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A Lei e a Ilusão de Onipotência - Desamparo Psíquico no Contexto do Senhor das

Moscas
Gita Goldenberg1

O presente trabalho tem por objetivo apresentar minha reflexão interdisciplinar


entre o Direito e a Psicanálise a partir da leitura do romance “O senhor das Moscas” de
William Golding2.
Nesta reflexão serão analisados alguns aspectos psicanalíticos cruciais
presentes no referido romance que podem impulsionar as crianças a cometerem
determinados atos e assassinatos, tais como o desamparo psíquico e a não vivência de
ilusão de onipotência primitiva. Para a psicanálise a criança não é inocente e tem amor e
ódio presentes desde os primórdios da formação do psiquismo.
No mencionado romance que trata do naufrágio de crianças e adolescentes em
uma ilha, que acabam revivendo um desamparo psíquico. A situação de desamparo na
ilha pode estar ressignificando o desamparo inicial do qual não foram suficientemente
protegidos.
Desta forma, o desamparo não se trata somente de uma falta de capacidade do
bebê de satisfazer suas necessidades de alimentação sozinho, refere-se também a uma
vivência que poderá ser desestruturante para o psiquismo do indivíduo. No início da
formação do psiquismo é pelo fato de o outro nos amar, nos falar e nos olhar que nós
existimos enquanto sujeito humano, por nos sentirmos reconhecidos.
A partir da relação com a mãe ou quem exerce esta função é que se oferece
ao bebê a possibilidade de recursos psíquicos para lidar com o desamparo que faz parte
da constituição do sujeito. O bebê quando não seguro em relação ao cuidado amoroso do
genitor pode se sentir abandonado ante a sua condição de desamparo ou incompletude.

11 Professora Doutora da Faculdade de Direito da UERJ, Doutora em Psicologia pela FGV e Psicanalista
pela SPRJ (Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro).
2 Sinopse da Folha de S.Paulo. Um avião lotado de crianças e adolescentes cai numa ilha
deserta. Os jovens sobrevivem e, aos poucos, vão se reunindo num grande grupo. Em
assembléia, os meninos designam um líder. Longe dos códigos que regulam a sociedade dos
adultos, esses jovens terão de inventar uma nova civilização, alicerçada exclusivamente nos
recursos naturais da ilha e em suas próprias fantasias. O livro lançado em 1954, menos de uma
década após os campos de concentração nazistas, é no título: "Senhor das Moscas" a tradução
literal da palavra hebraica Ba'alzebul, fazendo referência a um dos demônios mais malignos
mecinados na Bíblia e sempre combatido pelos sacerdotes.

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Segundo Winnicott (1987) no começo da vida, o bebê experimenta uma
dependência absoluta da mãe ou da pessoa que cuida dele. A mãe deve permitir ao bebê,
por causa da condição de desamparo, a vivência de ilusão de onipotência de que o mundo
é criação sua. Ele deve crer que todas as suas necessidades e desejos serão atendidos
imediatamente. Nesse período o bebê é incapaz de se diferenciar da mãe, ele e o seio são
um só e este está sob seu “controle mágico”.
A mãe mais tarde, quando percebe que seu bebê pode ser desiludido em sua
onipotência, vai retirando os cuidados maternos gradativamente de acordo com sua
sensibilidade. Caso ela prossiga e mantenha a ilusão de onipotência não permitirá que seu
filho se diferencie do mundo exterior e vivencie a desilusão gradativa.
Embora a onipotência vá sendo dissolvida, a ilusão não é destruída,
permitindo-lhe assim viver experiências nos primeiros anos de vida através dos
fenômenos transicionais podendo depois continuar a experimentar estes mesmos
fenômenos intensamente através da arte, de interesses culturais, ou inclusive em um
trabalho científico, tal como o estudo desse romance “O Senhor das Moscas”.
O bebê pode reagir com violência se a mãe ou a pessoa que exerce a função
materna não mantiver a ilusão de onipotência nos primórdios da vida mental, ou se a
mesma for retirada bruscamente, como no desmame repentino, fazendo com que o
lactente possa vivenciar uma forte desilusão. É importante explicitar que essa desilusão
abrupta não possibilita condições saudáveis para uma diferenciação entre a mãe e a
criança, mas favorece uma relação objetal com a predominância do ódio.
Vale mencionar o pensamento de Winnicott sobre as invasões na vida
primitiva devido a falhas ambientais. Quando o bebê não pode contar com uma
maternagem suficientemente boa e há invasões freqüentes ele terá maior dificuldade de
se desenvolver emocionalmente, podendo se tornar uma criança violenta. Neste sentido,
os excessos de invasões não serão sentidos somente como um desamparo psíquico, mas
um verdadeiro desapossamento onde as crianças poderão não suportar o contato com a
sua incompletude porque não vivenciaram primitivamente a ilusão de onipotência.
Esta ilusão que a mãe deve propiciar ao bebê, o sentimento de continuar-a-
ser, através de cuidados amorosos será essencial posteriormente para a capacidade de
suportar a desilusão, ou seja, a entrada do terceiro ou seja da função paterna nesta relação
colocando limites aos desejos hostis.

