apenas implicaria mantendo-se nesse patamar em 1850, em
incorporar mais mão-de-obra, mas também pleno boom cafeeiro.
limitar a sua perda mediante libertações. A Há nas alforrias um aspecto pouco ex-
maior freqüência de manumissões nas fases plorado por Carneiro da Cunha – a manu-
B, por seu turno, encontraria justificativa missão como conquista escrava. Esclare-
em dois argumentos: evitar custos de manu- çamos para evitar mal-entendidos: não se
tenção (via alforrias gratuitas ou modelos trata de negar o que de concessão senhorial
35 David Brion Davis, Slavery in diferenciais de coartação) e/ou reaver em havia em toda e qualquer manumissão, mas
the Colonial Chesapeake ,
Williamsburg, The Colonial parte ou in totum o preço pago por cativos sim de realçar os aspectos (práticas, com-
Williamsburg Foundation,
1997, pp. 21-2. agora não tão necessários – óbvio, através portamentos sociais, formação de pe-
36 Thomas W. Merrick; Douglas
da compra da alforria pelo escravo. cúlio, etc.) que tornavam o escravo um ator
H. Graham, População e De- Por fim, implícita à citação destacada mais ativo na mudança de sua condição
senvolvimento Econômico no
Brasil, Rio de Janeiro, Zahar, encontra-se a idéia de que a obtenção de social e jurídica do que comumente se ima-
1981, pp. 76 e sgs. uma carta de alforria corresponderia a uma gina. A Tabela 2 ajuda a explicitar melhor
37 Cf. por exemplo Sidney concessão senhorial. No fundamental, de- o problema.
Chalhoub, Visões da Liberda-
de, São Paulo, Companhia das penderia da vontade dos proprietários tan- Os libertos correspondiam a mais de
Letras, 1990; Eduardo França
Paiva, Escravos e Libertos nas to o travamento relativo das manumissões 50% da população escrava do Rio de Janei-
Minas Gerais do Século XVIII, em fases A quanto o seu incremento em ro em uma época em que metade deles
São Paulo, Annablume, 1995.
fases B. É lógico admitir, pois, que as dis- comprava a sua carta de liberdade (1799,
38 Carlo G. Monti, O Processo de
Alforria: Mariana (1750-1779), putas em torno da liberdade irremediavel- fase B), mas caíram para apenas 14% dos
dissertação de mestrado, São mente cindissem ainda mais escravos e se- cativos da Corte quando apenas 25% deles
Paulo, Depto. de História da
USP, 2001, pp. 23-30. nhores em épocas de expansão econômica, pagavam por sua liberdade (1849, fase A,

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TABELA 2

Flutuações dos preços dos escravos adultos, das alforrias pagas e do total de libertos e
escravos nas freguesias urbanas do Rio de Janeiro, 1799-1872

1799 1821 1838 1849 1872

Total de escravos 14.986 36.182 37.137 78.855 37.567

% dos libertos frente ao total 59 - - 14 -


de escravos

% de alforrias pagas 48 49 30 25 25

Preço médio dos escravos 80 158 324 443 1513


(em mil-réis)

Fontes: Preços – Inventários post-mortem (1790-1835, 1860 e 1865), Arquivo Nacional (RJ); Inventários post-mortem
(1825-1869), Primeiro Ofício de Notas de Paraíba do Sul (dados coletados por João Fragoso); Inventários post-
mortem (1820-1869), Arquivo Público Judiciário de Itaguaí (dados coletados por Ricardo Muniz de Ruiz); Alforrias
– Livros de Registros de Notas do Primeiro, Segundo e Terceiro Ofícios do Rio de Janeiro – 1789-1871, Arquivo
Nacional (RJ); e Mary C. Karasch, op. cit., p. 460; Total de escravos e libertos – Mary C. Karasch, op. cit., pp.
109-12; Hermann Burmeister, op. cit., p. 355; e BRASIL, Directoria Geral de Estatística, Resumo Histórico dos
Inquéritos Censitários Realizados no Brasil, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1922, pp. 193-4.

