Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A Inquisição ficou para trás, mas não a caça às bruxas. Há quem diga que a perseguição
àqueles que de algum modo são diferentes – e, por isso, associados a fenômenos diabólicos –
faz ainda mais vítimas que o total registrado nos séculos XVI e XVII, de forte repressão na
Europa.
Calcula-se que a política de extermínio de feiticeiros nos tempos da Inquisição tenha matado
50 mil pessoas ao longo dos séculos em que vigorou naquele continente. E hoje? Ninguém
sabe ao certo, mas o princípio da matança é o mesmo: fazer de alguns indivíduos bodes
expiatórios de problemas de uma sociedade ou comunidade. E a justificativa também não
difere muito, já que sempre há quem defina o assassinato como um desígnio de forças do
além.
Muitas vezes, o próprio faraó evocava, por meio de rituais, forças desconhecidas para
sustentar uma ofensiva militar. O poder também praticava ritos de feitiçaria contra monarcas
estrangeiros considerados perigosos para o país. A lista de pessoas visadas, mantida pela
administração central, era atualizada regularmente.
É difícil definir no tempo quando mulheres, animais e indivíduos diferentes, como portadores
de doenças, de deficiências ou seguidores de credos alternativos, passaram a ser associados,
de forma negativa, à magia.
A nascente Igreja cristã também condenava essa democratização da mágica, por razões
distintas. O combate aos cultos pagãos era pedra de toque da afirmação da nova fé em um
único Deus. A partir do século IV, os imperadores cristãos no Oriente e no Ocidente
ameaçavam com severas sanções os que praticassem a magia. As penas não eram claramente
definidas, e as autoridades religiosas costumavam pregar a clemência aos que se
penitenciassem.
Bons tempos para os feiticeiros, quando comparados aos que viriam depois. Durante mais de
mil anos de cristianismo, crenças e superstições foram encaradas como ilusões e “desprezíveis
loucuras”, como escreveu o bispo de Chartres no século XII. Inspiradas pelo diabo, sim, mas
raramente suscitavam condenações.
Essa relativa indulgência da Igreja chegou ao fim no século XIII. Em 1233, o papa Gregório IX
reorganizou a Santa Inquisição e encarregou os dominicanos de perseguir os hereges. Em
1260, o papa Alexandre IV conferiu-lhes o poder de inquirição de bruxos, qualificação
associada à heresia.
A essa altura, a Igreja passou a se esforçar para definir o crime de bruxaria, retomando a noção
exposta por Tomás de Aquino de pacto com o demônio, explícito (por meio de conjurações) ou
tácito. Além disso, declarou ilícitas as ações divinatórias e os feitiços que tivessem a finalidade
de prejudicar o próximo. No início do século XIV, escândalos políticos e vistosos processos
contribuíram para criar um clima antibruxaria na Europa. Havia fortes tensões entre o rei da
França, Felipe, o Belo, e o papado. A tal ponto que o papa Bonifácio VIII foi acusado pelo
soberano de ter recorrido à bruxaria para obter o trono de São Pedro.
Tais medidas vinham a calhar naquele período de incerteza política, fome e instabilidade
monetária na Europa. A caça às bruxas dava uma saída às angústias e aos temores da
sociedade, que passou a eleger seus bodes expiatórios: depois dos templários, os judeus e os
leprosos.
Na bula de 1484 do papa Inocêncio VIII, Summis desiderantes affectibus, ele descreveu o
“canto de guerra do inferno” e exortou os prelados à máxima severidade. Os estudos mais
cultos de demonologia preconizavam, afinal, mais repressão. Um exemplo é o Martelo das
bruxas, de 1486, escrito por dois dominicanos de Colônia, na Alemanha. Eles foram
incumbidos pelo papa de erradicar o mal do vale do rio Reno. O livro demonizava a mulher e se
tornou obra de referência dos juízes na matéria.
Especialmente no século XII, a obsessão pelo satanismo fez-se acompanhar pelo surgimento de
fenômenos de histeria coletiva, em que todos se diziam vítimas de feitiços, e qualquer um
poderia sofrer uma possessão diabólica. Os exorcismos se tornavam espetáculos e atraíam um
público numeroso.
Mais tarde, o Novo Mundo entrou na rota das bruxas. Em 1692, em Salém, nos Estados
Unidos, moças acometidas de convulsões apontaram várias pessoas como responsáveis por
sua possessão pelo diabo. Dezenove dos acusados acabaram enforcados.
Razão à parte, a dimensão mágica passa bem neste início do século XXI, o que não é nem bom
nem ruim. O problema são os intermediários de Deus e do diabo – ou de seus correspondentes
nas várias religiões, monoteístas ou não. Há os que orientam, engrandecem, consolam e unem
os espíritos dos homens contemporâneos. E há os que separam, opõem e envenenam.