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Muitos bebês podem ter sofrido, nos seus primeiros anos de vida, um intenso
desamparo psíquico e, futuramente, podem apresentar uma necessidade imperiosa de
repetir ativamente, no nível do inconsciente, um sentimento de impotência que tiveram
que suportar passivamente, se colocando como onipotentes. A pratica da selvageria pode
ser um dos meios pelos quais se expressa uma onipotência secundária reativa a um
sentimento de impotência.
Assim, quando uma criança comete um assassinato não está somente
buscando a mãe, mas está precisando cada vez mais encontrar a função paterna que pode
pôr limite à sua ação destrutiva por não terem mais esperança quando ocorreram muitas
perturbações e falhas ambientais nos primeiros anos de vida,
Uma criança usa de todos os meios possíveis para se impor quando pode
contar com a confiança dos pais. Se os pais ou quem exercem estas funções conseguem
suportar as agressões, a mesma se acalma e vai brincar. Os estágios iniciais do
desenvolvimento emocional estão repletos de conflitos. A relação com a realidade externa
ainda não está integrada. Segundo Winnicott, a criança precisa, assim, de alguém para
ajudá-lo a enfrentar seus impulsos destrutivos, pois ainda não tem capacidade de tolerá-
los. Se ela não tiver esse referencial seguro, poderá acabar vivenciando a ilusão de
onipotência secundária3, quando não se sente na condição de depender e ter esperança.
Nestes casos, a mesma pode não ter vivido a ilusão de onipotência quando bebê com sua
mãe, e mais tarde por querer se sentir poderosa a qualquer custo se desespera e se torna
onipotente como reação à impotência de não ter podido confiar nas suas relações
primitivas.
A seguir como ilustração citarei alguns trechos da obra estudada e
apresentarei algumas reflexões da minha leitura do romance “O senhor das Moscas”.
O autor William Golding ilustra a violência a partir do naufrágio de crianças
em uma ilha. Estas crianças não podem contar com a proteção de adultos para viver neste
local deserto, sem civilização e lei, onde se vêem incapazes de dominar os perigos
internos e externos. Várias vezes elas dizem que “Não têm adultos”, desejando algum
sinal ou alguma mensagem para se sentirem protegidas. A ilha é como a representação do

3 “Isso é inteiramente diferente daquela ‘experiência de onipotência’ que descrevi como um


processo essencial nas primeiras experiências do ‘eu’ e do ‘não eu’... ‘A experiência de
onipotência’ pertence essencialmente à dependência ao passo que a presente onipotência
pertence à desesperança em relação à dependência”. WINNICOTT, D. W. O Brincar e a
Realidade, Rio de Janeiro, editora Imago, 1975, p. 50.

