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Revista História Viva, edição 75, janeiro de 2010

A dura vida dos intérpretes do além

De intermediários entre deuses e homens, os detentores do pensamento mágico passaram a


interlocutores do demônio, dignos de arder em fogueiras. O Iluminismo devolveu algum juízo
aos homens, mas a violência de fundo religioso nunca cessou

Véronique Dumas é doutora em história da arte contemporânea e escritora.

A Inquisição ficou para trás, mas não a caça às bruxas. Há quem diga que a perseguição
àqueles que de algum modo são diferentes – e, por isso, associados a fenômenos diabólicos –
faz ainda mais vítimas que o total registrado nos séculos XVI e XVII, de forte repressão na
Europa.

Calcula-se que a política de extermínio de feiticeiros nos tempos da Inquisição tenha matado
50 mil pessoas ao longo dos séculos em que vigorou naquele continente. E hoje? Ninguém
sabe ao certo, mas o princípio da matança é o mesmo: fazer de alguns indivíduos bodes
expiatórios de problemas de uma sociedade ou comunidade. E a justificativa também não
difere muito, já que sempre há quem defina o assassinato como um desígnio de forças do
além.

Em 2007, a Conferência Internacional sobre Feitiçaria, na cidade de Vardo, Noruega,


organizada por universidades dos Estados Unidos e da Escandinávia, alertava para esse fato. O
lugarejo foi escolhido por ter um histórico de violenta perseguição a mulheres no século XVII –
80 foram queimadas vivas, acusadas de manter encontros com o demônio em uma montanha.

Os participantes do encontro apresentaram dados segundo os quais houve nos últimos 50


anos um recrudescimento da perseguição a supostos feiticeiros e feiticeiras, sobretudo em
países da África, México, Índia, Indonésia e Malásia. As vítimas são em geral mulheres e
crianças, e há casos de doentes e deficientes.

Na Antiguidade, religião e magia se apoiavam em práticas legais e confundiam-se, como parte


de um mesmo pacote institucional. No Egito, o ocultismo era um direito de todas as classes
sociais. O mais humilde membro da sociedade egípcia podia recorrer a um mágico para tratar
problemas de saúde – médicos, afinal, eram pessoas a quem se atribuíam poderes espirituais.

Muitas vezes, o próprio faraó evocava, por meio de rituais, forças desconhecidas para
sustentar uma ofensiva militar. O poder também praticava ritos de feitiçaria contra monarcas
estrangeiros considerados perigosos para o país. A lista de pessoas visadas, mantida pela
administração central, era atualizada regularmente.

Já os gregos tinham o hábito de se servir da adivinhação, por meio de oráculos – o mais


famoso foi o da cidade de Delfos – abertos aos gregos e aos estrangeiros. Estados buscavam
confirmar suas decisões recorrendo às intérpretes dos desígnios divinos.
Tais práticas, muitas vezes exercidas por grandes famílias de adivinhos, foram adotadas pelos
romanos e adaptadas a sua cultura religiosa. A interpretação dos sinais enviados pelos deuses
aos homens, sobretudo os presságios, estava sujeita à autoridade do Senado, que mantinha
um conselho de sábios para tratar do tema. O conhecimento desses teólogos era usado em
temas inacessíveis ao mortal comum.

É difícil definir no tempo quando mulheres, animais e indivíduos diferentes, como portadores
de doenças, de deficiências ou seguidores de credos alternativos, passaram a ser associados,
de forma negativa, à magia.

No início da era cristã, os escritos dos autores greco-latinos, particularmente os de Apuleio


(século II), falavam em uma criatura noturna, que se deslocava voando e uivando e se
alimentava de carne e sangue humanos. Essa ancestral das bruxas medievais era chamada de
estriga e tomava a forma de coruja. Segundo a lenda, resultava da transformação de certas
mulheres. Os letrados romanos, porém, não acreditavam nessas fábulas. E o emprego de ritos
mágicos fora do quadro institucional era reprovado na Grécia e na Roma antigas.

A nascente Igreja cristã também condenava essa democratização da mágica, por razões
distintas. O combate aos cultos pagãos era pedra de toque da afirmação da nova fé em um
único Deus. A partir do século IV, os imperadores cristãos no Oriente e no Ocidente
ameaçavam com severas sanções os que praticassem a magia. As penas não eram claramente
definidas, e as autoridades religiosas costumavam pregar a clemência aos que se
penitenciassem.

Bons tempos para os feiticeiros, quando comparados aos que viriam depois. Durante mais de
mil anos de cristianismo, crenças e superstições foram encaradas como ilusões e “desprezíveis
loucuras”, como escreveu o bispo de Chartres no século XII. Inspiradas pelo diabo, sim, mas
raramente suscitavam condenações.

Essa relativa indulgência da Igreja chegou ao fim no século XIII. Em 1233, o papa Gregório IX
reorganizou a Santa Inquisição e encarregou os dominicanos de perseguir os hereges. Em
1260, o papa Alexandre IV conferiu-lhes o poder de inquirição de bruxos, qualificação
associada à heresia.