de absoluto predomínio das alforrias gra- das, gratuitas ou obtidas mediante servi-
tuitas) (39). O estupendo aumento do preço ços) não devem ser tomados em pé de igual-
do escravo, observado a partir de 1830 e, dade com os dados referentes à naturalida-
sobretudo, a partir do vislumbre do fim de, ao sexo, à idade, às ocupações e às de-
definitivo do tráfico atlântico, em muito mais variáveis comumente manejadas acer-
contribuiu para o estabelecimento de se- ca dos libertandos. Antes, o predomínio de
melhante transformação. Tal perfil enseja um tipo ou outro de carta expressava o con-
a problematização do modelo de Carneiro texto geral em meio ao qual os escravos
da Cunha, apontando para o quanto a buscavam a liberdade, sendo por isso sig-
alforria comprada podia ter de conquista nos do entorno em que os padrões etários,
do escravo. A queda ou o aumento das ta- sexuais, profissionais e de origem se afir-
xas de manumissões continuariam a refle- mavam. Sua análise deve, pois, anteceder a
tir as sucessivas conjunturas econômicas desses padrões.
mas, tanto quanto redirecionar o cálculo Consoante a esta sugestão, é possível
econômico senhorial em relação às delimitar novas esferas a partir das quais
alforrias, tais conjunturas, ao atuar sobre pensar o problema das alforrias. Para co-
os preços dos escravos, tramariam contra meçar, no plano da demografia da escravi-
ou a favor das possibilidades que os cativos dão, a trajetória descendente dos libertos
tinham de compra da liberdade – isto é, de do Rio de Janeiro entre fins do século XVIII
39 Cf. Manolo Florentino, “Alfor-
obtê-la ou não de acordo com a exclusiva e meados do seguinte sugere que de algum rias e Etnicidade no Rio de Ja-
neiro Oitocentista (Notas de
vontade senhorial. modo as possibilidades de reprodução am- Pesquisa)”, in Topoi, Rio de Ja-
Se semelhante perspectiva for correta, pliada da população manumita como um neiro, Programa de Pós-Gradua-
ção em História Social da UFRJ,
estaremos frente a uma primeira sugestão, todo, ou de certos setores dela, fossem 5, mar. 2002, pp. 9-40.
de natureza estritamente teórico-metodo- caudatárias do predomínio do pagamento 40 Óbvio, a população forra tem
lógica: do ponto de vista analítico, os dife- como forma de obtenção da alforria (40). seu crescimento balizado pela
frequência de alforrias, dado que
rentes tipos de cartas de alforria (compra- No plano político, por sua vez, é plausível todo filho de forro ingênuo é.