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mundo interno das crianças, pois quando no início do romance as mesmas brincam, o
lugar parece paradisíaco, mas na medida em que elas ficam com medo a ilha se torna
aterrorizante.
A violência, na minha visão, não existe somente em uma sociedade, cujo
resultado extremo é a guerra, mas também no interior do próprio indivíduo, ou seja, em
seu psiquismo. Nesse sentido, a leitura realizada será com base na experiência das
crianças da ilha que poderiam representar as questões que se dão no psiquismo tais como
o desamparo psíquico, a ilusão de onipotência primitiva e secundária, a lei e a desilusão.
Destacam-se, principalmente, os personagens Ralph, Porquinho, Jack e um
grupo específico de crianças, criados pelo autor, que podem significar no psiquismo a
presença do amor e do ódio, ou seja, a ilusão e a desilusão de uma completude imaginária
entre a mãe e o bebê.
Em um aspecto temos a lei internalizada representada principalmente por
Ralph, que apesar de ficar abalado com a queda do avião numa ilha deserta, cria regras,
tais como fazer fogueira no alto da montanha, e realizar várias assembléias com o grupo
das crianças, a fim de lutarem juntos e voltarem para casa. Ele tem esperança e é mais
estruturado, tendo possivelmente internalizado a função paterna de forma amorosa, sendo
consequentemente capaz de falar da lei jurídica ao dizer para todas as outras crianças que
não podem roubar e tampouco matar.
Porquinho, amigo de Ralph, sempre está ao lado deste e defende a importância
do grupo se unir até que apareça um adulto para salvá-los, demonstrando que o mesmo
valoriza a relevância das regras. No entanto, quando tenta falar, Porquinho é desprezado e
muitas vezes maltratado por Jack, a quem parecia temer. Parece reviver o seu desamparo
primitivo, pois relata que seu pai morreu e acabou sendo criado por uma tia. Encontra uma
concha e tem a idéia de utilizá-la para tentar chamar outros meninos que estivessem na ilha
e Ralph coloca em prática.
Esta concha vem a se tornar um dos principais símbolos dessa nova comunidade,
uma vez que através dela passam a serem convocadas as constantes reuniões entre os
garotos e ao seu soar todos atendiam. Durante as reuniões, o direito à palavra era exercido
através da posse da concha que poderia ser transmitida a qualquer um. Em determinados
momentos Porquinho fica agarrado nesta concha na tentativa de proteger o objeto
representativo de inestimável valor afetivo e Ralph utiliza principalmente como símbolo
do diálogo.

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Aas crianças parecem eleger a concha como um elemento integrador
fundamental, o que Winnicott (1975) denominaria como objeto transicional e ou
fenômenos transicionais, a exemplo de um som ou canto da mãe. Esta concha, segundo
minhas reflexões, pode representar a área intermediária entre a presença e ausência da
mãe ou de um adulto que os preserve da separação brusca de seus pais, bem como de um
sentimento de abandono na ilha sem nenhuma proteção.
O uso do objeto transicional se dá nas primeiras relações objetais, mas em
momentos difíceis, uma criança ao reviver uma situação de desamparo pode voltar a usá-
lo. Tal objeto ou fenômenos têm um efeito tranqüilizador, principalmente quando a
pessoa que cuida ou exerce a função materna se ausenta, ajudando a tolerar a angústia de
separação.
Porquinho fala com Ralph: “Morreram todos – disse Porquinho. - E isto é
uma ilha. Ninguém sabe que estamos aqui. Seu pai não sabe, ninguém sabe”. Ralph diz:
“Meu pai é da Marinha... - E mais cedo ou mais tarde um navio chegará aqui. Pode ser
até o navio do meu pai. Como vocês vêem, cedo ou tarde, seremos salvos. ”
Na minha visão, Ralph demonstra acreditar que alguém irá salvá-los, porque
possivelmente pode contar predominantemente com uma relação amorosa primitiva ao
dizer que seu pai é da Marinha.
Ralph, apesar de assumir uma posição de liderança, comenta que não
interessa quem é o líder, mas é necessário trabalharem juntos e não ficarem só brincando.
Diz que devem manter a fogueira acesa para alguém ver a fumaça. A fogueira tinha dupla
função, segundo o autor do romance, servindo não só como sinalizador, mas como fator
de segurança à noite até que adormecessem, como se fosse um lar. No entanto no decorrer
do romance, Ralph reclama de não conseguir deixar a fogueira acesa e começa a ficar
sem esperança, ou seja, começa a vivenciar um sentimento de desamparo.
Neste sentido, na medida em que o tempo ia passando, o ambiente selvagem
da ilha adentrava nos espíritos infantis, possibilitando neles um contato maior com
aspectos hostis do inconsciente, que culmina na divisão do grupo em outro, liderado pelo
carismático Jack.
Durante o romance Jack se referindo ao Ralph, afirma “— Que as regras vão
pro inferno! Somos fortes, nós caçamos! Se houver um bicho, nós o caçaremos! Vamos
cercá-lo e bater, bater, bater! ” e continua “-Ele não é um caçador. Nunca nos trouxe
carne. Não é um prefeito da escola e nada sabemos dele. Só dá ordens e espera que as