A essa altura, a Igreja passou a se esforçar para definir o crime de bruxaria, retomando a noção
exposta por Tomás de Aquino de pacto com o demônio, explícito (por meio de conjurações) ou
tácito. Além disso, declarou ilícitas as ações divinatórias e os feitiços que tivessem a finalidade
de prejudicar o próximo. No início do século XIV, escândalos políticos e vistosos processos
contribuíram para criar um clima antibruxaria na Europa. Havia fortes tensões entre o rei da
França, Felipe, o Belo, e o papado. A tal ponto que o papa Bonifácio VIII foi acusado pelo
soberano de ter recorrido à bruxaria para obter o trono de São Pedro.

Depois, de 1307 a 1314, houve o longo processo contra os templários. Submetidos a um


duríssimo interrogatório, quase todos declararam ter renegado a Cristo, adorado um ídolo e
praticado a sodomia. O grão-mestre dos templários, Jacques de Molay, foi queimado na noite
de 19 de março de 1314. E a ordem foi extinta.
A acusação de bruxaria ganhou uma utilíssima finalidade política. Tornou-se uma arma temível
para precipitar a queda daqueles que não se podiam abater de outro modo. O papa João XXII –
que pessoalmente enviou à tortura e à fogueira certo bispo acusado de querer enfeitiçá-lo
(derrubá-lo, na verdade) – é o autor da bula Super illius specula, de 1326. Essa bula tornou a
bruxaria uma heresia e autorizou os inquisidores a persegui-la sem trégua. Os tribunais
seculares foram habilitados para punir a prática – e a isso se dedicaram com o máximo zelo.

Tais medidas vinham a calhar naquele período de incerteza política, fome e instabilidade
monetária na Europa. A caça às bruxas dava uma saída às angústias e aos temores da
sociedade, que passou a eleger seus bodes expiatórios: depois dos templários, os judeus e os
leprosos.

O consequente aumento dos processos por bruxaria veio acompanhado da publicação de


vários tratados demonológicos, uns a nutrir os outros, em uma corrente de loucura. Uma
dessas obras é o Formicarius (formigueiro), publicada entre 1435 e 1437, de autoria de Jean
Nider, prior dos dominicanos de Basileia.

Os tratados de demonologia catalogavam os crimes dos acusados, estabeleciam a lista das


perguntas a lhes serem feitas e explicavam minuciosamente as ações de bruxos. Estes
renegavam a Deus, cultuavam Satanás e iam às suas assembleias diabólicas, o sabá, voando
pelos ares. Quanto às bruxas, eram especializadas na confecção de filtros de amor, no
sequestro de crianças e na antropofagia.

Na bula de 1484 do papa Inocêncio VIII, Summis desiderantes affectibus, ele descreveu o
“canto de guerra do inferno” e exortou os prelados à máxima severidade. Os estudos mais
cultos de demonologia preconizavam, afinal, mais repressão. Um exemplo é o Martelo das
bruxas, de 1486, escrito por dois dominicanos de Colônia, na Alemanha. Eles foram
incumbidos pelo papa de erradicar o mal do vale do rio Reno. O livro demonizava a mulher e se
tornou obra de referência dos juízes na matéria.

As fogueiras individuais e as coletivas passaram a arder em diversas regiões da Europa


ocidental e central. O medo se instaurou no campo, geralmente alimentado por relações de
vizinhança – bastava que um vizinho não gostasse de outro para fazer denúncias fantasiosas.
Houve alguns momentos piores de caça às bruxas, a depender do país atingido. Foram
executadas 2.200 pessoas na Lorena, entre 1576 e 1606. E mais de 3 mil no sudeste da
Alemanha, entre 1560 e 1570. Escócia foi recordista do terror patrocinado pela Igreja: 4.400
pessoas queimadas entre 1590 e 1680. A onda de assassinatos em nome de Deus foi muito
mais ampla, do ponto de vista geográfico, embora muitas vezes não haja números conclusivos
em todas as regiões.

Especialmente no século XII, a obsessão pelo satanismo fez-se acompanhar pelo surgimento de
fenômenos de histeria coletiva, em que todos se diziam vítimas de feitiços, e qualquer um
poderia sofrer uma possessão diabólica. Os exorcismos se tornavam espetáculos e atraíam um
público numeroso.
Mais tarde, o Novo Mundo entrou na rota das bruxas. Em 1692, em Salém, nos Estados
Unidos, moças acometidas de convulsões apontaram várias pessoas como responsáveis por
sua possessão pelo diabo. Dezenove dos acusados acabaram enforcados.

Pouco a pouco, as perseguições católicas perderam o ímpeto. O Iluminismo ajudou muito.


Triunfou sobre as demais linhas de pensamento e preferiu privilegiar o espírito crítico em
detrimento das artes de Satã. A Enciclopédia, primeira grande compilação do conhecimento do
mundo, tratou de rebaixar a bruxaria a uma “operação mágica vergonhosa e ridícula”.

Razão à parte, a dimensão mágica passa bem neste início do século XXI, o que não é nem bom
nem ruim. O problema são os intermediários de Deus e do diabo – ou de seus correspondentes
nas várias religiões, monoteístas ou não. Há os que orientam, engrandecem, consolam e unem
os espíritos dos homens contemporâneos. E há os que separam, opõem e envenenam.

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