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que, muito mais do que quando obtida gra- 123456789012345678901234567890121234567890123
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tuitamente ou negociada através de servi- 123456789012345678901234567890121234567890123
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ços futuros, a compra da alforria podia re- 123456789012345678901234567890121234567890123
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presentar a sobreposição da conquista es- 123456789012345678901234567890121234567890123
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crava à mera concessão senhorial. Tudo se 123456789012345678901234567890121234567890123
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passa como se o pecúlio acumulado (isto é, 123456789012345678901234567890121234567890123
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o mercado) de certo modo despisse senho- 123456789012345678901234567890121234567890123
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res e escravos de suas vestes de mando e 123456789012345678901234567890121234567890123
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obediência, tornando-os simples vendedo- 123456789012345678901234567890121234567890123
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res e compradores. 123456789012345678901234567890121234567890123
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Eis a pista que, fazendo interagir demo- 123456789012345678901234567890121234567890123
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grafia e política, eventualmente pode ajudar 123456789012345678901234567890121234567890123
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a explicar por que a compra de uma carta 123456789012345678901234567890121234567890123
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configurava o mecanismo por excelência do 123456789012345678901234567890121234567890123
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123456789012345678901234567890121234567890123
crescimento ampliado do número de liber- 123456789012345678901234567890121234567890123
123456789012345678901234567890121234567890123
123456789012345678901234567890121234567890123
123456789012345678901234567890121234567890123
tos, ou de certos grupos dentre eles: a fre- 123456789012345678901234567890121234567890123
123456789012345678901234567890121234567890123
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123456789012345678901234567890121234567890123
qüência das cartas compradas expressava a 123456789012345678901234567890121234567890123
123456789012345678901234567890121234567890123
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habilidade do escravo para autonomamente 123456789012345678901234567890121234567890123
123456789012345678901234567890121234567890123
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123456789012345678901234567890121234567890123
arregimentar recursos e, por conseguinte, 123456789012345678901234567890121234567890123
123456789012345678901234567890121234567890123
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obter ganhos políticos na luta pela liberda- 123456789012345678901234567890121234567890123
123456789012345678901234567890121234567890123
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de, sobretudo transformando em interlo- 123456789012345678901234567890121234567890123
123456789012345678901234567890121234567890123
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cutores – via mercado – senhores que em 123456789012345678901234567890121234567890123
123456789012345678901234567890121234567890123
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123456789012345678901234567890121234567890123
princípio não necessariamente compartilha- 123456789012345678901234567890121234567890123
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123456789012345678901234567890121234567890123
riam da cultura da manumissão. 123456789012345678901234567890121234567890123
123456789012345678901234567890121234567890123
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123456789012345678901234567890121234567890123
Em suma, tem razão a historiadora nor- 123456789012345678901234567890121234567890123
123456789012345678901234567890121234567890123
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te-americana Mary Karasch: a liberdade 123456789012345678901234567890121234567890123
123456789012345678901234567890121234567890123
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comprada configurava a conquista escrava 123456789012345678901234567890121234567890123

por excelência (41). Contudo, para além de


“iluminar a força do espírito humano na
superação de todo o trauma da escravidão”,
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
uma carta comprada era importante pelo 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
que significava e ensejava para o liberto, 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
tanto demográfica e politicamente quanto, 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
em última instância, do ponto de vista da 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
afirmação de sua identidade. A carta com- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
prada é igualmente fundamental para o his- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
toriador, posto que, nas condições da es- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
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cravidão, e de modo muito mais evidente 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
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do que nos casos de outros tipos de liberta- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
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ção, ela configurava o resultado último da 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
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ação de redes de relações sociais que en- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
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volviam os escravos entre si, a família ca- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
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tiva, escravos e senhores, forros, homens 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
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livres pobres e instituições como irmanda- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
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des, lojas maçônicas, caixas de pecúlio, 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
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clubes profissionais – enlaçados por meio 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
41 Karasch, op. cit., p. 440. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
do mercado (42). 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
42 Sobre a noção de redes de 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
relações sociais, cf. Giovanni Há também outro tipo de sugestão teó- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
Levi, A Herança Imaterial: Tra- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
rica na compra da liberdade, de dimensão 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
jetória de um Exorcista no 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
Piemonte no Século XVII, Rio de 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
sistêmica, que, ao ultrapassar o cálculo 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
Janeiro, Civilização Brasileira, 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212
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2000, pp.131-72. econômico senhorial, introduz referenciais 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212