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pessoas obedeçam em troca de nada...” [...] “ — Quem quer que Ralph não seja o chefe?
” [...] “ — Eu lhes dei comida - disse Jack —, e meus caçadores vão protegê-los do bicho.
Quem quer entrar para minha tribo? ”
Pareceu-me que Jack era desestruturado e tinha um ódio muito intenso,
representando um aspecto mais violento de nosso psiquismo. Em minhas reflexões este
menino possivelmente, por ter sofrido tantos desamparos e não ter vivido a ilusão de
onipotência primária, na época da dependência absoluta, vivenciou muitas invasões
psíquicas. Então acabou experiênciando um sentimento de onipotência secundária
alimentado por sentimentos de ódio, buscando fazer desaparecer qualquer noção de
impossibilidade.
Os meninos começam a abrigar e só param quando Porquinho levanta a
concha e grita reiteradamente “— Que é melhor? Ter regras e segui-las ou caçar e matar?
Ralph também grita contra o barulho “_ O que é melhor? A lei e o salvamento, ou caçar
e destruir? Então se desencadeiam uma série de eventos que vão culminar na morte de
Porquinho, enquanto segurava a concha firmemente nas mãos e que acabou se quebrando.
Jack demonstra uma relação de poder e onipotência ao dizer que deseja
comandar a ilha e que todas as outras crianças devem obedecê-lo. Neste sentido, o Senhor
das Moscas é representado alegoricamente pela figura da cabeça do porco que foi cortado
por Jack fincada numa vara rodeada de moscas, que é usado para causar medo,
possibilitando que o grupo de meninos permanecesse subordinados a ele como o líder que
iria protegê-los. O menino violento domina e deseja assustar todas as outras crianças, que
seriam as moscas como um bando ou rebanho que ficam seguindo-o sem sua própria
singularidade e subjetividade e não podem discordar dele como se fosse o Senhor das
Moscas, porque podem morrer, tal como Porquinho.
Muitas crianças da ilha se comportam como se as antigas situações de perigo
ainda existissem em decorrência de um intenso sentimento de desamparo psíquico. Não
conseguiram vivenciar primitivamente a ilusão de onipotência ante a condição de
incompletude e, consequentemente, recorrem ao ódio como elemento estruturador.
No fim do romance por um dos oficiais aparece na ilha e diz: “ - Vimos sua
fumaça. O que estão fazendo? Uma guerra ou algo assim? ” O autor do romance, comenta
que o oficial se virou para Ralph e falou: “Vamos levar vocês. Quantos são? ”
Neste momento pela primeira vez desde que chegara à ilha, Ralph entregou-
se ao choro pelo fim da inocência de que não há só a presença do amor, mas também o

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ódio expresso pela selvageria de Jack e na morte de seu grande amigo Porquinho. Por
outro lado, os meninos foram salvos e não predominou o sentimento de desamparo.
Concluindo, na minha visão o autor apesar de enfocar a destrutividade, ou
seja, a vivencia da ilusão de onipotência secundaria, acabou fazendo predominar as
relações amorosas que possibilita a estruturação do nosso psiquismo. Estas vivencias são
reveladas no final do romance, no instante em que o personagem Ralph quase foi morto,
este e o grupo de crianças foram salvos por oficiais, num momento em que as esperanças
pareciam perdidas e não existir mais a lei.

Referência Bibliografia
ENRIQUEZ, Eugene . Da Horda ao Estado Psicanálise do Vínculo Social , Rio de Janeiro
,Editor Jorge Zahar 1990,p112.
GOLDENBERG, Gita. Direito e Psicanalise:Visão Interdisplinar Com Enfase Em Casos
Judiciais Complexos, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2014.
------------------------------A Lei e a Ilusão de Onipotência – Desamparo Psiquico no
contexto do Senhor das Mocas in Direito e Psicanalise :Interseções e Interlocuções a
Partir de o Senhor das Moscas de William Golding,Helen Hermann,organizordar , Rio de
Janeiro ,Lumen Juris ,2011 pág. 203-217
GOLDING, William. O Senhor das Moscas, 1ªedição especial, Rio de Janeiro, Nova
Fronteira,2006.
SIGMUND, Freud. Inibição, Sintomas e Ansiedade .In Um Estudo Autobiográfico,
Inibição ,Sintomas e Ansiedade, A questão da Análise Leiga e Outros Trabalhos. Vol
XX, Rio de Janeiro, editora Imago, 1969.
-WINNICOTT, D. W.. Privação e Delinqüência. São Paulo, Livraria Martins Fontes
Editora Ltda, 1987. p. 121.
------------------------- O Brincar e a Realidade, Rio de Janeiro, editora Imago, 1975.

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