114 REVISTA USP, São Paulo, n.58, p. 104-115, junho/agosto 2003


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cuja natureza sociológica nem sempre é
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bem apreendida. Pode-se expressá-lo as-
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sim: em sociedades escravistas como a bra-
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sileira, quando da vigência do tráfico de
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escravos (não importando muito se atlânti-
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co ou interno), funcionavam simultânea e
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inter-relacionadamente dois mercados: o
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primeiro, responsável pelo suprimento da
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demanda de centenas de milhares de ho-
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mens e mulheres escravizados, viabilizava
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a relação entre o senhor e a sua proprieda-
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de; o segundo, de escala obviamente muito
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menor e de percurso inverso, lançava mi-
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lhares de mulheres e homens no mundo dos
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livres, mediante um movimento mercantil
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de transferência da propriedade do antigo
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dono para o próprio escravo.
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A relação mais evidente entre ambos se
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expressava quando a soma que o recém-
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liberto pagava por sua alforria se transmu-
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tava em novo escravo, adquirido por meio
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da ida do senhor ao mercado de cativos
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(43). Enlaçava-os, no entanto, uma outra
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conexão, mais sutil e nunca mensurável em
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termos estritamente econômicos: a ascen-
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são de incontáveis homens e mulheres
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alforriados, cuja capacidade de acumula-
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ção não se esgotava naturalmente na mu-
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dança de condição jurídica, podendo ex-
pressar-se posteriormente no tornarem-se
eles próprios senhores de escravos (44).
Em resumo, alcançando a liberdade
conservadora pugnada pelo próprio do sis-
tema, muitos escravos – a maioria, quiçá –
viam-se inseridos em relações cliente-
lísticas (45). Mas os que compravam a li-
berdade podem ter contribuído mais e de
modo diferenciado para a reprodução do
status quo. Em primeiro lugar pois, apa-
rentemente, eram os únicos forros imunes,
na prática, à possibilidade de ver a sua li-
23456789012345678901234567890121234567890123456789012 berdade revogada, prerrogativa senhorial 43 Ou, o que dá no mesmo, quan-
23456789012345678901234567890121234567890123456789012
23456789012345678901234567890121234567890123456789012 do em troca da liberdade o
23456789012345678901234567890121234567890123456789012
23456789012345678901234567890121234567890123456789012
23456789012345678901234567890121234567890123456789012 até 1871 (46). Em segundo lugar, o fato de senhor exigia do escravo um
23456789012345678901234567890121234567890123456789012 outro escravo.
23456789012345678901234567890121234567890123456789012 que alguns dentre eles alcançassem a con-
23456789012345678901234567890121234567890123456789012
23456789012345678901234567890121234567890123456789012
23456789012345678901234567890121234567890123456789012 44 Cf., por exemplo, Livros de Re-
23456789012345678901234567890121234567890123456789012 dição de proprietários de escravos susten-
23456789012345678901234567890121234567890123456789012 gistros de Notas do Segundo
23456789012345678901234567890121234567890123456789012
23456789012345678901234567890121234567890123456789012
23456789012345678901234567890121234567890123456789012
23456789012345678901234567890121234567890123456789012 tava a crença de que um dia outros escravos Ofício do Rio de Janeiro, livro
23456789012345678901234567890121234567890123456789012
23456789012345678901234567890121234567890123456789012 geral 69, pp. 285v, 293v e
23456789012345678901234567890121234567890123456789012 poderiam desfrutar não apenas da liberda-
23456789012345678901234567890121234567890123456789012 316v (Arquivo Nacional, RJ).
23456789012345678901234567890121234567890123456789012
23456789012345678901234567890121234567890123456789012
23456789012345678901234567890121234567890123456789012 de, mas também ascender socialmente em
23456789012345678901234567890121234567890123456789012
23456789012345678901234567890121234567890123456789012
45 Cf. Cunha, op. cit., passim.
23456789012345678901234567890121234567890123456789012
23456789012345678901234567890121234567890123456789012 meio aos livres – isto é, reproduziriam, em
23456789012345678901234567890121234567890123456789012 46 É o que insinua Sheila de C.
23456789012345678901234567890121234567890123456789012
23456789012345678901234567890121234567890123456789012 Faria, “Mulheres Forras – Rique-
23456789012345678901234567890121234567890123456789012 uma eventual posição de superioridade, a
23456789012345678901234567890121234567890123456789012 za e Estigma Social”, in Tempo
23456789012345678901234567890121234567890123456789012
23456789012345678901234567890121234567890123456789012
23456789012345678901234567890121234567890123456789012 própria escravidão. 9, julho/2000, pp. 65-6.

REVISTA USP, São Paulo, n.58, p. 104-115, junho/agosto 2003 115

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